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33 » noticiasmagazine 22.NOV.2009 32 » noticiasmagazine 22.NOV.2009 REPORTAGEM TEXTO Sarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIA Rui Coutinho A nm convidou os octogenários Bárbara e Jesus para uma saída com passagem obrigatória pelos territórios dos mais novos. ¬ É certo que evitámos o fim-de-semana,preferindo fazê-lo numa quinta-fei- ra – a melhor noite para sair em Lisboa, segundo a sabedoria noctí- vaga. ¬ Aqui se narra a animada conversa que nos levou do Bairro Alto à discoteca Lux – e se deixa um retrato de uma geração. A nti-soarista, Jesus Are- nillas acusa Mário Soa- res de nunca ter aberto mão dos privilégios de classe, circunstância que, segundo o octoge- nário (da geração de Soares, justamente), o impediu de poder defender cabalmente os interesses do povo. «Não é tanto a questão de ele não ser um dos meus. É mais nunca ter sido um homem capaz de defender as minhas dificuldades. Ele enganou-me! E quando me enganam, para mim acabou! Eu sou de outra galáxia, e só tenho pena é de não ter o dom da palavra!», lamenta-se o marceneiro aposentado, apesar do evidente exagero de quem ainda assim vai conseguin- do exprimir a indignação. «Ora, se tivesse o dom da palavra, o que é que fazia?», pergun- tou em jeito de desafio Bárbara Oliveira: «Engolia-a, como fazem todos os outros!» Ao que Jesus imediatamente reagiu, lem- brando que o tempo de engolir as palavras já lá vai: «Isso era no tempo do fascismo, em que a gente tinha de engolir as palavras pa- ra não ir preso!» Mas Bárbara, rápida no ga- tilho, logo ripostou, afirmando que quanto a ela nunca teve problemas, porque nunca se meteu em política. «Coitadinho do Sala- zar!», diz, desafiadora, denotando um gosto evidente por irritar Jesus, antifascista a vida Bárbara e Jesus estavam tão à vontade que até pareciam frequentadores habituais da noite do Bairro Alto. Noitada

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33»noticiasmagazine 22.NOV.200932»noticiasmagazine 22.NOV.2009

REPORTAGEM

TEXTO Sarah Adamopoulos¬ FOTOGRAFIA Rui Coutinho

A nm convidou os octogenários Bárbara e Jesus para uma saída compassagem obrigatória pelos territórios dos mais novos.¬ É certoque evitámos o fim-de-semana,preferindo fazê-lo numa quinta-fei-ra – a melhor noite para sair em Lisboa,segundo a sabedoria noctí-vaga.¬Aqui se narra a animada conversa que nos levou do BairroAlto à discoteca Lux – e se deixa um retrato de uma geração.

Anti-soarista, Jesus Are-nillas acusa Mário Soa-res de nunca ter abertomão dos privilégios de

classe, circunstância que, segundo o octoge-nário (da geração de Soares, justamente), oimpediu de poder defender cabalmente osinteresses do povo. «Não é tanto a questãode ele não ser um dos meus. É mais nuncater sido um homem capaz de defender as

minhas dificuldades. Ele enganou-me! E quando me enganam, para mim acabou!Eu sou de outra galáxia, e só tenho pena é denão ter o dom da palavra!», lamenta-se omarceneiro aposentado, apesar do evidenteexagero de quem ainda assim vai conseguin-do exprimir a indignação. «Ora, se tivesse odom da palavra, o que é que fazia?», pergun-tou em jeito de desafio Bárbara Oliveira:«Engolia-a, como fazem todos os outros!»

Ao que Jesus imediatamente reagiu, lem-brando que o tempo de engolir as palavras jálá vai: «Isso era no tempo do fascismo, emque a gente tinha de engolir as palavras pa-ra não ir preso!» Mas Bárbara, rápida no ga-tilho, logo ripostou, afirmando que quanto aela nunca teve problemas, porque nunca semeteu em política. «Coitadinho do Sala-zar!», diz, desafiadora, denotando um gostoevidente por irritar Jesus, antifascista a vida

Bárbara e Jesus estavam tão à vontade que até pareciam frequentadores habituais da noite do Bairro Alto.

