nas teias da intermialidade
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Universidade Federal da Bahia
Instituto de Letras PPGLL Programa de Ps-Graduao em Lingstica e Literatura
Rua Baro de Geremoabo, n147 CEP: 40170-290 Campus Universitrio - Ondina, Salvador-Ba Tel.: (071) 3283-6256 E-mail: [email protected]
(O Menino, Cndido Portinari)
Tema: MIMESES E A VIOL,CIA SAGRADA: RFOS DE RUA EM LITERATURA COMPARADA
Colaborao: Dr. Jos Newton de Seixas Pereira Filho
Professor Adjunto do Departamento de Letras Germnicas, UFBA
Contato: 071-81026506 cell 071-32836266 UFBA [email protected]
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SUMRIO
Introduo
Apresentao de um Problema
Arcabouo Histrico
Arcabouo Terico
Os Estados de Transcendncia
A Crise Sacrificial
O Mecanismo de Vtima Expiatria
Arcabouo Prtico
Arcabouo Crtico
Um Breve Resumo
Referncia Bibliogrfica
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Introduo
Este breve mdulo investiga como romancistas anglo-americanos e luso-brasileiros
usam fices de no-violncia e violncia para criar mitos de ambio e sucesso e luta
e fracasso no universo dos rfos de rua em Literatura Comparada.
Autores anglo-americanos como Charles Dickens, em The Adventures of Oliver Twist
(1938), Horatio Alger, em Ragged Dick, or, Street Life in ew York with the Bootblacks
(1868), Theresa Nelson, em The Beggars Ride (1992), e Sherman Alexie, no romance
Flight (2007), tendem a construir seus personagens rfos de rua como no-violentos.1
Escritores luso-brasileiros, ao contrrio, como Jorge Amado, em Capites da Areia
(1937), Soeiro Pereira Gomes, em Esteiros (1941), Jos Louzeiro, em Pixote: infncia
dos mortos (1977), e Paulo Lins, em Cidade de Deus (1997), tendem a faz-los
violentos.2 Estas tendncias existem porque os escritores de ambas as regies socio-
lingstico-culturais usam concepes diferentes de mimese. Especificamente, escritores
anglo-americanos constroem seus personagens rfos de rua usando mediaes externas,
ao passo que escritores luso-brasileiros os constroem usando mediaes internas.
De acordo com a teoria cultural de Ren Girard, em Deceit, Desire, and the ovel:
Self and Other in Literary Structure (1960), Violence and the Sacred (1972), e Scapegoat
(1986), mediaes so comportamentos orientados de desejos humanos.3 As mediaes
so, por exemplo, imitao e emulao, ou distncias do poder em metafsica. A
mediao externa a distncia ou espao potencial que separa os desejos. Isto evita as
1 Veja Charles Dickens, The Adventures of Oliver Twist (New York: Heritage Press, 1939 primeira edio, 1838). Horatio Alger, Ragged Dick, or, Street Life in ew York with the Bootblacks (Philadelphia: Polyglot Press, 2005 primeira edio, 1868). Theresa Nelson, The Beggars Ride (New York: Orchard Books, 1992), Sherman Alexie, Flight (New York: Black Cat, 2007).
2 Veja Jorge Amado, Capites da Areia: romance (So Paulo: Martins, 1970 primeira edio, 1937), Soeiro Pereira Gomes, Esteiros (Lisboa: Avante, 1977 primeira edio, 1941). Jos Louzeiro, Pixote: infncia dos mortos (Rio de Janeiro: Global Editora, 1987 primeira edio, 1977). Paulo Lins, Cidade de Deus: romance (So Paulo: Companhia de Letras, 2002 primeira edio, 1997).
3 Veja Ren Girard, Deceit, Desire, and the ovel: Self and Other in Literary Structure, trad. Yvonne Freccero (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1965 primeira edio francesa, 1961); Violence and the Sacred, trad. Patrick Gregory (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1972 primeira edio francesa, 1972); and Scapegoat, trad. Yvonne Freccero (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1986 primeira edio francesa, 1982).
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colises metafsicas, por exemplo, quando os conflitos de interesse pelo mesmo objeto,
ou contra ele, acontecem por meio do individualismo positivo, e portanto, os personagens
so representados como no-violentos. A mediao interna, pelo contrrio, aquela
distncia que une os desejos, criando as colises metafsicas.
Um exemplo de mediao interna pode ser verificado quando conflitos de interesse
pelo mesmo objeto, ou contra ele, acontecem por meio do coletivismo negativo, sendo
considerados violentos, portanto. De maneira que os escritores anglo-americanos e luso-
brasileiros tendem a construir seus personagens rfos de rua em diferentes planos
narrativos. Mas quais seriam os problemas por trs desses planos narrativos?
Apresentao de um dos Problemas sobre a Orfandade de Rua
Em Literatura Comparada, rfos de rua so personagens abandonados. Abandonados
significa que se trata aqui de rfos vivendo ao relento, ou crianas vivendo por conta
prpria em diferentes adversidades. Os rfos de rua so crianas abandonadas, por
exemplo, nos casos de morte ou desaparecimento, fuga ou desero, separao ou perda
da famlia, dos amigos e de responsveis. Por esta razo, eles perambulam sozinhos pelas
ruas em busca de outras oportunidades. Podem, por sua vez, se transformar em
no-violentos ou violentos na tentativa de sobreviver sua prpria maneira.4
A UNICEF calcula que aproximadamente 100 milhes de rfos de rua esto
atualmente vivendo em abandono em todo o mundo, nmero que poder chegar a 800
milhes por volta de 2020.5 nesta crescente e expressiva parcela da populao mundial
que os romancistas encontram modelos para diferentes personagens, enredos e
ambientaes na literatura. Os batedores de carteira, ou trombadinhas, vendem drogas
nas ruas de So Paulo-Brasil. Os moleques de rua, ou gaiteiros, roubam nos esgotos de
Lisboa-Portugal. Os jovens viles, ou Los pcaros, mendigam nos becos de Madri-
Espanha. Os pivetes, ou Los gamines, vendem flores nas periferias de Bogot-
Colmbia. Os meninos de rua, ou Los nios de calle, cheiram cola nas avenidas da
4 Veja Catherine Reef, Alone in the World: Orphans and Orphanages in America (New York: Clarion Books, 2005).
5 Veja UNICEF, Annual Report (New York: Division of Communications, 2008).
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Cidade do Mxico-Mxico. Os fugitivos de casa, ou The runaways, vendem seus
corpos nos subrbios de Chicago-EUA, dentre outras situaes.6
Fome, frio, solido, medo, maus-tratos, doena e perda so alguns dos leitmotivs do
abandono de rfos de rua, na literatura. Ento, pode-se esperar que os rfos de rua
sejam seres feridos emocionalmente, enganados financeiramente, abusados fisicamente,
famintos nutricionalmente, usados sexualmente, vilipendiados ambientalmente, rejeitados
socialmente ou marcados moralmente, a depender de como ocorreram os seus dramas
particulares.7
Escritores constrem seus personagens rfos de rua, seja violentamente ou no-
violentamente, para falar, geralmente, dos anseios de infratores ou delinqentes juvenis.
Delinqentes juvenis significa menores, margem da sociedade, que cometeram alguns
tipos de crime. Crime uma ofensa moral ou tica cometida contra a sociedade. Por isso,
ao abordar a luta pela sobrevivncia travada pelos rfos de rua, os escritores constroem
esses personagens conferindo-lhes certas caracterstitas de delinqncia no-violentas,
como atos de protesto (i.e., greves), formas de represso (i.e., vadiagem) e militncia
(i.e., passeatas), ou violentas, como agresso (i.e., estupro), terrorismo (i.e., atividade
gerrilheira) ou homicdio.8
Os crimes dos rfos de rua so geralmente analisados segundo o grupo ao qual
pertencem. Por exemplo, os escritores agrupam seus personagens em bandos, mobs9 ou
gangues. Um bando indica que os rfos de rua se renem sem compartilhar, no entanto,
uma ideologia. Tal o caso daqueles que foram abandonados recentemente e
simplesmente vivem juntos nas ruas. Uma mob indica que os rfos de rua compartilham
uma certa ideologia e que buscam juntos uma vida melhor. o que ocorre com aqueles
6 Veja Dennis Leoutsakas, The Orphan Tales: Real and Imagined Stories of Parental Loss (Miami: University of South Florida, 2004).
7 Veja Andy Butcher, Street Children: the Tragedy and Challenge of Worlds Millions of Modern-Day Oliver Twists (Milton Keynes: Authentic Lifestyle, 2003), 14.
8 Veja Benedito Rodrigues Dos Santos, Ungovernable Children: Runaways, Homeless Youths, and Street Children in New York and So Paulo (Unpublished Dissertation, University of California, Berkeley, 2002).
9 Tupac Amaru Shakur definia o acrnimo M.O.B. como significando money of bitches, algo como dinheiro de prostitutas. Embora esta definio tivesse um significado prprio, o que Tupac na verdade queria dizer era que ele era agora MOB, isto , Member Of Bloods [membro da Bloods], uma gangue de rua, surgida na dcada de 70 em Los Angeles, e que se espalhou por todos os Estados Unidos. Mob significa tambm uma grande mobilizao de pessoas, ou turba, ou o outro nome pelo qual a Mfia conhecida. (N. do T.)
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que demarcam um territrio e se tornam cada vez mais adaptados ao seu ambiente. Os
rfos de rua organizados em gangues geralmente agem em foras organizadas. Por isso,
a depender do crime, os autores cultivam a iluso de reproduzir suas associaes na
literatura.10
Os rfos de rua possuem iluses especficas que dependem de suas aes nas
histrias, merecendo, portanto, tratamentos especficos. Por exemplo, os rfos de rua
podem agir individualmente ou coletivamente. O individualismo indica que eles tm um
inter-relacionamento apenas dbil, ou, em outras palavras, so independentes, isolados e
autnomos; no se sentem obrigados a agir de acordo com o desejo do grupo. Podem
fazer parte de um grupo mas ainda assim ter a liberdade de escolha de ir e vir, conforme
desejarem. J o coletivismo indica que os rfos so dependentes do grupo e nele esto
confinados; so obrigados a agir de acordo com a vontade do grupo. No tm a liberdade
de ir e vir, como bem lhes aprouver. Uma coletividade trabalha junto pela sobrevivncia
porque cada membro tem uma capacidade especfica que atende a desejos comuns.11
E por serem s vezes livres e outras vezes no, os rfos de rua tendem a agir
quer individualmente ou coletivamente, quer positivamente ou negativamente.
O individualismo positivo motivado pelo sucesso; os desejos comuns so alcanados.
