nas teias da intermialidade

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  • Universidade Federal da Bahia

    Instituto de Letras PPGLL Programa de Ps-Graduao em Lingstica e Literatura

    Rua Baro de Geremoabo, n147 CEP: 40170-290 Campus Universitrio - Ondina, Salvador-Ba Tel.: (071) 3283-6256 E-mail: [email protected]

    (O Menino, Cndido Portinari)

    Tema: MIMESES E A VIOL,CIA SAGRADA: RFOS DE RUA EM LITERATURA COMPARADA

    Colaborao: Dr. Jos Newton de Seixas Pereira Filho

    Professor Adjunto do Departamento de Letras Germnicas, UFBA

    Contato: 071-81026506 cell 071-32836266 UFBA [email protected]

  • SUMRIO

    Introduo

    Apresentao de um Problema

    Arcabouo Histrico

    Arcabouo Terico

    Os Estados de Transcendncia

    A Crise Sacrificial

    O Mecanismo de Vtima Expiatria

    Arcabouo Prtico

    Arcabouo Crtico

    Um Breve Resumo

    Referncia Bibliogrfica

  • Introduo

    Este breve mdulo investiga como romancistas anglo-americanos e luso-brasileiros

    usam fices de no-violncia e violncia para criar mitos de ambio e sucesso e luta

    e fracasso no universo dos rfos de rua em Literatura Comparada.

    Autores anglo-americanos como Charles Dickens, em The Adventures of Oliver Twist

    (1938), Horatio Alger, em Ragged Dick, or, Street Life in ew York with the Bootblacks

    (1868), Theresa Nelson, em The Beggars Ride (1992), e Sherman Alexie, no romance

    Flight (2007), tendem a construir seus personagens rfos de rua como no-violentos.1

    Escritores luso-brasileiros, ao contrrio, como Jorge Amado, em Capites da Areia

    (1937), Soeiro Pereira Gomes, em Esteiros (1941), Jos Louzeiro, em Pixote: infncia

    dos mortos (1977), e Paulo Lins, em Cidade de Deus (1997), tendem a faz-los

    violentos.2 Estas tendncias existem porque os escritores de ambas as regies socio-

    lingstico-culturais usam concepes diferentes de mimese. Especificamente, escritores

    anglo-americanos constroem seus personagens rfos de rua usando mediaes externas,

    ao passo que escritores luso-brasileiros os constroem usando mediaes internas.

    De acordo com a teoria cultural de Ren Girard, em Deceit, Desire, and the ovel:

    Self and Other in Literary Structure (1960), Violence and the Sacred (1972), e Scapegoat

    (1986), mediaes so comportamentos orientados de desejos humanos.3 As mediaes

    so, por exemplo, imitao e emulao, ou distncias do poder em metafsica. A

    mediao externa a distncia ou espao potencial que separa os desejos. Isto evita as

    1 Veja Charles Dickens, The Adventures of Oliver Twist (New York: Heritage Press, 1939 primeira edio, 1838). Horatio Alger, Ragged Dick, or, Street Life in ew York with the Bootblacks (Philadelphia: Polyglot Press, 2005 primeira edio, 1868). Theresa Nelson, The Beggars Ride (New York: Orchard Books, 1992), Sherman Alexie, Flight (New York: Black Cat, 2007).

    2 Veja Jorge Amado, Capites da Areia: romance (So Paulo: Martins, 1970 primeira edio, 1937), Soeiro Pereira Gomes, Esteiros (Lisboa: Avante, 1977 primeira edio, 1941). Jos Louzeiro, Pixote: infncia dos mortos (Rio de Janeiro: Global Editora, 1987 primeira edio, 1977). Paulo Lins, Cidade de Deus: romance (So Paulo: Companhia de Letras, 2002 primeira edio, 1997).

    3 Veja Ren Girard, Deceit, Desire, and the ovel: Self and Other in Literary Structure, trad. Yvonne Freccero (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1965 primeira edio francesa, 1961); Violence and the Sacred, trad. Patrick Gregory (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1972 primeira edio francesa, 1972); and Scapegoat, trad. Yvonne Freccero (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1986 primeira edio francesa, 1982).

  • colises metafsicas, por exemplo, quando os conflitos de interesse pelo mesmo objeto,

    ou contra ele, acontecem por meio do individualismo positivo, e portanto, os personagens

    so representados como no-violentos. A mediao interna, pelo contrrio, aquela

    distncia que une os desejos, criando as colises metafsicas.

    Um exemplo de mediao interna pode ser verificado quando conflitos de interesse

    pelo mesmo objeto, ou contra ele, acontecem por meio do coletivismo negativo, sendo

    considerados violentos, portanto. De maneira que os escritores anglo-americanos e luso-

    brasileiros tendem a construir seus personagens rfos de rua em diferentes planos

    narrativos. Mas quais seriam os problemas por trs desses planos narrativos?

    Apresentao de um dos Problemas sobre a Orfandade de Rua

    Em Literatura Comparada, rfos de rua so personagens abandonados. Abandonados

    significa que se trata aqui de rfos vivendo ao relento, ou crianas vivendo por conta

    prpria em diferentes adversidades. Os rfos de rua so crianas abandonadas, por

    exemplo, nos casos de morte ou desaparecimento, fuga ou desero, separao ou perda

    da famlia, dos amigos e de responsveis. Por esta razo, eles perambulam sozinhos pelas

    ruas em busca de outras oportunidades. Podem, por sua vez, se transformar em

    no-violentos ou violentos na tentativa de sobreviver sua prpria maneira.4

    A UNICEF calcula que aproximadamente 100 milhes de rfos de rua esto

    atualmente vivendo em abandono em todo o mundo, nmero que poder chegar a 800

    milhes por volta de 2020.5 nesta crescente e expressiva parcela da populao mundial

    que os romancistas encontram modelos para diferentes personagens, enredos e

    ambientaes na literatura. Os batedores de carteira, ou trombadinhas, vendem drogas

    nas ruas de So Paulo-Brasil. Os moleques de rua, ou gaiteiros, roubam nos esgotos de

    Lisboa-Portugal. Os jovens viles, ou Los pcaros, mendigam nos becos de Madri-

    Espanha. Os pivetes, ou Los gamines, vendem flores nas periferias de Bogot-

    Colmbia. Os meninos de rua, ou Los nios de calle, cheiram cola nas avenidas da

    4 Veja Catherine Reef, Alone in the World: Orphans and Orphanages in America (New York: Clarion Books, 2005).

    5 Veja UNICEF, Annual Report (New York: Division of Communications, 2008).

  • Cidade do Mxico-Mxico. Os fugitivos de casa, ou The runaways, vendem seus

    corpos nos subrbios de Chicago-EUA, dentre outras situaes.6

    Fome, frio, solido, medo, maus-tratos, doena e perda so alguns dos leitmotivs do

    abandono de rfos de rua, na literatura. Ento, pode-se esperar que os rfos de rua

    sejam seres feridos emocionalmente, enganados financeiramente, abusados fisicamente,

    famintos nutricionalmente, usados sexualmente, vilipendiados ambientalmente, rejeitados

    socialmente ou marcados moralmente, a depender de como ocorreram os seus dramas

    particulares.7

    Escritores constrem seus personagens rfos de rua, seja violentamente ou no-

    violentamente, para falar, geralmente, dos anseios de infratores ou delinqentes juvenis.

    Delinqentes juvenis significa menores, margem da sociedade, que cometeram alguns

    tipos de crime. Crime uma ofensa moral ou tica cometida contra a sociedade. Por isso,

    ao abordar a luta pela sobrevivncia travada pelos rfos de rua, os escritores constroem

    esses personagens conferindo-lhes certas caracterstitas de delinqncia no-violentas,

    como atos de protesto (i.e., greves), formas de represso (i.e., vadiagem) e militncia

    (i.e., passeatas), ou violentas, como agresso (i.e., estupro), terrorismo (i.e., atividade

    gerrilheira) ou homicdio.8

    Os crimes dos rfos de rua so geralmente analisados segundo o grupo ao qual

    pertencem. Por exemplo, os escritores agrupam seus personagens em bandos, mobs9 ou

    gangues. Um bando indica que os rfos de rua se renem sem compartilhar, no entanto,

    uma ideologia. Tal o caso daqueles que foram abandonados recentemente e

    simplesmente vivem juntos nas ruas. Uma mob indica que os rfos de rua compartilham

    uma certa ideologia e que buscam juntos uma vida melhor. o que ocorre com aqueles

    6 Veja Dennis Leoutsakas, The Orphan Tales: Real and Imagined Stories of Parental Loss (Miami: University of South Florida, 2004).

    7 Veja Andy Butcher, Street Children: the Tragedy and Challenge of Worlds Millions of Modern-Day Oliver Twists (Milton Keynes: Authentic Lifestyle, 2003), 14.

    8 Veja Benedito Rodrigues Dos Santos, Ungovernable Children: Runaways, Homeless Youths, and Street Children in New York and So Paulo (Unpublished Dissertation, University of California, Berkeley, 2002).

    9 Tupac Amaru Shakur definia o acrnimo M.O.B. como significando money of bitches, algo como dinheiro de prostitutas. Embora esta definio tivesse um significado prprio, o que Tupac na verdade queria dizer era que ele era agora MOB, isto , Member Of Bloods [membro da Bloods], uma gangue de rua, surgida na dcada de 70 em Los Angeles, e que se espalhou por todos os Estados Unidos. Mob significa tambm uma grande mobilizao de pessoas, ou turba, ou o outro nome pelo qual a Mfia conhecida. (N. do T.)

  • que demarcam um territrio e se tornam cada vez mais adaptados ao seu ambiente. Os

    rfos de rua organizados em gangues geralmente agem em foras organizadas. Por isso,

    a depender do crime, os autores cultivam a iluso de reproduzir suas associaes na

    literatura.10

    Os rfos de rua possuem iluses especficas que dependem de suas aes nas

    histrias, merecendo, portanto, tratamentos especficos. Por exemplo, os rfos de rua

    podem agir individualmente ou coletivamente. O individualismo indica que eles tm um

    inter-relacionamento apenas dbil, ou, em outras palavras, so independentes, isolados e

    autnomos; no se sentem obrigados a agir de acordo com o desejo do grupo. Podem

    fazer parte de um grupo mas ainda assim ter a liberdade de escolha de ir e vir, conforme

    desejarem. J o coletivismo indica que os rfos so dependentes do grupo e nele esto

    confinados; so obrigados a agir de acordo com a vontade do grupo. No tm a liberdade

    de ir e vir, como bem lhes aprouver. Uma coletividade trabalha junto pela sobrevivncia

    porque cada membro tem uma capacidade especfica que atende a desejos comuns.11

    E por serem s vezes livres e outras vezes no, os rfos de rua tendem a agir

    quer individualmente ou coletivamente, quer positivamente ou negativamente.

    O individualismo positivo motivado pelo sucesso; os desejos comuns so alcanados.