Noitada

PU

BLI

CIDA

DE

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contrário. Os chocolates da Regina? Porquehaveria de ter saudades se hoje tenho mui-tos mais chocolates por onde escolher? O 25de Abril trouxe-me coisas que eu antiga-mente não tinha! Passei a poder falar e a po-der discordar. A democracia deu-me direi-tos que eu não tinha.» Mas se para Jesus émuito claro que o mundo mudou em 1974,para Bárbara esse foi também um ano degrande mudança na sua vida, mas porque oseu marido morreu. «Fiquei viúva nesse anoe a minha vida mudou muito.» Quanto ao 25de Abril, Bárbara pensa que «morreu. Bastaver os mais novos que nem sabem que exis-tiu uma ditadura». Ainda assim, a octogená-ria concorda que a vida dos portugueses me-lhorou com a democracia, embora olhe demaneira radicalmente diferente para as for-mas e os significados dessas mudanças. Je-sus considera-a reaccionária. «Eu tenhosaudades do nosso Portugal de antigamen-te», diz Bárbara, nostálgica,«tenho sauda-des do país todo cultivado como um jardim,em que tudo estava limpinho e arranjadinhoporque cada um tinha de trabalhar as terras,senão não comia. Hoje só vejo silvas, só vejomato, só vejo a floresta a beber a água toda,que mesmo que se semeie alguma coisa de-pois não há água para regar.» Já Jesus vailembrando que hoje temos o Alqueva, e quea água não será propriamente um problema.

inteira, e alguém para quem as lutas não aca-baram com o 25 de Abril. Fã devoto de Sara-mago, defendê-lo-á no aceso debate ocorri-do na varanda da discoteca Lux em torno dapolémica trazida a lume com a recente pu-blicação de Caim – livro que também foi dadiscórdia entre Jesus e Bárbara. «O Sarama-go tem o direito de expor as suas ideias, masdizer que a Bíblia é um manual de maus cos-tumes é uma ofensa», diz Bárbara, que ain-da não leu Caim e se confessa «um bocadocalona para ler». Mas acontece-lhe ler, sim,e diz conhecer a escrita de Saramago, comoaliás a de Lobo Antunes, que considera maisacessível do que a do Nobel. Jesus fez a estepropósito questão de deixar bem claro quenão lê Saramago por causa de o escritor terrecebido o galardão literário: «Eu leio por-que gosto mesmo do que ele escreve, porqueme identifico com ele.»

Visões antagónicasNascido em 1926, filho de um espanhol deValladolid chegado a Portugal com a Repú-blica (por conselho médico de quem julgoumais são o nosso clima temperado) e de umasenhora da Extremadura espanhola aquiaportada como ama de crianças (niñera, emespanhol), Jesus diz não ter «saudades denada do que existia antigamente. Se exis-tiam coisas boas, não as perdi, antes pelo

AntigamenteBárbara refere então que «gostava mais da ju-ventude de antigamente por a de hoje ter liber-dade e facilidades a mais. Antigamente haviamais respeito na sociedade em geral.» Jesusnão se fica e logo lembra que havia também«mais medo!» Medo? Bárbara não se lembra deter medo: «Eu nunca tive medo do meu pai erespeitava-o. Não tinha medo dos meus vizi-nhos e respeitava-os. Eu não quero dizer que ajuventude de hoje não presta, mas eu é que pre-feria a de antigamente.» Jesus escarnece dasideias de Bárbara, e diz que «antigamente nósentrávamos num autocarro ou no nosso prédioe ninguém dizia nada, ninguém cumprimenta-va ninguém. As pessoas viviam oprimidas e re-voltadas, e isso notava-se no convívio.» Bárba-ra não concorda, claro. Nascidos noutro Portu-gal, cuja população era esmagadoramenteanalfabeta, nem Jesus nem Bárbara estudarampara além da primária. Pedimos-lhes que nosdissessem de que modo as suas vidas poderiamter sido diferentes se tivessem tido as oportuni-dades que o Estado Novo negava. «Em muitacoisa», diz Jesus. «Eu tirei só a quarta classe epode até ser que nem fosse talhado para ser umgrande aluno, mas se tivesse podido estudar aminha vida teria sido outra, sem dúvida. A ma-neira como se educava na escola não convida-va nada aos estudos. Se a professora dissesseque no dia seguinte era a minha vez de ir ao

