notas sobre cultura jurídica, trabalho e história

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NOTAS SOBRE CULTURA JURÍDICA, TRABALHO E HISTÓRIA 1 Pedro Pompeo Pistelli Ferreira 1. Introdução O presente trabalho, constituído por comentários à participação do Prof. Antonio Baylos Grau em conferência realizada na Universidade Federal do Paraná, pretende discutir sobre as ideias apresentadas pelo professor, em especial discutir sobre sua forma de abordar a questão do direito do trabalho, que parte de um foco nos modelos de direito do trabalho, entendidos mediante a investigação da história e da cultura jurídica de cada situação concreta (aliás, Baylos Grau tem estudado principalmente a experiência espanhola, desde a II República e, depois, o corporativismo franquista). Para tanto, sistematizamos nossos comentários em duas partes e na seguinte ordem: i) apresentação das ideias do professor espanhol expressas na já citada conferência, em conjunto com textos do autor no último livro que lançou; ii) depois, será abordada a temática das vantagens que a abordagem trazida por Baylos traz, se comparada com a compreensão hegemônica no direito do trabalho, em diálogo com o que Ramos Filho identifica como mitos do direito capitalista do trabalho, apesar de possuirmos algumas pequenas diferenças teóricas de cunho mais abstrato (sobre as quais não poderemos discorrer, 1 Trabalho apresentado como método de avaliação do segundo bimestre da disciplina Trabalho e História, ministrada pelo Prof. Dr. Wilson Ramos Filho, na Universidade Federal do Paraná, segundo semestre de 2014.

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Texto sobre conferência de Antonio Baylos, requisito parcial de nota para a disciplina tópica Trabalho e História na UFPR.

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NOTAS SOBRE CULTURA JURDICA, TRABALHO E HISTRIA[footnoteRef:1] [1: Trabalho apresentado como mtodo de avaliao do segundo bimestre da disciplina Trabalho e Histria, ministrada pelo Prof. Dr. Wilson Ramos Filho, na Universidade Federal do Paran, segundo semestre de 2014.]

Pedro Pompeo Pistelli Ferreira

1. IntroduoO presente trabalho, constitudo por comentrios participao do Prof. Antonio Baylos Grau em conferncia realizada na Universidade Federal do Paran, pretende discutir sobre as ideias apresentadas pelo professor, em especial discutir sobre sua forma de abordar a questo do direito do trabalho, que parte de um foco nos modelos de direito do trabalho, entendidos mediante a investigao da histria e da cultura jurdica de cada situao concreta (alis, Baylos Grau tem estudado principalmente a experincia espanhola, desde a II Repblica e, depois, o corporativismo franquista). Para tanto, sistematizamos nossos comentrios em duas partes e na seguinte ordem: i) apresentao das ideias do professor espanhol expressas na j citada conferncia, em conjunto com textos do autor no ltimo livro que lanou; ii) depois, ser abordada a temtica das vantagens que a abordagem trazida por Baylos traz, se comparada com a compreenso hegemnica no direito do trabalho, em dilogo com o que Ramos Filho identifica como mitos do direito capitalista do trabalho, apesar de possuirmos algumas pequenas diferenas tericas de cunho mais abstrato (sobre as quais no poderemos discorrer, devido ao exguo espao) atinentes ao conceito de direito adotado.2. Modelos de direito do trabalho, histria e cultura dos juristasA presente pesquisa de Baylos Grau (2014a, p. 7, 2014c) iniciou-se a partir de fomentos universitrios destinados a pesquisar sobre a Crise Mundial de 2008 e as consequncias dela para o direito do trabalho. Tal processo consolidou a posio de que a crise, enquanto transformadora e influidora da realidade, levou a mudanas no direito trabalho alm da prpria normatividade (isto , as normas objetivas promulgadas), mas tambm no prprio campo terico do direito do trabalho. Expressamente, podem-se reproduzir as consideraes de que "las grandes crisis del sistema econmico han determinado siempre cambios de paradigma en la regulacin jurdica del trabajo subordinado", mas essas mudanas so notadas "revalorizando una aproximacin a la cultura jurdica ms que a la normativa" (BAYLOS GRAU, 2014a, p. 7-8, 2014c). Da, estabelece-se um debate sobre la importancia de la cultura jurdica de - y sobre - el trabajo como base para la evolucin del derecho del trabajo (BAYLOS GRAU, 2014a, p. 10).Destarte, para alm da anlise meramente normativa, escrutinam-se os ditos modelos do direito do trabalho, almejando-se "el establecimiento" de "una relacin directa entre los 'Modelos de Derecho del Trabajo' y la ' cultura de los juristas' o la 'cultura jurdica del trabajo'" (BAYLOS GRAU, 2014b, p. 15). Contudo, cabe conceituar mais precisamente no que consiste exatamente um modelo do direito do trabalho: trata-se de uma "visin global de una poca determinada" (BAYLOS GRAU, 2014b, p. 15), dotada de seis elementos, quais sejam, (i) o contrato e o regime contratual, visto como legitimao primeira e fundamental da compra e sujeio da fora de trabalho, (ii) a empresa e seu poder organizado, que implica na desigualdade material entre os contratantes, (iii) a lei, enquanto imperatividade capaz de restringir a vontade contratual, (iv) o sindicato, enquanto sujeito coletivo de representao e negociao, (v) as convenes e negociaes coletivas, e, por fim, (vi) o conflito laboral e social expresso pelo direito de greve, a possibilidade de rejeio coletiva do trabalho. Todavia, o modelo no se esgota na descrio da existncia dessas seis peas, mas deve ser delimitado tendo como base a forma como elas se combinam dentro de um espao territorial, poltico e temporal especfico (BAYLOS GRAU, 2014c).Assim, faz-se uma constatao do direito do trabalho como "una expresin jurdica que deforma y condiciona las relaciones de produccin basadas en la explotacin de la fuerza del trabajo y a la vez enmienda y modifica el propio sistema capitalista sin desnaturalizar su esencia", portanto dotada de um "carcter 'compromisorio' y 'ambivalente'", cuja cultura jurdica deve ser abordada como:

un conjunto de enfoques, como un conglomerado de teoras y doctrinas jurdicas elaboradas por los juristas en una determinada fase histrica, as como la suma de las ideologas, modelos de justicia y modos de pensar sobre el derecho propios de los operadores jurdicos profesionales, jueces, abogados, asesores sindicales o administradores pblicos, e igualmente, el 'sentido comn' relativo (BAYLOS GRAU, 2014b, p. 16-18).

Consequentemente, examina-se o direito como un 'complejo lingustico', simultaneamente objeto y producto de la cultura jurdica (BAYLOS GRAU, 2014b, p. 19). Alm disso, o caminho de interpretao deve procurar entender o direito do trabalho dentro dos ditos modelos de cada situao histrica, dando-se maior ateno s mudanas dentro da cultura dos juristas, o que implica entender a cultura jurdica como veculo no qual se expressam as atuaes dos agentes jurdicos profissionais, agentes de arbitragem e mediao, as revistas especializadas sobre direito do trabalho, estratgias das empresas para conquistar espaos e convencer setores da jurisprudncia, e muitos outros elementos (BAYLOS GRAU, 2014c).Findada a breve recuperao do pensamento apresentado pelo professor espanhol, cabe-nos agora discutir acerca de algumas vantagens que seu mtodo e sua concepo de aproximao do direito trazem em relao dogmtica tradicional.3. A anlise histrica da cultura jurdica como antdoto para o mito da outorga.Como j se aludiu anteriormente, as consideraes metodolgicas e de pesquisa de Baylos Grau colocam-se em aberto contraponto a uma interpretao histrica que d primazia norma, o que explica a opo terica adotada pelo espanhol, a qual se foca em identificar a cultura jurdica e os modelos do direito do trabalho dentro da histria concreta de cada pas, analisando suas peculiaridades e acontecimentos sociais, econmicos, polticos, isto , histricos em geral.Ao nosso ver, a perspectiva analisada traz uma srie de vantagens tericas que vo alm da nsia normativista to em voga na dogmtica tradicional, cuja interpretao histrica apenas recita as leis que sucessivamente foram promulgadas, afirmando-as enquanto avanos sociais perenes e constantes, sem explicitar os acontecimentos que suscitaram a sua promulgao, as foras sociais que disputaram essa instaurao, ou mesmo qualquer aspecto histrico do pas que no seja completamente ligado atividade legislativa. Da, retira-se uma interpretao escatolgica da lei, incapaz de identificar as contradies do direito e do ordenamento legal e sua relao com as foras histricas que constroem a sociedade, dado que indica uma evoluo pacfica das leis trabalhistas, arquitetadas por lderes caridosos e legisladores generosos.Ou seja, segundo o discurso do mito da outorga, que ligado ao mito da evoluo civilizatria[footnoteRef:2] e concepo normativa e a-histrica do direito: [2: Segundo tais mitos, o direito do trabalho apresentado como ddiva do poder (reforando o mito da outorga) ou como mero fruto das ideias intervencionistas, em voga na poca, que, por sua vez, refora o mtodo da evoluo civilizatria (RAMOS FILHO, 2012, p. 48).]

