negociando às/as margens: experiências de trabalho, deslocamento, indocumentação e acesso aos...
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Esta dissertação tem como foco de interesse empírico as articulações entre trabalho, deslocamento, indocumentação e sua incidência sobre o acesso das classes populares às políticas públicas e aos serviços do Estado disponiveis na fronteira uruguaio brasileiraTRANSCRIPT
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NEGOCIANDO S/AS MARGENS
Experincias de trabalho, deslocamento, indocumentao e acesso aos servios do Estado na
fronteira brasileiro-uruguaia
Alex MoraesOrientadora: Denise Jardim
Porto Alegre2013
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Universidade Federal do Rio Grande do SulInstituto de Filosofia e Cincias Humanas
Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social
NEGOCIANDO S/AS MARGENS
Experincias de trabalho, deslocamento, indocumentao e acesso aos servios do Estado na fronteira brasileiro-uruguaia
Alex Martins Moraes
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.
Orientadora: Denise Fagundes Jardim
Porto Alegre2013
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ALEX MARTINS MORAES
NEGOCIANDO S/AS MARGENS
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.
Orientadora: Denise Fagundes Jardim
COMISSO EXAMINADORA
_______________________________________________Dra. Denise Fagundes Jardim (orientadora)Universidade Federal do Rio Grande do Sul
_______________________________________________Dra. Adriana Dorfman
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
_______________________________________________Dr. Carlos Alberto Steil
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
_______________________________________________Dra. Patrice Schuch
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Porto Alegre, maro de 2013.
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Agradecimentos
Todo o o trabalho acadmico fruto de um amplo dilogo coletivo. Deixo meus agradecimento queles/as que, direta ou indiretamente, tornaram possvel o desenvolvimento desta pesquisa:
Blanca Morales, do MIDES, Reovaldo Rodrigues, vereador em Acegu, Paulo Beck, do grupo Guayubiras, Glecio Rodrigues, da Prefeitura de Bag e Stella Snchez, da Mesa de Fronteira de Acegu. Graas sua ajuda pude construir profcuos espaos de interlocuo na fronteira brasileiro-uruguaia.
Ao Fernando Freitas, da Direccin Nacional de Migraciones de Acegu pela solicitude e pelo agradvel e surpreendente dilogo do inverno de 2012.
Aos trabalhadores e trabalhadoras que conheci na Vila da Lata e nas estncias de Acegu pela disposio em rememorar seus percursos e compartilhar comigo dilemas, dramas e perspectivas: dice mi pueblo que puede leer en su mano de obrero el destino y que no hay adivino ni rey que le pueda marcar el camino que va a recorrer (Alfredo Zitarrosa, Adagio a mi pas).
Aos moradores de Acegu e Villa Noblia, que encontraram um espao nas suas rotinas laborais para conversar comigo a respeito da realidade dos servios pblicos nas faixas fronteirias. Minhas lembranas especiais ao Jorge e Susana pela acolhida generosa e entusiasmada nas sucessivas visitas que lhes fiz.
Aos funcionrios da Prefeitura de Acegu pelo apoio logstico em minhas primeiras incurses fronteira.
rdio FM Integracin, de Acegu, pelo interesse em minha investigao e pela oportunidade de divulgar alguns resultados parciais do trabalho de campo.
Aos meus companheiros do Grupo de Estudos em Antropologia Crtica (GEAC) pela frutfera bibliografia que trouxeram s nossas reunies, pelos valiosos pontos de vista aportados ao debate sobre relaes de poder e, fundamentalmente, pelo esforo imaginativo que nos permitiu ensaiar caminhos possveis para o desenvolvimento de uma atitude intelectual autnoma, no disciplinarista e politicamente situada.
Aos colegas que ingressaram comigo no mestrado em 2011 e souberam, quando o contexto assim o exigiu, parar para pensar, ponderando coletivamente a respeito das condies de produo do conhecimento no mbito da ps-graduao. No esqueam das palavras que lhes foram destinadas por Boaventura de Sousa Santos: o vosso movimento, aqui em Porto Alegre, para mim parte dessa sociologia das emergncias, porque gente que est em busca de uma renovao epistemolgica, poltica e o faz entre si, em pequenos grupos. Certamente os meios de comunicao no noticiaram, certamente no foi til para o currculo deles () mas esto a emergir outras realidades.
s professoras Claudia Fonseca e Patrice Schuch que ministraram, respectivamente, as cadeiras Direito e Sociedade e Prticas de Governo, Cultura e Subjetividade, ambas inspiradoras para a elaborao do marco conceitual desta dissertao.
Ao professor Eduardo Restrepo pela bibliografia compartilhada e pelos dilogos inspiradores tanto em Porto Alegre como em Bogot.
professora Vernica Trpin, por suas sugestes no tocante pesquisa de campo e pelos textos solicitamente enviados.
minha orientadora, professora Denise Fagundes Jardim, de quem veio a valiosa sugesto para realizar um trabalho de campo na fronteira brasileiro-uruguaia. ela, tambm, pelo empenho com que me ajudou a construir todo o percurso investigativo.
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5Meus agradecimentos especiais Toms Guzmn Snchez, Caio Calgula Coelho, Jessica Mizoguchi, Cristiano Kolinski, Maria Eugnia, Bruna Missaggia e Daniel Etcheverry pelos constantes dilogos ao longo de todo o desenvolvimento da investigao e, mais do que isso, por um companheirismo duradouro e alegre.
Aos amigos do Porto, nau das noites de boemia e catarse.Ao Rodrigo Toniol pela leitura criteriosa que fez do meu texto e pelo valor inestimvel
das suas sugestes. Juliana Mesomo por me ajudar na busca do exato lugar onde eu deveria colocar o
ponto final da dissertao. A ela, tambm, pela terna companhia, substrato cotidiano da mais profunda afinidade.
Aos meus pais, Elaine e Alexandre, pelo respaldo entusiasmado e sincero que sempre me reservaram; por me ajudarem a caminhar sereno.
A todos os interlocutores que se deixaram fotografar para que eu pudesse compor a narrativa fotoetnogrfica apresentada neste trabalho.
Agradeo CAPES pela bolsa de mestrado que garantiu minha dedicao exclusiva s rotinas acadmicas. Espero que, na medida das grandes ambies atreladas pelo Estado brasileiro pesquisa de ps-graduao, este tipo de benefcio seja estendido, progressivamente, a todos os estudantes que dele julgarem necessitar.
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El Estado ha creado figuras administrativas, pero a su
vez ha creado modos y tipos de vida al margen del
Estado.
Fernando Freitas, oficial de Aduana, Acegu-Uruguai
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Resumo: Esta dissertao tem como foco de interesse emprico as articulaes entre trabalho, deslocamento e indocumentao e sua incidncia sobre o acesso das classes populares s polticas pblicas e aos servios do Estado disponveis na fronteira brasileiro-uruguaia. Demonstro, em minha anlise, como diferentes percursos migratrios so matizados pela presena das instituies estatais, pelo controle das divisas polticas e pela operatria local das clivagens de classe, conduzindo situaes de margem a partir das quais os sujeitos negociam suas possibilidades de acesso cidadania e plasmam suas expectativas a respeito do lugar que podem ou devem ocupar na sociedade. Ao enfatizar essas negociaes, proponho interpretar os circuitos de deslocamento empreendidos pelos setores subalternos nas fronteiras do Cone Sul, no apenas como cenrios de excluso e dominao, mas tambm como contextos de criao e agncia, onde os prprios fundamentos da cidadania e do pertencimento podem ser problematizados e, por vezes, ampliados em favor da incluso e do exerccio dos direitos.
Palavras-chave: deslocamentos, trabalho, subalternidade, margens, cidadania
Abstract: This research focuses empiricaly on the interplay between work, displacement and the lack of documentation and its effects on the access of popular classes to public policies and State services in Brazilian-Uruguayan border. I demonstrate in my analysis how different migratory itineraries are nuanced by the presence of state institutions, the border control and the locally prevailing class cleavages, leading to "margin" situations in which individuals must negotiate their access to citizenship and build expectations about the place that they can occupy in society. By emphasizing these negotiations, I propose to interpret displacement circuits undertaken by subaltern sectors in the South Cone borders not only as scenarios of exclusion and domination, but also as contexts of creation and agency, where the very foundations of citizenship and belonging can be problematized and sometimes extended in favor of the inclusion and recognition of rights.
Keywords: displacement, work, subalternity, margins, citizenship
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Lista de siglas
BPS Banco de Previsin Social
FA Frente Amplio
MDS Ministrio de Desenvolvimento Social e Combate Fome
MGAP Ministerio de Ganadera Agricultura y Pesca
MIDES Ministerio de Desarrollo Social
PANES Plan de Asistencia Nacional a la Emergencia Social
PROQUINCEL Productores de la Quinta Seccin del Departamento de Cerro Largo
SUS Sistema nico de Sade
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Sumrio
Introduo Pg. 10
Captulo I - Deslocamento de pessoas, margens e alteridades Pg. 21
1.1 Nem tudo flui Pg. 25
1.2 Cidadania, alteridade e margens Pg. 34
Captulo II Fronteira Pg. 38
2.1 Produtores ou proletrios? Pg. 51
2.1.1 Paulo Pg. 53
2.1.2 Isaas Pg. 61
2.2 Deslocamentos "invisveis" Pg. 66
2.3 Fronteira, deslocamento, trabalho: continuidades e descontinuidades Pg. 75
Captulo III O vvido e o vivido Pg. 83
Captulo IV Negociando s/as margens Pg. 100
4.1 Trabalho e indocumentaes Pg. 100
4.2 Indocumentao e a produo da exceo: dramas familiares Pg. 119
4.3 Margens que se justapem Pg. 140
Captulo V Tramas burocrticas Pg. 152
5.1 Reality Show ou reality making: o mtodo do captulo Pg. 154
5.2 O tu e o ns do encontro institucional: Blanca e o MIDES Pg. 161
5.3 Fernando: uma aduana em "Macondo" Pg. 173
5.4 Mais alm do simblico: possibilidade de emergncia do ponto de vista
burocrtico Pg. 184
5.5 A modo de retotalizao: sete provocaes finais Pg. 194
Referncias Pg. 199
ndice de imagens Pg. 205
Anexo Pg. 206
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Introduo
Esta dissertao tem como foco de interesse emprico as articulaes entre trabalho,
deslocamento e indocumentao e sua incidncia sobre o acesso das classes populares s
polticas pblicas e aos servios do Estado disponveis na fronteira brasileiro-uruguaia.
