nem todo romance faz mais que narrar uma história parte 1

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Nem todo romance faz mais que narrar uma história (Parte 1) O verde mudava de tom conforme os quilômetros ficavam para trás. Na pequena TV do ônibus um filme de ação era percebido apenas pelo barulho das cenas de explosões, típicas de filmes de ação. Depois de alguns minutos e algumas explosões, porém, nem isso no filme chamava a atenção daquelas vinte e poucas pessoas que já passavam mais de três horas dentro do ônibus. Era fim de tarde, e as sombras faziam as poltronas ganharem graduações alaranjadas, mesmo na verdade sendo totalmente brancas. Talvez fosse alguma ilusão de ótica. Tão incrível quanto a dança de cores num final de tarde é o fato de caminhos diferentes, de vidas completamente distintas, se cruzarem em determinado trecho. Seja em um ônibus cinza da Cometa, seja na roda gigante de um parque. Milhares e milhares de pessoas se esbarram no centro das grandes cidades, nas igrejas dos menores distritos. Todo esse cruzamento só pode ser notado quando o que passa diante da gente é algo parecido com uma viagem sem sono, sem luz suficiente para uma boa leitura, na cabeça de alguém longe o bastante da pequena TV para tentar entender algo. O caminho para São Paulo dura aproximadamente seis horas. A mania de dividir o tempo em partes tinha dado à Klauss a habilidade de fazer divisões de cabeça quase que instantaneamente. Naquele momento, lembrou que 7 de 12 partes do caminho já tinham sido percorridas. O Arcade Fire, tocado em exaustão por duas horas pelo celular já silenciava pela falta de bateria no smartphone com a tela trincada. O celular havia sido dado pela primeira namorada de Klauss, ainda no Colegial. O relacionamento com Mel acabou quando ela precisou se mudar com o pai pra uma cidade litorânea. Eles ainda conversavam de vez em quando

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Primeira parte do conto "Nem Todo Romance Faz Mais Que Narrar Uma História", de Wolfgang Pistori, publicado originalmente no site Enfoque Pontal

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Nem todo romance faz mais que narrar uma histria(Parte 1)

O verde mudava de tom conforme os quilmetros ficavam para trs. Na pequena TV do nibus um filme de ao era percebido apenas pelo barulho das cenas de exploses, tpicas de filmes de ao. Depois de alguns minutos e algumas exploses, porm, nem isso no filme chamava a ateno daquelas vinte e poucas pessoas que j passavam mais de trs horas dentro do nibus. Era fim de tarde, e as sombras faziam as poltronas ganharem graduaes alaranjadas, mesmo na verdade sendo totalmente brancas. Talvez fosse alguma iluso de tica.

To incrvel quanto a dana de cores num final de tarde o fato de caminhos diferentes, de vidas completamente distintas, se cruzarem em determinado trecho. Seja em um nibus cinza da Cometa, seja na roda gigante de um parque. Milhares e milhares de pessoas se esbarram no centro das grandes cidades, nas igrejas dos menores distritos. Todo esse cruzamento s pode ser notado quando o que passa diante da gente algo parecido com uma viagem sem sono, sem luz suficiente para uma boa leitura, na cabea de algum longe o bastante da pequena TV para tentar entender algo.

O caminho para So Paulo dura aproximadamente seis horas. A mania de dividir o tempo em partes tinha dado Klauss a habilidade de fazer divises de cabea quase que instantaneamente. Naquele momento, lembrou que 7 de 12 partes do caminho j tinham sido percorridas. O Arcade Fire, tocado em exausto por duas horas pelo celular j silenciava pela falta de bateria no smartphone com a tela trincada. O celular havia sido dado pela primeira namorada de Klauss, ainda no Colegial. O relacionamento com Mel acabou quando ela precisou se mudar com o pai pra uma cidade litornea. Eles ainda conversavam de vez em quando pelo Facebook, mas o ponto mais ntimo que chegaram na relao virtual foi um boa noite despretensioso no inbox. Como as coisas eram fceis naquela poca, lembrou-se de passagem, como num gesto automtico, ao olhar para o celular com mais de dez anos de uso.