os direitos sociais no so apresentados como resultantes de um rduo processo de lutas dos trabalhadores contra o empresariado e contra o Estado oligrquico que lhes assegurava seus interesses, mas como uma evoluo legislativa, cujo estudo permitira compreender o valor da legislao atual e o imenso mrito dos seus legisladores e a materializao dos direitos na legislao como um mero cumprimento de promessas feitas por um lder sensvel que teria propiciado uma nova era para o trabalho e para o trabalhador nacionais (RAMOS FILHO, 2012, p. 88).

Assim, ressalta-se a importncia da centralidade que Baylos Grau d anlise histrica concreta da cultura jurdica, em relao com os acontecimentos sociais de cada perodo e lugar histrico. Apenas com tal artifcio terico possvel, por exemplo, compreender o surgimento do direito capitalista do trabalho no Brasil no como outorga do Estado, mas sim enquanto materializao da correlao de foras entre as classes sociais e de distintas propostas revolucionrias que disputavam hegemonia em torno dos anos 30 do sculo passado (RAMOS FILHO, 2012, p. 68).Alm disso, tal posicionamento propicia uma anlise do direito que no o v meramente como conjunto de normas, mas sim como conjunto de relaes sociais, entre uma variedade de sujeitos cujas prticas reais e ideolgicas constroem o modelo de direito do trabalho vigente. E essa concepo nos parece fundamental para evitar a considerao do direito enquanto pura deontologia, ou uma abstrao sem vida, mais pertencente ao domnio da criao literria, como j diria Pachukanis (1988, p. 47-48), em sua crtica ao normativismo[footnoteRef:3]. Portanto, tem-se a a continuao de uma aproximao do direito que o v na realidade concreta e no como abstrao que reescreve a histria ao gosto do voluntarismo jurdico: o direito, enquanto relaes sociais, deve ser situado historicamente, dentro de definies possivelmente mais abrangentes (como as de Stutchka[footnoteRef:4] e as de Lyra Filho[footnoteRef:5]) ou mais restritas (como a de Pachukanis[footnoteRef:6], que a que preferimos). [3: Para o jurista sovitico, a norma ou deduzida das relaes j existentes ou prev com probabilidade o nascimento de futuras relaes correspondentes (PACHUKANIS, 1988, p. 48-49). Elemento que, certamente, teve inspirao em obras anteriores de Stutchka, que j divulgava o seguinte raciocnio: Suponhamos que um monarca absoluto promulgue uma lei ordenando que seja detido o curso de um rio ou o nascimento de um herdeiro, etc. Semelhantes leis entram em vigor? bvio que no. Elas nada ordenam. To somente leis humanas que no se oponham s leis da natureza ou do movimento (do desenvolvimento) das relaes sociais podem influir efetivamente no sistema de relaes sociais (STUCKA, 1988, p. 73).] [4: Este identifica as relaes jurdicas com as relaes econmicas e adiciona a essa forma (que denomina de concreta) as leis com suas interpretaes e a intuio de direito, a sensao de justia (que so classificadas como formas abstratas II e III) (STUCKA, 1988, p. 80).] [5: Lyra Filho considera direito todo o conjunto de normas coercveis que, por sua vez, passem por um exame de legitimidade, que o de ser benfica para o progresso da dialtica social, representante dos grupos oprimidos (LYRA FILHO, 1980, p. 21-23).] [6: O direito, em Pachukanis, almeja ser identificado em sua especificidade: enquanto elemento subjetivo que reveste o ato de troca de mercadorias, porque fruto da relao entre sujeitos de direito iguais que fazem valer sua igualdade no mercado, no ato de troca: ao mesmo tempo, como o produto do trabalho adquire a propriedade de mercadoria e torna-se portador de valor, o ser humano adquire a propriedade de sujeito de direito e torna-se portador de direito (PACHUKANIS, 1980, p. 76, traduo nossa).]