Demonstro, em minha anlise, como diferentes percursos migratrios so matizados pela
presena das instituies estatais, pelo controle das divisas polticas e pela operatria local das
clivagens de classe, conduzindo situaes de margem a partir das quais os sujeitos
negociam suas possibilidades de acesso cidadania e plasmam suas expectativas a respeito do
lugar que podem ou devem ocupar na sociedade. Ao enfatizar essas negociaes, proponho
interpretar os circuitos de deslocamento empreendidos pelos setores subalternos nas fronteiras
do Cone Sul, no apenas como cenrios de excluso e dominao, mas tambm como
contextos de criao e agncia, onde os prprios fundamentos da cidadania e do
pertencimento podem ser problematizados e, por vezes, ampliados em favor da incluso e do
reconhecimento dos direitos.
As problemticas e as perspectivas analticas que orientaram o desenvolvimento deste
trabalho vm sendo construdas desde 2007, quando passei a atuar, ainda como estudante de
graduao, no marco das linhas pesquisa Etnicidade, Polticas da Alteridade e Direitos
Humanos e Regimes de Identificao na Prtica, ambas desenvolvidas no Ncleo de
Antropologia e Cidadania (NACi). Durante o Bacharelado em Cincias Sociais, levei adiante
um longo trabalho de campo que abordou as modalidades de associativismo poltico
desenvolvidas por imigrantes de nacionalidade uruguaia na cidade de Porto Alegre. Esta
investigao culminou em meu trabalho de concluso de curso e colocou-me diante de um
novo espao de indagaes que apontava para uma reflexo mais acurada a respeito da forma
como os sujeitos visualizam suas relaes com o Estado e constroem projetos de integrao
cidadania. Tambm nas primeiras etapas de minha formao tive a possibilidade de
desenvolver um estudo exploratrio junto a imigrantes latino-americanos que faziam uso dos
servios de sade e concesso dos benefcios do Estado brasileiro na capital do Rio Grande do
Sul. Tal experincia me permitiu compreender que o estatuto jurdico dos estrangeiros pode
chegar a configurar-se, em cada espao nacional, como um poderoso artefato poltico a
servio de discursos e lgicas institucionais que procuram garantir a racionalizao dos
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recursos pblicos com base em critrios absolutos sobre merecimento e pertencimento.
Entendo que a importncia terico-poltica de estudar as migraes contemporneas
associa-se ao fato de que elas nos devolvem, como observou Walter Actis (2002), uma
imagem ampliada, at mesmo exacerbada, da nossa prpria realidade social. Talvez no se
trate, ento, de indagar pelas especificidades deste ou daquele grupo migrante, mas sim de
rastrear os processos e articulaes que singularizam a prpria experincia migratria em cada
conjuntura social e histrica. Neste sentido, as experincias de deslocamento internacional e
todos os imperativos a elas associados dinmicas sociais expulsivas; busca dos meios para
empreender certo movimento no espao; fixao da residncia no pas de imigrao; entrada
no mercado de trabalho; uso dos servios pblicos; necessidade de relacionar-se com as
burocracias estatais podem constituir um lugar privilegiado de observao no qual
confluem, a um s tempo, estratgias de controle/excluso e tticas de resistncia que
costumam aparecer mais atenuadas em outras dinmicas sociais. Falar de migraes, portanto,
significa uma oportunidade de problematizar as caractersticas, possibilidades e limites da
moderna cidadania em um sistema-mundial hegemonizado por estados nacionais e balizado
por grandes eixos de dominao.
Aceitando que a imigrao alude, como propunha Abdelmalek Sayad (1991), um
fato social completo que diz respeito no apenas realidades jurdicas, polticas e
econmicas que se manifestam internamente, em dois ou mais estados nacionais, mas tambm
entre os pases num momento determinado das suas relaes histricas , meu desafio ao
longo desta dissertao ser evidenciar o impacto das dinmicas inter-relacionadas de
trabalho, deslocamento e acesso s polticas pblicas sobre a realidade vivida de algumas
populaes que habitam a fronteira brasileiro-uruguaia. Este, portanto, no exatamente um
estudo sobre fronteiras, mas sim um esforo por compreender como os deslocamentos
transfronteirios se instilam no devir pessoal e coletivo dos/as trabalhadores/as limtrofes,
singularizando sua experincia de margem (Das; Poole, 2008) que , tambm, uma
experincia de classe e (re)organizando as expectativas de incorporao cidadania que
podero nutrir.
Qualquer discusso a respeito dos circuitos internacionais de integrao/regionalizao
vigentes no Cone Sul contemporneo precisa incluir, tambm, uma reflexo sobre Estado(s).
Esta realidade dinamiza todas as experincias sociais do presente, as atravessa sob a forma de
instituies, aparelhagens burocrticas, estratgias polticas e racionalidades econmicas com
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suas respectivas tecnologias de implementao. Na perspectiva terica que orienta esta
pesquisa, o Estado nacional suscita, necessariamente, experincias de margem. Por enquanto1,
suficiente dizer que as margens no podem ser entendidas como algo que est por fora das
aparelhagens estatais e nem mesmo como um mbito da vida social apresentado em oposio
ao centro. Pelo contrrio, as margens devem ser entendidas como dimenso constitutiva e
constituinte das manifestaes contemporneas do Estado. O poder soberano, que sustenta a
autoridade do Estado-nao moderno, baseia-se na prerrogativa de produzir, incessantemente,
zonas de exceo (Agamben, 2002), exterioridades necessrias imposio da norma e ao
exerccio do governo. A exceo, portanto, decorrncia e fundamento da norma, mas nem
por isso consiste em algo fixo, permanente e localizvel. Talvez fosse interessante pens-la
como uma possibilidade latente que transversaliza a formao social, realizando-se de forma
intermitente e suscitando respostas variadas naqueles que so obrigados a enfrent-la em certo
momento das suas trajetrias biogrficas. A ideia de margem aparece, nesta dissertao, como
o correlato sociolgico ou seja, como a manifestao social concreta da exceo na qual se
fundamenta o poder de Estado. As fronteiras, portanto, no so, em si, margens, mas, na
medida em que separam territrios atrelados a hegemonias nacionais diferentes e se
constituem como enclaves de instituies estatais investidas da prerrogativa de determinar
quem est do lado de dentro e quem est do lado de fora, elas podem dar origem a
experincias de margem.
Alm de convidarem a refletir a respeito dos impactos do pensamento de Estado2
sobre quem se movimenta atravs das divisas nacionais, meus estudos na fronteira abriram
espao outra constatao importante, decorrente do intenso contato que mantive com os
trabalhadores estabelecidos na zona: as dinmicas do modo de produo capitalista que
um modo de produo de coisas e pessoa, e portanto, de objetivao e subjetivao
atravessam, decisivamente, todas as experincias sociais, materializando-se em prticas, em
corporalidades e em processos populacionais concretos. J no mais possvel pensar, como
fizera Weber, em uma esfera da administrao estatal as instituies e seu correlato, a
burocracia operando de acordo com uma lgica racional que se erige como ente autnomo
1 O debate sobre Estado e governo de populaes orienta, com seus respectivos matizes, o primeiro captulo desta dissertao.
2 Sayad Abdelmalek (1999) denomina pensamento de Estado a um conjunto arraigado de operaes intelectuais binaristas e escrutinadoras a partir das quais so construdos critrios de pertencimento nacional e e merecimento. Segundo o autor, atravs desta lgica que se pode exercer a funo de discriminao inerente natureza do Estado nacional sempre que, em algum mbito da vida social, for necessrio instaurar prticas de excluso.
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frente aos postulados da tradio e do mercado. O atuar das burocracias repercute nos
contextos locais de explorao do trabalho da mesma forma que estes ltimos influenciam na
configurao das relaes entre trabalhadores e instituies pblicas. Pensar as margens do
Estado , portanto, situar a anlise antropolgica na interseco entre aparelhagem estatal,
modo de produo e as volies nutridas por cada ser humano a partir das suas especficas
condies de existncia social. Nenhuma destas trs dimenses se subsome completamente na
outra, sendo possvel afirmar, por isso mesmo, que se reproduzem com relativa autonomia
ainda que, por vezes, se reforcem ou influenciem mutuamente, seguindo princpios
frequentemente distintos. Para utilizar a terminologia de Das e Poole (2008), poderamos
dizer que cada uma dessas esferas produtoras de normas, condutas e desejos singulares
encontra limites de legibilidade ao relacionar-se com a outra esfera, o que origina
modalidades especficas de negociao e conflito, espaos em aberto entre a norma, a lei e o
disciplinamento efetivo dos corpos.
Nas cidades e povoados onde desenvolvi minha pesquisa (Acegu-Acegu e Vila
Isidoro Nobla), trabalhar formalmente (como funcionrio de estncia, do comrcio) ou
informalmente (como changuero [biscateiro], empregada domstica, quilero [pequeno
transportador de contrabando]) implica, com razovel frequncia, ter que deslocar-se;
deslocar-se numa regio limtrofe pressupe, seguidas vezes, atravessar a divisa poltica entre
dois estados nacionais e tal movimento, por sua vez, pode conduzir a situaes de
indocumentao, com todas as consequncias excludentes a elas associadas. Temos, ento,
que as dinmicas de trabalho, deslocamento e (in)documentao consistem em variveis
interdependentes que perpassam as vidas de boa parte dos habitantes da fronteira brasileiro-
uruguaia, condicionando, permanentemente, o seu horizonte de ao, as suas expectativas
pessoais e as percepes que nutrem a respeito do lugar que podem ou devem ocupar na
sociedade.
