natureza humana e liberdade na oratio homini dignitate de pico
TRANSCRIPT
1
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA - CMAF
NATUREZA HUMANA E LIBERDADE NA ORATIO DE HOMINIS DIGNITATE
DE PICO DELLA MIRANDOLA
ELEANDRO FERNANDES DE AZEVEDO
FORTALEZA
2013
2
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE
ELEANDRO FERNANDES DE AZEVEDO
NATUREZA HUMANA E LIBERDADE NA ORATIO DE HOMINIS DIGNITATE
DE PICO DELLA MIRANDOLA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora do programa de Pós-
Graduação em Filosofia do Departamento
de Filosofia da Universidade Estadual do
Ceará, como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre em Filosofia,
sob a orientação do Prof. Dr. José Expedito
Passos Lima.
Área de Concentração: Ética.
FORTALEZA
2013
3
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Estadual do Ceará
Biblioteca Central CENTRO DE HUMANIDADES
Bibliotecário Responsável – Doris Day Eliano França – CRB-3/726
A994n Azevedo, Eleandro Fernandes de. Natureza humana e liberdade na Oratio de Hominis Dignitate de Pico Della Mirandola / Eleandro Fernandes de Azevedo. – 2013.
CD-ROM. 136 f. ; 4 ¾ pol.
“CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm)”.
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual do Ceará, Centro de Humanidades, Mestrado Acadêmico em Filosofia, Fortaleza, 2013.
Orientação: Profa. Dra. Antônia Dilamar Araújo. 1. Natureza humana. 2. Dignidade. 3. Arbítrio humano. 4.
Liberdade. I. Título.
CDD: 100
4
5
6
A Deus, fonte de inspiração deste trabalho, a Quem dedico minha existência.
7
Quem pois não admirará o homem? Que não por acaso nos
sagrados textos moisaicos e cristãos é chamado ora com o nome
de cada ser de carne, ora com o de cada criatura, precisamente
porque se forja, modela e transforma a si mesmo segundo o
aspecto de cada ser e a sua índole segundo a natureza de cada
criatura?
Pico della Mirandola. Discurso sobre a dignidade do homem
8
AGRADECIMENTOS
À Universidade Estadual do Ceará - UECE, em especial ao CMAF, pela oportunidade
de realizar esta pesquisa.
À CAPES pela concessão de bolsa pelos últimos 12 meses e que foram indispensáveis
na aquisição da Bibliografia e dedicação necessárias na composição desta pesquisa.
A meu Orientador Dr. José Expedito Passos Lima, por sua total dedicação e
disponibilidade. Sem essa valiosa orientação jamais seria possível concretizar esta
pesquisa.
A Minha Mãe Franscisquinha Evangelista Alves, pelo amor e acompanhamento em
todas as etapas da minha vida.
Em especial a Renato Silva do Vale, que esteve me ajudando e incentivando durante
todas as etapas deste Mestrado.
A minha Vó Josefa Bento da Silva (In memoriam)
Aos Professores convidados: Profa. Dra. Maria Celeste de Souza e ao Prof. Dr. Luis
Carlos Silva de Sousa pela cordial generosidade em aceitar participar da banca de
defesa desta dissertação. Obrigado pela disposição em ler, avaliar e sugerir.
Ao Amigo Fran Alavina pela ajuda com as Obras, artigos e publicações repassados com
o intuito de ajudar a composição de minha pesquisa. Outrossim, aos Professores do
CMAF, em especial: Dr. Eduardo Triandopolis e Profa. Dra. Maria Teresa Callado, que
foram edificantes para os 2 anos no Mestrado.
Assim como Secretários do Mestrado: Rose Ramos, José Evandro da Costa, Igor
Timbó, que foram de grande ajuda nos momentos em que estive tratando de assuntos
referentes ao mestrado.
Como também o Grupo de Estudo: Metafísica e Estética (UECE), nas pessoas de: Pablo
Tahim pela ajuda nos ajustes finais do texto e Paula Tárcia que sempre esteve pronta
para ajudar no que lhes fosse possível.
Aos Amigos que estiveram comigo nesses dois anos: os mestrandos Andrea Dantas,
Gleyciane Lobo e Jakson Medeiros, assim como Kátia Gardênia e Liliane Severiano,
por terem estado comigo em todas as aulas do Mestrado, e dando os contributos
necessários aos quais me ajudavam a seguir adiante.
Ao Casal Regina e André Haguette, pelo bons conselhos em prol da minha caminhada
acadêmica.
9
RESUMO
Esta dissertação objetiva explicitar a orientação metafísica e ética presente na filosofia
de Pico della Mirandola. Para tanto, adota-se como fonte de investigação a sua Oratio
de hominis dignitate (1486). Nesse empreendimento é preciso uma abordagem do
universo cultural do Humanismo e da filosofia renascentista a fim de uma compreensão
desse momento histórico e filosófico, no qual se inscreve o pensamento desse autor que
expressou a riqueza cultural e filosófica de tal período. Trata-se, antes de qualquer
coisa, de se pressupor a herança da enciclopédica dos saberes pertencentes ao
humanismo renascentista e, ao mesmo tempo, a presença de certo ideal de concórdia
entre doutrinas e culturas diversas na sua filosofia. Daí se adotar a seguinte hipótese
interpretativa para a orientação desta pesquisa: a Oratio realiza o ideal de Pico della
Mirandola pensado nas Conclusiones Nongentae, ou seja, de uma concórdia entre
orientações filosóficas, doutrinais e culturais diversas. Na efetivação desse ideal é
possível identificar não só a pretensão metafísica ou teorética de seu procedimento, mas
também o sentido de certa dimensão ética ou prática, pois a liberdade é pensada como
responsabilidade absoluta do homem. No domínio das várias doutrinas e culturas,
presentes na erudição e na filosofia de Pico della Mirandola, se apresentam aqui: a
qabbalah, a falsafa (escolástica árabe), a escolástica latina, a retórica, a magia, a
astrologia, o hermetismo, o platonismo e o aristotelismo. Ademais, no seu ideal de
concórdia se exprime também um diálogo entre as religiões abraâmicas, ou seja,
Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Por isso a Oratio reúne, em sua constituição, um
universo mais amplo, quer no domínio do saber quer naquele da dignitas homini: a
liberdade humana em Pico della Mirandola. Revela-se assim no procedimento e
formulações de tal filósofo a proposta da multiplicidade das vias: algo relevante no seu
projeto filosófico, pois não se pode descurar em uma investigação sobre o seu
pensamento.
Palavras Chave: Natureza Humana. Dignidade. Arbítrio Humano. Liberdade.
10
ABSTRACT
This dissertation focuses the metaphysical and ethical approach of the philosophy of
Giovanni Pico della Mirandola. The source of this research therefore is his 1486 work:
Oratio De hominis dignitate. This study approaches the humanist culture, and the
philosophy of Renaissance in order to understand the historical and philosophical
moment, in which Pico della Mirandolla's thought is situated expressing the
philosophical and cultural riches of that period. Above all, this work presupposes the
heritage of the knowledge within the Encyclopedia of the humanist Renaissance, as well
as the existence of an ideal of harmony shared between different cultures and doctrines
in Mirandola philosophy. Therefore this research encompasses the following
hypothesis: that Oratio De hominis dignitate accomplishes Pico della Mirandola‟s ideal,
as expressed in Conclusiones Nongentae, and fulfills the harmony shared between
different philosophical approaches, doctrines and cultures. In fulfilling of this ideal of
his, it‟s is possible to identify not only the theoretical or metaphysical procedure, but
also a practical and ethical sense, in which freedom is conceived as an absolute
responsibility of man. Among the different doctrines and cultures in the erudition and
philosophy of Pico della Mirandola, the following are presented here: the qabbalah, the
falsafa (Arabic Scholasticism), the Latin Scholasticism, rhetoric, magic, astrology,
hermeticism, Platonism and Aristotelianism. Moreover, his ideal of harmony also
expresses a dialogue between the Abrahamic religions, namely Judaism, Christianism
and Islam. That is the reason why the Oratio gathers in its constitution, a wider
universe, both in the field of knowledge and in that of dignitas hominis: human freedom
according to Pico della Mirandola. Thus in the thought and procedure of the Mirandola
philosophy there is a proposal of a multiplicity of ways: something relevant in his
philosophical project that cannot be forgotten in an investigation into his thought.
Key-words: Human Nature. Dignity. Human Arbitrariness. Freedom.
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................13
CAPÍTULO I: PICO DELLA MIRANDOLA E A CULTURA DE SEU TEMPO:
HUMANISMO E FILOSOFIA RENASCENTISTA:...............................................20
1.1 Studia humanitis, dignitas hominis e imago Dei no Humanismo renascentista:
pressupostos da Oratio de Pico della Mirandola.........................................................20
1.2 Platonismo, aritotelismo, escolástica no Renascemento e o propósito de Pico della
Mirandola na Oratio..................................................................................................33
1.3 Magia, Astrologia e Qabbalah na cultura renascentista: herança no pensamento de
Pico della Mirandola..................................................................................................41
1.4 Macrocosmos e Microcosmos no Renascimento italiano: herança em Pico della
Mirandola...................................................................................................................49
CAPITULO II: A ORIENTAÇÃO FILOSÓFICA DE PICO DELLA
MIRANDOLA: RELAÇÃO ENTRE ESCOLÁSTICOS E RETÓRICOS,
FILÓSOFOS BÁRBAROS E HUMANISTAS...........................................................57
2.1 Pico Della Mirandola e Bárbaro entre humanistas e escolásticos: estilo, erudição e
fontes do pensamento......................................................................................................57
2.2 Pico e a problemática das Calculationes.................................................................. 70
2.3 As origens da Oratio de Pico della Mirandola: a problemática da Disputatio..........73
2.4 Cultura humanista e Filologia: erudição e procedimento na Oratio.........................81
CAPÍTULO III: NATUREZA HUMANA E LIBERDADE NAS FORMULAÇÕES
DA ORATIO DE HOMINIS DIGNITATE...................................................................89
3.1 Magnum, o Asclepi, miraculum est homo: emblema e fórmula da teorética da
Oratio...............................................................................................................................89
3.2 Deus: architectus e artifex........................................................................................91
12
3.3 Deus-liberilitas e homem-nostrum chamaeleonta: pensar a natureza do homem e sua
liberdade..........................................................................................................................93
3.4.Contempatio e vita cherubinae: os três estados ascéticos.........................................98
3.5 Liberdade como responsabilidade absoluta no homem: distinção no mundo da
criação............................................................................................................................101
3.6 A ascensão sapiencial e a paz universal: filosofia natural, dialética e
teológica.............................................................................................................107
3.7 Iniciação e mistérios sapienciais na Oratio: fontes da prisca theologia e a defesa da
Filosofia.........................................................................................................................112
3.8 Pico ante as objeções contra a disputa romana: tradição e conciliação entre doutrinas
na sua justificativa filosófica..................................................................................................117
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................128
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................134
13
INTRODUÇÃO
A presente dissertação tem como tema a questão da natureza humana e a
liberdade, com base na reflexão sobre a Oratio de hominis dignitate, escrita entre o final
de 1486 e início de 1487, pelo filósofo Pico della Mirandola1. Conforme consideram os
estudiosos, a Oratio de Pico della Mirandola é entre os textos do Renascimento um dos
primeiros e mais relevantes: isso justifica por sua vez a notoriedade de seu autor no
Humanismo renascentista2. Por meio da Oratio, a qual fora escrita para servir de
discurso inaugural ao famoso Debate, que aconteceria em Roma em 1487, Pico della
Mirandola deveria submeter ao consenso dos doutos as suas 900 Teses, ou seja, as
Conclusiones nongentae. No entanto, a não realização do seu intento, em virtude da
oposição dos teólogos da Igreja e a intervenção de Inocêncio VIII, atingiu, igualmente, a
Oratio: em seguida utilizada a sua segunda parte no Prefácio à Apologia, composta em
1487, para defender as treze teses contestadas pela Comissão pontifícia.
Nas Novecentas Teses, ou Conclusiones Nongentaes, Pico sustenta, ao mesmo
tempo, à possibilidade de se integrar na erudição um conjunto de doutrinas e filosofias
diversas, e também opostas, por meio de um princípio metafísico fundamental: o da
presença da verdade em cada orientação filosófica e doutrina, não obstante a
especificidade de cada uma delas. Por conseguinte, o autor buscava nesse Congresso um
debate sobre distintas tradições sapienciais da humanidade, a fim de que se proclamasse
a concórdia entre elas, isto é, a unidade na verdade universal e única. Ademais, Pico
tencionava buscar a verdade para além das distintas escolas ou orientações filosóficas
ou teológicas: ultrapassar divergências superficiais e formais, mas defender ao mesmo
tempo a convergência das diversas fé ou religiões em uma verdade universal, a qual
encontrava no Cristianismo a sua expressão mais perfeita e realizada. Não se pode
deixar de destacar que tal projeto de Pico pretendia, ao ultrapassar os dissensos
superficiais, afirmar a pax philisophorum.
1 Giovanni Pico della Mirandola, Conte di Concórdia, nasceu em Mirandola em 1463, situada na Itália
setentrional e faleceu em Florença em 17 de Novembro de 1496. Representante da nobreza do Norte da
Itália, a sua formação de humanista não é toscana, mas desenvolveu-se nos grandes centros da região em
que nasceu: Bolonha, Pádua, Ferrara, Mântua, Pavia, só mais tarde se estendendo a Paris e Florença (cf.
MIRANDOLA, Giovanni Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem [1486]. Trad. br. Maria de
Lourdes Sirgado Ganho, Lisboa: Edições 70, 2008, pp. XI-XII). 2 Cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. “Apresentação” IN: MIRANDOLA, Giovanni Pico della.
Discurso sobre a dignidade do homem, p.VII.
14
Na Oratio destaca-se a reflexão de Pico della Mirandola acerca da “natureza
humana”, ou seja, a liberdade, demonstrada e especificada como a dignitas homini,
mediante a cultura apreendida de certa herança erudita de seu tempo, a saber, aquela
renascentista, na qual se revelam os elementos importantes para se compreender as
categorias relevantes, que constituem o pensamento piquiano. Vários foram os
historiadores que expuseram as sínteses realizadas no período Renascentista, revelando
assim a complexidade desse momento da cultura e da Filosofia, contribuindo inclusive
para uma compreensão do pensamento desse filósofo. Entre esses estudiosos destacam-
se, nesta pesquisa, Paul Kristeller, Eugenio Garin, Pier Cesare Bori, Cesare Vasoli,
Giovanni di Napoli, Hèlene Védrime3 para se construir uma exposição sobre o período
Renascentista.
Vale aqui ressaltar a forma como foi desenvolvida esta investigação, a fim de se
apreender o labor filosófico realizado pelo pensamento, apresentado por Pico della
Mirandola, e a sua importância, pressupondo-se, ao mesmo tempo, o universo do
Humanismo e da filosofia renascentista. Tal período apresenta uma diversidade de
escritos retóricos, poéticos, literários, filológicos, historiográficos, místicos,
astrológicos, mas também filosóficos e teológicos possuidores de uma forma eloquente,
coerente e literária de ser. São escritos elaborados pelos humanistas e pensadores, que
descrevem a forma de se entender a eloquentia e a sapientia, presente na literatura
retórica e filosófica desse período, de profunda erudição e defesa de um saber
enciclopédico.
A busca pelo saber orientado pela via enciclopédica renascentista visava a um
ideal de concórdia4 em Pico, como apresentam as suas Conclusiones Nongantae. Trata-
se, portanto, do propósito de instauração da paz filosófica. Pico encontrou no
neoplatonismo a possibilidade de unir orientações e culturas tão diversas: Zoroastro,
Hermes Trimegisto, Aglaofemo, Pitágoras, Platão, Plotino, Jâmblico, Proclo e
medievais platonizantes. Daí a sua pretensão de uma síntese filosófica, valendo-se da
contribuição de certa orientação filosófica, ou seja, o neoplatonismo: algo destacado por
estudiosos dessa época como Paul Kristeller, Garin, entre outros. Para esta investigação
adotou-se a hipótese interpretativa de que a Oratio realiza o ideal de Pico pensado nas
3 VEDRINE, Hélene. As Filosofias do Renascimento. Lisboa: Europa –América, 1971, p. 14.
4Cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. “Apresentação” IN: MIRANDOLA, Giovanni Pico della.
Discurso sobre a dignidade do homem, p. XXVI.
15
Conclusiones Nonguentae, ou seja, de uma concórdia entre orientações filosóficas
diversas, doutrinas sapienciais e culturas diferentes. Na efetivação desse ideal pode-se
identificar, quer a sua pretensão metafísica, ou fundamento teorético de seu
procedimento, quer o sentido prático, ou dimensão ética de seu empreendimento, uma
vez que a liberdade é pensada como responsabilidade absoluta do homem.
Para uma abordagem do presente tema dividiu-se este trabalho em três capítulos, a
fim de uma melhor exposição dos argumentos que articulam as questões fundamentais a
serem discutidas. Nesse sentido, o primeiro capítulo [Pico Della Mirandola e a cultura
de seu tempo: humanismo e filosofia renascentista] explicita os elementos que
influenciaram Pico della Mirandola no universo cultural de seu tempo, não descurando
do vinculo com o humanismo renascentista. Tal movimento cultural tinha como meta a
formação intelectual do cidadão, valendo-se dos studia humanitatis, ou enciclopédia de
disciplinas humanistas: gramática, retórica, história, poesia e filosofia moral. Daí não se
tratar de um sistema filosófico, mas de um programa cultural e pedagógico, o qual
destacava certo universo dos estudos. É relevante neste capítulo a compreensão dos
elementos principais da cultura desse período, para uma compreensão do ideal ético
fundamental, presente no projeto filosófico de Pico della Mirandola.
Para tanto se adentrou na dimensão da enciclopédia dos saberes renascentista e
destacou-se a influência desses saberes na formação do pensamento de tal filósofo e do
seu ideal de concórdia. Para a construção desse contexto se recorreu às obras de
estudiosos como Eugenio Garin e Paul Kristeller, considerados clássicos nos estudos
relativos a esse período da cultura e da Filosofia, mas também a outros estudos mais
recentes, realizados hoje na Europa. Considera-se, nesse contexto cultural, a
importância do neoplatonismo renascentista, e a sua influência no uso que faz Pico della
Mirandola em seu projeto filosófico. Em seguida se deteve em uma parte importante da
filosofia piquiana, a qual serviu de estudo e indagação para certos temas: Magia,
Astrologia, Qabbalah. Enfim se abordou as reflexões sobre o homem como expressão
da relação entre macrocosmo e microcosmo: formas de se compreender essa visão de
homem e de sua natureza.
O segundo [A orientação filosófica de Pico Della Mirandola: relação entre
escolásticos e retóricos, filósofos bárbaros e humanistas] abordou as fontes, quer da
16
cultura judaica quer daquela árabe como herança renascentista: elementos constituidores
também da busca do conhecimento no projeto filosófico piquiano. Destacou-se, de
início, a epístola, dirigida por Pico a Ermolao Barbaro, em virtude da reflexão piquiana
sobre os Escolásticos e os Humanistas, ou seja, sobre a relação entre Filosofia e
Retórica, entre sapientia e eloquentia: duas grandes orientações da cultura e do pensar
desse período, a fim de se expor as formulações sobre tal controvérsia. Retornando ao
universo no qual se gestou a obra Oratio de hominis dignitate, de Pico, refletiu-se sobre
a relevância da Filologia e de seu procedimento, nesse período, buscando-se não só
compreender os estudos de Pico, para a elaboração das Conclusiones, mas, em especial,
para se explicitar as origens da Oratio, pois o objetivo de tal obra era a Disputatio.
Chega-se assim, de novo, ao solo da cultura humanista, visando a destacar a dignitas
hominis piquiana mediante um excurso na cultura humanista, ao qual se retornou ao
longo desta pesquisa, a fim de se pensar a seguinte questão: natureza humana e
liberdade na Oratio.
O terceiro capítulo [Natureza humana e liberdade nas formulações da Oratio de
hominis dignitate] aborda, em especial, a obra central desta pesquisa, ou seja, a Oratio,
após a exposição das fontes e dos elementos que auxiliam uma compreensão de sua
gênese. Nesse momento se privilegiaram aquelas categorias fundamentais e
constituidoras do discurso de Pico della Mirandola nessa sua obra. Trata-se aqui de uma
exposição sobre os pressupostos da sua concepção de natureza humana e liberdade, na
qual se identifica o ideal do projeto filosófico de Pico, quer em suas formulações
metafísicas quer éticas. Em tais formulações se revelam, antes de qualquer coisa, o
exímio exercício filológico desse pensador no exame das diversas fontes filosóficas e
doutrinais, articuladas com base na sua defesa e no ideal de certa compreensão da
Filosofia e de sua tradição. Daí a importância que assume o processo de ascese e
contemplação na busca do ideal de uma pax philosophica e de consenso entre doutrinas,
como reconhecimento igualmente da verdade do Cristianismo.
Certo de que não fora Pico della Mirandola precursor da reflexão sobre a dignitas
hominis, porém, foi aliada à cultura humanista e ao Renascimento na expressão da
Oratio. Encontra-se em Pico um universo amplo de tradições: filosóficas, doutrinárias e
religiosas. Isso justifica, sobretudo, a necessidade de, ao longo desta pesquisa, se
distribuir as fontes da filosofia piquiana, reenviando a elementos históricos, culturais,
17
doutrinais, filosóficos e religiosos. Tais fontes e elementos históricos foram destacados,
no primeiro capitulo, quando se abordou o Humanismo renascentista, com a sua riqueza
e complexidade, a fim de que contribuísse com a compreensão da erudição de Pico na
Oratio5. Essa obra faz uso de fontes filosóficas e doutrinais muito diversas, na sua
investigação e preparação para o Debate romano, na busca de estabelecer certo
consenso entre diversos pensamentos.
Já a presença das fontes e elementos religiosos decorre da pretensão de Pico della
Mirandola de propor na Oratio um caminho no qual se apresentam diversas orientações
religiosas, ou seja, relativas à doutrina judaica, cristã e árabe, mas também elementos
oriundos de tradições pagãs, apresentados ao longo da própria Oratio de hominis
dignitate. Daí a relevância da relação entre homem e Deus, apresentada não só com base
na teologia católica, pois a filosofia de Pico della Mirandola é herdeira também da
prisca theologia, presente também no projeto filosófico de Marsílio Ficino. Em tal
empreendimento buscava-se elucidar, sob a influência do neoplatonismo, as origens
remotas de uma religiosidade natural humana, e justificar, ao mesmo tempo, a verdade
da doutrina cristã, um dos principais objetivos de Pico para o aperfeiçoamento e
formação do homem, mas também da compreensão de sua natureza e liberdade6.
Esta dissertação adota, por sua vez a seguinte hipótese interpretativa: a Oratio de
Pico della Mirandola propõe um ideal, já pensado nas Conclusiones Nongentae, de
realizar a concórdia entre orientações filosóficas, doutrinais e culturais diversas, a fim
de realizar a pax philosophica universal. Por conseguinte, proclamar solenemente no
Debate romano a concórdia entre filosofias e doutrinas, ou seja, pressupondo a ideia da
verdade universal e única entre as escolas distintas ou orientações filosóficas e
teológicas. Isso explica também a erudição presente nesse texto e a sua relação com as
orientações filosóficas que conviviam no pensamento dessa época, em particular, a
relação entre platonismo e aristotelismo. Na realização desse ideal pode-se identificar,
de um lado, a dimensão metafísica, ou seja, teorética de seu procedimento e, de outro, a
dimensão ética, isto é, prática, pois a natureza humana vem pensada com base na
liberdade, ou seja, como responsabilidade absoluta do homem.
5 Cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. “Apresentação” IN: MIRANDOLA, Giovanni Pico della.
Discurso sobre a dignidade do homem, p. XLIV. 6 Cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. “Apresentação” IN: MIRANDOLA. Giovanni Pico della.
Discurso sobre a dignidade do homem, p. XLIV.
18
Deve-se destacar que a redação da Oratio, que terminou conhecida como De
hominis dignitate, conheceu várias fases na sua redação, identificadas por Eugenio
Garin. Esse estudioso da obra de Pico della Mirandola descobriu e publicou, por sua
vez, a versão manuscrita da primeira fase, ou seja, aquela redigida nos meses
precedentes de Pico em Perugia e Fratta. Tal texto se reduzia à conhecida primeira
parte, isto é, aquela relativa ao elogio do sujeito humano e à apresentação da concórdia
entre as diversas tradições sapienciais no caminho em direção a Deus. Nesse caminho
de ascese torna-se necessário passar pelas seguintes disciplinas e momentos: o da
dialética, da filosofia natural e da teologia.
Após a publicação das Conclusiones em Roma, datada em 7 de dezembro de
1846, Pico toma conhecimento das primeiras objeções contra o seu projeto, decidindo
assim, por prudência, eliminar algumas passagens da primeira redação: aquelas nas
quais defendia um papel decisivo à falsafa árabe e a necessidade de se ler textos nos
originais árabes, por causa da ausência ainda de traduções latinas ou do risco de
corrupção dos originais pelas traduções. Pico decide também ampliar a Oratio com uma
segunda parte, redigida sempre com base em um estilo humanista, antes que o Papa
Inocêncio VIII decidisse, em 20 de fevereiro de 1487, suspender a disputa, e determinar
uma comissão para identificar possíveis heresias e erros contra a fé presentes nas
Conclusiones. A segunda parte da Oratio apresenta uma defesa geral das Conclusiones
e, ao mesmo tempo, de doutrinas que a compõem, a saber: prisca theologia, magia e
Qabbalah.
A presente investigação se detém, em especial, na Oratio, embora na sua
exposição e desenvolvimento se reportou, de forma breve, a outros textos de Pico della
Mirandola, visando apenas à compreensão ou esclarecimento do seu pensamento,
acrescentando assim algumas questões necessárias, em virtude da complexidade e
erudição do nosso autor. Na pesquisa foi utilizada a tradução bilíngue (latim/português)
da Oratio, publicada pelas Edições 70, e se consultou, quando foi preciso, à tradução
bilíngue (latim/italiano), publicada pela Editora Ugo Guanda. Ademais se buscou
conservar, no texto desta Dissertação, os títulos de obras e alguns conceitos na língua
original, ou seja, no latim, a fim de se aproximar esta exposição ao discurso de Pico
della Mirandola, mas também por razões filológicas e filosóficas, pois no Humanismo e
nas filosofias desse período, o cuidado com o rigor filológico se apresentou como
19
fundamental, sem descuidar também da natureza humana e da liberdade do homem:
categorias expressas na Oratio de Pico della Mirandola7 e tema fundamental desta
dissertação.
7 Na Oratio, dois temas se misturam: o da indeterminação da condição humana e o de sua liberdade.
Criado para servir de intermediário entre o criador e suas criaturas, o homem não pode ser reduzido a
nenhuma de suas qualidades particulares. Pico não pretende, no entanto, ter descoberto essa posição
privilegiada que, segundo ele, já era assinalada pelos persas (cf. RABIN, Sheila J. Pico acerca da Magia
e da Astrologia. IN: DOUGHETRTY, M. V (org.). MIRANDOLA, Pico Della: novos ensaios, Madras,
p.185). Mesmo se essa atribuição de paternidade da ideia seja em grande medida fictícia, o mais
importante é a descrição do homem como uma criatura especial, que ocupa um lugar único na criação.
Resta compreender o sentido dessa afirmação (cf. BIGNOTTO, Newton. Considerações sobre a
antropologia de Pico Della Mirandola, p. 141).
20
CAPÍTULO I
PICO DELLA MIRANDOLA E A CULTURA DE SEU TEMPO: HUMANISMO
E FILOSOFIA RENASCENTISTA
Para se compreender a dimensão da enciclopédia dos saberes renascentistas, é
importante adentrar no conhecimento não só literário-cultural do período, mas também
naquele dos studia humanitatis, considerando assim contextos como o do Humanismo
renascentista8, a fim de se expor as influências da cultura clássica e medieval na
Renascença italiana9. Entre os séculos XIII a XV destacam-se a presença de vários
saberes em que o homem assume um lugar relevante, ou seja, como tema e interlocutor
desses saberes renascentistas, entrelaçados por ideias e doutrinas, que compõem a
literatura desse período. Tais saberes são necessários, portanto, à compreensão inicial
dos pressupostos, quer histórico e cultural quer filosófico e doutrinário da Oratio de
Pico della Mirandola. Daí este capítulo assumir uma dimensão de propedêutica
hermenêutica, a qual contribui para a compreensão da Oratio e exposição do ideal
teórico e prático de seu autor. Nesse sentido já se constitui aqui certa orientação de
leitura e interpretação da filosofia de Pico della Mirandola, ou seja, como uma
expressão, no pensamento, da complexidade cultural de uma época, isto é, aquela
renascentista.
1.1 Studia humanitis, dignitas hominis e imago dei no Humanismo renascentista:
pressupostos da Oratio de Pico della Mirandola
O Humanismo clássico do Renascimento italiano foi, sem dúvida, um fenômeno
significativo na história da cultura ocidental. No universo do pensamento filosófico, o
8 Etimologicamente, o termo vem do ciceroniano “humanista”, que significa “erudição” e “cultura”, mas
também comportamento correto e civil e ainda dignidade. Já os termos, tão usados até pouco tempo,
studia humanitatis ou humanae litterae significavam exatamente o estudo das obras dos Antigos, com a
finalidade de formar-se o estilo humanista de falar, escrever e também de viver. Historicamente, concebe-
se o Humanismo como um movimento cultural que, ao se voltar para os grandes autores da cultura
clássica, ou seja, grega e romana, visava-se, de um lado, a imitar as formas literárias e artísticas deles e,
de outro, tendia-se a descobrir e apropriar-se dos conteúdos e valores humanos transmitidos por esses
modelos (cf. NOGARE, Pedro Dalle. Humanismos e Anti-Humanismos. Introdução à Antropologia
Filosófica. Revista Ampliada, Petrópolis: Vozes, 1994, p. 56). 9Para Pedro Nogare: “Da Itália a Renascença se propagou se difundiu, embora um pouco tardiamente
também em outras nações da Europa. Na Alemanha, a primeira nação a respeitar os novos ideais, A
Renascença estende-se ao longo do século XV e XVI” (cf. NOGARE, Pedro Dalle. Humanismos e Anti
Humanistas. Introdução à Antropologia Filosófica. Revista Ampliada. Petrópolis: Vozes 1994, p.5).
21
Humanismo10
não se distinguiu tanto pela originalidade das ideias, mas pelo fermento
que introduziu nos velhos esquemas de pensamento. Daí se pretender aqui uma
compreensão do papel assumido pelos estudos clássicos no Renascimento e na filosofia
de Pico della Mirandola como algo fundamental, mediante um excurso no movimento
humanista italiano. O termo humanista11
, elaborado no auge do período renascentista,
derivou de um termo mais antigo, a saber, studia humanitatis, ou disciplinas
humanistas. Esse étimo foi usado no sentido geral de instrução liberal ou literária por
pensadores como Marco Túlio Cícero e Auro Gélio, e apropriado pelos doutos italianos
do final do século XIV. Desse modo é importante se destacar que o Humanismo
renascentista esteve sempre vinculado a um domínio particular profissional, isto é, ao
dos studia humanitatis, 12
o qual influenciou as outras áreas da vida intelectual desse
período.
Na primeira metade do século XV, pode-se dizer que os studia humanitatis
principiaram a se constituir como um ciclo de disciplinas doutas: gramática, retórica,
história, poesia e filosofia moral. Nessa época, o estudo de cada uma dessas disciplinas
comportava a leitura e a interpretação dos antigos escritores latinos e, em menor
medida, os gregos. Ademais, há algo já de moderno no Humanismo renascentista13
, na
medida em que a expressão studia humanitatis destacava o homem e os seus valores.
Por isso a dignitas hominis era um tema predileto de alguns humanistas renascentistas,
10
De acordo com Jan Teger: “O apogeu da Idade Média, ou a Època das Universidades, todo o século
XIII com figuras expressivas como São Tomás, São Boaventura, Siger de Brabarita; é o período de
máxima influencia da Filosofia Árabe, exercida por meio de traduções de Aristóteles” (cf. REEGER. Jan.
Geegen Teger. Apostila Curso de História da Filosofia Antiga A Época Helenística e Patrística, p.14). 11
Para Kristeller, se quisermos compreender o papel desempenhado pelos estudos clássicos no
Renascimento, devemos começar pelo movimento humanístico. O termo “humanismo” esteve ligado,
durante mais de cem anos, ao Renascimento e aos seus estudos clássicos, mas em tempos recentes tal
fato tornou-se fonte de uma notável confusão filosófica e histórica. Na linguagem atual, quase todo aquele
que se relaciona com valores humanos é chamado “humanista” e, por conseguinte, grande variedade de
pensadores religiosos ou anti-religiosos, científicos ou anticientíficos apresenta pretensões por aquela que
se tornou uma etiqueta de mérito um tanto quanto evasivo (cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e
Pensamento do Renascimento [1954]. Trad. port. Arthur Morão, Lisboa: Edições 70, 1995, p. 15). 12
Deve-se aqui destacar que o termo bonae artes designava, para os humanistas do século XIV e XV,
todo o âmbito do saber, em cujo contexto era atribuía-se à atividade literária uma função determinante. O
Humanismo reconhecia, de fato, uma função de guia às artes do trivium, a saber, gramática, retórica e
dialética, ao passo que identificava naquelas do quadrivium, ou seja, aritmética, geometria, música e
astronomia, uma posição subalterna em relação às primeiras.
De acordo com Pedro Nogare: “Da Itália a Renascença se propagou, se difundiu – embora um pouco
tardiamente também em outras nações da Europa. Na Alemanha, a primeira nação a respirar os novos
ideais, a Renascença durou pouco. Floresceu nos últimos anos pela Reforma de Lutero. Na França, a
Renascença estende-se ao longo do século XV e XVI. Na Inglaterra e na Espanha, algumas décadas
depois, entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do século seguinte” (cf. NOGARE,
Pedro Dalle. Humanismos e Anti-Humanismos. Introdução à Antropologia Filosófica, p.58).
22
como Pico della Mirandola, mas não certamente de todos. No entanto, convém se
destacar, que o modo por meio do qual aqueles valores e ideais humanos podiam se
realizar era o dos estudos clássicos e literários, isto é, humanistas.
O Humanismo renascentista não constituiu um movimento de tendência
eminentemente filosófica ou um sistema filosófico, por se tratar, ao contrário, de
[...] um programa cultural e pedagógico que valorizava e desenvolvia
um importante, mas limitado, sector dos estudos. Este sector teve
como seu centro um grupo de matérias que não concerniam
essencialmente aos estudos clássicos ou à filosofia, mas ao que grosso
modo se pode designar como literatura 14
.
Contudo, depois dos meados do século XV, a influência do saber humanista
difundiu-se, ultrapassando os limites dos studia humanitatis, atingindo assim vários
domínios do saber renascentista, igualmente, à Filosofia, mas também diversas ciências.
Esse acontecimento deveu-se:
ao prestígio conseguido pelas disciplinas humanísticas, mas também
ao facto de que quase todo estudioso recebia uma formação
humanística nas escolas secundárias, antes de realizar uma instrução
profissional em qualquer outra disciplina universitária15
.
Além disso, alguns humanistas começaram a perceber que um estudo rigoroso e
aprofundado da Filosofia exigisse ser acrescentado aos studia humanitatis: algo que
explica igualmente certa particularidade do pensamento de Pico Della Mirandola, ou
seja, a da presença de noções filosóficas de origem diversa. Destaca-se, porém, que o
Humanismo renascentista constitui apenas um aspecto, embora muito importante, do
pensamento e da cultura do Renascimento. Do mesmo modo é preciso dizer que a
Retórica não significa o elemento chave, com base na qual permite explicar o
Humanismo e o pensamento renascentista.
Que ela tivesse uma grande importância é algo inegável, mas não se pode reduzir
o Humanismo renascentista e menos ainda o pensamento e a cultura renascentista à
Retórica. Esta última era apenas um dos cinco studia humanitatis, cultivados pelos
humanistas, cuja obra de gramáticos, de historiadores, de poetas e de moralistas não
pode ter se originado certamente da retórica deles, não obstante às vezes se apresentar
inseparável dela. Ademais, a história da Teologia, da Jurisprudência, das ciências e da
14
KRISTELLER, Paul. Tradição clássica e pensamento do Renascimento, p. 17. 15
Ibidem, p. 26.
23
filosofia renascentista não se limita ao Humanismo, embora tenha sofrido a influência
de muitas orientações dessa cultura.
Os humanistas, portanto, começaram já no século XIV a identificar o campo de
estudos deles com o nome de “estudos humanos”, ou seja, studia humanitatis e studia
humaniora, como se afirmou anteriormente, com base em exemplos extraídos de certas
frases de Marco Túlio Cícero e Auro Gélio. Certamente, havia na retomada desse nome
uma nova pretensão e um novo programa, “mas correspondia a um conteúdo que há
muito existia e que, antes, fora indicado com nomes mais modestos de gramática,
retórica e poesia” 16
. Isto pode ser exemplificado com a definição do famoso cânon para
as bibliotecas, composto por Nicolau V, na sua juventude, para Cosimo de Medici.
Depois de ter indicado muitos livros de teologia, em seguida as obras
de Aristóteles in logicis, in physicis, in metaphysicis e in moralibus, os
comentadores árabes e gregos de Aristóteles, outras obras filosóficas
traduzidas do grego e obras de matemática, ele continua como segue:
„de studiis autem humanitatis quantum ad gramaticam, rhetoricam,
historicam et poeticam spetcat ac moralem [...]17
.
Pode-se ainda mencionar outras passagens nas quais se apresentam a dimensão e
constituição enciclopédica dos studia humanitatis presente em um texto jesuítico de
1591: “studia humanitatis, hoc est grammaticae, historiae, poeticae e rhetoricae” 18
.
Tais exemplos esclarecem uma questão relevante para a compreensão do Humanismo
renascentista, mas descurada pelos historiadores modernos:
[...] os humanistas, pelo menos na Itália e antes do século XVI, não
pretenderam substituir a enciclopédia medieval das ciências por uma
nova, mas, pelo contrário, estavam conscientes de que a sua matéria
de estudo ocupava um lugar bem definido e limitado, no interior do
sistema contemporâneo dos estudos19
.
Contudo, os humanistas tendiam a destacar os seus saberes em oposição a todas
outras ciências e a invadir o domínio destas, embora não negando a validade das demais
ciências. Aqui se revela a posição bem definida dos studia humanitatis, expressa no
novo termo “humanista”, que parece ter surgido, conforme os estudos sobre esse
movimento cultural, durante a segunda metade do século XV e difundindo-se durante o
século XVI. Para os estudiosos desse período, o étimo studia humanitatis foi cunhado
16
Ibidem, p. 116. 17
Ibidem, p. 117. 18
Ibidem. 19
Ibidem, p. 118.
24
com base nos termos medievais legista, jurista, canonista e artista, indicando assim o
docente de studia humanitatis. Daí o termo humanista, no seu sentido restrito, ter sido
criado durante o Renascimento, e humanismus uma elaboração dos historiadores do
século XIX. Na acepção clássica desse étimo, os humanistas foram os professores e os
representantes de certo ramo de estudos, e o humanismo não representava, por sua vez,
a totalidade da ciência do Renascimento. Ainda no âmbito de uma compreensão desse
momento e da especificidade de sua cultura é importante destacar que o Humanismo
renascentista não surge como uma “nova filosofia” em oposição à “velha escolástica” 20
,
pois “a escolástica italiana surgiu cerca do final do século XIV, isto é, no mesmo
período em que emergiu igualmente o humanismo italiano, e as duas tradições
desenvolveram-se uma ao lado da outra, ao longo e depois do Renascimento” 21
. Essas
tradições tiveram campos distintos em conformidade com os dois ramos de ciências: “o
humanismo no campo da gramática, da retórica e da poesia e igualmente, até certo
ponto, no da filosofia moral; a escolástica, a lógica e a filosofia natural” 22
.
Não por acaso, dois dos grandes polos de difusão da cultura renascentista foram
cidades italianas. No Renascimento,23
a presença da enciclopédia humanista também
influenciou, ao se difundir para além dos domínios dos studia humanitatis, certa
orientação filosófica e, igualmente, várias ciências. Isto ocorreu não só em virtude do
prestígio conseguido por esse movimento cultural, mas também porque todo douto
recebia uma formação humanista, ou seja, a das humaniora: Literatura, Filosofia e
Retórica. Se os letrados do século XV, envolvidos nessa renovação, foram conhecidos
como “humanistas”, as suas referências estavam presentes no discurso e na escrita,
decorrentes, sobretudo, tanto dos estudos relativos aos textos latinos como dos textos
gregos.24
Ao contrário da escolástica Medieval de pensadores como São Tomás (1225-
20
Cf. KRISTELLER, Paul. Tradição clássica e pensamento do Renascimento, p. 122. 21
Ibidem. 22
Ibidem. 23
Para Kristeller: “O Renascimento é um período muito complexo que apresentou, como a Idade Média
ou qualquer outro período, uma grande quantidade de diferenças cronológicas, regionais e sociais.
Embora as diferenças culturais entre a Itália e a Europa do Norte fossem acentuadas durante a alta Idade
Média, não menos do que no Renascimento, no século XV a Itália, juntamente com os Países Baixos,
conseguiu uma posição de hegemonia cultural na Europa ocidental, que jamais tivera na época
precedente” (cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p.12). 24
Ainda de acordo com Kristeller, para valorizar os contributos dos humanistas renascentista ao estudo
dos clássicos devemos distinguir também dois campos: o do latino e do grego. No campo dos estudos
latinos existiu uma ligação muito mais estreita com os interesses retóricos e práticos, e também com as
tradições doutas da Idade Média, embora na Itália, berço do humanismo renascentistas, essas tradições
tenham sido menos cultivadas do que nos países nórdicos, que durante o período que precedeu
25
1274), Duns Escoto (1265-1308) entre outros, o Humanismo25
tem como referência a
dignitas hominis, investigando a excelência de sua natureza: apresentada pelos filósofos
para compor os alicerces que tem como destaque o homem26
.
A dignitas hominis27
foi um tema filosófico que se aprimorou, com o passar dos
séculos28
, com filósofos que recorreram à leitura e ao estudo de textos clássicos
relativos a várias tradições, entre elas, hermetismo e neoplatonismo. A origem desse
termo remonta à tradição retórica, ou seja, um dos saberes pertencente aos studia
humanitatis, saberes orientados também para o estudo da eloquência a fim de uma
formação cultural. Trata-se de uma orientação em conformidade com a Retórica,
detentora da concepção do orador ou do direcionamento da vida prática. Portanto, a
expressão dignitas hominis tem a sua origem e expressão no universo da tradição
retórica e, em especial, no pensamento de Cícero, pois se inscreve em uma visão do
imediatamente o Renascimento foram declinando e igualmente a França (cf. KRISTELLER, Paul.
Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p.20). 25
Segundo T. A. Lara: “O Humanismo foi, no começo, um movimento literário. Tornou-se, depois, um
movimento cultural global. Enfatizava ele o valor da razão humana. Os europeus que tinham vivido,
durante a Idade Média, com uma cultura muito baseada em princípios religiosos, fundados na Bíblia,
agora começavam a valorizar outro. Aquele tipo de cultura que se fundamenta na razão. Os medievais,
quando queriam justificar os valores fundamentais da civilização, recorriam às letras divinas (a Bíblia).
Agora, no fim do século XIV e inicio do século XV, o homem burguês, que tenta reelaborar os
fundamentos da vida sociopolítica, vai apelar para razão” (cf. LARA, T. A. A Filosofia Ocidental do
Renascimento aos nossos dias. Petrópolis: Vozes, p. 28). 26
No entender de Kristeller: “Na perspectiva histórica, a Renascença representa um despertar quase
improviso de uma sociedade – a sociedade italiana, para sentimentos, interesses e valores antes quase
desconhecidos. Embora o interesse pelas obras e autores da Antiguidade Clássica houvesse desaparecido
completamente, pelo menos nos mosteiros, onde monges dedicados e pacientes trabalhavam
ininterruptamente para transcrever, corrigir e guardar os antigos manuscritos. Os conventos se tornaram
os únicos depósitos seguros de livros, não havendo naquele tempo bibliotecas nem públicas nem
particulares” (cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, pp.58-59). 27
É certo, segundo Nogare, que já o Cristianismo e a filosofia medieval haviam descoberto e proclamando
claramente a dignidade e o valor do homem, porém, certas afirmações, no domínio da Filosofia,
permaneceram isoladas e abstratas. Na Renascença, a dignidade e o valor do homem se tornam relevantes
para a especulação filosófica e a literatura humanista. Na exaltação dos platônicos se destacam Marcílio
Ficino (1433-1499), e Pico della Mirandola (1463-1494) - os dois principais filósofos do século XV, que
se encontraram com os famosos humanistas: Poggio, Salutati, Manetti, Platina, Poliziano, Palmieri,
Alberti, Landino, etc. Todos celebram o homem como essência intermédia entre o mundo da matéria e o
mundo do espírito e como resumo e miniatura do universo: microcosmo. Ademais, o homem participa do
divino e só em Deus atinge a plenitude da perfeição e felicidade (cf. NOGARE, Pedro Dalle.
Humanismos e Anti-Humanismos. Introdução à Antropologia Filosófica, p. 63). 28
De acordo com Garin, entre os séculos XIV e o XVI, houve uma mudança de equilibro, os
“humanistas”, e com eles os artistas, os artesãos, os homens de ação, substituíram as trilhas da
especulação medieval por novas exigências, diante das perguntas que até então haviam permanecido sem
respostas assim, abrindo novas e imprevisíveis possibilidades. De uma forma de entender a realidade,
forma inteiramente inédita e desconcertante, novas ideias e novas hipóteses floresceram: assim Magia e
ciência, poesia e filosofia misturavam-se e auxiliavam-se, numa sociedade atravessada por inquietações
religiosas e por exigências práticas de todo gênero (cf. GARIN, Eugenio. Ciência e Vida Civil no
Renascimento Italiano. (1993) Trad. Cecília Prada. São Paulo: Unesp, 1996, p.11).
26
homem em ação e na vida civil. Por conseguinte, há um sentido de conveniência, o qual
não implica somente uma relação externa ou uma conformidade mais ou menos
acidental entre dois elementos, mas uma espécie de “necessidade” que torna essa
relação indispensável. Nesse sentido, àquele que possui dignitas se impõem certos
deveres em relação entre os homens 29
.
