não se pode viver sem livros, por joão carlos ferreira
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Apresenção feita durante a atividade "Convidámos... À conversa com" o 8ºA, no dia 19 de Abril. Atividade desenvolvida no âmbito do Projeto "Ler, lazer e aprender".TRANSCRIPT
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“NÃO SE PODE VIVER SEM LIVROS”
O que faz um profissional de saúde atravessar o portão da escola e dirigir-se a uma
aula, de forma livre e consciente, e ademais sabendo que o aguarda uma sala repleta
de jovens, irrequietos e exigentes alunos?
Esta questão, que coloquei a mim próprio diversas vezes e com maior assiduidade à
medida que se aproximava a hora da verdade, ficou muitas vezes sem resposta,
embora no íntimo a soubesse desde sempre: a paixão pelos livros!
E embora estejam os poetas cansados de me avisar que a paixão pode levar à
felicidade mas também a actos tresloucados que a toldada razão não consegue refrear,
não resisti ao estimulante desafio. Assim, e especificando melhor, no âmbito do
programa “Ler, lazer e aprender” da Prof.ª Rosalina Nunes, fui convidado para falar
sobre livros aos alunos do 8º ano (Turma A) da Escola Dr. João das Regras.
E assim começou esta aventura…
Se a resposta ao desafio foi imediata, afinal nenhum outro assunto alheio à minha área
profissional me levaria a apresentar uma exposição do género, as dificuldades
começaram no instante seguinte. Falar sobre que livros? Falar sobre escritores? Ou
apenas sobre leitura? A única certeza era a de que não se pretenderia qualquer
programa de sugestão de leituras ou de determinadas obras.
Alguns dias a matutar, meio desconsolado pela indecisão, e a resposta estava ali
mesmo, era óbvia: tinha que falar de mim, do modo como os livros nunca me
abandonaram na conturbada fase da adolescência, como me ajudaram na passagem
insegura para a vida adulta, no efeito que tiveram na construção da minha
personalidade, e como me ajudaram a entender e a encarar o mundo e os outros, mas
acima de tudo como ajudaram a entender-me a mim próprio, e de uma forma tão
arrebatadora que nunca mais me separei deles! Afinal, se falasse de mim, falava de
livros, dos meus livros, e de como, sem eles, nem eu hoje seria o mesmo, nem a vida
seria assim, nem o mundo seria igual…
Tudo seria pior…
E eu seria menos feliz…
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Bom, nesta fase já tinha uma ideia, mas pensei “ estás a levantar muitas expectativas,
estás febril e entusiasmado, mas sabes bem que é impossível atingir esses objetivos
numa simples conversa, porque é disso que se trata, de uma simples conversa!” “E
com jovens de 14 anos, não te esqueças”, alguém me lembrou.”
Entretanto, o tempo escoava e tinha de me decidir, portanto, mãos à obra, falemos
então de livros, ou antes, de mim e dos livros, correndo o risco de não conseguir
passar toda a mensagem mas confortava-me a ideia que assimilei com a leitura: vale
sempre a pena, porque se resta sempre algo por dizer ou demonstrar também se
ganha sempre muita coisa… Afinal, à semelhança dos livros, em que nenhum é tão
mau assim que não possa ser útil sob algum aspecto, (como dizia Plínio), também da
palestra mais desastrada será certamente possível retirar algo de positivo, ou não?
Voltando às dificuldades, comecemos pelo título… Algumas ideias, nenhuma
sobreviveu mais de duas horas, fosse devido à extensão, (“Eu, os meus livros, os outros
e o mundo”), ou por levantar muitas expectativas (“As minhas aventuras com os
livros”) ou até por parecer presunçoso demais (“Nós somos os livros que lemos”). Até
que, fatalmente, seria com a ajuda de um dos meus livros teria a ideia “perfeita”;
rodopiava observando os meus livros, tranquilos nas suas estantes, quando um deles
me captou o olhar. Comunicamos mentalmente um pouco, ele relembrou-me o seu
autor, as suas desventuras e a beleza das suas palavras, fez-me viajar no tempo e
sentir novamente a magia da sua leitura, e definitivamente pensei que se a leitura é
paixão, porque não transformar “non se puede vivir sin amar”, a máxima de vida de
Malcolm Lowry e do seu cônsul inglês no México, no título desta singela dissertação?
“NÃO SE PODE VIVER SEM LIVROS”.
Assim ficou.