Realizei meu trabalho de campo ao longo de quatro incurses fronteira brasileiro-
uruguaia. As duas primeiras ocorreram nos meses de julho e setembro de 2011 e as demais
tiveram lugar em fevereiro e julho de 2012. Cada uma das viagens feitas em 2011 durou duas
semanas, ao passo que as do ano seguinte compreenderam, respectivamente, trs e quatro
semanas. Meus interlocutores prioritrios foram trabalhadores de diversos ramos da economia
local (agropecuria, comrcio regular e irregular, trabalho domstico, changas) que estavam
vivenciando ou j haviam vivenciado algum tipo de deslocamento fronteirio no decorrer das
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suas vidas laborais3. Tambm estabeleci um dilogo constante e profcuo com os funcionrios
do Escritrio Binacional de Fronteira, uma repartio pblica uruguaia situada em Acegu
cujo objetivo institucional facilitar o processo de documentao dos moradores das regies
limtrofes. Estar presente neste Escritrio permitiu-me acompanhar o dia a dia da demanda
por documentos e avaliar a diversidade e a assimetria das expectativas e pontos de vista que
esto em jogo quando se trata de negociar o acesso cidadania.
Situei a maior parte das minhas tarefas de investigao em duas localidades: Villa
Acegu (Uruguai) - cidade de Acegu (Brasil)4 e Villa Isidoro Nobla (Uruguai). Ter
restringido o trabalho de campo a duas povoaes no me impediu de realizar viagens a outras
cidades da Regio da Campanha e do Departamento de Cerro Largo, tais como Bag (Brasil),
Jaguaro (Brasil), Melo (Uruguai) e Rio Branco (Uruguai). Minhas visitas a esses municpios
estavam geralmente associadas necessidade contatar instituies pblicas e sindicatos em
busca de informaes que complementassem os relatos dos meus interlocutores em Acegu-
Acegu e Nobla.
Alm de realizar entrevistas em profundidade com trabalhadores/as brasileiros/as e
uruguaios/as e desenvolver observao direta nos espaos de atendimento institucional, visitei
rgos da administrao municipal em Acegu (Brasil) gabinete do Prefeito, Secretaria da
Sade e Coordenadoria de Cultura , entrevistei funcionrios do Ministerio de Trabajo lotados
na cidade de Melo (Uruguai), dialoguei com oficiais de aduana e policiais em Acegu
(Uruguai), participei de fruns promovidos pelo Ministerio de Ganadera Agricultura y Pesca
na localidade de Villa Isidoro Nobla (Uruguai), mantive conversaes informais com grandes
proprietrios rurais brasileiros e uruguaios e recolhi o depoimento de sindicalistas vinculados
ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Bag e regio. Finalmente, com a ajuda de Paulo
Beck, Blanca Morales e Reovaldo Rodrigues, todos eles interlocutores que conheci em
diferentes momentos do trabalho de campo, organizei um pequeno encontro intitulado
Experincias de trabalho e deslocamento na fronteira: problemas em comum, respostas
compartilhadas. O evento ocorreu dia 27 de Julho de 2012 na sede da Universidad Tcnica
del Uruguay (UTU) em Acegu e investiu especial relevncia para esta investigao porque
me permitiu avaliar, no dilogo com os interlocutores presentes, a pertinncia e a relevncia
das concluses at ento obtidas.
3 Ver a tabela de interlocutores no Anexo I. Ali esto listados os nomes dos sujeitos que colaboraram com esta investigao, assim como seus vnculos institucionais e sociais no contexto das relaes por mim estudadas.
4 O hfen indica que estes povoados so contguos e compem, virtualmente, um nico ncleo urbano administrado por dois estados.
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Para acessar os relatos dos/as trabalhadores/as transfronteirios/as, utilizei duas
estratgias complementares. A primeira delas consistia em aproveitar as situaes de
atendimento no Escritrio Binacional para comentar sobre minha investigao e propor aos
usurios do servio a realizao de entrevistas em profundidade em suas casas ou em seus
respectivos lugares de trabalho. Os interlocutores contatados por essa via eram convidados a
refletir sobre a importncia da documentao e sobre as consequncias da sua falta no
contexto das atividades laborais, dos deslocamentos internacionais e das relaes que
estabeleciam com os servios pblicos disponveis na fronteira. A segunda estratgia era
mobilizada atravs das redes que consegui tecer localmente. Algumas vezes os sujeitos que eu
conhecera no Escritrio Binacional facilitavam meu acesso a outros parentes e amigos que
estavam indocumentados ou que tambm haviam experienciado o cruzamento de fronteiras
em busca de oportunidades de trabalho. Em outras ocasies, era Paulo Beck que possui
intensa trajetria no movimento comunitrio local quem me apresentava aos demais
moradores, tornando vivel o processo de interlocuo. Contei, tambm, com a ajuda do
vereador Reovaldo (Partido dos Trabalhadores), para conhecer os funcionrios de algumas das
grandes propriedades rurais da regio. Graas a ele pude ter acesso aos moradores da Vila da
Lata, uma pequena localidade no interior do Municpio de Acegu cuja populao bastante
envelhecida est conformada, em sua maioria, por homens que trabalharam toda a sua vida
como pees e tropeadores nos campos brasileiros e uruguaios e por mulheres que, alm de
trabalharem como cozinheiras e babs nas propriedades rurais, tambm se dedicaram
agricultura de subsistncia nos pequenos lotes de terra onde habitam com suas famlias5.
Dialogar com os habitantes da Lata permitiu que eu integrasse em meu estudo a dimenso das
memrias do deslocamento, estabelecendo paralelos e descontinuidades entre experincias
atuais e pretritas de cruzamento das fronteiras e indagando sobre a incidncia das clivagens
raciais no ordenamento da fora de trabalho transfronteiria.
Meu encontro com as instituies pblicas do Estado uruguaio em atividade na faixa
de fronteira foi mediado pela Dra. Blanca Morales, encarregada dos Escritrios Binacionais
de assistncia e orientao cidad mantidos pelo Ministerio de Desarrollo Social (MIDES) nas
localidades de Acegu (Uruguai) e Rio Branco (Uruguai). Alm de abrir as portas de sua
repartio para esta pesquisa, Blanca apresentou-me aos funcionrios do Ministerio del
5 Em 2010 a Vila da Lata recebeu a certido de autodefinio como comunidade remanescente de quilombos, o que significou um importante incremento dos servios pblicos de transporte, moradia, gua e iluminao disponveis aos que ali residem.
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Interior, que atuam na aduana e na subcomissaria local de polcia. Graas aos dilogos que
mantive com essas pessoas, pude construir uma apresentao complexa das relaes entre
pensamento de Estado e constituio local das aparelhagens burocrticas, iluminando um
rico campo de interaes, negociaes e jogos de espelho onde funcionrios pblicos,
demandantes de servios do Estado e pequenos contraventores negociam, frente a frente,
suas possibilidades de deslocamento e agenciamento da fronteira poltica.
Ao ser conduzida de forma intermitente, enquanto eu tambm cumpria com as
atividades letivas do mestrado, a pesquisa acabou no contemplando longas estadias em
campo, como costumam exigir certos discursos mais convencionais sobre o mtodo. A este
respeito, parece-me importante sublinhar que a qualidade de uma investigao antropolgica
no se mede exclusivamente em dias e tampouco pode ser auferida pela quantidade de dados
empricos levantados. Estou de acordo com Antonadia Borges (2009) quando ela sugere que
os antroplogos no trabalham exatamente com dados, mas sim com construdos. Por sua
vez, a construo de reflexes que sejam relevantes tanto para o pesquisador como para
aqueles que colaboraram com seu trabalho depende da intensidade dos vnculos e lealdades
estabelecidos em campo. Mesmo sem dispor do tempo necessrio para plasmar afinidades
pessoais mais profundas, minha postura como investigador foi a de permanecer sempre atento
s indagaes, preocupaes e dilemas que meus interlocutores compartilhavam comigo. Este
exerccio me permitiu compor uma problemtica sintonizada com angstias, perplexidades,
incertezas e anseios que so significativos no nvel local e, portanto, no dizem respeito,
exclusivamente, s grandes questes derivadas deste ou daquele referencial terico. Esta foi
a forma que encontrei para ancorar minha pesquisa em um contexto scio-poltico concreto,
tornando-a passvel de apropriao no horizonte pragmtico dos processos coletivos com os
quais esto comprometidos alguns dos meus interlocutores.
Tendo em vista o que foi dito no pargrafo anterior, os questionamentos que nortearam
o presente exerccio reflexivo foram os seguintes: quais processos histricos e variveis
sociais, econmicas e/ou polticas esto associados ao deslocamento transfronteirio de
pessoas? Em que situaes e com que consequncias o pensamento e as tecnologias de Estado
podem deslegitimar a presena de determinados sujeitos nos territrios em que eles
efetivamente habitam? Em que situaes o deslocamento internacional e, mais
especificamente, transfronteirio, pode aprofundar as dinmicas de subordinao social
localmente vigentes? Em que medida a situao de indocumentao condiciona o lugar social
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dos sujeitos e determina suas possibilidades de acesso aos benefcios da cidadania? Quais os
percalos e desencontros que emergem da busca pela documentao? Que racionalidades e
lgicas operacionais regem o funcionamento dos rgos estatais encarregados, por um lado,
de controlar os fluxos migratrios, e por outro lado, de realizar a promoo da cidadania? De
que forma e segundo que concepes de territrio, justia e direitos meus interlocutores
agenciam as fronteiras polticas e demandam os recursos e benefcios pblicos disponveis nas
localidades limtrofes? Que alternativas so formuladas pelos/as trabalhadores/as para fazer
frente sazonalidade do emprego e as prticas de disciplinamento da fora de trabalho
configuradas localmente?
A nfase que coloco nos deslocamentos, nas tecnologias de governo e nas
subjetividades que se organizam em torno de ambos prope-se a interpelar criticamente
aquelas anlises sobre a integrao baseadas, exclusivamente, em textos oficiais ou nas
impresses e propsitos formulados por gestores pblicos locais e/ou nacionais a seu respeito.
