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Nada mais que uma noite Anabella Franco

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Nada mais que uma noite

Anabella Franco

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Disponibilização: Soryu

Tradução: Fernanda Dias

Revisão Inicial: Gi Vagliengo

Revisão Final: Fernanda

Leitura Final e Formatação: Cris G.

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Sinopse

Nicolas Hagen é um engenheiro atrativo e bem sucedido que

ama a vida noturna. Sua relação com as mulheres se resume a

passar apenas uma noite com elas e as abandonar, lhes deixando

algo em troca. Para ele todas são iguais: interessadas, insensíveis e

manipuladoras.

Lavínia é uma mulher de beleza invejável, simples e pura em

sua alma. Uma costureira de classe baixa, que luta por sair adiante

de um ambiente hostil. Seu passado a pôs em um lugar onde

entregar-se a um homem se torna quase impossível. Seu presente

está regido pela resignação, a aceitação e a perseverança.

Alguma deusa obrará entre esses dois mundos, entrelaçando

ambas as vidas. Lavínia será uma presa a mais de Nick, quem não

poderá resistir seus impulsos de seduzi-la e passar nada mais que

uma noite com ela. Uma noite em que a verdade e a inocência

transformarão suas almas para sempre.

Entretanto, o destino jogará de novo suas cartas: o passado

para Nick tem forma de feridas, e figura de mulher. O vermelho será

sua essência. O sexo e a perversidade, sua armadilha.

“A tradução em tela foi efetivada pelo Grupo Pégasus Lançamentos de forma a propiciar ao leitor o acesso à obra, incentivando-o à aquisição integral da obra literária física ou em formato e-book. O grupo tem como meta a seleção, tradução e disponibilização apenas de livros sem previsão de publicação no Brasil, ausentes qualquer forma de obtenção de lucro, direto ou indireto. No intuito de preservar os direitos autorais e contratuais de autores e editoras, o grupo, sem prévio aviso e quando julgar necessário poderá cancelar o acesso e retirar o link de download dos livros cuja publicação for veiculada por editoras brasileiras. O leitor e usuário fica ciente de que o download da presente obra destina-se tão somente ao uso pessoal e privado, e que deverá abster-se da postagem ou hospedagem do mesmo em qualquer rede social e, bem como abster-se de tornar público ou noticiar o trabalho de tradução do grupo, sem a prévia e expressa autorização do mesmo. O leitor e usuário, ao acessar a obra disponibilizada, também responderá individualmente pela correta e lícita utilização da mesma, eximindo o grupo citado no começo de qualquer parceria, coautoria ou coparticipação em eventual delito cometido por aquele que, por ato ou omissão, tentar ou concretamente utilizar da presente obra literária para obtenção de lucro direto ou indireto, nos termos do art. 184 do código penal e lei 9.610/1998."

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Esta é minha alma que grita.

Nick cure suas feridas te convertendo em papel.

Eles estão em mim e eu neles.

Concretamente nele.

E nela está ele, por isso a ele a dedico.

Agradeço-lhe por tudo o que vivemos,

Que serviu de inspiração, como minha vida.

E embora possivelmente hoje ele já não me recorde,

Peço-lhe perdão.

"Precisamente porque o destino é imutável, a sorte depende de nós

mesmos".

André Maurois

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Capítulo 1

Paradoxalmente o destino é esse algo imutável ao que,

entretanto, uma só decisão, um só instante, pode trocar para

sempre. E embora dependa de outros, nunca deixa de depender de

nós mesmos.

A única testemunha de tudo aquilo, sempre seria o vento.

Corriam as três da madrugada quando o moreno entrou na habitação

das filhas de sua namorada. Tinha duas para escolher, mas teve que

escolher a ela.

Em contraposição com os presságios da mãe, Lavínia era muito

mais formosa que Helena, e também maior. Segundo o julgamento do

moreno nesse momento da noite, da bebida e das drogas, seus

dezesseis anos lhe teriam outorgado maiores atributos que a sua

irmã, cinco anos menor. Ou ao menos pensava que os acharia

desenvolvidos no ponto justo em que fariam ferver seu instinto

sexual.

Introduziu-se no quarto às escondidas, com os risos de seus

amigos como testemunhas, mudas por um par de mãos sobre suas

bocas macias. Lavínia dormia em sua cama e sua irmã, na outra.

Uma grotesca mão de homem cobriu a boca de Helena. A moça, com

seus cabelos castanhos muito emaranhados, retorceu-se. Quando

pôde abrir os olhos, encontrou que um sujeito de rosto desconhecido

se achava sobre seu corpo e lhe impedia de mover-se. Desviou o

olhar: Josué se estabelecia sobre a cama de sua irmã.

Lavínia despertou. Ao ver o namorado de sua mãe sobre seu

indefeso corpo tentou gritar, mas logo um golpe a obrigou a guardar

silêncio. Além disso, era tanto o horror que não lhe saía a voz.

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O vento a ajudou a recuperar o sentido. Distinguiu por fim, ou

por desgraça, o rosto do homem que se desprendia o cinturão sobre

seu corpo adormecido e que logo lhe levantou a camisola.

— Se você não deixar... Sabe o que vou fazer com sua mãe,

não? - riu, e ela se viu obrigada a calar.

O vento que se escapulia pela janela aberta balançou com

violência a cortina cor azul marinho e logo seu cabelo, loiro como o

ouro, nesse momento emaranhado. Ele baixou as calças e lhe tirou a

roupa interior. Depois lhe cobriu a boca com a outra mão e tentou

sair-se com a sua, mas Lavínia lutou para gritar de novo e desta vez

conseguiu. Depois do grito, os pulmões lhe negaram o ar, o medo

agarrou seu corpo e desmaiou.

Quando Josué Nicanor Perez se deu conta de que estava a

ponto de penetrar um corpo inerte, apartou-se, subiu as calças

assustado, pensando que possivelmente a garota tinha morrido de

susto, e se retirou pela janela pela qual tinha entrado. O mesmo

fizeram seus dois amigos, que pelos menos não pretenderam abusar

da Helena, sendo que a cena os tinha deixado sedentos de algo mais.

Aparentemente, Josué tinha sido digno o suficiente para deixar claro

que ele seria o único com acesso ao corpo da filha mais velha de sua

namorada.

Helena, que tinha observado a agressão a sua irmã com olhos

angustiados, levantou-se. Ajoelhou-se junto à cama de Lavínia,

moveu-a com desespero e esforçando-se conseguiu que despertasse.

Então se afundou no oco de seu ombro, soluçando a inocência que ia

das mãos. Lavínia, que agora estava sentada sobre o colchão úmido,

acariciou-lhe o cabelo com resignação. Aquela foi a última vez que as

irmãs se deram um abraço. Era a primeira vez que um namorado de

sua mãe tentava aproveitar-se de sua juventude e de sua beleza.

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Josué Perez tinha observado Lavínia com desejo desde o

primeiro dia em que Cristina o tinha levado a sua casa nos

monoblocos da Avelanada. Já na mesa natalina, o moreno não lhe

tinha tirado os olhos de cima: o cabelo loiro lhe emoldurava o rosto

branco e angélico, com as maçãs do rosto de um rosa encantador e

uns olhos grandes e verdes qual prado da Antiguidade. Seu corpo

bem formado já contava com generosos seios e nádegas, e tinha em

seus movimentos um encanto enigmático e dócil.

Dificilmente reluzia como uma criatura do submundo, mas bem

se parecia com uma mulher da realeza.

Josué gozou vendo-a trazer uma bandeja com frango na

véspera de natal, a primeira que passava com as filhas de sua

namorada. Lavínia lhe parecia uma figura de sonhos, com seus jeans

muito ajustados e uma blusa sem mangas que lhe deixava os ombros

a mostra e ajudava que seus seios aparecessem espiando pelo decote

recatado. Toda ela era uma pequena mulher, vergonhosa e calada,

bela e responsável. Sem dúvidas, toda uma divindade.

A partir dessa noite, o moreno se converteu no casal estável de

sua mãe. Cristina López tinha sido alguma vez uma mulher muito

bela e também sem preconceitos. Enquanto terminava a escola

secundária aos dezoito anos, tinha caído no amor, ou melhor,

apaixonou-se por seu professor de história: Carlos Dickinson.

Carlos era um homem de trinta anos, atrativo e de aparência

agradável, que passava seu tempo livre em obras de caridade. Estava

acostumado a trabalhar em escolas públicas, como o colégio ao que

frequentava Cristina. Era um homem honesto e bom, tão bom que

ajudar aos outros era sua prioridade na vida, por isso era pobre. Era

pobre quanto a dinheiro, mas terrivelmente rico em amigos. Um dia

Cristina conseguiu que a convidasse a sua casa. Supunha-se que

leriam juntos a respeito de mitologia, tema que, argumentou ela,

interessava-lhe extremamente. Ambos sustentariam em segredo o

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encontro, já que estava proibido manter qualquer tipo de vínculo

entre alunos e professores fora do horário escolar. Depois de tudo,

havia apenas um mês de aula, logo Cristina teria terminado a escola,

e ele não queria ser como a maioria dos professores: Carlos desejava

com a alma que seus alunos adquirissem um melhor estilo de vida, e

que era impossível reter a educação inflexível entre os muros da

escola.

Passaram um mês reunindo-se aos sábados, conversando a

tarde inteira sobre deuses e monstros, mitos e teorias antigas sobre a

formação do mundo moderno e das coisas, entre os livros e os

apontamentos que ele estava acostumado a fazer quando estudava

na Universidade Nacional de La Prata.