O individualismo positivo geralmente cultiva a auto-confiana, a auto-satisfao e a auto-
superao dentro de um grupo, ou a no-violncia. O individualismo negativo, ao
contrrio, motivado pelo fracasso; os objetivos no so alcanados. Por exemplo, o
individualismo negativo leva ao egosmo, ao dio e derrota daquelas auto-identidades,
ou violncia. O coletivismo positivo leva cooperao coletiva, obedincia coletiva e
ajuda coletiva, ao passo que o coletivismo negativo suscita o surgimento de rivalidade,
vingana e destruio daquelas identidades coletivas.12
Finalmente, o individualismo e o coletivismo (seja positivo, seja negativo) so alguns
momentos de mimeses literrias que dependem de comportamentos, agindo como
personagens primrios ou secundrios, ou auto-identidades e identidades coletivas,
reforando e cultivando mediaes no-violentas e violentas. Assim, este trabalho
10 Veja Roslyn Mickelson, Children on the Streets of the Americas (New York: Routledge, 2000). 11 Veja Harris Triandis, Individualism and Collectivism: Theory, Methods, and Applications (Boulder: Westview Press, 1995).
12 Veja Kim Uichol, Harris Triandis et al., Individualism and Collectivism: Theory, Method, and Applications (Thousand Oaks: Sage Publications, 1994).
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investiga alguns rfos de rua no-violentos na literatura anglo-americana que geralmente
cometem pequenos crimes por meio do individualismo positivo dentro de bandos ou
mobs, bem como, diversamente, os rfos de rua violentos na literatura luso-brasileira
que cometem crimes srios atravs do coletivismo negativo presente em mobs e gangues.
O Arcabouo Histrico
H vrias teorias literrias sobre rfos de rua agindo no violentamente, ilustrando
individualismo positivo, ou violentamente, geralmente numa forma de coletivismo
negativo. Uma teoria sobre as origens dos indivduos positivos cria uma relao entre
estes rfos e os exilados, quanto eles aportaram na Amrica durante o perodo colonial.
Em Cultural Orphans in America (1998), Diana Loerche Pazicky explica como a elite do
Velho Mundo enviou rfos para o Novo Mundo, junto com pecadores, pagos e
prostitutas, aproveitando-se dos desprivilegiados, como ocorreu durante as guerras de
conquista. Os rfos atuavam, ento, como vtimas expiatrias. Pazicky afirma: Deste
modo, os puritanos tentavam preservar sua identidade espiritual como filhos de Deus.
Atravs de estratgias como usar vtimas expiatrias, transferiam o nus da orfandade
para os ndios e outros dissidentes religiosos.13
Pazicky mostra como nos Estados Unidos colonial os governos do Estado teocrtico
seduziram os rfos do Velho Mundo com promessas de propriedade do Novo Mundo,
usando-os para o bem do expansionismo. Neste momento de expanso, os rfos de rua
experimentaram uma liberdade de escolha com a promessa de se tornarem Filhos de
Deus.14 Esta liberdade de escolha, com uma forte influncia do puritanismo, concordava
com as leis, normas e regras impostas pelos colonizadores aos colonizados. rfos de
rua, como uma extenso particular do estado de orfandade em geral, assumiram, assim, o
papel de ocupantes, missionrios e cruzados em nome da Igreja, ou melhor, da ptria-me
Inglaterra.
Por outro lado, em Convicts and Orphans, Forced and State-Sponsored: Colonizers
in the Portuguese Empire (2002), Timothy M. Coates relata que rfos portugueses eram
13 Veja Loerche Pazicky, Cultural Orphans in America (Jackson: University Press of Mississippi, 1998), xiv.
14 Veja tambm Pazicky, 24.
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tambm submetidos ao degredo para o Novo Mundo, mas quando aqui chegavam
experimentavam um processo diferente, em comparao com seus compatriotas anglo-
americanos. De acordo com Coates, a maioria dos rfos luso-brasileiros era vinculada ao
catolicismo e ao capitalismo. Produtos de seu tempo e do ambiente, os rfos luso-
brasileiros no experimentaram nenhum tipo de liberdade de escolha. Ao invs disso,
estavam merc do sistema de dote penal. Nas palavras de Coates: Os dotes imperiais
eram uma soluo para vrias situaes, recompensado servios prestados Coroa,
atendendo s necessidades domsticas e estabilizando a presena colonial de uma elite
portuguesa.15
Coates explica que quando muitos rfos portugueses eram enviados para o Brasil,
vinham junto com pagos, pecadores e prostitutas. No Brasil, eram vendidos como
escravos, sendo moeda de troca os ttulos, dotes e outros favores estipulados pela Igreja e
o Estado. Na seguinte passagem, Coates apresenta uma interessante perspectiva desta
situao: Ningum menos do que o prprio Padre Manuel da Nbrega escreveu ao rei D.
Joo III, nos anos 1500, para sugerir o envio de rfs para o Brasil, porque todas elas se
casariam e (em conseqncia) seriam afastadas do pecado.16 Por isso, continua Coates,
as rfs anglo-americanas desfrutavam de uma liberdade de escolha relativamente ampla
em relao s rfs luso-brasileiras. Estes caminhos separados levaram a uma tendncia
de individualismo positivo na literatura anglo-americana e, inversamente, a uma
tendncia de coletivismo negativo na literatura luso-brasileira.
Portanto, os interesses da Igreja e do Estado em Portugal, durante o perodo
colonial, combinaram-se para impor aos rfos luso-brasileiros uma existncia
inspirada nas lutas e sofrimentos do coletivismo negativo em oposio s esperanas,
sonhos e individualismo positivo de suas contrapartes, os anglo-americanos. A reao
dos rfos luso-brasileiros Coroa, ou melhor, ao rei portugus, foi muito diferente,
sugerindo seu coletivismo negativo. Coates explica que muitos rfos luso-brasileiros
finalmente se revoltaram e fugiram, o que ficou evidenciado pela sua adeso s
fileiras quilombolas, ou escravos fugidos. Entretanto, nesta poca de migrao, de
15 Veja Timothy J. Coates, Convicts and Orphans, Forced and State-Sponsored: Colonizers in the Portuguese Empire, 1550-1755 (Stanford: Stanford University Press, 2002), 130.
16 Veja tambm Coates, 142.
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revolues e de independncias, os rfos anglo-americanos e luso-brasileiros
experimentaram influncias muito alm da esfera da religio.
No livro Outline of American Literature (2007), Kathryn VanSpanckeren descreve
como, na transio do colonialismo ao republicanismo, rfos dos Estados Unidos, e
conseqentemente os rfos de rua deles derivados, existiram dentro da realidade
singular da democracia um sinnimo de capitalismo nos Estados Unidos17. Seus
descendentes eram definidos pelo esprito de igualdade e total liberdade de escolha,
seguindo principalmente as novas crenas da poca. Acrescentando agora novos termos
econmicos, VanSpanckeren declara:
Embora os puritanos no pudessem saber, em termos
estritamente teolgicos, se estavam salvos e constavam entre
os eleitos ao Reino dos Cus, tendiam a achar que o sucesso
terreno era um sinal do favor divino, de que seriam os
escolhidos. A almejada riqueza e o status eram bem-vindos como
garantia e reafirmao da promessa espiritual de vida eterna. (15)
Em Bandeirantes and Pioneers (1964), Vianna Moog afirma que, naquele mesmo
perodo, os descendentes de rfos luso-brasileiros encaravam tambm o capitalismo
democrtico. Moog afirma que o caso luso-brasileiro era um sinnimo para o socialismo
democrtico no Brasil, em oposio ao liberalismo democrtico nos Estados Unidos.18
Por esta razo, os rfos (ou entre eles os mozambos, ou os descendentes como
geralmente eram chamados) eram definidos pelo esprito da lamentao, da culpa e do
desajustamento, herdado principalmente do Barroco. Moog faz referncia a Aleijadinho,
o famoso artista rfo brasileiro do perodo colonial, que tipifica a poca. Era filho de pai
portugus e de uma escrava africana. Para muitos, ele representa a dor dos filhos
desgarrados e ilegtimos da elite portuguesa com seus escravos. Dado que muitos eram
perseguidos, marginalizados e sofriam discriminao, os rfos de rua reuniam-se com
freqncia em rebelies internas, incluindo Balaiada (Provncia do Maranho, 1838-
17 Kathryn VanSpanckeren, Outline of American Literature (Washington D.C.: US Information Agency, 1994).
18 Veja Clodomir Vianna Moog, Bandeirantes and Pioneers (New York: G. Braziller, 1964).
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1841), Cabanagem (ento Provncia do Gro-Par, 1835-1840) e Farroupilhas (Provncia
de So Pedro do Rio Grande do Sul, 1835-1845).19
Em As caractersticas do povo brasileiro (1960), Jos Honrio sugere que os
personagens de rfos brasileiros so os herdeiros da indisciplina, da ociosidade e da
preguia do povo portugus, o qual nunca deu crdito ou importncia aos brasileiros.20
Para Honrio, Portugal no acreditava que houvesse algo de valioso no Brasil que
pudesse garantir o desenvolvimento do pas (isto , ouro, minerais ou matrias-primas
para o aumento da riqueza de Portugal). Mesmo aps a famlia real portuguesa ter fugido
para o Novo Mundo, depois da invaso de Portugal pelas foras francesas e espanholas,
em 1807, os portugueses nunca tentaram desenvolver o Brasil em temos de progresso
para o povo, mas apenas para tomar e usar os recursos para a sua prpria satisfao e
lucro. Por esta razo, Honrio diz que o Brasil desenvolveu subgrupos, filhos e filhas
eternamente abandonados, crescendo desajustados ao meio ambiente o qual ainda hoje
permanece inspito, sem leis pblicas ou privadas eficazes, fato que ocorre tanto em
zonas rurais quanto em reas urbanas, com a conseqncia de que essas regies garantem
a continuidade das mesmas circunstncias nas quais as caractersticas negativas desses
personagens brasileiros so recriadas. No entanto, Honrio afirma que, no que diz
respeito herana do personagem brasileiro como um todo, h muito que refletir nas
qualidades boas ou ms , a depender de como o povo brasileiro e o povo portugus
so tratados na literatura.
Em contrapartida, em Orphan Trains: Placing Out in Amrica (1992), Marilyn Irvin
Holt diz que os rfos anglo-americanos eram enviados do Leste dos Estados Unidos
para o Oeste por vrias organizaes e instituies, incluindo o governo. Holt assevera
que essas organizaes anglo-americanas seguiam programas polticos e tentavam salvar
crianas por meio da Childrens Aid Societies, colocando-as em localidades rurais e
urbanas onde elas aprendiam a arar, a semear e a limpar os campos para a plantao.