Sem deixar de reconhecer a importncia de mapear como a integrao pensada nas diversas
esferas do poder estatal e econmico, o que apresento, aqui, uma anlise de tipo ascendente,
que parte do que est posto na relao cotidiana que diversos trabalhadores transfronteirios
estabelecem com o Estado, com o mercado e com seu entorno social mais imediato para, em
um segundo movimento, perguntar-se criticamente sobre o sentido, o contedo e as
consequncias das normativas nacionais e supranacionais, ou das estratgias de gesto dos
poderes localmente constitudos. Desta forma, a ideia monoltica de integrao deixa de ser
o marco da anlise para converter-se em seu ponto de partida, fragmentando-se, ao longo do
estudo etnogrfico, numa mirade de itinerrios que, ao atravessarem o espao, produzem no
apenas os territrios plasmados por relaes geopolticas, produtivas, comerciais,
lingusticas, familiares , mas tambm os prprios sujeitos que os percorrem.
Antes de proceder apresentao dos captulos, alguma palavras sobre o uso dos
nomes prprios ao longo do texto. Mesmo que todos/as os/as meus/minhas interlocutores/as
tenham autorizado a publicao dos seus verdadeiros nomes, optei por atribuir nomes fictcios
a alguns deles, aps avaliar criteriosamente os contextos institucionais, laborais, polticos e
legais nos quais encontram-se inseridos. Tambm modifiquei algumas informaes pessoais e
dados biogrficos de modo a preservar suas identidades. A alterao dos nomes sempre
informada em nota de rodap. Finalmente, parece-me importante enfatizar que todas as
interpretaes so de minha inteira responsabilidade e no tm nenhuma pretenso de
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sentenciar ou valorar prticas individuais e/ou coletivas a partir de percepes elaboradas em
encontros extremamente pontuais e, em alguns casos, at mesmo efmeros.
* * *
No primeiro captulo, contextualizo a aproximao inicial ao campo de pesquisa e
reflito sobre as noes de deslocamento, margem e alteridade inspirado pelas problemticas
levantadas no decorrer do trabalho investigativo. Trata-se portanto, de uma explicitao e de
um discusso das categorias analticas em referncia aos principais eixos de preocupao
emprica da presente dissertao.
O segundo captulo consiste em um grande panorama das experincias de trabalho nas
localidades de Acegu-Acegu e Villa Nobla. Introduzo a explanao com a metfora de uma
viagem que atravessa diversos passados e presentes na esteira das narrativas oferecidas por
interlocutores/as vinculados/as ao trabalho nas estncias fronteirias. A viagem metafrica
uma justaposio de encontros concretos realizados em diferentes dias e momentos. Para
elabor-la, me mantive fiel s situaes de interlocuo e plasmei, atravs do texto, a iluso
do seu desencadeamento, como se se tratasse de um nico dia no qual transcorrem muitos dias
em diferentes tempos. A narrativa, que est povoada de memrias do trabalho e do
deslocamento, tambm comporta uma srie de ponderaes analticas sobre as lgicas da
(re)produo social nos extensos territrios fronteirios subordinados pela presena do
latifndio. O segundo tpico do captulo enfoca outras experincias de mobilidade que se
desenvolveram de forma paralela ou articulada ao constante deslocamento de trabalhadores no
contexto das estncias; refiro-me migrao de pequenos, mdios e grandes proprietrios
brasileiros em direo ao Uruguai. Atento s narrativas e s experincias de dois sujeitos que
poderiam ser enquadrados no primeiro grupo, indago sobre at que ponto possvel assumir
sem reservas a diviso analtica absoluta entre produtores e trabalhadores rurais. Um estudo
atento das trajetrias pessoais dos meus interlocutores convida-nos a pens-los, para alm de
categorizaes estanques ou esquemas fechados, como sujeitos cuja experincia de classe no
pode ser entendida sem referncia aos seus itinerrios migratrios e ao cruzamento das
fronteiras polticas. Em um terceiro momento do captulo, problematizo as migraes
pendulares que, impulsionadas pelo pequeno contrabando fronteirio, ocorrem diariamente
entre Melo e Acegu. Da mesma forma que os trabalhadores da pecuria e da agricultura, os
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transportadores irregulares de mercadorias conhecidos como quileros tampouco se
prestam a categorizaes fechadas, em que pesem as folclorizaes e estereotipias
historicamente construdas em torno deles. Sugiro que a atividade do contrabando deve ser
compreendida tendo-se em vista realidade mais abrangente do trabalho na fronteira e levando-
se em considerao a operatria local das normas de controle impostas pelas autoridades
policiais instaladas na regio limtrofe. Finalizo o captulo com um movimento analtico-
regressivo que recupera continuidades e descontinuidades entre os deslocamentos
transfronteirios do passado e do presente, destacando o impacto especfico que as polticas
nacionalistas, o modo de produo capitalista e, mais recentemente, as normativas do
Mercosul vm exercendo sobre eles.
O Captulo III uma narrativa fotoetnogrfica. Nele articula-se o relato imagtico do
percurso investigativo por sucessivos cenrios de trabalho, deslocamento e (in)documentao
na fronteira brasileiro-uruguaia. O aspecto subjetivo inerente fotografia reveste, aqui, um
valor epistemolgico. As imagens vo se encadeando e se sucedendo em resposta s minhas
prprias preferncias como fotgrafo e pesquisador, ao mesmo tempo em que tambm
exprimem as nfases dos meus interlocutores sobre os aspectos considerados significativos,
descritivos e relevantes na sua realidade cotidiana. O ttulo vvido e vivido uma resposta
contundente morte e exceo, representadas pela cruz que abre o texto do primeiro
captulo; uma interpelao desafiadora tanatopoltica e uma apologia do inefvel desejo de
viver, amalgamada pela esttica da dignidade. Mais alm disso, o captulo III , tambm, um
convite para o/a leitor/a desenvolver suas prprias inquietaes, praticar associaes outras e
nelas encontrar, eventualmente, significados alternativos (Achutti, 2004).
O Captulo IV problematiza, especificamente, as dinmicas de margem e suas
sobreposies. Ele consiste no relato de experincias que se desdobram ali onde o poder
soberano dos estados nacionais articula-se com outros processos de ordenamento e controle
social para produzir efeitos concretos sobre os corpos e as subjetividades. Abro o captulo
com as histrias de dois interlocutores que experienciaram, em momentos especficos das suas
trajetrias, verdadeiras zonas de exceo ocasionadas pelo entrelaamento entre a
indocumentao e as clivagens excludentes do mercado e da produo. A segunda parte do
captulo focaliza o impacto das situaes de indocumentao sobre a vida familiar dos grupos
populares em Acegu e Nobla, demonstrando que quando uma pessoa no reconhecida
como caudatria de direitos sociais pela institucionalidade estatal, todos os seus parentes
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podem, potencialmente, ser expostos excluso legal e convertidos em pobreza extica.
Concluo o captulo com uma discusso terica que se ampara nos contexto etnogrficos
previamente estudados para problematizar e ampliar alguns conceitos essenciais anlise
crtica das relaes de poder e dominao, no mbito do deslocamento internacional de fora
de trabalho.
O Captulo V finaliza minha dissertao. Ele emerge dos encadeamentos anteriores
como um espao de retotalizao, de orquestramento geral no qual os contextos
etnogrficos j percorridos transformam-se na pauta de um dilogo prolongado com dois
funcionrios do Estado uruguaio: Blanca Morales, responsvel pelo Escritrio Binacional do
Ministerio de Desarrollo Social e Fernando Freitas, oficial da Direccin Nacional de
Migraciones. Ao discutir as racionalidades e os procedimentos que organizam a atuao da
burocracia na fronteira, tambm vou recuperando os elementos do amplo campo de relaes
sociais locais que envolvem e animam o Estado, convertendo seus expedientes
administrativos no alvo de mltiplas demandas, expectativas e agenciamentos. A construo
desse cenrio dinmico, plural, prenhe de contradies e ambiguidades sem o qual seria
impossvel compreender a especificidade, o sentido e os limites da atuao institucional em
zona de fronteira ancorou-se num procedimento analtico-interpretativo que poderamos
denominar movimento da prxis. Tal movimento, cujos fundamentos epistemolgicos
tambm sero discutidos no ltimo captulo, consiste em duas operaes bsicas: primeiro,
articulei, inspirado pela interlocuo com os moradores de Acegu-Acegu e Nobla, uma
srie de inquietaes, crticas e reflexes sobre a atuao do Estado; depois, estes construtos
derivados da experincia etnogrfica tornaram-se as pautas de dilogo que orientaram minhas
conversas burocrticas no interior das reparties pblicas uruguaias. A singularidade do
movimento da prxis reside importante frisar em seu carter situado e ascendente: eu
escolhi respaldar-me nos dramas, expectativas, demandas e percalos caractersticos da vida
dos/as trabalhadores/as e de outros setores subordinados da sociedade fronteiria para
interpelar e mesmo criticar no texto e in loco as construes discursivas e procedimentos
administrativos operados pelos funcionrios pblicos. O captulo desenvolve-se, portanto, em
torno a jogos de espelho, encontros, desencontros e eventuais tenses; expressa as
descontinuidades e os limites de legibilidade entre pontos de vista que, mesmo enraizados em
experincias sociais irredutveis umas s outras, so frequentemente confrontados no espao
hierarquizado das instituies.
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CAPTULO I
Deslocamento de pessoas, margens e alteridades
Em 2009, na ltima fase de uma pesquisa etnogrfica multi-situada sobre
associativismo de imigrantes uruguaios no Estado do Rio Grande do Sul6, viajei cidade de
Bag7. Meu objetivo era contatar as pessoas que se esforavam por reativar uma antiga
associao destinada a oferecer amparo e informaes aos cidados uruguaios estabelecidos
na Regio da Campanha (Associao Uruguaia de Ajuda Mtua). Uma abordagem de tipo
comparativo me permitiu visualizar descontinuidades significativas entre as associaes de
uruguaios situadas em Porto Alegre e aquela que tive a oportunidade de conhecer em pleno
pampa. Enquanto os uruguaios residentes na capital do Rio Grande do Sul enunciavam
coletivamente um conjunto de lealdades polticas e geracionais que lhes possibilitava
reivindicar e concretizar modalidades especficas de participao cidad extraterritorial
atravs de Conselhos Consultivos8, em Bag observei que as urgncias e o sentido da ao
coletiva apontavam noutra direo. Meus interlocutores do interior do estado estavam
preocupados com os percalos decorrentes da indocumentao, da represso policial, da falta
de informaes a respeito dos procedimentos necessrios regularizao da situao laboral,
etc. Em sua maioria, eles no manifestavam interesse por integrar-se aos mecanismos oficiais
6 A pesquisa deu origem ao meu trabalho de concluso de curso (Deslocamentos transnacionais no Cone Sul contemporneo: estudo antropolgico dos discursos e prticas imigrantes em tono dispora uruguaia), desenvolvido sob orientao da Profa. Denise Fagundes Jardim, com recursos do projeto Identidades e passaportes: os mediadores do acolhimento aos imigrantes.
