NESTA DATA

QUERIDA

Texto de Vera Karam

Grupontapé de Teatro Uberlândia – MG

2009

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PERSONAGENS

Pai Mãe

Filha adolescente

PAI (Ao telefone) – Sim, sim! É claro! Não há dúvidas

quanto a isso! Vamos tentar resolver a questão a contento,

sem que nenhuma das partes saia prejudicada. Eu sugiro que

se abra a questão, para que todos tenham condições de

opinar, e, então, colocamos a proposta em discussão. Não!...

Eu prefiro que se espere o momento certo, para que a

questão amadureça por si própria. Não podemos ir com muita

sede ao pote, embora eu seja de opinião de que um mínimo

de sede é necessário, ou não há porque se ir ao pote...

Não!... Não saberia dizer exatamente a que horas... O senhor

sabe: essas reuniões muitas vezes acabam tendo

desdobramentos... Não, não se pode prever! Mas, assim que

chegarmos a um consenso nessa... (pensa.) nessa micro-

região, eu levo a resolução ao seu conhecimento. Muito bem!

Está OK! Pode ficar descansado, senhor Lima. Sou eu quem

agradece! OK! (Desliga.).

FILHA (Entrando) – Paiê! A mãe mandou perguntar se vêm

todos aqueles chatos da tua firma!

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PAI – Minha filhinha, o papai não trabalha em “firma”. O

papai trabalha numa Secretaria, entendeu SECRETARIA DO

PLANEJAMENTO! Eu planejo, está claro (Para si.) Planejo...

Planejo muito... (Para a filha.) Não. Não vêm todos os

chatos! Só os mais chatos! (Dando-se conta.) Mas por que

essa pergunta Não foi ela quem telefonou para as pessoas

Nós não combinamos que seria uma festa-surpresa para mim

E diz para ela, que ela não me use aquele vestido lilás, que

todos eles estão carecas de conhecer. Não tem uma

festividade da Secretaria que ela não me vá de roxo! É o traje

dela para ocasiões especiais – ou o que ela julga serem

ocasiões especiais! (A guria sai e volta em seguida.).

FILHA – Paiê, a mãe mandou dizer que o vestido não é o

mesmo, e que se o senhor reparasse nela, veria que são

vários trajes, todos ‘tendendo’ para o lilás – é verdade -, mas

que ela não repete roupa em festa.

PAI – Não é o mesmo Bem, então alguma coisa está errada!

As revistas femininas dão mil conselhos para uma mulher dar

a impressão de ter um guarda-roupa variadíssimo, com as

mesmas roupas, e a tua mãe faz exatamente o contrário: tem

milhões de vestidos no armário e dá a impressão de ter um

só! (Dá de ombros.) Problema dela. (Abre um livro.).

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FILHA – Por que é que o senhor faz isso

PAI (De má-vontade, sem tirar os olhos do livro) – Isso

o quê, Virgínia

FILHA – Não presta atenção nela!

PAI – Quem disse

FILHA – Ela se queixa.

PAI – Ah, é

FILHA – Ela chora. Chora muito!

PAI - Quando

FILHA – De noite, quando o senhor chega tarde. Às vezes,

de manhã, de tarde... O tempo todo, sempre chorando...

Sempre... sempre...

PAI – Engraçado: a tua mãe diz que não tem tempo para

nada; que o serviço da casa consome ela o dia inteiro, mas

para chorar, ela tem tempo, não é

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FILHA – Ela disse que o senhor esqueceu ela!

PAI – Pois diz para ela, que isso é impossível, entendeu

IMPOSSÍVEL! Agora sai que eu tenho que terminar de ler!

FILHA – Ela também se queixou disso!

PAI – De eu ser alfabetizado

FILHA – De estar só lendo, quando pára em casa.

PAI – Isso é uma injustiça: eu leio fora de casa também. E o

que é que ela queria Que eu visse novelas

FILHA – Mas ela disse que fica vendo novelas, porque o

senhor não dá bola para ela, e que isso de ficar vendo novelas

começou, depois que o senhor parou de dar bola para ela.

PAI – A velha questão do ovo ou da galinha que ocupa a

humanidade há séculos. Nada de original!

FILHA – Ela pediu para o senhor ir à reunião de mães, que

ela não pode ir.

PAI – Não posso.

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FILHA – Por que não É sábado de tarde! O senhor tem

alguma coisa para fazer sábado de tarde, tem Por que não

pode ir, hein Por que

PAI – Porque é reunião de mães, e eu sou teu pai! Percebeu

FILHA – Ela disse que nunca pode contar com o senhor para

nada; que o senhor sobrecarrega ela com o trabalho

doméstico; que só ela que se preocupa com a educação da

peste – eu, no caso -; e que ela está feia e velha por sua

causa! O senhor também acha

PAI (Sem tirar os olhos do livro) – O quê, guria

FILHA – Que ela está feia e velha. Acha

PAI – Sempre foi.

FILHA – Sempre foi o que Feia ou velha

PAI (Sem se dar conta do que está dizendo) – É, é isso

aí!... Pelo amor de Deus, Verinha, me deixa ler!

FILHA – O meu nome não é Verinha, é Virgínia! Pai, o senhor

tem outra

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PAI (Levando um susto) – Outra o quê, santo Cristo

FILHA – Outra filha, de nome Verinha!

PAI – Claro que não! Agora deixa eu ler!

FILHA – A mãe acha que o senhor tem outra!

PAI – Outra filha

FILHA – Outra mulher, no caso.

PAI (Dando uma gargalhada teatral) – Ela acha isso é Tá

bom...

FILHA (Maliciosa) – E que o senhor deve estar gastando na

rua o que está faltando em casa!

PAI (Com orgulho masculino) – Eu nunca deixo faltar nada

em casa!

FILHA (Dissimulada) – Eu também achei engraçado, a

geladeira está sempre cheia! Mas ela disse para a Janice! Que

disse, disse.

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PAI – Quem é essa Janice

FILHA – A manicure! Ela vem aqui às segundas-feiras! Faz os

pés da mãe!

PAI – Então ela é pedicure!

FILHA – Ah!... É a mesma coisa! E ela...

PAI – Como que é a mesma coisa Pé é mão é a mesma

coisa Desde quando

FILHA – Ah, pai, tá...

PAI – Não... não tá coisa nenhuma!... Eu não criei uma filha

para ela depois não saber a diferença entre pé e mão! E a tua

mãe, hein? Contando intimidades para uma pessoa que lida

com os pés de todo o mundo! Um calo aqui: uma revelação!

Uma cutícula: um segredo de alcova! Bonito! E o palhaço

aqui, ainda por cima, financiando essas confissões pedicu-

matrimoniais!

FILHA – E ela disse mais!

PAI – Ah, ela disse mais Mais o quê, Veri... Virgínia

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FILHA – Que o senhor nunca foi lá essas coisas, mas que

pelo menos dava para o gasto! O que é que dava para o

gasto, hein pai

PAI – Não faço idéia! Me deixa ler!