Bárbara«Eu tenho saudades

do nosso Portugalde antigamente,dopaís todo cultivado

como um jardim,porque tinha de

cultivar-se as terras,senão não se comia.»

Os convidados da nm aproveitarampara discutir pontosde vista diferentes e apreciaram, interessados, a inauguração da exposição de fotografia na Kgaleria, ao Príncipe Real.

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quadro, na manhã desse outro dia, à hora deir para a escola, eu vomitava, ficava doentís-simo, e porquê? Porque se falhava a profes-sora batia-me, dava-me reguadas, ora eupenso que isso não é maneira de educar. E fez que, quando acabei a quarta classe, ti-vesse logo dito que queria era ir trabalharpara a oficina de marcenaria do meu pai! Eleainda insistiu e disse-me que eu tinha de irpara a Machado de Castro, mas eu fui masfoi uma ova!» Bárbara também acha que asua vida teria sido outra. «Aprendi a ler comas miúdas que iam à escola e me ensinarama usar a cartilha e a estudar as letras e a escre-ver o meu nome. Depois fui à escola de adul-tos mas não passei da terceira classe.»

No tempo do «Botas»«A minha mãe morreu na altura em que euhavia de ter ido para a escola. A culpa nãofoi do Salazar, porque apesar de hoje dize-rem que ele era mau, a verdade é que elepôs escolas em todas as aldeias de Portugal.E, já depois de adulta, eu podia ter estuda-do, como alguns fizeram. E por isso nãoculpo ninguém, porque foi falta de orien-tação e falta de cabeça!» Feita a declaraçãoque mantém Bárbara na oposição a Jesus,ambos concordam que a distribuição equi-tativa da riqueza continua por se fazer nasociedade portuguesa – e que a democracianão mudou isso significativamente. Um

Jesus«Não tenho saudades doantigamente.O 25de Abril trouxe-me

coisas que nãotinha! A democracia

deu-me direitos,como poder falar

e discordar.»

Foi uma noite «alternativa» . E ambos aceitaram a aventura de experimentar comida asiática.

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mundo novo em que subsiste um mundovelho, classista e injusto. Para Bárbara, «omundo deu várias grandes voltas, nem to-das boas, mas aceito e convivo bem com avida actual. Sou uma pessoa que me adap-to muito bem à evolução do mundo. Maspara mim o ser humano tem-se degradado.Evoluiu materialmente mas os valores mo-rais têm-se desvanecido. Sim, acho que vi-vemos uma era decadente. Antigamenteéramos oprimidos mas tínhamos valores.A família era mais ligada. Agora muitosacham que tudo cai de mão beijada, que oEstado tudo lhes deve, e perderam-se essesvalores. As pessoas deixam os pais nos la-res e pagam a mensalidade por transferên-

cia bancária, e por vezes nem aparecemnos lares para visitar os pais.» Já Jesus pen-sa que a sociedade de consumo «fez que to-dos tenham de trabalhar para terem carro,televisão, coisas de marca, e que por isso jáninguém pode ficar em casa a tratar dosmais velhos. Mas felizmente hoje em dia hámais protecção à terceira idade. A SantaCasa, por exemplo, tem agora um centro degeriatria a que todos os utentes podem irpara fazer exames de rotina. No tempo do“Botas” não havia nada disto». Jesus pensaque Portugal está muito atrasado em rela-ção a outros países e que isso explica o ma-terialismo ainda extremo de muitos portu-gueses de hoje.