7 Bag est situada na Regio da Campanha, no sudoeste do Estado do Rio Grande do Sul, a 393km de Porto Alegre e a 60km da fronteira com a Repblica Oriental do Uruguai.
8 Em 2005, no marco de uma nova engenharia institucional, o governo uruguaio deu incio a um projeto de vinculao com a dispora baseado na formao de conselhos consultivos no exterior. A partir destes rgos, o Estado pretendia criar um canal de comunicao permanente com os emigrados, promovendo sua incluso nos debates polticos da vida nacional.
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de vinculao transnacional propostos pelo governo uruguaio. Na verdade, alguns sequer os
conheciam. A singularidade das reivindicaes coletivas articuladas pelos imigrantes
uruguaios em Bag me fez pensar que eles integravam circuitos de deslocamento singulares,
unidos muito estreitamente s dinmicas do trabalho em regies fronteirias. Depois de
discutir sobre essas concluses preliminares com minha orientadora, decidimos que os
esforos da pesquisa de graduao estariam centrados em compreender, fundamentalmente, os
processos associativos que tinham por cenrio a cidade de Porto Alegre. J a problematizao
dos deslocamentos humanos em zonas de fronteira seria retomada um pouco mais tarde, no
contexto da investigao de mestrado.
Concluda a breve visita a Bag, retornei para Porto Alegre levando a gravao de uma
entrevista grupal realizada com os membros da Associao Uruguaia de Ajuda Mtua, alm
de fotografias dos documentos disponibilizados por Francisco, um advogado trabalhista que
participava ativamente daquela entidade. Este material permaneceu arquivado at 2011
quando, por ocasio do meu ingresso no mestrado, recuperei-o em busca de indagaes
iniciais que me orientassem em uma nova incurso fronteira. Entre registros sonoros e
papeis diversos, o que mais prendia minha ateno eram as cpias do atestado de bito e da
fotografia de um senhor que vestia roupas claras e ostentava uma amputao cirrgica logo
abaixo do joelho direito.
O atestado em questo era o nico registro oficial emitido por cartrio a respeito de
Laudiceno Silveira, cidado uruguaio que trabalhou, durante boa parte da sua vida, como peo
em uma propriedade rural brasileira. Francisco o advogado trabalhista conheceu este
homem no ano de 1988, internado no Hospital de Caridade da cidade de Bag, onde realizava
o tratamento de uma grave infeco na perna direita. Depois de ter o p amputado e enfrentar
muitos dias de internao, Laudiceno retornou fazenda de seu patro, vindo a falecer no ano
de 1990 sem deixar bens, de acordo com a observao que finalizava o documento de bito.
Seu corpo est enterrado em um cemitrio localizado na mesma propriedade da qual era
funcionrio.
Quando Laudiceno encontrava-se ainda internado em Bag, ele autorizou que dois
advogados conhecidos de Francisco apresentassem denncia penal por negligncia contra seu
patro brasileiro. Ao tomar conhecimento do incmodo trmite que se avizinhava, o
fazendeiro falou pessoalmente com Laudiceno e lhe que pediu que dispensasse os advogados,
oferecendo-se, ele prprio, para pagar um bom profissional que se encarregasse da sua defesa
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nos tribunais. Resultou que o bom advogado era reitor de uma importante instituio de
ensino local, ele mesmo proprietrio de terras e frequentador dos crculos ruralistas na cidade.
No obstante, os dois advogados que inicialmente se encarregaram do caso decidiram levar
adiante um pedido de indenizao por perdas e danos em favor de Laudiceno. O julgamento,
no entanto, foi esvaziado porque todas as testemunhas apresentadas sofreram ameaas de
morte ou tornaram-se alvo de denncias policiais moralmente desqualificadoras.
Motivado pela histria de Laudiceno eu quis visitar, em minha primeira sada de
campo (Julho de 2011), algum desses exguos cemitrios onde so frequentemente sepultados
os moradores das pequenas cidades e povoados que pontilham a Regio da Campanha.
Atravs de funcionrios da prefeitura de Acegu9, entrei em contato com seu Chico e dona
Nina, casal residente na comunidade quilombola do Tamandu, cujas terras so fraes
herdadas de uma grande propriedade rural hoje inexistente. Seu Chico, que j foi peo de
estncia, aceitou me levar para conhecer o pequeno campo santo no qual esto enterrados seu
pai e outros tantos parentes e conhecidos que habitaram, ao longo de sucessivas geraes, as
pradarias onduladas e ventosas onde realizei minha pesquisa. Numa fria manh de Julho,
percorremos juntos vastas extenses de pasto mido at atingirmos um denso arvoredo
9 A cidade de Acegu, um dos lugares privilegiados do meu trabalho de campo, est situada entre as cidades de Bag (Brasil) e Melo (Uruguai), a aproximadamente 60 km de cada uma, exatamente sobre a linha de fronteira que divide (e une) Brasil e Uruguai.
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cruzado por fios de arame atados em postes de madeira. Chegamos, disse seu Chico,
apoiando-se em um dos anteparos que sustentavam a precria cerca. Percorri o solo com os
olhos at divisar o primeiro crucifixo, oculto entre as ramagens. A maioria dos tmulos no
possua qualquer identificao. Consistiam, apenas, em annimas cruzes de madeira ou de
ferro, muitas vezes mutiladas pela intemprie ou pela marcha do gado e dos cavalos. Apesar
disso, seu Chico sinalizava com preciso o lugar de sepultamento dos amigos, tios, compadres
e, claro, do prprio pai. Cada vez que ele indicava uma sepultura, seguiam-se breves anedotas
atravs das quais o finado tornava vida para, rapidamente, esfumar-se no silncio do pampa.
Enquanto eu caminhava pelo singelo cemitrio, recordava a histria do peo uruguaio
enterrado na propriedade do patro. Naquela manh gelada, percebi com mais clareza a
profunda ironia que envolvia a histria de Laudiceno. Apenas depois de morto ele passou a
constar em algum registro oficial reconhecido pelo Estado brasileiro: o atestado de bito.
Ainda assim, trata-se de um registro fugidio. A frase sem deixar bens oferece indcios do
lugar por ele ocupado na hierarquia das classes sociais. Afora isso, seus itinerrios se
perderam numa bruma quase impenetrvel. Bruma que pode ser dissipada apenas
transitoriamente pelo anedotrio de algum conhecido que vier a encontrar o definitivo
paradeiro dos seus restos. Mas se os estados nacionais, de um ou de outro lado da divisa
poltica, s advertem a existncia de certos sujeitos quando estes morrem, o trabalho de
campo etnogrfico, por outro lado, nos permite acessar seu presente vvido e vivido. Um
presente prenhe de demandas, expectativas, experincias e prticas que descrevem formas
singulares de deslocar-se e de se relacionar com as fronteiras, com as dinmicas da produo e
com os servios dos Estado.
Esta, portanto, uma dissertao sobre migraes contemporneas que focaliza as
articulaes entre trabalho, deslocamentos e indocumentao no contexto da implementao
de polticas e servios pblicos oferecidos na fronteira uruguaio-brasileira. Evidencio, ao
longo da anlise, como diferentes percursos migratrios so matizados pela atuao
ambivalente dos Estados e pela operatria local das clivagens de classe, produzindo processos
de negociao que convertem os circuitos de deslocamento empreendidos pelas classes
populares fronteirias, no apenas em loci de excluses, mas tambm em espaos criativos
onde os prprios fundamentos da cidadania e do pertencimento so problematizados e, por
vezes, alargados em favor da incluso e do reconhecimento dos direitos cidados.
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1.1 Nem tudo flui
comum que alguns estudos centrados em populaes migrantes tomem o
deslocamento como algo dado, como um movimento em si que produz situaes de
interao e intercmbio. Neste sentido, muitos investigadores se referem s faixas fronteirias
como lugares atravs dos quais fluem pessoas, bens e smbolos. Um dos objetivos deste
primeiro captulo propor que aquilo que flui no caso que me ocupa, pessoas est
constitudo no prprio processo de deslocar-se, ou seja, o deslocamento produz certas
subjetividades e, mais do que isso, desencadeia dinmicas que inscrevem socialmente os
sujeitos. importante, portanto, ponderar a respeito dos processos que possibilitam a
emergncia de circuitos migratrios transfronteirios e indagar sobre as prticas e
expectativas que sustentam os projetos individuais de deslocamento, cruzamento das
fronteiras e eventual fixao da residncia em um pas vizinho.
Antes de qualquer coisa, preciso indicar porque prefiro a noo de deslocamento
quela de fluxo. Fluxo, como categoria analtica, parece-me insuficiente para refletir a
respeito dos movimentos humanos em geral e das migraes transfronteirias e transnacionais
em particular. A metfora do fluxo que se aplica, indistintamente, para falar de capitais,
mercadorias, pessoas, arte, informaes, imagens, lnguas coloca nfase sobre o movimento
em si, ela enuncia a constncia da mobilidade remetendo-nos imagem dos cursos dgua.
Ou seja, os fluxos existem por si mesmos, atravessam o mundo em todas as direes
indistintamente e, qual os rios, so represados em alguns lugares para tornarem-se
recursos localmente disponveis, que podem ser audiovisuais (atravs das antenas de TV ou
rdio e da Internet), econmicos (via bolsas de valores, por exemplo), humanos (mediante
contratao do stock de trabalhadores migrantes estabelecido em certas latitudes), etc.
realmente impressionante o potencial metafrico e potico do verbo fluir, assim como
tambm chama a ateno sua tremenda capacidade de obliterar dimenses importantes
implicadas na maioria dos processos dinmicos que envolvem a intencionalidade humana e
a geopoltica moderna. Mary Pratt tece um cido comentrio a esse respeito: o Rio Bravo
flua, mas o mesmo no acontecia com os dois jovens que se afogaram quando tentavam
cruz-lo10 (Pratt, 2006, p. 10). Aqui, a autora se refere aos frequentes e por vezes trgicos
intentos de cruzar, no sentido Sul-Norte, a fronteira entre Mxico e Estados Unidos,
10 Traduzi todas as citaes de obras originais escritas em outros idiomas que no o portugus..
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demarcada, em um longo trajeto, pelo curso do Rio Bravo del Norte, conhecido como Rio
Grande pelos estadunidenses.