Nasci e cresci em casa onde não havia livros. Mas como a leitura não se faz apenas de
livros, é importante referir que havia jornais, especialmente “A Bola”, o único que o
meu pai comprava e cuja dissecação me ocupava vários dias. Naquele tempo os
jornais desportivos eram diferentes dos actuais, primeiro porque eram trissemanários,
portanto cada edição era muito mais rica e cuidada, segundo porque tinham muito
mais reportagens e crónicas sociais, e terceiro, porque não havendo a competitividade
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comercial de hoje, eram mais rigorosos e menos especulativos. O jornal, ainda que
desportivo, foi o meu primeiro atlas e os meus primeiros compêndios de geografia e
sociologia, para além da diversão inerente aos pormenores futebolísticos, claro; e foi
graças às excelentes crónicas que eram feitas do estrangeiro, aquando das viagens dos
clubes portugueses para jogos internacionais, que fiz “a minha primeira volta ao
mundo: capitais e monumentos, dados demográficos de cada país, costumes
característicos de cada povo, curiosidades políticas, económicas e culturais, até o
modo de vida das comunidades lusas emigrantes, tudo isso “A Bola” me deu, para
além, evidentemente, das grandes vitórias do glorioso e do Eusébio.
Naquele tempo também não havia computadores, nem internet, nem playstation:
além disso, a televisão era a preto e branco e resumia-se a dois canais com
programação pouco apelativa à curiosidade e exigência juvenis. Isto não significa que a
infância e adolescência dos anos 70 fossem obrigatoriamente infelizes, antes pelo
contrário…
Havia mais tempo livre (as férias grandes chegavam aos quatro meses), havia mais
liberdade (as brincadeiras ao ar livre demoravam horas) e, acima de tudo, um contacto
saudável com a natureza, quase obrigatório para quem nasceu numa aldeia à beira da
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serra e da cidade… E, essencialmente, cresci num mundo de índios e cowboys! Nos
livros de banda desenhada, nas séries televisivas ( Bonanza, O Maioral, Daniel
Boone…), nas brincadeiras… nós os cowboys de pistola na mão e eles os maus…
E sempre que íamos a Torres Novas em dia de mercado, lá tentava convencer a minha
mãe a comprar um livrinho de índios e cowboys… Foram as primeiras aventuras
partilhadas com os livros…
Depois, um dia, a biblioteca veio até nós! E quando a carrinha da Gulbenkian se
vislumbrava ao longe, a excitação assaltava-nos, reorganizava-se a fila de atendimento
por ordem de chegada, afinal os primeiros iriam requisitar os livros de aventuras mais
desejados… E se assim não fosse, restava-me a possibilidade de convencer algum
amigo a fazer umas trocas, o que nem sempre era fácil…
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E graças a esses livros itinerantes, conheci heróis e aventuras mil, do Robin dos Bosques
à Ilha do Tesouro, do Sandokan aos Três Mosqueteiros, e acima de tudo as aventuras
deslumbrantes de Júlio Verne, um génio muito à frente do seu tempo. Com ele fui à
Lua, desci ao centro da terra, fiz milhares de léguas submarinas e fiz a minha ”segunda
volta ao mundo”, para além de muitas outras viagens…
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E apesar de um dia os livros terem deixado de vir de carrinha até mim, passei eu a ir de
autocarro até à casa deles, em Torres Novas…
Deixei a escola primária para trás e lá fui eu iniciar a vida de estudante na cidade.
Outro mundo, outras aventuras, e acima de tudo, muitos e outros livros… Um dia, um
colega de turma, preocupado com o estado lastimável dos meus joelhos e das minhas
sapatilhas, aquando de um furo inesperado por falta de um professor, convence-me a
trocar o futebol do costume por uma ida à biblioteca municipal. Não foi fácil, o futebol
é uma doença genética - ainda hoje faço uma perninha com os amigos- e ainda para
mais a biblioteca ficava longe e lá no alto, paredes meias com o castelo, mas naquele
dia foi diferente tomar de assalto aquela colina sobranceira ao jardim e ao rio
Almonda, e acabei por fazer uma importante e bela conquista… Tinha entrado num
mundo novo, fascinante, milhares de livros espalhados por inúmeras estantes e várias
salas, à espera de um leitor com quem partilhar histórias e mistérios, segredos e
maravilhas ocultas, pessoas e vidas diferentes, e ali, naquela reconfortante
tranquilidade não havia limites ao prazer da escolha, era só desfrutar…
Mas naquele dia , e durante algum tempo, fiz companhia ao meu amigo na sala de
banda desenhada, pela qual ele era louco, e fui apresentado ao Astérix, ao Tintin, ao
Lucky Luck e ao Michel Vaillant. Quem disse que a banda desenhada não é obra de
qualidade meritória é porque nunca conheceu estes heróis. E tem graça, noto agora,
foi preciso esperar trinta e tal anos para ver estes heróis imortais transformados em
personagens de carne e osso, em acções cinematográficas de um realismo
sobrenatural e até a três dimensões, nunca imaginei tal ser possível; e quando hoje
vejo esses filmes, sinto-me com doze anos outra vez. Só por estas lembranças valeu a
pena este compromisso, e com esta sensação fico um pouco mais motivado.