    O individualismo positivo geralmente cultiva a auto-confiana, a auto-satisfao e a auto-

    superao dentro de um grupo, ou a no-violncia. O individualismo negativo, ao

    contrrio, motivado pelo fracasso; os objetivos no so alcanados. Por exemplo, o

    individualismo negativo leva ao egosmo, ao dio e derrota daquelas auto-identidades,

    ou violncia. O coletivismo positivo leva cooperao coletiva, obedincia coletiva e

    ajuda coletiva, ao passo que o coletivismo negativo suscita o surgimento de rivalidade,

    vingana e destruio daquelas identidades coletivas.12

    Finalmente, o individualismo e o coletivismo (seja positivo, seja negativo) so alguns

    momentos de mimeses literrias que dependem de comportamentos, agindo como

    personagens primrios ou secundrios, ou auto-identidades e identidades coletivas,

    reforando e cultivando mediaes no-violentas e violentas. Assim, este trabalho

    10 Veja Roslyn Mickelson, Children on the Streets of the Americas (New York: Routledge, 2000). 11 Veja Harris Triandis, Individualism and Collectivism: Theory, Methods, and Applications (Boulder: Westview Press, 1995).

    12 Veja Kim Uichol, Harris Triandis et al., Individualism and Collectivism: Theory, Method, and Applications (Thousand Oaks: Sage Publications, 1994).

  • investiga alguns rfos de rua no-violentos na literatura anglo-americana que geralmente

    cometem pequenos crimes por meio do individualismo positivo dentro de bandos ou

    mobs, bem como, diversamente, os rfos de rua violentos na literatura luso-brasileira

    que cometem crimes srios atravs do coletivismo negativo presente em mobs e gangues.

    O Arcabouo Histrico

    H vrias teorias literrias sobre rfos de rua agindo no violentamente, ilustrando

    individualismo positivo, ou violentamente, geralmente numa forma de coletivismo

    negativo. Uma teoria sobre as origens dos indivduos positivos cria uma relao entre

    estes rfos e os exilados, quanto eles aportaram na Amrica durante o perodo colonial.

    Em Cultural Orphans in America (1998), Diana Loerche Pazicky explica como a elite do

    Velho Mundo enviou rfos para o Novo Mundo, junto com pecadores, pagos e

    prostitutas, aproveitando-se dos desprivilegiados, como ocorreu durante as guerras de

    conquista. Os rfos atuavam, ento, como vtimas expiatrias. Pazicky afirma: Deste

    modo, os puritanos tentavam preservar sua identidade espiritual como filhos de Deus.

    Atravs de estratgias como usar vtimas expiatrias, transferiam o nus da orfandade

    para os ndios e outros dissidentes religiosos.13

    Pazicky mostra como nos Estados Unidos colonial os governos do Estado teocrtico

    seduziram os rfos do Velho Mundo com promessas de propriedade do Novo Mundo,

    usando-os para o bem do expansionismo. Neste momento de expanso, os rfos de rua

    experimentaram uma liberdade de escolha com a promessa de se tornarem Filhos de

    Deus.14 Esta liberdade de escolha, com uma forte influncia do puritanismo, concordava

    com as leis, normas e regras impostas pelos colonizadores aos colonizados. rfos de

    rua, como uma extenso particular do estado de orfandade em geral, assumiram, assim, o

    papel de ocupantes, missionrios e cruzados em nome da Igreja, ou melhor, da ptria-me

    Inglaterra.

    Por outro lado, em Convicts and Orphans, Forced and State-Sponsored: Colonizers

    in the Portuguese Empire (2002), Timothy M. Coates relata que rfos portugueses eram

    13 Veja Loerche Pazicky, Cultural Orphans in America (Jackson: University Press of Mississippi, 1998), xiv.

    14 Veja tambm Pazicky, 24.

  • tambm submetidos ao degredo para o Novo Mundo, mas quando aqui chegavam

    experimentavam um processo diferente, em comparao com seus compatriotas anglo-

    americanos. De acordo com Coates, a maioria dos rfos luso-brasileiros era vinculada ao

    catolicismo e ao capitalismo. Produtos de seu tempo e do ambiente, os rfos luso-

    brasileiros no experimentaram nenhum tipo de liberdade de escolha. Ao invs disso,

    estavam merc do sistema de dote penal. Nas palavras de Coates: Os dotes imperiais

    eram uma soluo para vrias situaes, recompensado servios prestados Coroa,

    atendendo s necessidades domsticas e estabilizando a presena colonial de uma elite

    portuguesa.15

    Coates explica que quando muitos rfos portugueses eram enviados para o Brasil,

    vinham junto com pagos, pecadores e prostitutas. No Brasil, eram vendidos como

    escravos, sendo moeda de troca os ttulos, dotes e outros favores estipulados pela Igreja e

    o Estado. Na seguinte passagem, Coates apresenta uma interessante perspectiva desta

    situao: Ningum menos do que o prprio Padre Manuel da Nbrega escreveu ao rei D.

    Joo III, nos anos 1500, para sugerir o envio de rfs para o Brasil, porque todas elas se

    casariam e (em conseqncia) seriam afastadas do pecado.16 Por isso, continua Coates,

    as rfs anglo-americanas desfrutavam de uma liberdade de escolha relativamente ampla

    em relao s rfs luso-brasileiras. Estes caminhos separados levaram a uma tendncia

    de individualismo positivo na literatura anglo-americana e, inversamente, a uma

    tendncia de coletivismo negativo na literatura luso-brasileira.

    Portanto, os interesses da Igreja e do Estado em Portugal, durante o perodo

    colonial, combinaram-se para impor aos rfos luso-brasileiros uma existncia

    inspirada nas lutas e sofrimentos do coletivismo negativo em oposio s esperanas,

    sonhos e individualismo positivo de suas contrapartes, os anglo-americanos. A reao

    dos rfos luso-brasileiros Coroa, ou melhor, ao rei portugus, foi muito diferente,

    sugerindo seu coletivismo negativo. Coates explica que muitos rfos luso-brasileiros

    finalmente se revoltaram e fugiram, o que ficou evidenciado pela sua adeso s

    fileiras quilombolas, ou escravos fugidos. Entretanto, nesta poca de migrao, de

    15 Veja Timothy J. Coates, Convicts and Orphans, Forced and State-Sponsored: Colonizers in the Portuguese Empire, 1550-1755 (Stanford: Stanford University Press, 2002), 130.

    16 Veja tambm Coates, 142.

  • revolues e de independncias, os rfos anglo-americanos e luso-brasileiros

    experimentaram influncias muito alm da esfera da religio.

    No livro Outline of American Literature (2007), Kathryn VanSpanckeren descreve

    como, na transio do colonialismo ao republicanismo, rfos dos Estados Unidos, e

    conseqentemente os rfos de rua deles derivados, existiram dentro da realidade

    singular da democracia um sinnimo de capitalismo nos Estados Unidos17. Seus

    descendentes eram definidos pelo esprito de igualdade e total liberdade de escolha,

    seguindo principalmente as novas crenas da poca. Acrescentando agora novos termos

    econmicos, VanSpanckeren declara:

    Embora os puritanos no pudessem saber, em termos

    estritamente teolgicos, se estavam salvos e constavam entre

    os eleitos ao Reino dos Cus, tendiam a achar que o sucesso

    terreno era um sinal do favor divino, de que seriam os

    escolhidos. A almejada riqueza e o status eram bem-vindos como

    garantia e reafirmao da promessa espiritual de vida eterna. (15)

    Em Bandeirantes and Pioneers (1964), Vianna Moog afirma que, naquele mesmo

    perodo, os descendentes de rfos luso-brasileiros encaravam tambm o capitalismo

    democrtico. Moog afirma que o caso luso-brasileiro era um sinnimo para o socialismo

    democrtico no Brasil, em oposio ao liberalismo democrtico nos Estados Unidos.18

    Por esta razo, os rfos (ou entre eles os mozambos, ou os descendentes como

    geralmente eram chamados) eram definidos pelo esprito da lamentao, da culpa e do

    desajustamento, herdado principalmente do Barroco. Moog faz referncia a Aleijadinho,

    o famoso artista rfo brasileiro do perodo colonial, que tipifica a poca. Era filho de pai

    portugus e de uma escrava africana. Para muitos, ele representa a dor dos filhos

    desgarrados e ilegtimos da elite portuguesa com seus escravos. Dado que muitos eram

    perseguidos, marginalizados e sofriam discriminao, os rfos de rua reuniam-se com

    freqncia em rebelies internas, incluindo Balaiada (Provncia do Maranho, 1838-

    17 Kathryn VanSpanckeren, Outline of American Literature (Washington D.C.: US Information Agency, 1994).

    18 Veja Clodomir Vianna Moog, Bandeirantes and Pioneers (New York: G. Braziller, 1964).

  • 1841), Cabanagem (ento Provncia do Gro-Par, 1835-1840) e Farroupilhas (Provncia

    de So Pedro do Rio Grande do Sul, 1835-1845).19

    Em As caractersticas do povo brasileiro (1960), Jos Honrio sugere que os

    personagens de rfos brasileiros so os herdeiros da indisciplina, da ociosidade e da

    preguia do povo portugus, o qual nunca deu crdito ou importncia aos brasileiros.20

    Para Honrio, Portugal no acreditava que houvesse algo de valioso no Brasil que

    pudesse garantir o desenvolvimento do pas (isto , ouro, minerais ou matrias-primas

    para o aumento da riqueza de Portugal). Mesmo aps a famlia real portuguesa ter fugido

    para o Novo Mundo, depois da invaso de Portugal pelas foras francesas e espanholas,

    em 1807, os portugueses nunca tentaram desenvolver o Brasil em temos de progresso

    para o povo, mas apenas para tomar e usar os recursos para a sua prpria satisfao e

    lucro. Por esta razo, Honrio diz que o Brasil desenvolveu subgrupos, filhos e filhas

    eternamente abandonados, crescendo desajustados ao meio ambiente o qual ainda hoje

    permanece inspito, sem leis pblicas ou privadas eficazes, fato que ocorre tanto em

    zonas rurais quanto em reas urbanas, com a conseqncia de que essas regies garantem

    a continuidade das mesmas circunstncias nas quais as caractersticas negativas desses

    personagens brasileiros so recriadas. No entanto, Honrio afirma que, no que diz

    respeito herana do personagem brasileiro como um todo, h muito que refletir nas

    qualidades boas ou ms , a depender de como o povo brasileiro e o povo portugus

    so tratados na literatura.

    Em contrapartida, em Orphan Trains: Placing Out in Amrica (1992), Marilyn Irvin

    Holt diz que os rfos anglo-americanos eram enviados do Leste dos Estados Unidos

    para o Oeste por vrias organizaes e instituies, incluindo o governo. Holt assevera

    que essas organizaes anglo-americanas seguiam programas polticos e tentavam salvar

    crianas por meio da Childrens Aid Societies, colocando-as em localidades rurais e

    urbanas onde elas aprendiam a arar, a semear e a limpar os campos para a plantao.

    Aprendiam tambm os meandros das fbricas, da carpintaria e os ofcios de ferreiro e de

    19 Em 1808: como uma rainha louca, um prncipe medroso, e uma corte corrupta enganaram apoleo e mudaram a histria de Portugal e do Brasil 2007 (So Paulo: Editora Planeta, 2007), Laurentino Gomes capta algo do esprito dos mozambos ou creoles, descendentes de brancos portugueses, especialmente aps a chegada de D. Joo e a famlia real ao Brasil.