Lavínia nunca soube se sua mãe o tinha amado realmente ou se

só tinha querido satisfazer um capricho adolescente - mas sem

dúvidas ele se apaixonou como um louco por dela. Tanto que numa

chuvosa tarde de sábado, uma semana depois de que as classes

tinham acabado, o professor e a ex-aluna fizeram realidade suas

fantasias nesse pequeno apartamento onde reinavam o aroma e a

desordem que só podem caracterizar a um professor de alma, a um

amante da história e da arte, e a um homem íntegro. Muito diferente,

por certo, do resto dos homens que tinham desfilado, antes e depois

dele, pela vida de Cristina.

Depois de uns poucos encontros românticos, Cristina ficou

grávida e Carlos se casou com ela, até contra a vontade de seus pais,

que a viam menor e mais leve. Os Dickinson sempre tinham tentado

persuadir o seu filho de que trocasse seu estilo de vida, de que

aproveitasse a pequena fortuna familiar forjada por gerações de

médicos e se dedicasse a outra coisa, mas Carlos jamais tinha feito

conta. Amava o passado. Amava-o porquê era o presente e era o

futuro, e sua paixão pela história e pela arte o tinha convertido em

um apaixonado em todos os âmbitos de sua vida.

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Depois de três anos e meio de matrimônio, Carlos partiu uma

manhã para seu trabalho na escola a qual tinha frequentado Cristina.

No curto trajeto no coletivo, dois homens o tinham assaltado e,

possivelmente por lhe roubar uns poucos pesos ou por um ajuste de

contas equivocado - que não era nada estranho em um bairro como o

do colégio - Carlos tinha perdido a vida nas mãos daqueles dois

estranhos de aparência estrangeira aos quais ninguém jamais

encontrou.

Assim havia sido Cristina com Carlos, mas com Josué Nicanor

Perez era muito diferente. Ele gastava o dinheiro de sua pensão, a

qual Cristina recebia depois da morte do Carlos, em álcool e drogas;

e nem sequer lhe pedia mantimentos para seu pequeno filho Hector.

A morte de Carlos ficou no passado, assim como a fatídica noite

em que Lavínia tinha conhecido o início de um ato sexual mediante

um secreto intento de violação. Entretanto, Josué jamais tinha podido

tocá-la de novo. Depois daquela madrugada, Lavínia tinha se

dedicado a praticar todo tipo de esportes que lhe conferissem uma

possibilidade de autodefesa, e tinha conseguido o respeito e o temor

do homem.

Transformou-se em uma mulher que temia a muito poucas

coisas em realidade, nem sequer aos homens. Apenas um vento

suave e a coruja da noite podiam ainda lhe provocar algum calafrio

nas costas, talvez temendo que essa testemunha silenciosa falasse.

Nove anos depois da fatídica noite.

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“Tenho que pedir os tecidos a Betty”, repetia-se Lavínia em sua

mente enquanto subia as escadas, lotadas de pessoas que fumavam

e conversavam entre si.

Como tinha ficado trabalhando em sua loja inaugurada fazia

apenas três meses até tarde, chegava em casa em um horário pouco

habitual.

Não havia rastros de sua família. Antes uma notícia tão grata,

dirigiu-se à cozinha, abriu a torneira e serviu-se de um copo de água.

Mas sua paz interior não durou muito, viu-se perturbada quando uns

dedos quentes lhe roçaram sem querer querendo o antebraço. Com

classe e uma vez certa advertência na voz, ordenou:

— Não me toque.

Do mesmo modo cravou o olhar verde nos olhos de seu

oponente, negros como sua consciência. Josué a observou um

momento e depois, respeitando sua segurança e sua beleza, apartou

os dedos. Lavínia voltou para si mesma.

Antes de tentar abusar de Lavínia, Josué tinha concebido uma

boa forma de intimidá-la: tinha-a ameaçado machucar a sua mãe se

ela não acessasse a seus desejos. Claro que sempre tinha sido sutil e

enganoso em suas advertências, de maneira que só ela e ele se

entendessem, e assim parecer inocente. Josué pensava que a relação

de amantes que teria com a pequena filha de sua namorada

perduraria no tempo, mas depois dessa única noite em que tinha

tratado de manter com ela uma relação sexual abusiva, a garota se

deu conta de que as ameaças eram vazias e se revelou. Então Josué,

já sem vê-la amedrontada, não teve a valentia suficiente para tentar

tomá-la de novo, pois no fundo de sua alma e de sua escura

consciência, não era mais que um covarde.

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Lavínia não se deixou enganar nunca mais. Mais à frente do

intento de ultraje, o que lhe espremia o coração era a mentira. Como

pôde ter sido tão inocente! Como pôde ter sido tão ingênua de

acreditar nas ameaças de um covarde! Mas prometeu que jamais

voltaria a padecer de algo como isso. Ninguém voltaria a burlar-se

dela, nem tampouco voltariam a enganá-la. Simplesmente, nunca.

Pela janela da cozinha viu descer a sua irmã de um automóvel

preto. Helena fechou a porta do carro e o homem que conduzia lhe

deu umas notas pela janela. Com o cabelo comprido e sedoso

balançando-se ao vento, a jovem se aproximou da porta de entrada.

Lavínia se pegou ao vidro para ver melhor. Josué acabava de deter

Helena na porta do edifício. Trocaram umas palavras que, Lavínia, da

distância, não podia ouvir. Dificultava escutar pelos sons da rua:

vários jovens que tinham saído da escola vespertina, automóveis que

circulavam pelo Díaz Vélez e um coletivo.

Josué tentou arrebatar o dinheiro das mãos de Helena. A

conversação passou de ser seca à violenta. Ao final, a moça lhe deu

as notas à contra gosto, com o que Lavínia deduziu que Josué se

havia apressado a chegar à porta de rua para tirar o dinheiro de sua

irmã, um dinheiro recém ganho que ela ainda não tinha tido a

oportunidade de contar. Helena entrou no precário edifício enquanto

Lavínia virou-se e foi para a sala de jantar.

Quando sua irmã chegou, ela já estava sentada à mesa. Helena

se dirigiu à cozinha, pretendia ignorá-la. Logo saiu com um copo de

água, sentou-se à mesa sem dirigir sequer o olhar a Lavínia. Os

ruídos do exterior, o corredor e a escada poluíam o silêncio do

interior.

— Como foi hoje? - perguntou Lavínia.

— Bem - respondeu Helena a contra gosto, encolhendo-se de

ombros.

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— Quem era esse homem que te trouxe?

Cada vez que Lavínia tentava iniciar uma conversação com

Helena, fracassava. Fazia a pergunta sem segundos propósitos,

tentando esquecer que em realidade conhecia a verdade, mas

Helena, acostumada a tratar com más intenções, não pôde pensar

menos do que sua irmã acabava de dizer.

— Você sempre tem que acreditar mais nos outros? - espetou-

lhe.

Lavínia parecia abatida, surpresa com a reação de Helena.

— O que você disse?

— Que você é uma topetuda.

— Só porque eu quero sair daqui, porque não dou meu dinheiro

para Josué?

— Vai à merda.

Helena ficou de pé e se fechou em seu quarto, que

compartilhava com Lavínia. Abriu a janela. Como de costume,

sentou-se a fumar e a esperar.

Quase ao mesmo tempo se abriu a porta da entrada e Cristina

entrou no apartamento com duas sacolas do mercado e Hector em

braços. Atrás dela, vinha Josué.

Sua mãe estava um pouco acima do peso. Como tinha

descuidado de sua aparência, conservava um pouco da beleza que

havia possuído em sua juventude. Sua irmã Helena, de cabelo

castanho e eletrizantes olhos marrons possuíam uma encantadora

figura e um rosto que poderia ter servido de inspiração a mais de um

pintor, embora nesses últimos tempos tivesse perdido seu brilho.

Acostumou-se a fingir uma careta sensual que de tão comum

acabava resultando insípida. Vestia quase sempre saias muito curtas

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e espartilhos. Nos pés usava botas altas até o joelho ou sandálias de

salto. O cabelo solto lhe chegava à cintura e maquiava seu rosto com

cores vivas.

Helena era a filha de um namorado que Cristina tinha tido um

ano depois da morte de Carlos. O tipo a tinha deixado grávida e logo

tinha saído correndo ante a notícia. Ao menos serviu a Cristina para

receber uma lição e enrolar ao Josué antes de ficar grávida.

Em conclusão, por essas questões da vida - e de sua mãe -

Helena López nunca tinha conhecido seu pai e nem sequer levava seu

sobrenome.

Josué era um homem moreno, como seu pequeno filho, de

textura física hercúlea. Claro que os anos e a má vida o tinham

transformado em um cafetão gordo e alto, como um imenso guarda-

roupa, como um gorila.

A diferença deles, Lavínia guardava a frescura e a delicadeza de

sua adolescência. Conservava um delicioso tom rosa nas maçãs do

rosto e tinha os olhos grandes cor esmeralda. Era proprietária de uma

beleza delicada que, entre a miséria, estava acostumada a passar

inadvertida. Levava o cabelo loiro recolhido em um rabo, sandálias e

uma camisa branca.

Retirou-se a seu quarto imediatamente: o que menos desejava

nesse momento era compartilhar um espaço com Josué e com sua

mãe. Tratava-se do mesmo quarto, onde tinha se passado a tentativa

de estupro, mas a lembrança era já tão longínqua que era igual

dormir ali ou em qualquer outra parte. Aproximou-se da janela e

fechou a persiana aberta. As cortinas azuis tinham buracos de cigarro

e cheiravam sempre a pó. Fazia anos que não eram lavadas, e ela

tinha deixado de insistir para que sua mãe lhe permitisse fazê-lo.