Aprendiam tambm os meandros das fbricas, da carpintaria e os ofcios de ferreiro e de
19 Em 1808: como uma rainha louca, um prncipe medroso, e uma corte corrupta enganaram apoleo e mudaram a histria de Portugal e do Brasil 2007 (So Paulo: Editora Planeta, 2007), Laurentino Gomes capta algo do esprito dos mozambos ou creoles, descendentes de brancos portugueses, especialmente aps a chegada de D. Joo e a famlia real ao Brasil.
20 Veja Jos Honrio, As caractersticas do povo brasileiro, Journal of Inter-American Studies 2.4 (1960): 355-76.
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sapateiro. Assim, Holt sugere que, em termos de disponibilidade de oportunidades na
evoluo do tratamento de rfos, os rfos anglo-americanos tinham, em termos
geopolticos, uma vantagem sobre muitos outros rfos no mundo (isto , os luso-
brasileiros).
Seguindo a pista desta anlise literria de rfos de rua, este trabalho investiga dois
caminhos especficos que permeam essas imitaes de individualismo e coletivismo, de
modo a averiguar as diferenas entre os rfos de rua no-violentos e rfos de rua
violentos nas literaturas anglo-americana e luso-brasileira. Os personagens no-violentos,
ou aqueles tpicos da literatura anglo-americana, tendem a ser motivados pela liberdade
de escolha, programas de reabilitao e incluso social. Os personagens violentos, ou
aqueles tpicos da literatura luso-brasileira, tendem falta de liberdade, demonstram
indiferena autoridade e so afetados pelo estresse resultante das convulses sociais.
Deste modo, tanto os autores anglo-americanos como os autores luso-brasileiros
inclinam-se para a parcialidade; tentando chamar a ateno para as injustias,
freqentemente acrescentam uma boa dose de fico a fatos histricos.
O Arcabouo Terico
Com o propsito de criar um contexto literrio para tal fundamentao terica, este
mdulo utiliza alguns dos conceitos de Ren Girard de forma a analisar uma seleo de
textos literrios anglo-americanos e luso-brasileiros. A obra de Girard sobre violncia
fornece um arcabouo terico que permite uma comparao de violncia e no-violncia
em diferentes perodos literrios.
Os principais conceitos, teis para a compreenso dos personagens rfos de rua nas
literaturas anglo-americana e luso-brasileira, podem estar relacionados s idias de Girard
sobre mediaes internas e mediaes externas. A seo seguinte explica a importncia
da obra de Girard sobre a mimese, que podemos nos remeter aos casos de individualismo
positivo e coletivismo negativo.21
Em Deceit, Desire and the ovel: Self and Other in Literary Structure (1961), Ren
Girard declara que a mimese indica a mediao do desejo humano de acordo com o que 21 Veja Marilyn Irvin Holt, Orphan Trains: Placing Out in America (Lincoln: University of Nebraska Press, 1992).
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considerado sagrado por uma determinada cultura. A mimese significa o desejo que
Girard aplica a partir da perspectiva do eu, ou do coletivo, em relao ao(s) outro(s), ou
protagonistas versus antagonistas, atravs dos seus modelos. Entretanto, Girard explica
que essas variveis criam iluses simples e complexas que simbolizam alguns dos
comportamentos humanos que ele chama de desejos triangulares, atuando na fico
como se fosse na realidade. Assim, Girard diz que qualquer um pode estudar as inter-
relaes humanas na literatura como exemplos de mimese, mediaes ou iluses.
De acordo com Girard, as mediaes geralmente se revelam como padres de
comportamento individuais ou coletivos atribudos queles que, conforme a perspectiva
de uma pessoa ou de um grupo e de acordo com leis, crenas e costumes da poca e do
lugar em que se espelha, sejam considerados heris ou, inversamente, rivais. No entanto,
o ditado popular cada qual no seu cada qual se aplica a este contexto; o que bom para
um no necessarialmente bom para o outro.
Mediaes, portanto, so desejos competindo entre si. Ou seja, em um mundo de
igualdades e diferenas, de comparaes e de contrastes, de possibilidades e
impossibilidades, as mediaes individuais e coletivas tendem a ser ou no-violentas ou
violentas, a depender de certas situaes abstratas ou conflitos de interesse a favor ou
contra um objeto, que ocorre na metafsica ou estados de transcendncia.
As Mediaes ou os Estados de Transcendncia
Girard descreve trs situaes diferentes nos estados de transcendncia: na primeira
situao, um objeto nico relacionado a um outro objeto que funciona como modelo, e
que , por isso, considerado mais importante, ideal ou vivel; a segunda situao ocorre
quando dois sujeitos relacionam-se a um nico objeto, que funciona como um outro
modelo nico; e uma terceira situao surge quando dois sujeitos relacionam-se a um
nico objeto mas com dois ou mais outros modelos. Portanto, os personagens se
descobrem em situaes implcitas como aquelas, por exemplo, de no-violncia ou
violncia.
Para Girard, as diferentes situaes contendo no-violncia ou violncia so
compostas de um agente, ou desejo ativo pelo sujeito, um desejo passivo pelo objeto e
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um desejo mediador pelo modelo. As estruturas internas so intersubjetivas. Elas podem
se revelar misteriosas, transparentes ou opacas. Estes mecanismos ou desejos permitem
estrutura do pensamento assumir uma realidade lcida.
Girard diz que no logos que as lgicas dos desejos so lcidas, bem como os
desejos que se desenvolvem sistematicamente at o ponto de fazer sentido. Deste modo,
Girard sugere que a combinao de sujeito, objeto e modelo constri o desejo final, ou o
desejo mimtico em metafsica, ou estados de transcendncia que podem ser imitativos
ou emulativos.22
Desejos imitativos ou emulativos podem ser construdos com mediaes no-
violentas ou violentas ocorrendo simultaneamente alm dos limites da arte na experincia
concreta. Girard afirma que o valor das experincias mimticas intuitivas, por exemplo,
dependem de serem feitas pela heurstica, como regra de ouro, ou pela hermenutica,
que a interpretao de qualquer texto literrio.23
Girard tambm diz que aqueles textos podem ser interpretados com a ajuda de
narradores, personagens e autores que geralmente revelam como situaes ou a
linguagem de desejos desempenham momentos importantes de mediao, como no caso
de desejos transfigurados, ou a metamorfose de desejos. Os desejos transfigurados
indicam que, no momento de uma mediao especfica, o rumo da realidade do desejo
perdido, suspenso e paralisado na histria. Isto ocorre quando a realidade e a fico se
encontram por verossimilhana em perodos diferentes na literatura.
Girard usa o desejo transfigurado para descrever os momentos de verossimilhana
como aqueles interpretados com a ajuda do narrador de Don Quixote (o personagem) e
por Miguel de Cervantes (o autor). O narrador fala sobre o cavaleiro criado pelo autor e a
mediao do forte desejo, ainda que imaginrio, do personagem, que neste caso
projetado em Amadis de Gaulle, seu modelo sagrado, que vem a ser uma lenda, ou no
necessariamente real.
Girard continua, dizendo que aqueles desejos mimticos so sempre transfigurados
conforme as figuras de linguagem e/ou pensamentos que o autor crie em seus romances.
22 Veja Paisley Livingston, Models of Desire and the Psychology of Mimesis (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1992).
23 Veja Ren Girard, Deceit, Desire, and the ovel: Self and Other in Literary Structure (Baltimore: Johns Hopkins Press, 1961).
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Por exemplo, os desejos mimticos so projees, lembranas, dissimulaes,
identificaes, fantasias e algumas outras combinaes de um sujeito em relao ao
outro. Por isso, os desejos so reflexos de uma aparncia do modelo, gestos ou
vestimentas, que podem vir de eventos acreditados ou imaginados em romances como
metforas, metonmia, sindoque, ironia e assim por diante.
Girard tambm explica que eventos aceitos como verdadeiros ou imaginados so
como memrias. Eles so experenciados por meio de um desejo mediado dentro de uma
hierarquia de desejos. Girard usa o termo Romanesco de modo a tratar os personagens
de uma perspectiva do mundo circundante. Aqueles personagens que controlam outros
tm desejos superiores. Eles so heris ou rivais, definidos por suas aes e relaes com
outros, no pelo seu individualismo, que era caracterstica do Romantismo.
Os desejos romanescos (individualistas ou coletivistas) dependem ento da inter-
relao entre o sujeito e o objeto, por meio do modelo. Estes desejos mimticos tambm
produzem imitaes e emulaes, ou simples impulsos, dependendo de um personagem
desejar ser igual ou superior ao outro. A imitao acontece quando um sujeito imita um
modelo sem no entanto se esforar para lhe ser superior. A emulao ocorre quando o
sujeito deseja a superioridade, abrindo, ento, a possibilidade de coliso, na forma de
conflitos de interesse em funo do mesmo objeto. Portanto, Girard diz que os desejos
romanescos seguem uma hierarquia baseada em tipos, nveis e graus de conflitos de
interesse entre indivduos.
Girard explica, assim, que os conflitos de interesse so as distncias de desejos que
entram em contato, como aqueles apresentados por El ingenioso hidalgo don Quixote de
la Mancha (1605)24, de Miguel de Cervantes Saavedra. Don Quixote o sujeito na
relao com o nobre e corajoso cavaleiro, ou o objeto de seu desejo, mediado pelo
modelo Amadis. Os trs combinam criar o ltimo desejo, ou o desejo mimtico de Don
Quixote pelas qualidades do seu modelo, como um desejo pela virtude da nobreza. Em
imitao a Amadis, Don Quixote deseja ser um nobre, por isso busca possuir as mesmas
qualidades de um cavaleiro. Girard chama a ateno para o fato de que Don Quixote no
compete pelo mesmo objeto do seu modelo. Ele imita-o ao invs de emul-lo. A imitao
indica, ento, um desejo de ser igual, ao passo que a emulao indica um desejo de ser 24 Veja Miguel de Cervantes Saavedra, El ingenioso hidalgo don Quixote de la Mancha (Madrid: Juan de La Cuesta, 1605).
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superior ou de suplantar um modelo, conforme algumas hierarquias ou variveis em
literatura.
Relacionando desejo a mimese, Girard lembra que a imitao gera impulsos em favor
de certas qualidades (i.e, ou virtudes ou vcios, por oposio), como no caso da nobreza
de Don Quixote. O tempo, o espao e o prestgio do sujeito em relao quele do heri
no requer competio entre os dois. Don Quixote e Amadis pertencem a tempos
diferentes. Amadis uma lenda criada em um reino abstrato, o que evita que ele venha a
colidir com Don Quixote no sentido de desejar um mesmo objeto.
Girard explica que aqueles desejos mimticos podem ser comparados em um s
romance ou em romances distintos, de modo que um desejo serve a tcnicas literrias de
um outro, congelado no tempo e no espao. Isto se d porque os desejos mimticos so
complicados pela suas interpretaes. Girard explica que os desejos inter-relacionados
so compartilhados por protagonistas e antagonistas. Assim, os desejos mimticos
subtraem e/ou so multiplicados para criar subdesejos, como no caso de desejos inter-
relacionados em uma coleo de obras.