Klauss havia deixado para trs a faculdade de letras, pela metade, depois do convite de uma editora que aprovara um romance seu. O fato de no ter dinheiro pra pagar a mensalidade tambm pesou. Mas ele precisava se mudar para So Paulo, onde ficava a sede da editora. Uma das imposies para ver Gaiola do tamanho do mundo nas livrarias seria prestar servio como revisor para a editora. Mesmo sem ter se graduado, Klauss sempre fora acima da mdia em portugus. Gramtica era seu forte. E essa caracterstica foi acentuada quando Klauss andava de nibus diariamente e, no caminho para a escola, munido de corretivo e uma rgua de letras, escrevia frases suas e de pensadores. Seu sonho de ser escritor no poderia ser despedaado antes mesmo da sua carreira engrenar com um erro grotesco de portugus. Ele imaginava os jornais noticiando: Klauss Overmars, o escritor analfabeto dos nibus, lana seu primeiro livro. Isso o fazia tremer. Ele finalmente iria lanar seu primeiro livro. Parou de escrever nos nibus quando um Guarda Municipal o flagrou e levou-o pra casa. Levou uma surra do pai, a nica na vida, mas jamais esquecera o cinto de couro nas costas, na bunda e nas pernas, deixando todo o corpo de 15 anos queimado nas semanas seguintes.

Para algum sem dinheiro, lanar um livro com alguma distribuio tarefa das mais complicadas. Os editores, ocupados de mais com material de sobra, com os originais de escritores consagrados, textos encomendados ou de outra natureza, dificilmente davam a ateno devida a novos autores. Tudo passava por dois funis: o do dinheiro ou o da influncia e, mesmo que essa influncia viesse da internet, para Klauss era algo fora de cogitao. Seu comportamento podia ser facilmente confundido com misantropia.

Gaiola do tamanho do mundo era uma histria de um camundongo que tinha o sonho de conhecer Veneza e passeava pelo mundo sem um tosto. No fundo, se tratava dos anseios de Klauss. O primeiro passo era sair do interior e morar em uma cidade realmente grande, uma catapulta para a Europa. Como diria Jack Stripador, vamos por partes, repetia Klauss, satisfeito com a primeira resposta da editora que recebera alguns dias antes por e-mail e que havia imprimido uma cpia, caso algum quisesse desmentir.

Senhor Klauslien,Entramos em contato para parabeniz-lo pelo material que nos enviou anteriormente. Gaiola do tamanho do mundo uma tima histria e o senhor tem um timo texto. Como sabe, no trabalhamos com livros encomendados e todo o dinheiro movimentado pela obra deve vir da venda dela. Acreditamos que seu livro pode se auto-sustentar. Gostaramos de public-lo o mais rpido possvel. Mas para viabilizarmos o projeto, precisamos da sua ajuda com a reviso de outros originais. um trabalho de um ms que dar ao senhor mais 10% de direito sobre o livro, totalizando assim 40% para o senhor, 40% para a editora e livrarias e 20% das vendas so para os custos. Caso concorde, esperamos o senhor no incio do prximo ms em nosso escritrio cujo endereo est no final deste e-mail. Esperamos que concorde.

Abraos,Augusto Sanchez

O pedao de papel era levado no bolso menor da mochila preta de Klauss que, por sorte, viajava ao lado dele. A baixa quantidade de passageiros naquela viagem deu a quase todos a possibilidade de viajar sem vizinhos de poltrona. Alguns ps com meias de diferentes cores podiam ser vistas por quem espiasse pelo estreito corredor central. Depois daquele e-mail, Klauss havia trocado mais meia dzia de mensagens com a editora e recebera uma ligao pessoal do editor da Sanchez Editora. Augusto Sanchez pareceu ter uma voz firme, mas com a maciez das pessoas capazes de compreender uma situao que lhe trouxesse desvantagem, mas necessria para o andamento do mundo. Sanchez se disse feliz com a nova aquisio da editora e que esperava ser o incio de uma longa parceria. O acordo fechado entre Klauss e Sanchez previa um ms de trabalho sem salrio, apenas com o aditivo de 10% no contrato sobre os direitos do livro e possvel contratao como revisor depois deste ms, isso, claro, se tudo desse certo no primeiro ms.