Fluxo diz muito sobre a ideologia dominante da globalizao, mas no fala nada sobre
seu inconsciente poltico. Este, por sua vez, est conformado por todos os processos de
supresso, assujeitamento e subalternizao que tornam possveis as conexes globais
definidoras das realidades concretas do mundo contemporneo. Seguindo o argumento de
Pratt (2006), a metfora do fluxo deve ser tomada com cautela por cinco razes fundamentais:
1) ela no distingue entre tipos de movimento, no abre margem para que avaliemos,
qualitativamente, o que difere uma viagem de frias de uma migrao laboral; 2) falar de
fluxo enfatizar o movimento e no a direo. Assim, o pagamento da dvida externa dos
pases mais pobres torna-se equiparvel s muitssimo menores transferncias de recursos da
solidariedade internacional s naes do Sul global, afinal, so todos exemplos do fluir
constante e multidirecional dos capitais; 3) o fluxo naturaliza, porque parece no considerar as
instituies, estatais e privadas, que estimulam ou cobem certos movimentos; 4) o conceito
de fluxo ignora a dimenso volitiva da ao humana, obscurecendo os desejos e as estratgias
plurais e assimtricas que intervm sobre a mobilizao e a movimentao das ideias, das
pessoas e do capital; 5) o fluxo, em alguns casos, parece aludir a processos naturais, que, cedo
ou tarde, alcanariam um equilbrio horizontal. Ocorre que a maioria dos deslocamentos
internacionais possuem vetores claros de acordo com cada poca e nos falam de processos
assimtricos11, comumente pautados pela concentrao geogrfica dos recursos.
s cinco objees levantadas por Pratt, eu agregaria uma sexta: a maioria dos
discursos sobre fluxos, no s em antropologia, mas tambm em reas da geografia, histria,
sociologia e economia, tendem a descrever, lanando mo de um mesmo termo, movimentos
que envolvem materialidades ou elementos absolutamente distintos entre si. As novelas
brasileiras, com enorme audincia nos dois lados da fronteira brasileiro-uruguaia, no fluem
atravs dos limites polticos nacionais da mesma forma que os/as trabalhadores/as rurais e
urbanos o fazem. O fluxo de ondas televisivas, mesmo quando pode revelar sugestivas
assimetrias regionais, porta um conjunto sempre determinado de informaes cuja
apropriao e interpretao sero singularizadas de acordo com a audincia em questo. No
caso dos trabalhadores e trabalhadoras, o movimento atravs do espao descreve, ele prprio,
um itinerrio de transformaes subjetivas no seio do qual so mobilizadas, por um lado,
11 Sobre a assimetria dos fluxos ver, tambm, Hannerz, 1997.
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expectativas individuais e familiares e, por outro lado, so vivenciadas clivagens sociais e
institucionais diversas.
Parece-me, ento, que a noo de deslocamento atende melhor aos objetivos de uma
investigao preocupada com os movimentos empreendidos pelos seres humanos,
movimentos que se do, invariavelmente, no espao. Transitar por mltiplos espaos significa
entrar em contato com poderes regulatrios e a cultura hegemnica de mais de um Estado
(Levitt, Glick Schiller, 2004, p.70), razo pela qual, tematizar os deslocamentos evidenciar,
tambm, que seus protagonistas esto inseridos em mltiplas instituies legais e polticas
que determinam o acesso, assim como a ao, ao mesmo tempo em que organizam os status
de gnero, raa e classe (Idem, grifo meu). Muito esquematicamente, possvel dizer que a
ideia de fluxo nos traz mente a imagem dos lquidos e, quem sabe, a dos sistemas
hidrulicos. O deslocamento, por sua vez, diz respeito a lugares e, mais importante do que
isso, a movimentos nos lugares, iluminando, portanto um campo de foras povoado por
mltiplas determinaes em meio s quais os sujeitos desenvolvem sua intencionalidade.
Quando digo que o deslocamento possui uma dimenso intencional, no quero sugerir que ele
seja fruto, em primeiro lugar, das vontades individuais. Pelo contrrio, a intencionalidade
aparece em resposta a um conjunto contextualizado de estmulos e de necessidades
produzidas que poderia ser considerado como o aspectos determinativo inicial do
deslocamento, sem jamais descrev-lo de maneira absoluta.
Thompson, sem dvidas inspirado por Marx, nos convida a pensar de forma complexa
sobre a ao humana, considerando que todos somos parte sujeitos, parte objetos; os agentes
voluntrios de uma determinao involuntria (Thompson, 1978, apud Willis: 2000). Ainda
no contexto da tradio marxista que em suas expresses no dogmticas, dedicou uma
enorme ateno ao problema das determinaes, procurando transcender quaisquer
mecanicismos , era Horkheimer quem sugeria que todas as crises econmicas so,
fundamentalmente, crises vividas (apud Amadeo, 2006, p.69) e portanto, no podem ser
compreendidas e criticadas somente a partir dos seus efeitos como (des)funcionalidades
sistmicas. O jovem Max Weber, situado no outro extremo do espectro ideolgico, ao analisar
a migrao massiva para a Alemanha dos camponeses que outrora habitavam as provncias
prussianas a oeste do Elba, constatou que a existncia do trabalhador agrcola no se
conforma apenas pelo interesse material, seno que, em boa medida, [ele] vive de iluses
() ou melhor, de momentos cuja base psicolgica [], em sua maior parte, inacessvel
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considerao puramente econmica (Weber, 1993, p. 103 apud Mezzadra, 2005, p. 62).
Inspirados pelas observaes mais genricas que fazem Thompson, Horkheimer e
Weber, podemos retornar questo dos deslocamentos entendidos, at aqui, como
fenmenos sumamente abrangentes que incluem vetores determinantes (ou estruturantes no
sentido brando do termo) e vontades singularizadas para sugerir que, neles, os sujeitos
interpretam sua conjuntura e a ela reagem de acordo com lgicas pessoais, e no
necessariamente mercantis12 ou utilitrias. Portanto, mesmo quando um processo de
deslocamento est ancorado em questes econmicas (uma crise, por exemplo, ou o
recrutamento internacional de mo de obra, ou ainda as flutuaes no preo da terra) e
atravessado por condicionantes burocrticas (controle de aduanas, servios pblicos
restritivos), ele tambm contemplar um excedente de prticas e expectativas enraizadas em
experincias muito mais pontuais, associadas, por exemplo, ao mbito das lealdades
familiares, das afinidades polticas e dos especficos cdigos morais operados por cada sujeito
ou grupo de sujeitos.
Abdelmalek Sayad (1998) entende que a imigrao constitui um fato social completo
porque, antes de qualquer coisa, ela pressupe o deslocamento. O espao do deslocamento,
alm de ser fsico, est qualificado de muitas outras formas (socialmente, politicamente,
economicamente e culturalmente), fato pelo qual este fenmeno torna-se relevante para todas
as cincias sociais. Pensar as migraes como deslocamentos uma forma de evitar anlises
fracionadas, que, ao promoverem recortes arbitrrios da experincia humana, tornam-se
incapazes de iluminar sua complexidade. Dizer que o migrante , fundamentalmente, um
sujeito que se desloca, significa sugerir que sua vida no comea no momento em que ele se
torna imigrante em um dado pas ou regio; o fenmeno geral da migrao transcende o
problema social/nacional/econmico da imigrao, consistindo, esta ltima, apenas em uma
das suas duas faces. A outra alude a um processo que comea muito antes, em outras latitudes
e descreve, frequentemente, relaes histricas entre os lugares de origem e destino. Para
Sayad, a migrao, que sempre, emigrao e imigrao, inclui no s dois lugares (pelo
menos), mas tambm duas sociedades nacionais e sucessivas camadas de vnculos polticos,
econmicos e culturais entre elas.
As concluses obtidas por Sayad no estudo da migrao entre Arglia e Frana
metropolitana preservam sua vitalidade para a anlise de outros deslocamentos
12 Ver, tambm, Taussig, 2010.
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contemporneos, mesmo quando estes no estejam balizados pelos mesmos eixos de
dominao supostos pelo colonialismo europeu em frica. Considerar a historicidade das
relaes e a pluralidade do campo de incidncias que condiciona qualquer processo
migratrio entender os deslocamentos humanos, essencialmente, como movimentos sociais
(Mezzadra, 2005) irredutveis a qualquer modelo hidrulico ou des-localizado do tipo que
foi anteriormente criticado. Para Sandro Mezzadra (2005), as migraes so movimentos
sociais porque, de alguma maneira, e sem serem, necessariamente, movimentos polticos, elas
tensionam certos limites e ressignificam as estratgias do poder, apontando na direo do
questionamento ou, pelo menos, abrindo margem a ele. Neste sentido, as proposies de
Mezzadra esto em consonncia com as de Sayad, para quem a imigrao provoca a ortodoxia
nacional e obriga os estados e refletirem sobre seus limites, externando os dilemas provocados
pela diferena no seio das instituies que prestam servios pblicos e sustentam hegemonias
territoriais.