Por exemplo, Girard afirma que o desejo de Don Quixote pode ser comparado ao
desejo de Madame Bovary: mouers de province (1857),25 de Gustave Flaubert. Don
Quixote apaixonado pela nobreza e Madame Bovary, ou Emma, apaixonada pelos
heris e heronas literrios de seu tempo. Ento, no sentido de Girard, os desejos de Don
Quixote e de Emma aparentemente so iguais. No entanto, h outras consideraes com
respeito distncia que os separa. Por isso, Girard afirma que os desejos de Don Quixote
so mais ilusrios do que os desejos de Emma e, portanto, esto mais distantes na
metafsica, de acordo com o eu respectivo em relao ao outro.
Girard explica que o eu a perspectiva de um desejo individualista do sujeito. Um
sujeito age em funo das distncias dos conflitos de interesse mediados. De maneira
semelhante, um desejo coletivista depende tambm das distncias dos conflitos de
interesse mediados. Girard postula que embora o eu e o coletivo possam agir
permutavelmente, existe uma forte tendncia dominante.
A mediao, ento, uma posio (de desejos) superior individualista ou coletivista.
Entretanto, isto significa que um eu e/ou um coletivo assumem, em algum ponto, duas
25 Veja Gustave Flaubert, Madame Bovary: mouers de province (Paris: Charpentier, 1857).
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dimenses aparentemente iguais. Portanto, o eu aquele do individualismo positivo, por
exemplo, via mediao externa, onde choques de conflitos de interesse ocorrem em
direo ao mesmo objeto, o que Girard sugere como sendo um exemplo de projeo.
Ento, a teoria de Girard fornece um arcabouo terico para as diferenas entre
representaes individuais e coletivas, como aquelas encontradas em fices sobre rfos
de rua. No caso de um duplo vnculo, diz Girard, os conflitos de interesse acontecem em
direo ao mesmo objeto, via mediao interna, produzindo coletivismo negativo. Isto
no quer dizer que nem os desejos individualistas nem os desejos coletivistas sejam
mutualmente externos ou internos, exclusivos, ou que qualquer um dos dois seja
permanentemente positivo ou negativo naquelas ordens respectivas. Porm, os desejos
podem ser dispostos aqui como individualismo positivo e coletivismo negativo em um
determinado ponto apenas para efeito de comparao literria.
Um exemplo de semelhante desejo positivo e individualista pode ser observado em
Don Quixote e Sancho Pana, ambos pertencendo a um grupo de cavaleiros. Don Quixote
age segundo a perspectiva do eu porque ele v o mundo a partir do seu prprio ser. Ele
quer conquistar o amor de Dulcinia em nome da honra da nobreza. Por outro lado,
Sancho Pana pretende conquistar o seu amor com uma ilha bem estocada de alimentos.
Como Don Quixote, Sancho age a partir de uma perspectiva do eu porque ele tambm v
o mundo a partir do seu prprio ser, embora os dois eus pertenam ao mesmo grupo.
Ora, se Don Quixote e Sancho Pana agem em conjunto em busca do mesmo
objetivo, ou seus amantes fazem o mesmo (portanto com os mesmos ideais dentro de um
grupo), ou lutam pelo mesmo objetivo, ento, ao invs de um desejo vindo de um eu
somente, h uma coletividade que depende de outros princpios.
Girard salienta ainda que, dentro deste coletivo especfico, um sujeito entra em
conflito com o outro sujeito, ocupando um nico lugar (pois o objeto nico),
permitindo, assim, um vencedor e um perdedor Os Homens se Transformam em
Deuses aos olhos uns dos outros (Deceit, Desire and the ovel 53). Por isso, afirma
Girard, a histria sobre se terminam ou no como amigos ou inimigos por conta da
competio pelo amor (ou o nobre cavaleiro andante) no foi revelada por Cervantes.
Em termos de intelecto e de posio social, Girard sugere que Don Quixote e Sancho
Pana esto em nveis diferentes. Don Quixote detm uma vantagem sobre Sancho Pana
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porque ele o mestre e, portanto, tem mais atributos. Don Quixote o lder e mais
nobre do que Sancho Pana. Isto no quer dizer, porm, que seus conflitos de interesse
existam somente em uma dimenso individual ou coletiva. Novos desejos esto sempre
emergindo.
A perspectiva de mltiplos desejos de Girard (ou o que ele chama de uma cadeia de
desejos) trata, basicamente, de como autores de romances modernos determinam o
individualismo e o coletivismo de desejos humanos. Historicamente, Girard usa Stendhal
e Dostoivski como exemplos do mesmo processo. Para Girard, o grupo de romances de
Stendhal segue geralmente uma trilha individualista, como em Cervantes, ao passo que o
grupo de romances de Dostoivski tende a contribuir para um caminho coletivista, caso
se faa um estudo sincrnico sobre eles.
Assim, de acordo com Girard, os romancistas constroem uma arte que combina
desejos em torno de sujeitos em relao aos seus outros (Deiceit, Desire and the ovel
94). Conseqentemente, este mdulo usa os mesmos conceitos de Girard, aplicando-os
nas literaturas anglo-americana e luso-brasileira.
Finalmente, um eu e um coletivo podem tambm agir no-violentamente e
violentamente dentro dessas dimenses individualistas e coletivistas, dependendo dos
desejos dos personagens, narradores e autores. Portanto, Girard sustenta que a ateno do
leitor necessria, de modo a captar as sutilezas do eu e os desejos coletivos. Isto porque
tudo depende da perspectiva do mestre-modelo e do escravo-modelo (Deceit, Desire
and the ovel 99).
A Crise Sacrificial
Estes padres romanescos, por sua vez, so a forma de expresso do mito do
sacrifcio, central no pensamento de Girard. Em Violence and the Sacred (1972), Girard
diz que desejos mimticos no-violentos e violentos so baseados em uma determinada
cultura, que pode ser verificados em rituais, por meio da crise sacrificial dentro de
qualquer grupo, considerando a perspectiva de um eu em relao ao outro (ou um
Voc, no individualismo) ou um coletivo em relao ao outro (ou Voc ou eles,
no coletivismo), tendo em mente que certas caractersticas idiossincrticas podem ser
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usadas tambm para analisar o grupo. Estas crises sacrificiais incluem caractersticas
normativas e relacionais.
Quanto s caractersticas normativas, Girard explica que os desejos mimticos de um
grupo enfatiza os valores pessoais ou individualistas, ao passo que as caractersticas
relacionais dentro de um grupo enfatizam os desejos mimticos que correspondem aos
valores interpessoais ou coletivistas. A crise sacrificial espontnea quando no est
vinculada, necessariamente, a uma cultura e imposta quando toma a forma de
interferncia, seja cultural ou de outra natureza. A crise sacrificial consciente quando os
desejos so percebidos, preocupados ou interessados, e inconsciente quando os desejos
no so percebidos, preocupados ou interessados. Finalmente, a crise sacrificial
independente quando o desejo tem liberdade de expresso e dependente quando o
desejo exerce controle sobre a liberdade.
Girard tambm diz que todas as crises sacrificiais podem acontecer, seja em culturas
predominantemente individualistas (como descreveremos em cultura anglo-americana),
ou em culturas predominantemente coletivistas (como descreveremos em cultura luso-
brasileira). Ele revela ainda que os desejos individualistas expressam uma tendncia ao
sucesso, ou melhor, a uma valorizao da auto-realizao na formao de auto-
identidades. Portanto, o sucesso realizado pelos indivduos bem como pelos grupos,
desde que as relaes pessoais e interpessoais tenham o mesmo valor.
No entanto, Girard afirma que mesmo quando uma pessoa conduzida pelo desejo
individualista, ele ou ela podem se identificar como membro de mltiplos grupos; estes
grupos no significam filiao incondicional. Os grupos so organizaes impositivas e
restritivas, e quem pensa de modo independente sentendetmenteo eu arualculguraou
meso. penas os aspectos sociais bsicos.
Em termos de desejo coletivista, Girard aponta para a crise sacrificial diante da
cooperao e obedincia. Ele explica que um grupo mais que uma coleo de
indivduos. Os membros devem manter fortes laos entre si, compartilhando interesses
semelhantes. No desejvel que haja conflito dentro de um grupo. Conseqentemente,
cada pessoa avaliada como um fim em si mesma. Os sujeitos agem dentro do contexto e
em relao ao(s) outro(s), compartilhando um sentimento de presena coletivo.
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Assim, Girard afirma que o xito ou o fracasso na crise sacrificial podem ser
atribudos seja ao individualismo, baseado em modos culturais como segurana, por
exemplo (isto , busca por famlia, trabalho e amigos, assunto que veremos adiante), seja
a subdesejos como prazer, realizao e competio (ou aqueles com conotaes
negativas, a depender do contexto). Mas o xito ou o fracasso podem ser atribudos
tambm ao coletivismo, do mesmo modo que este se baseia em segurana e outros
subdesejos, mas cedendo em termos de obedincia, dever e harmonia em nome do grupo
(ou de novo, em direes opostas, se for o caso). Este trabalho opta por investigar,
especificamente, um modo individualista baseado no xito e um modo coletivista baseado
no fracasso, para entender, por oposio, a dinmica dessas culturas.
O Mecanismo da Vtima Expiatria
Com base no pensamento ocidental, Girard argumenta, em The Scapegoat (1986), que
sempre existiro outros desejos indo e vindo alm do domnio das auto-identidades e
identidades coletivas. Ele usa o mecanismo do bode expiatrio como uma metfora que
busca atribuir a algum a culpa por todos os infortnios, geralmente como um meio de
distrair a ateno de causas reais. O bode expiatrio pode ento ser vinculado aos desejos
mimticos e crises sacrificiais, devido s condies sob as quais os desejos se valem das
lacunas (espirituais ou materiais) das leis da sociedade, por exemplo as leis de
interditos26. Girard afirma que o bode expiatrio algum ou algo sutil, distrado e
julgado de maneira injusta e incorreta. Exemplos so os negros, judeus, imigrantes,
bruxas e lderes que obtiveram, de um modo ou de outro, certo prestgio ou reputao e
contra os quais as leis de proibio ou excluso so aplicadas e justificadas por meio da
elevao dos seus pecados e erros.
Para Girard, os rfos so um tipo especial de bode expiatrio, pois se originam,
historicamente, do homo sacer, ou homem sagrado ou amaldioado.27 O dipo Rei, de
26 Veja Ren Girard, Things Hidden Since the Foundation of the World, trad. Stephen Baan e Michael Metteer (Stanford: Stanford University Press, 1987 primeira edio 1985).
27 Veja Ren Girard, Oedipus Unbound: Selected Writings on Rivalry and Desire. Ed. Mark R. Anspach (Stanford: Stanford University Press, 2004 primeira edio 1985).