Na disposição da dignitas há um liame entre o mérito íntimo, interno e, ao
mesmo tempo, um reconhecimento externo e civil deste último: a dignitas não dá
prioridade a um em detrimento do outro, mas condensa o caráter inseparável de ambos
os momentos, a saber, interioridade e exterioridade. Por isso a dignitas, no universo do
discurso moral, mantém um estreito vínculo com o officium. Pode-se aqui elencar
alguns significados desse termo na tradição retórica, desde a conveniência do homem
político às funções que ocupa, ou deseja adotar, à posição ocupada pelo nobilis naquilo
que é conveniente à sua situação na vida civil, ao sistema de relações entre os homens,
ou seja, os deveres que se impõem a quem possui a fides em função das capacidades e
ocupações exercidas por eles. Portanto, a dignitas, no discurso político, reenvia a todas
as disposições civis do nobilis30
.
Deve-se aqui destacar, porém, a originalidade da abordagem de Cícero ao
articular dignitas e virtus, considerando-os como equivalentes, pois a dignitas se vincula
a honestum. A partir de Cícero o termo dignitas assume o valor filosófico oposto à
voluptas, conforme escreve em seu De officiis. Cícero situa a moral no universo humano
e não do cosmo, e o homem de ação substitui também o homem contemplativo, pois a
preocupação com o senso comum assume uma dimensão decisiva. Tal obra ciceroniana
é um tratado de moral prática, isto é, estuda a moral prática do vir bonus. Cícero
distingue, porém, duas formas de dignitas: dignitas sapientis e dignitas hominis. A
primeira se reporta à magnanimitas, de origem estoica grega, e aqui corresponde ao
desprezo das coisas exteriores, e permite estabelecer a diferença entre os homens e não
simplesmente entre homem e animal. Os aspectos exteriores desta remetem a uma
realidade interior, ou seja, a uma autêntica virtude do sábio. Ao lado desta, Cícero
29
Cf. OLIVIERI, Achille (org). Immagini dellùomo e Transformazioni della storia del Rinascimento. Per
uma intepretacione Del moderno, Milano: Unicopli, 2000, pp.55 -57. 30
Cf. OLIVIERI, Achille (org). Immagini dell‟uomo e transformazioni della storia del Rinascimento,
p.58.
27
menciona a dignitas hominis, pertencente a todos os homens, pois define a natureza
humana, mas de maneira diversa da superioridade permitida pela razão31
.
É com base nessa dignitas que se estabelece a quarta e última virtude
denominada decorum, ou seja, o que decet ao homem. O decoroso representa o que
conforme a preeminência do homem, naquilo por meio do qual a sua natureza difere do
resto dos seres vivos. Por isso os homens são por natureza de uma grande dignidade e
superioridade sobre o resto dos seres vivos. O decorum é o valor moral que caracteriza a
dignitas hominis. Se a dignitas sapiens cria uma hierarquia na vida civil, a dignitas
hominis assegura, ao contrário, a existência em uma comunidade humana, pois é algo
que se pode verificar em todos os homens, uma vez que pertence à natureza humana.
Tal dignitas possui vários valores, quer civil, ou seja, o de se comportar em relação aos
outros, quer moral prático, isto é, o de se comportar na vida civil em função da
constância, medida, temperança e respeito, para assegurar a possibilidade de uma
comunidade32
.
Porém, a nossa questão é a dignitas hominis no humanismo renascentista. Pode-
se sustentar, de início, certa filiação entre a Antiguidade, em particular, Cícero e o
Renascimento. Contudo, a excelência do homem, pensada no século XVI, não encontra
a sua fonte na dignitas hominis ciceroniana, mas na afirmação de que a razão é aquilo
que funda a dignidade e a superioridade do homem sobre os outros seres vivos. As
consequências dessa grandeza, em virtude da presença da ratio no homem contribuem
para fornecer um conjunto de elementos fundamentais e constitutivos para a acepção de
dignitas hominis no século XVI. Todavia há outro elemento justificador de tal acepção,
a saber, a liberdade do homem: algo mais adequado à compreensão da dignitas hominis
no Renascimento. Portanto, a razão, como capacidade de conhecer, é aquilo que é
emanado de Deus no homem. Por meio desses elementos, e combinado à liberdade,
tem-se assim a possibilidade de se compreender o sentido da dignitas renascentista e
preparar uma abordagem, mais adiante, da acepção de Pico della Mirandola33
.
31
Cf. OLIVIERI, Achille (org). Immagini dell‟uomo e transformazioni della storia del Rinascimento,
p.59. 32
Cf. OLIVIERI, Achille (org). Immagini dell‟uomo e transformazioni della storia del Rinascimento,
p.59. 33
Cf. OLIVIERI, Achille (org). Immagini dell‟uomo e transformazioni della storia del Rinascimento, p.
69.
28
Tal concepção de dignitas hominis, concebida pelo Renascimento, surgiu
apenas, conforme atestam alguns estudiosos, no curso do século XII, sem deixar aqui de
se destacar igualmente a presença dessa ideia na literatura patrística dos séculos
precedentes. Existem, portanto, três textos fundamentais, de acordo com os estudos, que
certificam a história dessa acepção de dignidade: o De anima de Hugues de Saint-
Victor, o In Cantica canticorum de Guillaume de Saint-Thierry e a carta 104 de São
Bernardo. Os três escritos explicam a dignitas hominis, por ter sido o homem criado à
imagem de Deus, ou seja, como narra o Genesis bíblico: “Deus criou o homem à sua
imagem, à imagem de Deus ele criou”34
. Aqui é importante se destacar, em consonância
com a temática deste trabalho, aquela acepção que ultrapassa, na tradição dessa ideia, ou
seja, a ideia apenas da ratio. Trata-se do princípio relativo ao livre arbítrio, o qual
prepara, durante o século XV, a noção de dignitas hominis em Pico della Mirandola:
acepção expressa pela primeira vez por São Bernardo e de origem estoica35
.
A dignidade humana por excelência é o livre arbítrio, porque eleva o homem
acima de todos os outros animais, conferindo-lhe o poder de dominá-los e submetê-los
às suas necessidades. Porém, o livre arbítrio é inseparável de outra qualidade, a saber, a
“ciência”. De nada serviria o livre arbítrio se o homem não pudesse por meio da razão
conhecê-lo e compreendê-lo. Isto permitiu a São Bernardo reafirmar a importância da
razão, a qual explica e justifica a diferença entre o homem e o animal. Ademais, essa
dignitas está acompanhada obrigatoriamente pelo conhecimento Deus, pois o desejo de
descobrir o Autor da dignidade do homem e de unir-se a Ele é a virtude. Nesse sentido,
os três atributos da natureza humana não podem assim ser separados: a dignitas
hominis, sinônimo de livre arbítrio, permanece inseparável da razão36
.
A ligação entre o que viria a ser o Humanismo renascentista e o “espírito cristão”
contrapôs o ideal do antropocentrismo do homem37
. O modelo teológico38
, destacado na
34
Ver aqui Gênesis, I, 26. 35
Cf. OLIVIERI, Achille (org). Immagini dell‟uomo e trasformazioni della storia del Rinascimento, p.59. 36
Cf. OLIVIERI, Achille (org.). Immagini dell‟uomo e trasformazioni della storia del Rinascimento, pp.
69-70. 37
Segundo escreve Pedro Nogare: “o entusiasmo incontido pela Antiguidade, a criatividade privilegiada
da Renascença, não são movimentos gratuitos, pois têm uma orientação profunda, um impulso
fundamental que os estimula, ou seja, o interesse pelo homem. Enquanto na época precedente a atenção
total era voltada a Deus e o homem era visto unicamente em função de Deus, na Renascença o homem,
sem negar a Deus, se apercebe um lugar neste mundo: uma dignidade tarefa sua. O homem da
Renascimento não permaneceu, apenas constatando, mas buscou realizar concretamente a sua dignidade e
29
Idade Média e vigente na transposição antropológica que pôs o homem em uma
dimensão mais ampla de sua natureza, possibilitou assim aos humanistas a se
destacarem na perspectiva da busca pelo conhecimento acerca de uma investigação e
compreensão da natureza humana, ligada pela especulação ontológica. A vida encarada
como ociosa e contemplativa, foi identificada, por muitos pensadores do humanismo,
como uma concepção da Antiguidade Medieval, pois a busca pelo autoconfinamento se
fazia necessário e justo a tal busca no Medievo. Tratava-se de um contributo para a
sapientia, evidenciados na Teologia Cristã39
.
Já na Antiguidade pode-se identificar a reflexão acerca da “natureza humana em
sua dignidade” 40
, ou seja, um marco sobre o homem no universo cultural da
Antiguidade pagã41
. Porém, a ontologia sofrera, na continuidade, abordagens mais
precisas e ainda mais elevadas com Francesco Petrarca (1304-1374), Marcílio Ficino
(1433-1499), grande mestre de Pico della Mirandola (1463-1463), e também com o
humanista Pietro Pomponazzi (1462-1525), além de uma vasta obra de literatura
astrológica e alquímica, com direcionamentos de origem platônica e hermética. É nesse
cenário humanista renascentista que se destaca Giovanni Pico della Mirandola, com
formação de humanista realizada em Bolonha, Pádua, Ferrara, Mântua, Pavia, mais
tarde se estendendo até Paris e Florença. Com conhecimento eclesial da Igreja Católica
Romana, estudou dois anos em Bolonha Direito Canônico.
capacidade. E quanto mais experimenta, tanto mais permanecia convencido” (cf. NOGARE, Pedro Dalle.
Humanismos e Anti-Humanismos. Introdução à Antropologia Filosófica, pp. 61-62). 38
Lara argumenta que a cultura humanística, pelo contrário, partia de outra premissa: a de ser possível
urgente e proveitoso levar até as últimas consequências a força da racionalidade e da natureza humanas,
prescindindo da revelação e da graça divinas. Não se tratava, porém, de renunciar a Deus. Para maior
parte dos humanistas, tratava-se de pedir a Deus para esperar um pouco, na sala de visitas, até que a razão
acabasse o seu trabalho. Era um novo mundo a ensaiar (cf. LARA, T. A. A Filosofia Ocidental do
Renascimento aos nossos dias, p. 32). 39
Para Felipe Fernandes: “Os grandes escritores místicos dos séculos XIV e XV eram avidamente lidos
pelos religiosos enclausurados, mas a popularidade deles dependia de oferecerem caminhos espirituais
para Deus que não dependessem de guardar as horas canônicas e, certamente, que não dependessem de
nenhuma iniciação na teologia especulativa” (cf. FERNANDES, Felipe Armesto. O Cristianismo e o
Mundo 1500-2000, Rio de Janeiro: Record, 1996, p.37). 40
Cf. VALVERDE, Antonio José Romera. Ver. Filos, Aurora, Curitiba, V.21,n.29 p.457-480, jul/dez,
2009. 41
De acordo com Valverde: “Se prescindidas as páginas iniciais do Gênesis e outras passagens do Antigo
Testamento, encontra-se tanto no mito de Prometeu quanto no Coro da tragédia Antígone, de Sófocles. Se
a Filosofia grega clássica esteve centrada no homem, em Platão e em Aristóteles os temas centrais de suas
reflexões versaram, em última instância, sobre o homem e a alma, a excelência e a felicidade humana, não
prescindindo os problemas acerca da physis. No mesmo passo, os primeiros estoicos pensaram o universo
como comunidade de deuses e de homens” (cf. VALVERDE, A. J. R. “Aportes a Oratio de Hominis”
Dignitate de Pico Della Mirandola, p. 460).
30
Em tal fase de sua vida, Pico della Mirandola decidiu abandonar os estudos de
jurisprudência42
e assim se dedicar à Filosofia: algo que ocorreu ainda muito cedo em
sua vida. Em 1479 foi a Ferrara estudar os clássicos do humanismo, sobretudo, sob a
orientação de Battista Guarino (1434-1513), grande humanista leitor de autores gregos e
latinos, aprofundando-se, igualmente, nos estudos dessas línguas clássicas43
. Entre 1480
e 1482, em Pádua, Pico della Mirandola realizou os seus estudos de Filosofia e
Teologia.
A escola de Pádua se mantinha ainda fiel ao pensamento aristotélico,
interpretado pela tradição averroísta,44
a qual defendeu o neoplatonismo e o
aristotelismo dos ataques de filósofos árabes, em uma leitura já não mais medieval,
porém, humanista. De 1485 e 1486, em Paris, Pico della Mirandola havia explorado
todo labor filosófico, expresso em suas obras como o Heptaplus (1480), De ente uno
(1480), Oratio de hominis dignitate (1484): anos de estudo e reflexão para escrever
sobre outros saberes, justificando-os assim como necessários. Parte da sua formação foi
realizada por meio da formação humanística, adquirida e posta, sobretudo, em suas
Conclusiones sive Theses DCCCC.
O encontro de Pico della Mirandola com o neoplatônico Marsilio Ficino45
, por
meio da orientação humanista, se fizera importante por haver Ficino buscado à união
42
Para Sirgado: Antes de ser atraído pela Filosofia, como saber universal, fundamentador e fundante, que
propicia a obtenção de um conhecimento mais aprofundado acerca da realidade humana e acerca das
coisas do mundo. Tal entusiasmo pela Filosofia leva-o a abandonar Bolonha – centro universitário
escolástico de grande tradição no domínio das leis- e a dirigir-se a outros centros que lhe permitissem
adquirir certa formação neste seu outro e novo interesse (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes.
“Apresentação” IN: MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do Homem, p.XII). 43
De acordo com Maria de Lourdes Sirgado: “Ferrara era, nessa altura, uma cidade prestigiada de Battista
Guarino, grande humanista, uma cidade prestigiada pelo seu labor endereçado para o estudo das
humanidades. Nela se veiculava o interesse por uma nova forma de cultura. Nas aulas de grego e de latim,
entre muitos outros autores antigos, liam-se os originais de Platão e Aristóteles” (cf. SIRGADO, Ganho
Maria de Lourdes. “Apresentação” IN: MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do
homem, p.XII). 44
Talyta Carvalho comenta: “Há, pelo menos, uma escola aristotélica que é proveniente da Idade Média,
para citar apenas a mais conhecida e que permaneceu forte também na Renascença, a dos chamados
“averroistas”. È evidente que havia outras, como a “alexandrista” (assim nomeada por seguir os
comentários do grego Alexandre de Afrodísia). Contudo, destacaremos apenas a escola averroísta por ser
ela a que mais notadamente se opõe ao platonismo característico do Renascimento” (cf. CARVALHO.
Talyta. Fé e Razão na Renascença. Uma Introdução ao Conceito de Deus na Obra Filosófica de Marsílio
Ficino. Filosofia Atual, São Paulo: 2012, pp. 43-44). 45
De acordo com Maria de Lourdes Sirgado: “A Academia, de que Marcilio Ficino é a alma, suscita a
sua reflexão sobre Platão e leva-o a intuir algo que será um dos tópicos centrais da sua meditação
filosófica, ou seja, o acordo, ao limite, entre Platão e Aristóteles, aspecto que é o vestíbulo de uma sua
tese central, a saber: a questão da concórdia” (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. “Apresentação”
IN: MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. XIV).
31
entre o pensamento de Platão e a Doutrina cristã, sem se descurar aqui também do tema
da dignitas hominis. Ficino aborda essa temática em sua obra Theologia platônica: algo
também significativo na reflexão de Pico Della Mirandola. Alguns comentadores
descrevem que na Academia platônica de Careggi46
, a do mestre Ficino, se reuniam não
apenas filósofos, mas também poetas e homens políticos: acadêmicos denominados
ainda de frates de Platão.
Ao integrar-se ao círculo platônico, Pico della Mirandola não abdica as próprias
posições, pois afirmava haver passado de Aristóteles à Academia platônica, não na
qualidade de desertor, mas de explorador. Durante essa estada em Florença, Pico
apresenta certos resultados em relação à sua formação intelectual, pois até então havia
se dedicado tanto aos studia humanitatis, ou seja, ao cultivo da Retórica e ao exercício
da poesia. A proximidade com Ficino, na Academia de Careggi, representava a escolha
definitiva da vida contemplativa, da Filosofia, a qual Ficino esteve sempre vinculado,47
chegando então até Pico della Mirandola como fonte de incessante investigação.
Pico della Mirandola buscou nos antigos, por meio da literatura filosófica,
teológica, os saberes necessários à sua formulação, como indicam as suas Teses, criando
uma síntese entre as doutrinas e saberes com base em um ideal de concórdia. Tratava-
se, como já aludido, de proclamar a convergência das diversas filosofias e religiões na
verdade universal, reconhecendo cada uma delas, como original, particular e mais ou
menos perfeita. Em virtude da imensidão da verdade, Pico della Mirandola reconhece
existir algo de insigne em cada escola que não é comum às outras. Portanto, a primeira
parte da sua Oratio apresenta o elogio da dignitas hominis e a concórdia das diversas
tradições sapienciais no caminho em direção a Deus, segundo os três momentos
46
O que Arthur Fied procura demonstrar em seu artigo “The Platonic Academy of Florence” é que Ficino,
de fato, possuía um círculo de estudos (ou uma escola), ao que tudo indica localizada em Florença, cujo
tema principal em discussão era o respeito aos ensinamentos platônicos. Ficino habitualmente se
reportava a esse círculo como sua academia ( cf. CARVALHO. Talyta. Fé e Razão na Renascença. Uma
Introdução ao Conceito de Deus na Obra Filosófica Marsílio Ficino, p. 67). 47
No entender de Josep-Ignasi Saranyana: “Marcílio Ficino nasceu em Figline, nas proximidades de
Florença, no seio de uma família modesta. Após estudar em Florença, Pisa e Bolonha, Cosme de Médici
tomou-se sob sua proteção. Além de traduzir todos os diálogos de Platão, também verteu as Enéadas de
Plotino, e algumas obras de Homero, Hesíodo, Orfeu, Pitágoras, Jâmblico, Porfírio, Proclo, Dionisio
Pseudo-Areopagita, etc. Sua obra prima intitula-se Teologia platônica ou a imortalidade das almas e a
felicidade eterna. Influenciado por Jerônimo Savonarola (1452-1498), ordenou-se sacerdote em 1473, e
chegou a ser cônego. Suas atividades centraram-se na Academia Platônica, da qual foi co-fundador.
Passaram por essa Academia alguns dos estudiosos mais célebres da época, como Pico della Mirandola e
outros” (cf. SARANYANA, Josep-Ignasi. A Filosofia Medieval. Das Origens Patrísticas à Escolástica
Barroca. São Paulo: 2006, p.484).
32
relativos à dialética, à filosofia natural e à Teologia. Ademais, o perfil do sujeito
humano, traçado nessa obra, revela, igualmente, a tentativa de realizar essa concórdia na
forma como Pico articula certa tradição filosófica-teológica e retórica.
O século XV fora marcado pelas transformações oriundas do século XIV, com o
percurso histórico do fim da Idade Média e surgimento do Renascimento, o impacto
fora muito forte com o saber dos humanistas. No limiar dos saberes Humanistas, ou
humaniora, Pico della Mirandola indagava a respeito dos saberes necessários do
pensamento humano, com base na ideia de recorrer aos saberes, doutrinas e às
formulações postas pelos pensadores que o antecederam, servindo de inspiração ao
estudo desses saberes que, coforme Pico, detinham uma verdade: Astrologia, Magia
natural, hermetismo, Qabbalah, todos assegurados na sua busca pelo ideal de
concórdia. Isso é parte integrante e fundamental do projeto filosófico de Pico della
Mirandola, no qual se destaca o acordo e limite entre demais pensadores e problema
filosófico, ao qual Giovanni Pico veio procurar se alinhar.
O projeto pensado por Giovanni Pico, de reunir todos os saberes necessários em
uma só conclusão, segundo se apresenta nas Conclusiones, defendia que deveria existir
uma fonte e um centro por onde partia ou chegava o conhecimento. Se para os demais
filósofos a discórdia continuava sendo o preço de divergências no pensar, no filósofo de
Mirandola isso se fazia diferente na tentativa da concórdia. Tratava-se dos doutos
saberes48
e, nesse sentido, a concórdia significava unir os saberes aos quais estavam
presentes no cerne do pensamento renascentista italiano, mas que provinham de
doutrinas, as quais pretendia o filósofo desvendar e fazer a distinção precisa delas. Para
tal feito era necessário recorrer à verdade, apreendida como universal e transcendente.
Pico della Mirandola tinha entre os seus objetivos a investigação das esferas
existentes do pensamento, e o Neoplatonismo era a base sobre a qual a tradição
filosófica o conduzia à investigação. Para Pico, as teses neoplatônicas e os filósofos de
48
Segundo Lourdes Sirgado: “Este acordo foi inicialmente intuído em relação à filosofia de Platão e
Aristóteles, mas embora indicado na Oratio, só mais tarde encontrará a sua plena tematização com a sua
obra De Ente et Uno, em 1490. Esta sua secreta convicção estendeu-se a todos os filósofos, a todas as
correntes, e a Disputa Romana seria precisamente o lugar privilegiado, no entender de Pico della
Mirandola, para demonstrar esta tese. Ele acalentava a ideia de um gigantesco esforço conciliador e
promotor da concórdia universal entre todos os filósofos. Tal concepção pode ser compreendida em várias
instâncias: a da prisca theologia, a da unidade das religiões judaica e islâmica e cristã, a da unidade do
pensamento humano e, por fim, a da unidade da verdade” (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes.
“Apresentação” IN: MIRANDOLA, Pico Della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. XXVI).
33
destaque que lhe antecederam, encontravam-se no pensamento filosófico de Marsílio
Ficino. O conhecimento dos neoplatônicos49
e dos demais pensadores levou-lhe a
conduzir melhor a sua pesquisa. É nessa esfera do pensar que o erudito de Mirandola
formulou a unidade doutrinal, a qual defendia como imprescindível para o pensar
humano, como viés do que ainda faltava. Para tanto ele se debruçou não só sobre outros
filósofos, mas adentrou também na raiz da prisca theologia, pesquisando a Qabbalah
hebraica que, segundo a sua interpretação e orientação, harmonizava-se com a essência
de verdade.
Para Giovanni Pico, o intuito de lidar com o tema da verdade, suscitava algo de
imutável e universal, verificando assim o uso da Filosofia e das tradições culturais como
aproximações da verdade. Quanto aos argumentos a serem abordados nesse seu projeto,
é importante explicitá-los aqui: dialética, moral, filosofia da natureza, metafísica,
teologia, magia, Qabbalah. Deve-se ainda considerar, em conformidade com o seu
propósito de unidade doutrinal, as seguintes tradições culturais: caldeia, hebraica, árabe,
grega e latina. O método de utilização das tradições filosóficas e culturais, adotado por
Pico della Mirandola, justificava bem o seu intento de universalidade de problemática e
temática.
Ademais, essas doutrinas não representavam no seu pensamento “palavra do
passado”, pois desaparecidos os autores permaneciam ainda, cada uma a seu modo e em
forma diversa, as tradições de ideias associadas a seus problemas. Essas doutrinas e
tradições se apresentavam na proposta de Pico, quer da disputa quer da orientação, na
forma de um concílio ecumênico, tanto em relação às ideias apresentadas em unidade
quanto em relação à suprema instituição do Medievo e do Renascimento. Tratava-se,
portanto, da possibilidade de conciliação entre diversos pensadores, destacada também
na busca de conciliação entre diversos pensamentos.
1.2 Platonismo, aristotelismo, escolástica no Renascimento e o propósito de Pico
Della Mirandola na Oratio.
49
De acordo com Maria de Lourdes Sirgado: “A orientação platônica tal como se apresentava na época de
Marsílio Ficino. Daí em certa cadeia relativa à tradição, teríamos um esquema apoiado nas teses
neoplatónicas: Zoroastro, Hermes Trimegistro, Aglaofemo, Pitágoras, Platão, Plotino, Jâmblico, Proclo e
todos os medievais platonizantes. Marsílio Ficino considerava-se o último anel dessa cadeia” (cf.
SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. “Apresentação” IN: MIRANDOLA, Pico Della. Discurso sobre a
dignidade do homem, p. XXVII).
34
Sobre essas orientações filosóficas, pode-se aqui considerar, de início, ser lugar
comum e simplista o argumento recorrente que se associava nos textos, Aristóteles ao
Medievo e Platão ao Renascimento, pois os estudos modernos sobre o aristotelismo
renascentista demonstraram uma constante vitalidade e, ao mesmo tempo, um
desenvolvimento criativo da escola filosófica aristotélica até o século XVII. Também
entre os humanistas se verificou, não obstante serem identificados como admiradores de
Platão, um profundo interesse pelo aristotelismo, articulado a figuras como Leonardo
Bruni, Giorgio Trapezunzio, Giovanni Argiropulo entre outros. Além disso, não se pode
esquecer que os estudiosos do platonismo medieval contribuíram, igualmente, para uma
mudança da nossa visão do Medievo50
.
Portanto, não é correto se afirmar que o Renascimento seja a época de Platão,
mas isso não implica a afirmação de que o Renascimento e, sobretudo, o primeiro
Renascimento não represente um momento de grande importância na história da
tradição platônica. Por conseguinte, o contraste e a influência recíproca entre
platonismo e aristotelismo ocupou um lugar fundamental em alguns períodos do
pensamento ocidental, e aqui é preciso se destacar a presença dessas orientações no
Humanismo e na filosofia renascentista. Nesse sentido defende-se, com Kristeller, que
apesar da forte rebelião contra a autoridade de Aristóteles:
A tradição do aristotelismo continuou a ser muito forte durante todo o
período do Renascimento, e em certo sentido, em vez de declinar,
reforçou-se. Por outro lado, o platonismo teve as suas raízes e os seus
precedentes medievais e, não obstante a sua profundidade e o seu
indiscutível vigor, também durante o Renascimento o lugar e o
alcance exacto da sua influência esquiva-se de algum modo a uma
definição precisa51
.
Não obstante a influência de Aristóteles, no Renascimento estava claramente
ligada a uma tradição constituída na Idade Média tardia, ao passo que o platonismo foi
considerado pelos seus representantes e pelos seus contemporâneos como renascer.
Estas circunstâncias podem explicar a razão por que é relevante uma abordagem da
influência de Aristóteles antes de Platão. Principiando-se aqui com o platonismo, é
possível sustentar que aqueles que adotaram a orientação platônica destacaram e
desenvolveram doutrinas ou passagens diversas das obras de Platão. Por conseguinte,
segundo escreve Kristeller:
50
Cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, pp.112-113. 51
KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p.32.
35
Nem uma só noção, de quantas costumamos referir a Platão, foi
sustentada por todos os platônicos, não a existência transcendente das
formas universais, não o conhecimento direto destas entidades
inteligíveis, não o amor nem a imortalidade da alma e muito menos o
seu esforço de república perfeita52
.
Daí pensadores, identificados como platônicos, poderem apresentar filosofias
muito diversas ou nem sequer uma única doutrina especifica. Uma orientação
renascentista da tradição platônica pressupõe uma história do platonismo e uma
complexidade das interpretações e tradições que dependem em parte do pensamento e
escritos de Platão.
Todavia, não é aqui o lugar de se explicitar todo o percurso da tradição platônica,
pois se trata do momento renascentista, não obstante os pressupostos históricos dessa
tradição influenciar também o Renascimento. Portanto, a influência da tradição
platônica pode ser encontrada desde pensadores estóicos como Panécio e Possidônio.
No começo da era cristã uma espécie de “platonismo popular” e eclético buscou vários
elementos em Aristóteles e, sobretudo, no estoicismo, suplantando o ceticismo na
Academia ateniense. Tal movimento denominado também de platonismo médio
formulou uma doutrina atribuída a Platão, mas não encontrada em seus diálogos, de que
as ideias transcendentes ou formas inteligíveis são conceitos de uma inteligência divina.
Esse platonismo apresentou muitos elementos comuns com o neopitagorismo,
pertencente aos primeiros séculos da era cristã, e falsificou, no entender de Kristeller,
[...] várias obras platonizantes sob o nome de Pitágoras e dos seus
primeiros discípulos, e com os Herméticos, um círculo de teólogos
que floresceu em Alexandria e compôs um corpus de escritos
atribuídos à divindade egípcia Hermes Trimegisto53
.
O platonismo popular forneceu também os elementos doutrinais para Fílon e,
depois dele, a Clemente e Orígenes, Padres da Igreja alexandrina, para fundir os
ensinamentos da religião bíblica com a filosofia grega. No século III d. C., o platonismo
foi retomado em Alexandria por Amónio Sacas e por seu discípulo Plotino. Com Proclo,
um dos últimos da Academia de Atenas, “o neoplatonismo atinge a sua perfeição mais
sistemática e também mais esquemática” 54
. Nesse período, portanto, o neoplatonismo
forneceu os termos e os conceitos filosóficos aos sucessivos teólogos da Igreja grega e,
52
KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p. 53. 53
KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p. 56. 54
Ibidem.
36
em particular, aquele pensador a quem se atribui grande parte do misticismo cristão, a
saber, Dionísio Areopagita.
Quanto à Idade Média, a prevalência de Platão sobre Aristóteles, na patrística
grega, foi justificada justamente com a orientação neoplatônica e a tendência de
harmonizar Platão, mais do que Aristóteles, com a teologia cristã. Daí no século XI,
“Miguel Psellos reanimou o interesse pela filosofia platônica e estabeleceu um
precedente importante, ao combinar com ela os Oráculos caldeus atribuídos a
Zoroastro, e o Corpus Hermeticum”55
. Já entre os Árabes, a posição de Platão se
apresentou inferior a de Aristóteles e assim distinta da Antiguidade ou da Idade Média
bizantina. Entre os Árabes, “o corpus de Aristóteles foi quase inteiramente traduzido
para Árabe, só poucas obras de Platão, como a República, as Leis e o Timeu, foram
tornadas acessíveis juntamente com um certo número de outros escritos do
platonismo”56
.
Ademais é importante se considerar ainda que os Árabes buscaram muitas
concepções platonizantes, justamente entre os comentadores aristotélicos, e possuíam
dois apócrifos aristotélicos: Liber de causis e a Theologia Aristotelis baseada em Proclo
e Plotino. O renascer cultural italiano não ocorreu em contraste com a Idade Média em
geral ou com a francesa, pois, de acordo com Kristeller,
[...] muitos produtos típicos do Renascimento italiano podem
interpretar-se como o resultado de influências medievais retardadas,
recebidas da França, mas absorvidas e assimiladas por uma diversa
tradição indígena mais restrita, mas persistente. Isto vale não só para a
Comédia de Dante, mas também para as Representações Sacras da
Florença do século XV e para os poemas cavaleiresco de Ariosto e de
Tasso 57
.
Nesse sentido, o Renascimento italiano pode ser avaliado não só em contraste
com a Idade Média francesa, mas também com aquela italiana, uma vez que a Itália
renascentista e a sua civilização não se originaram diretamente das tradições mais
modestas da Itália medieval. Há, portanto, inúmeros precedentes medievais, quer na
literatura humanística quer na epistolografia e oratória desse período58
. Nesse período,
quer o pensamento árabe quer hebraico apresentaram elementos que serão retomados
por filósofos renascentistas como Marsilio Ficino, mas, em particular, por Pico della
55
Ibidem, p.57. 56
Ibidem, p.58. 57
Ibidem, p. 98. 58
Cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e pensamento do Renascimento, pp. 99-108.
37
Mirandola em seu propósito presente nas Conclusiones, mas também na Oratio. Na
Idade Média, alguns filósofos árabes escreveram paráfrases das obras platônicas. De
acordo com Kristeller, Alfarabi escrevera uma
[...] paráfrase das Leis de Platão, e o fiel comentador aristotélico
Averróis compôs igualmente uma paráfrase da República de Platão.
Sob a influência da tradição árabe, o pensamento medieval teve uma
forte corrente neoplatõnica. Avicena (Ibn Gabirol), cuja Fonte de Vida
exerceu, em versão latina, uma forte influência, em versão latina,
pertence também a esta tradição, e a peculiar forma do misticismo
hebraico medieval, conhecida como Cabala, contém muitas ideias
derivadas do neoplatonismo e de outras filosofias antigas59
.
O neoplatonismo60
obteve ainda êxitos61
e não deixou de se apresentar também
entre os Humanistas. Por exemplo, Francesco Petrarca não tinha familiaridade com as
obras platônicas, mas foi, conforme Kristeller comenta:
O primeiro douto ocidental a possuir um manuscrito grego de Platão,
ele foi enviado por um colega bizantino e no seu ataque a autoridade
de que gozava Aristóteles entre os filósofos do tempo, ele usou pelo
nome de Platão62
.
Quanto às questões específicas deste momento da exposição, pode-se argumentar
que “o platonismo renascentista, não obstante os seus estreitos laços com o Humanismo
clássico, não ser considerado simplesmente uma parte ou um rebento do movimento
humanístico” 63
. Isto porque, o platonismo se expressa como movimento filosófico e
não simplesmente erudito ou literário e, nesse sentido, Marsílio Ficino, pensador do
platonismo renascentista, articulou a herança filosófica e religiosa medieval aos
59
Ibidem, p.58. 60
No entender de Jan Reegen: “As origens do Neoplatonismo devemos buscar na misteriosa figura de
Amônio Sacas (ou Çakra, ou Sakkas), o carregador de sacos (?), ex-cristão, ou nascido de família cristã
(fim do século II). Durante a sua vida dedicou-se à Filosofia, ou seja, centrou a sua vida na prática e
exercício da inteligência em uma vida de ascese, pois queria ter Deus como mestre. “ Eis o homem que eu
procurava”, teria dito Plotino, através de Porfirio. Encontramos em Amônio Sacas alguns temas a respeito
da origem do mundo, a imortalidade da alma, temas esse de grande importância na evolução do
Neoplatonismo e que manifestam a tentativa de conciliar o Platonismo e Aristotelismo” (cf. REEGEN,
Jan G. J. Apostila Curso de História da Filosofia Antiga. A Época Helenística e Patrística, p. 24). 61
Para Jan Reegen: “O Neoplatonismo anuncia-se uma “fase preparatória” em que se renova a atenção às
teses de Pitágoras, como também acontece um renascimento dos pensamentos principais do Platonismo.
Agindo assim a redescoberta da ideia e realidade do incorpóreo, do imaterial na base da doutrina de
Monade, da Díade e dos Números. Ademais, há uma nova ênfase do homem como espírito, revestido de
imortalidade, cuja finalidade é a definitiva separação do mundo dos sentidos e a subsequente união com
o divino: daí a figura de Pitágoras recebe uma “superacentuação” como paradigma, como ideal dos
filósofos. Além disso, ocorre uma releitura dos escritos de Aristóteles, sobretudo aqueles esotéricos. O
misticismo que se encontrava nos escritos do Hermetismo, também influenciou o pensamento da época”
(cf. REEGEN, Jan.G.J. Apostila Curso de História da Filosofia Antiga. A Época Helenística e Patrística,
1993, p. 20). 62
Cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p.62. 63
Cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, pp.62-63.
38
ensinamentos do platonismo grego, ou seja, propôs a tentativa de uma nova síntese. Ele
ofereceu ao Ocidente a primeira versão completa em latim das obras de Platão e Plotino
além de alguns escritos de neoplatônicos.
É precisamente com Ficino que se apresenta no Renascimento a ideia da prisca
theologia64
, presente também em certas reflexões de Pico della Mirandola, oriunda da
concepção de Pléton, acerca de uma tradição teológica pagã anterior a Platão, e traduziu
ainda obras atribuídas a Pitágoras e a Hermes Trimegisto. A sua Academia platônica de
Careggi, com os seus cursos e discussões, “foi durante muitos decênios um centro
institucional cuja influência se difundiu por toda a Europa, graças às suas cartas e aos
seus outros escritos” 65
. Nesse contexto da Academia florentina, Pico della Mirandola,
em muitos aspectos do seu pensamento, expressava certa distinção em relação à
orientação filosófica de Marsilio Ficino, não obstante participar das reflexões
empreendidas nessa Academia. No pensamento de Pico, que não atingiu uma plena
maturidade em virtude de sua morte prematura, se apresentava, segundo escreve
Kristeller:
A tentativa de realizar uma síntese entre platonismo e aristotelismo. A
sua curiosidade estendia-se à língua e ao pensamento árabes e
hebraicos e, como primeiro estudioso ocidental que teve familiaridade
com a Cabala hebraica, realizou a importante tentativa de conciliar a
Cabala com a teologia cristã e de associar à tradição platônica66
.
Essa orientação e a presença desses elementos, no projeto filosófico de Pico della
Mirandola, se encontram bem expressos na Oratio, pois esclarecem igualmente a sua
intenção de defesa das teses presentes nas Conclusiones. Contudo, é inegável a relação,
de um lado, com o Cristianismo e, de outro, com as concepções pré-cristãs, relativas à
divindade e à natureza humana. Não há dúvida também de que Pico della Mirandola
estudara filosofia escolástica nas Universidades de Pádua e Paris.
Marsílio Ficino e Pico della Mirandola não tinham, porém, dúvida quanto à
ortodoxia da fé deles. Os Diálogos platônicos ajudaram para que esse platonismo se
solidificasse em Florença, como revela as atividades da Academia de Careggi. Enquanto
64
Cf. CARVALHO. Talyta. Fé e Razão na Renascença. Uma Introdução ao Conceito de Deus na Obra
Filosófica Marsílio Ficino, p.75. 65
Cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p. 63. 66
Cf. KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p. 64.
39
a cidade de Florença cultivava o platonismo, Pádua67
primava, no entanto, pelo
aristotelismo averroísta, pois a época de maior empenho acadêmico sobre o platonismo
se dissipou com a intensificação de um movimento de reacionarismo religioso
predominante da Itália, do qual Ficino e Pico foram fortes receptores desses preceptores.
Nesse sentido, podemos destacar a chegada do frade Girolamo Savonarola em Florença,
durante esse período, trazido inclusive por Pico della Mirandola e motivo, conforme se
defende entre os estudiosos, da sua morte por envenenamento pelo seu mordomo fiel à
orientação política dos Medici.
Pico della Mirandola junto com alguns humanistas (Cusano, Bessarion, Ficino)
esteve na versão de restaurar a metafísica platônica, mesmo não sendo um neoplatonista
e muito mais um aristotélico. Ainda na Oratio, porém, Pico defendia que a concórdia
exigia reconduzir o aristotelismo ao platonismo, mudança que ocorrera apenas com a
sua obra De ente et uno (1480). No entanto, ele aprofundou os seus estudos das obras
neoplatônicas no período de sua estada em Florença68
. Nos últimos anos, portanto, Pico,
que apreciava e apreciará cada vez mais a filosofia das escolas, considerava a filosofia
de Aristóteles não como a Filosofia, mas, ao contrário, um dos sistemas filosóficos
elaborado pelo homem para se descobrir a verdade, conforme indica a Oratio.
Por conseguinte, nesse período de preparação das Conclusiones, a influência
platonizante era ainda muito acentuada, mas também a busca de textos e autores
67
Na mesma época em que Florença contemplava o renascimento do platonismo, a Universidade de
Pádua assistia a uma séria tentativa de releitura aristotélica com base nas categorias de Averróis e de
Alexandre de Afrodísia. Era inevitável a rivalidade entre ambas as escolas, radicadas em cidades tão
próximas. Ademais, os esforços apologéticos dos acadêmicos florentinos contrastavam abertamente com
o caráter horizontalista das especulações em Pádua. Embora as argumentações dos paduanos tivessem
sempre um fundo crítico comum, nem por isso os seus mantenedores foram menos crentes que seus
colegas florentinos. Destaquemos Pietro Pomponazzi e o Cardeal Caetano, pois permaneceram em Pádua
durante vários anos como professores daquela Universidade (1492-1497), influenciando-se, igualmente, d
forma recíproca (cf. SARANYANA. Josep.Ignasi. A Filosofia Medieval. Das Origens Patrística à
Escolástica Barroca, Trad. br. Fernando Sales, Ramon Llull, São Paulo, 2006 p. 486). 68
De acordo com Scheila Rabin: “Quando ainda era pouco mais que um jovem, Pico della Mirandola se
aprofundou nas obras de Platão, Plotino, Proclo e outros neoplatonistas,, nos quase 15 meses que passou
em Florença, entre a primavera de 1484 e o verão de 1485, onde adquiriu uma compreensão
extraordinária da metodologia, dos postulados centrais e das distinções metafísicas dos platônicos. Essa
educação platônica foi sucedida por nove meses em Paris (de julho de 1485 até março de 1486) e
posteriormente associada a um plano enciclopédico, ambicioso e essencialmente aristotélico. Tal plano
reuniu um conjunto de proposições egípcias, caldeias, gregas, hebraicas (incluindo as cabalísticas),
patrísticas e escolásticas (incluindo as árabes), em vez de argumentos ou provas como tais: uma coleção
que por fim reuniu 900 conclusões, sendo 900 o símbolo numerológico do retorno extático da alma a si
mesma no estudo filosófico, para as defender em Roma” (cf. RABIN, Sheila J. Pico Acerca da Magia e
da Astrologia, IN: DOUGHERTY, M.V. (org.) Pico della Mirandola: novos ensaios [2008]. Trad. br.
Getulio Schanoski Jr. , São Paulo: Madras, 2011, p. 99).
40
distantes e desconhecidos da tradição latina na reconstrução de uma visão mais ampla:
algo que motiva, quer Ficino quer Pico della Mirandola à formulação de uma síntese
mais elevada, na medida em que eles não rechaçaram nenhuma das precedentes e
significativas experiências culturais e religiosas. Disso resulta a relevante e atenta
valorização de ambos os autores de certas concepções presentes nessas doutrinas e
culturas: i) a magia natural concebida como uma visão do mundo em que cosmo se
apresenta ordenado e onde tudo tem uma correspondência; ii) a fé nos conhecimentos
astrológicos; iii) o significado atribuído à prisca theologia e iv) igualmente a
antiquissima sapientia dos poetas teólogos da Antiguidade, dos oráculos caldeus e dos
hinos órficos como dos dicta de Zoroastro e dos magi persianos. Tais elementos,
oriundos dessas doutrinas e culturas, estão também presentes na primeira redação da
Oratio. Nesse contexto cultural e filosófico renascentista não se pode deixar de
sustentar também que a grande corrente da literatura astrológica e alquimista, presente
no século XVI,
pressupõe igualmente noções como alma e mundo ou as faculdades e
afinidades interiores das coisas celestes, elementares e compostas,
noções que remontam a fontes árabes também largamente utilizadas
nestes ambientes, mas que foram buscar nova dignidade e novo vigor
aos escritores platônicos gregos e modernos e às obras herméticas a
eles dedicadas 69
Trata-se de algo intrigante para o período da Renascença, quando se considera as
fontes, ou seja, aristotélicas e platônicas, sob as quais se apoiam a reflexão nesse
período. Pode-se ainda sustentar que alguns filósofos aristotélicos renascentistas
recorreram aos argumentos do Fédon de Platão ou à Teologia Platônica de Ficino, para
defender a “imortalidade da alma”, como é possível se identificar no pensamento de
Nifo. Ademais, até os filósofos mais naturalistas e entre os aristotélicos renascentistas, a
saber, Pomponazzi e Cremonini, “se sentiram inclinados a aceitar as doutrinas
platônicas específicas” 70
. Daí ser possível argumentar que Pico della Mirandola e
Marsílio Ficino permaneceram no domínio filosófico da cultura europeia do século
XVI, e na busca deles da paz filosófica, na renovada Academia platônica de Careggi,
contribuíram para o renascimento das primeiras doutrinas sapienciais, todas
pertencentes ao gênero humano, desde Zoroastro à exegese dos mistérios bíblicos.
69
KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento, p.66. 70
Ibidem.
41
1.3 Magia, Astrologia e Qabbalah na cultura renascentista: herança no pensamento
de Pico della Mirandola
A Magia, a Astrologia e a Qabbalah se fizeram presentes no Renascimento,
como ciências ou doutrinas que assumiram certas funções práticas na vida cultural e
civil renascentistas. O Renascimento não seria o que foi sem a presença da Astrologia.
Nesse momento histórico não só da Filosofia, mas também da cultura, a magia natural
contribuiu com as investigações sobre o comportamento da natureza e para os estudos
de seus segredos e de sua relação com o homem, agrupando assim na práxis o
desenvolvimento integral das esferas internas espirituais e ocultas do homem.
Consideradas ciências ocultas, a Magia, a Astrologia eram disciplinas
importantes da filosofia natural. Se, de um lado, a Astrologia estudava os efeitos dos
movimentos de corpos celestes, de outro, a Magia buscava uma maneira de manipular a
natureza. É certo que Pico della Mirandola tivera contato também com essas disciplinas
em seus estudos humanistas: algo que revela também o seu conhecimento teórico de
ambas. Nesse sentido, o humanismo contribuíra para a investigação de tais saberes por
meio de traduções e estudos de textos antigos. Ademais, a Astrologia,71
e a Astronomia
eram ensinadas em três currículos de Universidades frequentadas por Pico della
Mirandola, naqueles da Matemática, Filosofia e Medicina72
. Conforme afirmam os
estudiosos, o Renascimento não seria completo sem a presença da Astrologia, pois além
de ensinada como disciplina, pertencia também ao horizonte cultural desse momento da
história humana. A tradução de Ficino dos textos herméticos contribuiu para a cultura
do Humanismo, de forma relevante, e para a aceitação inclusive da magia natural.
71
Segundo Scheila Rabin: “Diferentemente da Astrologia, a Magia como uma busca intelectual não fazia
parte do currículo das universidades. Era, porém, geralmente estudada em relação aos temas da Filosofia
e da Medicina. Alberto Magno e Tomás de Aquino escreveram a respeito da magia, e o pseudoaristotélico
Segredo dos Segredos era a parte aceitável do corpus aristotélico nas universidades” (cf. RABIN, Sheila
J. Pico acerca da Magia e da Astrologia IN: DOUGHETRTY, M. V (org.). Pico della Mirandola: novos
ensaios, p.180). 72
Deve-se aqui destacar: “A leitura sobre a cultura desse período vem confirmar uma impressão
generalizada: a de que quando decresce o interesse pela Astronomia ganha terreno a Astrologia. Por isso
podemos afirmar que a história da doutrina das estrelas tende a transformar-se na história da astrologia,
dos seus defensores e dos seus detratores. O artigo começa por evocar o grande nome da astronomia
antiga, Ptolomeu de Alexandria (que viveu no séc. II d. C., no tempo dos Antoninos), remetendo ao
Tetrabiblos I, onde se afirma que a ciência dos corpos celestes se divide em duas partes: a das formas que
adquirem os movimentos dos astros (astronomia) e a da observação das mudanças que as suas
características naturais produzem nas coisas (astrologia)”.