    20 Veja Jos Honrio, As caractersticas do povo brasileiro, Journal of Inter-American Studies 2.4 (1960): 355-76.

  • sapateiro. Assim, Holt sugere que, em termos de disponibilidade de oportunidades na

    evoluo do tratamento de rfos, os rfos anglo-americanos tinham, em termos

    geopolticos, uma vantagem sobre muitos outros rfos no mundo (isto , os luso-

    brasileiros).

    Seguindo a pista desta anlise literria de rfos de rua, este trabalho investiga dois

    caminhos especficos que permeam essas imitaes de individualismo e coletivismo, de

    modo a averiguar as diferenas entre os rfos de rua no-violentos e rfos de rua

    violentos nas literaturas anglo-americana e luso-brasileira. Os personagens no-violentos,

    ou aqueles tpicos da literatura anglo-americana, tendem a ser motivados pela liberdade

    de escolha, programas de reabilitao e incluso social. Os personagens violentos, ou

    aqueles tpicos da literatura luso-brasileira, tendem falta de liberdade, demonstram

    indiferena autoridade e so afetados pelo estresse resultante das convulses sociais.

    Deste modo, tanto os autores anglo-americanos como os autores luso-brasileiros

    inclinam-se para a parcialidade; tentando chamar a ateno para as injustias,

    freqentemente acrescentam uma boa dose de fico a fatos histricos.

    O Arcabouo Terico

    Com o propsito de criar um contexto literrio para tal fundamentao terica, este

    mdulo utiliza alguns dos conceitos de Ren Girard de forma a analisar uma seleo de

    textos literrios anglo-americanos e luso-brasileiros. A obra de Girard sobre violncia

    fornece um arcabouo terico que permite uma comparao de violncia e no-violncia

    em diferentes perodos literrios.

    Os principais conceitos, teis para a compreenso dos personagens rfos de rua nas

    literaturas anglo-americana e luso-brasileira, podem estar relacionados s idias de Girard

    sobre mediaes internas e mediaes externas. A seo seguinte explica a importncia

    da obra de Girard sobre a mimese, que podemos nos remeter aos casos de individualismo

    positivo e coletivismo negativo.21

    Em Deceit, Desire and the ovel: Self and Other in Literary Structure (1961), Ren

    Girard declara que a mimese indica a mediao do desejo humano de acordo com o que 21 Veja Marilyn Irvin Holt, Orphan Trains: Placing Out in America (Lincoln: University of Nebraska Press, 1992).

  • considerado sagrado por uma determinada cultura. A mimese significa o desejo que

    Girard aplica a partir da perspectiva do eu, ou do coletivo, em relao ao(s) outro(s), ou

    protagonistas versus antagonistas, atravs dos seus modelos. Entretanto, Girard explica

    que essas variveis criam iluses simples e complexas que simbolizam alguns dos

    comportamentos humanos que ele chama de desejos triangulares, atuando na fico

    como se fosse na realidade. Assim, Girard diz que qualquer um pode estudar as inter-

    relaes humanas na literatura como exemplos de mimese, mediaes ou iluses.

    De acordo com Girard, as mediaes geralmente se revelam como padres de

    comportamento individuais ou coletivos atribudos queles que, conforme a perspectiva

    de uma pessoa ou de um grupo e de acordo com leis, crenas e costumes da poca e do

    lugar em que se espelha, sejam considerados heris ou, inversamente, rivais. No entanto,

    o ditado popular cada qual no seu cada qual se aplica a este contexto; o que bom para

    um no necessarialmente bom para o outro.

    Mediaes, portanto, so desejos competindo entre si. Ou seja, em um mundo de

    igualdades e diferenas, de comparaes e de contrastes, de possibilidades e

    impossibilidades, as mediaes individuais e coletivas tendem a ser ou no-violentas ou

    violentas, a depender de certas situaes abstratas ou conflitos de interesse a favor ou

    contra um objeto, que ocorre na metafsica ou estados de transcendncia.

    As Mediaes ou os Estados de Transcendncia

    Girard descreve trs situaes diferentes nos estados de transcendncia: na primeira

    situao, um objeto nico relacionado a um outro objeto que funciona como modelo, e

    que , por isso, considerado mais importante, ideal ou vivel; a segunda situao ocorre

    quando dois sujeitos relacionam-se a um nico objeto, que funciona como um outro

    modelo nico; e uma terceira situao surge quando dois sujeitos relacionam-se a um

    nico objeto mas com dois ou mais outros modelos. Portanto, os personagens se

    descobrem em situaes implcitas como aquelas, por exemplo, de no-violncia ou

    violncia.

    Para Girard, as diferentes situaes contendo no-violncia ou violncia so

    compostas de um agente, ou desejo ativo pelo sujeito, um desejo passivo pelo objeto e

  • um desejo mediador pelo modelo. As estruturas internas so intersubjetivas. Elas podem

    se revelar misteriosas, transparentes ou opacas. Estes mecanismos ou desejos permitem

    estrutura do pensamento assumir uma realidade lcida.

    Girard diz que no logos que as lgicas dos desejos so lcidas, bem como os

    desejos que se desenvolvem sistematicamente at o ponto de fazer sentido. Deste modo,

    Girard sugere que a combinao de sujeito, objeto e modelo constri o desejo final, ou o

    desejo mimtico em metafsica, ou estados de transcendncia que podem ser imitativos

    ou emulativos.22

    Desejos imitativos ou emulativos podem ser construdos com mediaes no-

    violentas ou violentas ocorrendo simultaneamente alm dos limites da arte na experincia

    concreta. Girard afirma que o valor das experincias mimticas intuitivas, por exemplo,

    dependem de serem feitas pela heurstica, como regra de ouro, ou pela hermenutica,

    que a interpretao de qualquer texto literrio.23

    Girard tambm diz que aqueles textos podem ser interpretados com a ajuda de

    narradores, personagens e autores que geralmente revelam como situaes ou a

    linguagem de desejos desempenham momentos importantes de mediao, como no caso

    de desejos transfigurados, ou a metamorfose de desejos. Os desejos transfigurados

    indicam que, no momento de uma mediao especfica, o rumo da realidade do desejo

    perdido, suspenso e paralisado na histria. Isto ocorre quando a realidade e a fico se

    encontram por verossimilhana em perodos diferentes na literatura.

    Girard usa o desejo transfigurado para descrever os momentos de verossimilhana

    como aqueles interpretados com a ajuda do narrador de Don Quixote (o personagem) e

    por Miguel de Cervantes (o autor). O narrador fala sobre o cavaleiro criado pelo autor e a

    mediao do forte desejo, ainda que imaginrio, do personagem, que neste caso

    projetado em Amadis de Gaulle, seu modelo sagrado, que vem a ser uma lenda, ou no

    necessariamente real.

    Girard continua, dizendo que aqueles desejos mimticos so sempre transfigurados

    conforme as figuras de linguagem e/ou pensamentos que o autor crie em seus romances.

    22 Veja Paisley Livingston, Models of Desire and the Psychology of Mimesis (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1992).

    23 Veja Ren Girard, Deceit, Desire, and the ovel: Self and Other in Literary Structure (Baltimore: Johns Hopkins Press, 1961).

  • Por exemplo, os desejos mimticos so projees, lembranas, dissimulaes,

    identificaes, fantasias e algumas outras combinaes de um sujeito em relao ao

    outro. Por isso, os desejos so reflexos de uma aparncia do modelo, gestos ou

    vestimentas, que podem vir de eventos acreditados ou imaginados em romances como

    metforas, metonmia, sindoque, ironia e assim por diante.

    Girard tambm explica que eventos aceitos como verdadeiros ou imaginados so

    como memrias. Eles so experenciados por meio de um desejo mediado dentro de uma

    hierarquia de desejos. Girard usa o termo Romanesco de modo a tratar os personagens

    de uma perspectiva do mundo circundante. Aqueles personagens que controlam outros

    tm desejos superiores. Eles so heris ou rivais, definidos por suas aes e relaes com

    outros, no pelo seu individualismo, que era caracterstica do Romantismo.

    Os desejos romanescos (individualistas ou coletivistas) dependem ento da inter-

    relao entre o sujeito e o objeto, por meio do modelo. Estes desejos mimticos tambm

    produzem imitaes e emulaes, ou simples impulsos, dependendo de um personagem

    desejar ser igual ou superior ao outro. A imitao acontece quando um sujeito imita um

    modelo sem no entanto se esforar para lhe ser superior. A emulao ocorre quando o

    sujeito deseja a superioridade, abrindo, ento, a possibilidade de coliso, na forma de

    conflitos de interesse em funo do mesmo objeto. Portanto, Girard diz que os desejos

    romanescos seguem uma hierarquia baseada em tipos, nveis e graus de conflitos de

    interesse entre indivduos.

    Girard explica, assim, que os conflitos de interesse so as distncias de desejos que

    entram em contato, como aqueles apresentados por El ingenioso hidalgo don Quixote de

    la Mancha (1605)24, de Miguel de Cervantes Saavedra. Don Quixote o sujeito na

    relao com o nobre e corajoso cavaleiro, ou o objeto de seu desejo, mediado pelo

    modelo Amadis. Os trs combinam criar o ltimo desejo, ou o desejo mimtico de Don

    Quixote pelas qualidades do seu modelo, como um desejo pela virtude da nobreza. Em

    imitao a Amadis, Don Quixote deseja ser um nobre, por isso busca possuir as mesmas

    qualidades de um cavaleiro. Girard chama a ateno para o fato de que Don Quixote no

    compete pelo mesmo objeto do seu modelo. Ele imita-o ao invs de emul-lo. A imitao

    indica, ento, um desejo de ser igual, ao passo que a emulao indica um desejo de ser 24 Veja Miguel de Cervantes Saavedra, El ingenioso hidalgo don Quixote de la Mancha (Madrid: Juan de La Cuesta, 1605).

  • superior ou de suplantar um modelo, conforme algumas hierarquias ou variveis em

    literatura.

    Relacionando desejo a mimese, Girard lembra que a imitao gera impulsos em favor

    de certas qualidades (i.e, ou virtudes ou vcios, por oposio), como no caso da nobreza

    de Don Quixote. O tempo, o espao e o prestgio do sujeito em relao quele do heri

    no requer competio entre os dois. Don Quixote e Amadis pertencem a tempos

    diferentes. Amadis uma lenda criada em um reino abstrato, o que evita que ele venha a

    colidir com Don Quixote no sentido de desejar um mesmo objeto.

    Girard explica que aqueles desejos mimticos podem ser comparados em um s

    romance ou em romances distintos, de modo que um desejo serve a tcnicas literrias de

    um outro, congelado no tempo e no espao. Isto se d porque os desejos mimticos so

    complicados pela suas interpretaes. Girard explica que os desejos inter-relacionados

    so compartilhados por protagonistas e antagonistas. Assim, os desejos mimticos

    subtraem e/ou so multiplicados para criar subdesejos, como no caso de desejos inter-

    relacionados em uma coleo de obras.