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Sfocles, mostra como os desejos mimticos resultam em uma crise sacrificial,
apaziguada, apenas, pela construo do mecanismo do bode expiatrio, que traz de volta
os desejos individualistas e coletivistas mimese como mediaes e iluses. Como
exemplo disto, Girard menciona o pharmakus, ou o ritual cultural atravs do qual os
rfos eram expulsos da sociedade na Grcia antiga. A injustia foi (e ainda ) ento
cometida baseada em ideais falsos. dipo cometeu os crimes de incesto e de homicdio
porque no sabia que seu pai era o rei. Conseqentemente, dipo caracterizou a noo
desencaminhada de desejos ocultos da sociedade, construda pelas antigas geraes e
passadas adiante como preceitos e leis forjados para as futuras geraes.
Girard tambm nos lembra que em um universo sempre-varivel de bodes
expiatrios, como os rfos ao redor do mundo, h momentos especficos aliados a mitos
culturais. Estes momentos incluem a mimese de apropriao, aquisio, prtica e
renncia. A mimese de apropriao o momento de transcendncia, quando um
personagem se espelha no seu modelo, heri ou rival, necessitando do desejo sem saber
se o que disto se origina verdade ou falsidade, se pureza ou erro. Os mais simples
desejos tornam-se aspiraes, embora a felicidade no esteja necessariamente includa na
equao.
A mimese de aquisio, por sua vez, acontece quando o desejo mimtico se
transforma em um desejo do prprio personagem. As mimeses de prtica ou de renncia
so os desejos mimticos caracterizados por uma diminuio do desejo do personagem e
a transferncia ou passagem para outro desejo a ser imitado. A prtica significa aes, ao
passo que a renncia indica uma mudana de composio, de atividade e de funo da
prtica em outras. Girard explica, ento, que, dentro do mecanismo do bode expiatrio, os
personagems mimticos podem agir ainda em conformidade, adversidade, obedincia e
contradio, entre outras nuances que compem as tendncia ao individualismo positivo e
ao coletivismo negativo que so explorados neste trabalho.
As nuances do pensamento de Girard reforaro nossa tese de que os desejos dos
personagens dos rfos de rua ou so no-violentos ou so violentos, conforme o
contexto cultural dos textos literrios selecionados. Na conformidade, por exemplo, um
personagem concorda com as leis da sociedade e as segue (como em um bando de rfos)
em um determinado perodo de literatura. Na adversidade, o personagem passa a no
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concordar com as leis, embora continue a respeit-las (como em uma mob de rfos). Na
obedincia, o personagem completa suas tarefas enquanto acrescenta outras (seja contra
ou a favor da sociedade). Finalmente, na contradio, um personagem se ope
sociedade, criando, assim, as condies e os meios para suas prprias leis (como nas
gangues de rfos), mudando talvez o curso da histria literria.
No final das contas, os desejos mimticos, a crise sacrificial e o mecanismo do bode
expiatrio so momentos de metafsica, ou estados de transcendncia. Girard mostra
como e por que os autores criam mimeses, mediaes ou iluses nas quais os
personagens interagem dentro do contexto das minorias ou literaturas diversas. Eles
interagem na literatura de minorias no sentido de cultivar uma subcultura, mencionando
temas cruzados (isto , exlio, abandono, proibio e excluso). Interagem na literatura
diversa no sentido de que existem outras questes embutidas que podem ocorrer (isto ,
raa, gnero, ascenso social e etnia). Por isso, para cada cultura existem tendncias
(positivas ou negativas) para identidades coletivas ou auto-identidades que ressaem em
alguns pontos na histria literria mais que as outras. Este trabalho busca investigar
principalmente os personagens rfos de rua nas literaturas anglo-americana e luso-
brasileira.
O Arcabouo Prtico
Os personagens rfos de rua agem em individualismo positivo por meio de mediao
externa, ou nas palavras de Ren Girard, pois imitam as qualidades ou virtudes dos seus
modelos, como lemos em The Adventures of Oliver Twist (1838), de Charles Dickens,
Ragged Dick, or, Street Life in ew York with the Bootblacks (1886), de Horatio Alger,
The Beggars Ride (1992), de Theresa Nelson, e Flight (2007), de Sherman Alexie.
Estes romances so escritos, basicamente, em torno de um nico personagem. A
autoperspectiva de um rfo enfatizada em relao ao outro, ou grupos dentro da
sociedade, como famlia, colegas de trabalho ou amigos. Conseqentemente, rfos de
rua individualistas so tomados pelo desejo de imitar quem eles admiram, idolatram ou
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simpatizam nas suas lutas para sobreviver nas ruas, enquanto em estado de abandono e
excluso.
De modo oposto, personagens rfos de rua agem em coletivismo negativo atravs de
mediao interna, ou ainda nas palavras de Girard, quando emulam as qualidades, ou
vcios dos seus modelos, como lemos em Capites da Areia (1937), de Jorge Amado,
Esteiros (1941), de Soeiro Pereira Gomes, Pixote: infncia dos mortos (1977), de Jos
Louzeiro, e Cidade de Deus (2002), de Paulo Lins.
Estes romances so intitulados e principalmente escritos a partir de mltiplos pontos
de vista do personagem. Os desejos compartilhados so enfatizados em relao ao outro,
ou sociedade. Nestas obras, os rfos de rua coletivistas so tomados por um desejo de
superioridade, emulando quem eles no gostam, a quem odeiam ou de quem discordam,
na sua luta para sobreviver nas ruas, tambm em estado de abandono.
A anlise que segue separa os romances de cada tradio, de modo a estabelecer as
tendncias ou direes de desejos individualistas positivos e coletivistas negativos. Cada
romance pertence a um perodo literrio distinto a partir do Realismo ingls e
americano e a partir do Realismo portugus e brasileiro, focalizando, portanto, os sculos
XIX, XX e XXI.
Este trabalho tambm introduz outros romances de maneira a apresentar outras
possibilidades dentro desta nova linha de pesquisa. No obstante, a anlise deve
permanecer limitada de modo a manter o foco em uma base selecionada, demonstrando
as tendncias do individualismo positivo e do coletivismo negativo por toda a histria
literria, sincronicamente.
Um Ponto de partida: The Adventures of Oliver Twist (1838)
No seu romance ambientado na Londres do incio do sculo XIX, Charles Dickens
cria o desejo do eu de Oliver em relao ao outro, o bando representado pelos
trombadinhas, ou batedores de carteira. Oliver pertence ao bando de rfos de rua que
inclui Nancy, Dodger e Bates, entre outros. Oliver vive com eles porque necessita de
segurana em termos de abrigo, de um lar ou de uma famlia.
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No entanto, Oliver no age como seus companheiros. Por exemplo, ele no rouba,
como visto na seguinte passagem: Ele vai pensar que os roubei. Oh! Tenham pena de
mim e devolva-lhe o dinheiro e os livros (92).28 Por isso, Oliver deseja outro tipo de
grupo no qual perceba segurana completa, o que demonstra sua no-violncia.
Esta perspectiva de no-violncia se mantm centrada nos desejos pessoais de Oliver
como um rfo de rua que precisa de segurana dentro de uma famlia crist idealizada.
Oliver percebe que Dodger, Bates e os outros no so a famlia dos seus sonhos, nem o
so um asilo de mendicidade ou uma famlia adotiva. Ao longo do romance, as Sras.
Bedwin, o Sr. Brownlow e Rose se tornam os modelos sagrados do supremo desejo de
Oliver.
Por sua vez, Oliver age em oposio aos rfos de rua Dodger e Bates, e em
conformidade com a Sra. Bedwin, o Sr. Brownlow, a Sra. Maylie e Rose. A admirao de
Oliver por eles, por exemplo, indica seu desejo de imitar as suas caractersticas
tipicamente protestantes para algum propsito maior, ao ponto de criar auto-identidades
que desenvolvem sua personalidade, ou traos dela, no romance.
Assim, Oliver age em individualismo positivo, que serve para justificar o mito de que,
se houver esforo, pode-se obter sucesso conscientemente, independentemente e
espontaneamente, acabando em final feliz na literatura anglo-americana. Oliver obtm
sucesso devido ao seu comportamento no-violento. Ele demonstra seu desejo por no-
violncia ao imitar certas qualidades, ou virtudes, de seus heris. Por exemplo, Dickens
escreve: Oliver voltou-se para o travesseiro e rezou fervorosamente (94). Aqui Oliver
imita os gestos pios da Sra. Bedwin, rogando a Deus o restabelecimento do seu bem-
estar. A devoo dele confirmada na passagem: Pouco depois, a velha deu-lhe boa-
noite carinhosamente, trazendo-lhe um livro de oraes (94).
A imitao de no-violncia de Oliver continua quando ele d suas roupas a uma
criada, que tratara dele com muito desvelo, dizendo-lhe que as vendesse a um judeu e
ficasse com o dinheiro (110). Oliver imita, assim, a generosidade do Sr. Brownlow, que
tranqiliza o rapaz: No tema! Voc no ser autor enquanto puder aprender um ofcio
honrado, nem que seja fazer azulejos (111).
28 Veja Charles Dickens, The Adventures of Oliver Twist (New York: Heritage Press, 1939 primeira edio 1838).
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Nas passagens seguintes, Oliver imita outros momentos no-violentos, mimetizando
as atitudes benevolentes da Sra. Maylie e Rose: Oliver passeava com a Sra. Maylie e
Rosa, e ouvia-as a conversar sobre livros; s vezes sentava-se junto delas em algum lugar
sombra onde a jovem fazia alguma leitura, e ficava de boa vontade a escut-la at que a
noite viesse e no permitisse mais distinguir as letras. (254). A reverncia que Oliver
tem por elas quase religiosa.
A prpria benevolncia crist de Oliver no tanto confirmada quanto sugerida,
refletindo os valores ingleses que Dickens apreciava.
Com a mais pura, a mais amvel generosidade, de um lado, e o reconhecimento mais sincero, mais vivo, mais sentido, do outro, no de admirar que, ao fim desse curto espao de tempo, Oliver privasse da mais completa intimidade da velha senhora e de sua sobrinha, e que o fervoroso afeto que lhes devotara o seu juvenil e sensvel corao fosse para elas um motivo de orgulho e uma causa para o estimarem mais ainda, recompensando-o (255).
Finalmente, estes exemplos ilustram o desejo no-violento de Oliver por devoo,
pelo envolvimento social e pela aceitao por parte dos heris que ele imita. As
qualidades e os heris formam, em conjunto, algumas das variveis do seu
individualismo positivo atravs de suas auto-identidades, as quais podem ser analisadas
mais detalhadamente se nos detivssemos s causas e s consequncias desse
comportamento, ou desejos mmeticos.