Cf.http://espacoastrologico.org/2011/09/15/astrologia-e-astronomia-das-origens-ao- Renascimento.
42
Além da Astrologia e da Magia destaca-se também no Renascimento o interesse
pela Qabbalah. Nas descobertas de textos relativos a saberes antigos, Pico della
Mirandola investigou73
não só a Astrologia e a Magia, mas, igualmente, a Qabbalah.
Inclinado a tudo que no mundo há de misterioso e oculto, ele dirigiu o seu olhar para
além da natureza fenomênica das coisas. Pico defende a Qabbalah junto com a Magia,
pois a sua tese era a de que ambas ajudam a confirmar a divindade de Cristo. Se a
Magia se apresenta, na sua reflexão, como uma simples ciência prática e natural, que
não interfere na revelação, a Qabbalah, por sua vez, é tida como uma disciplina e
também um segundo caminho de revelação divina. Já a Astrologia se apresentava como
natural e judicial74
, e muitos pensadores criticaram a ação da Astrologia, tanto que
semearam em seus escritos dúvidas75
quanto a sua credibilidade.
Pico della Mirandola considerava, porém, a fé cristã como o seu pressuposto, ao
buscar encontrar a verdade escondida nas diversas tradições sapienciais e religiosas. Por
isso, a sua abordagem dessas tradições pressupunha distintamente a orientação cristã.
Ele usou as letras hebraicas no nome de Jesus para confirmar inclusive uma ideia
cristã76
. No contexto das Teses cabalistas, pertencentea às Conclusines nongentae, Pico
della Mirandola apresentou com temas mágicos quatro teses que tratam da Astrologia77
.
73
De acordo com Scheila Rabin: “A tradução de Ficino dos textos herméticos foi à iniciativa mais famosa
dentre elas, Entretanto, apesar de importante, o humanismo não foi o único, nem necessariamente o mais
importante, facilitador da aceitação da magia” (cf. RABIN, Sheila J. Pico acerca da Magia e da
Astrologia. IN: DOUGHETRTY, M. V (org.). Pico della Mirandola: novos ensaios, p.181) 74
Par Scheila Rabin: “A Astrologia natural estudava os corpos celestes e fazia previsões principalmente
nas áreas do clima e da medicina. A astrologia judicial lidava com predições de ocorrências humanas, em
vez de ocorrências naturais, envolvendo tanto as sociedades quanto os indivíduos, baseados nas
configurações dos céus. Entretanto, não havia uma linha de demarcação fixa entre a astrologia natural e a
judicial” (cf. RABIN, Sheila J. Pico acerca da Magia e da Astrologia. IN: DOUGHETRTY, M. V (org.).
Pico della Mirandola: novos ensaios, p. 181). 75
Scheila Rabin: “O caso do pensador do século XIV Nicolau Oresme, uma voz importante contra a
astrologia e uma grande influencia sobre Pico, é bastante instrutivo. Em seu Livre de Divinacions (Livro
sobre as adivinhações), Oresme afirmava que o estudo dos movimentos das estrelas e dos planetas tinha
uma validade limitada para a realização de previsões a respeito de grandes acontecimentos,
procedimentos médicos e natividades, embora ao se tratar do clima, como nas queixas da atualidade
contra aqueles que fazem a previsão do tempo, Oresme afirmasse que a astrologia era inútil” (cf. RABIN,
Sheila J. Pico acerca da Magia e da Astrologia. IN: DOUGHETRTY, M. V (org.). Pico della Mirandola:
novos ensaios, p. 181). 76
Cf. RABIN, Sheila J. Pico acerca da Magia e da Astrologia. IN: DOUGHETRTY, M. V (org.).
MIRANDOLA, Pico della: novos ensaios, p.186 . 77
Segundo afirma Sheila, J: “Independentemente do que dizem outros cabalistas, eu digo que as esferas
correspondem às dez numerações (sefirot) dessa forma: de modo que, começando do edifício, Júpiter
corresponde à quarta, Marte à quinta (...). 11> 49. Qualquer pessoa que conheça a correspondência dos
Dez Mandamentos por meio da conjunção da verdade astrológica com a verdade teológica verá a partir do
fundamento que eu apresentei na conclusão anterior, independentemente do que dizem os outros
cabalistas, que o primeiro mandamento corresponde à primeira numeração (...). 11>50. Quando os
43
Portanto, as Conclusiones apresentam a sua posição ante a demonstração do que os
cabalistas apresentaram sobre a versão da Astrologia em união mágico-cabalista78
. Em
seu Heptaplus (1480), ele apresentou Platão e Aristóteles entre os opositores da
Astrologia.
Dentre os Pais da Igreja, Pico identifica o apoio de Agostinho, Ambrósio,
Eusébio, Tertuliano e Orígenes, mas entre os oponentes modernos indica Alberto
Magno, Nicolau de Oresme, Angelo Poliziano e Marsílio Ficino. O autor rejeitou,
porém, Ptolomeu como autoridade, afirmando que quando este estava certo, isso
resultava do fato de seguir Aristóteles, mas a sua astrologia decorreu de ele ter se
desviado de Aristóteles. Deve-se ainda mencionar que nas Teses, Pico aborda também o
tema da oposição entre a Astrologia e a Religião. Ele condena dois importantes
filósofos medievais, a saber, Roger Bacon e Pierre d‟Ailly, nas tentativas deles de usar a
Astrologia para afirmar a fé cristã. Pico della Mirandola recorreu aos filósofos da
tradição como também aos citados em sua pesquisa bibliográfica, que parte desde os
pensadores da escolástica até os árabes, objetivando a compreensão do que eles
relataram sobre opiniões a respeito da Astrologia.
Na abordagem sobre a Astrologia diante da verdadeira religião, ou seja, o
Cristianismo, distinção já evidente nas Conclusiones79
, Pico, na tentativa de conciliar a
Qabbalah com a teologia cristã e associá-la à tradição platônica, um modo de destacar a
desconsideração na revelação, destaca o lugar onde existe a verdadeira religião, isto é, o
Cristianismo. A Astrologia não poderia entrar, faltando assim espaço para que esse
cabalistas dizem que os filhos devem ser buscados a partir do sétimo e do oitavo, essas petições na
merkabah inferior devem ser interpretadas dessa maneira: de modo que pedimos que um individuo as
conceda e que o outro não as proíba. E qual indivíduo concede e qual proíbe, qualquer pessoa com
conhecimentos da astrologia e da Cabala é capaz de compreender a partir das conclusões anteriores. 11>
51. Assim como a Lua cheia estava em Salomão, assim também o Sol estava no verdadeiro Messias, que
era Jesus. E com relação à correspondência diminuída em Zedequias qualquer um pode conjeturar, se for
um conhecedor profundo da Cabala” (cf. RABIN, Sheila J. Pico acerca da Magia e da Astrologia IN:
DOUGHETRTY, M. V (org.). Pico della Mirandola: novos ensaios, p.186). 78
Sustentado por Sheila J. Rabin. (cf. RABIN, Sheila J. Pico acerca da Magia e da Astrologia IN:
DOUGHETRTY, M. V (org.). Pico della Mirandola: novos ensaios, p. 183). 79
Ver, nesse sentido, Caldaicas, Orphicas, Magicas et Cabalisticas, in quibus omnibus nihil assertinue vel
probabiliter pono, nisi quaetenus id verum vel probabile iudicat sacrosancta Romana eccesia, et caput eius
benedictus Summus Pontifex Innnocentius Octauus, cuius iudicio, qui mentis sue iudicium non summittit,
mentem non habet. (29) Conclusiones paradoxe numero XVII secundum propriam opinionem, dicta
primum Aristotelis et Platonis, deinde aliorum doctorum conciliates, qui maxime discordare videntur. 5.
A questão da coisa ser para causa de Cristo, ou que não são mais, eu digo Dun Scotos e Thomas
discordam. Conclusiones Magicas y Cabalisticas. Conclusiones Sive Teces DCCCC. 1486.
44
saber não encontrasse meio para se instalar.80
As suas justificativas foram também
elaboradas sobre o que pensava acerca da mesma, visando afirmar que a sua visão
centrava-se na funcionalização dela81
.
Em seu contato com o conhecimento da Magia e da Astrologia, presentes na
cultura do Renascimento, que inquietou o erudito de Mirandola, Pico justificou o seu
interesse e investigação das questões a respeito desses saberes relevantes nesse universo
cultural e filosófico. Na continuidade de sua reflexão, e ainda não tão presente nas
Conclusiones, a sua proposta visava inserir as maiores autoridades da Religião e da
Filosofia a serem contrárias à Astrologia. A Astrologia como saber possuía visão de
ciência82
, tanto que na virada dos séculos XIII-XIV esteve presente no Renascimento
italiano, no qual se revelou, no domínio desse saber, uma nítida distinção entre dois
aspectos: aquele religioso supersticioso e aquele crítico-científico. A Astrologia havia se
tornado uma concepção geral da realidade e raiz de todo o saber humano. Por isso Pico
a perseguiu com certa orientação, principiando pelas questões gerais de Lógica e
Metafísica, em virtude de os astrólogos não terem considerado com rigor a realidade
física, ou seja, distinguido causa universal e causas particulares.
Nesse período nem toda e qualquer forma de Magia era aceitável83
, e no que
concerne ao efeito, pautado no efeito físico, ficava à mercê de uma opinião segura dos
80
Pico atacou a Astrologia por todos os ângulos concebidos. Na realidade, ele tentou reduzi-la a uma
prática absurda. No entanto, se a astrologia era tão absurda (cf. RABIN, Sheila J. Pico acerca da Magia e
da Astrologia. IN: DOUGHETRTY, M. V (org.). Pico della Mirandola: novos ensaios, p.198).
81
Nesse sentido: “A Alegação de Pico de que nenhum deles apoiava a astrologia e sua negação de que as
contribuições de Ptolomeu na filosofia natural eram originais dele tiveram a intenção de reforçar as
asserções de Pico com respeito à sua oposição à astrologia; ao mesmo tempo, ele podia afirmar que não
era contrário ao estudo da astronomia” (cf. RABIN, Sheila J. Pico acerca da Magia e da Astrologia,
p.191). 82
Segundo Alain Libera: “Por muito tempo a Astrologia foi considerada como uma parte das
matemáticas; é o que lhe confere uma parcela não negligenciável de seu crédito retrospectivo. Também
por muito tempo ela foi tida como uma astronomia em estado nascente. Mas de que matemáticas se fala?
Na carta-dedicatória de sua obra maior (Opus Maius), o franciscano Roger Bacon explica detalhadamente
ao papa Clemente IV a necessidade teórica e a utilidade prática da Astrologia” (cf. LIBERA, Alain.
Pensar da Idade Média. Trad. br. Paulo Neves. Editora 34, São Paulo, 1999, p. 238). 83
Para Rabin: “Os escritores nem sempre viam os corpos celestes ou as radiações desses corpos – luz e
calor – como atividades físicas, sendo, portanto, possível aceitar efeitos não físicos desses corpos. Esse
ponto deve ser considerado quando analisarmos o desenvolvimento da atitude de Pico em relação à
astrologia. Do mesmo modo, nem toda forma de magia era aceitável. A boa magia era natural ou,
conforme a classificação de Walker, “magia espiritual” A magia natural tratava daquelas que eram
percebidas como qualidades ocultas no interior da natureza; a magia demoníaca invocava o auxilio de
demônios e feralmente buscava mudanças que não eram percebidas como naturais” (cf. RABIN, Sheila J.
Pico Acerca da Magia e da Astrologia IN: DOUGHETRTY, M. V (org). Pico della Mirandola: novos
ensaios, p.182).
45
escritores da Magia. Sabemos que a Magia, nas Conclusiones84
de Pico, era vista como a
parte mais nobre proveniente da ciência natural e as vinte e seis conclusiones mágicas,
com figuração histórica, pitagórica, caldeia, hermética e cabalista, relatam o teor da
Magia pesquisada pelo filósofo mirandolano,85
. A observação sobre o uso não só da
Magia presente nas Teses, também suscita outras expectativas à filosofia natural. Por
conseguinte, a Magia se apresenta como a parte prática da scientia naturalis. Sem
dúvida se revela certa referência a um mecanismo de filosofia natural astrologizante, ou
seja, a relação integrada entre céus e a terra, portanto, entre entes superiores com
aqueles inferiores: algo comum em um contexto de filosofia natural e Magia.
Sobre a Qabbalah nas Conclusiones, Pico della Mirandola inicia com a distinção
de Qabbalah teórica e prática, mas também entre quatro tipos de Qabbalah teórica. A
Qabbalah teórica diz respeito às Sefirot, ou seja, as dez emanações da divindade
suprema. Ele considera ainda, no domínio dessa doutrina, a “rotação do alfabeto”, algo
muito conhecido por qualquer leitor de comentários da Idade Média tardia do Sefer
Yetzirah ou Livro da formação, pois infere a estrutura do mundo das letras do alfabeto
hebraico. Já a Qabbalah prática, Pico a define como a tentativa de tornar prático o todo
da metafísica formal e da teologia menor. Nesse sentido, se a metafísica das formas diz
respeito às Sefirot, a teologia menor extrai os atributos divinos da natureza.
Pode-se ainda argumentar que Pico della Mirandola estabelecia, já na Oratio, a
distinção entre a Torach escrita, ou seja, dada por Deus a Moises86
e a sua interpretação
84
De acordo com Sirgado: “Nas novecentas teses, também chamadas Conclusões, apresenta quer o seu
pensamento pessoal, quer o pensamento dos que antes dele deram um contributo para a filosofia. Nas
primeiras quatrocentas teses, que possuem um carácter histórico-crítico, refere-se à filosofia dos
pensadores que o precederam, como, por exemplo, Pitágoras, Platão, Aristóteles, Duns Escoto, São
Tomás de Aquino, Alexandre de Afrodísia, Averróis, Avicena, os Cabalistas, Mercúrio Trimegisto. As
outras quinhentas teses exprimem o seu pensamento” (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. IN:
MIRANDOLA, Giovanni Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. XVII). 85
Para Maria de Lourdes Sirgado: “Entre as teses “segundo sua opinião particular”, a seção 9, que contém
26 teses, era dedicada à magia e a seção 10, com 31 teses, à magia órfica. No entanto, muitas outras teses,
especialmente dentre aquelas sobre O Livro das Causas, a matemática, Zoroastro e seus comentadores
caldeus, e a Cabala, também abordavam a magia” (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. IN:
MIRANDOLA, Giovanni Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, pp. 182-183). 86
Dougherty comenta: “A palavra Qabbalah significa “aquilo que é recebido” ou “tradição”, sendo que
seus partidários acreditavam que ela fosse uma tradição oral revelada a Moisés junto com a lei escrita no
Monte Sinai. Parte da tradição é extremamente literária, concentrando-se nas palavras e nas letras da
Torach, sendo que essa característica a tornava, sobretudo, atrativa aos humanistas como Pico. As
principais obras da Qabbalah disponíveis para Pico eram o Sefe há-Bahir (Livro da Criação), escrito
entre os séculos III e VI; o Sefer há-Bahir (Livro da Iluminação), atribuído ao rabino midráshico
Nehunya ben há-Kanah, mas que, na verdade, trata-se de uma compilação do século XII; e o Zohar (Livro
do Esplendor), atribuído ao místico do século II Simeon bem Yohai, mas que, ao que tudo indica, foi
46
secreta, expressa em livros de Teologia, Metafísica e filosofia natural. Ademais, a sua
concepção de Magia não era aquela demoníaca, tanto que Pico atestou que a magia
cabalística não se situava no universo pagão, pois já continha a origem divina da qual
fora criada. Com as teses cabalistas de Pico, associadas à intenção de apoiar a doutrina
cristã87
, ele é identificado como aquele pensador a abordar de forma rigorosa a
Qabbalah88
. Por isso as suas Conclusiones destacam a diferença entre Qabbalah e
magia demoníaca, uma vez que estranha ao Cristianismo.
escrito por Moisés de León no século XIII. Quando escreveu as Conclusiones, Pico também tinha acesso
às obras de comentadores judeus medievais como Abraão Abulafia, Azriel bem Menahen de Gerunda e
Menahen Recanati, assim como a diversas obras anônimas. A maior parte das obras foi traduzida para
Pico do hebraico por seu professor, Flávio Mitrídate, um judeu convertido e estudioso da Qabbbalah.
Mitrídate fez anotações laterais com a sua tradução para guiar seu pupilo e desenvolveu o argumento de
que a Qabbalah comprovava a verdade do Cristianismo. Em verdade, Pico afirmou que estava
apresentando teses cabalísticas “que sem dúvida confirmavam a religião cristã pelo uso de princípios dos
próprios sábios hebreus”. Sua nona tese sobre a magia, que o fez ter problemas com a Igreja Católica,
declarava: “Não existe nenhuma ciência que nos assegure mais da divindade de Cristo do que a magia e a
Cabala. Esse sentimento foi repetido no Discurso, na Apologia e no Heptaplus”(cf. DOUGHERTY, M.
V. (org.). Pico della Mirandola: novos ensaios, pp. 183-184). 87
Para Sheila: “As teses cabalísticas de Pico foram além de sua intenção de apoiar a doutrina cristã. Ele
de fato criou uma Cabala cristã quando mostrou como princípios da Cabala podiam ser aplicadas ao
dogma cristão. Por exemplo, a tese 14 diz: “Pela letra, isto é shim, que faz a mediação no nome de Jesus,
nos é indicado de forma cabalística que o mundo então descansou de modo perfeito, como se em sua
perfeição, quando Yod foi associada à Vav que aconteceu em Cristo, que era o verdadeiro Filho de Deus,
e do homem. O nome hebraico de Jesus, Yeshu, é formado por essas três consoantes hebraicas; a forte
letra do meio aparece em uma posição central ladeada por duas letras mais leves e semelhantes e, sendo
que ambas também podem ser usadas, às vezes de maneira intercambiável, como vogais. Aqui, Pico usou
as letras hebraicas no nome de Jesus para confirmar uma idéia cristã. Essa tese deu inicio a uma série de
declarações cabalísticas configuradas de modo similar” (cf. SHEILA, J. Rabin. Pico acerca da Magia e da
Astrologia. IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, p. 186). 88
Embora a Cabala fosse concebida por todos os cabalistas judeus como entendimento esotérico do
judaísmo, que não deveria ser desvelado a um judeu comum e menos ainda a um gentio, desde o fim do
século XV tornou-se visível uma literatura cabalística cristã a expandir-se gradualmente. Ela começou em
Florença com as breves teses do jovem Conde Giovanni Pico della Mirandola, e depois se desenvolveu
nos escritos mais sistemáticos de Johann Reuchilin e Cornelius Agrippa de Nettesheim, os quais se
valeram de vários elementos dos textos cabalísticos, muitas vezes lidos em traduções latinas realizadas
por alguns conversos ao cristianismo. Característico da Cabala cristã é a integração de componentes
cabalísticos, na maior parte elementos de natureza teosófica, hermenêutica e mágica que foram separados
de seu backgrund ritualístico, em estruturas de pensamento encontradas em traduções do grego e em
material helenístico preparado e impresso durante a Renascença, especialmente por Marsílio Ficino. Em
geral, o ocultismo europeu, assim como diversas formas de teosofia e franco-maçonaria européias foram
substancialmente influenciadas pelo pensamento cabalístico, como parece ser o caso no mormonismo
inicial. O mais viável movimento de massa criado pela popularização da Cabala foi o tardio hassidismo
polonês. O fenômeno místico do leste-europeu continuou sendo desde então a mais duradoura forma de
penetração da Cabala e do hassidismo, conceitos como dibuk, golem ou qelipá tornaram-se parte das
crenças de largos segmentos da população judaica, a partir do fim do século XVIII. (cf. IDEL, Moshe.
Cabala, Cabalismo e Cabalistas, São Paulo: Perspectiva/CIEUCJ da Universidade Hebraica de
Jerusalém, 2008, pp.18-19).
47
Portanto, Pico della Mirandola89
apresentou a Qabbalah como a tradição secreta
própria para a interpretação das Escrituras, de acordo com a Oratio: embora os hebreus
tivessem utilizado esse étimo em um significado muito amplo, mas secundário. Os
textos cabalísticos e a grande dificuldade que os seus representantes enfrentavam com
as suas amostras, como texto em conflito com a figura judaica advindos de
configurações do misticismo judaico, poderia criar cruéis depreciações de cunho forte
em que iria embater direto com expoentes do judaísmo fundamentalista. No percurso
em que Pico Della Mirandola analisa o contexto ainda da Astrologia, no que diz respeito
às teses cabalísticas demonstradas nas Conclusiones, a Astrologia se encontrava em
uma união mágico-cabalista, ou seja, interligadas nas Conclusiones.
Os cabalistas descreviam a Qabbalah como entendimento esotérico90
do
Judaísmo, e no final do século XV tornou-se uma esfera de uma literatura cabalística
cristã. Em Pico della Mirandola foi evidenciado na Qabbalah hebraica elementos
cristãos, e os agrupamentos de componentes cabalísticos, na maior parte, como
elementos pertencentes à natureza teosófica, hermenêutica e também mágica. Nesse
momento, não se pode descurar que o interesse de Pico por todos esses antigos saberes
pressupõe algo que ultrapassa o domínio do particular. Trata-se, portanto, da pretensão
de ele atingir a concórdia entre a tradição platônica e aquela aristotélica, mas ainda a
sua busca de uma verdade “única”, emergente de todas as fontes da sabedoria humana e
divina. Ademais se destaca também o seu constante aprofundamento de uma exegese
própria em relação aos textos sagrados, pois Pico della Mirandola pretendia realizar
igualmente uma conciliação conclusiva entre Filosofia e religião cristã.
89
Sheila menciona o seu estudo acerca da Magia e da Astrologia, em que descreve as atribuições
extraídas de Pico a partir das Conclusiones (cf. RABIN, Sheila J. Pico Acerca da Magia e da Astrologia
IN: DOUGHERTY, M. V. (org.) Pico della Mirandola: novos ensaios, p.185). 90
Para Mosche Idel: “A Cabala é, por definição, um corpo esotérico de especulação; seja em sua
explicação teosófica-teúrgica dos fundamentos lógicos dos mandamentos ou na tendência exática, que
trata de técnicas de utilização dos nomes divinos, o esoterismo está profundamente estabelecido neste
saber. De acordo com Isaac, o Cego, seus predecessores nunca registraram por escrito assuntos
cabalísticos e Abraão Abuláfia via o caminho dos nomes como um saber rmais elevados e, portanto, mais
secreto, que o caminho das sefirot. Não obstante, tanto R.Issac, Cego, quanto Abuláfia escreveram
tratados cabalísticos, este último até mesmo vangloriando-se que sua produtividade literária superava a
dos cabalistas anteriores” (cf. IDEL, Moshe. Cabala: Novas Perspectivas [1998]. Trad. br. Margarida
Goldsztajn, São Paulo: Perspectiva, 2000, pp. 368-369).
48
É certo que no seu projeto filosófico estavam duas religiões, ligadas pela história,
porém, distintas em doutrina91
, usadas por Pico della Mirandola em suas Teses. A
Qabbalah serve, porém, para eliminar todas as “controvérsias” entre “os judeus e nós”,
ou seja, os cristãos. Aos que estivessem interessados no estudo da Qabbalah no século
XV se fazia através de manuscritos, pois não havia uma orientação de um mentor: algo
que mudou entre os cabalistas italianos a ausência da tradição oral. O Zohar, um dos
importantes livros da Qabbalah, lançou forte controvérsia entre autoridades do
Judaísmo.92
No tocante ao que se descrevia no Zohar, a busca pela publicação do
mesmo, ocorria em parte pelo interesse messiânico de disseminar segredos como
preparação para o que se traduzia como “a vinda do messias”. A Qabbalah era
demonstrada através de diversas formas, e apresentadas pelos cabalistas que se
opunham a um saber esotérico que se tornasse público,93
pois se tratava do
conhecimento dos mistérios divinos, citados pelas doutrinas, quer da Qabbalah quer da
Teologia.
A relação entre homem e Deus, homem e divino, exposta no universo
renascentista como todo saber, por meio da Filosofia, ultrapassou o espaço quanto ao
estudo das esferas espiritual e daquela civil, separação que obteve os seus primeiros
passos a serem efetivados com os respectivos mestres do humanismo. Para melhor se
compreender este espaço é preciso não esquecer as vias que deram vida a esse composto
na esfera do agir humanos e que foi tema de investigação de Giovanni Pico Della
Mirandola quando reenviou desde a magia esotérica, à Qabbalah, à Astrologia,
elementos doutrinários do Renascimento presentes nas suas Teses. Tais elementos
compõem ainda a erudição da Oratio, na qual se apresenta a ideia fundamental do
projeto filosófico de seu autor, como expressão metafísica e ética, exposta em um estilo
humanístico e, ao mesmo tempo, articulando o exercício filológico e filosófico na
defesa da multiplicidade das vias de um saber enciclopédico.
91
Segundo Mosche Idel: “A Cabala era concebida por figuras judaicas e cristãs da Renascença como uma
teologia antiga, semelhante aos desenvolvimentos filosóficos mais tardios como o platonismo, o
aristotelismo, o pitagorismo e o atomismo, enquanto para os judeus, era a fonte desses desenvolvimentos.
O interesse pela Cabala durante o período da Renascença foi compartilhado por Judeus e cristãos; ainda
que servisse de ponte entre as duas religiões, ela era explorada para atividades missionárias cristãs, fato
reconhecido abertamente por Pico della Mirandola. O fato da Cabala ter sido interpretada em ambos os
campos, de acordo com concepções filosóficas significa não só sua adaptação a especulações
neoplatônicas-herméticas prevalecentes durante aquele período, mas também a redução de sua natureza
esotérica (cf. IDEL, Moshe. Cabala: Novas Perspectivas, p. 372). 92
Cf. IDEL, Moshe. Cabala: Novas Perspectivas, p.373. 93
Cf. IDEL, Moshe. Cabala: Novas Perspectivas, pp. 373-374.
49
1.4 Macrocosmos e Microcosmos no Renascimento italiano: herança em Pico della
Mirandola
Já na Idade clássica não é difícil identificar a ideia de que o universo, no qual o
homem vive, é dirigido por leis de proporção e consonância. Portanto, o universo é
ordem, ou seja, é necessidade, não acaso, é lei e justiça, não algo cego e absurdo ou
amontoado de acontecimentos, é unidade, não fragmentação dispersa, é espírito
transparente, não matéria opaca. Se, porém, deformações aparentes, não motivadas, se
produzem no cosmo e são produzidas no mecanismo cósmico, se a realidade natural
parece aos homens, às vezes, movida por forças obscuras, tanto destrutivas como cruéis,
isso ocorre, no entanto, por causa de um caráter não uniforme, nem pacífico, mas
movido e dinâmico de certa harmonia que contém também, em si mesma, a presença de
termos opostos, de transitórias desarmonias e, ao mesmo tempo, de dissonâncias
efêmeras94
.
Nesse sentido, a teoria, quer heraclítica quer empedocleia, das ditas forças
antitéticas, se realiza em doutrinas da concordia discors, recorrentes, como é possível
identificar em vários autores antigos, ou seja, de Horácio a Plutarco, mas em seguida em
Santo Agostinho, em Boécio e em vários autores medievais, até chegar por várias vias
aos autores do Renascimento. A analogia harmoniosa entre homem e mundo possui algo
de mecânico e materialista, pois o homem é um Microcosmo, porque se assemelha, em
razão de sua física estruturação, ao Macrocosmo, isto é, ao mundo. Em oposição a essa
orientação, alguns Padres da Igreja apresentaram críticas à pura visão mecânica, a de
um materialismo grosseiro, afirmando: se há uma semelhança puramente física o
homem não teria razão para tanto orgulho, pois até uma mosca poderia se inserir em tal
analogia, na medida em que se apresentaria como uma pequena síntese dos elementos
fundamentais.
Como alternativa a essa orientação, puramente mecanicista, se desenvolveu uma
concepção mais rica do Microcosmo, pois foram acrescentadas associações mais
espirituais, a saber, aquela em que se identifica no homem a realização de uma síntese,
ou seja, como nodum et ligamentum, copula mundi: ser no qual os vários níveis da
94
Para uma compreensão sobre tal relação no Renascimento, ver aqui também: BERTOZZI, Marco
(org.). Nello specchio del cielo. Giovanni Pico della Mirandola e le Disputationes contro l‟ astrologia
divinatória, Atti del Convegno di studi, Mirandola, 16 aprile 2004 ; Ferrara, 17 aprile 2004, Firenze: Leo
S. Olschki, 2008.
50
hierarquia do mundo se encontram e em que realidade material e espiritual se unem e se
fundem. Ademais se apresenta ainda, nessa outra acepção, o sentido de um ser
“dúplice”, um ser de fronteira, o qual concilia os contrários, isto é, uma criatura cuja
medietas é, de fato, vértice e absoluta centralidade. Trata-se, portanto, de certa visão
também mística, tão presente, quer em Nicolau de Cusa quer em Pico Della Mirandola,
decorrente igualmente dos textos herméticos.
A abordagem da concepção de Macrocosmo e Microcosmo na visão do
Renascimento95
italiano revela um estudo aprofundado, o qual gerou muitos
comentários de estudiosos sobre pontos fundamentais da época renascentista, presentes
nas concepções e ideias da natureza e do homem como Macrocosmo e Microcosmo.
Portanto, a filosofia renascentista apresenta o homem como ser Microcosmo, ou seja, o
homem ligado à natureza e, portanto, a sua interação com o universo. Na passagem da
Idade Média para o Renascimento, essa concepção recebeu força não só de pensadores
como Marsílio Ficino, que contribuiu com algumas ideias divergentes em Nicolau de
Cusa96
(1401-1464), mas também de Pico della Mirandola, pois havia escrito no seu
Heptaplus como o mundo e o homem correspondem reciprocamente, e introduzindo
inclusive a noção bíblica de foedus bonum, ou seja, entre os homens e o mundo.
Conforme essa ideia, Deus quer que seja estabelecido e respeitado um pacto, fundado,
por sua vez, com base em uma íntima parentela: Deus criou o mundo por um ato de
amor.
Nicolau de Cusa e Pico della Mirandola concebem o homem com base no seu
confronto com a totalidade do real, das criaturas ao Criador. Nesse sentido, o homem se
apresenta como centro de tudo o que é criado, uma vez que se tudo merece ser amado,
deve ser o homem a equilibrar, com um amor ordenado os diversos graus da realidade.
95
Segundo Osvaldo: “O naturalismo renascentista era influenciado pelo hermetismo, uma tradição semi-
religiosa e mágica vinda da Antiguidade, e atribuída a Hermes Trimegisto, do Egito, que teria previsto a
ascensão do Cristianismo. A divulgação de manuscritos herméticos na Toscana, por volta de 1460,
despertou muito interesse. Ensinava que o homem é capaz de descobrir elementos divinos dentro de si,
defendendo uma afinidade mística entre o mundo e a humanidade, entre o macrocosmo e o microcosmo.
Em meio a seu misticismo, estimulava a observação cientifica e a matemática, dentro de uma concepção
pitagórica de descrição da natureza por meio de números. No entanto, em 1614, o protestante Isaac
Casaubon provou que os escritos herméticos (devido ao seu estilo e suas citações) eram posteriores ao
advento do Cristianismo, sendo escritos dentro da tradição neopltatônica. Isso contribuiu para a
decadência do naturalismo renascentista” (cf. Osvaldo Junior. Teoria do conhecimento e filosofia da
Ciência I. Tradições Rivais no Renascimento, 2010, p. 62). 96
Cf. CASSIRER. Ernest. Individuo e Cosmo na Filosofia do Renascimento [1926]. Trad. São Paulo:
Martins Fontes, 2001, p. 101.
51
É precisamente na Oratio que Pico define o velho motivo grego do microcosmo, como
algo já comum, mas não abandonando tal tema. Ele busca, porém, aprofundá-lo, a fim
de atribuir-lhe, em parte, um significado não totalmente novo, no entanto, mais
adequado. Por conseguinte, Pico articula o elemento clássico do microcosmo com
aquele bíblico da imagem de Deus, abordando-os com base em uma orientação bem
específica: o homem reúne em si todas as coisas. Trata-se de tópicos provenientes do
pensamento medieval,ou seja, do homo, imago Dei da relação do homem com o
universo. No Medievo, o homem visto como imagem de Deus e Microcosmo detinha
essa evidencia97
.
O Macrocosmo mantém a sua harmonia, já o Microcosmo, o humano, também a
mantém, para que haja um equilíbrio de si próprio com o todo, pois ninguém é uma
peça solta nessa sintonia. “Tudo está ligado em si, e todo está no tudo”, máxima do
Microcosmo e o Macrocosmo, abordados por Cassirer como esse universo de
pensamento, que retrata a ideia de homem com base no que aqui fora apresentado. Do
pensamento teológico, a evidência homem-microcosmo, ou seja, a visão de seu lugar no
universo, Pico a retoma no seu pensamento como evidencia as suas Conclusiones:
conceitos que os filósofos dos studia humanitatis retratavam retoricamente98
no estudo
97
Para João André: “Santinello [...] tende a destacar a diferença entre ser “imago Dei”, que é, sobretudo,
uma prerrogativa do Filho, e ser criado „ad imaginem Dei‟, prerrogativa do homem que carece da
mediação do filho para a efectivação da sua semelhança, ter-lhe-á chegado através de Gregório de Nisa
com a formulação que mais fecunda será no seu discurso pela dinamização que desde logo proporcionará
ao motivo do microcosmo: o homem não é apenas uma imagem de Deus, mas, como já deixavam antever,
de certo modo, os termos da Carta aos Colossenses, uma viva imagem de Deus, pois só desse modo se
pode continuamente renovar e aperfeiçoar no seu ser imagem, o que faz, antes de mais, pela via do
conhecimento. Compreende-se assim que o tema da „imago Dei‟ sofra uma ligeira inflexão intelectualista
que leva a encontrar esse lugar da imagem viva, sobretudo, na mente humana, idéia que, explorada, entre
outros textos, no Idiota de mente, aparece cruzada com o par de conceitos “complicatio/expicatio” numa
acentuação da sua excelência como imagem da unidade: „ Portanto, retenho que mente é a mais simples
imagem da mente divina, entre todas as imagens da complicação divina, que complica todas as imagens
na sua simplicidade e na sua virtude de complicação. Assim como Deus é a complicações, assim a mente,
que é a imagem de Deus, é a imagem da complicação das complicações‟” (cf. MARIA, João André. O
Homem como Microcosmo. Da Concepção Dinâmica do Homem em Nicolau de Cusa, À Inflexão
Espiritualista da Antropologia de Ficino. Lisboa: Philosophica, 1999, pp. 9-10). 98
De acordo com Cassirer: “O próprio tratado De dignitate et excellentia hominis, escrito por Gionozzo
Manetti por volta do ano de 1452, já havia sido estruturado segundo o mesmo esquema formal e
intelectual que Pico segue segue para construir seu discurso. Ele opõe ao mundo natural, entendido como
o mundo do que meramente é, o mundo intelectual do vir-a-ser, o mundo da cultura. Somente no interior
deste ultimo é o que o espírito do homem encontra sua morada; nele o homem dá provas de sua dignidade
e liberdade: “Tudo o que discernirmos é nosso, ou seja, é humano, por ser produzido pelos homens: todas
as casas, todas as vilas, enfim, todos os edifícios da terra. Nossas são as pinturas, as esculturas , as artes,
as ciências, as (...) sabedoria. Nossas são (...) todas as invenções, todas as diversas línguas e os diversos
literários e, quanto mais e mais pensarmos sobre seus usos, tanto mais fortemente somos levados a
admirar e ficar estupefatos”. Se estas palavras de Manetti, em sua essência, remontam ao ideário estóico
52
de outros eruditos como Nicolau de Cusa, Manetti que descreveram sobre Microcosmo
(homem) Macrocosmo (sua estrutura cósmica)99
, algo fundante da orientação da
antropologia piquiana100
.
Se os tratados sobre a miseria hominis, que Manetti pretendia refutar, incluem
também o trabalho, como punição de Deus segundo a Bíblia, ele identifica, porém, no
trabalho, uma premissa indispensável para a edificação do regnum hominis, ou seja,
atuação da dignitas hominis. Na antropologia piquiana, mesmo em continuidade com a
tradição humanista da exaltação do indivíduo, transcende elevando-se ao Metafísico. O
homem apresentado na reflexão piquiana não se expressa como homo faber, que cria
com as suas obras o regnum hominis, porque em nenhum lugar de sua obra se fala de
corpo, mas se reflete apenas sobre o seu intelecto, agente em plena liberdade. Daí na sua
meta suprema o homem se isola da sociedade e se concentra sobre si mesmo a fim de
ascender às esferas superiores: algo que diverge da orientação humanista buscando nas
artes liberais, na Filosofia e na Teologia a sua instrução fundamental.
A distinção existente entre o ser e o agir, contrapõe-se à determinação em que se
encontra o ser e o que determina a sua ação, pois em si está o sujeito e a ação, a vontade
e o cessar, pois traçam a linha da capacidade humana que se encontra não somente em
da Antiguidade, o discurso de Pico, por outro lado, vem acrescentar um elemento novo. Com efeito, todo
o seu ponto de vista está marcado por aquela transformação característica do motivo do microcosmo, que
havia se processado em Nicolau de Cusa e, depois dele, em Ficino” (cf. CASSIRER, Ernst. Indivíduo e
Cosmos na Filosofia do Renascimento, p. 140). 99
Segundo Cassirer: “Pois este problema está na inversão da relação que costumamos estabelecer entre o
ser e o agir. No mundo das coisas, pode ser que seja válida a velha máxima escolástica segundo a qual
operari sequitur esse; a natureza e a peculiaridade do mundo do homem, porém, decorrem do fato de que,
nele, vale o principio contrário: não é o ser que prescreve de uma vez por todas uma direção determinada
definitiva para o tipo de criação, mas é a direção original da criação que determina e fixa o ser. O ser do
homem decorre do seu agir: e este agir: e este agir não se manifesta unicamente na energia da vontade,
mas compreende a totalidade de suas forças criadoras. Com efeito, cada ação genuinamente criadora
engloba em si mais do que um mero agir sobre o mundo; ela pressupõe que o agente da ação seja
diferente do seu objeto e a ele se oponha de forma consciente. Tal oposição, por sua vez, não é um
processo único que se encerra com um resultado determinado, mas algo que tem de ser empreendido sem
cessar. O ser do homem, assim como seu valor, dependem desse processo de constante retomada; por
conseguinte, não podem ser definidos e determinados como algo estático, mas como algo dinâmico. E
bem verdade que podemos ascender até ao ponto mais alto possível na escala hierárquica dos seres, que
podemos alçar às inteligências celestiais, e mesmo à origem divina de todo o ser; mas enquanto nos
detivermos em qualquer um dos degraus desta escala, não encontraremos nele o valor especifico da
liberdade” (cf. CASSIRER, Ernst. Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento, pp. 141-142). 100
Conforme escreve Bignotto: “O nome de Pico della Mirandola ocupa um lugar especial no
desenvolvimento da antropologia do Renascimento. Nele se cruzaram as principais correntes de
pensamento do período e encontraram guarida os grandes temas do humanismo. Por essa razão, é muito
comum que estudiosos da antropologia da época se refiram aos seus escritos como a uma síntese da
quinada produzida na Renascença com relação à antropologia medieval” (cf. BIGNOTTO, Newton.
Considerações sobre a Antropologia de Pico della Mirandola, p. 140).
53
Pico, com o seu penhor da dignitas hominis101
, mas também em Giannozzo Manetti
(1396-1459), pois se reportou ao homem para compor a sua síntese do individuo e o
cosmo. O estudo de Pico102
, com a sua investigação filosófica a respeito da natureza
humanas,103
considera a visão de Microcosmo, pois o homem se torna o centro do
universo e na sua antropologia faz-se mister a ideia de diferir o homem dos demais
seres. Mesmo que Marsílio Ficino não houvesse escrito um tratado sobre a dignitas
hominis, mas se ocupou do problema e abordou esse tema em sua Theologia platonica,
retomando ainda em suas outras obras.
Macrocosmo e Microcosmo estavam presentes no Renascimento como legado de
uma tradição com base na qual se estabelecia a compreensão do Cosmo. Pico della
Mirandola traçou o perfil dessa relação não só por fazer parte de certa orientação do
Renascimento italiano, e de querer compreender a base pela qual o homem se faz como
101
De acordo com Wolfgang: “Na formulação deste pensamento por mais que a doutrina de Pico seja
determinada em sua totalidade pela tradição aristotélico-escolástica, de um lado, e pela tradição
neoplatônica, de outro se processa uma nova ruptura. Com efeito, fica claro agora que nem a categoria da
criação nem a da emancipação são suficientes para definir a relação que existe entre Deus e o homem e
entre o homem e o mundo. A criação, no sentido que habitualmente atribuímos a ela, não pode ser
entendida de outra forma senão como algo que não apenas confere à criatura um ser determinado e
limitado, mas que também lhe prescreve uma esfera, também determinada, no interior da qual se
manifesta a sua vontade e seu poder de realização. O homem, contudo, rompe as limitações de tal
natureza; seu agir não lhe é pura e simplesmente ditado pela realidade em que vive, mas encerra em si
possibilidades sempre novas que, em principio, transcendem todo e qualquer círculo finito. Este segredo
da natureza; um segredo que lhe é invejado não apenas pelo mundo inferior, mas também pelo mundo das
inteligências, já que somente nele, homem, cessam de existir as regras da criação que, de resto, governam
tudo o que o que é criado; somente para ele, homem, não vale a regra do “tipo” fixo e determinado” (cf.
WOLGANG, Neuser. A Formação e o Conceito de Indivíduo na Renascença. (Revista) Educação, Porto
Alegre, V.34, n.1, p.25-32, jan./abr.2011, p. 142). 102
No entender de Cassirer: “Ao final da criação assim descreve o mito com o qual se inicia o discurso de
Pico, o Demiurgo sentiu-se impelido a criar um ser que fosse capaz de reconhecer a razão de sua obra e
de adorá-la por sua beleza. “Mas entre os eternos arquétipos das coisas não mais havia um modelo para
um novo rebento, nem o criador possuía entre seus tesouros um dom que pudesse conferir como dote ao
seu novo filho e tampouco era possível encontrar no mundo inteiro um lugar que o observador do
universo pudesse ocupar. Pois o universo estava repleto, e em cada esfera, tanto na mais elevada quanto
na mais inferior e na central, tinham sido distribuídos seres que correspondiam à ordem da esfera em que
tinham sido colocados” (cf. CASSIRER, Ernst. Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento,
pp.142-143). 103
Para Neuser Wolfgang: “Lançado desse modo uma das mais firmes bases da pedagogia humanista da
renascença, Pico afirma uma concepção filosófico-antropológico, de acordo com o qual o homem é o ser
cuja tarefa e qualidade consiste em se determinar. A natureza do ser humano é a de um ser sem
determinações. Assim, é tarefa de cada indivíduo determinar a si mesmo e moldar seu próprio
desenvolvimento, enquanto o gênero humano, como tipo, permanente marcado pela indeterminação.
Nesse sentido, as pessoas podem perceber que são seres sem determinação e é somente por isso que todos
podem escolher uma certa determinação ou uma combinação de determinações. Em razão disso, elas são
autônomas. Em Pico, como a água que molha, o homem é um ser sem determinação, que pode realizar a
si mesmo. Ao homem é dada, portanto, uma tarefa a também uma chance. Por isso, a responsabilidade
pela formação não cabe ao preceptor ou ao pedagogo. E, nesse sentido, Pico não tem como ambição
formar os jovens” (cf. WOLGANG, Neuser. A Formação e o Conceito de Indivíduo na Renascença.
(Revista) Educação, Porto Alegre, V.34, n.1, p. 25-32, jan./abr.2011, pp. 29-30).
54
criação e existência104
. O cisma platônico tanto no que compete à transcendência vista
por Ficino105
como por Pico della Mirandola se volta para a exaltação do homem como
Microcosmo, ou seja, como síntese do universo com valor intrínseco e particular para a
Renascença humanista: valor de manifestação humana que fora também evidenciado
por Ficino.
A influência que se tornara o neoplatonismo, presente nas obras de ambos os
pensadores, quando se reportam à questão da natureza do ser, a investigação passa
assim a se objetivar na busca pela transcendência, misticismo e visão holística: ambas
evidenciadas na compreensão do microcosmo/macrocosmo:106
forma com que os textos
foram apresentados, de forma poética literária, em via de visão teológico-filosófica, e
por onde estava sendo elaborada a relação entre o homem-natureza no presente domínio
do pensamento filosófico renascentista. Elevando-se acima da realização de si mesmo
no regnum hominis, o homem assume assim o seu papel metafísico em virtude de sua
posição no cosmo.
104
Neuser Wolfgang afirma ainda: “Burckhardt classificou o discurso de Pico como um dos mais nobres
legados da cultura do Renascimento. De fato, nele se resume com grandiosa simplicidade e concisão a
totalidade do querer e do conceito de conhecimento de toda uma época. Nele são claramente confrontados
os dois pólos sobre cuja oposição repousa a tensão moral e intelectual que é peculiar ao espírito do
Renascimento. O que se exige a um só tempo da vontade do homem e de seu conhecimento é um total
voltar-se para o mundo e um total separar-se dele. Vontade e conhecimento podem, ou melhor. Devem
consagrar-se a cada uma das partes do universo, pois somente ao percorrer por completo a esfera do todo
é que o homem pode medir a extensão de sua própria esfera de determinação. De outra parte, porém, tal
abertura completa em relação ao mundo em hipótese alguma pode significar uma dissolução de si mesmo
no mundo, um perder-se no sentido místico-panteísta. Pois a vontade do homem só entra em posse de si
mesma ao tomar consciência de que nenhum fim determinado poderá algum dia satisfazê-la; e o saber do
homem só entra em posse de si mesmo ao saber que em momento algum poderá satisfazer-se com um
conteúdo determinado, qualquer que seja ele. Desta forma, o ato de voltar-se para o todo do cosmos
sempre encerra em si, ao mesmo tempo, a possibilidade de não se estar ligado a nenhuma de suas partes.