FILHA – Que sabia que o senhor não era muito chegado; que

nunca foi como o marido da tia Wilma, que quer a toda a

hora; mas que para ela estava bom assim, pois com tanta

coisa que ela tinha para fazer, nem era bom mesmo que o

senhor exigisse tanto dela, mas que nos últimos tempos: nem

o trivial. (Inocente, ou nem tanto.) O que, hein pai, que o

senhor não era muito chegado

PAI – A falar no telefone. O Rodrigues liga para Wilma o

tempo todo. Deu até um celular para ela, que, segundo

dizem, ela leva até quando vai fazer xixi, porque se ela não

atender, ele tem um ataque. Acho que ele telefona até

quando está do lado dela, para ver com que cara ela atende.

(Ela olha, desconfiada.) Já eu não sou muito amigo do

telefone (sacode a cabeça.). Não... Nem um pouco!

FILHA – Ela disse que o senhor é cheio de mistérios; que

está sempre fazendo negócios e tendo reuniões em horários

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estranhos; que viaja e não diz para onde; que não dá para

entender o senhor - que ela já tentou, mas agora desistiu,

mas que ela não é boba e...

MÃE (Fora de cena, chamando.) – Verinha!...

FILHA - Já vou, mãezinha! (Sai.).

PAI (Vai para o telefone) – Sou eu, novamente. Talvez as

coisas tomem um rumo inesperado por aqui, e neste caso

(entra a filha e fica olhando para ele.)... talvez tenhamos

uma proposta substitutiva para esta demanda. Eu entro em

contato (desliga.).

FILHA – Pai, a mãe mandou perguntar se o senhor vai querer

que a Dalva faça fios-de-ovos. Se o senhor quiser, ela faz,

mas que dá uma trabalheira medonha e que o senhor sempre

quer aquilo que dá mais trabalho, para deixar ela bem

ocupada e poder sair fervendo por aí.

MÃE (Entra carinhosíssima e sorridente) – Oi, meu

amorzinho! Feliz aniversário! (Abraçam-se e se beijam.) Já

vai ficar em casa até a hora da festa

PAI – Vou, querida! Algum problema

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MÃE – Nenhum! Acho ótimo ter meu maridinho em casa!

(Vai saindo.) Verinha, vem me ajudar!

FILHA – Mãe, o meu nome não é Verinha!

MÃE – Ah é mesmo! Vem! (Saem. Ele pega o telefone.

Fala bem alto.) Camarada Lima Camarada Nogueira! (Fala

baixo.) Não estou entendendo mais nada. Sinto que perdi o

pé da situação. Está tudo um pouco confuso. Volto a dar

notícias!

FILHA (Voltando) – A mãe mandou perguntar o quê tanto o

senhor fala nesse telefone

PAI – Diga a ela que são assuntos de trabalho, dos quais ela

não entenderia, ainda que eu me dispusesse a explicar.

FILHA – Ela diz que o senhor pensa que ela é burra!

PAI – Escuta: tu tens um ponto eletrônico no ouvido, que eu

vou falando e tu vais respondendo por ela

FILHA – É que ela sempre fala isso do senhor.

PAI – É E o que mais

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FILHA – Ela diz que... (Mãe entra.).

MÃE (Para ele) – Meu amor, quer um cafezinho

PAI – Não quero dar trabalho.

MÃE – O que é isso... Não me custa nada! Eu faço com o

maior prazer! Adoro te ver feliz, satisfeito... solto...

PAI – Feliz, satisfeito, solto... tudo isso só por causa de um

cafezinho

MÃE – Tu entendeu o que eu quis dizer, bobinho!

PAI – Me passa um café, bobinha! (Ela sai. Ele sussurra

para a filha.) Fala! O que mais que ela diz Anda, fala!

FILHA – Que marido dentro de casa só atrapalha!

PAI – Que mais Fala, guria: que mais

FILHA – Que o senhor arrui... (mãe entra, sempre

sorridente, amabilíssima.).

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MÃE – Vê se está como tu gostas! Se não estiver, pode

reclamar que eu faço outro. Tu passas tão pouco tempo em

casa, que tem que ser tratado como um rei (acaricia o

cabelo dele.). Meu rei!

PAI – Está ótimo, como sempre! Adoro o seu café!

FILHA (Sussurra) – Não foi ela quem fez, foi a Dalva!

MÃE (Carinhosa) – Tu trabalhas tanto! É bonito ver um

homem se sacrificar assim pela família. As minhas amigas

morrem de inveja! Bom... A conversa está muito animada,

mas eu tenho uma longa tarde pela frente. Ainda nem

comecei a limpar o camarão.

PAI (Apavorado) – Vai ter camarão

MÃE – Claro! Aniversário tem que ter camarão, ora!

PAI – Mas eu... eu tenho medo de camarão...

MÃE – Não te preocupa: ele não vai te fazer nada!

PAI – Mas da última vez que eu comi, me deu dor de barriga!

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MÃE – Não foi o camarão que te deu dor de barriga! Foi a

pimenta!

PAI – A mulher do Pimenta... Aquela louca...

MÃE – Não! A pimenta malagueta que eu botei. E não te

disse nada!

PAI (Para si) – Traidora!

MÃE – Ah, e depois, tu não és obrigado a comer, ora!

PAI – Como não sou obrigado a comer O aniversário é meu!

MÃE – Então! Ninguém vai te obrigar a fazer nada que tu

não queiras no teu aniversário.

PAI – E eu vou ficar sem comer! É isso

MÃE – Se for uma escolha tua, qual é o problema (Ela sai.

Ele fica sem entender.).

PAI (Para a filha) – Vamos, Verinha: o que mais que ela

diz

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FILHA – Que o senhor arrui... (mãe grita.).

MÃE – Virgínia! Vem ajudar a mãe!

FILHA – Já vou mãezinha! (Para ele.) Já volto!

PAI – Fica aqui!

FILHA – Não posso! Depois ela me belisca. Eu já ando toda

roxa. (Pai pega um livro e tenta ler. Toca o telefone. Ele

atende.).

PAI - Alô sim! Ah, muito obrigado... O que é isso Mas hoje

à noite vocês vão aparecer... Como não Mas como Deve ter

havido algum problema. Ela deve ter mandado pelo Correio

ou por um tele-boy... Espera um pouquinho... fica na linha...

(Chamando.) Marina! (No fone.) Alô! Alô! Droga!

(Gritando.) Marina!

MÃE (Entrando, sorridente) – O que foi, meu amor

PAI (Tentando se acalmar) – Querida... Tu não convidaste

os Motta Eu quase morro de vergonha!

MÃE – Ah, minha paixão... tu não vais me levar a mal, não

fica nervoso... hoje é o teu aniversário e tu não podes te

enervar...

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PAI – Por que foi que tu não convidaste os Motta O que é

que tu tens contra os Motta

MÃE – Bem... contra os Motta, assim, ‘como um todo’... não

tenho nada. Tenho contra a Motta!