DoutrinasDupla exemplar de cidadãos, votam sempre.Ela deixou de ser socialista «quando mata-ram Francisco Sá Carneiro. Eu tenho umatendência para as direitas, mas quando foipreciso votei no socialismo, como agora pa-ra a Câmara [Municipal de Lisboa], porqueeu não queria lá aquele Santana. Mas voteiCavaco para primeiro-ministro e para a Pre-sidência. Eu não voto no partido, voto na pes-soa.» Ele vota numa ideologia. «No outro diaouvi uma pessoa que muito considero dizerque a ideologia que queria trazer benefíciospara todos não vingou. Quem foi essa pes-soa? Foi o Saramago, que eu considero umapessoa de bem, que veio do nada, criado na

Bárbara e Jesus, sempre bem-dispostos, alimentaram toda a noite uma divertida rivalidade, cheia de carácter e sentido de humor.

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terra, e cuja superior inteligência levou a quefosse reconhecido como um grande autor, aponto de receber um prémio Nobel. Ele nãoé nenhum totó, e olhe que é difícil dar um No-bel a um comunista! Lembra-se do Sousa La-ra, que acredita em abstracções, que acredi-ta que Deus existe e que fez aquilo ao Sara-mago com O Evangelho segundo Jesus Cristo?Esse sim, é um totozeco», Bárbara reclama:«Senhor Jesus, não se exceda.» É que para elaDeus existe, sim, e mais do que a vinda paraLisboa, o 25 de Abril ou o falecimento do ma-rido, para ela o mundo mudou decisivamen-te quando, com cerca de 30 anos, descobriu adoutrina protestante da Igreja Evangélica.Nesse momento, Bárbara passou «a ver a vi-da e a sentir as coisas de outra maneira.» Seaté ali era uma pessoa revoltada, sofrida, apartir desse cabo passou a olhar para si «co-mo uma pessoa». Se antes se sentia inferiori-zada, a partir daí deixaram de afligi-la as dis-criminações que decorriam da inferioridadesocial a que a sociedade votava os mais po-bres de todos. A Igreja deu-lhe uma nova

consciência: a de que também ela era umapessoa e que podia evoluir. A vivência daIgreja tornou-a mais aberta, mais desenvol-ta e também mais compreensiva, diz. «A ou-vir as pregações, os testemunhos, e a ler.» A Igreja enriqueceu-a espiritualmente, aela que até aí era como se não tivesse espí-rito, ou algo assim. Di-lo com a mesma con-vicção com que Jesus defende uma socie-dade sem classes.

Viagens (trans)formadorasHabitualmente, à hora em que demos con-nosco no famoso Portas Largas (na Rua daAtalaia, ao Bairro Alto, antiga casa de fados),a beber um aperitivo, Bárbara Oliveira, nas-cida em Monchique em 1928, irmã de mais14 do mesmo pai, está a jantar. Ou então jájantou e está na sua sala a costurar. «Muitotrapeira», é afeiçoada ao tricot e ao crochet,gosta de reciclar tecidos, de transformar porexemplo o tecido de guarda-chuvas encon-trados na rua em sacos, mochilas, almofadas.Uma maneira de se ocupar até perto da uma

Divertidos, aventureiros, mascuidadosos. No Lux,Bárbara tomou uma água e Jesusapenas um whisky.

ViagensBárbara cresceu naserra algarvia,masacabou por viajar

bastante,emigradapor revoadas,«ia e

vinha».Viagens que,diz,lhe «abriram

a cabeça.»