Um degrau da escada: Ragged Dick (1868)
Em Ragged Dick, or, Street Life in ew York with the Bootblacks, o escritor realista
americano Horatio Alger ambienta seu principal personagem de rfo de rua, Ragged
Dick, na Nova Iorque do perodo que antecedeu a Guerra Civil. Ragged Dick, Johnny
Nolan, Nick McGuire, Henry Fosdick e outros formam um grupo de rfos de rua.
Diferentemente de Oliver, Ragged Dick vive com este grupo no porque deseja a
segurana de uma famlia mas porque deseja a segurana do emprego para ganhar o
prprio sustento, para ter uma ocupao e uma posio na sociedade. Dick deseja outro
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tipo de grupo para atingir seus objetivos. Por isso, ele se identifica com os srs. Whitney,
Greyson e Rockwell no decorrer da sua histria de sobrevivente das ruas.
Alger cria Ragged Dick segundo os dogmas do individualismo positivo. Ele mantm
uma perspectiva de no-violncia em relao aos outros. Sua turma representada por
engraxates. Esta perspectiva mantm-se centrada no desejo e imitaes de um rfo de
rua que precisa de segurana na forma de trabalho. Estas palavras expressam claramente
seu objetivo: Preciso ganhar um pouco mais (80). Alger quer que o seu personagem
Dick busque um trabalho respeitvel e lucrativo, sem o qual ele no poder escapar da
sua situao miservel. Dick deseja, assim, ser um empresrio de sucesso ou um
cavalheiro que desfruta de status, prestgio e riqueza.
Orientado no apenas para a carreira empresarial na Amrica, os desejos de Dick so
no-violentos: Ora, Dick comeou a refletir, pela primeira vez na vida, que poderia no
ter que ser engraxate pelo resto da vida. Dali a sete anos seria um homem, e desde que se
encontrou com Frank sentiu que seria como ele, um homem respeitvel (88). Dick
queria ser um cavalheiro.
Assim, Alger estabelece o desejo mimtico de Dick, ou a imitao da no-violncia
dos heris que ele v como modelos de sucesso. Por exemplo, em Dick viu uma chance
para especulao e resolve aproveit-la (16), ele imita o Sr. Whitney, um acionista
respeitado de Nova Iorque, que termina sendo um ponto de referncia para o ideal de vida
de Dick. O Sr. Whitney lhe d um conselho: Economize, meu rapaz, compre alguns
livros, seja determinado em vencer e assim poder ocupar uma posio honrosa (69). O
conselho seguido intensamente.
Igualmente, em Quero crescer, chamar a ateno. Mas no sei aonde ir (92-93),
Ragged Dick segue a liderana do Sr. Greyson, outro personagem bem-sucedido que ele
encontra. O Sr. Greyson valida uma atitude religiosa, mais clara que a de Dickens,
dizendo: Voc devia freqentar uma escola dominical... A igreja que eu freqento fica
na esquina da Quinta Avenida com a Rua 21 (92-93). Dick tambm imita um esprito
cristo atravs da iniciativa do Sr. Rockwell, que ajuda-o a conquistar uma nova carreira.
Ragged Dick diz ao Sr. Rockwell: Procurarei servi-lo to fielmente, senhor, que no se
arrepender de me ter tomado aos seus servios (166).
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Por sua vez, ocorre a seguinte cena entre Ragged Dick e outro engraxate: [Ele]
resolveu ajudar seu amigo menos afortunado [Fosdick] a galgar a escada como ele
mesmo fez (167). Portanto, Ragged Dick mostrado como desejoso de oportunidade,
respeito e credibilidade, valendo-se da no-violncia dos seus heris, aqui representados
pelos srs. Whitney, Greyson e Rockwell. Os desejos e imitaes de Dick criam suas auto-
identidades, ou caractersticas pessoais forjadas no rduo empenho, que sucesso na
literatura anglo-americana, como tambm podem ser analisadas mais a fundo, caso o
leitor crtico queira saber das causas e consequncias desses desejos mimticos, em
literatura comparada.
Um outro momento: The Beggars Ride (1992)
Em The Beggars Ride, a escritora modernista americana Theresa Nelson cria Clare
Caldwell como sua principal personagem, no romance ambientado durante o perodo
correspondente ao Movimento de Direitos Civis e a liberao das mulheres. Clare
Caldwell, Cowboy, Thimble, Little Dog e outros pertencem a um grupo de rfos de rua.
Diferentemente de Oliver Twist e Ragged Dick, Clare vive com este bando no porque
precisa da segurana de uma famlia ou de um emprego, mas porque ela precisa de amor,
na forma de ateno, afeio e amizade. Clare deseja outro tipo de grupo, de modo a
poder realizar completamente estes desejos.
Theresa Nelson cria Clare segundo os valores do individualismo positivo. Ela
sustenta a sua percepo da individualidade at dentro de um grupo de runaways, ou
fugitivos de casa. Esta perspectiva mantm o foco do desejo de Clare por no-violncia.
Assim como Oliver Twist e Ragged Dick, ela no que ficar no seu grupo de rfos de
rua, mas ao invs disso quer amor. Seu anseio por amor toma a forma de Joey Morgan,
seu ex-padastro com quem ela j vivera e a quem deseja estar ligada.
Theresa Nelson concede a Clara o desejo de uma rf de rua que busca a segurana
do amor que no recebeu em casa. Clare deseja o amor de Joey: Se os desejos fossem
cavalos, os mendigos cavalgariam. Foi o nico verso infantil que a mame lhe ensinou.
Ademais, isso realmente no importava, no ? Nada importava, contanto que
encontrasse Joey. Contanto que ele [Joey] a deixasse ficar (8). Clare exibe uma mimese
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no-violenta, imitando a imitao da virtude moral de Joey em vrios momentos do
romance.
Primeiro, Clare imita as atitudes de fuga de Joey. Mas a mame nunca mais iria v-
la. Nunca mais (4). Quando mame comeava a beber e ficava mexendo com ele sem
nenhum motivo, s procurando encrenca, mesmo assim ele ficava impassvel. No dizia
absolutamente nada. Ele ficava encarando o tubo por horas a fio e fumava um cigarro
atrs do outro, ou desaparecia completamente por vrios dias (28).
Depois, Clare imita a me como se ela fosse um personagem da televiso, quando
Nelson escreve: Calmamente, quase como se ela fosse outra pessoa, talvez uma pessoa
num filme que no tivesse nada a ver com ela (4). Isto se confirma quando Clare
simpatiza com uma leoa que ela v na televiso. Mas ento aconteceu uma coisa
estranha... Pouco a pouco o veneno foi sendo eliminado do sistema da leoa at que
finalmente ela estava bem o bastante para redescobrir o seu orgulho. E [seus filhotes]
estavam felizes de v-la (242). Clare tambm demonstra compaixo pelo seu novo
amigo rfo de rua, Cowboy, ao seguir o conselho de A. J. Morgan o pai de Joey, que
Clare encontra em Atlantic City. Ele a ajuda a levar o amigo Cowboy para o hospital
depois que este se fere em um disparo acidental. Clare admira a amabilidade e o esprito
cooperativo de A. J. Morgan, especialmente quando ele est otimista: Bem, podemos
rezar (219). Clare, portanto, segue seu exemplo, como os outros casos de desejos
mimticos diferentes, embora agora em outro momento histrico literrio.
Ainda do lado anglo-americano: Flight (2007)
Zits o principal personagem do escritor contemporneo Sherman Alexie, em seu
romance ps-moderno Flight. Zits pertence a um bando de rfos que no se adaptam a
famlias adotivas e, portanto, sempre acabam nas ruas, como fugitivos de casa. Ele se
identifica com rfos de origem americana nativa porque, fisicamente, acha-se
semelhante a eles. Zits meio nativo e meio irlands, e busca sua prpria auto-
identidade.
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Para Zits, no basta apenas ser visto como americano. Ao contrrio de Oliver Twist,
que est preocupado com o desejo de ter uma famlia, ou Ragged Dick, cujo desejo ter
um emprego, ou Clare Caldwell, que busca amor, Zits anseia por definir-se em termos de
raa, gnero e ascenso social. Ele procura uma identidade porque se considera
discriminado, marginalizado e perseguido pela sociedade. Deste modo, Alexie cria Zits a
partir de uma perspectiva do seu eu em relao ao outro, ou daqueles dentro deste grupo
de nativos.
Esta perspectiva mantm o foco nos seus desejos individuais ou pessoais em um
individualismo positivo, em uma dimenso ps-modernista. ps-moderno no sentido de
que Alexie usa Zits para construir o conceito de segurana em termos de escolher o grupo
violento ao qual algum pertence para alcanar uma inesperada no-violncia. Ele deseja
pertencer a alguma organizao, uma instituio ou atividade fora de famlias adotivas,
de maneira a encontrar-se na prpria terra. Para Zits, no basta dizer que tem um lar. Ele
quer exercer a cidadania.
Portanto, atravs do individualismo positivo, Alexie exorta a no-violncia, para que
Zits perceba a necessidade de aceitar as igualdades e as diferenas, sem revoltar-se. Zits
deve valorizar mais as virtudes do que os defeitos dos seus modelos e heris, ou daqueles
nos quais ele v a si mesmo. Os desejos mimticos de Zits ou suas imitaes de no-
violncia ocorrem quando ele se transforma em seus heris e rivais ou seus modelos e
precisa encarar suas virtudes e defeitos. Por exemplo, ele se transforma no agente do
FBI, Hank, que lhe faz lembrar outro amigo policial, Dave.
No entanto, Zits adota caractersticas muito diferentes daquelas dos seus amigos e
acaba por ter que encarar grandes desafios. No posso fazer isto. De alguma forma,
parece pior atirar em um morto do que em uma pessoa viva (73). E discursa, na
convico de que: Para lutar contra o mal, s vezes preciso fazer coisas ms.
Quando Zits passa a ser filho do lendrio americano nativo Cavalo Louco, ele
tomado pelo sentimento de remorso por querer que a sua raa indgena prevalea sobre os
brancos no curso da histria. Zits se pergunta: Eu quis vingana? Culpei estes estranhos
por minha solido? (77). Este remorso reiterado mais tarde quando ele se transforma
em um batedor nativo chamado Gus e diz a si mesmo: Esta [tristeza] pertence a Gus e a
sua aflio e a sua raiva so enormes, por isso a minha aflio e a minha raiva so
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enormes tambm, enquanto grito frente de centenas de soldados, guiando-os
diretamente ao acampamento ndio l embaixo.
J transformado no piloto Jimmy, Zits busca justificativas para suas traies contra si
e contra outros. Jimmy voa sozinho no seu avio. Estou com ele. Penso nas pessoas que
tra. Penso nas pessoas que me traram. No entanto, somos pessoas... e estamos caindo.