    Por exemplo, Girard afirma que o desejo de Don Quixote pode ser comparado ao

    desejo de Madame Bovary: mouers de province (1857),25 de Gustave Flaubert. Don

    Quixote apaixonado pela nobreza e Madame Bovary, ou Emma, apaixonada pelos

    heris e heronas literrios de seu tempo. Ento, no sentido de Girard, os desejos de Don

    Quixote e de Emma aparentemente so iguais. No entanto, h outras consideraes com

    respeito distncia que os separa. Por isso, Girard afirma que os desejos de Don Quixote

    so mais ilusrios do que os desejos de Emma e, portanto, esto mais distantes na

    metafsica, de acordo com o eu respectivo em relao ao outro.

    Girard explica que o eu a perspectiva de um desejo individualista do sujeito. Um

    sujeito age em funo das distncias dos conflitos de interesse mediados. De maneira

    semelhante, um desejo coletivista depende tambm das distncias dos conflitos de

    interesse mediados. Girard postula que embora o eu e o coletivo possam agir

    permutavelmente, existe uma forte tendncia dominante.

    A mediao, ento, uma posio (de desejos) superior individualista ou coletivista.

    Entretanto, isto significa que um eu e/ou um coletivo assumem, em algum ponto, duas

    25 Veja Gustave Flaubert, Madame Bovary: mouers de province (Paris: Charpentier, 1857).

  • dimenses aparentemente iguais. Portanto, o eu aquele do individualismo positivo, por

    exemplo, via mediao externa, onde choques de conflitos de interesse ocorrem em

    direo ao mesmo objeto, o que Girard sugere como sendo um exemplo de projeo.

    Ento, a teoria de Girard fornece um arcabouo terico para as diferenas entre

    representaes individuais e coletivas, como aquelas encontradas em fices sobre rfos

    de rua. No caso de um duplo vnculo, diz Girard, os conflitos de interesse acontecem em

    direo ao mesmo objeto, via mediao interna, produzindo coletivismo negativo. Isto

    no quer dizer que nem os desejos individualistas nem os desejos coletivistas sejam

    mutualmente externos ou internos, exclusivos, ou que qualquer um dos dois seja

    permanentemente positivo ou negativo naquelas ordens respectivas. Porm, os desejos

    podem ser dispostos aqui como individualismo positivo e coletivismo negativo em um

    determinado ponto apenas para efeito de comparao literria.

    Um exemplo de semelhante desejo positivo e individualista pode ser observado em

    Don Quixote e Sancho Pana, ambos pertencendo a um grupo de cavaleiros. Don Quixote

    age segundo a perspectiva do eu porque ele v o mundo a partir do seu prprio ser. Ele

    quer conquistar o amor de Dulcinia em nome da honra da nobreza. Por outro lado,

    Sancho Pana pretende conquistar o seu amor com uma ilha bem estocada de alimentos.

    Como Don Quixote, Sancho age a partir de uma perspectiva do eu porque ele tambm v

    o mundo a partir do seu prprio ser, embora os dois eus pertenam ao mesmo grupo.

    Ora, se Don Quixote e Sancho Pana agem em conjunto em busca do mesmo

    objetivo, ou seus amantes fazem o mesmo (portanto com os mesmos ideais dentro de um

    grupo), ou lutam pelo mesmo objetivo, ento, ao invs de um desejo vindo de um eu

    somente, h uma coletividade que depende de outros princpios.

    Girard salienta ainda que, dentro deste coletivo especfico, um sujeito entra em

    conflito com o outro sujeito, ocupando um nico lugar (pois o objeto nico),

    permitindo, assim, um vencedor e um perdedor Os Homens se Transformam em

    Deuses aos olhos uns dos outros (Deceit, Desire and the ovel 53). Por isso, afirma

    Girard, a histria sobre se terminam ou no como amigos ou inimigos por conta da

    competio pelo amor (ou o nobre cavaleiro andante) no foi revelada por Cervantes.

    Em termos de intelecto e de posio social, Girard sugere que Don Quixote e Sancho

    Pana esto em nveis diferentes. Don Quixote detm uma vantagem sobre Sancho Pana

  • porque ele o mestre e, portanto, tem mais atributos. Don Quixote o lder e mais

    nobre do que Sancho Pana. Isto no quer dizer, porm, que seus conflitos de interesse

    existam somente em uma dimenso individual ou coletiva. Novos desejos esto sempre

    emergindo.

    A perspectiva de mltiplos desejos de Girard (ou o que ele chama de uma cadeia de

    desejos) trata, basicamente, de como autores de romances modernos determinam o

    individualismo e o coletivismo de desejos humanos. Historicamente, Girard usa Stendhal

    e Dostoivski como exemplos do mesmo processo. Para Girard, o grupo de romances de

    Stendhal segue geralmente uma trilha individualista, como em Cervantes, ao passo que o

    grupo de romances de Dostoivski tende a contribuir para um caminho coletivista, caso

    se faa um estudo sincrnico sobre eles.

    Assim, de acordo com Girard, os romancistas constroem uma arte que combina

    desejos em torno de sujeitos em relao aos seus outros (Deiceit, Desire and the ovel

    94). Conseqentemente, este mdulo usa os mesmos conceitos de Girard, aplicando-os

    nas literaturas anglo-americana e luso-brasileira.

    Finalmente, um eu e um coletivo podem tambm agir no-violentamente e

    violentamente dentro dessas dimenses individualistas e coletivistas, dependendo dos

    desejos dos personagens, narradores e autores. Portanto, Girard sustenta que a ateno do

    leitor necessria, de modo a captar as sutilezas do eu e os desejos coletivos. Isto porque

    tudo depende da perspectiva do mestre-modelo e do escravo-modelo (Deceit, Desire

    and the ovel 99).

    A Crise Sacrificial

    Estes padres romanescos, por sua vez, so a forma de expresso do mito do

    sacrifcio, central no pensamento de Girard. Em Violence and the Sacred (1972), Girard

    diz que desejos mimticos no-violentos e violentos so baseados em uma determinada

    cultura, que pode ser verificados em rituais, por meio da crise sacrificial dentro de

    qualquer grupo, considerando a perspectiva de um eu em relao ao outro (ou um

    Voc, no individualismo) ou um coletivo em relao ao outro (ou Voc ou eles,

    no coletivismo), tendo em mente que certas caractersticas idiossincrticas podem ser

  • usadas tambm para analisar o grupo. Estas crises sacrificiais incluem caractersticas

    normativas e relacionais.

    Quanto s caractersticas normativas, Girard explica que os desejos mimticos de um

    grupo enfatiza os valores pessoais ou individualistas, ao passo que as caractersticas

    relacionais dentro de um grupo enfatizam os desejos mimticos que correspondem aos

    valores interpessoais ou coletivistas. A crise sacrificial espontnea quando no est

    vinculada, necessariamente, a uma cultura e imposta quando toma a forma de

    interferncia, seja cultural ou de outra natureza. A crise sacrificial consciente quando os

    desejos so percebidos, preocupados ou interessados, e inconsciente quando os desejos

    no so percebidos, preocupados ou interessados. Finalmente, a crise sacrificial

    independente quando o desejo tem liberdade de expresso e dependente quando o

    desejo exerce controle sobre a liberdade.

    Girard tambm diz que todas as crises sacrificiais podem acontecer, seja em culturas

    predominantemente individualistas (como descreveremos em cultura anglo-americana),

    ou em culturas predominantemente coletivistas (como descreveremos em cultura luso-

    brasileira). Ele revela ainda que os desejos individualistas expressam uma tendncia ao

    sucesso, ou melhor, a uma valorizao da auto-realizao na formao de auto-

    identidades. Portanto, o sucesso realizado pelos indivduos bem como pelos grupos,

    desde que as relaes pessoais e interpessoais tenham o mesmo valor.

    No entanto, Girard afirma que mesmo quando uma pessoa conduzida pelo desejo

    individualista, ele ou ela podem se identificar como membro de mltiplos grupos; estes

    grupos no significam filiao incondicional. Os grupos so organizaes impositivas e

    restritivas, e quem pensa de modo independente sentendetmenteo eu arualculguraou

    meso. penas os aspectos sociais bsicos.

    Em termos de desejo coletivista, Girard aponta para a crise sacrificial diante da

    cooperao e obedincia. Ele explica que um grupo mais que uma coleo de

    indivduos. Os membros devem manter fortes laos entre si, compartilhando interesses

    semelhantes. No desejvel que haja conflito dentro de um grupo. Conseqentemente,

    cada pessoa avaliada como um fim em si mesma. Os sujeitos agem dentro do contexto e

    em relao ao(s) outro(s), compartilhando um sentimento de presena coletivo.

  • Assim, Girard afirma que o xito ou o fracasso na crise sacrificial podem ser

    atribudos seja ao individualismo, baseado em modos culturais como segurana, por

    exemplo (isto , busca por famlia, trabalho e amigos, assunto que veremos adiante), seja

    a subdesejos como prazer, realizao e competio (ou aqueles com conotaes

    negativas, a depender do contexto). Mas o xito ou o fracasso podem ser atribudos

    tambm ao coletivismo, do mesmo modo que este se baseia em segurana e outros

    subdesejos, mas cedendo em termos de obedincia, dever e harmonia em nome do grupo

    (ou de novo, em direes opostas, se for o caso). Este trabalho opta por investigar,

    especificamente, um modo individualista baseado no xito e um modo coletivista baseado

    no fracasso, para entender, por oposio, a dinmica dessas culturas.

    O Mecanismo da Vtima Expiatria

    Com base no pensamento ocidental, Girard argumenta, em The Scapegoat (1986), que

    sempre existiro outros desejos indo e vindo alm do domnio das auto-identidades e

    identidades coletivas. Ele usa o mecanismo do bode expiatrio como uma metfora que

    busca atribuir a algum a culpa por todos os infortnios, geralmente como um meio de

    distrair a ateno de causas reais. O bode expiatrio pode ento ser vinculado aos desejos

    mimticos e crises sacrificiais, devido s condies sob as quais os desejos se valem das

    lacunas (espirituais ou materiais) das leis da sociedade, por exemplo as leis de

    interditos26. Girard afirma que o bode expiatrio algum ou algo sutil, distrado e

    julgado de maneira injusta e incorreta. Exemplos so os negros, judeus, imigrantes,

    bruxas e lderes que obtiveram, de um modo ou de outro, certo prestgio ou reputao e

    contra os quais as leis de proibio ou excluso so aplicadas e justificadas por meio da

    elevao dos seus pecados e erros.

    Para Girard, os rfos so um tipo especial de bode expiatrio, pois se originam,

    historicamente, do homo sacer, ou homem sagrado ou amaldioado.27 O dipo Rei, de

    26 Veja Ren Girard, Things Hidden Since the Foundation of the World, trad. Stephen Baan e Michael Metteer (Stanford: Stanford University Press, 1987 primeira edio 1985).

    27 Veja Ren Girard, Oedipus Unbound: Selected Writings on Rivalry and Desire. Ed. Mark R. Anspach (Stanford: Stanford University Press, 2004 primeira edio 1985).