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— Esta é minha casa. Se você não gosta de viver aqui porque

para a princesinha as cortinas cheiram a fumaça, aí têm a porta -

dizia Cristina com ironia cada vez que Lavínia insinuava algo sobre a

falta de limpeza da casa. Ela podia ser bagunçada, mas era muito

limpa.

— Eu pagaria a lavadeira - replicava Lavínia com voz calma.

— Não quero que lavem as cortinas - respondia a mãe.

— Por que não? - desesperava-se a filha.

— Porque o digo eu.

Helena estava acostumada a sentar-se e fumar diante da

janela, como esperando possivelmente que uma vida melhor viesse

procurá-la, mas incapaz de sair em sua busca. Como na casa de

Cristina ninguém ensinava ninguém a cuidar de nada, tudo estava

que dava pena.

Depois de fechar a janela e acomodar as rudimentares cortinas,

Lavínia se voltou para a cama. Ignorando sua irmã, tirou à roupa

elegante coma qual costumava trabalhar e se vestiu com um traje

esportivo. Ainda assim, parecia particularmente bem, porque tudo

isso foi requintado, uma criança nascida em um universo que a qual

não pertencia.

Quando o jantar estava pronto, Cristina bateu na porta do

quarto e chamou suas filhas com um mau humor que já estava

incorporado a ela e ia aumentando a cada dia.

— Vamos comer! - exclamou como aviso, e se afastou.

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Cristina sempre tinha sido uma mulher egoísta, mas Lavínia

jamais a tinha conhecido tão miserável como naquela época. Tinha

chegado ao extremo de regular a comida e até incomodar-se por ter

que cozinhar. Embora sempre tivesse sido ociosa, pouco a pouco suas

atividades foram reduzindo cada vez mais. Helena não fazia nada na

casa, e Lavínia passava o dia trabalhando. Do Josué, nem esperar.

Todos se sentaram à mesa. O televisor, a um volume muito

alto, enchia a sala com as risadas provenientes de uma publicidade.

Cristina serviu uma mistura de bife e macarrão com manteiga

nos pratos e depois se sentou, suspirando.

Ela não jantava. Talvez tivesse se cansado do sabor da carne e

das massas, embora não deixava de preparar sempre o mesmo,

porque lhe dava menos trabalho. No máximo, variava o bife e

macarrão por milanesa e purê.

Fazia-se evidente que Josué já estava drogado. O televisor, que

funcionava aos tombos, como tudo nessa casa, deu interferência.

— Move o cabo - ordenou Cristina a Josué.

Ele ficou de pé. Tocou o cabo. A imagem se via, mas a voz ia e

vinha. Lavínia soltou a faca quando Josué golpeou o aparelho e o

ruído que tinha feito a assustou. O sobressalto que acabava de sofrer

lhe tinha deixado à respiração agitada. Odiava a violência com a que

todos ali se conduziam.

— Merda! - exclamou o homem.

— Leve-o a arrumar - respondeu Cristina levemente.

— Dê-me dinheiro.

— Dê-me isso vocês.

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Por milagre, a conversação morreu nisso e depois se fez

silêncio, embora Lavínia não soubesse por quanto tempo ia durar.

Josué se sentou. A voz do televisor não soava como em realidade

devida, mas ao menos se escutava. Aproveitando a paz que reinava

entre eles, Lavínia entregou a sua mãe um envelope branco.

— É para as vacinas do Hector - explicou com suavidade,

temendo que o ambiente harmonioso se dissipasse com um suspiro.

— Estamos seis meses atrasados.

Quando Lavínia retornou a sua casa ao dia seguinte, todos já se

encontravam jantando, menos sua mãe, que nunca o fazia. Dirigiu-se

a seu quarto, colocou a roupa esportiva para não sujar a do trabalho

e se sentou à mesa. A comida consistia na mesma mistura do dia

anterior, reaquecida.

Quando se deu conta, o televisor funcionava maravilhosamente.

Josué e sua mãe estavam quietos, aparentemente alegres. Helena

mastigava com seu rosto indiferente, como de costume, e o pequeno

Hector envolvia a mistura com as mãos.

Lavínia sentiu que estava a ponto de explodir, mas atuou com

contenção. Uma terrível sensação de impotência lhe percorreu as

vísceras, e a cena se formou na mente: sem hesitação, ou melhor, ela

exausta do trabalho, foi para a cama, Josué tinha pedido o dinheiro a

Cristina para suas drogas, mas ela, com seu critério tão particular, o

teria convencido de que o melhor uso que se podia dar ao dinheiro de

sua filha era reparar o televisor.

A ninguém nessa casa importava que tivesse passado a última

semana encurvada sobre a máquina de costura. Armando pequenos

trajes de bailarina que de menina sempre tinha sonhado, mas não

tinha tido, para as vacinas de seu irmão. A Cristina só importava que

lhe dessem dinheiro, que logo se deixava tirar por Josué ou utilizava

para algo de seu interesse.

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Lavínia sentiu desejos de chorar por seu passado, seu presente

e seu futuro.

Desejando enviar tudo para o esgoto e não olhar para trás.

Josué, sem pudor algum, acendeu um cigarro de maconha.

— Vai fumar lá fora - ordenou Cristina em um insólito ataque de

prudência. Algo servia para armar um problema e entreter um

momento discutindo.

— Fume um - respondeu Josué, irônico. — Não trouxe nada

hoje, Helenita? - perguntou a seguir.

Dirigia-se a sua enteada Helena com ironia. Lavínia, em troca,

tinha conseguido que Josué a respeitasse, ao menos do melhor modo

que Josué Nicanor Perez podia respeitar.

— Eu te dei ontem, você esqueceu? - respondeu sua irmã ao

moreno.

— Lavínia - disse depois a mãe. — A geladeira quebrou outra

vez. Não têm nada hoje?

Tinha. Tinha cobrado o resto do dinheiro por seu trabalho

terminado para o instituto de danças, entretanto, negou-se. Já tinha

deixado a carreira de Desenho de Indumentária no primeiro ano para

levar dinheiro a sua família, teria que se anular mais?

— Não - disse.

Estava farta de que seu dinheiro tivesse um uso egoísta. Ainda

não terminava de digerir que o televisor fora mais importante que as

vacinas de Hector para compreender que também a geladeira carecia

de prioridade frente ao televisor.

— Helenita... - falou outra vez o moreno.

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— Disse-te que não! - gritou ela, ao jogar os talheres sobre o

prato e golpear a mesa.

Fora de todo contexto, Cristina soltou uma gargalhada.

— Olhem isso! - exclamou assinalando com o dedo. O televisor

projetava a imagem de uma mulher seminua em um show cômico

que chamava em meio da rua a um senhor. Josué também riu. Riam

aos gritos, com a mesma violência com que sempre falavam.

O telefone soou. Lavínia, que era quem o pagava, levantou-se

para atender. Sentiu vergonha de escutar do outro lado a voz de uma

cliente e de que esta ouvisse as gargalhadas. Para fugir do ruído,

fechou-se no banheiro para falar, que era o cômodo mais afastado da

sala de jantar, embora não conseguisse que os sons se acabassem.

Depois de desligar, saiu e deixou o aparelho em seu lugar.

Voltou para a mesa. Sua mãe reunia os pratos sujos como

demonstração lenta de ociosidade.

Josué bebia a última gota da caixa de vinho. — Traz mais vinho

- ordenou a Cristina.

— Não há mais - respondeu ela, que se tinha aproximado para

passar um trapo úmido à mesa.

— Como que não há mais? - questionou ele como reclamação.

— Por que não comprou?

— Porque faz mais de dez dias que não me dá uma nota -

replicou a mulher enquanto se encaminhava à cozinha.

— Não posso ficar sem vinho - replicou Josué ficando de pé. —

Dê-me dinheiro que vou comprar!

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— Não! - ambos gritavam, porque sempre falavam com os

gritos. — Helena... - cantarolou o homem.

— Não me fodas - retrucou Helena, sem apartar os olhos do

televisor. Josué golpeou a mesa.

— Me dê algum dinheiro, caralho!

— Mas é estúpido? - gritou Helena, olhando-o por fim aos

olhos. — Já te disse que não! - e se levantou da cadeira.

Como Lavínia deixou de resistir a discussão, fugiu para seu

quarto. Descarregou toda sua fúria contra uma bolsa de areia que

tinha pendurado entre sua cama e a de sua irmã desde que praticava

boxe em lugar do Taekwondo. Os gritos de sua família e o pranto

desesperado de Hector serviam como música de fundo.

— Cale a boca! - escutou que Josué ordenava ao pequeno, e em

seguida se ouviu um golpe duro e seco.

Lavínia saiu de seu quarto como um redemoinho. Os três

adultos prosseguiam com sua discussão enquanto ela pegava o

menino e se dirigia à porta de entrada. Tomou seu casaco, que estava

pendurado em um gancho na parede, abriu a porta e saiu ao hall.

Todos seus vizinhos, como a grande maioria do bairro, passavam

fumando. Uma jovem de sua idade o fazia na porta de seu

apartamento, que estava frente ao de Lavínia, sem a menor surpresa

pelos gritos que se escutavam inclusive da escada.

Deveria haver-se refugiado em sua loja da Avenida Mitre, mas

estava tão embotada que deixou o bairro e tomou um coletivo até a

capital. Levava o seu pequeno irmão de dois anos nos braços e um

fino casaco como único amparo. Caminhou, aturdida e hipnotizada,

pela Rua Alem, tão fria e escura como ela jamais seria, e passou por

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debaixo do enorme pôster de uma obra em construção. Nele se lia

"Hagen e Associados", entre outros dados.