Se bem a mobilidade dos/das trabalhadores/as fronteirios se intersecciona, sem
dvidas, com o ordenamento local dos mercados de trabalho, das redes de comrcio e dos
investimentos de capital, o cruzamento de fronteiras que eles/elas empreendem mobiliza,
como venho sugerindo, outras racionalidades polticas (aquela que permeia as burocracias
estatais, por exemplo) e universos de significados (os dos prprios povoados fronteirios),
engendrando, assim, um campo heterogneo de construo de sentidos. Esto em jogo,
portanto, lgicas culturais e discursivas dspares e conflitantes que constituem o que
Mezzadra (2005) denomina autonomia do processo migratrio; autonomia no como
indiferena ou independncia, mas sim como irredutibilidade a qualquer esquema esttico de
causalidades. Essas lgicas podem ser entendidas, nos termos de Paul Willis (2000), como
modos de indeterminao que caracterizam, de maneira mais geral, toda a vida humana,
tornando impossvel condicion-la a variveis econmicas. O engendramento das
expectativas, desejos e possibilidades disposio do/da trabalhador/a (trans)fronteirio/a
deve, ento, ser pensado em relao s condies de existncia nas quais eles atuam,
trabalham e criam, mas nunca como subsumido estas ltimas.
No basta, no entanto, reconhecer a autonomia da produo dos sentidos e das prticas
concretas. Para compreender as relaes complexas que garantem e condicionam sua
vigncia, parece-me fundamental l-las no contexto do social. Na perspectiva aqui adotada, o
social caracteriza-se como um espao em que o poder, desigualmente distribudo, produz
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efeitos sobre os corpos, estabelecendo uma estrutura na qual se articulam e se co-
engendram, numa mesma trama e no obstante suas incongruncias, elementos, experincias,
produtos historicamente descontnuos, distantes, heterogneos. O socilogo peruano Anbal
Quijano, refletindo sobre o que produz, permite e determina semelhante campo de relaes,
sugere que, no atual sistema-mundo capitalista13, em cada caso, o que em primeira instncia,
gera as condies para esta articulao a capacidade que um grupo consegue obter ou
encontrar para se impor sobre os demais e articular, sob seu controle, uma nova estrutura
social com suas heterogneas histrias (Quijano, 2000, p. 348). Isto possvel, segundo a
anlise do autor, por meio do controle do trabalho e dos seus produtos e da autoridade,
mas no como determinante ou base de determinao, no sentido do materialismo histrico,
e sim, estritamente, como eixos de articulao do conjunto (Quijano, 2000:351, grifo meu).
Apesar do seu esquematismo, o argumento de Quijano no deixa de ser sugestivo. Por
um lado, o autor reconhece a heterogeneidade das experincias de sociedade que podem
coexistir em um mesmo lugar e, por outro lado, ele nos aponta um caminho para compreender
como essa coexistncia se torna possvel: o poder promove articulaes mais ou menos
arbitrrias e transitrias entre sujeitos e instituies, originando arranjos sociais que se
reproduzem no golpe a golpe das socialidades locais. Existem, portanto, certas modalidades
de exerccio do poder e controle da autoridade que interpelam cotidianamente as pessoas,
conduzindo uma atualizao permanente de seus projetos de vida. No que diz respeito aos/s
trabalhadores/as (trans)fronteirios/as, o modelo de Quijano especialmente descritivo, pois
nos fala de dois procedimentos (controle da autoridade e do trabalho) que so balizadores
constantes dos seus itinerrios laborais e migratrios.
Venho utilizando, at aqui, o termo trabalhadores/as (trans)fronteirios/as para
conotar a dinamicidade e singularidade das experincias de trabalho que se desenvolvem na
zona de fronteira onde realizei minha pesquisa de campo. No capitalismo histrico, a
necessidade de trabalhar ou seja, de vender a fora de trabalho mediante relao de contrato
para acessar os recursos materiais necessrios existncia esteve frequentemente associada
com a necessidade de deslocar-se. Esta relao adquiriu vrias formas com o passar do tempo
e de acordo com cada regime de acumulao e regio do mundo onde se configurava
(Aragons, 2000). No caso especfico dos trabalhadores que habitam faixas de fronteira, a
necessidade de deslocar-se implica, em muitos casos, ter que transpor uma divisa poltica
13 Ver, tambm, Wallerstein, 2011.
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nacional e esta singularidade que eu pretendo enfatizar ao colocar o prefixo trans entre
parnteses: viver e trabalhar em Acegu-Acegu e Villa Isidoro Nobla exige estar disposto a
deslocar-se e, se necessrio for, atravessar a fronteira para tornar-se estrangeiro. Os
arranjos locais entre estrangeiridade, controle do trabalho e da autoridade, assim como sua
incidncia sobre a produo de subjetividades nos circuitos de integrao transfronteirios
constituem um dos focos principais de minha anlise.
Antes de discutir o tipo de consequncia que a estrangeiridade pode engendrar quando
associada condio de trabalhador/a, quero fazer uma breve ressalva relacionada ao fator
nacionalidade. As fronteiras do Cone Sul constituem o local de deslocamentos entre
sociedades empobrecidas, nos quais no estamos falando de imigrantes que vo buscar em
pases relativamente bem resolvidos em suas carncias materiais aquilo que no encontram
nas suas casas (Etcheverry, 2009). Alm disso, os diacrticos atribudos nacionalidade
brasileira e uruguaia nas regies em que desenvolvi minha pesquisa so suscetveis de
constantes negociaes. Entre os elementos que explicam tal realidade possvel mencionar a
contiguidade territorial, o bilinguismo generalizado, os matrimnios binacionais, a existncia
de um regionalismo partilhado pelos nacionais de ambos os pases e a utilizao
intercambiada das escolas primrias14 de um ou de outro lado da linha de fronteira. Desta
forma, para o contexto fronteirio observado, difcil localizar processos sistemticos de
racializao ou enclassamento da nacionalidade, como ocorre em outras fronteiras tidas como
emblemticas do mundo contemporneo pensemos no caso da divisa entre Mxico e
Estados Unidos. Isto no quer dizer que a dificuldade de acesso, por parte dos sujeitos
indocumentados, a determinados servios pblicos e recursos financeiros disponibilizados
pelos estados nacionais no conduza ao aprofundamento de subordinaes sociais produzidas
pelas clivagens de raa e classe15 historicamente vigentes naquela zona.
Mas se a nacionalidade jurdica dos sujeitos no opera per se nas clivagens e
hierarquizaes localmente observadas, qual a especificidade dos processos de alterizao
engendrados no contexto dos deslocamentos transfronteirios? Em primeiro lugar, vale
mencionar que, se bem esses deslocamentos podem ser facilitados pela fluidez que 14 O mesmo no pode ser dito das escolas secundrias Colgios de Ensino Mdio no Brasil e Liceos no
Uruguai , posto que elas exigem apresentao de documento que comprove nacionalidade ou regularidade da situao migratria para expedir os certificados de concluso dos estudos.
15 A avaliao dos dados obtidos pelo Censo de 2010 do IBGE permite alguns cruzamentos sugestivos entre raa e classe para o Municpio de Acegu (Brasil). Enquanto os recenseados auto-declarados brancos que recebem algum tipo de ingresso nominal ocupam todas as faixas de renda trabalhadas pelo IBGE (de 1/8 at mais de 30 salrios mnimos), os auto-declarados negros no ultrapassam a faixa de 5 salrios mnimos, estando, em sua maioria (83,2%), concentrados na faixa que vai de a 2 salrios mnimos.
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caracteriza os jogos identitrios locais, eles tambm respondem a outras realidades,
vinculadas uma geopoltica mais rgida que se pauta pelo pensamento de Estado. na
negociao de oportunidades laborais e no contato com as instituies pblicas, que um
pensamento escrutinador e dualista est em condies de operar sobre a vida concreta das
pessoas, conduzindo, eventualmente, negao dos direitos e situaes de violncia fsica e
simblica. Existem, portanto, elementos ideolgicos que ingressam e ingerem na realidade
sob a forma de tecnologias institucionais, expedientes administrativos, maquinrias de
disseminao da dvida e da suspeita, convertendo a evocao da estrangeiridade jurdica
num poderoso dispositivo de alterizao via excluso.
A estrangeiridade instila-se no cotidiano das interaes fronteirias principalmente
quando os sujeitos se defrontam com situaes nas quais importante ter documentos e/ou
enunciar-se a si mesmos por meio deles. Para compreender o porqu da centralidade dos
documentos no contexto de manuteno e salvaguarda das hegemonias nacionais, reporto-me
obra do socilogo estadunidense John Torpey, que focaliza o desenvolvimento histrico do
passaporte este documento smbolo da geopoltica moderna para avanar algumas
concluses a respeito da importncia e dos usos da documentao em um mundo dividido em
(e entre) estados nao.
Torpey (2003) demonstra-nos que a origem do passaporte remonta Europa
absolutista, quando servia para controlar os deslocamentos dos sditos no interior dos limites
dos reinos. A converso do passaporte em documento aceito internacionalmente teve lugar
somente no sculo XIX, quando a hegemonia dos Estados nao era incontestvel e os
diversos projetos de centralizao poltica haviam atingido seus fins estratgicos. Uma das
teses centrais de Torpey que, assim como o monoplio do uso legtimo da fora, o
monoplio dos meios de circulao legtimos seria conditio sine qua non para a existncia do
Estado moderno. O passaporte, por sua vez, se erigiria como um dos garantidores desse
monoplio e, dada sua generalizao para todos os pases existentes, consolidaria o
reconhecimento recproco das soberanias nacionais no marco de uma comunidade
internacional. Mais do que isso, o passaporte e os documentos de identificao de uma
maneira geral apareceriam como as ferramentas privilegiadas da estratgia estatal de
controle das populaes.
Numa passagem inspirada, Torpey afirma o seguinte: () os documentos de
identificao de vrios tipos constituem o equivalente burocrtico do dinheiro: eles so a
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moeda da moderna administrao estatal (Torpey, 2003, p. 31). De fato, para se ter acesso a
quaisquer benefcios disponibilizados pelo Estado, no basta existir, preciso dispor de
documentos. Em outro lugar (Jardim; Moraes, 2011), sugerimos que os estados s enxergam
atravs de documentos. A metfora proposta por Torpey, no entanto, parece mais atraente,
porque sinaliza que a ausncia de documentos no invisibiliza os indivduos, mas, pelo
contrrio, visibiliza-os negativamente, excluindo-os, como escreveu Hayman (1995), das
normas de gentileza e receptividade que se reservam aos membros de uma comunidade.