À força do entregar-se totalmente corresponde a força do subtrair-se totalmente. A dualidade entre o
homem e mundo, entre “espírito”e “natureza” é rigorosamente mantida e, não obstante, tal dualidade não
é desenvolvida a ponto de se transformar num dualismo absoluto com a marca da Escolástica Medieval”
(cf. WOLGANG, Neuser. A Formação e o Conceito de Indivíduo na Renascença. (Revista) Educação,
Porto Alegre, V.34,n.1,p.25-32,jan./abr.2011, pp.144-145). 105
Cf. CASSIRER, Ernst. Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento. Trad. do Alemão João
Azenha Jr: Martins Fontes, 2000, p.75. 106
De acordo com João André: “Segundo esta opinião, pode conceder-se que há três mundos: o pequeno
mundo que é o homem, o Maximo.” Começa, entretanto, a perceber-se que a alcance desta nova reflexão
é profundamente ético, quando a sua configuração holística conduz à percepção de que a parte do todo, no
caso do homem-microcosmo, não deixa de ser ela também um todo à sua maneira: “Certamente o homem
é um pequeno mundo que é também parte do grande. Em todas as partes resplandece o todo, porque a
parte é parte do grande” (cf. MARIA. João, André. O Homem como Microcosmo. Da Concepção
Dinâmica do Homem em Nicolau de Cusa, À Inflexão Espiritualista da Antropologia de Ficino.
Philosophica, Lisboa, 1999, p. 20).
55
A noção de homem em Pico, com relação direta ao Microcosmo se realiza pela
distinção. O Criador e a ligação do homem como Microcosmo com o ser criador, pois
ao homem não havendo mais dons, uma vez que às criaturas desse mundo o Criador
distribuiu todos seus dons específicos e no homem infundiu todas as possibilidades, se
revela como uma máxima expressão do contexto piquiano relativo ao pensamento
filosófico-teológico humanista. A especificidade atribuída por Pico della Mirandola ao
Microcosmo se justifica pela missão que o mesmo tem para superar as formas inferiores
de se constituir. Nessa atribuição natural do homem como Microcosmo deve se dispor a
possibilidade de ser elevar a Deus. Trata-se de um destaque necessário dado ao homem
que deve se voltar107
à divindade é uma das características centrais do olhar que Pico
della Mirandola propõe em relação à essência e natureza humanas.
O ser criado deve se voltar ao ser criador Deus, um olhar em que o homem deve
realizar ao observar a sua atribuição natural na Terra ante a atribuição divina: algo que a
Filosofia assume para explicar parte do sentido natural que transparece através da
ligação do Microcosmo para com o Macrocosmo. Pico della Mirandola não deixa de
articular sua lógica para explicar a ação ontológica do homem na relação com a
transcendência. O homem em Pico é visto como perfeita síntese de todas as partes que
compõe a Terra, o criador de sua vida, oriundo da uma ordem divina, ordem celeste e
ordem terrena, onde formam o corpo a alma e o espírito humanos.
Destaca-se assim a maneira em que fora visto o homem no Renascimento italiano
e, em especial, em Pico della Mirandola, com base nos saberes indicados pelos estudos
que foram aqui expostos, e no enfoque oriundo não só do cerne do neoplatonismo,
presente no Renascimento no século XV, mas de outras doutrinas que estiveram na base
da formação e reflexão de Pico, ou seja, nas suas fontes filosóficas relativas à Magia, à
Astrologia e à Qabbalah. Trata-se de fontes que confirmam o percurso no qual se alia
107
Em conformidade com Maria de Lourdes Sirgado: “Este poder de escolha sobre a forma e o valor que
a vida de cada um adquirirá mediante a sua reflexão e as suas ações implica, necessariamente, que se faça
sempre a melhor escolha possível. Uma escolha que permita ao homem elevar-se da sua condição terrena
à realidade celeste, em comunhão com os anjos, conhecedor das coisas divinas e fundindo-se pelo amor,
no Pai. Neste contexto, a filosofia assume uma importância determinante para o bom sucesso de tal
empresa pois o seu estudo auxilia esta ascensão ontológica. De outro modo, há uma hierarquia ordenada
de possibilidades pelas quais o homem se pode realizar mas nem todas correspondem à dignidade
humana que resulta desta sua natureza, neste sentido, a liberdade implica, não a possibilidade de uma
escolha qualquer, mas uma escolha moral e intelectual responsável que cumpra o dever de nos elevarmos
até Deus” (cf. SIRGADO, Ganho, Maria de Lourdes. Apresentação IN: MIRANDOLA Giovanni Pico
della. Discurso sobre a dignidade do homem, pp. XLIV-XLV).
56
tal filósofo, na ligação entre o homem e o universo, ou seja, Macrocosmo e
Microcosmo, e no modo em que Pico apresenta a busca por descrever a natureza
humana que recebeu um enfoque importante na ligação do homem (Microcosmo) com
Deus (Criador), revelando a assim a importância do homem em sua natureza de criado e
com especificidades ontológicas distintas dos demais seres na existência.
57
CAPITULO II
A ORIENTAÇÃO FILOSÓFICA DE PICO DELLA MIRANDOLA: RELAÇÃO
ENTRE ESCOLÁSTICOS E RETÓRICOS, FILÓSOFOS BÁRBAROS E
HUMANISTAS
Para se pensar a abordagem de Pico della Mirandola concernente à relação entre
orientação escolástica e humanista na elaboração de sua filosofia - após as formulações
do capítulo anterior sobre a cultura humanista e a inserção do projeto filosófico de tal
pensador nesse universo cultural -, é preciso se reenviar, antes de qualquer coisa, à sua
correspondência com Ermolao Bárbaro (1453-1493), professor da Universidade de
Pádua, a quem Pico dirige as sua criticas por ele atribuir valor unicamente à Filologia e
à Retórica descuidando da Filosofia como busca da verdade. Os escritos de Ermolao
Barbaro expressavam interesse também pela estilística literária, pelas formas de
escritura e pela sua expressão no domínio retórico humanista. Como estudioso de
Aristóteles e crítico dos escritos de autores medievais, Barbaro os considerava filósofos
“bárbaros” e “incultos”, uma vez que estes não revelavam interesse ou cuidado com a
escrita, ou seja, uma atenção e obediência aos cânones orientadores da retórica clássica,
na elaboração e tratamento dos textos filosóficos. Ademais, Barbaro critica também a
esses pensadores pelo uso deles de um latim não adequado à forma assumida pelos
humanistas.
2.1 Pico Della Mirandola e Bárbaro entre humanistas e escolásticos: estilo,
erudição e fontes do pensamento
Nas discussões de Pico sobre temas relativos ao seu projeto filosófico e à
orientação humanista, podem-se considerar as cartas enviadas, quer a Ermolao
Barbaro108
quer a Lourenço de Médici. Ermolao Barbaro prosseguia na tradição do
pensamento de Petrarca, pretor do advento do Humanismo renascentista, da linguagem
utilizada com um fim em si mesma. Em 15 de abril de 1485, escrevendo a Pico della
Mirandola, Barbaro dirigiu-se duramente contra os filósofos medievais, definindo-os
108
Trata-se aqui de duas cartas dirigidas, quer a Lourenço de Médici quer a Ermolao Bárbaro, e reunidas
sob um titulo significativo, ou seja, Filosofia ou eloquência?:” Sobre o falar em filosofia e seus modos. A
pessoas que recebe o Beroaldo bolonhês, noites alegres nas universidades, também estimado por Erasmo
de Roterdã (Erasmus Roterdamus – 1466-1536) e Poliziano ( Angelo Ambrogini – 1454-1494) ambos
humanista; eles seriam certamente apreciadores, uma vez que foi seu mestre nesse estilo que Pico
levantou por escrito a Lorenzo e a Bárbaro (cf. BROCCHIERI, Maria Teresa Fumagalli Beonio. Pico
della Mirandola, Asti: Piemm, 1999, p.2).
58
“sórdidos, rudes, incultos, bárbaros” 109
e convidando, de forma calorosa, Pico della
Mirandola a não dedicar tanto tempo ao estudo das obras desses pensadores. Ainda na
mesma Carta, Barbaro escreve terem sido esses filósofos excelentes com relação ao
engenho e à doutrina, mas o mesmo não ocorrera quanto ao estilo, uma vez que
necessário à imortalidade e à glória dos autores.
O ataque de Barbaro aos fiósofos “bárbaros”, conforme os denomina, compunha
o seus argumentos na Carta, na qual elogiava, igualmente, o jovem Pico, em virtude de
seu aprimoramento nos estudos literários e humanísticos, em especial, no que concerne
ao grego, e também pela elegância ao compor obras no domínio da poesia e da prosa.
Por conseguinte, tratava-se de uma exortação para que o jovem pensador continuasse se
dedicando aos estudos humanísticos. É certo que Pico respondeu, em junho do mesmo
ano, a Ermola Barbaro, como expressa a sua epístola-tratado, intitulada De genere
dicendi philosoforum.110
Tal epístola compreende três partes: i) após elogiar a cultura e
a eloquência de Barbaro, Pico se lamenta, acatando os argumentos do humanista, de
haver dispensado muito tempo aos estudos desses filósofos111
; ii) com maior demora na
sua exposição, Pico cede a palavra a um filósofo “bárbaro”, imaginário, o qual busca se
defender, por meio de um estilo refinado, e semelhante aquele dos humanistas, das
acusações que lhe foram dirigidas por Barbaro112
; iii) Pico conclui o seu discurso
discordando do filósofo imaginário, e defendendo haver pronunciado um ataque à
Eloquência apenas para incitar Barbaro a realizar uma defesa a favor dela113
.
Não obstante as várias polêmicas desenvolvidas sobre o tema dessa epístola114
, é
preciso aqui sustentar que Pico em nenhum momento recusa a herança humanista a
favor desses filósofos, pois é relevante ainda certa articulação entre eloquentia e
sapientia, em um projeto filosófico que dialoga com orientações filosóficas e doutrinas
diversas, não se tratando apenas de uma resposta em relação à preponderância da
“forma” ou do “conteúdo”. Portanto, sem se retomar aqui os argumentos da primeira
parte da Carta, pode-se sustentar, de acordo com a segunda parte, que a defesa
109
BARBARO Ermolao, MIRANDOLA Della Pico. Filosofia o Eloquenza? Trad. it. Francesco Bausi,
Napoli: Liguori, 1998, p.39. 110
Ver nota 111 dete capítulo. 111
Cf. BARBARO Ermolao, MIRANDOLA Della Pico. Filosofia o Eloquenza?, pp. 37-39. 112
Cf. BARBAO Ermolao, MIRANDOLA Della Pico, Filosofia o Eloquenza?, pp.39-59. 113
Cf. BARBARO Ermolao, MIRANDOLA Della Pico, Filosofia o Eloquenza?, pp.59-65. 114
Ver, nesse sentido, BAUSI, Francesco. Nec rhetor neque philosophus. Fonti, língua e stile nelle prime
opere di Giovanni Pico Della Mirandola (1484-87), Cittá di Castello: Leo S. Olschki, 1996, pp. 13-92.
59
imaginária do filósofo medieval é muito mais a expressão da Retórica e de seu triunfo
na epístola, que propriamente a recusa em relação a esse saber por parte de Pico. Isto se
revela no estilo douto e elaborado, adotado na epístola para os argumentos do filósofo
medieval, como escreveria um humanista. No final da epístola, Pico nega de concordar
com tal filósofo, afirmando, igualmente, haver se comportado como Glauco no escrito
platônico, a República, ao falar contra a justiça a fim de incitar Sócrates a realizar a
defesa dela115
.
Ademais, sabe-se que Pico sempre praticou tal alternância de estilo, se compara
aquele utilizado nas epístolas e na Oratio, e aquele apresentado nas Conclusiones
nongentae, ou seja, recorrendo ao estilo parisiense para as obras filosóficas e
humanístico para os seus escritos literários ou para as epístolas. Contudo, esses
argumentos não esgotam por completo a questão, mesmo reconhecendo a sua habilidade
estilística, oriunda de seus estudos humanísticos e de sua erudição, isto é, expressões e
construções poéticas advindas de seu conhecimento de Gélio, Apuleio, Plínio. Portanto,
não obstante a defesa dos filósofos medievais, aquilo que se destaca ainda é a relevância
da Retórica, mesmo para aqueles que buscam refutá-la em seus escritos: algo que se
revelou na sua defesa do filósofo “bárbaro” 116
.
Ademais, voltar-se aos Escolásticos na busca por ideias e tradições, ligadas ao
Cristianismo, expressa uma verdadeira harmonia entre os estilos retórico e filológico, ou
seja, da retórica de alguns filósofos como Quintiliano (30 a.C. 95 d.C.), Sêneca e
Cícero. Pico já havia escrito uma epístola, como se indicou antes, para Ermolao
Barbaro, um ano antes, na esperança de discutir sobre Platão e Aristóteles, e provar a
intenção discursiva para a defesa de tais filósofos. Em retribuição a Pico, Ermolao
observou em sua carta escrita em resposta ao erudito de Mirandola117
, desde a sua
estada no centro paduano, à existência de filósofos grosseiros no que concerne ao que
escreviam, em virtude da precariedade no estilo, ou seja, nem elegante e tampouco
claro.
115
Cf. BARBARO, Ermolao. Filosofia o Eloquenza?, p. 63. 116
Cf. BARBARO, Ermolao. Filosofia o Eloquenza?, pp. 39-59. 117
Bárbaro era um homem nobre, espirituoso e famoso por seus estudos sobre Aristóteles. Ele reuniu
muitas cartas em que se destaca a sua personalidade e doutrina (cf. BROCCHIERI, Mariateresa Fumagalli
Beonio. Pico della Mirandola, pp.76-77).
60
A recomendação de Pico para Bárbaro era, sobretudo, para que ele retomasse
seus estudos literários a língua grega, uma observação importante para a sua
composição filosófica. Olhar para os poetas de verdade, ou para aqueles da
Antiguidade, era uma tarefa indispensável, conforme apresenta a Carta escrita por Pico
a Barbaro em que se destacam a forma e seu discurso118
. Se Pico dependia dos escritos
filosóficos medievais, observando o valor e solidez dos pensamentos sobre a verdade
dos seus conteúdos, e não por causa das belas palavras ou do estilo rebuscado, Barbaro
defendia, ao contrário, a necessidade de se preservar os cânones da retórica clássica,
opondo-se assim ao estilo dos clássicos medievais119
.
Escrevendo a Ermolao Barbaro, Pico queria conciliar linguagem e pensamento,
propondo assim expressar a verdade em palavras, destacando o modelo usado por
Cícero, em máxima do linguajar escolástico120
, pois ele se lastima de ter observado que
os filósofos separaram a sabedoria da eloquência. No entanto, Barbaro não defendia um
estilo sem substância que merecesse “laudem et sempiternam memoriam” e que fosse
além de sua doutrina. A posição de Barbaro em relação a Pico, diz respeito à capacidade
de se destacar uma tripla atuação, na poesia, na oratória e na Filosofia121
, todas
118
Cf. BROCCHIERI, Maria Teresa Fumagalli Beonio. Pico della Mirandola, p. 77. 119
Para Valverde: “Na correspondência trocada, Barbaro defendia a necessidade de se preservar os
cânones da retórica clássica na redação de textos filosóficos contra a ausência de elegância estilística e de
erudição clássica dos medievais. Pico, em carta laudatória e eloqüente, replicou que os escritos filosóficos
medievais têm valor pela solidez dos pensamentos e pela verdade dos conteúdos, e não por belas palavras
ou estilo rebuscado. O traço divisório entre humanismo e escolástica delineia-se, para o caso, na fronteira
entre retórica e Filosofia. Pico, mesmo imbuído de conhecimento do pensamento humanista e
manifestando-se em latim escorreito, fato reconhecido por Barbaro, tendeu a uma síntese filosófica entre
ambas as tendências: medieval e humanista renascentista” (cf. VALVERDE, Antonio José Romera, Filos,
Aurora, Curitiba, V.21, n.29, p.457-480,jul/dez. 2009, p.469).
120 Assim como traduz Richard: “Ele relata o lugar comum de que é preferível ler “estórias sagradas,
escritas de modo rústico àquelas com elegância”, que são certamente melhores do que “todos aqueles
discursos bem elaborados”. No entanto, logo o argumento fica confuso: sim, admite o defensor do
escolasticismo, esse estilo parece ser “tolo, rude, inculto”, mas somente pelo fato de ser escrito para os
iniciados, da mesma forma usada pelos antigos para ocultar seus mistérios em fábulas no intuito de
manter afastados ou não iniciados, que iriam “poluí-los com composições ainda mais repulsivas de
palavras (amariori paulum córtice verborum). Por fim, depois de uma brincadeira com os nomes
“arbitrários” que, por caso, emprega aqueles das escolas escolásticas (romanas, franceses, britânicos,
espanhóis, “ou até mesmo aquilo que os vulgares estão acostumados a chamar de parisienses” (cf.
RICHARD, Paul Blum. Pico, a Teologia e a Igreja, IN: Pico della Mirandola: Novos Ensaios.
M.V.Dougherty (org) Trad. Getulio Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2011 (Pico, a Teologia e a igreja.
RICHARD, Paul Blum, p.64). 121
Pico não tinha, porém, tanta certeza disso. Alguns anos antes, ele escrevera a Poliziano afirmando de
não merecer os elogios recebidos por suas poesias. Ele estava certo em suspeitar de não poder ser
comparado com os elevados padrões de seu amigo, não quando se tratava da latinidade. Conforme
escreve Kraye, “Poliziano geralmente fazia correções com relação ao estilo. Ao prometer tentar „um dia
ser o tipo de pessoa que você já declara que sou‟, Pico diz que por enquanto, irá imitar a estratégia de
61
vivenciadas, de forma vigente, no Renascimento italiano e propagadas, sobretudo, pelos
doutos dos studia humanitatis.
A posição dos escolásticos se opunha aquela apresentada pelos studia
humanitatis em que a Filosofia deveria se articular à Retórica, ou seja, a da união entre
sapientia e eloquentia. Em oposição à ideia de que a Eloquência e a Retórica sejam
adequadas apenas a tribunais de justiça, não cabendo a instituições acadêmicas, Pico
evoca, quanto aos escolásticos, mais necessidade da eloquência. O escolástico
encontrava mais dificuldades com o uso do discurso, pois associava a Retórica ao ato de
persuadir a multidão mais facilmente, e a Filosofia com o ato de convencer os
indivíduos de forma mais perspicazes com o seu discurso122
. O filósofo imaginário da
epístola se vangloria de haver estudado não nas escolas dos gramáticos, mas nos
círculos dos filósofos, ou seja, exprime certo desprezo em relação à erudição123
.
Pico descreve na epístola a Barbaro124
, destacando a sua exposição eloquente,
como se deve observar o discurso, ou seja, a forma como se usa para se elaborar uma
exposição, demonstrando, igualmente, uma defesa aberta dos grandes mestres árabes e
latinos, pertencentes à Idade Média: algo que revela também o seu empenho no estudo
que havia desenvolvido de filósofos como São Tomás de Aquino, Duns Escoto e
Averróis. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma oposição a toda preocupação superficial,
apresentada por alguns representantes dos studia humanitatis ante a Retórica, e de um
Poliziano, „desculpando-se por seu grego dizendo que é latino, assim como se desculpa por seu latim
porque está tentando ser grego‟. Da mesma forma, Pico irá se fazer aceitável para os poetas e oradores ao
afirmar que é um filósofo e para os filósofos ao se apresentar como um orador e venerador das musas”
(cf. KRAYE, Jill. Pico acerca da Relação da retórica e da Filosofia. IN: Pico della Mirandola: Novos
Ensaios, p. 30). 122
Segundo comenta Kraye: ”Os filósofos não querem os aplausos dos teatros; em vez disso, eles
preferem o silêncio respeitoso daqueles poucos que conseguem enxergar as coisas de modo mais
profundo. Mas então, ele diz a Bárbaro, qual o problema de as pessoas comuns nos considerarem
sórdidos, rudes e incultos, como você afirma: não é para elas que escrevemos, mas para vocês e para as
pessoas como vocês. Embora essa atitude da parte do escolástico possa refletir o desdém aristotélico do
conde de Mirandola e Concórdia pelas massas do povo, o que mostramos aqui não é um elitismo social
mais intelectual, muito parecido com o do amigo de Pico, Poliziano, cuja origem é relativamente
humilde” (cf. KRAYE, Jill. Pico acerca da Relação da retórica e da Filosofia. IN: Pico della Mirandola:
Novos Ensaios, p. 36). 123
Cf. BARBARO, Ermolao, MIRANDOLA Della Pico. Filosofia o Eloquenza?, pp. 39-41. 124
Kreye comenta: “Na carta de Pico a Barbaro, o escolástico usa outra imagem para ilustrar a
disparidade entre a aparência externa e a realidade interna: as estátuas de Sileno, horrendas por fora, mas
repletas de pedras preciosas por dentro, que Alcebíades no Banquete de Platão, uma fonte não disponível
para os filósofos medievais, compara a Sócrates, cuja aparência repulsiva oculta a beleza interna de seus
pensamentos sob o exterior feio de um estilo grosseiro é impedir que o público tenha acesso às ideais que
não são adequadas a sua compreensão limitada” (cf. KRAYE, Jill. Pico acerca da Relação da retórica e da
Filosofia. IN: Pico della Mirandola:Novos Ensaios, p. 39).
62
estudo árduo, completo e especulativo, pois estavam presentes em seu cenário
humanista a falsafa árabe e ainda outras culturas e doutrinas investigadas, conforme já
se expôs neste estudo, desde a Astrologia à Qabbalah.
Isto revela a sua capacidade de investigar as várias esferas do pensamento
humano, pressuposto de um projeto filosófico aberto à recepção de sistemas e
orientações filosóficas distintas, pois confirma a dimensão do interesse de Pico em
relação aos saberes. É certo que tanto a filosofia escolástica quanto a filosofia árabe, ao
beber da fonte grega, fora instrumento da compreensão e formação do pensamento
filosófico125
de Pico della Mirandola126
. Ademais, não se pode descuidar de que entre as
fontes de seu pensamento e, em especial, da sua epístola a Ermolao, ou seja, quanto à
ideia do filósofo imaginário bárbaro, encontra-se o De oratore de Cícero, além do que o
diálogo ciceroniano defende ainda a questão da relação entre Eloquência e Filosofia.
Com base nessa relação, Cícero defendeu a superioridade do orador em relação
ao filósofo, pois o orador é necessariamente filósofo, ao passo que o filósofo não é
necessariamente orador. Trata-se do desprezo do filósofo à Eloquência. As observações
de Pico, dirigidas a Ermolao, destacavam também o fato de este último valorizar muito
mais a Filologia127
do que a Filosofia. Isto porque Ermolao estaria mais voltado para a
estilística literária e não para a verdade: tarefa fundamental do projeto de Pico della
125
De acordo com Cassirer: “Assim como as artes plásticas buscam fórmulas plásticas de conciliação,
também a filosofia busca fórmulas conceituais de conciliação “entre a confiança medieval em Deus e a
confiança do homem do Renascimento em si mesmo”. Tal esforço manifesta-se de forma não menos
evidente na literatura propriamente “filosofia” da época, nos tratados meio-filosóficos, meio-retóricos,
que constituem o traço literário característico da nova era humanista” (cf. CASSIRER, Ernst. Individuo e
Cosmos na Filosofia do Renascimento, pp.127-128).
126
Richard escreve: “Considerando que essa carta foi escrita antes de Pico confrontar-se com os prelados
romanos e até mesmo antes de ter estado em Paris, ela mostra com clareza uma pauta persistente do
filósofo, isto é, a tentativa de avaliar a sabedoria nos textos escritos que não são insípidos nem todos.
Obviamente, a melhor maneira de avaliar a autoridade da teologia doutrinal é voltando a sua origem, o
que, no caso de Pico, pode indicar a necessidade de uma leitura cuidadosa da Bíblia ou, ainda melhor, a
obtenção do acesso a seu modo adequado e divino de falar, que se manifestou no livro. Para o primeiro,
Pico produziu seu próprio comentário a respeito da Criação no Gênesis; para o segundo, ele descobriu a
Cabala” (cf. PICO DELLA MIRANDOLA: Novos Ensaios/editado por. (cf. RICHARD, Paul, Blum.
Pico, a Teologia e a Igreja. DOUGHERTY. M.V (org), p.65). 127
Para Kraye: “Barbaro [...] estava preocupado em demonstrar que era possível escrever a respeito da
filosofia natural sem violar a „propriedade e a transparencia da língua romana‟. Pico, ao escrever para seu
amigo humanista Poliziano, implorava para que ele „se esforçasse bastante‟ e „recuperasse a literatura de
sua decadência, para que, assim, o esplendor da língua romana não perca totalmente seu brilho por meio
dos efeitos nocivos do tempo‟. Quando expôs suas 900 Teses para o debate planejado em Roma, porém,
ele anunciou no prefácio que “não imitara o esplendor da língua romana, mas, em vez disso, o estilo
usado pelos mais célebres debatedores parisienses para falar, já que ele é usado por quase todos os
filósofos de nossa época” (cf. KRAYE, Jill. Pico acerca da Relação da Retórica e da Filosofia.
DOUGHERTY. M.V. (org). Pico della Mirandola: novos ensaios, p. 41).
63
Mirandola na busca de identificar, nas várias doutrinas, a presença dessa verdade, pois
não ausente também nos escritos escolásticos.
A erudição proveniente dos estudos realizados pelos séculos antecedentes ao
Renascimento contribuiu também para o crescimento filosófico, pois introduziu
Aristóteles e Averróis128
nos currículos universitários: questões como o propósito de
Santo Tomás de Aquino129
em provar pela razão os dogmas cristãos e, em seguida,
Duns Escoto,130
demonstrando de que maioria em tais doutrinas estava além da razão.
Portanto, Pico se ateve em buscar esse conhecimento, ou seja, ler e estudar os
filósofos,131
tanto gregos como os árabes e escolásticos, na sua busca por todo esse
universo de pensamentos, os quais jaziam em doutrinas e orientações diversas do
pensar. Isto explica, igualmente, a presença na epístola a Ermolao de várias fontes e
citações no discurso do filósofo: referências gregas e latinas.
Há, portanto, um penhor em não romper com as ideias já antes propostas pelos
filósofos, questão importante no seu empreendimento, ler e citar os antecessores do seu
pensamento, expressando também com relevância retórica pautada no conhecimento das
128
De acordo com Saranyana: “Ibn Roshd nasceu em Córdoba. Seu pai e seu avô foram qâdies (juízes) de
Cargo que ele próprio chegou a ocupar em sua maturidade. Apresentado à corte almóada de Fez por Ibn
Tufayl, foi também médico do sultão. Embora gozasse sempre do favor dos sultões almóadas, sofreu uma
curta perseguição e desterro quase no final da sua vida. Foi reabilitado poucos meses antes de sua morte,
ocorrida no dia 10 de dezembro de 1198, na corte de Marrocos” (cf. SARANYANA, Josep-Ignasi. A
Filosofia Medieval. Das Origens patrísticas à Escolástica Barroca. São Paulo: Instituto Brasileiro de
Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2006, p. 235). 129
Sobre Tomás de Aquino, o Doctor Angelicus, diz Saranyana: “nasceu em 1224/5, em Roccasecca,
próximo a Aquino, na parte setentrional do Reino de Nápoles. Seu pai, Landolfo de Aquino, era um nobre
gibelino, ou seja, partidário do imperador Frederico II, coroado em 1220. Sua mãe, Teodora de Teata, era
de origem normanda. Foi o caçula de sete irmãos” (cf. SARANYANA, Josep-Ignasi. A Filosofia
Medieval. Das Origens patrísticas à Escolástica Barroca, pp. 304-305). 130
Conforme Saranyana: “Nasceu em Duns, pequena localidade escocesa, no seio de uma família de ricos
proprietários, benfeitores dos Frades Menores. Em 1278, aos trezes anos de idade, ingressou no convento
de Dumfries para se iniciar na vida franciscana. A Edição clássica de suas Opera Omnia foi preparada por
Lucas Waddingo, publicada em 1639, em doze volumes, e reeditada por Vivès (París, 1891-1895), em
vinte e seis volumes. Esta edição contém vinte e quatro obras atribuídas a scoto, das quais somente treze
são seguramente autênticas. A edição crítica foi iniciada em 1950 pela Comissio Scotistica, ligada ao
Pontificium Athenaeum Antonianum e do Collegio San Bonaventurra (Roma e Grottaferrata,
respectivamente), e até agora editou onze externos volumes: sete correpondem à Ordinatio (antes
denominada Opus oxoniense), um personalíssimo comentário as Sentenças de Pedro Lombardo, que ficou
inacabado (os dois primeiros livros dessa Summa já estavam redigidos quando morreu, e os dois restantes
foram completados por seus discípulos); e os outros quatro correspondem à Lectura prima: o curso,
descoberto recentemente, que Scoto lecionou em Oxford entre 1300 e 1301” (cf. SARANYANA, Josep-
Ignasi. A Filosofia Medieval. Das Origens patrísticas à Escolástica Barroca., pp. 382-383). 131
Sobre o universo cultural e filosófico desse período, pode-se sustentar: “tradições antigas das mais
variadas fontes, desde a escolástica medieval ao averroísmo, do pitagorismo à tradição hermética de
Zoroastro, do Islão à Antiguidade clássica e à Cabala judaica, e até à magia e as ciências ocultas” (cf.
Neoplatonismo Renascentista – Pico Della Mirandola e o Discurso Sobre a Dignidade do Homem, PUC-
Rio, p. 14).
64
fontes clássicas. Além disso, no berço do pensar e nos círculos dos doutos, ou seja, dos
assim denominados estudos em Filosofia, encontrava-se a separação entre a filosofia
platônica e aquela aristotélica, cabendo também a Pico della Mirandola buscar
justamente aliar, ou melhor, harmonizar ambas as filosofias.
Para que tanto a filosofia de Platão quanto a de Aristóteles pudessem ter um
estudo e aceitação melhor para as Academias já existentes, como o exemplo de
Florença, Pádua e Bolonha, cada centro de estudos filosóficos destacava apenas um
desses filósofos, a saber, Platão ou Aristóteles. Pico, também, na busca de conhecer
outras filosofias, assim como o conhecimento e a verdade que cada uma delas
transmitia, tinha como tarefa especifica a conciliação entre as duas orientações
filosóficas, tão necessárias ao seu intento em relação à Filosofia: algo que se expressa,
igualmente, em sua reflexão presente na Oratio. O Humanismo florentino,132
com a
admiração professada pela Antiguidade clássica grego-latina, revelava, porém, a
presença de uma diversidade de orientações, oriundas da tradição, e investigada na sua
separação. Daí a tentativa de Pico em buscar uma compreensão, lançando as suas teses
com base nesse conhecimento presente nesse universo cultural: ideal de concórdia
esboçado nas Conclusiones.
Se, por um lado, estava o conhecimento grego, por outro, o conhecimento dos
árabes, e até mesmo da doutrina filosófico-teológico dos judeus, da qual Pico teve como
mestres judeus, Elias Del Medigo e Mitríates, pois o levaram a mergulhar no estudo da
Qabbalah, alçando voos mais altos, com a leitura dos exegetas orientais, mas ainda a
sua aproximação ao hermetismo. Isso se justificava pela intenção que Pico expressava
de conciliar a fé cristã e a vasta filosofia em seu sistema filosófico, o qual pretendia
expor para os doutos da época, assim como apresentar aqueles pensadores
desconhecidos dos eruditos. Daí ter sido conhecido pelos seus contemporâneos, como
príncipe da Concórdia e idealizador da Paz Filosófica: objetivos buscados por esse
filósofo como revelam as Conclusiones e a Oratio.
Na Oratio se expressa o empenho de Pico della Mirandola de destacar a nova
concepção que havia buscado do Cristianismo, ou seja, a forma que o homem tem da
132
Cf. VELAZQUEZ, Jorge Delgado. Barjo el Signo de Circe: ensayo sobre el humanismo cívico del
renascimento italiano e imaginário político de Nicolás Maquiavelo. La Ed Buenos Aires: Del Signo,
2006.
65
natureza espiritualista, destacando a valorização do homem que se faz presente pelo seu
livre arbítrio133
. Erasmo de Rotterdã difundiu a forma piquiana de falar do homem e de
sua dignidade, valendo-se das partes que compõem a sua natureza, pois o estilo literário
italiano e parisiense, usados por Pico, assim como a sua grande preocupação não só de
ler as fontes primárias (na língua grega e latina), como também resgatar a sabedoria dos
antigos. É certo que a Europa encontrava-se, após o fim da Idade Média e início do
Renascimento, no forte anseio de reformas religiosas pela purificação e renovatio da fé
cristã, e Pico, orientado não somente por seu mestre Ficino, mas por diversos filósofos,
seguiu em busca de novas fontes de conhecimento. Por conseguinte, isso revela o
conteúdo ético, moral e religioso da ação de liberdade no mundo, expresso na reflexão
de Pico.
Não obstante a escolástica separar Filosofia e Teologia, Pico busca conciliar,
com base no contexto filosófico-teológico, linguagem e pensamento, pondo essa ação
linguística, com base no modelo proposto por Cícero, conforme expressam os seus
argumentos na epístola a Ermolao134
. Tal intenção de Pico fora criticada pelos sábios da
época e a sua atitude filosófica contestada. A sua Oratio reforça, porém, o principio que
determina o homem, ou seja, a natureza humana, revelando certa moral filosófica e
pressupondo as interpretações que destacam Petrarca, na busca em Platão e em
133
De acordo com Still: “Assim em grande parte das ideias de Pico, seu tratamento do conhecimento foi
marcado por divergências de interpretações que parecem dividi-lo contra ele mesmo. Por um lado, existe
uma explicação minimizadora de Pico acerca do conhecimento: como foi moldado pelo escolásticismo
medieval, Pico é fundamentalmente um realista para quem não há problemas críticos que exigem uma
“teoria do conhecimento” distinta para serem solucionados. De fato, as doutrinas epistemológicas não são
essenciais para o pensamento de Pico e, em vez disso, representam um papel secundário quando
comparadas com questões relacionadas ao livre-arbítrio e ao amor” (cf. STILL. Carl. N. IN: A Busca de
Pico por Todo o Conhecimento. DOUGHERTY. M.V. (org). Pico della Mirandola: novos ensaios, p.
211). 134
Para Richard: “Ele relata o lugar comum de que é preferível ler “estórias sagradas, escritas de modo
rústico àquelas com elegância, que são certamente melhores do que “todos aqueles discursos bem
elaborados”. No entanto, logo o argumento fica confuso: sim, admite o defensor do escolasticismo, esse
estilo parece ser “tolo, rude, inculto”, mas somente pelo fato de ser escrito para os iniciados, da mesma
forma usada pelos antigos para ocultar seus mistérios em fábulas no intuito de manter afastados os não
iniciados, que iriam “possuí-los com composições ainda mais repulsivas de palavras amariori paulum
córtice verborum”. Por fim, depois de uma brincadeira com nomes “arbitrários” que, por acaso,
empregada aqueles das escolas escolásticas (romanos, franceses, britânicos, espanhóis, “ou até mesmo
aquilo que os vulgares estão acostumados a chamar de parisienses”, ele lastima que filósofos “tenham
separado a sabedoria da eloqüência” de modo que “Escoto filosofa melhor do que aquele outro homem
que fala com mais elegância”. Entretanto, é agora que vemos a moral da história: “Um deles tem uma
boca insípida (os insipidum), já o outro, uma cabeça tola (mens insipiens)”. Em favor de nosso
argumento, é essencial que o córtex verborum esteja totalmente do lado dos rudes” (cf. RICHARD. Paul
Blum. IN: Pico, a Teologia e a Igreja, DOUGHERTY. M.V. (org), Pico della Mirandola: novos ensaios,
pp. 64-65).
66
Cícero135
a essência de uma doutrina que retrata a dimensão de uma filosofia voltada
para a Moral. Quanto à divindade de Cristo, tanto a Magia natural como a Qabbalah
foram defendidas por Pico, em sua Apologia, sustentando que ambas serviam para
ajudar a defender essa divindade: a magia como ciência prática e natural que não
interfere na revelação divina, a Qabbalah que não se apresenta apenas como uma
disciplina, porém, como um dos caminhos importantes para a revelação136
.
Portanto, a compreensão da proposta filosófica de Pico, apresentada nas
Conclusiones e na Oratio, exige, ao mesmo tempo, um conhecimento de sua erudição e
justificativa de seu projeto filosófico, mas também do universo filosófico italiano
pertencente àquele período do Humanismo renascentista. Se Ficino137
teve um papel
135
De acordo com Dougherty: “O conceito ciceroniano de Sapientia é central na idéia do homem de
Petrarca. Ele implica, no pensamento do primeiro dos grandes mestres humanistas, o reconhecimento da
suprema nobreza do homem como criação divina, a ser realizado mediante o cultivo das humanae literae
pelo qual p homem atinge sua perfeição em vida. Para Petrarca, assim como para os primeiros
humanistas, era fundamental a conciliação entre fé e a tradição humanista no resgate da cultura dos
Antigos, na continuidade entre literatura, filosofia e moral cristã. Tal perfeição moral do homem se
traduzia em sua forma mais perfeita, para a maior parte dos humanistas italianos do século XV, no ideal
da vida cívica, tal como Salutati e Leonardo Bruni, o que concebiam essa mais alta realização do homem
na plenitude da liberdade replubicana de Florença, tida como herdeira da Roma republicana. Em nome na
manutenção da liberdade cívica florentina, Salutati e Bruni louvavam a filosofia como mãe de todas as
artes e ciências” (cf. DOUGHERTY. M.V (org). “Três percursores do debate romano de Pico della
Mirandola e a questão da Natureza humana na Oratio”. IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, p.17). 136
Segundo Richard: “Ao condescender com os censores, ele explica “no estilo parisiense” que, além da
lei escrita revelada a Moisés no Monte Sinai, Deus também lhe concedeu “a verdadeira interpretação da
lei, incluindo todos os mistérios e segredos, que estão escondidos sob a casca (sub córtice) e a fase nua
das palavras”. Isto é, Moisés recebeu uma lei “literal e espiritual”. Como Deus havia proibido a colocação
da lei espiritual por escrito, ela foi transmitida exclusivamente de forma oral. Pico, em nota de precaução,
diz que essa sabedoria hebraica não tem nada a ver com as atividades judaicas anticristãs, exatamente
pelo fato de ter sua origem antes dos tempos de Cristo” (cf. RICRARD. Paul. Blum. IN: Pico, a Teologia
e a Igreja. DOUGHERTY. M.V. (org). Pico della Mirandola: novos ensaios, p. 66). 137
No entender de Reale: “Como filósofo, Ficino se expressou sobretudo nas obras Sobre a religião cristã
e Teologia platônica, além de vários comentários a Platão e a Plotino. O seu pensamento é uma forma de
neoplatonismo cristianizado, rico em observações interessantes, dentre as quais emergem como peculiares
as seguintes: a) o novo conceito de filosofia como “revelação”; b) o conceito de alma como “copula
mundi”; c) um repensamento do “amor platônico” em sentido cristão. A) A filosofia nasce como
“iluminação” da mente, como dizia Hermes Trismegisto. O ato de dispor e dobrar a alma, de modo a que
se torne intelecto e acolha a luz da divina revelação em que consiste a atividade filosófica, coincide com a
própria religião. Filosofia e religião são inspiração e iniciação aos sacros mistérios do verdadeiro. Hermes
Trismegisto, Orfeu e Zoroastro foram igualmente “iluminados” por essa luz, sendo, portanto profetas.
Assim, sua obra é uma mensagem sacerdotal, voltada para a divulgação do verdadeiro. (...) b) No que se
refere à estrutura metafísica da realidade, Ficino a concebe, segundo o esquema platônico, como uma
sucessão de graus decrescentes de perfeição, que ele, porém, de modo original (em relação aos
neoplatônicos pagãos), identifica nos cinco graus seguintes: Deus, anjo, alma, qualidade (forma) e
matéria. Ora, os primeiros dois graus e os últimos dois são claramente distintos entre si, como mundo
inteligível e mundo físico, ao passo que a alma representa o “elemento de conjunção”, que tem as
características do mundo superior) mas, ao mesmo tempo, é capaz de vivificar o mundo inferior. Numa
ótica neoplatônica, Ficino admite uma alma do mundo, almas do mundo, almas das esferas celestes e
almas dos seres vivos, mas é sobretudo para a alma racional do homem que ele dirige o seu interesse. O
lugar medial da alma é o terceiro, tanto percorrendo os cinco graus da hierarquia do real de baixo para
67
relevante na formação desse contexto cultural e doutrinário, igualmente, as doutrinas
como a magia e o hermetismo foram relevantes nessa formação. Pico apresentou, no
universo filosófico e douto, a Qabbalah e o aristotelismo, visto e estudado em Pádua,
pois já havia sido apresentado com a acentuada presença da escolástica filológica em
alguns humanistas. Ademais, a Qabbalah judaica, de origem Medieval, e as influências
helenísticas, apresentavam, em algumas partes, conteúdos herméticos, como também os
Oráculos Caldeus e o orfismo. Para os cabalistas, o alfabeto hebraico possui “nome ou
nomes de Deus”, refletindo assim a natureza espiritual ou a maneira especifica natural
da linguagem do Criador, nas letras que compõem esse alfabeto. Apresenta-se aqui a
forma com que os cabalistas unem-se à Teologia, forma transcendente, simplificada por
meio do nome de Deus, criador das criaturas humanas.
Trata-se, portanto, de uma técnica proveniente da Espanha do século XIII, ligada
às do alfabeto hebraico, em cuja forma estão implícitas as diversas combinações e
variações possíveis138
. Na sua especulação sobre a Qabbalah, Pico declarara que tal
doutrina remontava à antiga tradição, justamente pela forma com a qual fora transmitida
a Moisés, ou seja, a forma esotérica. O livro das dez Sefirot139
está contido no Livro da
cima como de cima para baixo, como mostra como: 1= Deus, 2=Anjo, 3=Alma, 4= Qualidade, 5=
Matéria. Desse modo, escreve Ficino: “Semelhante natureza parece extremamente necessária na ordem do
mundo, de modo que, depois de Deus e do anjo, que não são divisíveis nem segundo o tempo nem
segundo a dimensão, e acima do corpo e da qualidade, que se dissipam no tempo e no espaço, cumpra o
papel de meio termo adequado: um termo que seja de certo modo dividido pelo espaço. C) Em Ficino,
está estreitamente ligado a essa temática da alma o tema do “amor platônico” (ou “amor socrático”), pelo
qual o Eros platônico (entendido por Platão como força que, a visão da beleza, eleva o homem ao
Absoluto, dando à alma as asas de que necessita para retornar à sua pátria celeste; cf. Vol. I, pp.152s) se
conjuga com o amor cristão. Para Ficino, em sua mais alta manifestação, o amor coincide com a
reintegração do homem empírico à sua Idéia metempírica em Deus, o que se torna possível através de
uma progressiva ascensão na escala da Coleção Filosofia)” (cf. REALE. Giovanni. História da Filosofia:
Do Humanismo a Kant. São Paulo: Paulus, 1990, pp.70-74). 138
De acordo com Reale: “Embora a Cabala seja essencialmente uma doutrina mística, um método para
tentar conhecer a Deus, encontra-se a ela vinculada também uma atividade mágica, que pode ser exercida
mística ou subjetivamente sobre nós mesmos: é uma espécie de auto-hipnose para facilitar a
contemplação. G. Scholem pensa que Abu´L-Afiya a praticasse precisamente nesse sentido. Ela também
pode se desenvolver em uma forma de magia operativa, que se vale do poder da língua hebraica ou dos
poderes dos anjos invocados para realizar operações de magia. (È obvio que falo pondo-me na posição de
algém que acredita misticamente na magia, como Pico de Mirândola.). Os Cabalistas elaboraram muitos
nomes desconhecidos das Escrituras( que mencionam apenas Gabriel, Rafael e Miguel), acrescentando à
raiz, pela qual é definida a função especifica de determinado anjo, um sufixo como “El” ou “iah”, que
representa o nome de Deus. A esses nomes de anjos invocados ou inscritos em talismãs, era atribuída uma
grande eficácia” (cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia. Do Humanismo a Kant, p. 79). 139
As Sefirot são “os dez nomes mais comuns de Deus e, em seu conjunto, formam o seu único grande
nome: nomes criativos que Deus chamou ao mundo e o universo criado é o desenvolvimento externo
dessas forças vivas em Deus. Esse aspecto criador das sefirot se insere em um contexto cosmológico.
Existe,com efeito, uma relação entre eles e as dez esferas do cosmos, composto das esferas dos sete
planetas, da esfera das estrelas fixas e das esferas dos sete planetas, da esfera das estrelas fixas e das
68
formação ou criação, isto é, no Sefer Yesirah, e em outros ensinamentos doutrinários
como o Livro da Iluminação ou Zohar.
Entre as doutrinas que Pico buscava conhecer e descrever pode-se aqui destacar:
as diversas orientações orientais da tradição hermética; Judaísmo versus Cristianismo; o
zoroastrismo; a espiritualidade medieval e as correntes teológicas. Pode-se também
destacar nesse universo de questões, sobretudo, em Nicolau de Cusa e Marsílio Ficino,
o valor da natureza do homem com as direções por ele seguidas, pois expressava a
relevância do conhecimento da virtude teológica do homem. Tais influências se
traduzem nos humanistas, na demonstração do conteúdo metafísico e religioso presente
nas premissas do ideal humanista. Trata-se aqui de uma integração que ocorre não sem
dificuldades, pois o ideal filosófico da Idade Média, voltados para a imagem-visão da
concepção aristotélico-escolástica e para a reta doutrina da Igreja Católica, transcorria
em seu modelo de pensar conforme havia sido concebida na sua gênese de
pensamento140
. Era preciso conhecer não só a doutrina ortodoxa do Cristianismo, mas
também do Judaísmo, como seu antecessor do pensamento. Na Oratio se desvenda
parte do que fora expressa na forma de Teses presente nas Conclusiones, sobre essas
orientações: algo que permite conhecer, direcionando aos clérigos Igreja e aos sábios, o
penhor do Pico havia identificado e que pretendia defender no debate romano.