  • Sfocles, mostra como os desejos mimticos resultam em uma crise sacrificial,

    apaziguada, apenas, pela construo do mecanismo do bode expiatrio, que traz de volta

    os desejos individualistas e coletivistas mimese como mediaes e iluses. Como

    exemplo disto, Girard menciona o pharmakus, ou o ritual cultural atravs do qual os

    rfos eram expulsos da sociedade na Grcia antiga. A injustia foi (e ainda ) ento

    cometida baseada em ideais falsos. dipo cometeu os crimes de incesto e de homicdio

    porque no sabia que seu pai era o rei. Conseqentemente, dipo caracterizou a noo

    desencaminhada de desejos ocultos da sociedade, construda pelas antigas geraes e

    passadas adiante como preceitos e leis forjados para as futuras geraes.

    Girard tambm nos lembra que em um universo sempre-varivel de bodes

    expiatrios, como os rfos ao redor do mundo, h momentos especficos aliados a mitos

    culturais. Estes momentos incluem a mimese de apropriao, aquisio, prtica e

    renncia. A mimese de apropriao o momento de transcendncia, quando um

    personagem se espelha no seu modelo, heri ou rival, necessitando do desejo sem saber

    se o que disto se origina verdade ou falsidade, se pureza ou erro. Os mais simples

    desejos tornam-se aspiraes, embora a felicidade no esteja necessariamente includa na

    equao.

    A mimese de aquisio, por sua vez, acontece quando o desejo mimtico se

    transforma em um desejo do prprio personagem. As mimeses de prtica ou de renncia

    so os desejos mimticos caracterizados por uma diminuio do desejo do personagem e

    a transferncia ou passagem para outro desejo a ser imitado. A prtica significa aes, ao

    passo que a renncia indica uma mudana de composio, de atividade e de funo da

    prtica em outras. Girard explica, ento, que, dentro do mecanismo do bode expiatrio, os

    personagems mimticos podem agir ainda em conformidade, adversidade, obedincia e

    contradio, entre outras nuances que compem as tendncia ao individualismo positivo e

    ao coletivismo negativo que so explorados neste trabalho.

    As nuances do pensamento de Girard reforaro nossa tese de que os desejos dos

    personagens dos rfos de rua ou so no-violentos ou so violentos, conforme o

    contexto cultural dos textos literrios selecionados. Na conformidade, por exemplo, um

    personagem concorda com as leis da sociedade e as segue (como em um bando de rfos)

    em um determinado perodo de literatura. Na adversidade, o personagem passa a no

  • concordar com as leis, embora continue a respeit-las (como em uma mob de rfos). Na

    obedincia, o personagem completa suas tarefas enquanto acrescenta outras (seja contra

    ou a favor da sociedade). Finalmente, na contradio, um personagem se ope

    sociedade, criando, assim, as condies e os meios para suas prprias leis (como nas

    gangues de rfos), mudando talvez o curso da histria literria.

    No final das contas, os desejos mimticos, a crise sacrificial e o mecanismo do bode

    expiatrio so momentos de metafsica, ou estados de transcendncia. Girard mostra

    como e por que os autores criam mimeses, mediaes ou iluses nas quais os

    personagens interagem dentro do contexto das minorias ou literaturas diversas. Eles

    interagem na literatura de minorias no sentido de cultivar uma subcultura, mencionando

    temas cruzados (isto , exlio, abandono, proibio e excluso). Interagem na literatura

    diversa no sentido de que existem outras questes embutidas que podem ocorrer (isto ,

    raa, gnero, ascenso social e etnia). Por isso, para cada cultura existem tendncias

    (positivas ou negativas) para identidades coletivas ou auto-identidades que ressaem em

    alguns pontos na histria literria mais que as outras. Este trabalho busca investigar

    principalmente os personagens rfos de rua nas literaturas anglo-americana e luso-

    brasileira.

    O Arcabouo Prtico

    Os personagens rfos de rua agem em individualismo positivo por meio de mediao

    externa, ou nas palavras de Ren Girard, pois imitam as qualidades ou virtudes dos seus

    modelos, como lemos em The Adventures of Oliver Twist (1838), de Charles Dickens,

    Ragged Dick, or, Street Life in ew York with the Bootblacks (1886), de Horatio Alger,

    The Beggars Ride (1992), de Theresa Nelson, e Flight (2007), de Sherman Alexie.

    Estes romances so escritos, basicamente, em torno de um nico personagem. A

    autoperspectiva de um rfo enfatizada em relao ao outro, ou grupos dentro da

    sociedade, como famlia, colegas de trabalho ou amigos. Conseqentemente, rfos de

    rua individualistas so tomados pelo desejo de imitar quem eles admiram, idolatram ou

  • simpatizam nas suas lutas para sobreviver nas ruas, enquanto em estado de abandono e

    excluso.

    De modo oposto, personagens rfos de rua agem em coletivismo negativo atravs de

    mediao interna, ou ainda nas palavras de Girard, quando emulam as qualidades, ou

    vcios dos seus modelos, como lemos em Capites da Areia (1937), de Jorge Amado,

    Esteiros (1941), de Soeiro Pereira Gomes, Pixote: infncia dos mortos (1977), de Jos

    Louzeiro, e Cidade de Deus (2002), de Paulo Lins.

    Estes romances so intitulados e principalmente escritos a partir de mltiplos pontos

    de vista do personagem. Os desejos compartilhados so enfatizados em relao ao outro,

    ou sociedade. Nestas obras, os rfos de rua coletivistas so tomados por um desejo de

    superioridade, emulando quem eles no gostam, a quem odeiam ou de quem discordam,

    na sua luta para sobreviver nas ruas, tambm em estado de abandono.

    A anlise que segue separa os romances de cada tradio, de modo a estabelecer as

    tendncias ou direes de desejos individualistas positivos e coletivistas negativos. Cada

    romance pertence a um perodo literrio distinto a partir do Realismo ingls e

    americano e a partir do Realismo portugus e brasileiro, focalizando, portanto, os sculos

    XIX, XX e XXI.

    Este trabalho tambm introduz outros romances de maneira a apresentar outras

    possibilidades dentro desta nova linha de pesquisa. No obstante, a anlise deve

    permanecer limitada de modo a manter o foco em uma base selecionada, demonstrando

    as tendncias do individualismo positivo e do coletivismo negativo por toda a histria

    literria, sincronicamente.

    Um Ponto de partida: The Adventures of Oliver Twist (1838)

    No seu romance ambientado na Londres do incio do sculo XIX, Charles Dickens

    cria o desejo do eu de Oliver em relao ao outro, o bando representado pelos

    trombadinhas, ou batedores de carteira. Oliver pertence ao bando de rfos de rua que

    inclui Nancy, Dodger e Bates, entre outros. Oliver vive com eles porque necessita de

    segurana em termos de abrigo, de um lar ou de uma famlia.

  • No entanto, Oliver no age como seus companheiros. Por exemplo, ele no rouba,

    como visto na seguinte passagem: Ele vai pensar que os roubei. Oh! Tenham pena de

    mim e devolva-lhe o dinheiro e os livros (92).28 Por isso, Oliver deseja outro tipo de

    grupo no qual perceba segurana completa, o que demonstra sua no-violncia.

    Esta perspectiva de no-violncia se mantm centrada nos desejos pessoais de Oliver

    como um rfo de rua que precisa de segurana dentro de uma famlia crist idealizada.

    Oliver percebe que Dodger, Bates e os outros no so a famlia dos seus sonhos, nem o

    so um asilo de mendicidade ou uma famlia adotiva. Ao longo do romance, as Sras.

    Bedwin, o Sr. Brownlow e Rose se tornam os modelos sagrados do supremo desejo de

    Oliver.

    Por sua vez, Oliver age em oposio aos rfos de rua Dodger e Bates, e em

    conformidade com a Sra. Bedwin, o Sr. Brownlow, a Sra. Maylie e Rose. A admirao de

    Oliver por eles, por exemplo, indica seu desejo de imitar as suas caractersticas

    tipicamente protestantes para algum propsito maior, ao ponto de criar auto-identidades

    que desenvolvem sua personalidade, ou traos dela, no romance.

    Assim, Oliver age em individualismo positivo, que serve para justificar o mito de que,

    se houver esforo, pode-se obter sucesso conscientemente, independentemente e

    espontaneamente, acabando em final feliz na literatura anglo-americana. Oliver obtm

    sucesso devido ao seu comportamento no-violento. Ele demonstra seu desejo por no-

    violncia ao imitar certas qualidades, ou virtudes, de seus heris. Por exemplo, Dickens

    escreve: Oliver voltou-se para o travesseiro e rezou fervorosamente (94). Aqui Oliver

    imita os gestos pios da Sra. Bedwin, rogando a Deus o restabelecimento do seu bem-

    estar. A devoo dele confirmada na passagem: Pouco depois, a velha deu-lhe boa-

    noite carinhosamente, trazendo-lhe um livro de oraes (94).

    A imitao de no-violncia de Oliver continua quando ele d suas roupas a uma

    criada, que tratara dele com muito desvelo, dizendo-lhe que as vendesse a um judeu e

    ficasse com o dinheiro (110). Oliver imita, assim, a generosidade do Sr. Brownlow, que

    tranqiliza o rapaz: No tema! Voc no ser autor enquanto puder aprender um ofcio

    honrado, nem que seja fazer azulejos (111).

    28 Veja Charles Dickens, The Adventures of Oliver Twist (New York: Heritage Press, 1939 primeira edio 1838).

  • Nas passagens seguintes, Oliver imita outros momentos no-violentos, mimetizando

    as atitudes benevolentes da Sra. Maylie e Rose: Oliver passeava com a Sra. Maylie e

    Rosa, e ouvia-as a conversar sobre livros; s vezes sentava-se junto delas em algum lugar

    sombra onde a jovem fazia alguma leitura, e ficava de boa vontade a escut-la at que a

    noite viesse e no permitisse mais distinguir as letras. (254). A reverncia que Oliver

    tem por elas quase religiosa.

    A prpria benevolncia crist de Oliver no tanto confirmada quanto sugerida,

    refletindo os valores ingleses que Dickens apreciava.

    Com a mais pura, a mais amvel generosidade, de um lado, e o reconhecimento mais sincero, mais vivo, mais sentido, do outro, no de admirar que, ao fim desse curto espao de tempo, Oliver privasse da mais completa intimidade da velha senhora e de sua sobrinha, e que o fervoroso afeto que lhes devotara o seu juvenil e sensvel corao fosse para elas um motivo de orgulho e uma causa para o estimarem mais ainda, recompensando-o (255).

    Finalmente, estes exemplos ilustram o desejo no-violento de Oliver por devoo,

    pelo envolvimento social e pela aceitao por parte dos heris que ele imita. As

    qualidades e os heris formam, em conjunto, algumas das variveis do seu

    individualismo positivo atravs de suas auto-identidades, as quais podem ser analisadas

    mais detalhadamente se nos detivssemos s causas e s consequncias desse

    comportamento, ou desejos mmeticos.