Lavínia se deteve frente a um telefone público, discou 911 e

falou com a operadora.

— Quero fazer uma denúncia por porte e consumo de drogas.

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Capítulo 2

No ambiente reinavam a cor, o ruído e o glamour. Um zumbido

constante proferia as luzes policromadas o ar inconfundível de um

cassino.

As mulheres vestiam os mais exóticos e variados vestidos,

enquanto que os homens preferiam o smoking preto. As máquinas

conferiam uma música de fundo que apagava por momentos os

murmúrios dos jogadores e dos curiosos. Em nenhum outro lugar

podiam escutar-se esses sons nem produziam a mesma emoção, a

mesma energia que transmitia a excitação do jogo, das apostas e da

probabilidade.

Apostar era comparável às vezes a fazer amor. Vivificava o

corpo e ordenava à adrenalina que aumentasse o ritmo cardíaco. A

pressão arterial crescia em função do sentimento de expectativa, até

que tudo estalava ou se apagava em um instante: o momento em

que a máquina caça-níqueis acusava seus símbolos graciosos, o

croupier cantava o número da roleta ou acabava a partida de cartas.

O instante em que a vida se resumia a ter ganhado ou perdido uma

aposta. Só uma, a escolhida, a melhor.

Passando pelas mesas de Blackjack e de Pôquer tradicional, um

lugar escondia o pequeno e exclusivo setor dos grandes apostadores.

Cinco homens e um negociante perito no lugar da casa dependiam de

sua sorte. A maioria dos jogadores era de idade amadurecida e

conservavam seus trajes alinhados, enquanto que os dois mais jovens

da mesa já tinham deixado de lado o casaco e a gravata borboleta.

Depois dos naipes, algumas mechas de cabelo loiro escuro

contrastavam com o olhar cinzento que os observava ao mesmo

tempo que os lábios esboçavam um sorriso preguiçoso.

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— Royal flush - disse a voz grave e varonil antes de assentar as

cartas em perfeita ordem ascendentes sobre a mesa de pano verde.

Os quatro apostadores restantes e o repartidor ficaram

atônitos. O ganhador respirou profundo. Levava as mangas da camisa

dobradas até metade do antebraço e os dois primeiros botões

próximos ao pescoço desabotoados. O casaco descansava sobre o

encosto da cadeira, e o smoking, no piso.

Logo a notícia se pulverizou como um tornado por todo o

cassino.

— Catalina! - exclamou uma mulher a outra de cabelo castanho

que levava posto um vestido azul. Nesse momento, estirava-se para

colocar algumas fichas no número dez da roleta. — Nick fez uma

royal flush!

Muitas pessoas se amontoaram do outro lado dos vidros para

ver o lugar e ao homem que acabava de ingressar a ser um indivíduo

seleto entre as escassas probabilidades.

A mulher de vestido azul entrou na sala. O guarda de segurança

que cuidava da porta, também vidrado, não opôs resistência. Ela

apoiou as mãos sobre os ombros do grande ganhador e o beijou na

bochecha. Logo observou a jogada, que ainda descansava sobre o

pano verde. Possivelmente esperava converter-se na relíquia do

Paradise, o cruzeiro dentro do qual se achava aquele cassino. Ele

sorriu.

— Vou comprar este lugar - pensou em voz alta. Era uma ideia

que lhe rondava a cabeça fazia muito tempo e que havia se

entranhado mais nele desde que soube que o Paradise estava à

venda.

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Nicolas Larrazábal Hagen foi o tema favorito de conversação até

altas horas da madrugada.

Seu nome permaneceu nos lábios de todos os associados com

seu feito, porque acreditavam que era um homem de sorte e um

estrategista. Ninguém sabia que ele tinha a sua própria deusa.

Atrás tinha ficado o ruído de máquinas caça-níqueis e das

conversações. Na amurada do cruzeiro, reinava um harmonioso

silêncio que se combinava com os vaivéns do oceano, quão mesmos

balançavam a embarcação sem que esta oscilação resultasse

perceptível para os que estavam a bordo.

O corpo forte e capitalista de Nick aprisionava o da mulher de

vestido azul contra o corrimão, conseguia excitá-la com cada suave

movimento. Catalina pensava que ele a satisfazia no sexo, mas tinha

bem claro que jamais conseguiria fazê-lo apaixonar-se, por isso era

mais fácil manter as coisas assim, no prazer.

Era impossível não desejá-lo. Nick era um homem que passava

dos trinta anos, de olhos de uma estranha tonalidade entre cinza e

azul e cabelo loiro escuro. A profundidade de seu olhar encerrava um

ar misterioso que mais de uma mulher tinha tentado desvendar,

todas sem êxito.

Catalina, em troca, tinha muito claro que nada lhe interessava

dele mais que sua companhia. Era bom na cama e na vida, isso lhe

bastava. Ou não, nunca era suficiente se não se obtinha o coração

desse homem de gelo e fogo, mas ela sabia desde o primeiro dia que

fracassaria, por isso o aceitava. Por essa mesma razão, o sutil

rechaço que ele sentia por ela fora dos encontros íntimos não a

inclinava a retirar-se. Além disso, era arrumado, sensual, irresistível,

qualidades que funcionavam como um ímã.

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Eles mantiveram seus copos de champanhe levantados.

— A sério pensa comprar este navio? - perguntou ela,

sorridente, passando seu olhar pelo corpo esculpido e generoso de

seu acompanhante.

Nick, que até esse momento tinha o olhar perdido nas ondas

escuras do mar do Caribe, fixou os olhos, os mesmos que durante a

noite competiam com a cor daquelas águas, nos da mulher com a

qual compartilhava sua viagem.

— Poderia me dar esse gosto - refletiu com serenidade. Bebeu

de um só gole o resto de champanhe de sua taça e logo a jogou no

mar.

— Faz muito tempo que não me dou algo de presente.

Catalina Lowenstein soltou uma gargalhada febril e sonora.

— Você sim sabe presentear-se! - exclamou. Bebeu também o

resto de seu champanhe e olhou maliciosamente pela taça, logo a seu

companheiro.

— Posso? - perguntou.

Respondeu-lhe com um leve gesto afirmativo feito com a

cabeça, então ela também atirou a taça ao mar.

Seis meses depois, aquele imenso navio, com seu cassino a

bordo, era dele, e já tinha sido transladado ao Terminal Quinquela

Martíni, recém-inaugurado em Buenos Aires. Nick confiava em que os

cruzeiros, agora que podiam entrar em sua cidade natal,

convertessem-se em um bom negócio do qual ele seria um pioneiro

local.

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Claro que para obter à mulher de vestido azul não tinha tido

que esperar tanto tempo. A mesma noite em que decidiu comprar

essa embarcação, a bonita Catalina Lowenstein se converteu em sua

amante de volta. Um turno muito curto pensou Nick, pois não queria

saber dela mais que para seus propósitos durante essa viagem.

Seis meses depois da compra milionária, a vida lhe deu uma

cartada - não soube se boa ou má - e ela voltou a ser sua amante.

Com a mulher ainda recostada sobre seu peito nu, Nick pensou

que a situação se parecia muito a essa primeira noite que tinham

estado juntos. Depois de tudo, essa era apenas a segunda

oportunidade em que faziam amor, porque logo depois de fazê-lo pela

primeira vez não havia tornado a vê-la até a madrugada anterior, na

festa de inauguração de seu novo investimento. O Paradise, aquele

majestoso navio que tinha passado a formar parte do seleto grupo de

homens que foram todos por sua boa fortuna, era seu próprio.

Quase amanhecia e ele não havia dormido. Por sorte, porque

soou o telefone e de qualquer modo o teria despertado.

— Tem que vir com urgência - disse a voz do outro lado da

linha.

— O que aconteceu? - perguntou ele enquanto esfregava a

cara. Ainda estava com um pouco de ressaca.

— Ao menos tem que vir um de vocês dois - a voz se referia a

ele ou a seu sócio, que o acompanhava na ocasião da inauguração. —

A obra no Alem pende de um fio.

Nick se sentou. Catalina protestou e se envolveu sobre si

mesma, dormindo.

— O que significa isso? - perguntou Nick a seu interlocutor.

— Que o resultado da inspeção foi terrível, e querem cancelá-la.

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Nick abandonou a embarcação no porto seguinte, que resultou

ser Baía de Salvador e tomou um avião para Buenos Aires. Catalina,

em troca, seguiu sua viagem no imponente cruzeiro até a costa de

Búzios e Santos. Para ela, Nick era um homem atento e generoso,

embora notasse que ele pouco importava o que fizessem suas

amantes, porque estava certa de que ela não era a única. De todos os

modos, não tinha esboçado desejos de acompanhá-lo em sua viagem

de volta a Buenos Aires, pois sabia que depois de assentar um pé em

terra firme, a atenção que ele pudesse lhe oferecer seria nula. Então

preferiu seguir viagem, desfrutar daquele agradável estilo de vida e

possivelmente voltar a ver Nick em outra ocasião fortuita. Depois de

tudo, ele jamais a tinha visitado em Pilar, onde ela vivia. Seu pai

tinha uma construtora, igual a de Nick, na capital. Apesar de

corresponder ao mesmo item, ambos os homens se viram poucas

vezes cara a cara, e ela era consciente de que um velho rancor os

inimizava. Entretanto, a paixão de Nick era tão arrasadora que lhe

tinha sido impossível resistir. Depois de tudo, seu pai não tinha por

que inteirar-se.