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da manhã. Criada na serra algarvia, «com osburros e as vacas», aos 16 anos morreu-lhe opai e foi viver para Portimão. A Lisboa che-gou dois anos depois, para trabalhar – pri-meiro como servente na Maternidade Alfre-do da Costa, depois na Fundição de Oeiras.Em 1952, casou-se com um alfacinha, uniãoa que a morte do marido poria cobro, trans-formando a vida de Bárbara noutra coisa. Em1976, Bárbara começou a viajar, emigradapor revoadas, «ia e vinha», primeiro parajuntar dinheiro para casar a sobrinha quecriou, depois porque lhe tomou o gosto. An-dou por Madrid, depois pela Alemanha e pe-la Bélgica, a cuidar de crianças e de pessoasidosas. Às vezes ia por dois meses e ficava umano. Trabalho ilegal, o mesmo que agora,também em Portugal, oferece oportunida-des às mulheres brasileiras que imigram so-zinhas. Viagens tardias mas formadoras, quelhe «abriram a cabeça», como se costuma di-zer de quem muda de mentalidade a viajar ea conviver com realidades de sociedades di-ferentes. Há nela o modernismo improvávelde quem pôde confrontar os valores arreiga-dos da tradição com os do progresso observa-do nesses outros lugares. E a consciência,apesar de tudo, de que vigoravam no antigoregime leis inaceitáveis: «Antes do 25 deAbril era impensável que uma mulher viajas-

se sem a autorização do marido. Sim, as mu-lheres eram propriedade dos maridos, e a es-se nível o mundo mudou muito, as leis forammodificadas, e ainda bem!»

Ocupar a velhiceBárbara Oliveira e Jesus Arenillas conhece-ram-se num centro de dia da Santa Casa daMisericórdia onde habitualmente almoçampor um preço módico e onde podem, se qui-serem, ficar também para lanchar, aprovei-tando o convívio entre as refeições. Lugarque reproduz uma sociedade em que as mu-lheres estão em maioria, género cuja longe-vidade o ratio ilustra: para cada nove ou dezmulheres utentes há um homem. Um lugaronde, para além das refeições baratas e doconvívio com outros idosos, Bárbara e Jesustêm acesso a várias outras coisas. Actividadesde ocupação de tempos livres (onde podemfazer teatro, por exemplo) e também via-gens, passeios de lazer e de enriquecimentocultural, na forma de um rol de excursõesque os levam a passear até lugares distantes,por vezes desconhecidos: Arcos de Valdevez,São Pedro do Sul, Vizela, Ponte de Lima, Fá-tima, e muitos, muitos outros. Programas aque os idosos têm acesso por valores irrisó-rios, em alguns casos gratuitamente. Com opassar dos anos e da experiência, Jesus e Bár-

bara não deixam a ocupação dos seus temposlivres por mãos alheias, mantendo-se a parde todas as possibilidades na matéria. Bárba-ra não crê em Fátima, e por isso não compa-receu à última romagem excursionista à ter-ra dos pastorinhos, que trocou por um outropasseio, oferecido por uma junta de fregue-sia. «Passeios maravilhosos», que agradecemàs políticas sociais que passaram a conside-rar os mais velhos, levando-os amiúde porcaminhos de que em muitos casos não pode-riam ter conhecido antes do 25 de Abril. «Euvenho de 48 anos de fascismo», diz Jesus,«em que não havia nada destas coisas. É pre-ciso ver que a junta nos leva todos os anos àpraia, durante duas semanas, e no final aindanos oferece um almoço. Antigamente éra-mos governados por um tacanho que não da-va nada a ninguém.»

Viúvos alegresEste trabalho não teria sido possível nessesoutros tempos – quem de entre os mais ve-lhos (e não falamos aqui de intelectuais e ou-tros opositores ao regime moralizante) acei-taria vagabundear por uma noitada pelosterritórios nocturnos dos mais novos? O quediriam as pessoas? Que não passavam de unsvelhos gaiteiros, epíteto do qual ainda assimnão se livram hoje, mesmo que quem o pen-

JovensBárbara gostava

mais da juventude«de antigamente,

hoje há liberdade efacilidades a mais».

Jesus discorda e acha que o que

havia era «medo».