PAI – Por quê Coitada!

MÃE – Coitada!... Coitada uma pinóia!... Ela vomitou todo o

meu banheiro no aniversário passado!

PAI – No aniversário passado Isso já faz doze anos. Ela

estava grávida!

MÃE – Ela estava bêbada! Ela sempre bebe, e quer se

separar!

PAI – Não, não e não! A senhora está muito enganada!

Quem sempre quer se separar é a mulher do Rigatti, aquele

gringo que tinha a fruteira e enriqueceu. Lembra Ela bebe e

quer se separar nos churrascos de fim-de-ano. Diz que ele

tem três carros importados, mas não lava os pés, sempre

com aquelas havaianas! (Viajando.) Aliás, será que no Havaí

usam as tais sandálias havaianas

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MÃE – Bem, então essa não quer se separar, mas que bebe,

bebe!

PAI (Categórico) – Não bebe!

MÃE – Olha: ela pode até não beber, mas que ela vomita,

vomita! Vomitou todo o meu banheiro e isso eu não posso

admitir! Vamos, Verinha!

FILHA – É Virgínia, mãe!

MÁE – Que seja! Vem! (Sai falando.) No meu banheiro,

não! Ah!... tinha graça!... (Toca o telefone. Pai atende.).

PAI – Alô! Ah, muito obrigado! Vocês se lembraram... Bem, é

claro que lembraram, pois receberam o convite! Como Não

Mas deve ter acontecido alguma coisa... Não seja por isso...

Ah sei... já estão agendados... bem... fica para outra...

(Desliga. Fica pensativo. Chama a mulher.) Marina!

Marina!

MÃE (Da cozinha) – Fala paizinho!

PAI – Pode vir aqui um instantinho

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MÃE – Tô com a mão na massa!

PAI - Massa

MÃE – É uma metáfora, paixão!

PAI – Ai, que alívio! Mas vem aqui! (Ela chega com as

mãos cheias de camarão. Ele olha apavorado.).

MÃE – Fala, amoreco!

PAI – O telefone tocou.

MÃE – Eu ouvi. Mas eu não pude fazer nada. Tu não querias

que eu deixasse ele (mostra o camarão.) sozinho, não é

PAI – Eu atendi o telefone.

MÃE – Então, qual é o problema Deixa eu voltar para a

minha cozinha!

PAI – Espera! (Pausa cheia, em homenagem ao Mauro.)

Não vai me perguntar quem era

MÃE – Ah desculpa, eu não entendi que era a minha vez de

perguntar! Então, vá lá: quem era, amoreco

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PAI – O Serpa!

MÃE – Só isso Era essa a grande revelação “Era o Serpa”.

PAI – Ele ligou para me cumprimentar pelo aniversário.

MÃE (Terna) – Ah, que simpático! (Como se ele fosse

criança.) Viu como todo o mundo gosta dele, lembra do

aniversariozinho dele

PAI – O Serpa não foi convidado para a festa!

MÃE – Não, de fato! Não foi!

PAI – O Serpa é um dos meus colegas mais queridos!

MÃE – Ah, realmente ele é mesmo muito querido.

PAI – Então, por que é que ele não foi convidado

MÃE – Eu não achei que devia. Ele tem inveja de ti. Eu sinto.

Te põe para baixo. Éééééé... a gente tem que ter muito

cuidado com esse tipo de gente, os chamados ‘vampiros

urbanos’. Escuta o que eu tô te dizendo: eles existem, estão

em toda parte.

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PAI – Eu não posso acreditar... (Tenta reagir, reclamar.)

Eu...

MÃE – Sshh!... (Põe o dedo os lábios dele.) Não fica

nervosinho... é aniversário! (Sai.).

PAI (Para si) – Vampiros urbanos... Eu tô bem arranjado...

FILHA (Entrando) – Ela disse que detesta o Serpa! Que o

senhor obriga ela a se dar com gente que ela não se sente

bem, e ela fica tendo que engolir e que ela já está por aqui, ó,

e que para ela chega! Ah! E ela disse também que o Serpa é

gay, e que aquele casamento dele é só de fachada, que só

não vê quem não quer!

PAI – Sei... O casamento do Serpa é de fachada!... Muito

esperta a tua mãe! E quem foi que ela convidou Ela fez o

exame da aura de todos os convidados

FILHA – Não sei de nada. Não tenho nada com isso. Não

quero nem saber, nem vem...

PAI – Já tô vendo que maravilha de aniversário esse... Bom,

me deixa ler!

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FILHA – Ai, pai...

PAI – Chispa daqui!...

FILHA – Ai, pai, me ajuda a estudar...

PAI – Como é que alguém pode ajudar uma pessoa a

estudar

FILHA – Mas os pais das minhas amigas fazem isso.

PAI – Que amigas Tu nem tens amigas...

FILHA – Ai, pai, claro que eu tenho... Eu só não trago elas

aqui, porque a mãe não gosta de ajuntamento... Me ajuda,

pai... eu tenho prova amanhã...

PAI (Contrariado) – Vamos lá... Capital da Albânia

FILHA (Rindo, num pequeno momento de descontração,

porque afinal, ela não é nenhum monstro) – Tirana!

MÃE (De dentro) – Que é isso, menina

FILHA – Nada mãe! Tô só estudando com o meu pai! (Para

o pai.) Ela tá ficando paranóica! Vamos lá! (Ficam

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estudando. Ele lendo coisas que ela escreveu e fazendo

sinais de aprovação – ‘hmmm, muito bem’ -, essas

coisas. Lê uma redação que ela fez.).

PAI – O que é isso, minha filha O ANIVERSÁRIO DE PAPAI!

De onde é que tu tiras todas essas coisas (Fica olhando

para ela, desconfiado, sestroso.).

FILHA – A mãe disse que ia ser bioquímica, é verdade

PAI – Bioquímica é Desde quando

FILHA – Que se não tivesse feito a besteira de se casar, seria

uma grande bioquímica!

PAI – ‘Grande bioquímica’! Interessante! E o que mais

FILHA – Que estava noiva de um homem dono da metade da

cidade, quando o senhor fez o favor de aparecer. É verdade

PAI – Bom, ser dono da metade da cidade onde ela morava,

não era muito difícil. A metade seria o quê Umas duas ou

três casas...

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FILHA – Mas ele gostava muito dela. Ele tinha verdadeira

loucura por ela... Ela disse que nunca se sentiu tão amada!...

PAI – Escuta: em que momento é que tua mãe te fala esses

assuntos

FILHA – Ah... ela diz toda hora essas coisas, o tempo todo,

para quem quiser ouvir. (Desata.) E ela me diz também para

eu ter muito cuidado, para não ir caindo assim na conversa do

primeiro que aparecer, que a gente faz besteira e depois não

pode voltar atrás, e que se arrependimento matasse ela...