Há ainda as correntes de pensamento que se fizeram fortes, sobretudo, nesse
período do humanismo renascentista, ou seja, aquele relativo ao século XV-XVI,
esferas superiores, situadas além dessas. Ademais, o Cabalismo é constituído pela importância atribuída
aos anjos ou espíritos como intermediários esparsos por esse sistema e dispostos em hierarquias
correspondentes às outras hierarquias. (cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia. Do Humanismo a
Kant, p.78). 140
De acordo com Cassirer ”mesmo essa integração não ocorre sem dificuldades e obstáculos, que se
tornam compreensíveis quando se tem presentes as transformações internas pelas quais passou o espírito
do „Renascimento‟, de meados do século XV até o final. Somente uma geração separa as obras filosóficas
capitais de Nicolau de Cusa das de Ficino ou Pico; e, não obstante, o confronto entre elas deixa clara a
transformação que se processou não apenas na problemática abstrata, mas também em todo o ambiente
intelectual, em toda a atitude diante dos problemas do espírito. Este ângulo de observação evidencia
também o quanto é enganosa a crença de que o processo de libertação do Renascimento das amarras da
“Idade Média” foi do tipo retilíneo, uniforme e progressivo. Em nenhum sentido trata-se aqui de um
desenvolvimento tranqüilo e uniforme, de um crescimento simples e espontâneo. No embate de forças
que aqui se realiza, chega-se sempre a um equilíbrio temporário, totalmente instável. O sistema de
Nicolau de Cusa representou, também ele, um tal equilíbrio frágil na grande disputa que se travou entre o
conceito de verdade religioso e filosófico, entre fé e conhecimento, entre religião e cultura do mundo.
Mas o otimismo religioso de Nicolau de Cusa, que ousou abarcar a totalidade do mundo, que atraía para
si e tentava reconciliar o homem e o cosmos, a natureza e a história, subestimou o poder das forças
contrárias que tinham de ser dominadas e controladas” (cf. CASSIRER, Ernest. Indivíduo e Cosmos na
Filosofia do Renascimento, p.101).
69
destacando-se o platonismo e o aristotelismo, mas também o epicurismo e o estoicismo,
pois constituíam parte da orientação de alguns autores pertencentes a essa época, e
vivenciadas por meio da cultura desses séculos. Não se pode deixar de considerar ainda
a influência de Sexto Empírico141
, sobre aqueles que tendiam a escrever acerca dos
céticos na questão relativa à felicidade, com ênfase na renúncia do conhecimento da
verdade. Quanto à concepção de religião no âmbito teológico-religioso, pode-se aqui
indicar aquela construção de uma docta religio pensada por Ficino e Pico. Sem deixar
de considerar o fato da ira do Papa Inocêncio VIII contra Pico della Mirandola, em
virtude de suas Conclusiones e em matéria religiosa e teológica: algo que contribuiu
para a Filosofia e a erudição do período renascentista142
.
Um dos principais objetivos de Pico em seu estudo da Qabbalah, no conjunto
das suas 72 teses cabalísticas, era demonstrar as verdades apresentadas por essa
doutrina como evidentes verdades do Cristianismo143
. As obras de tradição exegética,
141
De acordo com a reflexão de Reale: “O primeiro a utilizar Sexto Empírico de modo sistemático foi
João Franscisco Pico de Mirandola (1469-1533), neto do grande Pico, em sua obra Exame das Fatuidades
das teorias dos pagãos e da verdade da doutrina cristã (1520), na qual ele utiliza elementos céticos para
demonstrar a insuficiência das teorias filosóficas e, portanto, da razão pura concluindo que, para alcançar
a verdade, é preciso a fé. A João Francisco Pico liga-se Heinrich Cornelius (que se fazia chamar Agrippa
de nettesheim, 1486-1535, conhecido sobretudo como mago), na obra Incerteza e Fatuidade das Ciências
e das Artes (escrita em 1526 e publicado em 1530),na qual sustenta que não são as ciências e as artes
humanas (que são refutadas com argumentos extraídos de Sexto Empírico) que salvam o homem, mas
somente a fé. Na França, foram publicadas sucessivamente nove versões latinas de Sexto Empírico. Em
1562, Stephanus (Henri Estienne, 1522-1598) traduziu os Esboços Pirronianos e, em 1569, Gentiam
Hervet (1499-1484) publicou todas as obras de Sexto Empírico em versão latina” (cf. REALE. Giovanni.
História da Filosofia: Do Humanismo a Kant, p.93). 142
Richard escreve: “Giovanni Pico e seus talentos literários, sua proficiência e ortodoxa na teologia, sua
lealdade aos Médici e a política religiosa de Roma, tudo isso estava em jogo. Para começarmos pela
política religiosa de Roma, tudo isso estava em jogo. Para começarmos pela política religiosa: quando
Giovanni Pico convocou um grande conselho em Roma para discutir as 900 Teses no final de 1486, ele
foi recebido com suspeitas e inimizade. Depois de Inocêncio VIII se tornar papa em 1484, um de seus
primeiros atos fora enviar uma carta de apoio entusiasta para a Universidade de Paris, onde Pico em
pouco tempo começaria a estudar e de onde ele trouxe o projeto e as idéias de seu debate romano. O que
Paris significava para a filosofia e para a teologia passaria a se tornar um dos temas do debate. Enquanto
Pico ainda se preparava para o grande evento, vozes críticas surgiram infelizmente não sabemos quem
eram esses críticos. De acordo com a Vita de Giovanni escrita por Gian Franscesco, eles foram instigados
pela inveja, uma conclusão que ele pode ter tirado das declarações de Giovanni em sua Oratio, que devia
abrir o debate e que, evidentemente, já respondia às críticas. Algumas pessoas, Giovanni diz, “não
aprovam a totalidade desse método de debate e essa instituição de debater publicamente a respeito do
aprendizado (mais precisamente, sobre as letras);outras “de modo algum o aprovam em mim porque eu,
nascido, admito, há apenas 24 anos, tenha ousado, na minha idade, propor uma discussão relacionada aos
sublimes mistérios da teologia cristã (...) em uma cidade tão famosa”; e outras ainda”deturpam (o debate)
como sendo um trabalho totalmente desnecessário e faustoso” (cf. RICHARD. Paul. Blum. IN: Pico, a
Teologia e a Igreja. DOUGHERTY. M.V. (org). Pico della Mirandola: novos ensaios, pp. 52-53).
143
Richard sustenta:” Em seguida, Pico afirma que as letras precisam ser separadas e reorganizadas para
que possam revelar os mistérios mais maravilhosos e sábios. Sua amostra é a primeira palavra da Bíblia,
beresit (no principio). Depois de descrever uma série de operações e recomposições de suas letras, Pico
revela o significado que estava implícito nessa única palavra: „o pai, no Filho e pelo filho, o início e o fim
70
filosófica e mística que Pico della Mirandola se pôs a traduzir, foram aconselhadas em
grande parte pelos colaboradores hebreus convertidos. Desse modo, a metodologia
utilizada e o curriculum seguido pelos humanistas foram indicados por personalidades
como Flavio Mitridate, Yohanan Alemano e, talvez, Avram Farissol.
2.2 Pico e a problemática das Calculationes
Sabe-se que em Oxford, no filão do occamismo, surgira a Escola ou orientação
filosófica dos terministi, ou seja, lógicos que haviam apresentado as primeiras
tentativas, ainda muito rudimentares, de quantificação da Física: uma tentativa indireta
de exprimir não as qualidades qua tale. Entre esses lógicos destacara-se Richard
Swineshead, latinizado em Suiseth, pois se tornara o mais conhecido por haver escrito o
Liber Calculationorum, várias vezes editado com o nome de Calculator. Depois, o foco
desse movimento se transportou do Merton College para Viena e Heidelberg e, em
seguida, para Paris, com Buridano e Nicolas d‟Oresme.
Na Itália, tal movimento foi acolhido, de início, por Padova, mas logo suplantada
por Pavia com a colaboração de Giovanni Marliano. Portanto, Pavia tornara-se assim o
foco das „calculationes suiseticae‟, ou seja, desse novo modo de calcular atribuído a
Suiseth. Quanto a Pico della Mirandola, já se conhece o seu princípio de que todo
pensamento ou doutrina expresse uma verdade, e a necessidade de investigá-las em
vista de uma metafísica da conciliação, capaz de realizar uma síntese, igualmente, entre
platonismo e aristotelismo ou entre outras doutrinas associadas a essas orientações
filosóficas. Pode-se identificar na Oratio de hominis dignitate esse intento de Pico de
investigar todas as doutrinas e pensadores. Na segunda parte da Oratio, ele escreve:
Eu, pelo contrário, propus interessar-me seriamente por todos os
mestres da filosofia, examinar todas as posições, conhecer todas as
escolas, mas não jurar sobre a palavra de ninguém. Por isso,
encontrando-me na necessidade de falar de todos os filósofos, para
não parecer sustentar uma tese determinada sem tomar em
consideração as outras, as questões propostas não podiam deixar de
ser muitas no seu conjunto, ainda que sejam poucas as atinentes a cada
um. [...] Por todos os antigos, de fato, foi observada esta regra, que,
ou resto, criou a cabeça, o fogo e o fundamento do grande homem com um bom pacto‟” (Cf. RICHARD.
Paul. Blum. IN: Pico, a Teologia e a Igreja. DOUGHERTY. M.V (org). Pico della Mirandola: novos
ensaios, p.73).
71
examinando cada autor, não deixasse de ler, tanto quanto possível,
nenhum escrito144
.
Interessava a Pico della Mirandola explorar também os segredos da natureza,
conforme indica a sua relação com a magia natural, e os seus estudos em Pavia,
(realizados em 1483-1484) testemunham o seu conhecimento desse novo modo como se
abordava a Física, ou seja, a filosofia da natureza com método matemático. Há na
literatura sobre Pico della Mirandola relatos sobre a sua posição ante esse novo
procedimento. Segundo testemunha o seu sobrinho, Gianfrancesco Pico, a primeira
reação de Pico della Mirandola tinha sido negativa:
nada lhe permaneceu encoberto sobre as futilidades a Suiseth („suiseticas
quisquilias‟), que se chamam calculações. São reflexões matemáticas
aplicadas as mais sutis ou se diria melhor, as mais pedantes especulações a
propósito da natureza. Embora fosse muito versado nessas matérias e
tivesse lido desses escritos mais que outro italiano [...] parece, todavia,
que os odiasse e detestasse 145
.
Gian Franco não expõe, todavia, as razões da recusa de Pico em relação aos
calculatores, porém a justificativa filosófica em relação ao desprezo piquiano desse
procedimento possa ser encontrada na seção das Conclusiones dirigida à Matemática, a
saber, a quinta Conclusio de mathematica secundum opinionem propriam. Pico
sustenta:
Como diz Aristóteles, afirmando que os Antigos erraram no estudo da
natureza porque eles trataram matematicamente as realidades naturais, seria
verdadeiro que estes tivessem tomado as matemáticas materialmente, e não
formalmente – assim é muito certo que os Modernos, os quais discutem, de
forma matemática, sobre as realidades naturais, destroem os fundamentos da
filosofia da natureza146
.
Dessa quinta Conclusio de mathematica, pode-se assim inferir duas formulações:
de um lado ele critica os matemáticos modernos, isto é, os Calculatores, que buscam
discutir, de forma matemática, as realidades naturais, ou seja, quantificando a Física e,
de outro, critica igualmente Aristóteles, por não ter compreendido os Antigos, isto é, os
seus antecessores. Os seus argumentos pressupõem a distinção entre materialiter
acceptae e formaliter acceptae, isto é, sobre a distinção relativa à verdadeira natureza
144 MIRANDOLA, della Pico. Discurso sobre a dignidade humana, pp. 91-93. 145
PICO, Gianfrancesco. Vita, apud VALCKE, Louis. Giovanni Pico Della Mirandola, IN:
GARFAGNINI, Carlo Gian (org.). Giovanni Pico della Mirandola. Convegno internazionale di studi nel
cinquecentesimo anniversario della morte (1494-1994), Città di Castello: Centro Internazionale di cultura
“Giovanni Pico Della Mirandola, Studi Pichiani, Leo S. Olschi, 1997, p.328. 146
MIRANDOLA, della Pico. Conclusiones nongentae [Le novecento tesi dell‟anno 1486]. Trad. it.
Alberto Biondi, Città di Castello: Leo S. Olschki, 1995, p. 107.
72
dos números. Quando se pensa que os números fossem apenas meros resultados das
nossas medidas, serão tomados no sentido material, mas quando se pensa que os
números originais fossem princípios ontológicos pré-existentes às coisas materiais, com
base nos quais tais coisas teriam a dimensão numérica delas, ter-se-ia então o número
formal. Ainda nas Conclusiones e, em particular, naquelas paradoxae, Pico havia
sustentado: “segundo Pitágoras, o número é o princípio de toda coisa” 147
. O
pressuposto da crítica de Pico della Mirandola ao procedimento dos Calculatores, e à
posição de Aristóteles, seja a teoria platônica das Ideias. De acordo com Louis Valcke:
[...] sabe-se que nesse período – o período, isto é, da Oratio, das
Conclusiones, da Apologia – Pico aderia, quase sem reticências, ou
aparentemente sem reticências, ao „platonismo‟, isto é, ao ambiente
exaltado da Academia florentina, ao mais extremo neoplatonismo que,
ele mesmo, de início, sob a orientação de Ficino, havia descoberto nas
suas formas mais autênticas, na leitura das Enneades148
.
É com base nesse pressuposto que se esboça e se pode compreender a dupla
crítica, presente nas Conclusiones sobre a Matemática. É certo que ante os “modernos”,
Pico siga a Aristóteles, segundo a sua concepção de que as determinações da natureza
fossem essencialmente qualitativas, mas quantificar a natureza é justamente o que os
Calculatores realizam: daí Pico refutar esse erro metodológico149
.
De acordo com o testemunho de Gianfrancesco Pico, o seu sobrinho, Pico havia
se interessado pela linguagem e procedimento dos Calculatores e havia compreendido,
pois mesmo que eles tivessem conseguido realizar essa transcrição da natureza ao
quantitativo, teria sido ainda algo parcial e limitado. Aristóteles havia, igualmente,
sustentado ser legítimo, até certo ponto, de se poder assimilar o raio luminoso a uma
reta geométrica e poder estudá-lo como tal. Porém, esse estudo, ou seja, da ótica
geométrica, não poderá jamais revelar a natureza específica da luz como tal. Em
verdade, a crítica de Pico aos Calculatores ultrapassa a questão limitada ao
procedimento, pois as formulações piquianas são as de um filósofo, ou seja, de um
pensador que busca, de forma aprofundada, o fundamento, de um filósofo metafísico. O
novo método dos Calculatores minaria assim as bases da Física, compreendidas,
147
Ibidem, p.81. 148
VALCKE, Louis. “Giovanni Pico Della Mirandola e il ritorno a Aristotele”. IN:GARFAGNINI, Gian
Carlo (org.). Giovanni Pico della Mirandola, pp. 329-330. 149
Cf. VALCKE, Louis. Giovanni Pico della Mirandola e il ritorno a Aristotele. IN: GARFAGNINI,
Gian Carlo (org.). Giovanni Pico della Mirandola, p.330.
73
naquele momento, como bases metafísicas, além do que o intento de Pico, sempre
destacado nas Lettere na Oratio, no Heptaplus era o estabelecimento da concórdia
entre Platão e Aristóteles150
.
Sabe-se que, em 1486, Pico della Mirandola, preparando-se para elaborar as
Conclusiones, estava convencido ou quase convencido que “o platonismo fosse o
autêntico depositário da verdade filosófica e de toda sabedoria humana – e justamente o
platonismo da tradição neoplatônica que [...] é considerada fiel e autêntica” 151
.
Portanto, o platonismo se torna a norma, com base na qual pode se estabelece a
concórdia entre Platão e Aristóteles, pois se
[...] pressupõe que seja o aristotelismo a ser adequado ao platonismo,
que seja Aristóteles a ser reconduzido a Platão. É preciso, portanto,
esclarecer que o verdadeiro Aristóteles, isto é, um Aristóteles
corrigido também dos seus próprios erros de leitura, que tal
Aristóteles pensaria como Platão e estaria de acordo com a tradição
platônica „mesmo se em uma primeira leitura [...] parecessem
discordar, como afirma Pico na sua primeira Conclusio concilians152
.
Isto explica, igualmente, as formulações da quinta Conclusio sobre a Matemática em
relação também a Aristóteles.
2.3 As origens da Oratio de Pico della Mirandola: a problemática da Disputatio
Para uma compreensão das origens, ou seja, daquilo que motivou à elaboração
da Oratio é preciso, antes de qualquer coisa, uma abordagem da questão concernente à
proposta de Pico, em 1847, do Debate a ser realizado em Roma. A ideia de propor um
debate público e solene em Roma sobre os problemas do pensamento mais diversos
pode ter a sua origem e influência, não só nos debates da Sorbonne, naquela época, mas
também nos “círculos” de estudos de Padova e de outros lugares frequentados por Pico
della Mirandola. Também essa ideia poderia ter se originado dos debates organizados
pelas Ordens religiosas ou das reuniões na Academia platônica de Careggi, organizadas
por Ficino, ou ainda daquelas ocorridas nas reuniões em sua própria casa.
Certamente que a ideia de Debate expressa a forma como seriam enfrentados
esses vários problemas de pensamento, mas também se justificava por Pico ver no
150
Cf. VALCKE, Louis. Giovanni Pico della Mirandola e il ritorno a Aristotele. IN: GARFAGNINI,
Gian Carlo (org.). Giovanni Pico della Mirandola, p. 334. 151
VALCKE, Louis. Giovanni Pico della Mirandola e il ritorno ad Aristotele. IN: GARGAGNI, Gian
Carlo (org.). Pico della Mirandola, p. 334. 152
Ibidem, pp. 334-335.
74
debate o único meio fundamental de concórdia das ideias. Além desses elementos pode-
se ainda indicar aqueles elementos que Pico acrescentava de ordem organizacional:
Roma como lugar e presença do Papa, de cardeais e também de uma vastidão e
diversidade de temas e problemas. O chamado actus sorbonicus era a disputa de
doutorado, e pertencia igualmente à práxis de todo Estado. Ademais, não podemos
deixar de sustentar que os debates, naquela época, fossem a ocasião, naqueles ambientes
de estudo, de explosões decorrentes de um terreno completamente em ebulição. Dirigir-
se aos doutos de qualquer estância e também eclesiásticos, era um grande desejo de
Pico. Daí o conhecimento que até então era do seu interesse serviu para a constituição
da matéria do Debate153
.
Para Pico della Mirandola não se tratava de um debate de doutorado, algo que
não correspondia a sua realidade, pois devia refutar a ideia de um título acadêmico na
medida em que este representava um instrumento de carreira e provento. Ao contrário, o
debate pensado por Pico devia significar uma vasta assembleia de doutos e de ideias, a
fim de conseguir aquela concórdia que, segundo ele, existia no interior das diversas
doutrinas e orientações filosóficas. É certo também que ele não ignorasse que os doutos,
em vez de destacarem as convergências, preferiam destacar e aprofundar as
divergências. Pico expressa tal argumento na sua Oratio:
É indubitável, ó Padres, que múltiplas são as discórdias entre nós,
temos lutas intestinas graves e piores do que guerras civis, que só a
filosofia moral poderá acalmar, se lhes quisermos fugir e se quisermos
153
Como escreve Maria de Lourdes Sirgado, as novecentas teses “foram escritas com a intenção de
promover, em Roma, em 1487, uma discussão filosófica pública, tão alargada quanto possível, que devia
reunir os filósofos de todas as tendências, unidos num esforço comum de aproximação à verdade e de
promoção da concórida entre todas as doutrinas. Pico propunha-se discutir acerca de tudo, isto é, de omni
scibili. Tal propósito suscitou imediatamente opositores, que viam num projeto como este um gesto
extravagante, ou um sinal de orgulho desmedido, por parte de alguém que era ainda muito jovem para
poder sustentar uma disputa destas. Porém, as críticas mais contundentes e que determinaram a sorte da
disputa que nunca se chegou a realizar, foram as que apontaram como estando eivadas de heresia algumas
das suas teses. De fato, algum sabor heterodoxo estava contido em concepções como aquelas em que
fazia referencia à defesa de Orígenes ou à negação da eternidade das penas do Inferno. Desagrado
suscitou também a sua defesa da magia e da Cabala. Ermolao Barbaro, nesta oposição á disputa romana,
assume um papel de contraditor moderado, considerando-o um sofista e comparando-o a Górgias,
pronunciando-se contra este estilo de discussões públicas, inúteis e vãs, porque não conduzem a uma
obtenção da verdade e apenas visam a obtenção de prestigio e de honras. A Oratio, como se pode
verificar, foi concebida, não como uma obra autônoma, mas como a introdução necessária á abertura da
disputa romana e tendo já presente algumas das críticas apontadas às conclusões” (cf. SIRGADO, Ganho
Maria de Lourdes. “Apresentação”. IN: Pico Della Mirandola. Giovanni Discurso sobre a dignidade do
homem, p. XVIII).
75
obter a paz que nos conduza ao alto, de modo a colocar-nos entre os
eleitos do Senhor 154
.
O Debate era, no íntimo, uma espécie de discórdia, mas podia ser também o
único meio de aproximar homens e ideias, em conformidade com aquela dignitas
hominis que era autêntica responsabilidade ante o destino do homem. Daí a disputa
podia ser a possibilidade de se esclarecer ideias, de forma respeitosa e em conformidade
com as próprias Escrituras. Pico chegou ainda a afirmar, sob a pressão das
circunstâncias adversas, que o Debate pretendia ser como tantos outros um exercício
scholastico, embora não fosse, na verdade, o seu propósito, como estava previsto no
início de seu projeto. Por conseguinte, a disputa seria para ele um “concílio”, não de
padres, embora assistido por padres, mas de uma assembleia entre doutos, acerca da
verdade, algo que ele sustenta na abertura da Apologia: “digno de Roma, reconhecido
pelos príncipes cristãos, útil a mim e aos outros estudiosos” 155
.
Portanto, a sua proposta revela uma seriedade e orientação com base em três
elementos: i) a meta da concórdia; ii) debatida por doutos de toda a Europa; e iii) sobre
problemas fundamentais de doutrina em Roma. Quanto à escolha da cidade, ou seja,
Roma, não se tratava de uma cidade célebre em sentido teológico ou filosófico, pois não
era ainda o caso de Roma, mas por ser o centro da Cristandade ocidental e, ao mesmo
tempo, o lugar de confluência das culturas e das civilizações. Além disso, a escolha de
Roma pressupunha o reconhecimento da presença da Corte pontifícia, ou seja, a
presença do Papa, dos cardeais e de outros dignitários ligados à Igreja, além das
representações diplomáticas.
Quanto ao Debate, pode-se ainda sustentar que Pico pretendia realizar dois
objetivos: de um lado, ter a presença do Pontificado romano para a problemática
doutrinal da época e, de outro, a presença dos doutos provenientes de qualquer parte
geográfica e ideal à função unificante daquele Pontificado. Porém, esses dois objetivos
podem estar unificados em um apenas, a saber: poder celebrar e realizar a “unidade
doutrinal” justamente na Sede daquela instituição, e juntos corroborarem para a unidade
da mente e do espírito. A presença do Papa representava, portanto, a benção da
iniciativa proposta, em que se buscariam conciliar as diversas doutrinas como uma
154
MIRANDOLA, della Pico. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 69. 155
MIRANDOLA, Pico della. Apologia, apud. NAPOLI, di Giovanni, Giovanni Pico della Mirandola e
la problematica del suo tempo, Roma: Pontifici, p. 83.
76
espécie de Concílio ecumênico, ou seja, conciliação entre ideias e orientações
doutrinárias com o espírito ecumênico da grande instituição do Medievo e do
Renascimento, ou seja, da Igreja.
Cabe agora se expor a ordem dos argumentos constituidores do Debate. Tal
ordem devia ser a seguinte: Dialética, Moral, Filosofia da natureza, Metafísica,
Teologia, Magia, Qabbalah, as tradições culturais, a saber, as doutrinas dos Caldeus,
Árabes, Gregos e Latinos156
. Ademais, deve-se aqui sustentar que tais doutrinas não
eram consideradas por Pico como algo do passado, pois permaneciam ainda, não
obstante o desaparecimento dos seus autores, as tradições em formas e modos diversos,
associadas aos problemas, por exemplo, Magia e Qabbalah estavam ainda vivas como
as sectae, familiae e schedae. Além dessas doutrinas, pode-se ainda identificar, nesse
universo de problemas, o platonismo que Ficino havia atribuído uma sistematicidade
para além dos Estudos, pois já presente no Medievo, firmando-se cada vez mais pela
atividade dos humanistas157
. Contudo, nos Estudos estavam presentes outras orientações
filosóficas além do platonismo, considerado, igualmente, pelos catedráticos como algo
do passado.
Deve-se ainda expor acerca do Debate a presença dos doutos. Se Pico defendia a
proveniência deles de qualquer parte geográfica, quanto à orientação filosófica
poderiam ser tomistas, ocamistas ou escotistas, cristãos, hebreus ou árabes, mas também
estudiosos da Magia, da Astrologia e da Qabbalah. Portanto, todos deveriam estar
presentes em Roma para esse Debate ecumênico de ideias. Em 1486, ao voltar de Paris,
Pico se instala em Fratta, pois a sua atividade entre Florença, Perugia e Fratta é intensa,
uma vez que busca reunir todos os conhecimentos que até então havia adquirido, ao
modo escolástico parisiense, com o objetivo de justificar o seu labor filosófico, e no
contexto do Renascimento a preocupação em veicular um conhecimento enciclopédico:
daí a elaboração das Conclusiones. Além das suas formulações, com base na tradição,
constavam também aquelas que expressavam as suas posições individuais ao lado dos
pensamentos daqueles que antes dele contribuíram com a Filosofia. Quatrocentas teses
tinham o caráter histórico e critico, uma vez que se reportavam à filosofia dos
pensadores os quais havia lido.
156
Cf. NAPOLI, di Giovanni. Giovanni Pico della Mirandola e la problemática del suo tempo, p. 83. 157
Cf. NAPOLI, di Giovanni. Giovanni Pico della Mirandola e la problemática del suo tempo, pp. 83-84.
77
A disputa devia ser aberta por um discurso solene como preâmbulo: daí a
Oratio, redigida entre Perugia e Fratta. Com base na dignitas hominis, compreendida
como liberdade, ou seja, como plena responsabilidade do homem ante o seu próprio
destino, tal discurso se concluía com a bondade do saber e a fecundidade da disputa.
Pico enviou cópia dessa oração ao poeta e amigo Girolamo Benevieni, destacando,
igualmente, o fato de um escrito visar à paz. Portanto, a Oratio se dirigia ao auditório e
também àqueles que a haviam lido. No entanto, essa oração se dirigia, em especial, às
autoridades eclesiásticas, uma vez que Pico, na mesma oração, as chamava de “Padres
colendissimi”, destacando assim aquela participação que teriam essas autoridades no
Debate.
Se na Oratio encontram-se dois pontos fundamentais, a saber, a dignidade do
homem e a temática da concórdia, são ambos retratados de maneira peculiar, traçando
assim claramente a relevância na qual ambos foram buscados por Pico, e valendo-se do
conhecimento que havia adquirido. Tal debate se realizaria com a suma presença do
Papa e do colégio de Cardeais, e de eruditos trazidos às suas custas e oriundos dos
grandes centros de Estudos, algo considerado sui generes por sua intenção ambiciosa de
propor esse debate inclusive em Roma158
. Com benevolência e confiança, Pico o
propôs, valendo-se de seu conhecimento adquirido com a leitura dos autores e
doutrinas: leituras realizadas em Latim, em Grego e Árabe.
A Oratio é reconhecida como um texto do Renascimento e publicada de maneira
a apresentar a Disputatio, como uma incontestável filosofia do período renascentista
italiano, e identificada como um dos textos mais bem expressos e complexos no que
158
M. V. Doughrty comenta: “De acordo com alguns relatos, Pico não é nada menos que um prodígio
renascentista sui generis sem precedentes, que acreditava que seu debate romano seria capaz de anunciar
de maneira única a Segunda Vinda. Um comentador faz referencia a essas interpretações ao perguntar:
„Será que Pico acreditava que seu debate no vaticano terminaria com os Quatro Cavaleiros do Apocalipse
voando de maneira ruidosa pelos céus de Roma(...)? È impossível saber com certeza‟ . Contudo, ainda é
possível encontrarmos a proposta ambiciosa de Pico em três tradições que tornam o evento mais
convencional do que poderíamos inicialmente esperar. Sem negar que alguns elementos de inovação
permeavam a proposta romana de Pico, eu gostaria de sugerir que o acontecimento tinha a intenção de
imitar três momentos acadêmicos bem estabelecidos: a tradição das quaestiones disputatae da
universidade medieval, a tradição de colecionar e comentar sententiae, e a prática da interpretação
dialética em estilo aristotélico. Depois de mostrar que a proposta de Pico deveria ser vista como uma
continuação renascentista especial desses três exercícios acadêmicos, devo afirmar que a falha em
reconhecer essas tradições nos leva, às vezes, a uma visão exagerada do projeto de Pico e, de forma ainda
mais séria, a algumas interpretações incomuns de suas posições filosóficas, em especial de suas ideias
acerca da natureza humana” (cf. DOUGHRTY. M.V. Três Precursores do Debate Romano de Pico della
Mirandola e a Questão da Natureza Humana na Oratio IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, p.138).
78
tange à antropologia filosófica, por tratar a questão da liberdade e natureza humanas.
Quanto aos termos usados por Pico, em relação ao seu Debate, destacam-se: disputatio,
congressus e bellum. Todos esses termos exprimem o que iria ocorrer em Roma:
pretensão questionada por doutos da época, pois o modelo do debate já era usado em
Paris e adotado por Pico para realizar o seu empreendimento.
Apesar da conotação antagônica de pelo menos alguns dos termos,
temos evidências de que Pico via seu debate como um exercício
tradicional e não sem precedentes entre os sábios. De início, a
intenção de Pico era informar aos seus oponentes reunidos que as
reputações deles haviam sido construídas com base em debates como
aquele, sendo que, no breve prefácio das 900 Teses, ele declarou que
ao apresentar suas teses ele imitara o modo bastante utilizado dos mais
ilustres debatedores parisienses, uma alegação que ele repetiu mais
tarde na Apologia. Mais adiante na Oratio, Pico lamentou uma atitude
contemporânea de oposição ao debate em geral público em particular
e previu com razão, como variamos que aqueles sentimentos
perniciosos fariam com que algumas pessoas se opusessem aos seus
planos romanos em principio.Essas confissões da Oratio ao menos
indicam que Pico via seu debate proposto como estando alinhado aos
debates acadêmicos padronizados de sua época159
.
Ainda em relação ao Debate e à terminologia usada por Pico della Mirandola, o
seu sobrinho Gianfrancesco Pico observou que a forma em que seu tio havia deixado
precisava ser apresentada de maneira menos pretensiosa,160
não só na sua expressão
literária. O termo quaestiones fora usado por Pico reportando-se também as suas Teses.
Pico expõe um modelo utilizado, no inicio do século XII, pela Universidade de Paris
que, após ganhar notoriedade na França, se espalhou pelos principais Centros europeus,
como Oxford e Roma. Ele escrevera na forma de um ressurgimento tardio do gênero
Antigo e Medieval, e no que concerne ao estilo fazia uso de uma florilegia, conforme a
159
Cf. DOUGHERTY. M.V. IN: Três Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola e a
Questão da Natureza Humana na Oratio IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, pp. 140-141. 160
De acordo com M. V. Dougherty: “È tentador considerarmos Pico envolvido em uma forma tardia de
um debate acadêmico medieval padronizado, já que Gianfrancesco parece levar a sério a afirmação de seu
tio de ter planejado o projeto romano como “um exercício escolástico de temas das escolas”
(scolasticamque exercitationem more academiarum). Provavelmente seguindo a avaliação tradicional de
Gianfrancesco do debate romano planejado, diversos comentadores afirmam que o evento deveria ser
visto como uma continuação do costume do debate medieval das quaestiones quodlibetales (questões
quodlibetais).os debates quodlibetais, que se tornaram proeminentes ao menos no inicio do século XIII na
Universidade de Paris e mais tarde ganharam popularidade em outros centros europeus de aprendizado,
incluindo Oxford e Roma, eram debates públicos improvisados em que tópicos para discussão
relacionados a qualquer coisa “de quolibet) podiam ser propostos por qualquer indivíduo (a quolibet)
presente” (cf. DOUGHRTY, M.V. Três Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola e a
Questão da Natureza Humana na Oratio IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, p. 142).
79
disposição dos tópicos161
. Em Pico esse estilo fora organizado de acordo com os autores
e a tradições seguida das teses que correspondem às Conclusiones.
O sobrinho de Pico observou também que seu debate estava escrito tanto no
modelo do quodlibetal medieval quanto em outro modelo como a quaestio disputata, ou
seja, modelos de escrita e debate162
utilizados em escritos medieval. Tanto na Oratio
quanto na Apologia foram usados a forma cuidadosa piquiana, em que houvesse susto,
não do que estava escrito nas teses “certis et determinatis”, mas relação ao número de
teses a ser expostas, ou seja, 900 teses. Ademais, aquilo que preocupava ao filósofo de
Mirandola era o modo como esses escritos seriam vistos, já que a retórica também faria
parte da parte do discurso de abertura das Teses.
Em Roma, Pico della Mirandola continua a estudar frequentando, igualmente, a
Biblioteca Vaticana e preparando-se para o solene “Debate”. Contudo, nem todos
participavam do mesmo entusiasmo, e muitas eram as críticas em relação à prática
dessas disputas por serem associadas à ostentação, mas ainda se tratava da ousadia de
um jovem laico, de 24 anos, ou seja, ousar propor uma disputa sobre problemas muito
difíceis em uma cidade como Roma e em uma assembleia de homens muito doutos e de
grande doutrina, isto é, diante do Senado da Igreja. Outros condenavam, no entanto, o
número excessivo das Teses. Não se falava ainda de erros e heresia, mas tais críticas já
revelavam e manifestavam a hostilidade ao projeto de Pico.
Já fora de Roma outras são as manifestações, pois Ficino é solidário com o jovem
e o segue com admiração, sem dispensar certa ironia em relação ao número excessivo
de Teses. Roberto Salviati conforta o amigo e informa a Ermolao Barbaro sobre o
161
Nesse sentido, Dougherty escreve: “A vasta disposição de fontes que Pico compilou em sua coleção é
incrível: seu domínio incomum de línguas, aliado a suas tendências bibliofílicas, sem dúvida fez com que
ele produzisse uma coleção de sentenças padronizadas. Sua educação em Bolonha, Ferrara, Pádua e París,
aliada aos contatos eruditos em Florença, certamente o preparou para seu compêndio de teses de grande
alcance. No prefácio das 900 Teses, Pico não economiza na descrição das fontes de suas teses, e sua longa
descrição pode servir como uma taxonomia dos assuntos e das fontes de seu livro”(cf. DOUGHRT, M. V.
IN:Pico della Mirandola: novos ensaios, p.144). 162
De acordo com Dougherty: “Pico pode ter tido em mente aqui explicitamente os debatedores das
questões quodlibetais quando se separou daqueles de sua época que, à maneira do antigo retórico Górgias,
estava disposto a propor a discussões “relacionadas a todas as artes” (de omnibus etiam omnium artium),
em vez de qualquer número finito de preposições. Em suma, o fato de Pico ter anunciado e distribuído
suas teses antes do debate planejado e ter destacado o tema principal limitado de sua proposta elimina a
inclusão de seu debate romano na tradição das quaestiones quodlibetales” (Cf. DOUGHRTY. M.V. Três
Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola e a Questão da Natureza Humana na Oratio, IN:
Pico della Mirandola: novos ensaios, p. 143).
80
projeto de Pico, mas ainda sobre as dificuldades encontradas em Roma. Barbaro
exprime admiração pelo seu saber, mas reconhece que uma disputa pública não tem
valor, nem filosófico nem dialético, pois é considerada apenas um meio para se obter
fama. Em Roma, porém, os adversários, não obstante as respostas de Pico às críticas,
não se desarmam e terminam pondo em alarme o Papa Inocêncio VIII que, no decorrer
dos acontecimentos, o condena. Em resposta à Comissão, Pico della Mirandola
responde a três objeções contra o debate no texto da Oratio: i) inoportunidade da
disputa; ii) a pouca idade de Pico; e iii) o número excessivo das Teses163
.
É preciso aqui destacar em relação à Oratio de hominis dignitate que a sua
primeira parte conserva todo o seu valor, pois a segunda assume um valor apenas
contingente de defesa contra os ataques dos adversários romanos, ou justifica a tese
relativa à prisca theologia164
, à magia e à Qabbalah. A Oratio não é um tratado e nem
mesmo um ensaio de elaboração conceitual, como são as outras obras de Pico como o
De ente et uno,165
mas um preâmbulo para uma disputa pública dirigida aos padres e
doutos que participariam do encontro. Redigida em alto estilo retórico, mas
ultrapassando os limites da Retórica, exalta a liberdade-responsabilidade do homem e,
ao mesmo tempo, reúne todas as disposições culturais e morais com a finalidade da pax
philosophica. Contudo é inegável que a Oratio expresse também a concepção filosófica
de Pico della Mirandola, e de seu projeto de saber nesse período. É inegável ainda a
presença de certo procedimento em que se revela a defesa de uma multiplicidade das
vias e da busca de concórdia entre doutrinas sapienciais e filosóficas 166
.
Pico não só enaltece o ser criado por Deus, o homem, mas na Oratio se
apresenta a sua ética do existir, demonstrando assim o próprio sentido natural do ser
humano, ou seja, de agir de acordo com as atitudes orientadas para isso. A Oratio se
apresenta como um chamado para que os Padres pudessem observar com benevolência
163
Cf. NAPOLI, di Giovanni. Pico della Mirandola e la problemática del suo tempo, pp. 83-84. 164
Essa ideia é pensada por Ficino e Pico, como tradição sapiencial, ao mesmo tempo teológico-religiosa
e filosófica, na qual a Antiguidade, desde o Egito de Hermes Trimegisto, a Pérsia de Zoroastro até a
Grécia de Platão e Plotino, coincidiriam em harmonia doutrinal e concórdia com o Cristianismo. 165
Trata-se de uma obra de Pico della Mirandola composta entre os últimos meses de1490 e a primavera
de 1491. Em tal obra, ele examinou a controvérsia ocorrida entre os seguidores de Platão e Aristóteles,
defendendo assim certa comunhão de ideias entre esses pensadores. 166
Para Sirgado: “Ser ontologicamente de natureza indeterminada, distingue-se, por tal fato, tanto do
mundo natural como do mundo angélico, de que é o mediador, distingue-se ainda devido a ser o artífice
de si mesmo, de tal modo que o problema da sua natureza não se pode pôr a priori, mas tão-só a
posteriori” (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. “Apresentação” IN: MIRANDOLA, Giovanni Pico
della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.XXII).
81
o texto. Em sua constituição, a Oratio reporta-se ao homem, em sua peculiaridade, logo
no início de sua exposição. Daí se considerar aqui a seguinte disposição dos argumentos
a fim de uma apresentação ainda muito ampla de seus temas e procedimento. Nesse
sentido pode-se sustentar que:
Embora em sua primeira edição Gianfrancesco Pico tenha publicado a
obra como um todo contínuo (sendo que a maior parte das edições
preserva esse costume), parece natural dividirmos a Oratio em seções
ou divisões principais de acordo com os principais assuntos abordados
por ela. Em meu julgamento, a obra pode ser perfeitamente dividida
nas cinco seções a seguir: 1. A discussão da natureza humana (2-16).
2. Três elementos de um currículo filosófico (16-38). 3 Uma apologia
da Filosofia (38-42). 4. Três objeções ao debate romano (42-52). 5. Os
temas das teses (52-81)167
.
Tais temas e argumentos estão articulados com base, de um lado, em uma erudição que revela a
origem e diversidade das fontes e, de outro, com uma orientação, quer retórica quer filosófica do
procedimento.
2.4 Cultura humanista e Filologia: erudição e procedimento na Oratio
Uma reflexão acerca da Oratio não pode prescindir de algumas considerações
sobre o classicismo humanista, ou seja, o novo posicionamento dos humanistas em
relação à obra dos chamados auctores, em que buscaram se aproximar diretamente dos
textos, refutando assim, de forma enérgica, toda mediação de interpretações exegéticas e
retóricas, em que a arte e a língua muito perfeita dos grandes autores latinos fossem, de
forma arbitrária e monstruosa, deformadas. A primeira reação dos humanistas, ante as
deformações ocorridas durante o Medievo, é identificada com a posição assumida por
Francesco Petrarca ante aos moldes artificiosos do latim falso e barroco das artes
dictandi que impôs artificialidade e vulgaridade na abordagem da língua dos
clássicos168
.
Há aqui o repúdio à elocutio artificialis e uma busca de recuperação do
“verdadeiro” latim, livre das deformações de uma tradição degenerante. Ocorre,
portanto, uma reação contra a noção anti-histórica que o latim assumiu nos gramáticos
167
Cf. DOUGHERTY. M.V. Três Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola e a Questão
da Natureza Humana na Oratio IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, pp. 157-158. 168
Ver aqui VISCARDI, Antonio. Storia della letteratura italiana dalle origini al Rinascimento, Milano:
Nuova Accademia, 1960, pp. 465-476.
82
medievais: aquela noção que Dante aludiu em seu escrito De vulgari eloquentia. Por
conseguinte,
[...] a noção do latim como „gramática‟, como língua artificial e
convencional, criada, definida e regulada pelos doutos para tornar
possível a comunicação e o intercâmbio entre os homens de tempos
diversos e de países diversos, falantes de línguas „naturais‟ diversas;
língua [...] secundária em relação às línguas „naturais, „construída‟ por
homens de países diferentes e de diferentes línguas „naturais‟169
.
Propõe-se então um retorno à língua de Roma e não à gramática „abstrata‟.
Trata-se de um conhecimento reconquistado e da consciência concernente à realidade
histórica do latim, ou seja, do seu desenvolvimento histórico, portanto, o
reconhecimento da contribuição que cada grande escritor e orador deram à formação e
definição da língua latina. Por conseguinte, não é a concepção da atividade humanista
com recuperação de grandes obras mantidas nos ergástulos das bibliotecas monásticas,
ou seja, obras que se encontravam no esquecimento e no silêncio secular, aquilo que
explica propriamente esse movimento.
Tampouco a noção de perfeição e exemplaridade da civilização clássica pode
ser considerada uma nova conquista dos humanistas, pois já se encontrava entre os
mestres da escola classicista medieval170
. Aquilo que representa uma nova conquista e
que se expressa no convite de Petrarca de “retorno aos antigos” é, portanto, o
reconhecimento do mundo antigo na sua “verdadeira” realidade, pois
[...] os homens medievais, mesmo os mais doutos, também aqueles
que parecem realmente mais partícipes da tradição classicista, nunca
perceberam pertencer a um mundo espiritual diferente daquele
clássico; porque nunca advertiram aquela „fratura‟ que os separa
daquele mundo que as escolas evocam motivos ideais e formas 171
.
O Medievo impôs uma interpretação ou transfiguração do mundo antigo,
completamente assimilado pelo mundo presente, por conseguinte “dois mundos
diversos, antigo e moderno, tinham sido confundido e unificados, e a Antiguidade
reduzida a um mundo totalmente medieval” 172
. É, portanto, da consciência conquistada
do fim da civilização antiga que nasce o classicismo humanista, ou seja, do
reconhecimento da decadência daquela civilização que finda, mas também o
169
Ibidem, p.480. 170
Cf. VISCARDI, Antonio. Storia della letteratura italiana dalle origini al Rinascimento, p.481. 171
Ibidem, p. 477. 172
Ibidem, pp. 477-478.
83
reconhecimento de um período áureo do processo de civilização. O resultado
fundamental da nova postura do humanismo com relação aos autores clássicos decorre
assim do afirmar-se de uma consciência histórica, a qual se reflete no desenvolvimento
de novos métodos de estudo e procedimentos científicos. Por conseguinte, a busca dos
humanistas,
de restabelecer a verdade a respeito do mundo clássico determina o
nascimento de uma nova ciência, a ciência da Antiguidade [...] e, em
especial, o advento daquela ciência que nós chamamos Filologia: isto
é, a investigação dos textos literários, com método rigorosamente
histórico e crítico 173
.
Nesse sentido, ocorre na atividade dos humanistas uma oposição ao procedimento
puramente retórico dos estudiosos medievais em relação aos textos clássicos, pois se
insurge aquele filológico, sem, porém, destruir a sensibilidade artística e, ao contrário,
contribuindo com o seu aperfeiçoamento. A busca humanística de restabelecer a
verdade com relação ao mundo clássico se manifesta de forma concreta, de início na
exigência de restituir na sua autenticidade o texto dos grandes autores latinos contra
toda incrustação ou corrupção da tradição174
. Portanto, as descobertas dos humanistas
[...] não consistem tanto na descoberta de obras perdidas e
negligenciadas pelo Medievo, quanto na pesquisa dos vários textos
conservados de uma determinada obra e das recíprocas relações; com
a finalidade de reconhecer, através do confronto dos vários
testemunhos, a forma original da própria obra como saiu da pena do
autor 175
.
Tal exame da tradição exige, portanto, um conhecimento seguro de ordem linguístico,
daí as críticas em relação ao latim escolástico, mas também um conhecimento histórico,
antiquário, e uma sensibilidade aprimorada, sem esquecer os conhecimentos de modos
estilísticos de cada autor176
. A atividade filológica não pertence, porém, aos primeiros
humanistas, pois as primeiras manifestações permaneceram apenas como entusiasmo e
admiração. Porém, filólogos, indagadores dos monumentos literários clássicos, e
“instauradores de um método crítico rigoroso, são os humanistas da segunda geração:
173
Ibidem, p. 482. 174
Ibidem. 175
Ibidem. 176
Ibidem.
84
maior de todos Lorenzo Valla (1407-1457), que é realmente o fundador da Filologia
moderna” 177
.
Por conseguinte, o advento do método filológico dos humanistas assume um
grande significado, contribuindo, igualmente, para uma atitude crítica e anteposta ao
dogmatismo, esta última uma característica da forma anterior do pensar. Daí ocorrer a
crítica dos textos e discussões sobre a tradição, sem descurar do exame concernente ao
valor dos testemunhos. Tal posicionamento crítico se afirma também como repúdio de
toda autoridade, ou seja, livre exame da tradição e de toda sistematização definitiva
doutrinal178
.
Nesse contexto cultural renascentista, a atividade filosófica de Pico della
Mirandola não exclui certa dimensão filológica. Certamente o seu projeto exigia um
conhecimento de inúmeras obras clássicas e lista de livros e, nesse sentido, a
necessidade de aprender o grego, o hebraico, o árabe e o aramaico para as suas leituras.
Conforme escreve Sebastiano Gentile, ao se considerar as Conclusiones, aquilo que se
apresenta na sua redação final não há uma disposição sistemática e fiel dos textos como
realizaria um filólogo, mas um estudo que é fruto de
[...] uma mente extraordinariamente perspicaz que, porém, compila e
distorce, com frequência, as suas fontes de modo bem pouco
„filológico‟, tornando bastante árduo, aliás, para o leitor moderno,
destacar a origem precisa dos textos que ele pretendia propor para a
avaliação daquele concílio de doutos que afinal [...] não teve como se
reunir 179
.