Diferente de Catalina, Pablo Díaz, seu sócio, decidiu

acompanhar Nick, já que considerava que os dois eram responsáveis

pela obra. E assim empreenderam a volta.

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Um ano depois.

Naquela manhã, o sol estava brilhando com exclusividade. De

qualquer forma, não demorou muito para Nick ficar de bom humor.

Estacionou a caminhonete preta na Cidade Universitária, onde

funcionava a Faculdade de Arquitetura, Desenho e Urbanismo, no

pavilhão III. Diante do grande edifício, os jovens iam e vinham com

seus livros e mochilas. Caminhou até ali, subiu com agilidade as

escadas e se dirigiu à sala de aula. Levava a jaqueta desabotoada, e

tinha deixado a gravata no assento traseiro de seu veículo.

Quando entrou no recinto, os murmúrios cessaram, e o jovem

que mostrava uns cálculos no enorme quadro-negro calou.

— Olá, Sérgio - saudou Nick ao moço enquanto se sentava

sobre o escritório sem mais preâmbulos. — Importa-se de continuar

depois? Tenho os segundos contados.

— Claro - respondeu o jovem com respeitosa obediência. Para

não lhe fazer perder tempo, sentou-se junto a uma mulher e a outro

moço a um flanco do salão.

— Quando foi a última vez que nos vimos? - perguntou Nick aos

alunos. Franzia o sobrecenho. Isso indicava o que ele pensava,

enquanto inibia a mais de uma aluna de fazer o mesmo. Seu rosto

era muito expressivo, tinha gestos que eram sedutores até fora de

sua vontade.

— Faz quinze dias - respondeu a mulher do trio de

colaboradores ante o silêncio do resto.

Nick não aparecia seguido pelas classes, que ficavam em mãos

de substitutos e ajudantes, porque passava a maior parte do tempo

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ocupando-se de seus projetos empresariais, em viagens de negócios

ou mesmo de prazer.

— É tempo de começar o novo projeto - continuou depois da

resposta, a qual agradeceu com um ligeiro assentimento. — Alguém

que não seja um de meus altruístas colaboradores sabe qual é a

próxima grande inauguração que promete minha empresa? - fez-se

silêncio.

— Vamos! – insistiu ele então - não têm que fazer nenhum

cálculo é só ler os jornais.

Uma aluna levantou a mão com acanhamento.

— Sim! - exclamou Nick, com o explosivo e sensual sorriso que

sempre o caracterizava, que às vezes emudecia as alunas e

acovardava aos varões.

— A clínica da Rua Alem - respondeu a garota em voz muito

baixa.

— Isso mesmo, ele concordou. E você vai fazer o mesmo que

eu. O projeto no próximo ano consiste no desenho e cálculo da

renovação de um edifício antigo em desuso para a construção de um

hospital privado.

— Professor - levantou a mão um jovem. Todos falavam mais

rápido em presença do professor titular de uma das cadeiras de

Estruturas mais concorridas. Nicolas Larrazábal Hagen conseguia

acelerar o tempo a todo mundo.

— Sim.

— Em quanto tempo?

— Têm oito semanas a partir de hoje - respondeu ele. — Não

pode haver equívocos. Podemos perdoar o esquecimento de algum

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detalhe, mas sabem que há enganos imperdoáveis. Estão avançados

na carreira, há certas questões que não entram em discussão.

— Algo mais?

— As características... - começou outro. Ele o interrompeu.

— Meus colaboradores deixarão todo o material na

fotocopiadora de sempre.

A mulher do trio de ajudantes tomou nota em um caderno.

Acabava de inteirar-se de algo que desconhecia.

— E a parte de desenho? - demarcou mais alguém. — Você nos

dará orientações?

— Como sabem, o trabalho é em colaboração com uma das

cadeiras de Arquitetura - explicou Nick em resposta.

— É requisito consultar a mais de um docente para obter uma

visão acabada do projeto. A ideia não é que desenhem ou calculem,

mas sim ambos os conceitos funcionem como um conjunto. Arte e

razão, razão e arte. Não existe desenho sem cálculo nem cálculo sem

desenho. De nada me serve que uma estrutura se sustente se o

edifício é um quadrado insípido e disfuncional. Como alunos da

carreira de Arquitetura, seu trabalho final tem que ser perfeito. E

como meus alunos, seus trabalhos têm que ser os melhores.

Às vezes parecia esquecer que existia a humildade, entretanto

sempre contagiava a todos com seu bom humor, por isso suas

brincadeiras, arrogantes ou não, caíam em graça. Alunos e ajudantes

riram em uníssono depois daquela insinuação.

Nem bem saiu da universidade, dirigiu-se a seu escritório.

Entrou na sala de seu sócio, que nesse momento trabalhava sobre

uma enorme mesa junto a outros dois homens. Ao vê-lo chegar,

Pablo se aproximou.

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— Vamos na caminhonete - comentou Nick, pretendendo que o

outro adivinhasse do que lhe estava falando.

— Aonde? - Pablo tinha esquecido a bola de cristal, que era

necessário se quisessem seguir a velocidade avassaladora que

sempre usava Nick.

— Você disse que você estava indo conseguir o endereço do

designer, esclareceu o seu parceiro no momento em que cavou com

as mãos nos bolsos em busca de seus cigarros.

Nick nunca se detinha em fazer uma única coisa, sempre estava

nascendo ao menos duas, como se desejasse ocupar cada fragmento

de seu tempo, por mais breve que este fosse sem pausas.

— A partir de Margarida Farias? - indagou o sócio. — Isso não é

problema! Temos o problema em Alem outra vez.

— Outra vez? - Nick ao fim o olhou. — Vamos mandar o

advogado e pronto.

— Não me parece o mais apropriado. A inspeção voltou a ser

bastante negativa, parece que nossas normas de segurança não

coincidem com o código legal.

— Estou farto de ler esse código de merda. O que acontece com

essa avenida? - gritou Nick.

— Cada vez que fazemos algo lá, cai-nos uma inspeção. Deve

ser maldita.

— Traz a direção do designer, que pode passar por lá depois de

arrumar esse assunto dos inspetores - determinou.

O pequeno escritório de inspeção governamental estava lotado

de gente. Nick não esperou. Avançou até os escritórios, esquadrinhou

com o olhar e escolheu sua presa: estava seguro de que com a

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senhorita do posto número dois obteria bons resultados. Apoiou-se

com obscenidade sobre o mostrador e saudou.

— Olá - disse. Sua voz era uma arma poderosa: grave, rouca e

muito varonil.

Soube que tinha causado o efeito desejado na moça porque por

um segundo seu olhar de mel brilhou. Além disso, o impacto a tinha

deixado algo nervosa.

— Sim? - ela o olhou, questionando.

Nick soube que tinha triunfado: outra empregada já o tinha

enviado para a fila. Além disso, ele ainda permanecia com sua

ferramenta mais poderosa: um sorriso. Acabava de utilizar o olhar e

não era consciente que ainda lhe restava a voz.

— Inteirei-me de que seus inspetores andaram em minha obra

e me perguntava se estará livre no fim de semana - deslizou com o

passar.

A garota riu e baixou as pálpebras; outro efeito causado por

Nick.

— Sobrenome do titular da obra? - perguntou ela com voz

melosa.

— Hagen e Díaz - a voz de Nick não mantinha muito longe o

ritmo da menina, mas fingia. A menina mexeu um arquivo. Extraiu

uma pasta e a abriu.

— Aparentemente vários de seus trabalhadores não tem

proteção adequada - comentou.

— Deixe-me explicar - interrompeu-a Nick, jogando um sorriso

que causou na jovem um súbito e ligeiro rubor.

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— A empresa encarregada da segurança trabalhista é

terceirizada e...

— E vocês deveriam controlar melhor o trabalho de seus

subcontratados - interrompeu-o a senhorita enquanto enroscava uma

mecha de seu cabelo escuro no dedo indicador.

Por um momento, Nick pensou que possivelmente tinha errado

em seu cálculo. Já tinha gasto o sorriso, só lhe restava apelar a sua

boa sorte. Umedeceu os lábios, inclinou a cabeça e baixou o olhar um

instante.

— Faremos isso - assegurou voltando os olhos para ela. Isso a

fez enrugar a testa, obrigando à empregada a engolir em seco.

— Só me diga o que posso fazer para evitar um encerramento.

Dessa maneira teria a oportunidade de controlar os meus

subcontratados e mostrar que aprendemos a lição.

Aqueles olhos cinzentos e vaidosos, assim como aquele

masculino sorriso e os gestos sedutores, acabaram por fim com todas

as barreiras morais e femininas da mulher.

— E você é... - arriscou elevando uma sobrancelha.

— Nicolas L. Hagen - acrescentou Nick com estranha

intensidade na voz.

Ele não gostava de pronunciar seu nome, inclusive que o

chamassem "Nico", que recordava a "Nicolas", por isso se fazia

chamar "Nick". Além disso, omitia seu primeiro sobrenome sempre

que podia. A pesar do esforço que sempre lhe supunha nomear a si

mesmo, sustentava um olhar tão intenso que tinha conseguido

ruborizar a funcionária.

— E o outro titular da obra é... - arriscou ela.

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— Pablo Javier Díaz, meu sócio - disse Nick sem lhe dar

oportunidade de ordenar seus pensamentos.

— E o procurador da empresa é... - aquilo deixava de ser um

interrogatório de rotina.

— Eu - acrescentou Nick com desfaçatez. — Sou o dono.

A moça, encantada com o visitante, elevou o olhar para ele.

Ainda se desenhava um sorriso em seus lábios rosados.