PAI – Chega, chega, chega! (A mãe entra, sempre

sorridente e amável.).

MÃE – Estão conversando o quê, as minhas duas jóias

(Para ele.) Quer alguma coisa, minha paixão

PAI – Não, meu tesouro! Que cheiro é esse que eu estou

sentindo

MÃE – É de bolo de cenoura!

PAI – Argh! Tu sabes que eu detesto bolo de cenoura!

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MÃE (Distraída) – Sei, sim, mas não é para ti, não te

preocupa...

PAI – Não... O que realmente me preocupa, é se vai ter

alguma coisa para mim nessa festa! Alguma coisa de que eu

goste!

MÃE (Desligada, arrumando o sofá, ou as cortinas) –

Ah, sim! Tem salada de alface.

PAI – Salada de alface

MÃE (Quase agressiva, mas tentando se controlar) – Tu

não tens loucura por alface

PAI (Confuso) – Sou... Isto é... Tenho loucura, ou melhor,

gosto muito de alface, mas... não é por nada!... Olha: vou ser

bem sincero contigo... Já que é uma festa-surpresa para mim,

tu não podias realmente ter me feito uma, e preparado uma

jantinha mais caprichada É ou não é Afinal é o meu

aniversário! Ou não

MÃE – E tu queres jantinha mais caprichada do que bobó de

camarão

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PAI – Mas eu NÃO GOSTO DE CAMARÃO!

MÃE – Mas tu reconheces que é caprichado, não reconheces

Isso não tem como negar!

PAI – Não, eu não nego!... Reconheço todo o valor do

camarão! Apenas não consigo comer.

MÃE – Bem, mas aí tu já estás querendo demais! (Nota que

está perdendo o controle e amacia. Vai até ele e faz um

carinho.) Relaxa, meu amor! É o teu aniversário! (O

telefone toca. Ele faz menção de atender, mas ela se

adianta.) Oi, amiga! Tudo! Tudo! Tudo! Ah, lá pelas nove

horas, mas chega um pouquinho antes, que assim a gente

conversa mais à vontade. O Alfredo toma um drinque com o

Nogueira (ele arregala os olhos.). Ah, qualquer coisa tá

bom. Tu sabes como é homem, não sabe E esse, então, é o

chato dos chatos!... No dia dos Pais comprei uma camisa de

linho lindíssima para ele, assim, toda debruada, custou uma

fortuna – eu nem disse o preço, porque afinal, vai sair do

bolso dele mesmo... tu pensas que ele usou Nunquinha da

Silva! (Pisca para ele e joga um beijo.) Tipo do dinheiro

posto fora! Eu, inclusive, acho que (a outra corta.)... Tá

bom. Outro para ti. Até!

PAI – Com quem é que você falava

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MÃE – Com a Fátima, do Alfredo!

PAI – Tu não vais me dizer que tu convidaste a Fátima e

aquele chato do Alfredo

MÃE – Mas ela é a minha melhor amiga! Não nos

desgrudávamos no colégio!

PAI – Mas ele não é o meu melhor amigo! Eu nunca me

grudei nele! E ela é, talvez, a pessoa mais chata que eu

conheço. Eu não tenho assunto algum com o Alfredo! Ele só

sabe falar do índice Bovespa, porque acha que é assunto de

homem. O índice Bovespa! Tem graça...

MÃE – Mas que importância tem isso

PAI – Nenhuma. Tirando o fato de que é meu aniversário,

nenhuma.

MÃE – Ah, meu amor, faz uma forcinha...

PAI – Querida, eu faço ‘forcinha’ o ano inteiro, o tempo todo.

Eu pensei que pelo menos no meu aniversário eu não seria

obrigado a aturar gente de quem eu não gosto.

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MÃE – Mas são pessoas que, não se sabe como, gostam

muito de ti, te admiram! A presença delas nesta data querida

– vai te trazer uma energia superpositiva, pois elas desejam o

melhor para ti. Tu é que não percebes isso, mas vai por mim,

é sério!

PAI (Derrotado) – Certo...

MÃE – Vamos, Veri... Virgínia! Vem me ajudar!

FILHA – Ajudar no que A senhora disse que eu mais

atrapalho do que ajudo, que eu sou igual ao meu pai, que

eu...

MÃE – Vem! Fecha essa boca e vem! (Elas saem. A menina

faz sinais para ele de que tem mais coisa para contar.).

PAI (Vai ao telefone. Brincalhão, soltinho) – Camarada

Lima Tenho a impressão de que podemos contemplar o item

principal da nossa proposta mais cedo. (A menina entra.)

Um momento, camarada Lima! (Para ela.) O que é, Verinha

FILHA – A mãe!

PAI – O que é que tem a tua mãe

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FILHA – Tá tendo um treco.

PAI – Que novidade é essa (Ao telefone.) Um

momentinho, senhor Lima! Eu volto a entrar em contato com

a... (pensa.) ‘organização’. Com licença! (Desliga. Para a

filha.) O que foi que deu na tua mãe

FILHA – Ela tá vomitando as tripas! Ficou provando o

camarão a tarde inteira, e agora tá passando mal. Ah,

também se embuchou da massa do bolo de cenoura! Disse

que se não melhorar, que não vai atender os convidados, que

o senhor se vire, que ela já fez tudo e que afinal de contas, a

festa é do senhor e...

PAI – Mas ela esqueceu que era uma festa-surpresa para

mim E que surpresa que eu vou ter se eu ficar recebendo as

pessoas Vou ter que me surpreender com cada uma que

chegar... Na terceira, ninguém mais vai acreditar na história.

FILHA – Eu não sei de nada!... Ela disse que o senhor que

saia dessa sua plastice habitual e receba as pessoas!

PAI – Eu vou é cancelar essa festa!

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FILHA – Mas com que cara ela vai ficar É o que ela

perguntaria.

PAI – Ninguém vai saber com que cara ela vai ficar... ela não

vai ficar no quarto E os amigos são dela! Tá boa essa...

FILHA – Mas a festa é por sua causa.

PAI – Mas é surpresa. Portanto, tecnicamente, eu não sei de

nada!

FILHA (Sem ouvir, como quem continua um queixume)

– Que ela não é escrava, que ela que sempre se sacrificou,

sempre deu o melhor de si, e o que é que ela recebe em

troca (Dramática.) Nada, absolutamente nada! Acabou!

Rompeu! (Nesse instante entra a mãe, com a cara de

quem ‘não está nada bem, mas não quer que os outros

se preocupem’.).

PAI – O que foi que houve

MÃE – Nada, paizinho! Acho que me emocionei!

PAI – Se emocionou por quê Ficou com pena do camarão

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MÃE – O teu aniversário, paizinho...

PAI – Ora, tem cabimento! Todos os anos eu faço

aniversário! Tu já devias estar acostumada!

MÃE – É difícil acostumar com a felicidade. Todos os dias, eu

levanto de manhã, e agradeço a Deus por ter um marido

como esse! Um verdadeiro exemplo!