Adotando uma perspectiva semelhante de Torpey, Agns Fine (2008) sinaliza que
No curso da era moderna, a posse de documentos aparece como uma forma de
privilgio ela confere proteo, autoriza a circulao e o fato de no t-los
[se torna] um motivo de excluso e punio. As premissas da prtica
identificatria criam, assim, algumas figuras negativas como as do impostor, do
vagabundo, as quais se juntam, no sculo XIX, as do estrangeiro, do nmade, do
desertor, do criminoso () portanto, contra essas figuras de margem que se
cristaliza a questo da identificao na poca contempornea (Fine, 2008, p. 15).
Outro desdobramento interessante do aforismo que relaciona documentos e moedas
o fato concreto de que documentos custam dinheiro. Pode-se converter dinheiro em
documentos tanto por vias oficiais/legais, quanto por vias extra-oficiais e, portanto, ilegais.
Finalmente, h situaes nas quais a transferncia de recursos financeiros por parte do Estado
aos seus cidados ocorre mediante apresentao de documentos. Nestes casos, existe um
constrangimento econmico concreto para que o indivduo obtenha papis, preencha
formulrios, receba visitas sociais, etc., de forma a figurar como beneficirio de programas de
capitalizao ou transferncia de renda.
No mundo do trabalho (trans)fronteirio, quando os estados nacionais fazem uso do
controle da autoridade para deslegitimar a presena territorial dos sujeitos migrantes seja
negando-lhes benefcios financeiros ou vetando seu acesso a determinados servios e direitos
se produzem as condies para que os efeitos de poder inerentes ao controle do trabalho
incidam com mais potncia sobre os corpos e as subjetividades. Isso maximiza as
consequncias nocivas da atividade laboral para a prpria vida e integridade fsica de quem
trabalha, ao passo que reitera e mesmo aprofunda as estratificaes sociais vigentes no
capitalismo histrico. Explorando as experincias de deslocamento e indocumentao na
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fronteira uruguaio-brasileira demonstro, no decorrer deste trabalho, os diferentes percursos
que levam as pessoas a tornarem-se estrangeiras, sem deixar de sinalizar como, a partir
dessas situaes, elas negociam s/as margens o aprofundamento das subordinaes que
vivenciam.
1.2 Cidadania, alteridade e margens
Nas ltimas duas dcadas, o conceito de margem, muitas vezes associado ao de
excluso, sofreu reiteradas crticas por parte dos cientistas sociais. Estas crticas procuram
relativizar ambas as noes, demonstrando que no basta constatar o alijamento de certos
grupos dos espaos de socializao convencionais mercado de trabalho formal, escolas,
zonas urbanizadas da cidade, etc para concluir que eles esto completamente desvinculados,
excludos ou alheios as dinmicas sociais mais abrangentes. O exerccio de matizar a ideia de
excluso no significa negar a incidncia das violncias estruturais, que atuam no sentido de
impedir que alguns setores da populao acessem as posies de poder socialmente
disponveis, bem como os recursos materiais e simblicos necessrios para resguard-las
ou desestabiliz-las. Pelo contrrio, ele aponta no sentido de indagar sobre os modos de vida
que se originam nos processos de margem, sem pressupor que se tratam de experincias
sociais desestruturadas ou anmicas. Nessa perspectiva, a questo no procurar o que falta
em determinados grupos para que eles atinjam uma cidadania plena e se tornem includos;
mas sim avaliar como essas pessoas j esto, ao seu modo, reivindicando certo tipo de
participao social. Sendo assim, interpreto os circuitos de integrao produzidos pelos/as
trabalhadores/as (trans)fronteirios/as, no apenas como loci de excluses acarretadas pelas
tecnologias dominantes de governo das populaes e/ou gestionamento da circulao de
pessoas, mas tambm como espaos criativos onde as prprias noes de cidadania e
pertencimento so agenciadas e ressignificadas.
Se, como afirma Peirano, a cidadania est em permanente processo de constituio,
consolidao e transformao (Peirano, 2006, p.122) assim como os Estados e naes, ento
o enfoque nas prticas de cidadanizao16 pode nos ajudar a dilatar e, por que no,
extrapolar as concepes mais convencionais sejam elas oficiais ou acadmicas sobre
16 Defino cidadanizao como o processo de polarizao e tencionamento entre atores sociais dspares, que se manifesta nas democracias liberais contemporneas atravs da linguagem da multiplicao e concesso de direitos.
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a cidadania, deixando espao para uma abordagem no normativa ou teleolgica, mas sim
pluralista e indisciplinada. Operando em um marco conceitual semelhante ao que me
orienta nesta dissertao, Sandro Mezzadra (2005) entende que os movimentos migratrios
expressam demandas subjetivas especficas de cidadania, que evidenciam a permanente
tenso entre o universalismo dos direitos e o particularismo do pertencimento (Mezzadra,
2005, p. 95), assim como os dramas e possibilidades que a operatria da estatalidade ou
seja, a regulao dos mecanismos de excluso efetuada pelas instituies estatais impinge
experincia de quem se desloca atravs das fronteiras. A estatalidade opera, nas faixas de
fronteira, mediante diversos rgos pblicos, que fiscalizam as prticas de deslocamento,
promovem direitos e regulam a distribuio racional isto , entre os nacionais dos
benefcios sociais. Estas atividades administrativas se apoiam na tarefa cotidiana de distinguir
o cidado do marginal (Peirano, 2006), principalmente atravs do controle e da concesso de
documentos que atestem a legitimidade da presena territorial dos sujeitos e, portanto, a
validade das demandas que eles enunciam.
Da diviso radical entre integrados e marginais, entre nacionais e estrangeiros,
decorrem mltiplos percalos que confrontam e, eventualmente, alterizam quem precisa se
deslocar atravs da fronteira. Assim, por exemplo, alguns trabalhadores rurais
indocumentados que colaboraram com esta investigao, passam a experimentar um
aprofundamento da sua subordinao social e econmica quando os Estados nacionais, em
ambos os lados do marco fronteirio, condicionam a distribuio de benefcios sociais e
servios pblicos posse de documentos que comprovem regularidade da situao migratria.
Sem os documentos, meus interlocutores ficam invisibilizados, tornam-se uma pobreza
extica (Sayad, 1991) e irresolvel. Apesar das polticas comuns de reconhecimento dos
direitos cidados no Mercosul, os circuitos de deslocamento transfronteirio seguem
produzindo, por razes que sero discutidas neste estudo, sujeitos s margens do Estado. O
absurdo desta situao trs tona, com clareza, um tipo de diferena que a revelia da
ideologia multiculturalista da igualdade na diversidade s pode existir como uma
desigualdade irrevogvel, ainda que parcialmente negocivel.
Veena Das e Deborah Poole (2008) nos sugerem, ao propor uma antropologia das
margens, que estas no apenas descrevem procedimentos de abandono ou excluso absolutos,
mas tambm revelam os limites de legibilidade dos Estados, onde formas outras de regular e
agir terminam colonizando a lei e as prprias burocracias na esteira das urgentes
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necessidades das populaes de assegurarem sua sobrevivncia poltica e econmica (Das;
Poole, 2008, p. 6). Em consonncia com Das e Poole, pensar em termos de (i)legibilidade(s)
me parece importante porque, se bem as tecnologias de controle do Estado moderno repousam
sobre prticas escriturais de escrutnio documentos, estatsticas, etc. , no basta estar atento
elas para entender a experincia mais abrangente da estatalidade. Para ser fiel ao argumento
das duas autoras, existem inmeros e diferentes espaos, formas e prticas atravs das quais
se experimenta e, ao mesmo tempo, se desmonta o Estado devido ilegibilidade das suas
prprias prticas, documentos e palavras, como, por exemplo, nas economias do
deslocamento, na falsificao e na interpretao que envolvem a circulao e o uso de
documentos de identidade (Das; Poole, 2008, p. 7). O interessante desta noo de margem
que enfatiza a interao das pessoas com a estatalidade que ela nos permite matizar a ideia
de excluso ao privilegiar uma anlise das configuraes localizadas do que eu denomino
pretenso/desejo de assujeitamento do Estado.
A pretenso/desejo de assujeitamento no cria zonas absolutas de excluso, no
suprime ainda que condicione o espao de ao vislumbrado pelas pessoas, ela consiste,
isto sim, num movimento normalizador que converte a institucionalidade estatal no estopim
de um campo amplssimo de negociao onde cidados, no-cidados e burocracias estatais
desempenham interaes assimtricas, catalisadas pela normativa vigente e atravessadas por
expectativas e exigncias frequentemente conflitantes. A margem, portanto, no descreve o
fora absoluto, mas sim um tipo de exterioridade contgua s dinmicas territorializadas do
poder: no se pode falar sobre Estado sem enunciar a margem, o Estado (tambm) as suas
margens, ou melhor, as margens so o inconsciente poltico do Estado.
Mas as situaes de margem no se reduzem, apenas, ao contexto das interaes entre
trabalhadores/as (trans)fronteirios/as e estatalidade. Elas tambm se multiplicam na esfera da
produo e do comrcio, organizando a mo de obra entre os mercados formais e informais,
entre as atividades laborais espordicas e os empregos com aporte previdencirio, destinados,
em princpio, a quem possui situao migratria regular17. Por distintas razes, que sero
discutidas nos captulos seguintes, tanto a economia capitalista quanto os estados nacionais 17 Interessantemente, o processo de margem que ope, de um lado, mercados informais, e de outro lado,
mercados formais incide, potencialmente, sobre a totalidade do regime de salrios e contratos na faixa de fronteira. Isto se d porque sobre a fora de trabalho estrangeirizada (isto , sem direitos) que se joga, o tempo todo, a redefinio dos dispositivos de explorao cujos efeitos se expandem para todo conjunto do trabalho vivo localmente disponvel. Desta forma, a prtica de recrutar funcionrios sem contrato de trabalho est generalizada e afeta, indistintamente, aos nacionais e aos estrangeiros dos dois lados da fronteira no ncleo urbano de Acegu-Acegu, fundamentalmente, em atividades ligadas ao comrcio e ao trabalho domstico.
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assentam sua vigncia na produo sistemtica de margens e exterioridades. O que est em
jogo neste estudo avaliar como tais exterioridades anlogas e por vezes homlogas, posto
que so produzidas de forma recproca e simultnea pela da estatalidade e pelo mercado se
in-corporam, se fazem corpo na vida dos meus i