— É você o arquiteto? - perguntou, divertida, sem se importar

se ele se dava conta ou não de que o que ela procurava era lhe

surrupiar seu nome, seu nível econômico, sua profissão, e não seus

vaivéns legais.

— O engenheiro - repôs, como se a conhecesse de toda a vida.

— É você a encarregada de pôr um preço a meu negócio? - a

jovem sorriu, e Nick compreendeu que era o momento justo para

colocar sobre o balcão os dois bilhetes brancos. — Que tal duas

passagens para um cruzeiro até o Nordeste do Brasil? Punta de Leste,

Salvador, Búzios...

Nesse momento, Nick parecia um executivo de vendas de uma

companhia de turismo. E um muito bom, posto que o rosto da jovem

mulher se iluminou com um sorriso ambicioso. Depois, ela mordeu a

borracha do lápis.

— E você vai estar a bordo? - perguntou. Ele resultou ainda

mais favorecido em sua segurança com a sensação do triunfo.

— Isso teria outro preço... - brincou. Era consciente de que

levava a dianteira.

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A moça marcou umas quantas cruzes em um papel e depois

colocou a pasta em uma caixa, apoderando-se em troca dos dois

bilhetes brancos.

— Não poderei ajudá-lo da próxima vez – disse. — Procure não

cometer o mesmo engano.

— O farei - prometeu ele. E isso foi tudo.

Quando Nick retornou ao veículo, Pablo esperava alguma

informação a respeito da inspeção com olhar ansioso. Em troca, seu

companheiro perguntou:

— Trouxe o endereço?

— Não vai me dizer o que se passou aí dentro? - inquiriu seu

amigo.

— Ah, sim - respondeu ele, como se nada tivesse acontecido. —

Dei uns bilhetes para o Paradise à senhorita do posto dois.

Pablo arqueou as sobrancelhas.

— E o encerramento? - perguntou.

— Que encerramento? - respondeu Nick, ao qual Pablo soltou

uma gargalhada.

— Você sim que têm sorte! - exclamou o homem, feliz porque o

problema se resolveu tão rápido.

— Às vezes duvido que se trate de boa sorte... - corrigiu Nick

com ar reflexivo e os olhos entrecerrados. — Mas bem acredito que é

uma questão de estratégia - produziu-se uma pausa verbal em que

girou a chave na ignição.

— E a direção? - perguntou depois.

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Pablo enfiou a mão no bolso de seu casaco, manipulou seu

smartphone e leu em voz alta o que havia ali escrito.

— Tem certeza? - perguntou Nick depois de escutar o endereço.

— Sim.

— Desse lado da ponte? - Nick não podia acreditar, já que se

tratava de um bairro muito diferente do que podia habitar uma

designer de alta costura, segundo seus conhecimentos.

— Ouvi dizer que não é um bairro muito exclusivo - admitiu

Pablo, refletindo aquilo no momento - mas já sabe como são essas

designers excêntricas...

— É Província, e uma zona onde no máximo vamos encontrar

negócios coreanos.

— Não seria a primeira artista cujo ateliê está localizado em um

bairro dos subúrbios... Não te parece?

Nick riu.

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Capítulo 3

Lavínia abriu a porta de seu ateliê. Era pequeno, mas dava para

a rua Mitre e estava localizado no centro da Avellaneda. Nada tinha

lhe servido bem.

Assim que entrou, acendeu as luzes e abriu as cortinas.

Respirou por última vez o ar matinal de seus sonhos e até lhe

pareceu que podia começar a chorar pela despedida. Se não

acontecesse um milagre - que jamais aconteciam a ela - essa seria a

última manhã que abriria seu ateliê.

Seguindo seus passos apareceu uma menina morena.

— Bom dia, Lavi! - saudou. Lavínia, que colocava um delicado

arco às cortinas azuis, respondeu à saudação.

— Bom dia. Já passou a dor de cabeça?

— OH, sim! - exclamou a outra. — Essa aspirina que me deu é

muito boa. E você? Terminou o traje da senhora Rita? Disse que

passaria hoje às dez.

— Hoje não, sexta-feira - argumentou Lavínia com serenidade.

— Hoje.

— Hoje é quinta-feira - replicou a loira.

— Pensa passar hoje às dez - insistiu a moça. Lavínia

permaneceu um instante em silêncio.

— Oh, não! Exclamou com tristeza. Eu tinha tantas coisas na

minha cabeça que tinha confundido a data de entrega do vestido da

Sra. Rita, como a mulher se fazia chamar. Nada de Rita ou

Sra.Gimenez. Sra. Rita.

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Lavínia se instalou imediatamente diante da máquina de

costura, disposta a cumprir o antes possível com o prometido a sua

cliente. Era muito responsável.

Umas horas mais tarde, dois clientes interromperam a tarefa

das amigas.

— Senhores - disse a morena com respeitosa segurança quando

Nick e Pablo entraram na loja de cristaleira branca que rezava o nome

de Sonhos.

— Procuramos Margarida Farias - falou Pablo.

Enquanto isso, Nick olhava os objetos que se encontravam

pendurados contra a parede, detrás deles. Todos tinham um desenho

pessoal e distinto, nenhum se repetia. Além disso, revisava os

acabamentos, todos polidos e perfeitos, mas sem signo algum de

vaidade. Nick era muito detalhista, por isso era um engenheiro tão

bom.

A jovem arqueou as sobrancelhas.

— Margarida Farias? - repetiu.

— A designer - esclareceu Pablo. — Necessitamos que nos

confeccione um traje a cada um com urgência.

A morena solicitou aos homens que a aguardassem um

momento e se dirigiu para o fundo do local com passo apressado. Do

outro lado do cortinado azul, falou com Lavínia em sussurros.

— Lá fora há dois tipos com muita classe que procuram uma tal

Margarida Farias.

Lavínia não abandonou sua tarefa na máquina de costurar.

Tinha que entregar o vestido à senhora Rita em seguida.

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— E o que? - respondeu sem dirigir o olhar a sua amiga. —

Diga que não é aqui e ponto. Esclareça que não temos ideia de onde

é se por acaso perguntarem.

— É que parece que essa tal Margarida Farias também é

designer.

— Mas estão equivocados, não conhecemos ninguém com esse

nome - repôs Lavínia, concentrada no que fazia.

— Suponho que estão dispostos a pagar o que for...

Lavínia teve pouco tempo para pensar. Parou a máquina, deteve

as mãos sobre o tecido e se virou para sua melhor amiga, que nesse

momento lhe dedicava um olhar malicioso.

Nunca tinha feito algo como isso: mentir, usurpar a identidade

de alguém, mas se deu permissão de fazê-lo pela primeira vez. Além

disso, necessitava do dinheiro. OH, quanto o necessitava! Um olhar

intrigante lhe iluminou o rosto.

— Eu cuido – anunciou - depois de tudo, amanhã já não

estaremos aqui.

Aquilo tinha adicionado em tom desanimado, mas não

permitiria que a vida a acovardasse. Jamais o tinha feito e não

pensava começar nesse momento. Ficou de pé com decisão e saiu do

quarto de costura.

Quando as cortinas azuis se abriram, Nick virou-se e deu um

passo para frente, enquanto sua respiração ficou suspensa.

Nunca tinha imaginado que desse local sairia a criatura mais

linda que ele jamais tinha visto. Foi tal a impressão que levou, que

tudo pareceu transcorrer em câmara lenta.

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Ela vestia uma roupa da mesma cor azul marinho que os

cortinados de seu local e levava o cabelo loiro preso em um coque.

Algumas mechas soltas emolduravam seu rosto pálido de bochechas

avermelhadas e nariz pequeno. Tinha os olhos grandes e verdes,

impregnados de um brilho enigmático.

Lavínia também sentiu o mesmo comichão intenso no estômago

que Nick, quando o sentiu em seu próprio corpo, tinha sabido apagar

com rapidez. Nunca tinha imaginado que um homem tão arrumado e

distinto pudesse cruzar alguma vez a soleira de seu pequeno negócio

em falência. Um homem de cabelo loiro escuro, olhos de uma

estranha tonalidade entre o azul e o cinza, e um rosto privilegiado.

Levava o cabelo curto, entretanto se notava que algumas mechas

úmidas tinham sido desordenadas de maneira voluntária. Lavínia, que

estava acostumada a reparar nos detalhes antes que no conjunto,

concentrou a atenção em seu nariz. Era um nariz perfeito, que

anunciava uma sensualidade avassaladora quando os músculos

daquele rosto admirável se relaxavam, ou quando os lábios de

grossura também perfeita se curvavam em um sorriso. Parecia

mentira que um nariz pudesse dizer tanto, que um rosto era

objetivamente tão bonito.

Nesse caso, Lavínia reconheceu que o conjunto que poucas

vezes admirava era em boa parte responsável pelas percepções que

geravam os detalhes. Aquela beleza se complementava com os

gestos e o que escondia o olhar, qualidades que esse homem não

sabia que lhe pertenciam.

Ele levava o casaco aberto, assim também como os botões

superiores da camisa branca, na qual lhe dava um ar despreocupado

que contrastava com uma expressão de poder e de responsabilidade.

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Pablo, por outro lado, mantinha o terno ordenadamente, tinha a

aparência de ser o que mostrava. Nick parecia o que desejava ser,

mas era o que não desejava mostrar.

— Margarida Farias? - perguntou Pablo com gesto apressado.

Os instantes de silêncio que tinham decorrido desde que aquela

moça, tão diferente da designer que ele tinha imaginado, tinha

aparecido, pareceram-lhe eternos. Era estranho que o mesmo Nick

não tivesse apressado o assunto e que em troca a tivesse deixado

chegar até eles antes de emitir alguma palavra, e mesmo assim,

ainda se achava em silêncio, por isso tinha atacado ele.