PAI (Desconfiado) – Exemplo de quê

MÃE – De amor, dedicação, honestidade, compreensão,

solidariedade, ternura, companheirismo, força, coragem...

(Entusiasmada.).

PAI (Mais desconfiado) – Não se exalte, querida! Guarde

um pouco desse ímpeto amoroso para a festa, logo mais.

MÃE – Mas eu rezo mesmo! Rezo muito!

PAI (Impaciente) – Não é de se admirar que tu não tenhas

tempo para nada. Só o tempo que tu perdes rezando e

chorando... Porque essa casa não pode te dar tanto trabalho

assim. E tem a Neuza para te ajudar!

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MÃE – Que Neuza

PAI – Não é Neuza

MÃE – Quem não é Neuza

PAI – A Neuza não é Neuza

MÃE – Não. Demiti.

PAI (Espantadíssimo) – É mesmo, é E quando foi isso

MÃE – Há um ano e meio.

PAI – E não me disseste nada... Então... quem é

MÃE – Agora é a Dalva. Tu não notaste

PAI – Mas como é que eu ia notar Elas são idênticas!

MÃE – São. A não ser pelo fato de que a Neuza era branca e

a Dalva é negra! Fora isso, são idênticas!

PAI (Estupefato) – Incrível! A gente convive anos com uma

pessoa e não conhece nada dela... nada, nada...

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MÃE (Filosófica) – Sim... Nem a cor dela a gente sabe...

PAI – Realmente... o ser humano é uma incógnita (fica

pensativo.).

MÃE – Se é...

PAI (Reagindo subitamente) – E quem é essa Dalva Tu

tens referências dela

MÃE – Eu não tinha, mas, em um ano e meio de convivência,

já dá mais ou menos para ter uma idéia... Bom, a conversa

está muito produtiva, mas tenho que terminar de enrolar.

PAI (Assustando-se) - Enrolar

MÃE – O rocambole!

PAI (Desanimado) – Ah, não querida... Ahn... Eu preciso te

dizer uma coisa... Não sei bem como abordar esse item,

mas... senta, minha velha!

MÃE - Velha

PAI – Eu tenho que te dizer isso, não dá mais para adiar.

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MÃE – Não vai me reclamar do rocambole. Tu sempre gostou

do meu rocambole... nem vem...

PAI – Tu prometes que não vais ficar chateada comigo

MÃE – Ihhh!... Aí vem bomba! As pessoas sempre perguntam

isso, antes de dizer alguma coisa que vai nos arrasar. Pode te

abrir!

PAI – Eu nunca gostei de rocambole! Eu detesto rocambole,

de um modo geral, mas em particular o teu! Tu achas lindo

fazer rocambole, mas tu não acertaste um, até hoje! Desde

os tempos de noivado, quando tu fazias rocambole para me

mostrar como tu eras prendada, eu já tinha ânsia de vômito

só em botar um pouquinho daquele troço na boca. E, depois

que botava, não podia voltar atrás!

MÃE – Então, tu entendes como é que eu me sinto...

PAI (Sem entender) - Como

MÃE – Isso de botar um pedacinho de troço na boca e ter que

ir até o fim!

34

PAI – O que foi que tu disseste

MÃE – Que eu estou magoada, ferida, decepcionada,

machucada, desapontada... essas coisas todas que acontecem

com as mulheres casadas! (Recompondo-se.) Mas eu vou

superar! Aliás, já superei! Já passou! Já sou outra!

PAI – Bom, já disse, está dito! Não convém nos alongarmos

mais nessa discussão. Podemos passar para o próximo item!

MÃE – Eu, por mim, dou por encerrada a reunião.

PAI – Só mais uma coisa!

MÃE – Fala, paizinho!

PAI – O meu terno azul de alpaca.

MÃE – Isso é uma pergunta ou título de composição “Meu

terno azul de alpaca”!

PAI (Seriíssimo) – É... uma pergunta, e significa: onde está

o meu terno azul de alpaca Ou, ‘tu sabes onde foi parar o

meu terno azul de alpaca’, ou ainda: ‘querida, tu, por acaso,

viu o meu terno azul de alpaca dando sopa por aí’

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MÃE – Foi para a lavanderia.

PAI – O meu terno favorito foi para a lavanderia

MÃE – Bem... ir, não foi. A Dalva levou o terno para a

lavanderia: é diferente!

PAI – E quando é que ele volta, ou melhor, que a Dalva vai

buscar

MÃE – Eles prometeram para amanhã, sem falta!

PAI – Mas é o meu terno favorito!

MÃE – Por isso é que eu o mantenho sempre limpo.

PAI – Mas, só um pouquinho, mãezinha: o terno estava

limpo!

MÃE – Aparentemente, meu amor! Só aparentemente!

PAI – Mas... em se tratando de roupa, que mal há em apenas

se manter as aparências

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MÃE – Tu é que pensas que não há mal nenhum!... Tu é que

pensas...

PAI (Desorientado) – E agora O que é que eu vou vestir

no meu aniversário

MÃE – Põe outro terno. Ou melhor: não veste terno hoje! É o

teu aniversário, te põe à vontade!

PAI – Mas eu só me sinto à vontade, de terno! E, de mais a

mais, aquele terno azul me dá sorte!

MÃE – Mas para que é que tu queres mais sorte Vai fazer

até mal. E depois, nem é bom ser muito feliz, porque as

pessoas põem olho gordo. Sabe que os indianos...

PAI (Cortando) – Não diz mais nada! (Sente que

exagerou e se acalma.) Tudo bem, mãezinha! Eu vou assim

mesmo!

MÃE – Vai aonde

PAI – Eu disse vou Não! Onde está a palavra VOU, entenda-

se FICO!

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MÃE (Desconfiada) – Aaahhh bom!... (Ela sai. Ele tira o

sapato, se recosta e pega um artigo para ler cujo título

é COMO MANTER ACESA A CHAMA DEPOIS DE CINCO

MINTUOS DE CASAMENTO. A filha entra.).

FILHA (Desaforada) – Ô moleza! Que folga é essa

PAI – Que é isso, menina Isso é jeito de falar com o teu pai

FILHA – Pode ir levantando, porque tem reunião de

condomínio.

PAI - Hoje Mas a que horas

FILHA – Daqui a pouco.

PAI – Mas daqui a pouco é a minha festa de aniversário!

FILHA – E daí

PAI – Bem... e daí, que seria interessante que eu estivesse

presente. Escuta Vir... Veri... (Se perde, mas tenta manter

a autoridade.) Veja lá como a senhorita fala comigo!

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FILHA (Abusada) – Vamos, levanta, preguiçoso! Tá

esperando o quê

PAI – Mais respeito, hein

FILHA – A mãe disse que homem, a gente tem que tratar

assim! A reunião é as oito e meia.

PAI – Mas, e a festa

FILHA – A festa também.