Fecho os olhos e rezo. Jimmy fica o tempo todo em silncio durante a queda (130).
Assim, Zits confronta sua prpria violncia atravs dos atos violentos dos
personagens nos quais se transforma durante a histria. Ao assumir estes papis e encarar
grandes desafios, remorso e traio, Zits levado no-violncia. As causas e as
conseqncias da sua no-violncia inversamente construda aqui so objetos de estudo
mais prximos de nossa realidade. Mas como sero estes desejos mimticos daqui a
alguns anos, ou como estes se comportam/aram/o em outras culturas?
O ponto de partida no lado luso-brasileiro:
Capites da Areia (1937)
Pedro, tambm conhecido como Bala, o principal personagem de Capites da
Areia, de Jorge Amado. Junto com Sem Pernas, Gato, Volta Seca e outras vtimas da
marginalizao, ele forma um grupo de delinqentes nas ruas da Salvador-Bahia, da
dcada de quarenta, quando o Brasil vivia um regime poltico de inspirao neo-fascista
denominado Estado ovo (1937-1945).
Bala vive com este grupo porque precisa de segurana no sentido de alimentao,
proteo e moral. Ao contrrio de Oliver Twist, Ragged Dick, Clare Caldwell e Zits,
personagens que agem individualmente, Bala age como cmplice de seus companheiros,
compartilhando os mesmos anseios do grupo. Por isso, Bala rouba nas ruas para
satisfazer a causa do grupo. Ele precisa dos outros para poder realizar completamente os
seus desejos.
Jorge Amado cria Bala e os outros rfos de rua segundo a perspectiva coletiva, de
modo a focalizar a ateno no coletivismo negativo. Atravs de Bala, o autor constri um
desejo da gangue por unio. Em outras palavras, por meio do personagem principal que
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Amado demonstra o desejo de vrios rfos, todos necessitados da segurana familiar.
Contudo, esta a famlia, segundo seus prprios princpios. Bala e os outros querem
estabelecer a definio de famlia como sendo uma unio de pessoas com razes comuns,
que neste caso a rua.
O trecho seguinte ilustra seu companheirismo, junto com seus desejos e aes
compartilhados: Companheiros. Palavra bonita, pensa Pedro Bala. Ningum dorme mais
no trapiche nesta noite. Preparam as mais diversas armas. (286) Em outras palavras,
Bala, um personagem com tendncias coletivistas negativas, emula os desejos dos seus
rivais. Sua liderana assim demonstrada: Todos reconheceram os direitos de Pedro
Bala chefia, e foi desta poca que a cidade comeou a ouvir falar nos Capites da Areia,
crianas abandonadas que viviam do furto. (31)
Como lder, Bala encoraja a emulao dos capoeiristas e a subseqente m utilizao
da sua arte:
O Querido-de-Deus o mais clebre capoerista da cidade. Quem no o respeita na Bahia?...O Querido-de-Deus contou as novidades e avisou que no dia seguinte apareceria no trapiche para continuar as lies que Pedro Bala, Joo Grande e o Gato tomam. (34)
A gangue tambm organiza ataques, como estes: Eles furtavam, brigavam nas ruas,
xingavam nomes, derrubavam negrinhas no areal, por vezes feriam com navalhas ou
punhal homens e polcias. Mas, no entanto, eram bons, uns eram amigos dos outros.
(121)
Jorge Amado utiliza-se ainda de outras maneiras para definir coletividade. Bala e sua
gangue usam o samba como forma de manifestao de apoio. E com eles cantavam
todos e eram saveiristas, malandros, doqueiros, at uma prostituta cantava. Os rfos de
rua exploram tambm a religio, ou os rituais do candombl: Os candombls batiam em
desagravo a Ogum e talvez num deles ou em muitos Omolu anunciasse a vingana do
povo pobre. (107) As imprecaes (ou maldies) do som dos tambores que
apaziguavam o Candombl com Ogum, nesta passagem, confirmam a negatividade da
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emulao do grupo. Essencialmente, Bala e o grupo desejam poder, ascenso social e
status.29
Por isso, Bala e seu bando formam identidades coletivas que constroem, ento, as
suas personalidades na narrativa. Dentro destas personalidades coletivas, Bala tenta
superar as qualidades competitivas dos membros do grupo, buscando seus prprios
sonhos, embora isto passe despercebido devido grande dificuldade oferecida pela mera
sobrevivncia. As causas e as conseqncias da violncia podem ser analisadas sob uma
noa vertente, ou paradigma em outra cultura, agora a brasileira.
Um ponto semelhante no tempo: Esteiros (1941)
Gineto o principal personagem jovem no romance Esteiros, escrito pelo autor
realista portugus Joaquim Soeiro Pereira Gomes, livro ambientado durante o perodo do
Estado Novo, iniciado, em 1932, pelo ditador Antonio de Oliveira Salazar. Junto com
Sagui e Maquineta, Gineto forma um grupo de rfos nas proximidades da vila de
Alhandra, em Portugal. Gineto vive com este grupo porque almeja por segurana, mas
no no sentido de emprego, como ocorre com o personagem anglo-americano Ragged
Dick. A vontade de Gineto de estar com o seu grupo mais que uma questo de
obrigao. Junto com os outros, ele deseja trabalhar na Fbrica Grande como meio de
subsistncia.
Portanto, Pereira Gomes cria Gineto segundo uma perspectiva coletiva. Sua
identidade coletiva centrada nos desejos compartilhados do seu grupo. Os membros tm
de estar unidos a bem da segurana do emprego. Estas crianas concentram-se na
sobrevivncia e buscam constantemente o po de cada dia. O autor demonstra, na
seguinte passagem, a unidade cultivada pela turma: Pareciam cansados. Mas, quando a
sereia fez a ltima chamada, distenderam logo os msculos, agitaram-se. Ai de quem no
tivesse passo ligeiro sob a saca de cem quilos. (15)36
O grupo de Gineto composto de jovens que se tornaram adultos prematuramente,
embora continuem a agir como crianas: Gineto pensou que no podia deix-los
29 Candombl uma religio afro-brasileira, baseada em rituais Iorub, tendo se originado na Cidade do Salvador-Bahia, e que hoje est amplamente disseminada em todo o Brasil. Veja Nei Lopes, Enciclopdia brasileira da dispora africana (So Paulo: Selo Negro, 2004).
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entregues a si prprios como dantes, porque, na quadrilha, riscos e lucros eram repartidos
por igual. (54)
Gomes deixa claro que Gineto e o seu grupo agem por meio do coletivismo negativo.
Esta forma de coletivismo conduzida pelo submundo dos criminosos e vigaristas.
Gineto emula, assim, os defeitos daqueles que v como modelos, reflexos do mundo
interior, sem progresso, sem iniciativa para mudar: Todos tinham pedidos para a Fbrica
Grande. Anseio que passava de pais para filhos, de gerao para gerao. (98)
Dessa forma, Gineto se conforma com o que passado de gerao a gerao, herana
de irmos mais velhos, pais e avs. Ele emula a ignorncia de um povo que no consegue
evoluir, preferindo a estagnao e um modo de vida elementar em uma vila s margens
de um rio. Esta emulao mais social do que individual.
Atravs de Gineto, o narrador de Esteiros revela no apenas violncia, mas tambm
passividade, pois, junto com um grupo de rfos de rua, ele anseia por subsistncia,
cumplicidade e estagnao. Em favor do grupo, Gineto age em coletivismo negativo,
emulando as qualidades dos grupos rivais, representados por operrios, gangues e seus
prprios pais. Agora, temos uma abordagem sob o olhar do mundo portugus que se
parece muito com o brasileiro, se compararmos Capites de Areia com Esteiros. Ou
quem ser que se parece com quem?
Outro ponto de encontro: Pixote: infncia dos mortos (1977)
Dito o personagem de rfo no romance Pixote: infncia dos mortos, escrito por
Jos Louzeiro e ambientado durante o regime militar que dominava no Brasil, de 1964 a
1986. Junto com Fumaa e Manguito, Dito forma uma gangue de rfos de rua conhecida
como pivetes, na cidade de So Paulo. Como o personagem anglo-americano Clare
Caldwell, Dito vive com um grupo porque o que procura amor, mas no no sentido do
carinho, simpatia ou amizade que motivava Clare. Dito anseia por afeio no sentido
fsico.
Jos Louzeiro cria Dito a partir de uma perspectiva coletiva em relao ao outro, ou
sociedade, para centrar a ateno nos seus anseios por solidariedade, compaixo e
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misericrdia no interesse do seu grupo. Dito e os outros rfos experimentam a
solidariedade, que vai prover as suas necessidades bsicas e que so mais fsicas do que
psicolgicas, ao contrrio de Clare. Desta forma, o autor coloca Dito em uma condio
mais inferior, desumana e primitiva do que aquela que Theresa Nelson coloca sua rf de
rua. Por esta razo, Dito se encontra em nveis diferentes na hierarquia de desejos.
Louzeiro demonstra a hierarquia de desejos. A vingana ou a honra do grupo talvez
seja mais importante do que a luta pela sobrevivncia:
Dito fica satisfeito com a demonstrao de solidariedade dos rapazes. Dito v tanta coisa em tantos poucos segundos: Pichote caindo e levantando no cho de terra do cemitrio, Caramelo o empurrando para junto dos marginais, Me Dolores chorando por Fumaa, Beth idealizando a vida que jamais teriam. V tambm a cara do homem que o espancara. Parece transtornado. (151)
O tema recorrente no romance: Formariam um grupo de impor respeito. Os
prprios tiras no iriam gostar de enfrent-los. (110) dito age com violncia por
intermdio do coletivismo negativo. Dito e os outros rfos emulam as qualidades dos
seus modelos e rivais. A referncia aqui em relao aos policiais que capturam
traficantes de drogas e os torturam a fim de obter informao. Sem entender os maus-
tratos, Dito e seus companheiros escapam e buscam vingana por conta das atrocidades
que experimentaram. Portanto, Dito age atravs do coletivismo negativo, em retaliao
aos perigos recm-descobertos: A morte no conduz a nada. No sei no. Mas
livra a gente dessa raa. (162)
Progredindo nessa mentalidade coletiva, Dito e seu grupo emulam tambm as
qualidades dos seus rivais, os traficantes de drogas, no intuito de formar uma sociedade
alternativa baseada no medo, terror e caos. Dito e os outros membros do grupo vivem o
dia-a-dia, emulando o que aprendem nas ruas, enraizados que esto no grande sofrimento,
na excluso e no abandono: Preferiram pular que se entregar. (228) Dito e os outros
rfos de rua atestam que preferem a morte vida. Mas, neste romance tambm existe
individualidade. Por exemplo, o verbo pular significa que Dito dono do prprio
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destino e no se sujeita s regras sociais. Portanto, Dito emula as qualidades dos
assassinos que talvez matem em autodefesa.