    Um degrau da escada: Ragged Dick (1868)

    Em Ragged Dick, or, Street Life in ew York with the Bootblacks, o escritor realista

    americano Horatio Alger ambienta seu principal personagem de rfo de rua, Ragged

    Dick, na Nova Iorque do perodo que antecedeu a Guerra Civil. Ragged Dick, Johnny

    Nolan, Nick McGuire, Henry Fosdick e outros formam um grupo de rfos de rua.

    Diferentemente de Oliver, Ragged Dick vive com este grupo no porque deseja a

    segurana de uma famlia mas porque deseja a segurana do emprego para ganhar o

    prprio sustento, para ter uma ocupao e uma posio na sociedade. Dick deseja outro

  • tipo de grupo para atingir seus objetivos. Por isso, ele se identifica com os srs. Whitney,

    Greyson e Rockwell no decorrer da sua histria de sobrevivente das ruas.

    Alger cria Ragged Dick segundo os dogmas do individualismo positivo. Ele mantm

    uma perspectiva de no-violncia em relao aos outros. Sua turma representada por

    engraxates. Esta perspectiva mantm-se centrada no desejo e imitaes de um rfo de

    rua que precisa de segurana na forma de trabalho. Estas palavras expressam claramente

    seu objetivo: Preciso ganhar um pouco mais (80). Alger quer que o seu personagem

    Dick busque um trabalho respeitvel e lucrativo, sem o qual ele no poder escapar da

    sua situao miservel. Dick deseja, assim, ser um empresrio de sucesso ou um

    cavalheiro que desfruta de status, prestgio e riqueza.

    Orientado no apenas para a carreira empresarial na Amrica, os desejos de Dick so

    no-violentos: Ora, Dick comeou a refletir, pela primeira vez na vida, que poderia no

    ter que ser engraxate pelo resto da vida. Dali a sete anos seria um homem, e desde que se

    encontrou com Frank sentiu que seria como ele, um homem respeitvel (88). Dick

    queria ser um cavalheiro.

    Assim, Alger estabelece o desejo mimtico de Dick, ou a imitao da no-violncia

    dos heris que ele v como modelos de sucesso. Por exemplo, em Dick viu uma chance

    para especulao e resolve aproveit-la (16), ele imita o Sr. Whitney, um acionista

    respeitado de Nova Iorque, que termina sendo um ponto de referncia para o ideal de vida

    de Dick. O Sr. Whitney lhe d um conselho: Economize, meu rapaz, compre alguns

    livros, seja determinado em vencer e assim poder ocupar uma posio honrosa (69). O

    conselho seguido intensamente.

    Igualmente, em Quero crescer, chamar a ateno. Mas no sei aonde ir (92-93),

    Ragged Dick segue a liderana do Sr. Greyson, outro personagem bem-sucedido que ele

    encontra. O Sr. Greyson valida uma atitude religiosa, mais clara que a de Dickens,

    dizendo: Voc devia freqentar uma escola dominical... A igreja que eu freqento fica

    na esquina da Quinta Avenida com a Rua 21 (92-93). Dick tambm imita um esprito

    cristo atravs da iniciativa do Sr. Rockwell, que ajuda-o a conquistar uma nova carreira.

    Ragged Dick diz ao Sr. Rockwell: Procurarei servi-lo to fielmente, senhor, que no se

    arrepender de me ter tomado aos seus servios (166).

  • Por sua vez, ocorre a seguinte cena entre Ragged Dick e outro engraxate: [Ele]

    resolveu ajudar seu amigo menos afortunado [Fosdick] a galgar a escada como ele

    mesmo fez (167). Portanto, Ragged Dick mostrado como desejoso de oportunidade,

    respeito e credibilidade, valendo-se da no-violncia dos seus heris, aqui representados

    pelos srs. Whitney, Greyson e Rockwell. Os desejos e imitaes de Dick criam suas auto-

    identidades, ou caractersticas pessoais forjadas no rduo empenho, que sucesso na

    literatura anglo-americana, como tambm podem ser analisadas mais a fundo, caso o

    leitor crtico queira saber das causas e consequncias desses desejos mimticos, em

    literatura comparada.

    Um outro momento: The Beggars Ride (1992)

    Em The Beggars Ride, a escritora modernista americana Theresa Nelson cria Clare

    Caldwell como sua principal personagem, no romance ambientado durante o perodo

    correspondente ao Movimento de Direitos Civis e a liberao das mulheres. Clare

    Caldwell, Cowboy, Thimble, Little Dog e outros pertencem a um grupo de rfos de rua.

    Diferentemente de Oliver Twist e Ragged Dick, Clare vive com este bando no porque

    precisa da segurana de uma famlia ou de um emprego, mas porque ela precisa de amor,

    na forma de ateno, afeio e amizade. Clare deseja outro tipo de grupo, de modo a

    poder realizar completamente estes desejos.

    Theresa Nelson cria Clare segundo os valores do individualismo positivo. Ela

    sustenta a sua percepo da individualidade at dentro de um grupo de runaways, ou

    fugitivos de casa. Esta perspectiva mantm o foco do desejo de Clare por no-violncia.

    Assim como Oliver Twist e Ragged Dick, ela no que ficar no seu grupo de rfos de

    rua, mas ao invs disso quer amor. Seu anseio por amor toma a forma de Joey Morgan,

    seu ex-padastro com quem ela j vivera e a quem deseja estar ligada.

    Theresa Nelson concede a Clara o desejo de uma rf de rua que busca a segurana

    do amor que no recebeu em casa. Clare deseja o amor de Joey: Se os desejos fossem

    cavalos, os mendigos cavalgariam. Foi o nico verso infantil que a mame lhe ensinou.

    Ademais, isso realmente no importava, no ? Nada importava, contanto que

    encontrasse Joey. Contanto que ele [Joey] a deixasse ficar (8). Clare exibe uma mimese

  • no-violenta, imitando a imitao da virtude moral de Joey em vrios momentos do

    romance.

    Primeiro, Clare imita as atitudes de fuga de Joey. Mas a mame nunca mais iria v-

    la. Nunca mais (4). Quando mame comeava a beber e ficava mexendo com ele sem

    nenhum motivo, s procurando encrenca, mesmo assim ele ficava impassvel. No dizia

    absolutamente nada. Ele ficava encarando o tubo por horas a fio e fumava um cigarro

    atrs do outro, ou desaparecia completamente por vrios dias (28).

    Depois, Clare imita a me como se ela fosse um personagem da televiso, quando

    Nelson escreve: Calmamente, quase como se ela fosse outra pessoa, talvez uma pessoa

    num filme que no tivesse nada a ver com ela (4). Isto se confirma quando Clare

    simpatiza com uma leoa que ela v na televiso. Mas ento aconteceu uma coisa

    estranha... Pouco a pouco o veneno foi sendo eliminado do sistema da leoa at que

    finalmente ela estava bem o bastante para redescobrir o seu orgulho. E [seus filhotes]

    estavam felizes de v-la (242). Clare tambm demonstra compaixo pelo seu novo

    amigo rfo de rua, Cowboy, ao seguir o conselho de A. J. Morgan o pai de Joey, que

    Clare encontra em Atlantic City. Ele a ajuda a levar o amigo Cowboy para o hospital

    depois que este se fere em um disparo acidental. Clare admira a amabilidade e o esprito

    cooperativo de A. J. Morgan, especialmente quando ele est otimista: Bem, podemos

    rezar (219). Clare, portanto, segue seu exemplo, como os outros casos de desejos

    mimticos diferentes, embora agora em outro momento histrico literrio.

    Ainda do lado anglo-americano: Flight (2007)

    Zits o principal personagem do escritor contemporneo Sherman Alexie, em seu

    romance ps-moderno Flight. Zits pertence a um bando de rfos que no se adaptam a

    famlias adotivas e, portanto, sempre acabam nas ruas, como fugitivos de casa. Ele se

    identifica com rfos de origem americana nativa porque, fisicamente, acha-se

    semelhante a eles. Zits meio nativo e meio irlands, e busca sua prpria auto-

    identidade.

  • Para Zits, no basta apenas ser visto como americano. Ao contrrio de Oliver Twist,

    que est preocupado com o desejo de ter uma famlia, ou Ragged Dick, cujo desejo ter

    um emprego, ou Clare Caldwell, que busca amor, Zits anseia por definir-se em termos de

    raa, gnero e ascenso social. Ele procura uma identidade porque se considera

    discriminado, marginalizado e perseguido pela sociedade. Deste modo, Alexie cria Zits a

    partir de uma perspectiva do seu eu em relao ao outro, ou daqueles dentro deste grupo

    de nativos.

    Esta perspectiva mantm o foco nos seus desejos individuais ou pessoais em um

    individualismo positivo, em uma dimenso ps-modernista. ps-moderno no sentido de

    que Alexie usa Zits para construir o conceito de segurana em termos de escolher o grupo

    violento ao qual algum pertence para alcanar uma inesperada no-violncia. Ele deseja

    pertencer a alguma organizao, uma instituio ou atividade fora de famlias adotivas,

    de maneira a encontrar-se na prpria terra. Para Zits, no basta dizer que tem um lar. Ele

    quer exercer a cidadania.

    Portanto, atravs do individualismo positivo, Alexie exorta a no-violncia, para que

    Zits perceba a necessidade de aceitar as igualdades e as diferenas, sem revoltar-se. Zits

    deve valorizar mais as virtudes do que os defeitos dos seus modelos e heris, ou daqueles

    nos quais ele v a si mesmo. Os desejos mimticos de Zits ou suas imitaes de no-

    violncia ocorrem quando ele se transforma em seus heris e rivais ou seus modelos e

    precisa encarar suas virtudes e defeitos. Por exemplo, ele se transforma no agente do

    FBI, Hank, que lhe faz lembrar outro amigo policial, Dave.

    No entanto, Zits adota caractersticas muito diferentes daquelas dos seus amigos e

    acaba por ter que encarar grandes desafios. No posso fazer isto. De alguma forma,

    parece pior atirar em um morto do que em uma pessoa viva (73). E discursa, na

    convico de que: Para lutar contra o mal, s vezes preciso fazer coisas ms.

    Quando Zits passa a ser filho do lendrio americano nativo Cavalo Louco, ele

    tomado pelo sentimento de remorso por querer que a sua raa indgena prevalea sobre os

    brancos no curso da histria. Zits se pergunta: Eu quis vingana? Culpei estes estranhos

    por minha solido? (77). Este remorso reiterado mais tarde quando ele se transforma

    em um batedor nativo chamado Gus e diz a si mesmo: Esta [tristeza] pertence a Gus e a

    sua aflio e a sua raiva so enormes, por isso a minha aflio e a minha raiva so

  • enormes tambm, enquanto grito frente de centenas de soldados, guiando-os

    diretamente ao acampamento ndio l embaixo.

    J transformado no piloto Jimmy, Zits busca justificativas para suas traies contra si

    e contra outros. Jimmy voa sozinho no seu avio. Estou com ele. Penso nas pessoas que

    tra. Penso nas pessoas que me traram. No entanto, somos pessoas... e estamos caindo.