PAI – E então

FILHA – Então o quê

PAI – Vão começar a festa sem mim

FILHA – E que diferença isso faz

PAI – Ah... é bom saber que não faz diferença nenhuma...

muito conveniente!... (A filha sai. Ele vai para o telefone,

decidido.) Senhor Lima Escute, estou com problemas por

aqui e gostaria de saber se, no caso de um desfecho antes do

previsto, o senhor teria... hmmm... uma vaga na sua empresa

39

imediatamente, para que eu fizesse a minha transferência... o

senhor está compreendendo Posso dar encaminhamento à

questão, se for o caso Ótimo, senhor Lima! Muito bom!

Então, até mais! (Desliga o telefone. Gritando para a

mãe, que está fora.) Querida! A reunião do condomínio é na

churrasqueira ou no Play

MÃE (De fora) – É no apartamento da Manoela, do 401!

PAI – Aquela ruiva

MÃE – Ela não é ruiva, não te preocupa. Ela pinta o cabelo.

Na verdade, é morena. Bem dizer, mulata!

PAI (Aliviado) – Ah, bom! (Entra a filha.).

FILHA – Ela disse que o senhor que se vire, que tudo o

senhor tem que perguntar para ela, que até...

PAI – Sai, sai, sai! Não incomoda! (Gritando para a mãe.)

Minha adorada, eu já estou indo para a reunião de

condomínio, como tu me mandaste!

MÃE (De fora) - Tchau, meu anjo! Meus parabéns!

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PAI (Fica sem entender o porquê dos parabéns, se é

pelo aniversário, ou se é pela obediência) – Se os

convidados chegarem, tu explica.

MÃE (De fora) – Não te preocupa! Vai descansado! Eles nem

vão sentir a tua falta!

PAI – Ótimo! Assim, eu posso ir despreocupado e aproveitar

bastante a reunião! Adeusinho! (Sai. Nessa hora alternam-

se, através de uma gravação, barulhos de festa, com

‘Parabéns a Você’, e de uma reunião. Horas depois, ele

volta, exausto. Um bloquinho cheio de anotações na

mão. A sala está toda desarrumada, cheia de copos,

garrafas, cinzeiros cheios, essas coisas pós-festa. Ah,

sim: e alguém que a gente nem sabe quem é, dormindo

no sofá.) O que é isso Marina! (Ela entra bocejando, de

camisola.).

MÃE – Oi, amor... Tu já chegou

PAI – É... a reunião foi rápida, dessa vez... durou só seis

horas... O que foi que aconteceu por aqui

MÃE – Ah, nada... só a tua festa de aniversário... E a festa foi

maravilhosa! Pode ficar tranqüilo.

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PAI – Mas... mãezinha...

MÃE – Tô te dizendo: foi um sucesso. Pode ir dormir feliz,

que o teu aniversário foi maravilhoso! O teu melhor

aniversário! Podes ter certeza. Vai por mim. (Boceja.) Eu tô

podre... vou voltar para a cama...

PAI – Claro, claro, querida! Tu deves estar exausta... Vai

descansar... E obrigado pela festa!

MÃE – Tu mereces, meu amor!

PAI – Só mais uma coisa: quem é esse aí, dormindo no sofá

MÃE – E eu é que sei O aniversário não era meu!

PAI – Claro, claro...

MÃE – Feliz aniversário!...

PAI (Distraído, olhando para o sofá) – Ah... igualmente,

querida, igualmente... (Chega mais perto do sofá e fica

olhando.) O Almeida Não, muito baixo... O Alfredo Ele não

daria à Fátima o prazer de largar do pé dela por uma noite. E

42

ele nem deve ser do tipo que dorme, preocupado sempre com

o ‘índice Bovespa’. A lésbica, prima da chata da Fátima

Não... sapatas raramente dormem fora de casa. (Olha mais

uma vez e desiste.) Bem, amanhã eu tiro isso a limpo. (Vai

para o banheiro. A filha passa na sua frente e também

se dirige ao banheiro.) Verinha, tu queres me dar licença

FILHA – Tô me mijando!

PAI – Que palavreado é esse E tu não tens o teu banheiro A

tua mãe não me infernizou o que deu para fazer mais um

banheiro no apartamento O meu escritório não veio abaixo

só para ter um banheiro para a donzela aí, e agora eu nem

posso fazer a minha barba sossegado

FILHA – Para que fazer a barba

PAI – Hoje é o meu aniversário!

FILHA (Entrelaçando as pernas para não fazer xixi e

bocejando) – Mas já passou o aniversário. Para que barba

agora

PAI – Antes tarde do que nunca!

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FILHA – Tô apertada!

PAI – Vai para o teu banheiro, diacho!

FILHA – Não posso.

PAI – Não pode por quê

FILHA – É segredo.

PAI (Falando como se fosse a coisa mais absurda do

mundo) – Tá! Só falta agora tu me dizer que tem uma

pessoa sentada no vaso a essa hora, dormindo no teu

banheiro!

FILHA – Como é que o senhor sabe

PAI – Sabe o quê

FILHA – Que tem uma pessoa lá.

PAI – Uma pessoa

FILHA – Uma pessoa.

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PAI – Que pessoa

FILHA – Uma pessoa não: um homem!

PAI – Um homem no teu banheiro... E... nessas condições

mencionadas acima Mas por quê Alguém que teria se

sentido mal na festa, é isso

FILHA – Ninguém se sentiu mal na festa. Só a prima da

Fátima que se trancou lá dentro com a Dalva!

PAI – Que Dalva

FILHA – A empregada, pai!

PAI - Ah, a que era Neuza e agora é Dalva. Mas, peraí: tu

disseste que ela se trancou no banheiro com a prima da

Fátima, aquela... hmmm... aquela... como é que eu vou te

dizer...

FILHA (Didática) – Homossexual, pai!

PAI – Obrigado. Mas como é que tu sabes

FILHA – Que ela se trancou no banheiro

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PAI – Que ela é... hmmm... homossexual

FILHA – Por causa do repartido do cabelo: é bem retinho!

PAI – Entendi. E as duas se fecharam no banheiro em plena

festa

FILHA – Elas alegam que foi sem querer. Dizem que a Dalva

estava secando o chão, que alguém tinha vomitado e...

PAI – Meu Deus: a mulher do Motta!

FILHA – Não... ela não veio! Foi outra pessoa que vomitou...

Deixa eu continuar Então, a Dalva estava secando o chão,

quando a prima da Fátima entrou.

PAI (Espertinho) – Essa do cabelo repartido bem retinho!

FILHA – A própria! Disse que só queria passar uma água na

cara, que estava com muito calor, porque, eu não sei se o

senhor sabe que o ar-condicionado estragou, e vai sair uma

fortuna para arrumar, mas daí, elas fecharam a porta só para

a outra lavar a cara, e não conseguiam abrir. Ficaram horas lá

dentro. A mãe queria que arrombassem a porta, mas daí elas

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abriram assim, sem mais nem menos. Pensa que eu engoli

essa A mãe demitiu a Dalva no meio da festa, mas daí ela

chorou, pediu pelo amor de Deus e ela des-demitiu e ela disse

que não pode ficar sem empregada, que já basta a vida sem

graça que ela leva e...