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se não o diga ou não faça do preconceitouma bandeira. Mas gaiteiro significa apenasalegre, na pior das hipóteses definidas pelodicionário, folião. Que mal tem? Que mal háem aceitar pular a cerca da segregação gera-cional que tradicionalmente remete os ve-lhos para o passado, as memórias dele, e pa-ra a solidão? Quando nasceram, Bárbara eJesus, tal como todos os da sua geração, nãotinham razões para esperar viver tantosanos, porque a esperança de vida era na épo-ca outra, determinada também por condi-ções sociais que não ajudavam ninguém adurar. Surpreendentemente chegados emgrande forma a uma idade que na maior par-te dos casos afasta os velhos da vida, têm ograto prazer de se manter activos num mun-do em grande mudança. E há neles a ironiae a leveza daqueles para quem cada dia éuma nova oportunidade de celebrar a exis-tência. Convém no entanto lembrar quetanto Jesus como Bárbara praticam uma hi-

giene de vida propiciadora do bem-estar. Je-sus mora num quinto andar sem elevador,que sobe e desce respirando como os atletas,faz ginástica, campismo o ano inteiro e nãoé nem por sombras dado a excessos alimen-tares. Homem seco, enxuto, como se diz dosque têm a fortuna de ter e a ciência de sabermanter um corpo magro – um corpo que osleva saudáveis até ao fim da vida, até ao fimdo mundo, e por que não, até à discoteca.

De olhos e coração abertos à vidaBárbara não hesita em escolher o menu dedieta do centro de dia onde almoça e não per-de um programa de actividades que lhe sejaproposto. Para não falar (falando) do progra-ma espiritual que há mais de cinquenta anosa harmoniza ontologicamente. Boas práticasde vida que favorecem o bem-estar psicoló-gico que qualquer um deles denota. Na noiteem que aceitaram sair à noite a convite danm,almoçaram pescadinhas de rabo na boca(ele) e solha grelhada (ela) no refeitório docentro de dia, não imaginando que à noitejantariam comida asiática: sushi e outrasiguarias exóticas que se dispuseram pela pri-meira vez a experimentar, com a curiosidadedos que se mantêm de olhos e coração aber-tos à vida. São um exemplo e uma inspiração.Apreciaram de igual modo as surpresas quenessa semana animavam a zona do PríncipeReal (floristas muito pouco tradicionais, tru-pes de engolidores de fogo, cantores líricosque se chegavam de repente à varanda paracantar árias de ópera), a exposição de foto-grafia que inaugurou nesse começo de noiteou o restaurante cheio de gente a jantar co-midas de países distantes. Sempre bem-dis-postos, alimentaram durante a noite todauma rivalidade cheia de carácter e de senti-do de humor. É certo que não nos aventurá-mos até demasiadamente tarde, pareceu--nos insensato fazê-lo. A longa conversa queeste texto transcreve teria também sido im-possível numa dessas noites mais selvagensde sexta ou de sábado, em que o Bairro Alto ébastante mais povoado, nomeadamente poradolescentes. Na verdade, escolhemos a noi-te que os experts consideram a mais interes-sante. Fomos alternativos, portanto. Masporque se trata da noite justamente, lugarimprevisível (e que uma chuvinha pequeni-na manteve talvez agreste para alguns), ca-lhou-nos uma noite tranquila. Gostámos de-la assim, e os nossos convidados também.Ninguém olhou para eles como se fossemaves raras, nem eles olharam de forma igualpara ninguém. Na verdade, misturaram-secom espantosa naturalidade com os autócto-nes da noite lisboeta. Como se diz em lingua-gem gaiteira: estão ali para as curvas! A dadopasso, ouvimos Bárbara declarar a terceiraidade como «uma idade muito rica: temosprata no cabelo, ouro nos dentes, platina nasarticulações, pedras nos rins, chumbo nospés, e um manancial de gás natural [risos]!»«

Ambos gostaram de se misturar com osautóctones da noite lisboeta sem seremconsiderados «aves raras».

Itinerário>Encontro no Jardim do Príncipe Real.>Inauguração da exposição de fotografia de João Pina,Gangland (imagens da miséria e violência no Rio de Janeiro) na Kgaleria – Rua da Vinha, 43 A(Bairro Alto).>Aperitivo no Portas Largas– Rua da Atalaia, 105 (Bairro Alto).>Jantar de iguarias asiáticas no Nood – Largo Rafael BordaloPinheiro, 20 (Chiado).>Digestivo na discoteca Lux – Av.Infante D. Henrique, Armazém A(Cais da Pedra a Santa Apolónia).