Dito se mata, ao no se entregar aos outros e se colocando em p de igualdade com
Pichote, que tambm luta por liberdade, ou por uma vida melhor em outro lugar ou at
mesmo em outra dimenso.30 Ao escolher a morte, Dito a atribui ao misticismo por
avaliar a sua morte como um meio de sobrevivncia. Por isso, o narrador revela que Dito
e os rfos de rua emulam a vingana, a ira e a rebelio violenta dos criminosos, dos
viles e dos assassinos; as suas causas e conseqncias tambm podem nos levar a
diferentes perspectivas de vida, ou de morte. O que podemos imaginar ento de toda essa
constru`ao de identidade desses personagens desfavorecidos?
E finalmente, o ponto de chegada no lado luso-brasileiro: Cidade de Deus (1997)
Mdo pertence gangue de Inferninho e Pardalzinho. Conhecidos como favelados,
eles so os principais personagens do romance contemporneo brasileiro Cidade de Deus,
de Paulo Lins, o ltimo e mais violento dessa anlise. Mido, um rfo de rua em
particular, vive com seu grupo porque precisa da segurana em nome da sua raa, da
ascenso social e de gnero, que no seu caso toma a forma de participao no mundo do
crime.
Diferentemente do Pedro Bala, de Capites da Areia, que rouba para favorecer o
grupo, Mido comete crimes para controlar a favela em que vive:
Para [Mido] no havia paz, arrependimento, no fazia nada que no pudesse colher frutos depois... Era ele o senhor do desengano: o dono da ruindade de nunca perdoar, de aniquilar o que no coubesse nos liames de sua compreenso bandida, de inventar coisas que o outro no tinha feito por motivos para exercer crueldade. (399)
Portanto, por meio da venda de drogas, Mido procura conquistar mais territrios e
clientes, batendo de frente com seus inimigos. Ele os mata por prazer, uma ao que
30 De um lado, o autor se refere a Pichote como um dos seus personagens. De outro, Pixote representa o ttulo ou o universo coletivo de um grupo de rfos de rua no romance.
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revela anseios patolgicos como narcisismo, masoquismo e sadismo, os quais sero
discutidos no captulo quatro.
Atravs do coletivismo negativo, Mido emula as qualidades dos seus rivais:
Mido suspirou de felicidade, estava contente por ser o protagonista daquele estupro, no somente por ter possudo a loura, mas por ter feito o namorado que viu toda a cena sofrer. (308)
Aqui, Mido emula um estuprador. Ele estupra por prazer, um ato que encerra uma
conotao de grande violncia, evidenciando a sua personalidade desajustada,
problemtica e perigosa:
Passado algum tempo, nas proximidades do Bloco Sete, o matuto lhe entregou a droga, que foi dividida por Mido em partes iguais, mesmo no tendo sido pressionado a isso. (346)
Mido colhe os benefcios do coletivismo negativo. Ele chefe porque quer ser o
modelo para outros a quem deseja controlar. Portanto, Mido dita suas prprias regras e,
para isso, usa a fora das armas:
Qual cumpadi, a gente no tinha combinado que ... [Mido] fez sinal da cruz. Triguinho que o observara atentamente, retirou a pistola da cintura, deu um tiro no abdmen de Mido e saiu correndo... [Mido] sentou no sof e revirou os olhos e morreu quando comeava a queima de fogos para a entrada de mais um Ano-Novo. (400)
Mido foi pego de surpresa pela traio do seu prprio bando. Seu personagem,
outrora em consonncia com seus predecessores, e sua morte prematura perpetuam o
mito da luta e fracasso na literatura luso-brasileira. Por isso, o narrador revela que Mido
possessivo, viciado e sexualmente louco na sua imitao de traficantes de drogas,
gerrilheiros e estupradores. As causas e conseqncias dos atos violentos de Mido agora
se mostram talvez no pice de violncia sagrada, to parecida com os crimes de
parricdios da idade antiga. Ser que ento na literatura h um ciclo sob o tema dos
desejos mimticos desses personagens? Ou seja, h o momento extremo em que a
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violncia passa a ser to forte que sua fora se esgota, ou esta se renova, e nos
supreendemos com amis atrocidades?
Um breve resumo at aqui
Por terem tomado caminhos ou respostas diferentes na literatura comparada,
os personagens rfos de rua so casos singulares. Os rfos de rua anglo-americanos
responderam positividamente condio de desamparados e proscritos. So casos de
quem, na maioria das vezes, busca ter uma vida de final feliz. Os autores imaginam que
tais crianas podem lutar e obter sucesso por si prprias, de modo a serem recompensadas
pela sociedade porque se ajustam a aes de no-violncia (isto , aos modelos de
cidadania). J os rfos de rua luso-brasileiros, diferentemente, responderam
negativamente sua condio de abandonados e excludos. O seu fim trgico, pois
tendem a morrer. Os autores destes romances portugueses e brasileiros imaginam que
seus rfos de rua no so levados a srio quando lutam pela sobrevivncia, assim lutam
e fracassam ou so punidos pela sociedade porque no se ajustam a ela devido s suas
aes violentas (i.e., os casos de genocdio). Por isso, para entender seus anseios no-
violentos, mascarados pelas tendncias nas culturas anglo-americana e luso-brasileira,
respectivamente, este mdulo traz uma abordagem nica e investiga, sincronicamente,
quais as possibilidades de evoluo destes personagens rfos de rua especficos no
mundo da fico.
O Arcabouo Crtico-Literrio
Reviso Bibliogrfica: O Caso Anglo-Americano
Em The Inner Structure of Charles Dickens ovels (1974), Koichi Miyazaki afirma
que Dickens explora um Oliver tpico, criado em um mundo sombrio mas jamais
contaminado pelo ar impuro , que, finalmente, moveu-se, como de costume, para um
mundo de luz e paz.31 Miyazaki sugere que Dickens est preocupado com certas
31 Veja Koichi Miyazaki in The Inner Structure of Charles Dickens Later Novels (Tokyo: Sanseido, 1974).
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qualidades conflitantes de Oliver, como divertimento e melancolia, expressividade e
conteno, amabilidade e ndole vingativa. No obstante, Miyazaki fala somente sobre as
semelhanas e diferenas das personalidades de Oliver sem mencionar as causas mais
profundas e as consequncias destas caractersticas definidoras. Portanto, este trabalho
examina os fatos romanceados e os situa comparativamente a outros romances do gnero,
de modo a demonstrar que o sofrimento de Oliver tem um propsito superior.
Em Dickens: The Orphan Condition (1999), Baruch Hochman e Ilya Wachs afirmam
que, geralmente, as narrativas de Dickens retratam afirmaes morais em seus enredos.32
Ento, a condio do rfo relaciona moralidade ao sofrimento e ao pthos ou
comiserao como o centro das preocupaes. Conforme Hochman e Wachs, a crtica
moderna deve trabalhar com o sofrimento e o pthos sob um prisma que ultrapasse o
sujeito, atravs da transcendncia, por exemplo. Portanto, pode-se recorrer a isto como
sendo estados de conceitos de desejos mimticos de Ren Girard ou inter-relaes
humanas entre o eu (e/ou coletivo) e o(s) outro(s). Assim, este trabalho investiga o que
Dickens incorpora como termos vinculados moralidade, como ego, famlia, trabalho,
cidadania, parentesco e propriedade, do ponto de vista da imaginao de um rfo.
Em Dickenss Villains: Melodrama, Character, Popular Culture (2001), Juliet John
examina o personagem Oliver Twist de Dickens, parte da imagem dele mesmo na
chamada ewgate fiction e o debate que da surge.33 Seu argumento de que Dickens no
est apenas inquirindo a fora das narrativas e fices escritas em Oliver Twist mas que
ele est preocupado com uma variedade especial de formas culturais populares de apelar
para a funo da emoo e do prazer. John apresenta a Newgate como uma pardia da
porta para uma priso inglesa ou a periferia da antiga Londres. Portanto, esta anlise
amplia o universo do submundo no qual a cultura popular nasce, provocando os desejos
de Oliver a partir da perspectiva de punio recompensada e no-violenta do seu
personagem. No fim, Oliver prefere gente como Mr. Brownlow, Rose e Mrs. Maylie, a
quem ele adota como modelos sagrados para a sua vida.
32 Veja Baruch Hochman e Ilya Wachs, Dickens: the Orphan Condition (London: Associated University Press, 1999). 33 Veja Juliet John, Dickens Villains: Melodrama, Character, Popular Culture (Oxford: Oxford University Press, 2001).
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Em um estudo posterior, Charles Dickens Oliver Twist: a Sorcebook (2004), John
discute a afirmao de Oliver: Por favor, senhor. Eu quero um pouco mais, uma das
mais famosas citaes literrias na lngua inglesa, o desejo por algo mais do que
comida.34 A prpria crueza do pedido convida ironicamente a interpretaes e
reinterpretaes. Para John, esta proposio um momento simblico de rebelio,
aspirao, status, empreendedorismo, democracia, capitalismo, a busca de indentidade,
principalmente o individualismo lutando para sobreviver. Por isso, no se pode negar que
o pedido de Oliver por mais seja uma linha com alguns dos mitos ideolgicos dominantes
dos ltimos sculos nos pases ocidentais. Oliver quer mais e finalmente obtm mais,
personificando o Sonho Americano. John argumenta que o desejo no-violento de Oliver
Por favor, senhor, eu quero um pouco mais construdo por um sistema que separa,
isola e diferencia rfos de rua desejveis de indesejveis, colocando alguns deles na
condio de rfos privilegiados .
Em Vision of Poverty and the Poor in the Novels of Horatio Alger (1983), Yves
Lemeunier sustenta que os heris de Alger aspiram alcanar a modesta classe mdia
baixa americana (sem almejar o tipo de realizao baro ladro), e por isso seu sucesso
a prova de que a distncia entre pobres e ricos no to grande como se pode
imaginar.35 O que Lemeunier quer demonstrar na sua hiptese que a pobreza ,
provavelmente, um bem positivo, ao afirmar que a ordem social existente imutvel ou
que, seja como for, no h nenhuma necessidade de mud-la. Ele sugere, assim, que
Alger ilustra a suposio de que a classe baixa do seu tempo ignorante, e a ignorncia
a fonte do duradouro mal-entendido entre o capital e o trabalho. Usar de radicalismo,
como forma de resistncia, seria ento um erro ao se lidar com esta classe.
Por isso, Lemeunier diz que Alger prefere se envolver com a literatura como um meio
de acesso s massas populares, visando obteno de informaes de como lutar e ter
sucesso. Portanto, Alger talvez consiga cativ-los, considerando seus mais de cem
romances publicados, cada um deles com as suas prprias receitas de sucesso. Usamos
aqui um destes romances de Horatio Alger para ilustrar os desejos de rfos de rua,