Destarte, um possvel desdobramento da anlise histrica do direito do trabalho e dos modelos jurdicos a constatao da ambivalncia desse direito, que, sendo capitalista, faz com que na medida em que atribui certos direitos classe trabalhadora a coloca no seu devido lugar (RAMOS FILHO, 2012, p. 107). E, ento, o direito organiza a maneira de existir no capitalismo, "distribuindo de modo desigual e assimtrico os bens e as parcelas de poder na sociedade dividida em classes sociais". Organiza, portanto, nos casos concretos, essa distribuio assimtrica, "podendo ser mais distributivo ou menos distributivo dos excedentes do trabalho, em razo das correlaes de fora entre as classes sociais, materializadas no Estado" (RAMOS FILHO, 2013, p. 4). O que permite a essencial conexo entre direito do trabalho e histria, elemento devidamente enfatizado por Baylos Grau.Se, a princpio, no subscrevemos a relao do direito com a distribuio desigual nas sendas traadas por Marx, o princpio da equivalncia do valor do trabalho que permite o desenvolvimento do modo de produo capitalista[footnoteRef:7] , devemos, por outro lado, afirmar que a anlise histrica dos modelos jurdicos do trabalho permite um avano terico em muitos pontos frente da anlise puramente normativista e, alm disso, esses modelos criam uma noo de ligao do direito com a previsibilidade instaurada pela legalidade, que aplica um padro de medida igual aos indivduos, o que, por sua vez, completamente compatvel com a posio pela qual temos preferncia[footnoteRef:8]. [7: Por mais que o modo de apropriao capitalista parea ofender as leis originais da produo de mercadorias [como a troca simples de equivalentes], ele no se origina de maneira alguma da violao mas, ao contrrio, da aplicao dessas leis (MARX, 1996, p. 217-218, grifos nossos). Logo, se, segundo a tradio pachukaniana de crtica ao direito, a forma jurdica representa a parte subjetiva dessa relao equivalente de troca, s h direito em uma relao de equivalncia na qual os homens esto reduzidos a uma mesma unidade comum de medida em decorrncia de sua subordinao real ao capital (NAVES, 2014, p. 87).] [8: No encontramos trechos exatos que apontam nesse sentido em Baylos Grau, mas encontramos esse sentido nas afirmaes de que o Direito capitalista do trabalho permite a racionalizao econmica e a fixao das regras do jogo dentro das quais funcionar o sistema capitalista, assim o ramo do Direito que legaliza, legitima e institucionaliza a subordinao entre iguais o Direito Capitalista do Trabalho (RAMOS FILHO, 2012, p. 91 e 96), que, portanto, acaba por recobrir as relaes sociais capitalistas de juridicidade, de legalidade. Uma legalidade que permite a reproduo da dominao que a conforma (RAMOS FILHO, 2012, p. 103).]

Em todo caso, deve-se exaltar a importante contribuio para o estudo do direito do trabalho que so as reflexes deixadas pelo professor Antonio Baylos Grau e a sua fundamental imerso na seara da compreenso desses modelos a partir de manifestaes histricas concretas, o que permite desvendar o sentido do direito do trabalho para alm do mito da outorga ou do avano civilizatrio e, assim, escancarar o carter ambivalente desse ramo do direito, que, como bem deduz Ramos Filho (2012), merece a denominao de Direito Capitalista do Trabalho.

Referncias Bibliogrficas:BAYLOS GRAU, Antonio. Presentcion. Em: ______ (coord.). Modelos de Derecho del Trabajo y cultura de los juristas. Albacete: Editorial Bomarzo, 2014a, p. 7-11.______. Modelos de derecho del trabajo y cultura jurdica del trabajo. Em: ______ (coord.). Modelos de Derecho del Trabajo y cultura de los juristas. Albacete: Editorial Bomarzo, 2014b, p. 15-32.______. Cultura Jurdica, Trabalho e Histria. Curitiba, UFPR, 02 dez. 2014c. Palestra ministrada na Universidade Federal do Paran.LYRA FILHO, Roberto. O direito que se ensina errado. Braslia: Centro Acadmico de Direito da UNB, 1980.MARX, Karl. O Capital: Crtica da economia poltica. t. II. Livro Primeiro. So Paulo: Editora Nova Cultural, 1996.NAVES, Mrcio Bilharinho. A questo do direito em Marx. So Paulo: Outras Expresses, 2012.PACHUKANIS, Evgeni Bronislavovitch. . Em: ______. . Moscou: Nauka, 1980.______. Teoria geral do direito e marxismo. So Paulo: Acadmica, 1988.RAMOS FILHO, Wilson. Direito Capitalista do Trabalho: histria, mitos e perspectivas no Brasil. So Paulo: LTr, 2012______. Marxismo e poltica: as classes sociais e o direito. Revista do Curso de Direito da UNIFACS, Salvador, n. 151, 2013. Disponvel em: < http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/2456/1800 >. Acesso em 03 de dez. de 2014.STUCKA, Piotr Ivanovitch. Direito e luta de classes. So Paulo: Acadmica, 1988.