Mas o tempo não espera por nós e revejo-me poucos meses depois na mesma
biblioteca, não na secção de banda desenhada mas antes a investigar as estantes de
livros policiais e romances. Como aconteceu?
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A alguns membros da minha família mais distante tinham chegado rumores sobre o
meu gosto pela leitura e, num Natal velho de quase quarenta anos, decidiram
presentear-me, de uma assentada, com dois livros, que ainda hoje ocupam um
cantinho especial na minha pequena biblioteca. Foram os meus primeiros "romances",
e de tal forma catalisaram a minha relação com os livros que merecem, cada um a seu
modo, a homenagem que se segue.
O primeiro, foi o volume inicial da colecção integral das obras de Agatha Christie, sem
duvida o maior génio do romance policial. E foi avassalador conhecer o detective das
"células cinzentas", o universalmente famoso Hercule Poirot, de tal forma que
rapidamente dei por mim a requisitar praticamente todas as suas aventuras na
biblioteca, para as devorar a um ritmo alucinante. Graças a ele também me muni de
uma lupa, tornei o meu olhar sagaz e observador, dei uso incessante às minhas células
cinzentas, debrucei-me sobre os mais ínfimos detalhes na cena do crime, tudo numa
busca incessante na solução do mistério, revirei os álibis de alto a baixo, anotei todos
os pormenores no meu caderninho, esforcei-me que nem um louco na captura do
criminoso, mas debalde, nunca consegui acertar nos suspeitos certos. A culpa foi dessa
tal senhora Agatha, que parecia brincar com o jovem leitor, fazendo-o sentir
impotente perante finais tão surpreendentes como espectaculares. Por isso, foi ela
quem primeiro me demonstrou que se pode amar e odiar a mesma pessoa ao mesmo
tempo, amei-a sempre que começava a ler outra obra sua porque era genial e oferecia
puro prazer na leitura, odiei-a sempre que me enganava e surpreendia no final. Por
isso decidi, com catorze anos, que era melhor não arriscar uma carreira de detective,
mas há muito que lhe perdoei todas as afrontas. E agradeço-lhe ter-me obrigado a
fazer as minhas primeiras requisições de livros numa biblioteca pública, pois graças a
elas e às suas obrigações foram-me exigidas responsabilidade, pontualidade e estima
pelos livros, sendo um ponto de honra entregar os livros a tempo e horas e num
estado de exemplar cuidado.
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O segundo livro é o exemplo perfeito de como uma má escolha pode ser a melhor,
embora até prometesse pelo aspecto e porque era uma obra de um Prémio Nobel,
embora na altura como ainda hoje eu pense que isso dos prémios literários não é
assim tão importante, basta atentar nos milhares de obras-primas que por aí há e que
nunca foram distinguidas. Acontece que, até para descansar um pouco da trabalheira
infernal que o Hercule Poirot me tinha dado, tentei lê-lo, e confesso que me esforcei,
mas foi uma grande confusão de personagens e situações, que não conseguia
entender por mais que relesse as cenas anteriores, e desisti, desgostoso e inseguro
quanto à minha capacidade para entrar naquelas obras mais "sérias" e adultas. Mas a
teimosia levou-me a tentar outra vez, e passado algum tempo arrisquei novamente e,
tudo se mantinha, aquele drama continuava inacessível. Até que, desesperado e
vingativo, e calculo que pela única vez na minha vida, decidi espreitar as últimas
páginas e eis que deparo com uma nota, mesmo por debaixo da palavra "FIM":
" Este romance completa, com os dois volumes que lhe antecederam, também nesta colecção,
a famosa trilogia que granjearam para a autora o Prémio Nobel"
Curioso como, se lermos uma trilogia pela ordem correcta dos volumes, tudo se torna
mais claro e lógico, não é? E foi o que aconteceu quando mais tarde assim fiz, mas o
mais importante nem foi o facto de, após ter recuperado a autoestima, ter gostado da
obra completa, mas sim a particularidade de cada livro da colecção (Dois Mundos,
Livros do Brasil) apresentar nas badanas duas sinopses: uma da obra em questão,
outra do próximo volume, e isso fez a diferença pois chamou-me a curiosidade para ler
outros autores, fosse pelo título apelativo, fosse pelo resumo atraente. Além disso, na
contracapa vinham todos os títulos da colecção entretanto já publicados, e daí a
começar a requisitá-los na biblioteca foi um ápice, e graças a essa prenda tresmalhada
que recebi um dia conheci algumas das obras que mais me marcaram e me fez
inclusive chegar àquela que posso considerar a minha preferida, até hoje. Mas isso fica
depois…
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E agora chegou a hora de dar um salto no tempo e no espaço. Após vários anos de
leituras assíduas, estamos em 1983, em Mafra, para onde transferi a minha residência,
em pleno Palácio Nacional de Mafra, mais concretamente no antigo convento que hoje
serve de Escola Prática de Infantaria.