Na primeira redação da Oratio, que devia servir, como se sabe, de abertura ao
debate e descoberta por Eugenio Garin no MS Palatino lat. 885, pode-se encontrar,
segundo afirma Sebastiano Gentile, uma afirmação metodológica de Pico della
Mirandola, aproximando-o assim ao espírito e intenções mais sólidas da tradição
humanista. Nessa redação da Oratio, Sebastiano Gentile escreve:
Após haver explicado as razões que o haviam induzido ao estudo da
Filosofia, Pico declara ter sempre considerado essencial, para alcançar
o seu escopo, duas condições: a abertura, sem qualquer impedimento
ou preconceito, a todas as escolas filosóficas; e o conhecimento das
línguas antigas: além do latim e do grego; era necessário também o
177
Ibidem, p. 483. 178
Cf. VISCARDI, Antonio. Storia della letteratura italiana dalle origini al Rinascimento, p. 484. 179
GENTILE, Sebastiano. “Pico filólogo”. IN: GARFAGNINI, Gian Carlo (org.). Giovanni Pico della
Mirandola, p. 466.
85
hebraico e o aramaico, mas também o árabe [...]. Porque ele sabia bem
que „omnis sapientia‟ havia passado dos bárbaros aos gregos e, em
seguida, dos gregos aos latinos; e que os filósofos ocidentais tinham
há muito desistido de alcançar àquelas tradições distantes, de que
também tinha origem todo o saber deles180
.
Para Pico della Mirandola era preciso a leitura das escrituras sagradas dos
hebreus e dos caldeus, a fim de se conhecer melhor a grande enciclopédia do saber ao
lado da grega e árabe: algo que caracterizava a orientação do projeto cultural e
filosófico humanista e renascentista. Para tanto era preciso, igualmente, a leitura desses
textos na língua originária, pois parte deles não era traduzida e outros até destruídos
pelos tradutores. Trata-se de uma necessidade de se conhecer esses textos, pois
desconhecidos ou incompreensíveis para o Ocidente. O seu conhecimento do hebraico
constituiu, no entender de Sebastiano Gentile, “o autout filológico de Pico, desde a
época da redação das Conclusiones. Os amigos se dirigiam a ele para superar aqueles
problemas de interpretação da Sagrada Escritura, que ele só podia dissolver
eventualmente remontando ao texto hebraico” 181
.
Portanto, Pico teve um papel relevante na retomada dos estudos filológicos e se
encontrava inserido nesse universo, quer por razões de estudo quer de amizade com
doutos como Angelo Poliziano e Lorenzo de Medici em projetos que envolvia a
organização de acervo bibliotecário e aquisição de obras raras e conhecimento de listas
de obras. Isso se revela, igualmente, na sua interpretação de uma tradição filosófica, até
aquele momento conhecida por poucos doutos ou assimilada com base em traduções
que comprometia, sem dúvida, o texto. Uma leitura atenta da Oratio pode revelar não só
a ideia de seu propósito, não só retórico e poético, mas também filológico e filosófico,
não obstante a ausência ainda de uma justificativa mais rigorosa e aprofundada dessa
articulação. Contudo a presença de certo exercício filológico é inegável na sua atividade
de filósofo e o insere em um universo mais amplo de saber, ou seja, aquele da
enciclopédia dos saberes: característica da filosofia renascentista.
No cenário da cultura humanista, Pico della Mirandola se apresenta com a sua
tentativa de conciliar as escolas do pensamento oriental com o ocidental, empenhando-
se em um trabalho para confirmar o homem como um ser digno, e tal expressão nas
180
GENTILE, Sebastiano. “Pico filólogo”. IN: GARFAGNINI, Gian Carlo (org.). Giovanni Pico della
Mirandola, p. 467. 181
Ibidem, pp. 468-469.
86
diferentes culturas em que a Oratio destacou. Esse texto já principia com o
reconhecimento da dignidade, pertencente à criatura humana, revelando a erudição de
um filósofo e seu exercício também filológico das fontes em sua complexidade e
diversidade. Trata-se da realização de uma grande síntese, articuladas com base em uma
compreensão mais ampla da verdade. Certo que o humanismo renascentista influenciou
o retorno à Antiguidade Clássica, construindo não só a base filosófica do Renascimento
artístico e cientifico na Europa, mas possibilitou, ao mesmo tempo, sínteses
proeminentes para o pensamento e ideias durante esse período. A Oratio182
tornou-se
símbolo do limiar humanístico, elaborado na nova interpretação filosófica do semear
antropocêntrico da liberdade do homem, que se faz na escolha de seu próprio destino.
Para a compreensão de sua Oratio, não é suficiente destacar apenas os aspectos
apologéticos, como demonstra a sua Segunda parte, mas defender, conforme a primeira
redação, certa coerência no sentido de um procedimento a ser adotado. Por conseguinte,
Pico expôs, de forma ampla, as razões que fundamentam, nas diversas tradições, a
relevância dessa tarefa filosófica, com base na ideia de dignitas hominis e como
itinerário a ser seguido. Daí indicar duas condições:
Por esses motivos me senti encorajado, mas até investido do dever de
me dedicar ao estudo da Filosofia. Para consegui-la plenamente, eu
que a perseguia com paixão, pensei sempre que devesse dar o máximo
destaque a duas coisas183
.
A parte final da Oratio apresenta, nessa primeira redação, as duas condições: i)
as fontes e o seu conhecimento integral; ii) a disponibilidade à discussão. Conforme
Pico escreve: “[...] não jurar sobre a palavra de ninguém e me estender, igualmente,
sobre todos os mestres da Filosofia, examinar cada página, conhecer todas as escolas”
182
De acordo com Maria de Lourdes Sirgado: “O problema da dignidade do homem é perspectivado em
função do lugar central que este ocupa no universo, ponto de referência de toda a realidade. Daí podermos
falar em antropocentrismo. Esta preocupação por uma valorização do homem na sua condição terrestre, se
bem que encontre no nosso autor a sua máxima expressão, não é nova na época, pois já tinha encontrado
alg.umas formas de expressão em autores humanistas, especialmente a tematização de Gianozzo Manetti,
discípulo de Ambrogio Traversari, que celebrou o homem e a sua dignidade, ao acentuar o valor da
actividade humana, mas só na medida em que esta lhe é conferida pelo Criador. Gianozzo não entrevê, no
entanto, o alcance ontológico, metafísico e ético desta tese. Tal intuição está reservada a Giovanni Pico
della Mirandola” (cf.GANHO SIRGADO, Maria de Lourdes. “Apresentação” IN: MIRANDOLA,
Giovanni Pico della. O discurso sobre a dignidade do homem, p. XXI). 183
MIRANDOLA, della Pico. De dignitatis hominis, apud. BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle
origini del Discorso sulla dignità umana di Pico della Mirandola, Milano: Feltrinelli, 2000, p. 65.
87
184. Isto ele havia realizado na Primeira parte da Oratio, quando argumentou, de forma
pluralista, sobre a dignitas hominis e sobre a relevância da atividade filosófica.
Para tanto é preciso certa capacidade de aceder diretamente às fontes por meio do
conhecimento das línguas. A busca de conhecimento amplo das fontes decorre da
compreensão de que os homens não podem esgotar a verdade. Pico condena, portanto, a
limitação daqueles que permanecem a comentar o texto de outros:
[...] quem estuda todo gênero de escritor não deixe de ler todas as
obras que pode, [...] observado por todos os antigos e, sobretudo, por
Aristóteles, que por essa razão foi chamado por Platão anagnóstes, ou
seja, leitor, e é realmente sinal de fechamento mental se confinar no
interior de uma única escola, seja o Pórtico ou a Academia. E não se
pode escolher a própria Escola entre tantas outras sem errar, quem não
as tenha antes conhecido todas de perto. Não existiu nunca ninguém,
antes ou depois de nós, que a verdade tenha se revelado totalmente
para ser compreendida. Ela é maior que a capacidade humana. Além
disso, em cada Escola há algo de específico, que não é comum às
outras 185
.
Pico della Mirandola apresenta ainda outros argumentos que não ultrapassam a
questão da diversidade das fontes, a saber, aquele relativo aos aspectos estilísticos
originais e singulares. Na sua abordagem, ele elenca alguns autores e destaca as suas
respectivas especificidades estilísticas. De acordo com o autor:
[...] em Escoto encontramos uma vigorosa dialética, em Tomás um
sólido equilíbrio, em Egídio uma nítida precisão, em Francisco [de
Meyronnes] uma penetrante perspicácia, em Alberto uma amplitude
majestosa e antiga, em Henrique, naquilo que me pareceu, uma
constante e venerável elevação. Entre os árabes, em Averróis
encontramos uma firmeza inabalável, em Avampace e em Al-Farabi
uma ponderada reflexão, em Avicena uma divina sublimidade
platônica. Entre os gregos a Filosofia é límpida, em geral, e casta, em
particular; é coerente e douta em Alexandre [de Afrodisia], profunda e
elaborada em Teofrasto, fluente e embelezada em Amónio. Se nos
reportamos em seguida aos platônicos, para deles apenas recordar
alguns, em Porfírio agradará a abundância dos argumentos e a
complexa religiosidade, em Jâmblico se veneram os mistérios dos
bárbaros e a filosofia mais secreta, em Plotino não há coisa alguma
que se admire, em particular, porque se faz admirar por completo,
compreendido apenas e com esforço pelos platônicos por falar de
modo divino das coisas divinas e com linguagem sabiamente alusiva
de modo muito superior ao humano das coisas humanas. Não me
ocupo dos mais recentes: Proclo, com o luxuriar da sua exuberância
asiática, e todos aqueles lhe seguiram. Hermia, Damascio,
184
Ibidem. 185
Ibidem, p. 68.
88
Olimpiodoro e muitos outros, nos quais brilha sempre aquele tò thêon,
ou seja, aquele que de divino que é característica peculiar dos
platônicos186
.
Esse argumento, de inspiração ciceroniana, retornou na última redação da Oratio.
A exposição reforça ainda a exigência de se conhecer, de forma integral, as fontes e
insiste, igualmente, acerca do valor de um confronto com as fontes heréticas a fim de
um reforço e aproximação da verdade. De acordo com Pico:
Acrescente-se, em seguida, que há uma heresia que combate os
princípios mais verdadeiros e que zomba caluniosamente as boas
razões do engenho, ela não enfraquece, mas reforça a verdade e nem
mesmo a apaga, mas a reanima como uma chama sacudida pelo
movimento. É um privilégio da verdade ser invencível e que os dardos
lançados contra ela retorne sobre quem os lançou 187
.
Para concluir, Pico reforça a utilidade da disputa e o valor do antagonismo na
busca da verdade recorrendo, igualmente, às fontes hebraicas e caldeias. Isto justifica,
quer o seu esforço não só filosófico, mas também filológico na elaboração de seu
projeto de saber, o qual apresenta uma dimensão enciclopédica.
186
Ibidem, pp. 68-69. 187
Ibidem, p. 70.
89
CAPÍTULO III
NATUREZA HUMANA E LIBERDADE NAS FORMULAÇÕES DA
ORATIO DE HOMINIS DIGNITATE
Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo
o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal, a
fim de que tu, arbítro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e
te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido188
.
Após as considerações acerca de alguns pressupostos necessários à
compreensão, quer histórica quer filosófica acerca da obra e do tema deste estudo, pode-
se aqui sustentar, de início, que a Oratio é um louvor ao exercício da Filosofia189
, com o
objetivo de ser um prefácio metodológico e justificativo do projeto sistemático de Pico
della Mirandola. Nesse escrito, o autor apresenta uma síntese de diversas orientações
culturais, sapienciais e doutrinais, destacando igualmente aspectos religiosos e
filosóficos pertencentes à tradição e à civilização. Apesar de escrita em 1486, a Oratio é
interpretada por comentadores190
como uma celebração dos valores humanistas,
destacando, em especial, a liberdade humana. A exposição sobre o universo cultural e
filosófico renascentista, realizada nos capítulos anteriores, foi relevante para esta
abordagem específica da Oratio, a fim de destacar os principais elementos culturais,
sapienciais e também categoriais, que se articulam na reflexão sobre a natureza humana
e a liberdade: tema central desta dissertação.
3.1 Magnum, o Asclepi, miraculum est homo: emblema e fórmula da teorética da
Oratio
Em seu exórdio à exposição da Oratio, Pico recorre aos árabes para argumentar
sobre o homem191
e com o famoso dito de Hermes Trimegisto, emblema e fórmula
188
MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 57. 189
Assim relata Maria de Lourdes Sirgado: “Para concluir, e retomando uma afirmação feita no inicio
deste estudo, relativamente ao fato de a Oratio ser um elegante elogio da filosofia, gostaríamos de aduzir,
a partir do próprio texto, alguns argumentos a favor desta tese” (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes.
“Apresentação” IN: MIRANDOLA, della Pico. Discurso sobre a dignidade do homem, p.XXX). 190
Cf. DOUTHERTY, M.V. Três Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola IN: Pico della
Mirandola: novos ensaios, p. 137. 191
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.53.
90
compreensiva da sua teorética: pensar o homem e a sua natureza192
. Trata-se, portanto,
de considerar o Homem como tema central da teorética filosófica, pois resume e
consolida no seu escrito aquele intento humanístico da dignitas hominis. Por
conseguinte, ele principia a Oratio com o reconhecimento da dignidade da criatura
humana, pois com base nas fontes árabes, “interrogado Abdala Sarraceno sobre qual
fosse a seus olhos o espectáculo mais maravilhoso neste cenário do mundo, tinha
respondido que nada via de mais admirável do que o homem” 193
. Também as fontes
herméticas o confirmam: “Com esta sentença concorda aquela famosa de Hermes (*):
„Grande milagre, ó Asclépio, é o homem‟” 194
.
Enquanto meditava acerca do significado dessas afirmações, Pico diz não estar
de todo satisfeito com as diversas razões que eram habitualmente aduzidas, com
frequência, em relação à “grandeza da natureza humana” [multa de humanae
naturae]195
. Daí expor alguns lugares comuns nos quais se indicam o sentido da
digninitas hominis:
[...] ser o homem vínculo das criaturas, familiar com os superiores,
soberano das inferiores; pela agudeza dos sentidos, pelo poder
indagador da razão e pela luz do intelecto, ser intérprete da natureza
da natureza; intermédio entre o tempo e a eternidade e, como dizem os
Persas, cópula, portanto, himeneu do mundo e, segundo atestou David,
em pouco inferior aos anjos196
.
Será que a dignitas hominis se fundamenta nesses antigos lugares comuns, o de
ser humano-microcosmo e a sua centralidade no Universo, como indicam quer a Bíblia
quer os Caldeus. Com a exortação das palavras de exaltação do homem que o árabe
Abdala havia pronunciado, com as quais concorda o dito acima indicado de Hermes
Trimegistro, expressão de um universalismo cultural presente na sua orientação
filosófica, e refletindo sobre o significado preciso da grandeza do homem, conforme
essa resenha de todas as justificações fornecidas pela tradição humanista, Pico della
Mirandola permanecia ainda insatisfeito. Sobre essa resenha temática justificadora da
dignitas hominis, a tradição humanista teria se debruçado no seu confronto retórico com
o averroísmo com base nas fontes clássicas e cristãs. Tais justificativas sobre a dignitas
192
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.53. 193
Ibidem. 194
Ibidem. 195
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 53. 196
Ibidem.
91
hominis não eram ainda suficientes no sentido de alcançar o fundamento da grandeza do
homem: era preciso ir ao fundamento dessa grandeza a fim de uma compreensão da
diferença humana, quer em relação aos astros quer em relação aos anjos, pois superiores
ao homem, mas já presos à sequela do bem.
Certamente Pico reconhece a relevância das várias atribuições relativas ao
homem, mas não a ponto de consentir o privilégio de uma “admiração ilimitada” 197
.
Daí indagar: “Por que, de facto, não deveremos admirar os anjos e os beatíssimos
corpos celestes?” 198
. Pareceu-lhe então, conforme escreve na Oratio, ter compreendido
[...] por que razão é o homem o mais feliz de todos os seres animados
e digno, por isso, de toda a admiração, e qual enfim a condição que
lhe coube em sorte na ordem universal, invejável não só pelas bestas,
mas também pelos astros e até pelos espíritos supramundanos. Coisa
inacreditável e maravilhosa. E como não? Já que precisamente por
isso o homem é dito e considerado justamente um grande milagre e
um ser animado, sem dúvida digno de ser admirado199
.
3.2 Deus: architectus e artifex
Após esses argumentos, Pico busca explicitar a condição de grandeza do homem.
Por isso oferece, de início, a sua versão da narrativa bíblica da criação divina. Era
preciso uma justificativa:
Já o Sumo Pai arquitecto, tinha construído segundo leis de arcana
sabedoria este lugar no mundo como nós o vemos, augustíssimo
templo da divindade. Tinha embelezado a zona superceleste com
inteligências, avivado os globos etéreos com almas eternas, povoado
com uma multidão de animais de toda espécie as partes vis e
fermentantes do mundo inferior. Mas, consumada a obra, o Artífice
desejava que houvesse alguém capaz de compreender a razão de uma
obra tão grande, que amasse a beleza e admirasse a sua grandeza. Por
isso, uma vez tudo realizado, como Moisés e Timeu atestam, pensou
por último criar o homem. Dos arquétipos, contudo, não ficara
nenhum sobre o qual modelar a nova criatura, nem dos tesouros tinha
algum para oferecer em herança ao novo filho, nem dos lugares de
todo o mundo restara algum no qual se sentasse este contemplador do
universo. Tudo estava já ocupado, tudo tinha sido distribuído nos
sumos, nos médios e nos ínfimos graus. Mas não teria sido digno da
paterna potência não se superar, como se fosse inábil, na sua última
obra, não era próprio da sua sapiência permanecer incerta numa obra
necessária, por falta de decisão, nem seria digno do seu benéfico amor
197
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 53. 198
Ibidem. 199
Ibidem, p. 54.
92
que quem estava destinado a louvar nos outros a liberalidade divina,
fosse constrangida a lamentá-la em si mesmo200
.
Conforme Pico, Deus havia realizado a sua obra, sem lacunas e sem
insuficiências, mas faltava ainda àquela que, contemplando, pudesse reviver em si a
maravilha do mundo e possuísse nas próprias mãos o destino da própria vida, quase
como se não houvesse mais ulteriores exemplares para criar outros seres: por isso criou
um que constituísse uma espécie de exemplar abrangente. Faltava ainda uma
justificativa para a dignitas hominis201
. Nesse sentido, Pico apresenta, em seguida, uma
versão da narrativa sobre a criação divina ante os poucos arquétipos disponíveis, com as
célebres palavras do Criador dirigidas a Sua criatura:
Estabeleceu, portanto, o òptimo artífice que, àquele a quem nada de
especificamente próprio podia conceder, fosse comum tudo o que tinha sido
dado parcelarmente aos outros. Assim, tomou o homem como obra de
natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo:
„Ó Adão, não te demos nem um determinado, nem um aspecto que te seja
próprio, nem tarefa alguma especifica, a fim de que obtenhas e possuas
aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo
segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros
seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não
constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o teu
arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que
daí possas olhar mellhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste
nem terreno, nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti
mesmo, te plasmasses e te informasse, na forma que tivesses seguramente
escolhido. Poderás degenerar até às realidades superiores que são divinas, por
decisão do teu ânimo‟202
.
Para a elaboração desse momento da Oratio, Pico se utiliza, em especial, de três
fontes: o Gênesis bíblico, o Simpósio e Diogênes Aeropagita. Tal cena originária é
construída com base em três imagens: o jardim do Edem, o jardim de Zeus e o paraíso
dos Anjos. A narrativa bíblica é, portanto, fundamental na Oratio, não obstante as
inúmeras alterações realizadas por ele na elaboração de seu texto. Também é bíblica a
sequência dos atos da criação que põem Adão no centro da criação já realizada, mesmo
se o desenrolar do ato criativo seja diverso daquele da narrativa bíblica, pois em seis
dias. Ademais, conforme Pico apresenta a sua interpretação, a criação acontece do alto
200
Ibidem. 201
De acordo com Giovanni di Napoli, a justificação da dignitas hominis se desenvolvera em toda a
tradição humanista como batalha contra o averroismo e reportando-se assim às fontes clássicas e cristãs.
Para Pico, aquelas justificações da dignitas hominis eram insuficientes ou de pouco valor, pois não atingia
o fundamento do problema. Ver aqui: NAPOLI, Giovanni di. Giovanni Pico della Mirandola e la
problemática del suo tempo, Pontefici: Roma, 1965, p.376. 202
Ibidem, p. 57.
93
para o baixo, ou seja, da zona supraceleste, dos astros animados, aos animais na Terra e
ao ser humano203
.
Podem-se indicar ainda outros elementos que compõem a interpretação da
Oratio em relação à narrativa da criação e do Criador. É bíblica também a ideia do
discurso do Criador à nova criatura, embora os conteúdos sejam os mais diversos: não a
proibição de ascender à árvore do conhecimento, mas o convite para orientar o desejo, o
conhecimento e o ser completo na realização da meta mais alta. Não se apresenta aqui a
obediência como a vocação humana mais elevada. Porém é também bíblica a ideia da
soberania sobre a criação com a atribuição dos nomes às outras criaturas. De acordo
com Pier Cesare Bori:
Em Pico, a ideia do domínio existe, no sentido que a criatura humana
com o seu olhar domina as coisas e, aliás, pode se tornar aquilo que
desejar, como microcosmo que contém em si os princípios, as razões
seminais de todo o ser. Mas a sua finalidade não é principalmente isto:
a sua finalidade é transcender todo príncipio (vegetal,animal, racional,
intelectual) para a união mística com a divindade, que se ele encontra
no centro do seu cosmo interior, através do espírito [...]”204
.
3.3 Deus-liberilitas e homem-nostrum chamaeleonta: pensar a natureza do homem e
sua liberdade
Na máxima de Pico se sensualia, obrutescet “se sensível, será besta” 205
, o
homem é possuidor de natureza indefinida, pois compreendido como criatura (figura
teológica). Se racional, o homem pode ser animal celeste ou intelectual206
, que assim
será anjo e filho de Deus207
. A dignidade do homem não consiste, portanto, na
centralidade do homem ou no domínio sobre a criação e tampouco na liberdade como
tal208
. Embora consista na liberdade, mas deve ser realizada em direção a uma finalidade
não de criatura. Para imprimir a sua criatura essa tensão, não presente na versão bíblica,
Pico altera a imagem do paraíso e se apoia na fonte platônica: disso resulta a relevância
do Simpósio e da narrativa segundo a qual Eros foi concebido por Póros e Pénia no dia
203
Ver, nesse sentido, BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità
umana di Pico della Mirandola, Milano: Feltrinelli, 2000, p.36. 204
Ibidem, p.37. 205
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.57. 206
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.59. 207
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.5. 208
A abordagem da questão da liberdade será desenvolvida nos tópicos posteriores de forma aprofundada.
94
do nascimento de Afrodite, no jardim de Zeus. Daí a natureza carente de Eros,
intermediária entre ignorância e sabedoria: constante busca dela209
. Ademais é relevante
a influência de Orígenes e a sua leitura do Simpósio platônico, autor lembrado,
igualmente, nas suas Conclusiones, mas também a presença de Plotino, quer direta quer
mediada por Ficino210
. Em seguida, Pico aborda, a fim de completar a sua exposição
sobre a criação, a ideia da “liberalidade divina”. Nesse sentido, ele escreve:
Ó suma liberalidade de Deus pai, ó suma e admirável felicidade do
homem! ao qual é concedido obter o que deseja, ser aquilo que quer.
As bestas, no momento em que nascem, trazem consigo do ventre
materno, como diz Lucílio, tudo aquilo que depois terão. Os espíritos
superiores ou desde o principio, ou pouco depois, foram o que serão
eternamente. Ao homem nascente o Pai conferiu sementes de toda a
espécie e germes de toda a vida, e segundo a maneira de cada um os
cultivar assim estes nele crescerão e darão os seus frutos. Se vegetais
tornar-se-á planta. Se sensíveis, será besta. Se racionais, elevar-se-á a
animal celeste. Se intelectuais, será anjo e filho de Deus, e se, não
contente com a sorte de nenhuma criatura, se recolher no centro da sua
unidade, tornado espírito uno com Deus na solitária caligem [...] do
Pai, aquele que foi posto sobre todas as coisas estará sobre todas as
coisas211
.
Aqui se apresenta a liberilitas de Deus diante do mundo e do homem, portanto,
a relação criadora como algo radical e total dos entes que recebem o ser deles de Deus
que é o Ipisum Esse. Contudo essa “liberalidade” em Deus, segundo apresenta Pico, não
precisa da contingência, em Deus não existe o não ser, por conseguinte não tem lugar a
contingência. Nesse sentido, como é necessária a sua essência, uma vez que não pode
não ser assim é preciso a sua ação que forma um todo com a sua essência. Por
conseguinte, essa necessidade diz respeito à íntima essência da ação divina e não
elimina a liberdade de Deus em relação ao finito: por mais misteriosa que possa ser e
parecer à síntese entre necessidade e liberdade em Deus. Portanto, Deus é realmente na
liberdade e na liberalidade da sua ação o princípio de todas as coisas e por isso contém
omnium Principium.
Pico define, no inicio da Oratio, o homem “como um ser camaleão” 212
. Para
tanto ele cita Proteu, hebreus e Pitagóricos, assim como a teologia hebraica. Ele cita
209
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.57. 210
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 57. 211
MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, pp. 57-59. 212
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 59.
95
também Enoch, e os exemplos teológicos de Maomé, e faz a comparação do que vem a
ser a natureza celeste e a natureza intelectual humana. Conforme ele escreve:
Quem não admirará este nosso camaleão? [...]. Não sem razão
Asclépio, ateniense, devido ao aspecto mutável e devido a uma
natureza que em si mesma se transforma, disse que nos mistérios era
simbolizado por Proteu. Daqui as metamorfoses celebradas pelos
Hebreus e pelos Pitagóricos. Até mesmo a mais secreta teologia
hebraica, de fato, transforma ora Enoch santo no anjo da divindade,
ora noutros espíritos divinos. E os Pitagóricos transformam os
celerados em bestas e, a acreditar em Empéndocles, até mesmo em
plantas. Imitando isto, Maomé repetia muitas vezes e com razão:
quem não se afasta da lei divina torna-se uma besta. De fato, não é a
casca que faz a planta, mas a sua natureza entorpecida e insensível;
não é o couro que faz a jumenta, mas a alma bruta e sensual; nem a
forma circular que faz o céu, mas a reta razão; nem é a separação do
corpo que faz o anjo, mas a inteligência espiritual 213
.
Pico segue em seus argumentos214
sobre a natureza humana, natureza espiritual e
inteligente, como magnum miraculum. Daí sustentar:
[...] Por isso, se virmos alguém dedicado ao ventre rastejar por terra
como serpente, não é homem o que vê, mas planta; se alguém cego,
como Calipso, por vãs miragens da fantasia, seduzido por sensuais
engodos, escravo dos sentidos, é uma besta o que vemos, não é um
homem” 215
. Mais adiante, ele destaca a concepção do homem como
imago dei, pois, se “é um filósofo que discerne com recta razão todas
as coisas, venerá-lo-emos, é animal celeste, não terreno. Se é puro
contemplante, ignaro do corpo, todo embrenhado no âmago da mente,
este não é animal terreno, nem mesmo celeste: é um espírito mais
elevado, revestido de carne humana. Quem, pois, não admirará o
homem?216
.
Tanto na Oratio como no Simpósio platônico, pode-se identificar o elogio a Eros
e, respectivamente, à criatura humana, não pela sua atual dignidade, presentes nos textos
da tradição, como lugares comuns, mas pela capacidade de alcançar as metas mais
elevadas, no caso do homem, que se encontra na posição intermediária, “nem mortal,
nem imortal, nem terreno, nem celeste”217
, conforme a Oratio, ou posto no meio
(médium; metaxy), de acordo com o Simpósio, e capaz de atingir, através do amor à
sabedoria, as realidades supremas218
. Portanto, nas duas obras revela-se o dinamismo do
213
MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p59. 214
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.59. 215
Ibidem, p. 59. 216
Ibidem. 217
Ibidem. 218
Ver, nesse sentido, CESARE, Bori Pier. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità
umana di Pico della Mirandola, pp. 35-81.
96
desejo, ou seja, a substância última do ser humano: de acordo com a Oratio, ser aquilo
que quer ou, segundo o Simpósio, paixão pela verdade219
.
Pico se reporta ao conhecimento obtido nas doutrinas dos acima citados para
firmar o homem como imago Dei, pois o filósofo é, no seu entender, o ser racional
celeste220
. Pico continua o seu discurso indagando quem não admirará o homem, este
ser camaleão, sustentando a sua tese com base nos ensinamentos dos textos sagrados
mosaicos e cristãos. Nesse sentido, ele afirma:
Que não por acaso nos sagrados textos mosaicos e cristãos é chamado
ora como o nome de cada criatura de carne, ora com o de cada
criatura, precisamente porque se forja, modela e transforma a si
mesmo segundo o aspecto de cada ser e a sua índole segundo a
natureza de cada criatura? O persa Evantes, por isso, onde expõe a
teoria caldaica, escreve que o homem não possui uma sua específica e
nativa imagem, mas muitas estranhas e adventícias. Daí o dito
caldaico de que o homem é animal de natureza vária, multiforme e
mutável 221
.
Sem dúvida, Pico é fiel ao espírito originário do Simpósio platônico. Pico indaga,
em seguida, sobre as razões de se recordar o testemunho de todos esses escritos, onde
destaca ser o homem cópula do Criador do mundo. O autor quer, de acordo com a
Oratio, que compreendamos:
[...] a partir do momento que nascemos na condição de sermos o que
quisermos, que o nosso dever [...] é preocuparmo-nos, sobretudo, com
isto: que não se diga de nós que estando em tal honra não nos demos
conta de nos termos tornado semelhantes às bestas e aos estúpidos
jumentos de cargas. Sois deuses e todos filhos do Altíssimo. De tal
modo que, abusando da indulgentíssima liberalidade do Pai, não
tornemos nociva, em vez de salutar, a livre escolha que ele nos
concedeu. Que a nossa alma seja invalidada por uma sagrada ambição
de não nos contentarmos com as coisas medíocres, mas de anelarmos
às mais altas, de nos esforçarmos por atingi-las, com todas as nossas
energias, desde o momento em que, querendo-o, isso é possível222
.
Certamente, o homem possui sua natureza específica, se considera aqui a
natureza como a essência realizadora de um ente e Pico fala na Oratio de natureza
intelectual e racional para o homem: algo que significa dizer a presença de certa
natureza na estrutura humana. Por conseguinte, uma natureza a qual constitui o homem
219
Cf.BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana di Pico della
Mirandola, pp. 40-41. 220
Cf. MIRANDOLA, Pico. Discurso sobre a dignidade do homem, p.59. 221
Ibidem, p.61. 222
Ibidem.
97
naquilo que o compõe e nas suas funções. Portanto, pensar o homem sem pensá-lo sem
uma determinada natureza é impossível. Por conseguinte, assim como se pode pensar
uma natureza de Deus e uma dos anjos, como se apresenta com frequência em Pico,
pode-se falar de uma natureza do homem. Daí se falar da natureza em todos os entes:
natureza de anjo, de homem e de animal223
.
Todavia, o fato de se pensar uma determinada natureza, a qual não significa nas
formulações de Pico a natureza humana como conjunto e complexo de coisas inferiores
ao homem ou oposta ao espírito, não equivale, portanto, no homem, ter uma natureza
determinada como modo determinado de agir. O homem possui uma determinada
natureza que é aquela de homem, mas não tem como as demais realidades inferiores,
uma natureza determinada ou um modo determinista de operar, pois a sua característica
ou prerrogativa é a indeterminação como autodeterminação. Daí Pico conceber no
operar do homem a presença da escolha, que faz do homem um ser responsável pelo seu
destino. Nesse sentido, o homem quando opera, não possui uma propria facie como
tendência determinista do apetite natural e sensitivo, pois escolhe por meio da
inteligência essa face e as suas prerrogativas: age por arbítrio no sentido clássico da
escolha224
.
Portanto, no âmbito do operar humano, o homem não é, de forma determinista,
nem celeste, nem terreno, nem mortal nem imortal, mas se torna com base na escolha
com a qual se plasma. A sua natureza é dotada de escolha, pois determina as próprias
determinações de seu operar. Nesse sentido, a liberdade de que fala Pico della
Mirandola na Oratio exclui a necessidade das leis físicas ou biológicas, pois a natureza
humana não se identifica com aquela dos demais seres em relação à natureza definida e
suas leis prescritas por Deus. Aquelas prescritas para o homem faz que opere
racionalmente e livremente sem submeter a sua dignidade e liberdade à ordem
cosmológica. Por conseguinte, aquilo que é racional e livre não pode sofrer imposição
do “céu”, ou do fato estelar. Ao criar o homem livre, Deus não pode permitir, sem aqui
se pensar em contradição, que o determinismo cosmológico afete aquela liberdade225
.
223
Cf. BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana, pp. 36-37. 224
Cf. BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana, pp. 42-45. 225
Cf. BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana, pp. 46-48.
98
Se, de um lado, a liberdade humana exclui a necessidade determinista dos seres
inferiores, não exclui, de outro, em relação à necessidade finalista, ou seja, o dever
moral ante a norma: a liberdade é responsabilidade diante da norma, pois transcende a
escolha como o seu ideal. Portanto, a Oratio fala que Deus-Pai criou o homem com
sabedoria, com liberdade, com liberalidade: aquilo que o homem é em sua grandeza e
dignidade provém da liberilitas de Deus. Nesse sentido, a Oratio reforça essa dimensão
de criatura no homem, conforme a narrativa sobre a liberilitas de Deus, que revelam o
sentido da criatura humana e a sua dimensão da escolha. Daí Pico recordar o arbitrium
que faz do homem um magnum miraculum. A liberdade é assim libera optio, a qual
pode ser tanto salutar quanto nociva, ou seja, na medida em que acolha ou rejeite a
norma, diante da qual o homem é responsável.
É certo que o homem é ser natural, mas se o ser aquilo que quer é escolha, esta
última pressupõe e exige, segundo a Oratio, a norma. A tarefa do homem é a elevação
ao inteligível, ou seja, em direção a Deus como indicam as Escrituras com a escada de
Jacob226
. Pico não exclui o pecado, mas não afunda o homem neste, algo que pode
conduzir a certo pensamento otimista humanista da Oratio. Contudo a reflexão da
Oratio exprime o sentido fundamental da dignitas concernente à escolha e do dever que
implica tal escolha. Por conseguinte, a dignitas hominis é na sua estrutura de vinculum
et nodus em relação aos mundos, em que o homem é senhor do que foi criado como
empírico. Por isso, está na escolha e na tarefa de realizar com a escolha o dever da
regeneração, a qual se revela como paz do homem consigo mesmo, e condição ao
mesmo tempo da paz entre o homem e os mundos. A afirmação de Pico della Mirandola
da liberdade humana é, antes de qualquer coisa, o apelo para a responsabilidade
absoluta do homem. Tal responsabilidade deve ter como paradigma o mundo angélico,
ou seja, próximo ao plano divino, pois a contemplatio pertence aos Querubins227
.
3.4 Contemplatio e vitae cherubinae: os três estados ascéticos
Chegado a esse momento da argumentação e narrativa do autor da Oratio, a fonte
platônica não é mais suficiente para representar o desenvolvimento do homem, ou seja,
o seu desenvolvimento vertical. Daí Pico mudar o lugar de sua narrativa: não mais o
Edem, mas agora o paraíso dos anjos. Nessa nova representação, Pico se reporta à
226
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 67. 227
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.63.
99
concepção de Diógenes Aeropagita de ascensão mística dos três estados: purificação,
iluminação e perfeição, escrevendo:
Desdenhemos das coisas da terra, desprezemos as astrais e,
abandonando tudo o que é terreno, voemos para a sede supramundana,
próximo da sumidade da divindade. Ali, como narram os sagrados
mistérios, Serafins, Querubins e Tronos ocupam os primeiros lugares;
deles também nós emulemos a dignidade e a glória, incapazes agora
de recuar e não suportando o segundo lugar. E se quisermos, não
seremos em nada inferiores a eles228
.
Aqui se apresenta o lugar próprio da dignitas, pois consiste em emular a
dignidade da vida angélica. Em conformidade com o modelo da ascensão mística, Pico
diz na Oratio:
Arde o Serafim no fogo do amor, refulge o Querubim no esplendor da
inteligência, está o Trono na solidez do juízo. Portanto, ainda que
dedicados à vida activa, se assumirmos tratar as coisas inferiores com
recto discernimento, afirmar-nos-emos com a firmeza dos Tronos. Se
libertos das acções, meditando na criação o artífice e no artífice a
criação, estaremos imersos na paz da contemplação [...],
resplandeceremos rodeados de querubínica luz. Se ardemos só por
amor do artífice daquele fogo que consome todas as coisas, inflamar-
nos-emos logo com aspecto seráfico229
.
Nesse sentido, pode-se sustentar que os Tronos, mais distantes de Deus,
representam a vida ativa disciplinada; já os Querubins a contemplação, ou seja, a vida
intelectual que se derrama nas várias disciplinas filosóficas; e os Serafins, os mais
próximos a Deus, representam a união mística no amor. Como Pico expõe: “Sobre o
Trono, isto é, acima do justo juiz, está Deus juiz dos séculos. Acima do Querubim, ou
seja, sobre o contemplante, voa e quase gerando-o por incubação aquece-o. [...] O
Serafim, isto é, o amante, está em Deus e Deus está nele, e Deus e ele são um só”230
.
Como apresentado por Pico, o homem deve voltar-se às coisas celestes, ou seja, a
Deus, através de sua dignidade e diligência: “anelarmos as coisas mais altas”231
que é
voltar a alma para Deus. A defesa de que o homem deve abandonar as coisas medíocres
desse mundo é, portanto, clara na Oratio232
, pois Deus se apresenta no texto como
figura ímpar na existência humana, já que o criador é mestre sobre a sua criatura: valor
228
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.61. 229
Ibidem, 63. 230
Ibidem. 231
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.61. 232
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.61.
100
inestimável posto por Pico na Oratio de Deus como sumo criador e juiz da existência
humana. Conforme Pico argumenta nesse escrito: “De fato, o espírito do Senhor move-
se sobre as águas, aquelas que estão por acima dos céus e que, como está escrito no
livro de Job, louvam o Senhor com os hinos antelucanos” 233
. Mais adiante, ele
completa: “Grande é o poder dos Tronos e atingimo-lo com o juízo: suma é a
sublimidade dos Serafins e atingi-la-emos com amor” 234
. Pico, porém, indaga sobre
amor do que não se conhece. Em seguida se reporta ao exemplo de Moisés235
, que
[...] amou o Deus que viu, e promulgou ao povo, como juiz, aquilo
que antes tinha visto na montanha como contemplador. Eis por que no
meio o Querubim com a sua luz nos prepara para a chama seráfica e
nos ilumina juntamente com o juízo dos Tronos.” 236
.
Por conseguinte, aqui se apresenta aquilo que Pico designa como o “nó das
primeiras mentes, a ordem sapiencial que preside à filosofia contemplativa”, pois se
deve, primeiro que tudo, “emular, investigar e compreender, de modo a sermos
arrebatados até aos fastígios do amor e descer em seguida instruídos e preparados para
as tarefas da acção” 237
. Portanto, trata-se de responder à luz da filosofia contemplativa
e que deve ser investigada e compreendida.
Se a vida do homem deve ser modelada com base na vida querubínica, é preciso
então saber, de acordo com Pico, ou seja, ter claro, “em que consiste tal vida, quais as
ações e quais as obras deles, este o preço de tal realização” 238
. Por causa da dificuldade
do homem de atingi-la, uma vez que é “carne” e tem “o gosto das coisas terrenas”, Pico
aconselha uma aproximação aos antigos Padres. Para se obter, portanto, uma orientação
sobre o modelo da vida angelical, é preciso consultar o apóstolo Paulo239
considerado,
segundo interpreta Diógenes Aeropagita, “vaso de eleição, que faziam os exércitos dos
Querubins quando foi arrebatado ao terceiro céu. Responder-nos-á, [...] purificava-se,
eram iluminados e tornavam-se, por fim, perfeitos”240
. Paulo havia falado desse
arrebatamento em um trecho das Cartas a Corintos241
.
233
Ibidem, p.63. 234
Ibidem, pp. 63-64. 235
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.62. 236
MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.63. 237
Ibidem, pp.63-65. 238
Ibidem, p. 65. 239
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.63. 240
Ibidem, p.65. 241
Ver aqui: 2 Coritos, 12, 2-4.
101
3.5 Liberdade como responsabilidade absoluta no homem: distinção no mundo da
criação
Na Oratio, a natureza humana postulada por Pico se expressa na distinção entre
os demais seres que habitam o mundo e nas suas peculiaridades. O homem é detentor de
uma natureza única, pois, como possuidor de uma natureza diferente, é exaltado de
acordo com as suas escolhas e decisões. Na Oratio, os argumentos sobre a natureza
humana se apresenta no inicio do escrito como preparação para se chegar às demais
formulações. A principal explicação dada por Pico sobre a natureza humana está na
descrição dada ao homem que toma como exemplo o Gênesis bíblico, alternando assim
uma história que situa o ser humano como obra indeterminada (indiscretae opus
imaginis) que precisa se moldar com a essência que é a forma e através da escolha feita
por cada ser242
.
Enquanto Pico explicita a natureza que o homem traz consigo243
, defende
também que este ser criado é obra do Criador. De acordo com a metafísica
tradicional244
, Deus inicia a ordem do universo, mas em Pico, a ausência de um
principio metafísico que determine a superioridade humana da ordem da criação (ou
principio determinante) exclui os seres humanos da hierarquia medieval. Daí o valor
dado aos seres humanos difere dos demais seres, pois o homem não está submetido à
ordem da natureza por se tratar de um milagre245
. O modo apresentado por Pico da
natureza humana tem o foco central no homem ser de natureza indeterminada, ao passo
que a liberdade humana está ligada ao homem como ser livre246
. Tal liberdade está
242
De acordo com estudiosos como M. V. DOUGHERTY: “A natureza demonstrada por Pico della
Mirandola está evidente no seu conceito de natureza humana (humanitas nature) está na natureza que o
próprio ser humano já trás consigo que é a natureza indeterminada, enquanto os demais seres trazem
consigo uma natureza determinada, ao contrário dos seres humanos” (cf. DOUGHERTY. M.V. Três
Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola e Questão da Natureza na Oratio IN: Pico della
Mirandola: novos ensaios, p.159). 243
Cf. MIRANDOLA, Giovanni Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.57. 244
Cf. DOUGHERTY. M.V. Três Precursores do Debate Romano de Pico della Mirandola e a Questões
da Natureza Humana na Oratio IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, p.163. 245
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.53. 246
No entender de Bruno Amaro: “ O homem, assim, é um ser livre, “arbítrio e soberano de si mesmo”.
Isso implica que sua natureza indefinida não deve permanecer indefinida. Ela deve ser definida,
determinada, como a natureza dos outros seres criados por Deus, como os anjos e as bestas. Ocorre que
quem determinará a natureza humana é o próprio homem, ou melhor, cada homem considerado
individualmente. A liberdade, para Pico, não é meramente um “dom dado por Deus ao homem, mas a
capacidade de escolher dentre diversas possibilidades. Cada homem, ao decidir seu destino, decidirá
também o que é. Poderá degenerar e se tornar semelhante aos animais ou regenerar-se e torna-se como os
anjos. Afastar-se ou aproximar-se da perfeição, eis as possibilidades que estão diante do ser humano” (cf.
102
ligada a consequências que o homem colherá de acordo com a decisão que tomará: os
homens são livres para escolher suas opções, porém ao escolhê-los encontrará a sua
essência247
.
Reconhecendo a existência de diversas opções que possibilitam à decisão, o
homem com a sua natureza indefinida, existem para permitir as decisões que o homem
irá tomar. A ontologia moral ligada à decisão que esse ser tomará para si, pois a
composição humana está ligada à vida vegetativa e das feras terrestres, porém a decisão
mais conveniente, como argumenta Pico, está no direcionamento final e maior em
direção a Deus. Certo que a felicidade do homem é evidenciada por Pico em sua
ontologia, na qual o homem pode “em ser aquilo que quer”. Como os animais trazem
consigo tudo aquilo que serão já determinados em sua natureza, ou seja, em sua
atribuição de ser aquele animal, segundo a sua natureza, desde o momento que são
concebidos trazem consigo certa determinação. Ao contrário das bestas, os anjos são
espíritos superiores, que desde a sua criação fazem parte de uma única forma de ser. Ao
homem, ao contrário, foi dada essa natureza indefinida, porém a sua busca pela
divindade deve ser buscada e a qual deve se voltar248
.
Há no homem possibilidades que podem ou não se realizar. Pico revela249
que a
mais elevada de todas é a contemplativa, pois torna o homem uno com Deus e ao ser
imagem de Deus no universo ele se apresenta como microcosmo: intermediação entre o
mundo e Deus. Naquilo que concerne à alma250
, a posição seguida por Pico é a dos
AMARO, Bruno Lacerda. A Dignidade Humana em Giovanni Pico della Mirandola. Revista Legis
Augustus (Revista Jurídica) Vol.3, n.1, p.16-23, setembro 2010 ISSN: 1516-9367. p.20). 247
Para Bruno Amaro: “ È como se Deus houvesse condenado o homem à escolha, dado a ele a
capacidade de por seu atos livres, torna-se o que deve ser. Percebe-se então, que o homem está acima dos
animais não simplesmente por ser racional, mas porque a razão o impele em direção a algo que nenhum
animal pode conseguir: a determinação do seu próprio ser. È interessante relacionar essa constatação com
outro aspecto da filosofia de Pico o apreço pela magia, vista não como poder sobrenatural, mas como
capacidade de conhecer a natureza, de descobrir seus segredos e transformá-la. O homem não está apenas
“no mundo”; ele também atua “sobre o mundo”, coloca-o a seu serviço” (cf. AMARO, Bruno Lacerda. A
Dignidade Humana em Giovanni Pico della Mirandola. Revista Legis Augustus (Revista Jurídica) Vol.3,
n.1, p.16-23, setembro 2010 ISSN: 1516-9367. p.21). 248
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.56. 249
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem , p.57. 250
De acordo com Carl Still: “Fiel às suas raízes escolásticas, a explicação de Pico da alma e de seus
poderes compõe a base de sua explicação das funções cognitivas. Além do corpo, o ser humano possui
uma alma que consiste em quatro “partes” a vegetativa, a sensitiva, a racional e a intelectiva. Enquanto a
parte vegetativa possui funções puramente vitais de nutrição e sustento do corpo, os outros três poderes
representam uma ordem ascendente de poder intelectual” (cf. STILL. Carl. N. A Busca de Pico por Todo
o Conhecimento, p.214).