Aos 27 anos, Klauss morava com os pais e tinha passado por alguns empregos. O que deu mais dinheiro, porm, durou pouco. Como revisor de um jornal local. Em um dia ruim, discutiu com um dos chefes e logo foi mandado embora. A cidade pequena tinha apenas um jornal e as escolas pediam o diploma para contratar professores eventuais. A faculdade cara e a falta de perspectiva fizeram com que Klauss intensificasse sua rotina de escritor. Chegava a escrever durante cinco horas seguidas por dia, lia alguns autores nas outras horas do dia, sempre trs ou mais romances de autores distintos simultaneamente. Dizia que assim era possvel ser menos influenciado por qualquer um dos autores e deixava a responsabilidade toda para o subconsciente.

Klauss vagou por alguns empregos e tentou manter as contas em dia. Apesar de morar em casa, tinha suas contas. Um computador parcelado em dez vezes, televiso, cama, livros. Tudo isso chegava na fatura do carto de crdito, como um exame que traz notcias ruins, no to ruins que possam ser mortais, apenas ruins. O que era a vida, afinal? Uma fuga diria dos problemas e quando era impossvel fugir de um, l estvamos tentando resolve-lo, fugindo de um novo problema ainda maior.

Klauss escreveu seu romance em seis semanas. Quando comeou, pensou que terminaria tudo to rpido quanto Mozart compondo uma Sinfonia. Escrever um romance era mais difcil do que ele pensava, tanto que chegou at a desistir com o veredito de que no tinha talento. O certo era conseguir um bom trabalho no shopping e viver o fluxo da vida, casando-se, tendo uma boa mulher e dois filhos, talvez um casal, com uma boa casa e um cachorro, talvez um gato no futuro. Um bom carro e a aposentadoria a uma distncia possvel de prever, logo depois da promoo para gerncia. Lembrou do seu romance. Cansado da roda que no saia do lugar, o camundongo enjoado do mesmo queijo decidiu fugir.

No era Natal, era maro. E no havia luzes coloridas na rodoviria de So Paulo. Como em um desvario, pensou que estava em uma msica do Renato Russo cantada por outro cantor. Logo deixou a loucura de lado e procurou um taxi. Pediu um hotel prximo do endereo da editora, j decorado de cabea durante as noites anteriores quando o sono no apareceu. Demorou muito pouco para Klauss descobrir que sua histria que viraria livro era, na verdade, a histria de um super-heri. No era possvel sobreviver sem dinheiro. O taxi e o hotel liquidaram, em uma hora, com o que Klauss havia levado para passar o ms. Pelo menos teria teto. No era possvel chamar aquele conjunto de quartos, de hotel. Um banheiro para cada andar com oito quartos, ventilador de teto que no ventava, luzes baixas, como um abajur com o boto de intensidade quebrado. Paredes sujas e cho com uma grossa camada de poeira ajudavam a compor o cenrio em que o futuro escritor passaria pelo menos seu prximo ms.

A cama pequena ficava encostada em uma grande janela que dava para um largo corredor. Era no terceiro andar e l em baixo era possvel ver o cho do estacionamento comercial que ficava no mesmo terreno do hotel. Klauss abriu a janela que emitiu o mesmo som de unhas arranhando uma lousa. O barulho foi alto e provavelmente alguns outros moradores daquele lugar que j estavam dormindo acordaram. Era quase 11 horas. Ele teria que aparecer na editora no outro dia, s 9 horas. Pelo menos no era to cedo, se alegrou ligando a TV para ver o que passava ali. A novela era a atrao do momento. E dormir foi a opo mais sensata.Klauss demorou pra pegar no sono e nesse meio tempo voltou a se culpar por no ter levado nenhum livro consigo. Tambm voltou a pensar que quando a gente tenta perceber a hora certa que pega no sono, imediatamente perdemos o sono. Nunca sabemos o segundo certo, o pensamento exato em que pegamos no sono. Aquele filme de ao do nibus naquela TV do quarto talvez fosse aproveitvel.

Continua...