PAI – E a Dalva enfeita a vida dela Que lindo! O palhaço na

reunião de condomínio e vocês aqui nesse fervo! Mas e o

homem

FILHA – O homem da Dalva

PAI – Esse homem sentado no teu banheiro!

FILHA – Sei lá. Tá dormindo. Sentado!

PAI – Verinha: é verdade isso tudo Era só o que me faltava

ter uma filha delirante!

FILHA – Acha que não Vai lá olhar, vai! A mãe achou até

bom. Disse que tinha medo de dormir nesse apartamento,

sozinha!

PAI - Sozinha

FILHA – Sem um HOMEM, ela quis dizer!

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PAI – Virgínia, minha filha: você está passando dos limites

com essas suas histórias!

FILHA – ‘Histórias’ é Então, por que é que o senhor não vai

lá, hein Por quê Por quê Por quê Tem medo, covarde Tem

medo da verdade

PAI (Dando uma toalhada nela) – Sai daqui!

FILHA (Choramingando) – Ai... tá doendo... estúpido!

Ihhhh! (Olha para baixo. Fez xixi no chão.) Viu só Azar o

teu: agora vai ter que pisar em cima! Não quero nem saber...

PAI – Some daqui!

FILHA – A culpa foi toda sua, toda sua! E o banheiro nem

ficou bom com aquela reforma. O senhor quis economizar –

para variar -, e comprou material de segunda. Ela que disse.

Disse que o senhor sempre faz tudo pela metade. Tudo!

Tudinho, entendeu

PAI – Ela disse isso

FILHA – Disse!

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PAI – Pois bem... ela, então, vai ter uma surpresa!

FILHA (Não satisfeita) – Disse que o material era de

segunda, que o banheiro era de segunda, que... o MARIDO

era de segunda. Tudo. Tudinho! (Fica esperando a reação

dele.) O homem da obra ficou só olhando!

PAI – Homem da obra

FILHA – É. O ajudante do seu Pedrão!

PAI – Mas o seu Pedrão não fez tudo sozinho Eu mesmo

tratei com ele. Não gosto de estranhos dentro de casa.

FILHA – Que nada... o Pedrão já tá mais para lá do que para

cá! A mãe disse que o senhor contrata ele porque a mão de

obra é mais barata, já que é conhecido, mas o velho não se

agüenta mais nas pernas.

PAI – Olha o respeito, menina! Ele te viu nascer!

FILHA – E eu vi ele esvaziar todo o seu barzinho. Além disso,

traz o outro para ajudar e os dois comem como se a comida

fosse fugir.

PAI – E pode fugir, realmente!

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FILHA – Acaba saindo mais caro para o senhor. Economia

boba, ela diz.

PAI – E ela, então, desabafa com o Pedrão! Bem... ele é

quase da família, embora eu não confie muito nessa classe

indefinível chamada ‘quase da família’.

FILHA – Que Pedrão, o quê!... Ela dizia essas coisas mesmo,

era para o ajudante dele, o Tales!

PAI - Tales

FILHA – É, o Tales! Que estava com o braço quebrado numa

tipóia, e cheio de tatuagens!

PAI – Que maravilha! Um pedreiro sem braço! E o trouxa

aqui, só desembolsando!

FILHA – É. Mas mesmo com um braço só, a mãe comentou

com a Iolanda que ele fazia misérias!

PAI – Que Iolanda A tia Iolanda

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FILHA – Claro que não, não é pai A tia Iolanda não vem

mais aqui, desde que a mãe mandou ela embora, porque ela

falou mal do senhor. Ela disse que o senhor era um ‘banana’!

A mãe disse que ninguém podia falar mal do marido dela (ele

sorri, orgulhoso.), que ela sabia que o senhor é um

grandessíssimo ‘banana’, mas que só ela pode dizer isso! (Ele

se decepciona.) É a Iolanda da farmácia!

PAI – Eu não posso acreditar!... A Iolanda da farmácia Mas

a tua mãe nem gostava da Iolanda da farmácia! Dizia que ela

andava com toda a homarada daquela pensão, em cima da

padaria, que ela vivia socada lá, ‘entregando remédio’,

pessoalmente. Foi a precursora da tele-entrega! Mesmo sem

ter telefone!

FILHA – E o senhor engoliu essa

PAI (Espertinho) – Claro que não!... Eu não nasci ontem...

Aquilo nunca alcançou uma simples aspirina para ninguém,

ora...

FILHA – Deixa de ser trouxa, pai!... O senhor engoliu que a

mãe não gostava da Iolanda As duas são assim, ó! (Faz o

gesto com os dedos, de unha e carne.).

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PAI – E a tua mãe, hein Falando para a Iolanda sobre o

pedreiro, para quem, por sua vez, ela falava de mim! Do bobo

aqui! É isso Estou certo, Verinha

FILHA – Errado! O meu nome é Virgínia! Por que é que vocês

sempre trocam, hein Vocês nunca me explicaram isso!

PAI (Desgostoso) – Aaaah, dá na mesma!... Agora sai

daqui! Me deixa dormir!

FILHA – No banheiro

PAI – E por que não Parece que é o ‘último grito’ dormir no

banheiro!

FILHA – ‘Último grito’! O que é isso

PAI (Dá-lhe outra toalhada) – Chispa daqui, peste!

FILHA – Aiê! E o senhor acreditou mesmo naquela história do

homem dormindo no banheiro

PAI (Esperançoso) – Então não era verdade

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FILHA (Tinhosa) – Quem sabe Por que é que o senhor não

vai até lá e tira isso a limpo

PAI (Perdendo completamente a ‘tramontana’) – Voa

daqui, antes que eu cometa uma loucura! E dessa vez vão ter

toda a razão em me acusar!

FILHA – Como assim ‘acusar’ Acusar de quê Vocês nunca

me contam nada direito!

PAI – Imagina se contássemos...

MÃE (Acorda com o barulho. Entra) – Mas o que é que tá

acontecendo aqui, hein

PAI – É essa menina! Vive inventando coisas. Quando eu

digo que ela não bate muito bem, vocês acham que eu estou

exagerando!

MÃE – O que foi que ela inventou dessa vez

PAI – Uma longa narrativa envolvendo pedreiros de um braço

só, a Iolanda da farmácia, homens dormindo no banheiro,

mulheres trancafiadas, vômitos e uma reforma com material

de segunda.

53

MÃE – Vai dormir! Tu deves estar exausto. As festas sempre

mexem com o equilíbrio emocional das pessoas.

PAI (Irritado) – Mas eu não estive na festa!

MÃE – Por isso mesmo! Mexem ainda mais: o que os olhos

não vêem, o coração imagina. E o excesso de imaginação

pode exaurir uma pessoa!