Lavínia também pensou que quem falaria seria o outro homem,

que estava observando-a, mas isso não aconteceu. Para a pergunta

do sujeito, sentiu vergonha ao pensar que lhe mentiria, mas

tampouco se atreveu a dizer a verdade. Se ela não necessitasse do

dinheiro com tanta urgência, possivelmente lhes tivesse indicado que

nem sequer conhecia esse nome.

— Sim, sou eu - respondeu sucintamente, e estreitou a mão

que o primeiro homem lhe oferecia.

Pablo notou que a palma da mão da jovem se encontrava

molhada, mas não interpretou que se devia a que ela ficara nervosa

com a mentira.

— Meu nome é Pablo Díaz – explicou - e este é meu sócio,

Nicolas Hagen.

Lavínia posou seus olhos naquele belo e masculino rosto de

novo. Descobriu que o tal Nicolas lhe tinha enterrado seu profundo

olhar azul, como se soubesse que ela mentia, mas se convenceu em

seguida de que isso era impossível. Saudou-o com uma leve

inclinação de cabeça e virou o olhar rápido, antes de ruborizar-se por

completo. Lavínia estava segura de que esse homem não era

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consciente de quão poderosa resultava sua habilidade inata para a

sedução.

— Necessitamos que nos confeccione um terno a cada um para

sábado - explicou o tal Pablo.

— Para sábado? - Lavínia soube imediatamente que jamais

poderia terminar dois ternos novos dentro de dois dias. A tal

Margarida Farias devia ter muitos ajudantes se oferecia esse serviço.

— Infelizmente, neste caso só posso lhes oferecer algum que já

tenha pronto, se houver algum de seu tamanho.

— Não pode nos fazer dois ternos para sábado à noite? -

insistiu Pablo.

Lavínia se esforçava para não olhar ao outro sujeito, o qual lhe

exigiu um esforço sobrenatural. Estava segura de que esse homem

misterioso estava acostumado a monopolizar a atenção de todos.

— Nós gostamos dos objetos feitos sob medida.

— Desculpe, mas não - negou-se. Não podia lhes mentir sobre

isso também e lhes entregar ternos já confeccionados fingindo que

eram sob medida. Além disso, no sábado já teria fechado o negócio.

Pablo girou a cabeça em direção a seu amigo.

— Nick? - indagou. Mas Nick não iniciou nenhuma conversa com

Pablo, mas sim se dirigiu a Lavínia pela primeira vez naquela

conversação.

— Está bem, senhorita Farias, nos mostre o que tem - pediu

amável, mas muito seguro.

Lavínia estremeceu com essa voz masculina e clara, cheia de

poder. As notas de tensão que não passaram despercebidas para

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Pablo, que costumava ouvir um Nick despreocupado e leve, mesmo

nas situações mais difíceis eram indistinguíveis para ele.

Lavínia assentiu com cortesia e tomou o metro de cinta para

dedicar-se a medir ao homem que tinha falado primeiro. Anotou os

números em um papel e tomou uma funda baforada de ar que lhe

serviu para dar-lhe forças antes de encaminhar-se ao segundo.

Rogava ao céu não ficar vermelha quando se encontrasse o

suficientemente perto para sentir seu perfume.

Ela deu dois passos para o lado, engoliu com força e levantou

os olhos para Nick. Frente a frente, ele era vários centímetros mais

alto que ela, e estando perto, Lavínia se deu conta de que seu

perfume tão temido invadia aquele setor do lugar. Seu olhar a

atravessou como uma flecha, lhe acelerou o coração a um ritmo

inusitado e lhe provocou um ligeiro tremor nas extremidades. Eram

sensações que jamais tinha experimentado, porque nunca se havia

sentido tão atraída por nenhum homem, e nenhum que ela tivesse

tido a oportunidade de experimentar era subjetivo e objetivamente

tão atrativo como esse.

Incapaz de controlar sua vontade, reparou de novo em todos os

detalhes de seu belo rosto, na aura de sensualidade que o rodeava,

nos mistérios que escondia seu olhar. Não tinha ideia de como faria

para emitir palavra.

— Seria tão amável de... - começou. Quase parecia não

recordar o vocabulário.

Ia pedir lhe que ficasse de costas para poder tomar as medidas,

mas nesse momento viu por cima do ombro de seu cliente a figura da

senhora Rita, que cruzava a rua com passo acelerado. Sentiu o

sangue borbulhando nas veias, pressentia a vergonha de sua vida.

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Desculpou-se com rapidez e fugiu para o outro lado do

cortinado azul para lançar-se imediatamente sobre sua amiga, que

pregava botões frente à máquina de costurar.

— Tami! - exclamou, graças ao qual obteve a atenção da

morena até antes de apoiar suas mãos sobre a mesa da máquina. —

A senhora Rita se dirige para o ateliê e eu tenho que sair com estes

dois. Encarregue-se dela, por favor, e certifique-se que não lhe

escape meu nome. Não quero passar a vergonha de minha vida.

Tamara atravessou o cortinado atrás de Lavínia justo no

momento em que a mulher entrava no local. Era nada mais que uma

vizinha do bairro, mas seu terno falsamente exclusivo e seu pequeno

caniche branco lhe faziam parecer uma dama com um ligeiro

problema de orgulho.

— Vim buscar meu vestido - disse sem se importar com os

clientes que se achavam ali antes de sua chegada.

— Me siga senhora Rita - apressou-se a intervir Tamara, sem

lhe dar lugar a outra negativa.

Nick olhou à mulher de cima abaixo. Parecia a ponto de tornar-

se a rir porque duas pequenas covinhas se formaram sobre os cantos

de sua boca. Deu-se conta de que Lavínia respirava com agitação e

de que se pôs muito rígida. Podia sentir o motivo, mas não fez

referência alguma a isso enquanto permaneceu no interior do ateliê.

Ele umedeceu os lábios, e seguiu a figura da senhora Rita com a

cabeça inclinada para baixo, os olhos cinzas fixos nela, a frente

enrugada e as mãos nos bolsos.

A senhora Rita foi virtualmente arrastada por Tamara para o

outro lado do cortinado, onde sua voz já não seria audível para o

resto das pessoas porque Tamara a obrigaria a falar em sussurros.

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Enquanto isso, Lavínia recuperou sua respiração e avançou para

Nick com a fita métrica.

— Dê a volta, por favor - pediu. Soou compungida, de fato o

estava. Queria que tudo isso acabasse o mais depressa possível, já

não suportava a pressão nem a culpa que sentia.

Quando Nick cumpriu com o pedido, Lavínia sentiu que todo o

ar que tinha recuperado a abandonava de novo. Aquelas largas costas

cobertas por um casaco preto de qualidade assombrosa a deixou

emudecida. O aroma daquela pele a cegava, a imaginação a

retumbava.

Ficou nas pontas dos pés e mediu os ombros, logo o quadril.

Um suave calor lhe invadia as bochechas e seu corpo parecia flutuar

leve, entre as nuvens.

— Acredito que tenho os ternos perfeitos para vocês - anunciou

assim que conseguiu articular palavra. Recordou que tinha dois ternos

porque os tinha preparado como amostras que jamais aceitaram em

nenhum local. Justo dois trajes dessas medidas! Parecia mentira que

tivesse tanta boa sorte, sem dúvidas um deus que não era o seu

tinha entrado em sua loja.

Nick deu a volta e enterrou seu olhar cinza nela sem a menor

cerimonia. Era consciente de que punha nervosa a designer, e embora

estivesse acostumado a produzir esse efeito em muitas mulheres,

desta vez foi difícil, quase irritante. Ela era bonita, mas por mais

estranho que pudesse ser, não desejava seduzi-la. Nem sequer ele

entendia o que lhe estava acontecendo.

Lavínia se encaminhou aos ternos que se achavam em uma

prateleira e começou à busca dos ternos que tinha pensado para cada

um dos homens. Enquanto isso, do outro lado da cortina, a senhora

Rita se olhava no espelho com seu vestido novo.

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— Chame Lavínia - ordenou a Tamara uma vez que estudava a

imagem que lhe refletia no espelho. — Quero que me levante um

pouco mais as alças.

A senhora Rita não falou em sussurros, como Tamara esperava,

mas por milagre não se escutou sua voz do outro lado da cortina.

Aproximou-se de sua amiga justo quando esta procurava os ternos

prometidos e lhe aproximou do ouvido.

— Se não quiserem que a velha louca saia gritando seu nome,

vai ser melhor que venha.

Tamara girou a cabeça para os dois estranhos e lhes dedicou

um meio sorriso nervoso que não recebeu como resposta mais que

um olhar de impaciência por parte de Pablo. Nick estudava o

mostrador, mas até de costas a morena pensou que era o homem

mais atrativo que tinha visto em sua vida, depois de seu namorado.

Lavínia suspirou. As mãos lhe tremiam sobre uma das mangas

que tinha obstinado enquanto escutava a sua amiga. Pensava que

existiam no mundo muitas pessoas mentirosas, que enganavam todo

o tempo a outros, e ela, que nem sequer tinha mentido nunca para

ocultar uma travessura, sem dúvidas seria descoberta a primeira vez

que se atrevia a algo como isso.

Tampouco acostumava trabalhar de modo tão irresponsável,

atendendo a vários clientes de uma vez, o qual também pesava em

sua consciência. Desprendeu os dois ternos, girou sobre os

calcanhares e os ofereceu aos homens. Era tão má mentirosa, que

até ela notou que queria acabar com aquela encruzilhada muito

rápido.