103
platonistas que defendem a existência de uma “parte intelectual e angelical251
” na alma
humana e acima da alma racional. O propósito de Pico é unir as defesas de Platão252
e as
de Aristóteles253
sobre a alma. Ele diferencia assim os aspectos bestiais (ligados aos
sentidos) e aqueles do homem (ligados à razão), destacando o que é angélico e o que é
intelecto. Para que a razão esteja em comum com o intelecto é preciso que o homem aja
com a capacidade intelectual.
Para Pico della Mirandola, o homem é entre os demais seres do Universo o mais
precioso e se encontra no centro do mundo, ou seja, medium mundis, lugar que Deus
pós o homem como destaca a Oratio254
. Um dos elementos relevante dessa concepção
de Pico, concernente ao homem, se encontra na grandeza que este poderá assumir, em
suas opções, decisões, as quais irão contornar a sua vida, em virtude do fato de ter essa
liberdade de decidir já o torna digno de atenção, devendo assim com a moral e a
dialética, ser possível reconhecer a sua importância in mundi, por ser artífice de si
mesmo.
Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal, a fim de que tu,
arbítrio e soberano artífice de ti mesmo, te plasmaste e te informasses,
na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até
aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até as realidades
superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo255
.
Conforme Pico, Deus precisou que houvesse no mundo um ser capaz de
compreender, entre tantas coisas, o sentido de ser criado, ou seja, compreender qual
251
Cf. STILL. Carl. N. A Busca de Pico por Todo o Conhecimento, p.215. 252
Para Giovanni Reale e Antisieri: “No entanto, é dualista (em certos diálogos, em sentido total e radical)
a concepção platônica das relações entre alma e corpo, porquanto Platão introduz, além da participação da
perspectiva metafísico antropológica, a participação do elemento religioso derivado do Orfismo, que
transforma a distinção entre alma= supra-sensível e corpo = sensível, em oposição. Por essa razão, o
corpo é visto não tanto como receptáculo da alma, à qual deve a vida juntamente com suas capacidades de
operação (e, portanto, como instrumento a serviço da alma, segundo o modo de entender de Sócrates), e
sim, ao contrário, como “tumba” e “cárcere” da alma, isto é, como lugar de expiação da alma” (cf.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga v.1, São Paulo: Paulus,
2003, p.152). 253
Aristóteles afirma: “Retomamos, por este modo e conforme afirmamos, a tese que concebe a alma
como uma espécie de corpo subtil, 409 b 1. Por outro lado, e por outro, seguindo Demócrito, para quem é
o movimento causado pela alma, resvalamos em dificuldades especificas. Admitindo que, com efeito, a
alma reside na totalidade de um corpo dotado de sensibilidade, o mesmo lugar incluírá necessariamente
dois corpos, na instância de se assumir que a alma constitui uma 409 b 5. Espécie de corpo. Quanto
àquelas que sustentam ser a alma um número, deverão eles admitir que num único ponto pode realmente
existir uma pluralidade de pontos ou, então, que a totalidade do corpo possui uma alma, a menos que em
nós não apareça um número diferente, isto é: um número distinto da soma dos pontos existentes no
corpo” (cf. ARISTOTELES. De Anima. Trad. port. Carlos Humberto Gomes. Lísboa: Edições 70, 2001,
pp.42-43). 254
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.57. 255
Ibidem.
104
seria a posição do homem no Cosmo: daí essa especificidade do homem de ser
microcosmo, criado com natureza indefinida e posto no meio do mundo. A natureza
humana carece de uma definição, pois é indeterminação, ou seja, para se determinar o
homem foi posto no meio do mundo, e nessa posição buscar o mais sensato para que
assim haja a definição de sua essência. Para o animal racional, o celeste, se é intelectual
será anjo, ou seja, filho de Deus, se vegetal será planta, unicamente planta, se sensível
será besta sensível ou animal, ao racional será elevado a animal celeste, ao intelectual e
será filho de Deus.
Ao longo da Oratio se destaca a elucidação atribuída por Pico à grandeza da
existência humana, a passagem antropocêntrica256
piquiana em que põe o homem como
centro do mundo, dirigido por Deus Criador e a Criatura. A Oratio, De Hominis
Dignitate contém conhecimento filosófico-teológico, e se serve de demais fontes de
saber a fim de uma compreensão da ação e do destino humano. Para Pico, o
conhecimento do homem de sua natureza é buscar o degrau mais alto que possa atingir
completando a grandeza humana. Ademais, as conquistas humanas têm valor, ou seja,
valor ético e as consequências das suas decisões podem gerar tristeza e infelicidade,
pois para Pico tanto a Ética quanto os valores morais elevam o homem. Para demonstrar
que natureza humana tem seu valor e existência inestimável alcança um degrau
privilegiado in mundi, pois na demonstração dos demais seres existentes no mundo o
homem é o mais valioso, sendo assim medium mundis.
Para o seu empreendimento, Pico buscou conhecimento tanto em Aristóteles
quanto em Platão257
, com a preocupação de apresentar “um só conhecimento”, pois
ambos os filósofos gregos estavam certos, Porticum at Academiam, (seja Pórtico ou a
256
De acordo com Bruno Amaro: “Nesta passagem decisiva, aparece com força o antropocentrismo do
autor. O homem está no “meio do mundo” não em um sentido físico ou topográfico, mas em um sentido
ontológico: ao homem são abertas possibilidades diversas para sua própria realização. Quem está “no
meio”, afinal, tem mais facilidade para tomar qualquer direção. A existência humana não foi limitada por
Deus a um destino único ou a uma só vontade. O homem está no meio para que ele possa escolher a sua
direção, o seu caminho próprio, para que ele se torne o que quiser ser. Note-se que a palavra
“antropocentrismo”, aplicada ao pensamento de Pico della Mirandola, não significa que o homem esteja
livre de Deus. Tampouco que Deus não exista, ou ainda que não se interesse pelo que é o humano. O
homem é, e será sempre, criatura de Deus, e é pelo seu desejo que ocupa o lugar central no mundo. O
“antropocentrismo”, aplicada ao pensamento de Pico não exclui Deus, pelo contrário: como foi Deus
quem deu ao homem o seu lugar central, a realização humana de seu próprio destino é fruto da graça
divina. O homem não é um ser que Deus abandonou à própria sorte, mas uma criatura que Ele
emancipou” (cf. AMARO, Bruno Lacerda. A Dignidade Humana em Giovanni Pico della Mirandola,
p.20). 257
Cf. MIRANDOLA, Pico. Discurso sobre a dignidade do homem, p.92.
105
Academia) 258
examinando a fundo todas essas doutrinas259
, não obstante as diferenças
entre as escolas. A defesa de Pico na Oratio se apresenta como forma de observação
dos saberes e do que representam essas fontes de pensamento. Pico também se reportou
ao pensamento árabe e as suas peculiaridades260
, citando Averróis, Avenpace,
Alfarabi261
entre outros e demonstrando o que há cada um de verdadeiro. Elou observa a
identificação certa relação dos textos da falsafa262
com aqueles herméticos, platônicos e,
igualmente aqueles que constituem a prisca sabedoria, indicando, igualmente, o seu
vínculo tanto no hermetismo quanto na qabbalah judaica.
Em fontes como a Qabbalah a falsafa263
, mas também grega, latina e islâmica, o
Alcorão264
, Pico não só pensou as Conclusiones, mas ainda o tema fundamental da
Oratio. Daí a presença de inúmeras alusões a pensadores de várias orientações e
culturas diversas fazia importantes na busca de demonstrar o conhecimento presente nos
258
Segundo Maria de Maria de Lourdes Sirgado: Pode-se aqui sustentar que o Pórtico e a Academia
correspondem, respectivamente, à escola fundada por Platão. Ambos os nomes derivam da localização
das escolas: nos estóicos, sob o pórtico ornado com as pinturas de Polignoto; em Platão, no ginásio dos
jardins do herói Academos (cf. SIRGADO, Ganho Maria de Lourdes. “Apresentação” IN:
MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.93). 259
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.93. 260
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.93. 261
De acordo com Jamil Ibrahim: “Com AL-Fãrãbi, o pensamento peripatético já neoplatonizado
recebido no mundo islâmico foi bastante ampliado e melhor sistematizado; o próprio neoplatonismo
islâmico foi fundado por este filósofo. Como poderá ser constatado nos textos aqui traduzidos, a filosofia
de al-Fãrãbî tem como objetivo principal a política” (cf. ISKANDAR, Jamil Ibrahim. Compreender al-
Fãrãbî e Avicena. Petropólis, RJ: Vozes, 2011, p.18). 262
Para Miguel Attie: “Entre os séculos VIII e XIId.C /II e VI H., a filosofia começou a falar em árabe.
Nas terras dominadas pelo Islãm, a falsafa foi a continuadora da filosofia antiga. Por esta razão, em
sentido estrito, é somente com o termo falsafa que se pode referir à ocorrência da filosofia entre os
árabes” (cf. ATTIE Filho, Miguel. Falsafa: a filosofia entre os árabes: uma herança esquecida São Paulo:
Palas Athena, 2002, p.45). 263
De acordo com Miguel Attie:“A Falsafa foi responsável não só pela imersão do pensamento da
filosofia grega entre os árabes mas também pela transmissão da filosofia grega ao Ocidente. Na medida
em que o paradigma grego foi um dos responsáveis pela construção filosófica do Ocidente, não é difícil
imaginar que a falsafa ocupe um lugar histórico muito peculiar. Sobre o meridiano da filosofia oriental e
ocidental, a meio caminho da contemplação de dois ou mais caminhos, a falsafa contribuiu sobremaneira
para inúmeras transformações da filosofia do Oriente e do Ocidente” (cf. ATTIE Filho, Miguel. Falsafa:
a filosofia entre os árabes: uma herança esquecida São Paulo: Palas Athena, 2002, p.33). 264
Tudo isso faz do Alcorão um Livro, cuja semelhança, mortal algum pode produzir, e tudo que a
história do islã e das crenças nos transmitiram atesta isso. O próprio Profeta expunha o Alcorão aos
árabes e lhes pedia para que apresentassem algo semelhante, nem que fosse à menor surata dele. E a
História do Islã ou das crenças não nos transmitiram informação alguma sobre alguém que conseguisse tal
efeito. Dentre os que escreveram ao Alcorão durante os séculos IV e V da Hégira, podemos citar:
Albaclani, com seu livro “O Milagre do Alcorão”, o Imame Abdel Cábdel Cáher Ajjarani, com seu livro
“As provas do Milagre (do Alcorão”), e também o Imame Azzâmkhcheri. Devemos presumir, então, que
isso é uma evidente prova de que o Alcorão não foi uma invenção humana, mas é uma revelação de Deus,
Altíssimo, transmitida por intermédio do anjo Gabriel a Maomé, pois este era iletrado e não podia por
conseguinte produzir um livro que abrangesse verdades históricas e cientificas, que criasse uma base e
uma lei religiosa, um esquema a uma vida política e social, e que, possuísse uma eloqüência ímpar (cf.
ALCORÃO. Alcorão Sagrado, Trad. br. Samir el Hayek. São Paulo: Tangará, 1975, p.XV).
106
estudos realizados das fontes, a fim de um esclarecimento e o conhecimento do destino
humano. Conforme Pico escreve:
Para falar de poucos, com Porfírio deleitar-nos-emos com abundancia
de temas e com a religião complexa, em Jâmblico veneremos a
filosofia oculta e os mistérios bárbaros, em Plotino não há nada que
não se possa admirar, porque em tudo ele se mostra admirável, porque
fala divinamente das coisas divinas, porque quando fala das coisas
humanas coloca-se muito acima do humano com a sapiente subtileza
do discurso, de tal modo que, com algum trabalho, só o entendam os
próprios Platônicos265
.
Tais fontes constituem também na Oratio um pressuposto relevante da sua
reflexão sobre o homem e a sua natureza. Daí a ideia piquiana de liberdade corresponde
à máxima dos seres humanos não terem um principio determinante: algo distinto em
relação aos demais seres266
. Por isso, o homem não possuí um principio determinante,
para então escolher entre as naturezas que existem na criação. A liberdade postulada por
Pico é, porém, uma liberdade com a responsabilidade, pois o homem será o grande
responsável por aquilo que ele mesmo escolher. Trata-se de um dom que o homem
recebeu de Deus, pois a sua dignidade consiste em se servir dessa liberdade. Por
conseguinte, o homem poderá desejar vidas como vegetativas, sensíveis, racionais,
angelicais ou mesmo divinas.
No que concerne à dignidade do homem, esta é a unidade do homem que é imago
Dei, que é microcosmo, refletido em escala menor: algo que torna a reflexão de Pico
della Mirandola diferente dos demais renascentistas, pois a visão da dignidade humana é
possível com a presença da autodeterminação, a razão e a inteligência humana, pois
possuem alcance ético e poiético. Ademais, ele celebrava na Oratio a liberdade-
responsabilidade humana para justificar, igualmente, a sua retratação em relação à
disputa. Portanto, apenas interpretando a dignitas hominis da Oratio como
autocriatividade absoluta poder-se-ia falar de palinódia no pensamento piquiano. Não se
pode descurar também que na Oratio está presente um convite à purificação do espírito
com as disciplinas morais.
A liberdade está no ser humano não possuir uma determinação em sua natureza,
pois oriunda de sua criação, mas também nas decisões tomadas pelo homem em sua
265
MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.95. 266
Cf. DOUGHERTY. Três Precursores do debate romano de Pico della Mirandola e a questão da
Natureza Humana na Oratio IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, p.161.
107
vida: algo que se confirma com a responsabilidade de um valor tanto ético quanto moral
observado pelo homem. As outras criaturas ou naturezas estão na própria origem
determinadas ad unum nas suas disposições, mas a natureza do homem não tem um
princípio determinado, pois se exclui a todo determinismo das leis naturais, ou seja,
físicas. Pico demonstrou essa responsabilidade valendo-se de fontes de conhecimento
sobre a criação do homem, pois vários foram os exemplos extraídos da tradição: gregos
e árabes, mas também aqueles pertencentes à doutrina hebraica e ao conhecimento da
teologia escolástica para sustentar o que cada uma dessas postulou a respeito da criação.
Em algumas passagens da Oratio, é apresentado por Pico essas demonstrações de
fontes que elevam o homem na criação divina, como também defende essa criação vista
aos olhos de quem tiver dúvida em relação a sua posição. Ao conceber a natureza
humana como possuidora de natureza indeterminada, ele defende a responsabilidade no
homem de ter vindo ao mundo, não para permanecer em um estado espiritual menos
elevado, pois deve aspirar às coisas mais elevadas. Para tanto o caminho será sempre o
bem, o justo e o ético, ao qual o homem deverá se voltar. Isto justifica igualmente a
necessidade de se iniciar, quer no conhecimento dos mistérios presentes nas doutrinas
sapienciais quer em seguir certo itinerário de ascensão, a fim de se purificar a alma e se
elevar com o dom da inteligência ao universo das coisas divinas.
3.6 A ascensão sapiencial e a paz universal: filosofia natural, dialética e teologia
Para Pico della Mirandola, a ciência constitui, conforme expõe na Oratio, o
atributo fundamental dos Querubins. Em vez de adotar uma correspondência estática
entre elementos terrenos e elementos celestes, Pico insiste no aspecto dinâmico, ou seja,
no processo de purificação, iluminação e perfeição. Tal modelo é celeste, mas é de
forma análoga reproduzido na vida terrena, ao se tratar de operações imanentes a todo
nível da atividade espiritual. Nesse sentido esses três estados correspondem a três
momentos de certo curriculum ideal de iniciação. Conforme Pico escreve:
Também nós, portanto, emulando na terra a vida querubínica,
refreando o ímpeto das paixões com a ciência moral, dissipando a
treva da razão com a dialética, purifiquemos a alma limpando-a das
sujeiras da ignorância e do vício para que os afetos não se
desencadeiem cegamente nem a razão imprudente alguma vezes
delire. Na alma, portanto, assim recomposta e purificada, difundamos
108
a luz da filosofia natural, levando-a em seguida à perfeição final
mediante o conhecimento das coisas divinas267
.
Por conseguinte, segundo a exposição da Oratio, a purificação corresponde, quer
à ciência moral quer à ciência dialética, já a iluminação corresponde à filosofia natural e
a perfeição ao conhecimento das coisas divinas, ou seja, à Teologia. Por ser uma parte
muito importante no discurso da Oratio, a alma humana, segundo apresenta o autor, a
sua orientação é a purificação dela: algo relevante para a perfeição final que se dá com
base no conhecimento das coisas divinas. Pico afirma na Oratio: “Na alma, portanto,
assim recomposta e purificada, difundamos a luz da filosofia natural, levando-a em
seguida à perfeição final mediante o conhecimento das coisas divinas” 268
. Nesse
processo de iniciação, Pico defende o seu intento filosófico, explicitando a dignitas
desse empreendimento intelectual e sua dimensão ética. Daí não se contentar apenas
com Paulo e Diógenes e se reportar a outras fontes e autoridades, indicando, igualmente,
aquelas do antigo pacto:
E para não nos restringirmos aos nossos Padres, consultemos o
patriarca Jacob, cuja figura resplandece esculpida em sede de glória. O
sapientíssimo patriarca ensinar-nos-á que, se dormia no mundo
terreno, velava no reino dos céus. Mas ensinar-nos-á mediante um
símbolo (tudo assim se lhes apresentava) que existem escadas da terra
até ao cume dos céus, distintas numa longa série de degraus, no alto
dos quais está sentado o Senhor, enquanto os anjos contemplantes por
elas sobem e descem, a mesma coisa, imitando a vida dos anjos,
pergunto, quem ousará tocar as escadas do Senhor ou com pé impuro
ou com mãos por lavar? Ao impuro, o segundo os mistérios, é-lhe
vedado tocar aquilo que é puro269
.
A abordagem que Pico aqui desenvolve, o leva desde as Escrituras hebraicas aos
“mistérios gregos” e, igualmente, aos “monumentos dos caldeus”. Daí destacar que a
alma terá de limpar-se das coisas ruins que traz consigo, como a ignorância, como os
momentos também em que estejam os homens sob o delírio. A alma deve se purificar
das sujidades, pois deve estar recomposta e purificada270
para alcançar o conhecimento
das coisas divinas. Ao indicar o Patriarca Jacob271
, sintetiza o processo em que a alma
humana terá que trilhar para se purificar. Nesse sentido, ele escreve:
267
MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.65. 268
Ibidem, pp. 65-67. 269
Ibidem, p. 65. 270
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.65. 271
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.65.
109
Mas que pés? Que mãos? Sem dúvida, pé da alma é a parte vilíssima
com a qual se apoia à matéria e ao solo; o poder que alimenta, fonte de
lascívia, mestra de sensual brandura. E a mão da alma porque não
chamar à irascível que, serva dos apetites, por eles se bate e se lança
como um predador sob o pó e o sol, que os devora sofregamente
repousando à sombra? Estas mãos, estes pés, isto é, toda a parte
sensível onde estão sediadas as seduções corpóreas que, como se diz,
têm subjugada a alma, lavemo-los com a filosofia moral, como um
vivo rio, para não sermos expulsos daquelas escadas como profanos e
imundos272
.
Trata-se do famoso sonho do Patriarca, cujo nome está associado à visão de
Deus, já presente em Filon e Origenes, e sem descurar também a associação da subida
platônica da alma no Fedro e a scala amoris no Simpósio. Daí o itinerário de iniciação
ser concebido como uma “escada” com os seus degraus e o primeiro degrau a
purificação das mãos e dos pés com a filosofia moral.
Para Pico, a alma humana retrata essa esfera importante da qual o homem deve
voltar-se, observando que, através dela, “se apoia a matéria e ao solo, o poder que
alimenta, fonte de lascívia mestra de sensual brandura” 273
e a filosofia moral274
é a
desbravadora desse composto ao qual deve voltar-se o homem. Contudo, como ele
completa, a alma deve ser lavada com a filosofia moral.
Mas nem isto será suficiente, se queremos ser companheiros dos anjos
que percorrem a escada de Jacob, se primeiro não tivermos sido bem
habilitados e instruídos a mover-nos com ordem em degrau, sem
nunca sairmos da rampa da escada, sem estorvar a um ou a outro o
caminho. Quando tivermos conseguido isto com a parte discursiva ou
raciocinante, animados então por um espírito querubínico filosofando
ao longo dos degraus da escada, isto é, da natureza, e tudo
perscrutando do centro e para o centro, ora desceremos dilacerando
coma força titânica o um nos muitos, como Osíris, ora, recolhendo
com a força apolínea os muitos no um, como os membros de Osíris,
elevar-nos-emos até que por fim no meio do seio do Pai, que está no
vértice da escada, repousaremos na felicidade teológica275
.
Pico introduz a figura do anjo, ao se reportar à ligação do “justo Job” com
Deus276
e a ideia de uma felicidade superior,
272
Ibidem, p. 67. 273
Cf. MIRANDOLA, Pico. della Discurso sobre a dignidade do homem, p.67. 274
A filosofia moral tem a capacidade de nos libertar de apegos e desejos terrenos. A dialética faz com
que não sejamos dominados por raciocínios falaciosos (cf. SUDDUTH. Michael. A Filosofia da Religião
de Pico della Mirandola. IN: Pico della Mirandola: novos ensaios, p.80). 275
MIRANDOLA, della Pico. Discurso sobre a dignidade do homem, p.67. 276
Cf. MIRANDOLA, della Pico. Discurso sobre a dignidade do homem, p.69.
110
[...] pois antes de ter sido gerado para a vida fez um pacto com o Deus
da vida, que é sumo Deus, deseja sobretudo, daqueles milhões de
anjos que estão na sua presença; ele responderá, certamente: a paz,
conforme nele se lê, „Aquele que faz a paz nos céus‟. E porque a
ordem mediana é, para a inferior, interprete dos preceitos da ordem
superior, que as palavras do teólogo Job sejam para nós ilustrados pelo
filósofo Empédocles. Este, como atestam os seus poemas, simboliza
com ódio e com o amor, isto é, com a guerra e com a paz, as duas
naturezas da nossa alma, a partir das quais somos levados ao céu ou
precipitado nos infernos. E ele, naquela luta e discórdia, transtornando
como se fosse um louco, lamenta-se por ter sido arrastado para o
abismo, para longe dos deuses277
.
A referência a Job assegura que Deus, da legião infinita dos anjos, não deseja
outra coisa que a paz, por isso se afirma que Ele mantém a paz nas alturas. Sobre a
Terra não há paz, mas guerra, pois reina a discórdia uma vez que pertence à natureza
das coisas, conforme Heráclito, Homero, Empédocles. Ademais, a existência de
múltiplas discórdias, por causa da presença, como atesta Pico, de
lutas intestinas graves e piores do que guerras civis, que só a filosofia
moral poderá acalmar, se lhes quisermos fugir e se quisermos obter a
paz que nos conduza ao alto, de modo a colocar-nos entre os eleitos do
Senhor 278
.
Em seguida, Pico introduz a questão de se pensar uma perpetuae pax e, ao mesmo
tempo, como poder consegui-la. Se antes o homem, que há em cada um, pedir trégua
aos seus inimigos ocorrerá de travar
[...] os descompostos tumultos do animal multiforme e o ímpeto, o
furor e o assalto do leão. Depois, mais solícitos relativamente ao nosso
bem, se [se desejar] a segurança de uma paz perpétua, esta virá e
coroará abundantemente os nossos votos, e morto um e outro animal,
como vítimas imoladas, instituir-se-á um pacto de santíssima paz entre
a carne e o espírito279
.
Para esse empreendimento, Pico reconhece a relevância da dialética a fim de
sanar as várias discórdias: exigência primordial diante de certos infortúnios da razão.
Daí Pico apresentar o segundo degrau, ou seja, aquele correspondente à dialética:
A dialética acalmará a razão tumultuosamente mortificada entre os
contrastes das palavras e dos silogismos capciosos. A filosofia natural
acalmará os conflitos da opinião e os dissídios que atormentam,
dividem e dilaceram de modos diversos a alma inquieta. Mas acalma-
lo-á de modo a recordar-nos que a natureza, como disse Heráclito, é
277
Ibidem. 278
Ibidem. 279
Ibidem.
111
gerada pela guerra, e por isso, chamada por Homero luta. Nesta, no
entanto, não podemos encontrar uma verdadeira calma e paz estável,
dom privilégio da sua senhora, isto é, a santíssima teologia. Esta
mostrará o caminho e servir-nos-á de guia; esta, vendo-nos
apressados, de longe gritará: Vinde a mim, vós que viveis
laboriosamente, vinde e eu vos reconfortarei, vinde e dar-nos-ei a paz
que o mundo e a natureza não vos podem dar280
.
Sobre o alcance dessa paz e seu convite benigno, Pico acrescenta, em seguida,
após a persuasão da dialética:
[...] com pés alados como Mercúrios, [gozar-se-á] a paz desejada, a
santíssima paz, a indissolúvel união a amizade concorde pela qual
todas as almas não só se acordam numa única Mente que está acima
de cada mente, mas também de uma maneira inefável se fundem num
só. Esta é a amizade que os Pitagóricos dizem ser o fim de toda a
filosofia, esta é a paz que Deus põe em acto nos seus céus, que os
anjos descendo à terra anunciaram aos homens de boa vontade, a fim
de que mediante esta também os homens, subindo ao céu, se
tornassem anjos281
.
Conforme Pico, é esta paz que é desejada aos amigos e para o seu tempo. Daí
buscar invocá-la em cada casa e para cada alma a fim de que se tornasse “morada de
Deus”. Para tanto é preciso esse itinerário e galgar os degraus, após rejeitadas
as impurezas com a moral e a dialética, se adorne da mais vasta
filosofia como se fosse um ornamento real, que coroe o frontão das
portas com a grinalda da teologia, de tal modo que desça sobre ela o
Rei da glória e, vindo com o Pai, estabeleça nela a sua morada282
.
Trata-se, portanto, do último degrau, ou seja, aquele concernente à paz teológica,
pois evoca ainda a ideia de uma felicidade superior. Ao se reportar à Teologia, Pico se
dirige a outra autoridade, ainda no sentido de itinerário a ser seguido e simbolização de
iniciação. Ele se reporta ao Templo hebraico, isto é, à tradição sacerdotal, após haver
adotado um testemunho profético, a visão de Jacob, e um testemunho sapiencial, a
meditação de Job. É preciso ouvir o que ensina Moisés, o “venerando juiz” que dita às
leis àqueles que vivem na “deserta solidão do corpo”. Conforme Pico sustenta:
[...] os que ainda impuros, têm necessidade moral, fiquem com o
vulgo fora do tabernáculo, sob o céu descoberto, como os sacerdotes
da Tessália, até estarem purificados. Os que já atingiram uma vida
recta, acolhidos no santuário, não se aproximem ainda das coisas
sacras, mas prestem-lhes primeiro serviço com um noviciado
280
Ibidem, pp.69-71. 281
Ibidem, p.71. 282
Ibidem.
112
dialéctico, como zelosos levitas da filosofia. Por fim [...] contemplem
agora, no sacerdócio da filosofia, ora a multicolor, quer dizer, o
sidério ornamento do palácio de Deus, ora o candelabro das sete
chamas, ora os elementos de pele, até que, acolhidos finalmente no
tabernáculo do templo, por mérito da sublimidade teológica,
usufruam, retirado totalmente o véu da imagem, da glória de Deus.
Isto, sem dúvida, [...] aconselha Moisés e ordenando aconselha [...],
incita [...], exorta [...] a preparar [se], enquanto [se puder], a via para a
futura glória dos céus, por meio da filosofia 283
.
3.7 Iniciação e mistérios sapienciais na Oratio: fontes da prisca theologia e a defesa
da Filosofia
Pico dá continuidade à sua reflexão sobre a iniciação em certos mistérios das
coisas divinas. Daí acrescentar ainda, ao lado dos “mistérios” cristãos e moisaicos, Pico
os arcana grecorum e os “mistérios” helênicos. Ele principia com os “mistérios
eleusinos”, os quais culminam na visão das coisas divinas. Ademais, está aqui em
questão certa concepção, elaborada por Ficino em seu trabalho, igualmente, de tradução
e valorização dos antigos mistérios e da primitiva teologia, que Pico expõe na Oratio
com base em um excurso nas várias fontes, orientações sapienciais e mistérios os mais
diversos, ou seja, a prisca theologia. Segundo Pico escreve:
[...] não só os mistérios moisaicos ou os cristãos, mas também a
teologia dos antigos nos mostra o valor e a dignidade das artes liberais
[...], que estou a discutir. Que outra coisa, de facto, querem significar
nos mistérios gregos os graus habituais dos iniciados, admitidos no
mistério através de uma purificação obtida com a moral e com a
dialéctica, artes que já dissemos serem quase purificatórias? E aquela
iniciação que outra coisa pode ser senão a interpretação da mais oculta
natureza mediante a filosofia? Finalmente, quando estavam
preparados, sobrevinha aquela isto é, a visão das coisas
divinas através da luz da teologia284
.
Para os peregrinos na terra que desejassem ser iniciado em tais mistérios, Pico
sabe o quanto desprezariam todos os bens terrenos, os da fortuna, e esqueceriam,
igualmente, o corpo, a fim de alcançar “o dom da eternidade” 285
. Daí Pico indagar:
“Quem não quererá ser inspirado pelo furor socrático, exaltado por Platão no Fedro,
arrebatado em célere voo para Jerusalém Celeste, fugindo rapidamente com bater de
283
Ibidem, p.73. 284
Ibidem. 285
CF. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 75.
113
asas daqui, isto é, do mundo, reino do demônio?” 286
. Ser arrebatado pelos furores
socráticos e trazido para fora da mente, a tal ponto de se pôr a mente em Deus. Para
tanto é preciso que antes seja realizado tudo quanto está no homem:
Se, de facto, com a moral forem refreados, dentro dos justos limites,
os ímpetos das paixões [...], de tal modo que se harmonizem
reciprocamente com estável acordo, se a razão proceder
ordenadamente mediante a dialéctica, [inebriará], invocados pelas
Musas, com a harmonia celeste287
.
Portanto, Pico conhece a genealogia da sabedoria, pois já Ficino havia
estabelecido a genealogia da teologia antiga, falando, igualmente, da eterna sabedoria
que estabeleceu os mistérios divinos. O itinerário de Pico é também filosófico-religioso
com as suas fases e efetivações. Nesse sentido, os termos “teologia” e “mistérios” são
adotados de forma ampla para designar tradições religiosas, quer bíblica quer pré ou
extrabíblica. Desse modo contribuem para destacar as analogias entre as fases e as
metas, relativas às diversas tradições, pois os mistérios apresentados não são apenas
pagãos e a teologia não é apenas cristã.
Se a Teologia indica, de um lado, o momento final ou ainda o patrimônio mais
alto de conhecimento nas várias tradições sapienciais, nos mistérios e doutrinas, ela
sugere, de outro, a ideia de um itinerário relativo à iniciação, quer na sua complexidade
quer na sua dinâmica. Na exposição que segue, Pico se reporta à imagem de Sócrates, e
a do furor, ou manía, conforme o Fedro, conduzindo, por meio da reconstrução moral,
ou seja, a harmonia, as Musas, ao conhecimento da natureza, aqui a referência a
Dionísio, mas também à Carta aos romanos, isto é, conhecer o visível através do
invisível, os segredos de Deus, podendo-se assim inebriar-se com “a abundância da casa
divina” 288
. Contudo só será possível com a fidelidade de Moisés, em que a santíssima
teologia poderá animar com um duplo furor. Daí, após certa sublimação no
Excelso observatório, referindo à medida do eterno as coisas que são,
que serão e que foram, observando nelas a beleza original, seremos,
com vates apolíneos, os amadores alados até que num inefável amor,
como invadidos por um estro, postos fora de nós e cheios de Deus
como Serafins ardentes, já não seremos mais nós próprios, mas
Aquele mesmo que nos fez289
.
286
Ibidem. 287
Ibidem. 288
Ibidem. 289
Ibidem.
114
Pico continua a sua exposição evocando Apolo, filósofo e profeta, sugerindo
assim certa recordação do oráculo de Delfos. Desse modo, ele sugere ainda o ritmo
ternário do processo de iniciação, o qual designa de “tríplice filosofia” 290
, algo que
revela, igualmente, a sua preocupação moral. Ele escreve na Oratio:
Os sagrados nomes de Apolo, se alguém perscrutar a fundo o
significado e os mistérios encobertos, demonstram suficientemente ser
aquele Deus não menos filósofo do que vates. Mas tendo já Amónio
ilustrado isto copiosamente, não há motivo para que eu trate disso de
uma outra maneira. Recordemo-nos todavia, ó Padres, dos três
preceitos délficos, indispensáveis aos que estão para entrar no
sacrossanto e augustíssimo templo, não do falso mas do verdadeiro
Apolo, que ilumina toda a alma que vem a este mundo; vereis que
nada mais reclamar de nós senão que abracemos com todas as forças a
tríplice filosofia acerca da qual agora se disputa. De facto, o
αα, isto é, nada em excesso, prescreve rectamente a norma e
a regra de cada virtude segundo o critério do justo meio, de que trata a
moral. E o famoso υτ, isto é, conhece-te a ti mesmo, incita
e exorta ao conhecimento da natureza na sua totalidade, de que o
homem é vínculo e quase síntese. Quem, de facto, se conhece a si
mesmo tudo em si conhece, como escreveram primeiro Zoroastro e
depois Platão no Alcibíades. Finalmente, iluminados por tal
conhecimento mediante a filosofia natural, próximos agora de Deus e
pronunciando El, isto é, tu és, teológica saudação, chamaremos o
verdadeiro Apolo co alegre familiaridade291
.
Ainda nessa mesma sequência de autoridades pertencentes à tradição grega, Pico
se reporta a Pitágoras, tendo como preocupação certa tríade: purificação moral (cortar as
unhas durante o sacrifício); contemplação natural (olhar o sol); conhecimento divino
(alimentar o galo) 292
. Além dessas autoridades, Pico se reporta, em seguida, aos
testemunhos dos Caldeus. Tais testemunhos revelam
[...] as mesmas artes que abrem aos mortais o caminho para a
felicidade. Escrevem os intérpretes caldaicos que Zoroastro havia dito
ser a alma alada e que, quando lhe caem as asas, se precipita no corpo
e volta a voar para o céu quando lhe tornam a crescer. Tendo-lhe os
discípulos perguntado de que modo poderiam tornar a alma alada apta
para o voo com asas bem plumadas, „regai as asas, disse, com água da
vida‟. E perguntando-lhe ainda estes como poderiam obter tais águas,
respondeu-lhes, segundo o seu costume, com uma parábola: „O
paraíso de Deus é banhado e irrigado por quatro rios: a partir daí
podereis atingir as águas salutares. O nome daquele que corre de
sententrião é Pischon, que significa justiça; o que vem do acaso
290
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.77. 291
Ibidem. 292
A imagem do “galo” recorda para Pico que Job o associa à inteligência, sem deixar de se considerar
aqui outras associações, a saber: ao evento do apóstolo Pedro, o galo de que fala Sócrates (Esculápio) e
outras imagens da ordem cotidiana.
115
chama-se Dichon, isto é, expiação; o que vem do oriente é Chiddekel
e significa luz; por fim, aquele que corre do sul chama-se Perath e
podemos interpretar como fé‟293
.
Para Pico della Mirandola, esses dogmas de Zoroastro nada mais significam que
se dever “purificar a viscosidade dos olhos com a ciência moral”; dirigir-se
“atentamente o olhar com a dialéctica”; “habituar a suportar na contemplação da
natureza a ainda fraca luz da verdade”; e, finalmente, “com a meditação teológica e o
santíssimo culto de Deus” poder-se aguentar, de forma vigorosa, “o fulgurante sol do
meio-dia” 294
. Em seguida, Pico argumenta, tendo como base a sua tentativa de
conciliação das doutrinas e orientações filosóficas diversas, sustentando que talvez
sejam:
[...] esses conhecimentos matutinos, meridianos e vespertinos,
cantados por David e em seguida explicados amplamente por
Agostinho. Esta é a luz resplandecente que inflama os Serafins e do
mesmo modo ilumina os Querubins. Esta é a região para a qual tendia
sempre o antigo pai Abraão. É este o lugar onde, segundo o ensino dos
Cabalistas e dos Árabes, não há lugar para os espíritos impuros295
.
Ainda sobre esses “secretos mistérios” sob o véu do enigma, em virtude da
vertigem da mente do homem após a sua queda, Pico escreve:
[...] segundo as palavras de Jeremias, de facto, foram abertas as
janelas à morte, a qual atingiu o coração e o fígado, invoquemos
Rafael, médico celeste, para que nos liberte com a moral e a
dialéctica, fármacos salutares. Habitará então em nós, já outra vez de
boa saúde, Gabriel, força de Deus, levando-nos através das maravilhas
da natureza e mostrando-nos por todo o lado a virtude e o poder de
Deus, apresentar-nos-á finalmente a Miguel sumo sacerdote, o qual,
após termos prestado serviço nas milícias da filosofia, nos coroará,
como se tratasse de uma coroa de pedras preciosas, com o sacerdócio
da Teologia 296
.
Na sua exposição, Pico revela o teor, quer contemplativo quer perscrutador de
sua filosofia, mas, igualmente, certa oposição ao modo como alguns filósofos do seu
tempo concebiam a prática filosófica. Ademais, foi à busca de conhecimento desses
mistérios supremos que lhe impeliram, conforme a Oratio, ao estudo da Filosofia.
Trata-se, também, de uma resposta aos que têm o hábito de condenar o estudo da
Filosofia, em particular, naqueles que gozam em geral de uma posição privilegiada:
293
MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.79. 294
Ibidem, p. 81. 295
Ibidem. 296
Ibidem.
116
condenação que provoca mais desprezo e vitupério que honra e glória. Pico rechaça tal
convicção em virtude de ela limitar a pouquíssimos, a disposição do filosofar: “como se
o investigar as causas das coisas, os processos da natureza, a razão do universo, os
conselhos de Deus, os mistérios do céu e da terra não valesse de nada, a menos que daí
se consiga retirar algo de útil ou de lucrativo”297
. Revela-se assim o seu
descontentamento ante o presente, pois se considerava sábio
[...] senão os que transformam o estudo da sabedoria em fonte de
lucro, de tal modo que se pode ver a casta Palas, enviada para o meio
dos homens por dom divino, expulsa, ridicularizada e vilipendiada.
Não há quem a ame, quem a siga, senão com condição de se prostituir
e de tirar lucro da sua violada virgindade e, recebido o dinheiro, deitar
esse mal obtido dinheiro no cofre do amante298
.
Pico é contundente na sua resposta aos filósofos de seu tempo, que tornam a
sabedoria fonte de lucro. Ele revela a sua indignação contra tais filósofos,
[...] os quais acreditam e dizem que não se deve filosofar porque não
se estabeleceram prêmios e recompensas para os filósofos; como se
não mostrassem precisamente com esta afirmação não serem filósofos.
Toda a vida destes, efectivamente, ao assentar no lucro ou na ambição,
mostra que eles não abraçam por si mesmo o conhecimento da
verdade 299
.
Pico sustenta ter sempre filosofado “pelo amor da pura filosofia” 300
, e nunca ter
esperado ou procurado com os seus estudos e suas meditações a não ser a formação de
sua alma e o conhecimento da verdade: algo sempre ansiado por ele acima de qualquer
coisa. Portanto, como amante do saber, Pico della Mirandola abandonara toda e
qualquer preocupação com negócios privados e públicos, dedicando-se apenas “à paz da
meditação” 301
. Nesse sentido, a Filosofia lhe ensinara “a depender mais das [sua]
297
Ibidem, p.83. 298
Ibidem. 299
Pico diz, sem qualquer falsa reseva, ter sempre filosofado por amor da pura filosofia, não esperando
nunca obter “alguma mercê ou algum fruto a não ser a formação da [sua] alma e o conhecimento da
verdade, por [ele] ansiada acima de qualquer outra coisa. Da qual [foi] sempre um amante tão apaixonado
que, abandonada toda e qualquer preocupação relativamente aos negócios privados e públicos, [se
dedicou] completamente à paz da meditação; disto calúnias de invejosos nem a maldade dos inimigos do
saber [lhe] puderam até aqui desviar e nunca o [poderão]. Foi a filosofia que [lhe] ensinou a depender
mais da [sua] consciência do que dos juízos dos outros; a estar sempre atento, não ao mal que [dele] se
diz, mas a não dizer ou fazer [ele] próprio o mal” (cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a
dignidade do homem, pp. 83-85). 300
Ibidem, p. 83. 301
Ibidem, p.85.
117
consciência do que dos juízos dos outros; e estar sempre atento, não ao mal que dele se
diz, mas a não dizer ou a não fazer [ele] próprio o mal” 302
.
3.8 Pico ante as objeções contra a disputa romana: tradição e conciliação entre
doutrinas na sua justificativa filosófica
Com a ida a Roma, e a publicação das suas Conclusiones Pico sofreu um
período de muitas críticas que afetavam não apenas a sua vocação filosófica e
contemplativa, mas, sobretudo, o seu ceder à sabedoria mundana em virtude do gosto
pela disputa. Isto explica as várias divergências em relação ao empreendimento romano
de Pico della Mirandola, pois muitos condenaram a iniciativa. Daí ele sustentar:
“Alguns há que desaprovam este gênero de discussão e esta [sua] iniciativa de debater
em público questões doutrinais, afirmando que tudo isto tem mais como intenção
mostrar engenho e erudição do que obter um melhor conhecimento” 303
. “Já outros
mesmo aprovando esse tipo de estudo, desaprovavam no caso específico de Pico della
Mirandola, em virtude de sua pouca idade, como atesta Pico, apenas vinte e quatro
anos” e, ao mesmo tempo, a ousadia de propor “uma discussão acerca dos mistérios
mais altos da religião cristã, acerca das questões mais profundas da filosofia, acerca de
doutrinas desconhecidas, numa cidade famosíssima, numa vastíssima assembleia de
homens doutíssimos frente ao senado Apostólico” 304
.
Ademais, muitos, mesmo admitindo a disputa, recusavam, porém, o fato das
novecentas teses, identificando a sua elaboração como soberba ou ambição, ou seja,
como algo acima da capacidade de seu autor. Pico recusa a opinião de que a sua
iniciativa fosse apenas a de altercar e polemizar, distanciando assim qualquer intenção
de provocação ou litígio: afinal não era o seu propósito. Ele se confronta ainda com
aqueles que criticam a discussão em público: tarefa de grande louvor e glória. Daí
justificá-la se reportando a Platão, Aristóteles e a todos os filósofos de todos os tempos,
pois
[...] nada lhes era mais favorável para a obtenção da verdade que
procuravam do que o exercício contínuo e frequente da discussão. De
facto, do mesmo modo que as forças do corpo se robustecem com a
302
Ibidem. 303
Ibidem, p.85. 304
Ibidem.
118
ginástica, assim também, sem dúvida, nesta espécie de palestra do
espírito, a energia da alma se torna mais forte e firme305
.
Com o propósito de justificar o seu argumento acerca da relevância desse gênero
de lutas para se obter a sapiência, Pico della Mirandola se reporta aos poetas, com “as
famosas armas de Palas”, aos Hebreus e o ferro símbolo como “símbolo dos sapientes”,
necessária igualmente para se defender306
. Ele destaca ainda os Caldeus, pois talvez
desejassem a discussão para o nascimento daquele que devesse se tornar filósofo:
“Marte olhe triangularmente para Mercúrio, de tal modo que, uma vez retiradas estas
conjunções e estes contrastes, toda a filosofia resultasse soporífica e sonolenta” 307
.
Pico se preocupou em defender a sua proposta com argumentos nutridos de
erudição e conhecimento de fontes antigas, as mais diversas, revelando assim a sua
orientação filosófica ante aos que se opuseram à disputa. Daí justificá-la com um
levantamento da sua erudição, a qual havia chegado com seu conhecimento de várias
doutrinas sapienciais e saberes. O seu intuito não de demonstrar na Oratio polêmica,
porém, expor as doutrinas que havia adquirido com base em fontes de ensinamentos
doutrinários, filosóficos e teológicos expressas também nas Conclusiones, defendendo-
se também dos que não lhe consideravam à altura de tal iniciativa, da acusação de
imodesto e presunçoso, mas também de imprudente e temerário308
.
Pico esclarece a sua pretensão de argumentar sobre o porquê de suas formulações
nas Teses e mesmo no próprio texto da Oratio, mas também a sua pouca idade e
coragem deixando claro que seu objetivo não era buscar reconhecimento e ser assim
considerado um douto:
Vede, pois, em que caí, em que posição me encontro, já que não posso
deixar de prometer sem reprovação o que não posso deixar de
prometer sem reprovação o que em seguida não posso sem reprovação
dar. Talvez possa citar de Job que o espírito está em todos, e ouvir
com Timóteo: ninguém despreze a tua juventude. Mas, de um modo
mais sincero e segundo a minha consciência, poderei dizer que em
mim nada há de grande e de singular; ainda que admitindo ser
estudioso e desejoso de saber, contudo não me arrogo nem pretendo o
nome de douto309
.
305
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.87. 306
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.87. 307
Ibidem. 308
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade humana, p.89. 309
Ibidem.
119
Ele reconhece, portanto, os riscos que acarretam o seu empreendimento, mesmo
porque reconhece a sua fraqueza ante uma tarefa tão pesada, mas sabe da prerrogativa
presente nessa espécie de batalha doutrinária, ou seja, “ser vencido é um ganho” 310
.
Contudo, diz não ter receio de enfrentar combatentes mais fortes e corajosos.