PAI – Acho bom tu dares um jeito nessa menina! Olha o que

eu estou te dizendo...

MÃE – Não fala assim: bem ou mal ela é a nossa única filha,

agora!

PAI – É... pensando bem, ela não tem culpa de nada!

FILHA – Não tenho culpa de quê Hein De quê

MÃE (Para o pai) – Psshhh... (Para a filha.) Verinha, sai

daqui, minha filha!...

FILHA – É Virgínia, mãe!... Ou não é Virgínia

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MÃE – Sai daqui! Depois a gente conversa e a mãe te explica

tudo! (Filha sai. Para o pai.) Tu queres traumatizar a

criança (Falam brabos, mas aos sussurros.).

PAI – As pessoas nunca pensam na hipótese de os filhos

traumatizarem os pais. (Capitulando.) Tudo bem, coitada!...

Quem pode acusá-la Desde que a outra gêmea morreu e que

nós não conseguimos descobrir se foi a Verinha ou a

Virgínia... isto é, se quem morreu foi ela ou se foi a irmã

dela...

MÃE – Pois é: nunca vamos saber se ela existe realmente, ou

se ela é a irmã dela e não ela... Enfim, não é de admirar que

ela não regule muito: uma pessoa de quem nem a gente têm

muita certeza se existe mesmo... (Reflete.) Mas... por outro

lado... quem é que tem (Olham-se. O clima pesa.).

PAI – Não me olha assim, que eu não tive culpa!

MÃE – Eu não disse nada, disse

PAI – Mas eu sei muito bem o que é que tu estás pensando!

MÃE – Ah, é Eu não sabia que a tua vidência estava tão

desenvolvida!

55

PAI – Sei que tu achas que eu não me preocupei quando a

outra gêmea ficou doente e que, já que havia duas iguais, eu

não quis gastar com médico particular, porque queria investir

naquele negócio, que afinal não deu em nada!

MÃE – Como a reforma do banheiro. Igualzinho!

PAI – Não me fala nesse banheiro!

MÃE – Eu não estou te acusando de nada! Quem te acusa é a

tua consciência! Agora vem dormir.

PAI (Ele está com a metade do rosto barbeado e a

outra não) - Assim

MÃE (Autoritária) – Assim mesmo! E agora! (Toca o

telefone. Ela o olha de cima a baixo. Ele pede, com

medo, para atender.).

PAI - Posso

MÃE – Tu é quem sabe!

PAI – Talvez seja engano.

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MÃE – É. Talvez.

PAI – Vou atender.

MÃE – Vai.

PAI – Se tu não quiseres eu não atendo.

MÃE – Atende.

PAI – Não vou demorar.

MÃE (Firme) – Te espero lá dentro. Não demora. (Ela sai e

ele atende ao telefone.).

PAI (Fala, tentando se disfarçar e se confunde todo) –

Camarada Lima O senhor... essas horas (Pausa.) Como

assim Que posição Como é que é (Indignado.) Que

bruxa Quem A minha mulher é maravilhosa!... E não tenho

‘isso aqui’ para reclamar dela... Mas qual é o homem que não

pula a cerca de vez em quando É da natureza masculina!

Que castigo Que castigo A minha relação com a minha filha

é invejável – ela é muito agarrada comigo! (Pausas longas.

Ele só ouve.) Sei... Sei... Concordo... Isso já foi longe

demais! Melhor assim... Vai cada um para o seu lado.

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Inclusive, aquele apartamento da Nilópolis, que eu estava

comprando, escondido, vou pôr no nome delas,

compreendeu Da minha família – está claro -, com quem eu

tenho sido injusto esse tempo todo. E cancelo as passagens

para Porto Seguro! Não tem mais time-sharing em Porto

Seguro para a senhorita! (Pausa. Ele vai levando um

susto.) Como Mas... como assim (Vai ficando lívido.)

Então... aqueles teus sumiços... aqueles Seminários de

Lingüística Aplicada em São Paulo eram... (Pausa.) E logo

com o Tavares, meu subalterno E eu fazendo planos... eu

sou um trouxa, mesmo! Quando é que eu vou aprender,

deixar de ser tão sentimental e pensar um pouco mais em

mim Eu passo aí para deixar as chaves...e... pegar os meus

chinelos! (Desliga, arrasado. Vai até a mesa. Só vê

restos. Pega um pouco de camarão e põe em cima do

bolo de cenoura e começa a comer, distraído.) Não se

pode mesmo confiar nas mulheres! Belo aniversário! O

homem trabalha, se sacrifica, se dedica e quando chega aos

quarenta e cinco anos, o que é que ele ganha Um pontapé da

amante – uma ingrata, sem um pingo de ética amorosa -, e

da esposa...bolo de cenoura com camarão! Droga de vida!

Será que vale mesmo a pena Não seria melhor acabar com

tudo de uma vez, embaralhar e dar de novo, começar de

outra maneira Bem, vou descansar esse corpo fatigado, e,

amanhã, sem falta, tomo uma atitude! (Sai. Na manhã

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seguinte, pai e mãe vão para a sala e encontram-na

arrumada e com a mesa posta para o café da manhã.

Olham tudo, maravilhados.).

MÃE – Olha, paizinho! A Virgínia nos preparou uma surpresa!

Ai, que coisa querida!

PAI (Enternecido) – Acho que vínhamos sendo injustos com

ela. Afinal, tudo não passou de um mau-momento, de uma...

‘fase difícil’, coisa normal na adolescência.

MÃE (Mística) – Eu SINTO (olha para o alto.) que de

agora em diante, as coisas vão melhorar.

PAI – Pois eu tenho mais uma surpresa: no ano que vem, no

meu próximo aniversário, nós estaremos num apartamento

novo.

MÃE – Novo, paizinho

PAI – Sim! Na Nilópolis! Eu não quis dizer antes, pois queria

ter certeza! Andei fazendo uns negócios extras... Aquelas

viagens, lembra Eram com essa finalidade!

MÃE (Deslumbrada) – Paizinho, que maravilha!

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PAI – E outra: sabe aquela viagem que eu ia fazer pela

Secretaria, para Porto Seguro Pois bem: vamos nós três!

MÃE – Que sonho! (A filha aparece, de uniforme e

mochila, com uma bandeja com dois copos de suco de

laranja. Dá um beijo em cada um. Eles ficam olhando,

enternecidos. A filha sai para a escola. Eles brindam

com o suco de laranja, tomam um gole, e ficam

olhando-se, em silêncio.).

PAI (Apavorado, lembrando-se e entendendo) – Meu

Deus! A composição O ANIVERSÁRIO DE PAPAI! Por que é

que eu não li aquela maldita composição até o fim

(Blecaute. Voz em off, do locutor da Rádio Guaíba.).

LOCUÇÃO – Falecimento: ocorreu ontem, o falecimento do

casal Marina e Hamilton Nogueira. O sepultamento...

FIM