E acerca do Palácio, e da sua importância e magnificência arquitectónica a nível
europeu e mundial, não me vou alongar muito, são sobejamente conhecidas e
facilmente pesquisáveis, até porque aqui o interesse reside no facto de, nas horas
livres das tarefas do serviço militar obrigatório, eu ter descoberto a Biblioteca do
Palácio. E se já sentia um fascínio pelas bibliotecas comuns, com esta fiquei
deslumbrado, pelo espaço em si mas pelas curiosidades: cerca de 40000 volumes
encadernados em couro e gravados a ouro, as estantes de madeira exótica do Brasil,
os mármores ímpares, as estratégias que os monges do antigo convento arranjaram
para cuidar dos livros, das quais a mais curiosa e genial, foi a criação de uma colónia de
morcegos que, alimentando-se dos insectos devoradores de livros, ainda hoje tem um
papel importantíssimo na sua conservação. Mas outras curiosidades existem e vale a
pena descobri-las, afinal estão a pouco mais de meia hora de viagem da Lourinhã, o
que é uma vantagem em relação àqueles milhões de bibliófilos espalhados pelo
mundo inteiro que são obrigados a visitas virtuais e que tudo fariam para poder estar
numa das bibliotecas mais imponentes do mundo.
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E já agora, também não desdenhariam conhecer Coimbra e a Biblioteca Joanina, outra
joia, ou então a livraria Lello no Porto, por muitos considerada a mais bela do mundo.
Para um pequeno país em que se tornou moda tudo denegrir, não está nada mal, só
temos que nos dar ao trabalho de o explorar e com isso descobrir também a nossa
história e riqueza cultural, será talvez o suficiente para não entrar amiúde em
depressão nestes tempos críticos.
Bom, mas chega de devaneios e passemos a uma das leituras que mais me marcou, já
adivinharam certamente, José Saramago e o seu "Memorial do Convento, publicado
em 1982. "Que especial há nisso?", perguntarão, milhões de pessoas também o
leram, e muitas até nem gostaram muito por aí além. Certo, mas gostos não se
discutem, e a minha emoção advém do facto de ter lido a obra enquanto "morava" nos
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aposentos dos monges do próprio Convento, o que me transportou para outras
dimensões, passado e presente, fazendo-me sentir por vezes personagem do enredo,
testemunha da paixão transcendente de Baltasar Sete Sóis e Blimunda Sete Luas ou
companheiro de aventuras do Padre Bartolomeu de Gusmão e da sua Passarola
Voadora pela Serra de Montejunto.
Anos mais tarde viria o Nobel para o autor, já com muito mais obras de referência
publicadas, mas nenhuma dessas leituras se tornou tão deliciosa como ter lido o
Convento instalado nos aposentos dos monges, paredes meias com os aposentos de D.
João V, a sua biblioteca real e ouvindo a música celestial emanada pelo maior carrilhão
do mundo.
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Poderia agora contar outras histórias, porque livros chamam livros e outras histórias,
como seja falar do livro de culto, ou do livro inacessível que um dia espero ter, ou da
busca incessante pelo livro que me falta para completar aquela colecção, ou do livro
misteriosamente desaparecido... Mas não cabem aqui, ficam talvez para outras
conversas sobre livros, que esta já muito me exigiu, e se é verdade que entrei um
pouco ansioso para esta apresentação, dela saí mais rico e grato porque me obrigou a
conversar com livros que não via há muito, a viver épocas remotas da minha vida
novamente, talvez sobre outro prisma, e com isso a redescobrir-me. E a meu ver essa é
uma das maiores virtudes dos livros, abrem portas para outras dimensões e põem-nos
a sonhar, a viver outras vidas e a reinventar-nos. Concluindo, os livros, aqueles bons
livros, não são apenas para serem lidos, têm que ser conversados, como aconteceu
nesta meia hora de convívio com o 8º A. Feliz ficaria se para estes alunos aquele
tempo de partilha tivesse valido metade do que valeu para mim...
João Carlos Ferreira
2012
(Este texto, para quem estranhar, e exceptuando os eventuais erros de ortografia, foi
escrito em português ancestral, porque sou convictamente objector de consciência em
relação a acordos ortográficos)