Para refutar ainda a objeção do número exagerado de teses na proposta das
Conclusiones, Pico della Mirandola se serve de outros argumentos, demonstrando
também de estar consciente da responsabilidade de defender tais posições. Para tanto,
ele defende a sua posição se reportando também a Cícero: ser “verdadeiramente
inconveniente querer pôr limite às obras dos outros e [...] querer exigir a mediocridade
ao que é tanto melhor quanto maior é” 311
, e expõe a importância do conteúdo de seu
projeto. Na Oratio, ele demonstra também como se devem dispor os argumentos em
forma de exposição, já expostos nas Conclusiones, reconhecendo que outros, anterior a
ele, já haviam proposto questões acerca de conhecimento associadas à Filosofia,
Teologia e às demais ciências que se faziam presentes no interesse e investigação. De
modo que Pico argumenta:
Se, nos nossos tempos, muitos, Górgias de Leontino, propuseram
disputas, não sem louvor, não só sobre novecentas teses, mas mesmo
sobre todos os assuntos de todas as artes, porque não poderei eu, sem
ser reprovado, discutir sobre muitas, sim, mas bem precisas e
determinadas? Mas replicam que isso é supérfluo e ambicioso. Eu,
pelo contrário, contraponho que não só é supérfluo, mas que para mim
é necessário fazê-lo, e se aqueles considerassem as razões do meu
filosofar seriam constrangidos a reconhecer tal absoluta
necessidade312
.
Pico fez menção aos que seguem uma escola filosófica313
, quer de São Tomás
quer de Escoto, congregando os maiores consensos, pois cimentam a sua doutrina na
discussão de poucas questões, assim pautada em um determinado filósofo ou
pensamento. Conforme apresenta Pico na Oratio, a sua defesa de expor pensamentos,
como aqueles encontrados nas Conclusiones, revela um exemplo oposto ao dos seus
críticos, destacando a necessidade de todos os filósofos314
. Nesse sentido, ele sustenta:
310
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.89. 311
Ibidem, p. 90. 312
Ibidem. 313
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.91. 314
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 91.
120
Eu, pelo contrário, propus interessar-me seriamente por todos os
mestres da filosofia, examinar todas as posições, conhecer todas as
posições, conhecer todas as escolas, mas não jurar sobre a palavra de
ninguém. Por isso, encontrando-me na necessidade de falar de todos
os filósofos, para não parecer sustentar uma tese determinada sem
tomar em consideração as outras, as questões propostas não podiam
deixar de ser muitas no seu conjunto, ainda que sejam poucas as
atinentes a cada um315
.
Pico segue então essa regra, investigando todos os antigos e examinando cada
pensador, não deixando de ler nenhum escrito o quanto possível: daí haver investigado
tanto a escola do Pórtico quanto a Academia. Recusava-se, portanto, adotar o
procedimento daqueles de mente estreita, que se restringem a uma única escola
filosófica, pois em cada escola há algo de específico e de não comum em relação às
demais. Nesse sentido, ele argumenta:
há em João [Duns] Escoto qualquer coisa de vigoroso e de subtil, em
Tomás [de Aquino] de sólido e de equilibrado, em Egídio [Romano]
de terso e de exacto, em Francisco [de Mayronnes] de penetrante e de
agudo, em Henrique [de Gand], parece-me, qualquer coisa sempre
sublime e veneranda316
.
No pensamento árabe destaca o que há de seguro e inconcusso, de grave e
meditado e de divino e platônico: Averróis, Avanpace, Alfarabi e Avicena317
. Entre os
Gregos reconhece haver, acima de tudo, uma filosofia clara e pura; mas também rica e
ampla; constante e douta; profundamente elaborada; ágil e graciosa, reportando-se a
Simplício, Alexandre de Afrodísia, Teofrasto e Amónio318
. Pico indica também alguns
platônicos, a saber, Porfírio, Jâmblico, Plotino, em razão de temas como a religião,
filosofia oculta, mistérios bárbaros, ou seja, naquilo que se revela de admirável em
relação às coisas divinas e divinamente no que concerne o humano319
. Ele deixa, porém,
os mais recentes, ou seja, Proclo, Hérmias, Damásio e Olimpiodoro e, conforme afirma,
muitos outros, “nos quais reluz sempre aquele τ , isto é, o divino, símbolo
característico dos Platônicos”320
. No caso da existência de escolas que combatem as
afirmações mais verdadeiras, e caluniam os juízos válidos da razão, Pico defende que
tais escolas terminam reforçando e não enfraquecendo a verdade321
. Pico pretendeu,
315
Ibidem, pp. 91-93. 316
Ibidem, p.93. 317
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre s dignidade do homem, p.93. 318
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.95. 319
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.95. 320
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.95. 321
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.95.
121
portanto, apresentar conclusões de várias doutrinas: algo que ter agradado a muitos. Daí
indagar:
Que valor teria tratar só da filosofia dos latinos, isto é, de Alberto, de
Tomás, de Escoto, de Egídio, de Francisco, de Henrique, esquecendo
a filosofia dos Gregos e dos Árabes, quando todo o conhecimento
passou dos Bárbaros aos Gregos e dos Gregos a nós? Por isso, os
nossos sempre retiveram suficiente, no campo filosófico, aterem-se às
descobertas dos outros e aperfeiçoar o pensamento alheio322
.
Ele teria também usado temas do mundo natural e divino: questões físicas com
os Peripatéticos e divinas com a Academia dos Platônicos, que tem sido considerada, de
acordo com Agostinho uma doutrina santíssima entre todas as filosofias até então. Pico
indaga ainda:
De que teria valido ter discutido as opiniões dos outros, se,
convidados para o banquete como quem não leva nada consigo, não
tivéssemos trazido nada de nosso, nada produzido e elaborado pelo
nosso engenho? È verdadeiramente pouco nobre, como afirma Séneca,
saber apenas de comentário, como se as descobertas dos maiores
tivessem fechado o caminho para a nossa investigação, como se a
força da natureza, como que esgotada, não pudesse gerar algo que,
ainda que não mostrando completamente a verdade, a faça pelo menos
entrever de longe. Do mesmo modo que o camponês odeia a
infertilidade do campo e o marido a esterilidade na mulher, assim
também a mente divina odiará ainda mais uma alma infecunda ligada
a cingida a si, quanto mais nobre é a prole que dela se deseja323
.
Em seguida, Pico della Mirandola enumera, na sua exposição, outros temas das
Conclusiones e destaca a relevância em abordá-los. Além das doutrinas comuns, ele
tratara temas relativos à teologia dos antigos, ou seja, aqueles autores pertencentes à
chamada prisca theologia, desde Hermes Trimegisto, Caldeus e Pitágoras, mas também
os mistérios ocultos dos Hebreus, em suma, temas pertencentes, quer ao mundo natural
quer ao divino324. Pico propôs o acordo entre Aristóteles e Platão, antes tentado por
outros filósofos, mas por ninguém provado. Entre os Latinos, Pico se reporta a
Boécio325
, pois prometera realizar tal acordo, mas não conseguira tal objetivo326
. Outros
322
Ibidem, pp.95-97. 323
Ibidem, p. 97. 324
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.97. 325
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 97. 326
Para Josep-Ignasi Saranyana: “Boécio idealizou o projeto de verter para o latim os escritos de Platão e
de Aristóteles, e de demonstrar, ao mesmo tempo, que ambos os filósofos concordavam no essencial.
Porem possuímos dele apenas uma tradução comentada das Categorias (tratado denominado De
interpretatione, dedicado ao juízo). Também traduziu o Isagogé, ou Introdução às Categorias (de
Aristóteles), obra do neoplatônico Porfirio (233-305), em que é analisada a doutrina sobre os predicáveis;
122
ainda haviam tentado realizar esse acordo, desde Simplício e até Agostinho nas Cartas
aos Acadêmicos escreve que “muitos foram os que tentaram provar nas suas disputas
que a filosofia de Platão e de Aristóteles é uma mesma filosofia” 327
. Contudo, apenas
João Gramático deixou para os vindouros essa demonstração. Ademais busca em suas
Conclusiones opor-se a sentenças consideradas como contrastantes em Escoto e Tomás,
em Averróis e Avicena, defendendo a concordância entre as mesmas328
.
Pico propusera ainda, nas suas Conclusiones, de acordo com a defesa da Oratio,
outro procedimento filosófico com base nos números e seguido pelos primeiros
teólogos, argumentando igualmente como, através dos tempos, uma doutrina pode vir a
se apagar em virtude da incúria dos vindouros. Tal procedimento filosófico
[...] com base nos números, [fora] seguido pelos primeiros Teólogos,
especialmente por Pitágoras, por Aglaofemo, por Filolau, por Platão e
pelos antigos platônicos, doutrina que, como outras doutrinas ilustres,
se apagou de tal modo, devido à incúria dos vindouros, que delas
dificilmente se encontra actualmente um ou outro traço329
.
Em suas formulações, Pico destaca na Oratio a relevância dos teoremas
mágicos, e o sentido duplo que tem a Magia330
, pois, conforme atesta Pico, ela está
dividida em duas partes: uma que se encontra na autoridade dos demônios331
e a outra
na filosofia natural. A primeira parte é considerada de modo crítico e sem credibilidade,
pois algo execrável e monstruosa, mas a segunda, se investigada atentamente, é a
suprema realização da filosofia natural. Segundo ele escreve:
Os gregos, tendo presente uma e outra, indicam a primeira, não a
dignificando de modo algum com o nome de Magia com o vocábulo
τ, e chamam o próprio e peculiar nome α à quase
perfeita e suprema sapiência. Como disse Porfírio, de facto, na língua
e escreveu outro comentário ao Isagogé, traduzido por Mário Victórino. As outras obras de caráter
aristotélico a ele atribuídas, e que constam na edição da Patrologia Latina (comentários aos Primeiros e
Segundos Analíticos, aos Tópicos e aos Elencos sofísticos), São de Giacomo de Veneza, de
aproximadamente 1128. Redigiu, além disso, quatro opúsculos lógicos (um deles, comentando os Tópicos
de Cícero), e alguns tratados de caráter teológico, como De Trinitate, De hebdomadibus, Liber de persona
et dualibus naturis e Brevis fidei chistinianae complexio” (cf. SARANYANA, Josep-Ignasi. A Filosofia
Medieval. – das origens patrísticas à escolástica, p.110). 327
MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade humana, p.99. 328
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.99. 329
Ibidem. 330
Para Pico existem dois tipos de magia. Por um lado a magia negra da bruxaria e da feitiçaria, obra do
demônio, a qual ele critica e recusa, por outro, aquela que se identifica com a filosofia natural, ou seja,
uma “boa magia”, pois diz respeito ao estudo e interpretação das coisas celestes e divinas. Corresponde
também ao poder do homem manipular a natureza. Há quem se reporte, por isso, a Pico como se
anunciasse a tecnologia (cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobe a dignidade do homem, p.101). 331
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.101.
123
persa, mago tem o mesmo significado que tem para nós intérprete e
cultor das coisas divinas332
.
A crítica contra a magia demoníaca nas Conclusiones, de acordo com a Oratio,
revela a disparidade entre as duas artes: a primeira detestada não somente pela religião
cristã, mas também por todas as leis e por qualquer Estado bem organizado, já a outra é
aprovada e abraçada por todos os sábios e povos amantes, quer das coisas celestes, quer
divinas 333
. Para justificar os seus argumentos, Pico della Mirandola se reporta, em
seguida, às fontes de sua erudição, opondo a vergonha de quem praticou a primeira à
celebridade e glória nas Letras, a qual confere à segunda. Da primeira nunca existira
entre filósofo ou homem desejoso de buscar aprender as boas artes, ao passo que
Pitágoras, Empédocles, Demócrito e Platão correram os mares e
quando voltaram ensinaram-na como suprema arte nos seus mistérios.
Aquela, porque não é sustentada por nenhum autor; esta, quase
tornada nobre por ilustres pais, tem sobretudo dois cultores334
.
Em Zalmóxides, Ábaris e Zoroastro, Platão diz no Alcibíades “que a magia
outra coisa não era senão o conhecimento das coisas divinas” 335
. Segundo a Oratio, os
reis persas a magia ensinavam aos filhos para que aprendessem a governar as
Repúblicas e Zalmóxides a considerava como animi medicinam [medicina da alma]336
.
Na esteira destes, Pico destaca ainda Carondas, Damigeron, Apolónio, Hostanes,
Dárdano. Ele diz que Homero escondera nas viagens de Ulisses esta arte como as outras
ciências, mas destacaram-se também Eudoxo e Hermipo337
. Entre os modernos que
praticaram a magia, Pico destaca o árabe Alkindi, Rogerio Bacon e Guilherme de Paris
[de Alvérnia]338
. Ademais, Plotino dissera que o mago é ministro da natureza e não
artífice, aprovando, de um lado, este tipo de magia e refutando, de outro, aquele tipo de
magia demoníaca. Ele observa igualmente a disparidade de cada parte da magia:
enquanto uma prende o homem, como escravo das forças do mal339
, a outra pode
reivindicar o nome de arte ou de ciência, pois se encontra repleta de mistérios que
permitem a contemplação das coisas mais elevadas e secretas, possibilitando também o
conhecimento das coisas da natureza. Pico expõe ainda a relevância de se considerar
332
Ibidem, p.100. 333
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 103. 334
Ibidem, p.103. 335
Ibidem. 336
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.103. 337
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.105. 338
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.105. 339
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.105.
124
essa divisão da Magia. Daí se reportar aos Gregos340
para completar os seus
argumentos. De acordo com a Oratio:
Daqui se infere que, enquanto a primeira magia aparece como
monstruosa e nociva, segunda mostra-se divina e salutar. Sobretudo
por isto, enquanto uma, colocando o homem à mercê dos inimigos de
Deus, o afasta de Deus, a outra exalta-o para tal admiração das obras
de Deus, de onde seguramente derivam a caridade, a fé, e a esperança.
De facto, nada conduz melhor à religião, ao culto de Deus, como a
constante contemplação das maravilhas de Deus, e quando as tivermos
examinado bem mediante esta magia natural de que agora tratamos,
mais ardentemente animados pelo culto e por grande amor pelo
artífice, seremos levados a cantar: „Cheios estão os céus, cheia está a
Terra da Tua majestade e glória‟341
.
Encerrando os argumentos sobre a Magia, Pico se dirige aos antigos mistérios
dos Hebreus, a fim da confirmação da fé católica e cristã. Ele defende a relevância
desses mistérios e sustenta não se tratar tais coisas, como parece àqueles que as
ignoram, de “vaidades, patetices ou fábulas de charlatães” 342
. Daí se reportar a autores
ilustres que confirmam a divindade e a importância delas para a defesa do Cristianismo
contra as calúnias dos Hebreus. De acordo com Pico della Mirandola, pode-se encontrar
entre célebres doutores hebreus e entre:
[...] os nossos, também Esdras, Hilário e Orígenes, que Moisés
recebeu no monte não só a lei que depois deixou aos descendentes em
cinco livros, mas também uma secreta e verdadeira interpretação dela.
A Moisés Deus ordenou que divulgasse a lei, mas que não escrevesse
a interpretação da lei nem a divulgasse, mas a revelasse só a Jesus
Nave e este, por sua vez, aos seguintes sumos sacerdotes, sob o
sagrado sigilo do absoluto silêncio343
.
Portanto, era suficiente apenas conhecer, por meio de simples relatos, quer a
potência de Deus quer a sua ira contra os malvados, mas também a justiça para com
todos, a fim de uma vida boa, feliz e para o culto de uma religião verdadeira344
. Daí Pico
acrescentar:
Porém, revelar abertamente à plebe os mistérios mais secretos
escondidos sob a casca da lei, expor os sublimes mistérios de Deus,
340
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.105. 341
Ibidem, pp.105-107. 342
Cf. MIRANDOLA Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.107. 343
Ibidem, p.107. 344
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.108.
125
ocultos sob a rude veste das palavras, que outra coisa teria sido senão
dar as coisas santas aos cães e lançar pérolas a porcos?345
.
Era preciso manter oculto tudo isto ao vulgo e comunicar apenas aos perfeitos.
Pico della Mirandola se reporta a Paulo como um dos perfeitos, por ter pronunciado
palavras de sapientae, a qual não está ligada à humana prudência, porém a ação divina:
costume observado pelos filósofos antigos346
. Em seguida, Pico faz alusão a alguns
filósofos antigos que observaram tal costume: Pitágoras e os escritos confiados à filha
Damo, advertindo que os ensinamentos míticos deviam ser guardados mediante o
enigma, invioláveis para a multidão profana347
; Platão que defendia ser preciso
expressar-se mediante enigmas a fim de se proteger dos outros o escrito348
; Aristóteles
que afirmava serem inéditos os livros da Metafísica que tratavam de coisas divinas349
;
Orígenes ter afirmado que Jesus Cristo revelara aos discípulos coisas que eles não
quiseram escrever para não se vulgarizarem350
; Dionísio Areopagita que defendera
terem sido os mistérios mais secretos transmitidos pela religião cristã, ou seja, de mente
a mente, sem escritos mediante o Verbo351
. Ainda nesse sentido, Pico afirma:
Tendo deste modo sido considerada, por mandamento de Deus
verdadeira interpretação da lei dada a Moisés por Deus, deu-lhe o
nome de Cabala, que para os Hebreus, tem o mesmo significado que
para nós receptio (recepção). E isto porque tal doutrina era recebida,
não mediante momentos literários, mas por meio de sucessivas
revelações que um recebia do outro, como por direito hereditário 352
.
Reportando-se à história do povo hebreu, Pico della Mirandola busca expor a
origem dos livros da Qabbalah, destacando desde a libertação desse povo da escravidão
babilônica, por Ciro, à construção do templo sob Zorobabel com o empenho de restaurar
a lei. Com Esdras, chefe da Igreja, após se emendar os livros de Moisés, reuniu os
sábios, pois sabia dos riscos de se conservar por muito tempo a tradição dos
antepassados, para que cada um manifestasse o que havia guardado da memória dos
mistérios divinos. Tais mistérios foram escritos em setenta volumes em conformidade
com o número dos sábios do Sinédrio353
. Pico afirma serem estes os livros da
345
Ibidem, p.109. 346
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.109. 347
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.109. 348
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.109. 349
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.109. 350
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.109. 351
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.109. 352
Ibidem, pp.109-111. 353
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.111.
126
Qabbalah: “fonte de sapiência, isto é, a exacta metafísica das formas inteligíveis e
angélicas; e o rio de ciência, isto é, a solidíssima filosofia das coisas da natureza” 354
.
Ele diz ter o Papa Sisto IV, predecessor imediato de Inocêncio VIII, mandado traduzir
para o latim para serem úteis à fé cristã. Em seguida, Pico narra:
Estes livros procurei-os com não pequeno dispêndio de dinheiro, li-os
com suma diligência e incansável estudo e vi neles Deus é disso
testemunha não tanto a religião Mosaica quanto a Cristã. Aqui os
mistérios da Trindade, aqui a encarnação do Verbo, aqui a divindade
do Messias; aqui quanto diz respeito ao pecado original, à expiação
deste por meio de Cristo, quanto concerne à Jerusalém Celeste, à
queda dos demônios, aos coros angélicos, às penas do purgatório e do
inferno; li as mesmas coisas que todos os dias lemos em Paulo e
Dionisio, em Jerónimo e em Agostinho. No tocante à filosofia, parece-
nos ouvir Pitágoras e Platão, cujos princípios são tão afins à fé cristã
que o nosso Agostinho dá imensas graças a Deus por lhe terem
chegado às mãos os livros dos platônicos355
.
Daí Pico concluir não haver nenhum tema controverso entre nós e os Hebreus356
,
pois poderão ser combatidos e convencidos com os próprios escritos cabalísticos: algo
que foi demonstrado por outro erudito, a saber, António Crónico, o qual ouvira em sua
casa Dáctilo Hebreu afirmar às mesmas conclusões dos cristãos acerca da Trindade. Ele
reconhece ter buscado apresentar na disputa romana as suas interpretações dos Carmes
de Orfeu e de Zoroastro, ambos considerados pais e autores da antiga sabedoria. Outros
autores são ainda indicados nessa sua argumentação acerca das fontes e da orientação de
seus propósitos filosóficos: Jâmblico de Calcídia que sustentava ter Pitágoras
considerado a teologia órfica aquele modelo com base no qual plasmou e formou a sua
filosofia357
.
Para concluir a sua exposição na Oratio, Pico se revela consciente de não ter
reduzido a discussão ao menor número possível de temas e argumentos, algo habitual
outros fazerem e reconhece igualmente a necessidade de um número maior de teses em
relação àquelas apresentadas nas Conclusiones. Justificando essa necessidade, ele cita o
exemplo da tese que aborda a conciliação entre a filosofia de Aristóteles e de Platão,
pois tal tese exigiria um número maior de pontos a ser abordados, sem com isso incorrer
em suspeitas de prolixidade, em virtude da necessidade de enumerar os lugares em que
354
Ibidem, p.113. 355
Ibidem. 356
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p.113. 357
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem, p. 115.
127
alguns consideram que os dois contrastam, mas que pensa os dois estarem de acordo?358
Trata-se de uma questão fundamental do projeto filosófico de Pico della Mirandola que
será retomada em sua obra De ente et uno359
.
Mas certamente - e di-lo-ei, embora não seja modesto da minha parte
e seja contra a minha índole – di-lo-ei, contudo, porque a isso me
obrigam os invejosos e me forçam os detratores: quis nesta assembleia
mostrar não tanto que sei muitas coisas, mas que sei coisas que os
outros ignoram360
.
358
Cf. MIRANDOLA, Pico della. Disurso sobre a dignidade do homem, p.117. 359
MIRANDOLA, Pico della. Dell‟ ente e de uno [1496]. Milano: Bompiani, 2010. 360
MIRANDOLA, Pico della. Discurso sobre s dignidade do homem, p.117.
128
CONSIDERAÇÕES FINAIS
À guisa de conclusão, pode-se aqui sustentar que a abordagem desenvolvida por
Pico della Mirandola no seu escrito Oratio de hominis dignitate, obra central desta
dissertação, ao considerar a questão da natureza humana e a liberdade, apresentou certo
projeto de saber e concepção filosófica, mas também um procedimento filosófico
adequado às exigências da erudição. Daí ser preciso algumas considerações sobre os
pressupostos do encaminhamento de Pico della Mirandola. Para tanto é preciso destacar
o levantamento das fontes de sua reflexão: algo que caracteriza, igualmente, a influência
da cultura de seu tempo, ou seja, aquela do projeto cultural humanista e, ao mesmo
tempo, da herança de tal projeto na reflexão de alguns filósofos da época, em particular,
de Pico della Mirandola. Tais pressupostos foram necessários à elaboração de seu
pensamento: preocupação também desta pesquisa, ao abordar a questão do presente
tema.
Sabendo que para Pico della Mirandola chegar à formulação das ideias da sua
Oratio foi preciso resgatar manuscritos e escritos raros pertencentes a saberes muito
antigos e culturas tão longínquas, transitar por algumas questões doutrinais, sapienciais,
filosóficas e teológicas de culturas também bastante diferentes, revela o sentido amplo e
de síntese, implícito em seu projeto filosófico. É certo que ele expressou, de forma
intensa, o seu conhecimento do que havia investigado em seu trajeto inclusive em vários
Centros de estudos e em cidades as mais diversas do seu país, como em Paris. Isso se
revela na elaboração de seu pensamento, em que se articulam orientações filosóficas as
mais diversas e, em especial, na sua reflexão metafísica e ética se expressa, conforme
indica a Oratio. Contudo, pode-se sustentar que isso não exclui as influências históricas,
culturais e filosóficos na elaboração dessa obra, pois na escrita está presente a cultura do
seu tempo. Por conseguinte, destacam-se aqui o Humanismo e o Renascimento que
marcam uma filosofia que revela a sua orientação enciclopédica: algo que caracteriza a
orientação do saber nesse momento da cultura.
Embora se reconheça que a temática apresentada Pico não fosse original, ou
seja, a questão da dignitas hominis, no entanto, ele apresentou, na Oratio, uma
concepção mais rica e profunda em sua abordagem, conforme o segundo capítulo desta
129
dissertação. A dignitas hominis, em vez da acepção apenas antropológica, assume na
abordagem de Pico uma orientação em que se articulam elementos, quer metafísicos
quer éticos: daí o seu interesse em retomar valores provenientes das sabedorias
filosóficas e teológicas. Tal herança se revela ainda na relação entre microcosmo e
macrocosmo, com a presença da concepção de imago Dei, presente também no universo
do pensamento medieval e retomado no Renascimento filosófico italiano.
A reflexão sobre o platonismo como também sobre o aristotelismo foi parte
integrante da busca de Pico della Mirandola de uma síntese e do seu ideal de concórdia.
Isto revela também a sua intenção de unir as doutrinas e culturas diversas ante a
separação existente entre ambos os pensadores na tradição, não só no domínio das
orientações filosóficas, mas na divisão entre os centros italianos, a saber, Pádua e
Florença no estudo desses filósofos. A escolástica assume também importância e
penhor, expressas nas teses das Conclusione nongentaes, e na Oratio está presente
como referência de conhecimento para fundamentar e esclarecer a sua defesa da
doutrina cristã. Não se pode esquecer umas das inquietações de Pico della Mirandola,
também relevante em seu projeto, ou seja, a sua visão em expor a Magia,
compreendendo desde a sua divisão em duas partes, e a possibilidade de explicar certos
mistérios relativos ao conhecimento dos fundamentos do Cristianismo, não esquecendo
ainda da Astrologia, que será depois refutada na continuidade de seu pensamento,
conforme testemunha o seu escrito Disputationes adversus astrologiam divinatricem.
Para além desses componentes da cultura renascentista, a Qabbalah, em sua divisão de
teórica e prática, contribuiu na abordagem filosófica de Pico, mas também como
doutrina, para a compreensão igualmente da doutrina cristã e para os fundamentos da
sua metafísica.
Ademais, a orientação filosófica de Pico della Mirandola e a relação entre
escolásticos e retóricos e entre filósofos bárbaros e humanistas, integraram a sua
formação e o seu projeto filosófico. Destacar a importância da escrita eloquente e, ao
mesmo tempo, a sua dimensão defensora da verdade no pensamento, traduz o sentido
integral dessa filosofia buscada por Pico della Mirandola. As suas epístolas dirigidas a
Ermolao Barbaro, que considerava os filósofos medievais como bárbaros e incultos,
pois não interessados por uma escrita orientada pelos cânones da retórica clássica, não
excluia, de modo algum, o seu interesse pela verdade no domínio desse pensamento. A
130
Oratio se revela, nesse sentido, como um documento fundamental desse diálogo
integrante, não obstante o fracasso do projeto da disputa em Roma na forma das Teses.
Apresentar a posição de pensadores, escolas, doutrinas, conhecimento filosóficos e
teológicos os mais diversos, se revela na Oratio na forma breve de uma ideia e síntese
que contribui para esclarecer a grandiosidade filosófica de seu projeto. A defesa na
Oratio da verdade inerente à construção do pensamento humano ao longo dos tempos e
a necessidade de busca e reconhecimento de uma verdade mais universal, por meio de
um entendimento amplo entre as doutrinas mais diversas, não obstante as diferenças
fundamentais, revela também aquilo que hoje se pensa, igualmente, como necessidade
ecumênica entre doutrinas religiosas, pois pretendida por Pico na sua busca de uma pax
philosophica.
Para chegar à formulação de sua concepção de natureza humana e de liberdade
na Oratio, Pico adota em seu procedimento uma multiplicidade de vias que fazem parte
da construção dessa oração. Nessa obra o homem aparece como magnum miraculum, ou
seja, um grande milagre. Portanto, deve-se aqui se reconhecer o grande débito de Pico
em relação ao passado e destacar ainda o seu grande vínculo, mais do que qualquer
outro humanista, com a cultura escolástica medieval. Como se sabe, Pico se considerava
um anagnóstes, ou seja, um leitor dos antigos, ou mesmo uma espécie de hermeneuta de
fontes e doutrinas muito antigas. Isso justifica, igualmente, a configuração de sua
filosofia, quer em sentido estilístico quer em relação aos conceitos e categorias. Ele
sabia de contribuir com o seu projeto filosófico, e a sua abordagem das fontes, para uma
renovatio cultural e filosófica, não se tratando apenas de reprodução das ideias de
outros. Há, portanto, uma parte de seu engenho na leitura realizada dos antigos textos e
de ideias, não tão distante de seu universo cultural.
O grande projeto de Pico é, em verdade, o da disputa romana, ou seja, o das
Conclusiones nonguentae, embora houvesse permanecido algo não realizado no seu
todo em virtude da não realização da disputa: permanecia ainda a necessidade de
argumentação em relação às Teses. É certo que Pico revelara a sua capacidade dialética
em seu tratado De ente et uno, contudo permaneceram ainda grandes limites, quer na
intenção de “paz” quer de “concórdia” nas Conclusiones e na Oratio. Tal tentativa de
conversão com base em um princípio único exigia ainda um aprimoramento, pois
permaneciam no texto lacunas históricas e filológicas e diferenças eliminadas de forma
131
muito apressada, sem um aprofundamento e abordagem mais demorada dessas
diferenças. A ideia de tolerância era algo que emergia naquela época, em partícula, na
reflexão de Marsilio Ficino e em sua obra De religione christiana, publicada em 1568.
Não obstante esses limites teoréticos, pode-se argumentar que a Oratio não se
reduzia a uma simples apologética, mas apresentava também uma orientação e raflexão
metodológica, já exposta nesta dissertação. Daí a sua formulação sobre a dignitas
hominis seguir certo itinerário que se justifica, na sua abordagem das diversas tradições,
as razões fundamentais de tal formulação. Nesse universo de questão se apresentou não
apenas elementos da pretensão metafísica de Pico della Mirandola, mas também
elementos fundamentais de sua compreensão ética: aquilo que reenvia à questão da
natureza humana e à problemática da liberdade humana. Sem dúvida, a hierarquia dos
graus de conhecimento, apresentada por Pico na Oratio, se revela como um movimento
dinâmico da completude humana, pois o convite para a elevação intelectual se põe
também como finalidade fundamental humana e de sua liberdade. Nesse sentido,
liberdade e finalidade estão essencialmente unidas para constituir uma imagem fiel da
realidade humana.
A liberdade, o dever e o amor constituem assim certo dinamismo integral do
homem que o conduz a seu destino. Isto exprime o nexo inseparável, na teorética de
Pico della Mirandola sobre o homem, entre liberdade, dever e destino. A liberalitas de
Deus-Pai deu ao homem e celebrou a nobreza da sua escolha. É certo que Pico não
rechaça as demais justificações relativas à dignitas hominis, isto é, que faz do homem
um magnum miraculum, mas a prerrogativa que se apresenta como fundamental e que
constitui a dignitas é, em verdade, a liberdade, conforme a narrativa apresentada de
Deus a Adão após ter sido criado. Por conseguinte, todos aqueles termos presentes na
Oratio, e oriundos da prisca theologia, da mitologia, da Qabbalah, da Bíblia, visam a
contribuir para postular aquela indeterminação do homem: camaleão, Proteu,
metamorfose, transformação de Enoch em anjo da divindade, metempsicose pitagórica,
as considerações de Maomé, ominis creatura da Bíblia e outros termos presentes na
Oratio.
A Oratio traduz na Cadeia piquiana do Ser, a distinção no mundo da criação,
quer da natureza do homem quer a dos animais, os quais possuem uma natureza
132
determinada. O homem, diferente dos demais seres, algo que expressa a sua natureza,
poderá vir a ser o que quiser, porém, com a responsabilidade moral e a dialética chegará
ao inteligível, pertencente somente aos anjos, e assim semelhante aos anjos, recomenda
Pico, o homem deverá aspirar graus de elevação mais altos. Ele descreve em forma de
escada, que são os degraus, tal processo e itinerário de elevação do homem de subir ao
mais sublime que é Deus. Para demonstrar isso, pode-se considerar a indicação piquiana
das diferenças, atribuídas a cada criatura desde o momento da criação, a saber, aquelas
criaturas que vegetam, aquelas que não passam de bestas, e aquelas que pertencem,
semelhantes aos inteligíveis, aos graus mais elevados. Daí Pico defender que a liberdade
é um dom e a natureza é dádiva, ambas dadas por Deus. Portanto, aquelas alusões às
forças ideais, acima indicadas, tornam-se possíveis para o autor, quer nas aproximações
retóricas realizadas por Pico quer no domínio metodológico de sua hermenêutica: algo
que se realiza em vista da elaboração de sua concepção de liberdade.
Sabe-se também que Pico considera na Oratio o homem, como estrutura,
medium mundi. Por conseguinte, o homem é um mundo complexo e vinculado. Em tal
complexo a parte principal é certamente a natureza racional como intelectualidade
discursiva, a qual participa da intelectualidade intuitiva do intelectus purus que é o anjo.
Para Pico, o conhecimento da verdade é algo indispensável ao homem, ou seja, o uso
que o homem faz em sua vida. Enquanto as outras naturezas estão determinadas, a
natureza do homem não possui uma determinação, pois escapa ao determinismo das leis
físicas. Por conseguinte, o homem como todo ente possui uma natureza e a sua natureza
é intelectual como natureza racional. Por isso pode-se falar de uma natureza específica,
não obstante a indeterminação no sentido de algo que não limita a ideia de livre arbítrio
e liberdade. Por isso não se pode sustentar que o fato de uma natureza específica, algo
que Pico identifica em Deus, no anjo, não significa, porém, ter uma natureza
determinada como modo determinado de agir, pois o homem é dotado de escolha e
responsável pelo seu destino.
Destaca-se na liberdade a responsabilidade que o homem tem com a sua vida.
Nesse sentido, como existe a liberdade na Oratio, também a responsabilidade faz parte
para assim completar o homem, não obstante a escolha que será tomada por este ser.
Portanto, o bem é sempre o alvo exato, e a Teologia cristã católica é apresentada por
Pico como a mais sublime. Com a ascensão sapiencial e a paz universal, a presença da
133
dialética, da filosofia natural e a teologia, no itinerário do homem quanto à escolha,
participam das ciências que estão na vida humana. A busca realizada por Pico na
filosofia árabe e cristã expõe o sentido mediação também do ecumenismo desse seu
projeto filosófico e de certo ideal ético: o homem é criatura e dele depende fazer bom
uso de sua existência no mundo. Essa temática defendida por Pico é também de
compreensão teológico, quando põe em Deus a grandiosidade de ter criado o homem
com uma natureza na qual a dimensão intelectual permite-lhe ascender e ultrapassar os
limites em que se encontram os outros entes. Ao ser dotado de livre arbítrio e liberdade
caberá ao homem assumir melhores direções e construir o próprio destino.
Em suma, o homem é na sua constituição ontológica e antropológica capaz de
escolha. Não se trata de uma escolha criadora de uma natureza, da sua natureza, mas de
uma natureza dotada de escolha. Portanto, a natureza de que fala Pico della Mirandola
exclui a necessidade das leis físicas ou biológicas: daí não se assemelhar com a natureza
dos outros seres, pois em sua dimensão racional e livre, não submete a sua dignidade e
liberdade a algo cosmológico. Deus, ao criar o homem livre, não pode permitir, sem
constituir uma contradição, que o determinismo cósmico possa afetar a liberdade do
homem. Contudo, a exclusão da necessidade determinista não significa, porém, a
necessidade de certa finalidade, pois é preciso dever e responsabilidade ante a norma, a
qual transcende e orienta a escolha como um ideal.
134
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. OBRAS DE PICO DELLA MIRANDOLA
MIRANDOLA, G. P. D. Discorso sulla Dignità dell`uomo [1487]. Trad. It. de
Francesco Bausi. Parma: Fondazione Pietro Bembo, Ugo Guanda, 2007.
______. Conclusiones Magicas y Cabalisticas. Conclusiones Sive Teces DCCCC. 1486.
_______. Conclusiones nongentae [Le novecento tesi dell‟anno 1486]. Trad. it. Alberto
Biondi, Città di Castello: Leo S. Olschki, 1995.
_______. Dell‟ ente e de uno [1496]. Milano: Bompiani, 2010.
______. Discurso sobre a dignidade do Homem [1487]. Trad. Maria de Lourdes
Sirgado Ganho. Lisboa: Edições 70, 2008.
______. Heptaplus. La Settemplo Interpretazione dei sei giorni della genesi [1489].
Grugliaseo: Arktos, 1996.
2. SOBRE PICO DELLA MIRANDOLA
ALLEN, M. J. B. O Dia do Nascimento de Vênus: Pico como Exegeta Platônico no
Commento e no Heptaplus IN DOUGHERTY, M. V. (Ed.). Pico Della Mirandola.
Novos Ensaios. Trad. Getulio Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2011.
BARBARO, E.; MIRANDOLA, P. D. Filosofia o Eloquenza? Trad. it. Francesco
Bausi, Napoli: Liguori, 1998.
BAUSI, F. Nec rhetor neque philosophus. Fonti, língua e stile nelle prime opere di
Giovanni Pico Della Mirandola (1484-87), Cittá di Castello: Leo S. Olschki, 1996.
BERTOZZI, M. (org.). Nello specchio del cielo. Giovanni Pico della Mirandola e le
Disputationes contro l‟ astrologia divinatória, Atti del Convegno di studi, Mirandola,
Firenze: Leo S. Olschki, 2008.
BIGNOTTO, N. Considerações sobre a antropologia de Pico Della Mirandola.
BLUM, P. R. Pico, a Teologia e a Igreja IN DOUGHERTY, M. V. (Ed.). Pico Della
Mirandola. Novos Ensaios. Trad. Getulio Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2011.
BORGHESI, F. Uma vida de Obras IN DOUGHERTY, M. V. (Ed.). Pico Della
Mirandola. Novos Ensaios. Trad. Getulio Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2011.
135
BORI, P. C. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana di Pico
della Mirandola, Milano: Feltrinelli, 2000.
BROCCHIERI, M. T. F. B. Pico della Mirandola. Asti: Piemm, 1999.
DOUGHERTY, M. V. (Ed.). Pico Della Mirandola. Novos Ensaios. Trad. Getulio
Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2011.
_________. Três Precursores do debate Romano de Pico della Mirandola e a Questão
da Natureza Humana na Oratio IN DOUGHERTY, M. V. (Ed.). Pico Della Mirandola.
Novos Ensaios. Trad. Getulio Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2011.
GUIDO, M.C. El Humanismo Italiano. Um Capítulo de La Cultura Europea entre
Petrarca e Valla. Alianza, Madri, 2007.
KRAYE, J. Pico acerca da Relação da retórica e da Filosofia IN DOUGHERTY, M.
V. (Ed.). Pico Della Mirandola. Novos Ensaios. Trad. Getulio Schanoski Jr. São Paulo:
Madras, 2011.
KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento. Trad. port.
Arthur Morão, Lisboa: Edições 70, 1954.
______. Idade Média e Renascimento. Trad. Isabel Teresa Santos e Hossein
Seddighzadeh Shooja. Lisboa. Editorial Estampa: 1994.
______. Ciência e Vida Civil no Renascimento Italiano. Trad. Cecília Prada. São Paulo:
Unesp, 1994.
LACERDA, B. A. A Dignidade Humana em Giovanni Pico della Mirandola. Revista
Legis Augustus (Revista Jurídica) Vol.3, n.1, p.16-23, setembro 2010.
MICHEL, A. Cultura hominis: Giovanni Pico, Marsilio Ficino and the Idea of Man. IN
MIRANDOLA, P. D. Convegno internazionale di studi nel cinquecentesimo
anniversario della morte (1494-1994). Firenze: Leo S. Olschki, 1997.
PICO, G. Vita, apud VALCKE, L. Giovanni Pico Della Mirandola, IN: GARFAGNINI,
C. G. (org.). Giovanni Pico della Mirandola. Convegno internazionale di studi nel
cinquecentesimo anniversario della morte (1494-1994), Città di Castello: Centro
Internazionale di cultura “Giovanni Pico Della Mirandola, Studi Pichiani, Leo S. Olschi,
1997.
RABIN, S. J. Pico acerca da Magia e da Astrologia IN IN DOUGHERTY, M. V. (Ed.).
Pico Della Mirandola. Novos Ensaios. Trad. Getulio Schanoski Jr. São Paulo: Madras,
2011.
136
STILL, C. N. A Busca de Pico por Todo o Conhecimento IN IN DOUGHERTY, M. V.
(Ed.). Pico Della Mirandola. Novos Ensaios. Trad. Getulio Schanoski Jr. São Paulo:
Madras, 2011.
SUDDUTH, M. A Filosofia da Religião de Pico della Mirandola IN DOUGHERTY,
M. V. (Ed.). Pico Della Mirandola. Novos Ensaios. Trad. Getulio Schanoski Jr. São
Paulo: Madras, 2011.
VELAZQUEZ, D. J. Barjo el Signo de Circe: ensayo sobre el humanismo cívico del
renascimento italiano e imaginário político de Nicolás Maquiavelo. Buenos Aires: Del
Signo, 2006.
3. OUTROS AUTORES
ADRIANA, A. Diversidad y Reconocimiento: Para Una Revisíon del Humanismo.
Cuadernos del Pensamiento Latinoamericano. Historia de las Ideas, Nº 17.
ARISTOTELES. De Anima. Trad. Port. Carlos Humberto Gomes. Lísboa: Edições 70,
2000
AMARO, B. L. A Dignidade Humana em Giovanni Pico Della Mirandola. Legis
Augustus (Revista Juridica) V. 3, n.1, pp.16-23.
BERTI, E; VALDITARA, L. M. Etica, Politica, Retorica: Studi su Aristotele e la sua
Presenza Nell'Eta' Moderna. Roma: L. U. Japadre, 1989.
CÍCERO. Orações. Trad. António Joaquim. V.II. Clássicos Jackson. Rio de Janeiro,
2006.
CICERONE, M. T. Dell‟Oratore. Trad. it. Mario Martina, Marina Ogrin, Ilaria Torzi e
Giovanna Cettuzzi. Testo latino a fronte. Milano: BUR, 2006.
FICINO, M. De Amore. Comentario a [El Banquete] de Platón. Trad. esp. Rocío de La
Villa Ardura. Madrid: Tecnos, 2001.
KAISER, W. Tatti Studies: Essays in the Renaissance. Italy: Villa I Tatti, 1999.
LARA, T. A. A Filosofia Ocidental do Renascimento aos Nossos Dias. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1999.
_________. A Filosofia Ocidental do Renascimento aos nossos dias. 7 ed. Petrópolis:
Vozes, 2001.
MARIA, J. A. O Homem como Microcosmo. Da Concepção Dinâmica do Homem em
Nicolau de Cusa, à Inflexão Espiritualista da Antropologia de Ficino. Lisboa:
Philosophica, 1999.
137
NAPOLI, G. Giovanni Pico della Mirandola e la problemática del suo tempo. Roma:
Pontefici, 1965.
NOGARE, P. D. Humanismos e Anti-Humanismos. Introdução à Antropologia
Filosófica. Vozes: Petrópolis, 1994.
PANIZZA, L. Pico Della Mirandola e Il De Generedi Cendi Philosophorum Del 1485
L'encomio paradossaled ei "barbari" e la loro parodia. Firenze: L.S. Olschki, 1999.
REEGEN, J. G. J. T. A Época Helenística e Patrística. Fortaleza: UECE, 1993.
(Apostila Curso de História da Filosofia Antiga -Época Medieval).
______. O Livro das Causas. Trad. br. Jan Gerard Joseph Ter Reegen. Porto Alegre:
Edipucrs, 2000.
VALVERDE, A. J. R. Ver. Filos, Aurora, Curitiba, V.21, n.29, p.457-480, jul/dez.
2009.
VEDRINE, H. As Filosofias do Renascimento. Europa-América: Lisboa, 1971.
WOLGANG, N.. A Formação e o Conceito de Indivíduo na Renascença. Revista de
Educação, Porto Alegre, V.34, n.1, p. 25-32, jan./abr.201.
4. BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
ALCORÃO. Alcorão Sagrado: Versão Portuguesa. Trad. Samir el Hayek. São Paulo:
Tangará, 1975.
ATTIE, F. M. Falsafa: a filosofia entre os árabes: uma herança esquecida. São Paulo:
Palas Athena, 2002.
BORI, Pier Cesare. Pluralità delle vie. Alle origini del Discorso sulla dignità umana di
Pico della Mirandola, Milano: Feltrinelli, 2000. CARVALHO, T. Fé e Razão na Renascença. Uma Introdução ao Conceito de Deus na
Obra Filosófica de Marsílio Ficino. São Paulo: Atual, 2012.
CASSIRER, E. Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento. São Paulo: Martins
Fontes, 2001. (Coleção tópicos).
FERNANDES, F. A. O Cristianismo e o Mundo 1500-2000, Rio de Janeiro: Record,
1996.
FILHO, M. A. Falsafa: a filosofia entre os árabes: uma herança esquecida. São Paulo:
Palas Athena, 2002.
138
GARIN, E. Ciência e Vida Civil no Renascimento Italiano. (1993) Trad. Cecília Prada.
São Paulo: Unesp, 1996.
HELENA. R. de S. P. Busca do Conhecimento: Ensaios de Filosofia Medieval no Islã.
São Paulo: Paulus, 2007.
IDEL, M. Cabala, Cabalismo e Cabalistas. São Paulo: Pespectiva, 2008.
ISKANDAR, J. I. Compreender al-Farabî e Avicena. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
JUNIOR, O. Teoria do conhecimento e filosofia da Ciência I. Tradições Rivais no
Renascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
LIBERA, A. de. Pensar na Idade Média. Trad. Paulo Neves. São Paulo. Ed. 34, 1999.
NICOLA, U. Antologia ilustrada de Filosofia. Das origens à Idade Moderna. São
Paulo: Globo, 2005.
OLIVIERI, A. (org). Immagini dell‟uomo e Transformazioni della storia del
Rinascimento. Milano: Unicopli, 2000.
REALE, G.. Renascimento do Platonismo e do Pitagorismo. História da Filosofia
Grega e Romana. Trad. Henrique Cláudio Vaz / Marcelo Perine. Ed Loyola, 2008.
REALE, G; ANTISERI, D. História da Filosofia: filosofia pagã antiga. São Paulo:
Paulus, 2003.
REALE. Giovanni. História da Filosofia: Do Humanismo a Kant. São Paulo: Paulus,
1990.
SARANYANA, J. I. A Filosofia Medieval. Trad. Fernando Salles. São Paulo: Instituto
Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúcio” (Ramon Llull), 2006.
__________. A Filosofia Medieval. Das Origens Patrística à Escolástica Barroca,
Trad. br. Fernando Sales, Ramon Llull, São Paulo, 2006.
VISCARDI, A. Storia della letteratura italiana dalle origini al Rinascimento. Milano:
Nuova Accademia, 1960 .
5. SÍTIO
1.http://espacoastrologico.org/2011/09/15/astrologia-e-astronomia-das-origens-ao-
Renascimento.