    Fecho os olhos e rezo. Jimmy fica o tempo todo em silncio durante a queda (130).

    Assim, Zits confronta sua prpria violncia atravs dos atos violentos dos

    personagens nos quais se transforma durante a histria. Ao assumir estes papis e encarar

    grandes desafios, remorso e traio, Zits levado no-violncia. As causas e as

    conseqncias da sua no-violncia inversamente construda aqui so objetos de estudo

    mais prximos de nossa realidade. Mas como sero estes desejos mimticos daqui a

    alguns anos, ou como estes se comportam/aram/o em outras culturas?

    O ponto de partida no lado luso-brasileiro:

    Capites da Areia (1937)

    Pedro, tambm conhecido como Bala, o principal personagem de Capites da

    Areia, de Jorge Amado. Junto com Sem Pernas, Gato, Volta Seca e outras vtimas da

    marginalizao, ele forma um grupo de delinqentes nas ruas da Salvador-Bahia, da

    dcada de quarenta, quando o Brasil vivia um regime poltico de inspirao neo-fascista

    denominado Estado ovo (1937-1945).

    Bala vive com este grupo porque precisa de segurana no sentido de alimentao,

    proteo e moral. Ao contrrio de Oliver Twist, Ragged Dick, Clare Caldwell e Zits,

    personagens que agem individualmente, Bala age como cmplice de seus companheiros,

    compartilhando os mesmos anseios do grupo. Por isso, Bala rouba nas ruas para

    satisfazer a causa do grupo. Ele precisa dos outros para poder realizar completamente os

    seus desejos.

    Jorge Amado cria Bala e os outros rfos de rua segundo a perspectiva coletiva, de

    modo a focalizar a ateno no coletivismo negativo. Atravs de Bala, o autor constri um

    desejo da gangue por unio. Em outras palavras, por meio do personagem principal que

  • Amado demonstra o desejo de vrios rfos, todos necessitados da segurana familiar.

    Contudo, esta a famlia, segundo seus prprios princpios. Bala e os outros querem

    estabelecer a definio de famlia como sendo uma unio de pessoas com razes comuns,

    que neste caso a rua.

    O trecho seguinte ilustra seu companheirismo, junto com seus desejos e aes

    compartilhados: Companheiros. Palavra bonita, pensa Pedro Bala. Ningum dorme mais

    no trapiche nesta noite. Preparam as mais diversas armas. (286) Em outras palavras,

    Bala, um personagem com tendncias coletivistas negativas, emula os desejos dos seus

    rivais. Sua liderana assim demonstrada: Todos reconheceram os direitos de Pedro

    Bala chefia, e foi desta poca que a cidade comeou a ouvir falar nos Capites da Areia,

    crianas abandonadas que viviam do furto. (31)

    Como lder, Bala encoraja a emulao dos capoeiristas e a subseqente m utilizao

    da sua arte:

    O Querido-de-Deus o mais clebre capoerista da cidade. Quem no o respeita na Bahia?...O Querido-de-Deus contou as novidades e avisou que no dia seguinte apareceria no trapiche para continuar as lies que Pedro Bala, Joo Grande e o Gato tomam. (34)

    A gangue tambm organiza ataques, como estes: Eles furtavam, brigavam nas ruas,

    xingavam nomes, derrubavam negrinhas no areal, por vezes feriam com navalhas ou

    punhal homens e polcias. Mas, no entanto, eram bons, uns eram amigos dos outros.

    (121)

    Jorge Amado utiliza-se ainda de outras maneiras para definir coletividade. Bala e sua

    gangue usam o samba como forma de manifestao de apoio. E com eles cantavam

    todos e eram saveiristas, malandros, doqueiros, at uma prostituta cantava. Os rfos de

    rua exploram tambm a religio, ou os rituais do candombl: Os candombls batiam em

    desagravo a Ogum e talvez num deles ou em muitos Omolu anunciasse a vingana do

    povo pobre. (107) As imprecaes (ou maldies) do som dos tambores que

    apaziguavam o Candombl com Ogum, nesta passagem, confirmam a negatividade da

  • emulao do grupo. Essencialmente, Bala e o grupo desejam poder, ascenso social e

    status.29

    Por isso, Bala e seu bando formam identidades coletivas que constroem, ento, as

    suas personalidades na narrativa. Dentro destas personalidades coletivas, Bala tenta

    superar as qualidades competitivas dos membros do grupo, buscando seus prprios

    sonhos, embora isto passe despercebido devido grande dificuldade oferecida pela mera

    sobrevivncia. As causas e as conseqncias da violncia podem ser analisadas sob uma

    noa vertente, ou paradigma em outra cultura, agora a brasileira.

    Um ponto semelhante no tempo: Esteiros (1941)

    Gineto o principal personagem jovem no romance Esteiros, escrito pelo autor

    realista portugus Joaquim Soeiro Pereira Gomes, livro ambientado durante o perodo do

    Estado Novo, iniciado, em 1932, pelo ditador Antonio de Oliveira Salazar. Junto com

    Sagui e Maquineta, Gineto forma um grupo de rfos nas proximidades da vila de

    Alhandra, em Portugal. Gineto vive com este grupo porque almeja por segurana, mas

    no no sentido de emprego, como ocorre com o personagem anglo-americano Ragged

    Dick. A vontade de Gineto de estar com o seu grupo mais que uma questo de

    obrigao. Junto com os outros, ele deseja trabalhar na Fbrica Grande como meio de

    subsistncia.

    Portanto, Pereira Gomes cria Gineto segundo uma perspectiva coletiva. Sua

    identidade coletiva centrada nos desejos compartilhados do seu grupo. Os membros tm

    de estar unidos a bem da segurana do emprego. Estas crianas concentram-se na

    sobrevivncia e buscam constantemente o po de cada dia. O autor demonstra, na

    seguinte passagem, a unidade cultivada pela turma: Pareciam cansados. Mas, quando a

    sereia fez a ltima chamada, distenderam logo os msculos, agitaram-se. Ai de quem no

    tivesse passo ligeiro sob a saca de cem quilos. (15)36

    O grupo de Gineto composto de jovens que se tornaram adultos prematuramente,

    embora continuem a agir como crianas: Gineto pensou que no podia deix-los

    29 Candombl uma religio afro-brasileira, baseada em rituais Iorub, tendo se originado na Cidade do Salvador-Bahia, e que hoje est amplamente disseminada em todo o Brasil. Veja Nei Lopes, Enciclopdia brasileira da dispora africana (So Paulo: Selo Negro, 2004).

  • entregues a si prprios como dantes, porque, na quadrilha, riscos e lucros eram repartidos

    por igual. (54)

    Gomes deixa claro que Gineto e o seu grupo agem por meio do coletivismo negativo.

    Esta forma de coletivismo conduzida pelo submundo dos criminosos e vigaristas.

    Gineto emula, assim, os defeitos daqueles que v como modelos, reflexos do mundo

    interior, sem progresso, sem iniciativa para mudar: Todos tinham pedidos para a Fbrica

    Grande. Anseio que passava de pais para filhos, de gerao para gerao. (98)

    Dessa forma, Gineto se conforma com o que passado de gerao a gerao, herana

    de irmos mais velhos, pais e avs. Ele emula a ignorncia de um povo que no consegue

    evoluir, preferindo a estagnao e um modo de vida elementar em uma vila s margens

    de um rio. Esta emulao mais social do que individual.

    Atravs de Gineto, o narrador de Esteiros revela no apenas violncia, mas tambm

    passividade, pois, junto com um grupo de rfos de rua, ele anseia por subsistncia,

    cumplicidade e estagnao. Em favor do grupo, Gineto age em coletivismo negativo,

    emulando as qualidades dos grupos rivais, representados por operrios, gangues e seus

    prprios pais. Agora, temos uma abordagem sob o olhar do mundo portugus que se

    parece muito com o brasileiro, se compararmos Capites de Areia com Esteiros. Ou

    quem ser que se parece com quem?

    Outro ponto de encontro: Pixote: infncia dos mortos (1977)

    Dito o personagem de rfo no romance Pixote: infncia dos mortos, escrito por

    Jos Louzeiro e ambientado durante o regime militar que dominava no Brasil, de 1964 a

    1986. Junto com Fumaa e Manguito, Dito forma uma gangue de rfos de rua conhecida

    como pivetes, na cidade de So Paulo. Como o personagem anglo-americano Clare

    Caldwell, Dito vive com um grupo porque o que procura amor, mas no no sentido do

    carinho, simpatia ou amizade que motivava Clare. Dito anseia por afeio no sentido

    fsico.

    Jos Louzeiro cria Dito a partir de uma perspectiva coletiva em relao ao outro, ou

    sociedade, para centrar a ateno nos seus anseios por solidariedade, compaixo e

  • misericrdia no interesse do seu grupo. Dito e os outros rfos experimentam a

    solidariedade, que vai prover as suas necessidades bsicas e que so mais fsicas do que

    psicolgicas, ao contrrio de Clare. Desta forma, o autor coloca Dito em uma condio

    mais inferior, desumana e primitiva do que aquela que Theresa Nelson coloca sua rf de

    rua. Por esta razo, Dito se encontra em nveis diferentes na hierarquia de desejos.

    Louzeiro demonstra a hierarquia de desejos. A vingana ou a honra do grupo talvez

    seja mais importante do que a luta pela sobrevivncia:

    Dito fica satisfeito com a demonstrao de solidariedade dos rapazes. Dito v tanta coisa em tantos poucos segundos: Pichote caindo e levantando no cho de terra do cemitrio, Caramelo o empurrando para junto dos marginais, Me Dolores chorando por Fumaa, Beth idealizando a vida que jamais teriam. V tambm a cara do homem que o espancara. Parece transtornado. (151)

    O tema recorrente no romance: Formariam um grupo de impor respeito. Os

    prprios tiras no iriam gostar de enfrent-los. (110) dito age com violncia por

    intermdio do coletivismo negativo. Dito e os outros rfos emulam as qualidades dos

    seus modelos e rivais. A referncia aqui em relao aos policiais que capturam

    traficantes de drogas e os torturam a fim de obter informao. Sem entender os maus-

    tratos, Dito e seus companheiros escapam e buscam vingana por conta das atrocidades

    que experimentaram. Portanto, Dito age atravs do coletivismo negativo, em retaliao

    aos perigos recm-descobertos: A morte no conduz a nada. No sei no. Mas

    livra a gente dessa raa. (162)

    Progredindo nessa mentalidade coletiva, Dito e seu grupo emulam tambm as

    qualidades dos seus rivais, os traficantes de drogas, no intuito de formar uma sociedade

    alternativa baseada no medo, terror e caos. Dito e os outros membros do grupo vivem o

    dia-a-dia, emulando o que aprendem nas ruas, enraizados que esto no grande sofrimento,

    na excluso e no abandono: Preferiram pular que se entregar. (228) Dito e os outros

    rfos de rua atestam que preferem a morte vida. Mas, neste romance tambm existe

    individualidade. Por exemplo, o verbo pular significa que Dito dono do prprio

  • destino e no se sujeita s regras sociais. Portanto, Dito emula as qualidades dos

    assassinos que talvez matem em autodefesa.

    Dito se mata, ao no se entregar aos outros e se colocando em p de igualdade com

    Pichote, que tambm luta por liberdade, ou por uma vida melhor em outro lugar ou at

    mesmo em outra dimenso.30 Ao escolher a morte, Dito a atribui ao misticismo por

    avaliar a sua morte como um meio de sobrevivncia. Por isso, o narrador revela que Dito

    e os rfos de rua emulam a vingana, a ira e a rebelio violenta dos criminosos, dos

    viles e dos assassinos; as suas causas e conseqncias tambm podem nos levar a

    diferentes perspectivas de vida, ou de morte. O que podemos imaginar ento de toda essa

    constru`ao de identidade desses personagens desfavorecidos?

    E finalmente, o ponto de chegada no lado luso-brasileiro: Cidade de Deus (1997)

    Mdo pertence gangue de Inferninho e Pardalzinho. Conhecidos como favelados,

    eles so os principais personagens do romance contemporneo brasileiro Cidade de Deus,

    de Paulo Lins, o ltimo e mais violento dessa anlise. Mido, um rfo de rua em

    particular, vive com seu grupo porque precisa da segurana em nome da sua raa, da

    ascenso social e de gnero, que no seu caso toma a forma de participao no mundo do

    crime.

    Diferentemente do Pedro Bala, de Capites da Areia, que rouba para favorecer o

    grupo, Mido comete crimes para controlar a favela em que vive:

    Para [Mido] no havia paz, arrependimento, no fazia nada que no pudesse colher frutos depois... Era ele o senhor do desengano: o dono da ruindade de nunca perdoar, de aniquilar o que no coubesse nos liames de sua compreenso bandida, de inventar coisas que o outro no tinha feito por motivos para exercer crueldade. (399)

    Portanto, por meio da venda de drogas, Mido procura conquistar mais territrios e

    clientes, batendo de frente com seus inimigos. Ele os mata por prazer, uma ao que

    30 De um lado, o autor se refere a Pichote como um dos seus personagens. De outro, Pixote representa o ttulo ou o universo coletivo de um grupo de rfos de rua no romance.

  • revela anseios patolgicos como narcisismo, masoquismo e sadismo, os quais sero

    discutidos no captulo quatro.

    Atravs do coletivismo negativo, Mido emula as qualidades dos seus rivais:

    Mido suspirou de felicidade, estava contente por ser o protagonista daquele estupro, no somente por ter possudo a loura, mas por ter feito o namorado que viu toda a cena sofrer. (308)

    Aqui, Mido emula um estuprador. Ele estupra por prazer, um ato que encerra uma

    conotao de grande violncia, evidenciando a sua personalidade desajustada,

    problemtica e perigosa:

    Passado algum tempo, nas proximidades do Bloco Sete, o matuto lhe entregou a droga, que foi dividida por Mido em partes iguais, mesmo no tendo sido pressionado a isso. (346)

    Mido colhe os benefcios do coletivismo negativo. Ele chefe porque quer ser o

    modelo para outros a quem deseja controlar. Portanto, Mido dita suas prprias regras e,

    para isso, usa a fora das armas:

    Qual cumpadi, a gente no tinha combinado que ... [Mido] fez sinal da cruz. Triguinho que o observara atentamente, retirou a pistola da cintura, deu um tiro no abdmen de Mido e saiu correndo... [Mido] sentou no sof e revirou os olhos e morreu quando comeava a queima de fogos para a entrada de mais um Ano-Novo. (400)

    Mido foi pego de surpresa pela traio do seu prprio bando. Seu personagem,

    outrora em consonncia com seus predecessores, e sua morte prematura perpetuam o

    mito da luta e fracasso na literatura luso-brasileira. Por isso, o narrador revela que Mido

    possessivo, viciado e sexualmente louco na sua imitao de traficantes de drogas,

    gerrilheiros e estupradores. As causas e conseqncias dos atos violentos de Mido agora

    se mostram talvez no pice de violncia sagrada, to parecida com os crimes de

    parricdios da idade antiga. Ser que ento na literatura h um ciclo sob o tema dos

    desejos mimticos desses personagens? Ou seja, h o momento extremo em que a

  • violncia passa a ser to forte que sua fora se esgota, ou esta se renova, e nos

    supreendemos com amis atrocidades?

    Um breve resumo at aqui

    Por terem tomado caminhos ou respostas diferentes na literatura comparada,

    os personagens rfos de rua so casos singulares. Os rfos de rua anglo-americanos

    responderam positividamente condio de desamparados e proscritos. So casos de

    quem, na maioria das vezes, busca ter uma vida de final feliz. Os autores imaginam que

    tais crianas podem lutar e obter sucesso por si prprias, de modo a serem recompensadas

    pela sociedade porque se ajustam a aes de no-violncia (isto , aos modelos de

    cidadania). J os rfos de rua luso-brasileiros, diferentemente, responderam

    negativamente sua condio de abandonados e excludos. O seu fim trgico, pois

    tendem a morrer. Os autores destes romances portugueses e brasileiros imaginam que

    seus rfos de rua no so levados a srio quando lutam pela sobrevivncia, assim lutam

    e fracassam ou so punidos pela sociedade porque no se ajustam a ela devido s suas

    aes violentas (i.e., os casos de genocdio). Por isso, para entender seus anseios no-

    violentos, mascarados pelas tendncias nas culturas anglo-americana e luso-brasileira,

    respectivamente, este mdulo traz uma abordagem nica e investiga, sincronicamente,

    quais as possibilidades de evoluo destes personagens rfos de rua especficos no

    mundo da fico.

    O Arcabouo Crtico-Literrio

    Reviso Bibliogrfica: O Caso Anglo-Americano

    Em The Inner Structure of Charles Dickens ovels (1974), Koichi Miyazaki afirma

    que Dickens explora um Oliver tpico, criado em um mundo sombrio mas jamais

    contaminado pelo ar impuro , que, finalmente, moveu-se, como de costume, para um

    mundo de luz e paz.31 Miyazaki sugere que Dickens est preocupado com certas

    31 Veja Koichi Miyazaki in The Inner Structure of Charles Dickens Later Novels (Tokyo: Sanseido, 1974).

  • qualidades conflitantes de Oliver, como divertimento e melancolia, expressividade e

    conteno, amabilidade e ndole vingativa. No obstante, Miyazaki fala somente sobre as

    semelhanas e diferenas das personalidades de Oliver sem mencionar as causas mais

    profundas e as consequncias destas caractersticas definidoras. Portanto, este trabalho

    examina os fatos romanceados e os situa comparativamente a outros romances do gnero,

    de modo a demonstrar que o sofrimento de Oliver tem um propsito superior.

    Em Dickens: The Orphan Condition (1999), Baruch Hochman e Ilya Wachs afirmam

    que, geralmente, as narrativas de Dickens retratam afirmaes morais em seus enredos.32

    Ento, a condio do rfo relaciona moralidade ao sofrimento e ao pthos ou

    comiserao como o centro das preocupaes. Conforme Hochman e Wachs, a crtica

    moderna deve trabalhar com o sofrimento e o pthos sob um prisma que ultrapasse o

    sujeito, atravs da transcendncia, por exemplo. Portanto, pode-se recorrer a isto como

    sendo estados de conceitos de desejos mimticos de Ren Girard ou inter-relaes

    humanas entre o eu (e/ou coletivo) e o(s) outro(s). Assim, este trabalho investiga o que

    Dickens incorpora como termos vinculados moralidade, como ego, famlia, trabalho,

    cidadania, parentesco e propriedade, do ponto de vista da imaginao de um rfo.

    Em Dickenss Villains: Melodrama, Character, Popular Culture (2001), Juliet John

    examina o personagem Oliver Twist de Dickens, parte da imagem dele mesmo na

    chamada ewgate fiction e o debate que da surge.33 Seu argumento de que Dickens no

    est apenas inquirindo a fora das narrativas e fices escritas em Oliver Twist mas que

    ele est preocupado com uma variedade especial de formas culturais populares de apelar

    para a funo da emoo e do prazer. John apresenta a Newgate como uma pardia da

    porta para uma priso inglesa ou a periferia da antiga Londres. Portanto, esta anlise

    amplia o universo do submundo no qual a cultura popular nasce, provocando os desejos

    de Oliver a partir da perspectiva de punio recompensada e no-violenta do seu

    personagem. No fim, Oliver prefere gente como Mr. Brownlow, Rose e Mrs. Maylie, a

    quem ele adota como modelos sagrados para a sua vida.

    32 Veja Baruch Hochman e Ilya Wachs, Dickens: the Orphan Condition (London: Associated University Press, 1999). 33 Veja Juliet John, Dickens Villains: Melodrama, Character, Popular Culture (Oxford: Oxford University Press, 2001).

  • Em um estudo posterior, Charles Dickens Oliver Twist: a Sorcebook (2004), John

    discute a afirmao de Oliver: Por favor, senhor. Eu quero um pouco mais, uma das

    mais famosas citaes literrias na lngua inglesa, o desejo por algo mais do que

    comida.34 A prpria crueza do pedido convida ironicamente a interpretaes e

    reinterpretaes. Para John, esta proposio um momento simblico de rebelio,

    aspirao, status, empreendedorismo, democracia, capitalismo, a busca de indentidade,

    principalmente o individualismo lutando para sobreviver. Por isso, no se pode negar que

    o pedido de Oliver por mais seja uma linha com alguns dos mitos ideolgicos dominantes

    dos ltimos sculos nos pases ocidentais. Oliver quer mais e finalmente obtm mais,

    personificando o Sonho Americano. John argumenta que o desejo no-violento de Oliver

    Por favor, senhor, eu quero um pouco mais construdo por um sistema que separa,

    isola e diferencia rfos de rua desejveis de indesejveis, colocando alguns deles na

    condio de rfos privilegiados .

    Em Vision of Poverty and the Poor in the Novels of Horatio Alger (1983), Yves

    Lemeunier sustenta que os heris de Alger aspiram alcanar a modesta classe mdia

    baixa americana (sem almejar o tipo de realizao baro ladro), e por isso seu sucesso

    a prova de que a distncia entre pobres e ricos no to grande como se pode

    imaginar.35 O que Lemeunier quer demonstrar na sua hiptese que a pobreza ,

    provavelmente, um bem positivo, ao afirmar que a ordem social existente imutvel ou

    que, seja como for, no h nenhuma necessidade de mud-la. Ele sugere, assim, que

    Alger ilustra a suposio de que a classe baixa do seu tempo ignorante, e a ignorncia

    a fonte do duradouro mal-entendido entre o capital e o trabalho. Usar de radicalismo,

    como forma de resistncia, seria ento um erro ao se lidar com esta classe.

    Por isso, Lemeunier diz que Alger prefere se envolver com a literatura como um meio

    de acesso s massas populares, visando obteno de informaes de como lutar e ter

    sucesso. Portanto, Alger talvez consiga cativ-los, considerando seus mais de cem

    romances publicados, cada um deles com as suas prprias receitas de sucesso. Usamos

    aqui um destes romances de Horatio Alger para ilustrar os desejos de rfos de rua,