— Aqui esta - disse ela. — Podem experimentar; se tiverem

alguma dúvida, ou se desejarem alguma outra coisa, por favor,

façam-me saber.

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Abandonou os ternos sobre os braços estendidos de Pablo e

fugiu com sua amiga ao outro lado do cortinado. A senhora Rita a

entreteve, pretendendo que se dedicasse exclusivamente a ela, antes

que aos outros clientes que ela parecia não notar que tinham

chegado primeiro. Com a paciência que a caracterizava, Lavínia a

convenceu de que relaxasse e tomasse assento enquanto ela se

desfazia desses dois indesejáveis.

Quando voltou para o pequeno salão de vendas, encontrou a

ambos os homens junto à caixa registradora. Os plásticos que

protegiam os ternos não tinham sido removidos, e os dois pareciam

esperar para partir.

— Bem? - viu-se obrigada a perguntar. — Não os provaram

ainda?

— Não o faremos - repôs Pablo. — Meu sócio diz que você tem

um olho clínico, levaremos estes.

Se não tivesse ouvido quando ele pediu a ela para mostrar a

eles o que tinha, Lavínia teria pensado que Nick era burro ou pouco

distraído, impaciente ainda, agora se divertia assistindo as prateleiras

com as mãos nos bolsos.

Tinha um ar disperso, fugaz, e Lavínia soube que aquilo

significava que jamais o veria de novo. Estirou um pouco o pescoço e

desfrutou de sua atrativa figura por sobre o ombro de Pablo um

pouco mais.

— Trabalha com cartão de crédito? - indagou o tal Díaz. Lavínia

voltou para a realidade só para lhe responder.

— N... não - balbuciou.

— Não há problema, então lhe pagamos em dinheiro.

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— Posso lhes fazer um desconto, se quiserem - esforçou-se por

consolá-lo. Estava acostumada a fazer descontos às pessoas que

compravam em seu negócio, só para que voltassem, mas se estava a

ponto de falir era evidente que seu plano comercial não tinha dado

resultado. Esses dois em particular, tampouco tinham pinta de

necessitar de cotas ou descontos.

Pablo o fez evidente soltando uma risada. Agora também levava

ele as mãos nos bolsos da calça e se balançava com impaciência.

— Não vai fazer falta - acabou por responder. — Quanto é?

— Bom - disse ela - por ser a primeira compra - "e a última",

pensou com tristeza - faço-lhes um desconto de todos os modos. São

trezentos e trinta cada um.

Cada um dos homens extraiu quatrocentos euros da carteira,

enquanto ela fazia com dedicação os pacotes com a compra. Uma vez

que tinha acabado os entregou e recebeu o dinheiro por seus

serviços. Pablo aguardava pelo troco, um troco que Lavínia não tinha

ideia de onde ia tirar, pois não tinha vendido nada naquele dia. Nick

caminhou até a porta.

— Guarde o troco.

Foi tudo o que disse antes de sair do local, sem sequer olhá-la

aos olhos. Atravessou a saída muito rápido, como se tivesse estado

esperando o momento de sair correndo dali. Pablo não teve outra

opção a não ser segui-lo, Nick se movia tão veloz que custava ir atrás

de seus passos. O desgraçado sempre acabava dando a volta ao

mundo.

Lavínia permaneceu pasmada um momento, observando o

fantasma do corpo daquele homem ainda em seu salão. Ao mesmo

tempo, uma estranha sensação de solidão e vazio lhe invadiu o

coração, que ainda pulsava a ritmo acelerado. Quase sentia desejo de

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chorar, possivelmente porque tinha a sensibilidade à flor da pele por

causa do assunto de sua loja.

— Já se foram? - perguntou Tamara junto ao cortinado.

Enrugava-o com as mãos e pretendia que ninguém mais que Lavínia

ouvisse.

A designer ficou com as oito notas entre as mãos, apertava-as

como se temesse que com elas se fossem a outra parte de Nicolas

Hagen que ficava. Tamara se aproximou, arrebatando-lhe o dinheiro

das mãos e dando uns saltos de alegria enquanto lançava um

dissimulado grito ao ar que contrastava com o silêncio sepulcral de

sua amiga loira.

Pablo nunca tinha visto Nick atuar de modo tão estranho.

Jamais seu amigo se cruzou com uma criatura tão extraordinária

como a designer sem assegurar-se de que voltaria a vê-la, sem fazê-

la passar os nervos de sua vida com frases e aproximações

provocadoras. A atitude que tinha mantido naquele negócio ditava

que estava acostumado a ter com qualquer mulher que fosse de seu

gosto, como o era sem sombra de dúvida, porque era do gosto de

qualquer um. Além disso, o tinha percebido um pouco tenso, inclusive

nervoso.

— Não posso acreditar que tenha decidido tão rápido - disse

uma vez no veículo. — Era tão bonita a designer que acreditei lhe

faria perder ao menos uma hora enquanto lhe fazia o trabalhinho.

Com "o trabalhinho", Pablo se referia em brincadeira às técnicas

de conquista de Nick. Aproximando-se lentamente da mulher,

provocando-a com perfume importado e uma voz serena, masculina;

as invadia com sua atração extraordinária, fora do comum. Nick as

olhava e as fazia esquecer o mundo.

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— Não vou experimentar algo que não penso em usar -

interrompeu-o seu amigo, ainda muito sério e sem rodeios, girando a

chave na ignição.

— O que? - Pablo começou a lamentar seus quatrocentos euros

só de pensar que, se Nick não utilizava o terno que acabavam de

adquirir, possivelmente tampouco poderia utilizá-lo.

— E para que o comprou? Por que me fez comprar isso? E lhe

damos de presente o troco!

— Você não vê? - indagou Nick, voltando os olhos para ele. —

Essa moça nunca tinha vendido dois ternos a este preço em sua vida.

Logo depois de determinar aquilo, olhou pelo espelho retrovisor

e, aproveitando um buraco, saiu ao trânsito colossal da avenida Mitre

em direção à ponte Pueyrredón.

— É incrível que procurassem a outra designer e viessem parar

aqui - soava a viva voz de Tamara enquanto Lavínia costurava a

máquina, horas mais tarde. — Se todos os dias tivéssemos a boa

sorte de que dois perdidos como esses chegassem a nossa lojinha,

possivelmente até poderíamos salvar o negócio - adicionou com

esperança.

— Mas não chegarão - repôs Lavínia com pesar e estranha

força, que a vida lhe tinha ensinado a conservar. — Não devia tê-los

enganado, não os deixei de saber que não abriria o local de novo

amanhã. Você acha que jamais vão descobrir que lhes mentimos?

Tamara deixou escapar uma gargalhada.

— Quanto te conheço, Lavi! – exclamou. — É capaz de não

dormir toda a noite pensando que lhes mentiu.

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A Tamara parecia engraçado, mas Lavínia se sentia incômoda e

até uma má pessoa. Deixou de costurar e levantou a cabeça para

olhar a sua amiga.

— Sim, Tamara - repôs seriamente. — Menti-lhes como uma

descarada.

Sua amiga respondeu fazendo um gesto de indiferença com a

mão. — Esqueça! – aconselhou. — Nunca os vais ver de novo.

Lavínia suspirou. Oxalá pudesse voltar a vê-lo, pensou com

tristeza, mas isso não aconteceria. O tal Nicolas Hagen não era mais

que uma ilusão inatingível, um ser que não pertencia a seu mundo.

— Queria te dar algo - disse a seguir, tratando de esquecer as

sensações produzidas por causa da mentira e de saber que não

voltaria a ver aquele estranho.

Lavínia mexeu em sua bolsa e colocou algo entre as mãos de

sua amiga. Quando Tamara pôde ver do que se tratava, três notas de

cem com o rosto vermelho de Julho Argentino Rocha muito sério,

elevou os olhos para a Lavínia.

— Não! – exclamou. — Não têm que me dar dinheiro, para isso

me paga um salário.

— Miserável - repôs Lavínia com resignação. Sua amiga riu.

— Não me importa - assegurou.

— Considera-o um presente de despedida.

— Pensa não me ver mais? - retrucou a morena com tom

zombador.

Lavínia suspirou e elevou os olhos ao teto que as cobria, este

sujo de umidade. Nunca lhe tinha sobrado dinheiro para reparar

também aquele setor do negócio, só a parte que viam os clientes.

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— Penso que amanhã todo meu sonho se converterá em cinzas

- sussurrou.

Tamara sentiu uma picada no coração. — Sei que você pode ver

as coisas de outro modo - sugeriu sua amiga, apoiando uma mão

sobre seu ombro.

— Amanhã você começa um novo trabalho; não é uma perda, é

somente uma mudança.

— Forçada pelas dívidas - repôs Lavínia. Nesses momentos,

custava-lhe ver o lado agradável de certas coisas. Tamara virou o

tema de conversação de repente.

— Está bem – disse. — Ficarei com cem euros desses trezentos

que queria me dar de presente.

A seguir tirou uma nota e deixou as outras junto à máquina de

costurar.

— E essa mudança de opinião? - perguntou Lavínia arqueando

as sobrancelhas.

— Nós vamos dançar - propôs Tamara. — Temos que festejar

seu novo trabalho.

Lavínia não pôde evitar rir.

Essa tarde, uma vez que tinham terminado de tirar a última

caixa, Lavínia fechou a porta de seu ateliê e elevou a cabeça para

observar o negócio em silêncio, como que o velando. Tinha

depositado ali todas suas ilusões, lugar onde agora, paradoxalmente,

encontrava sua morte.

Nesse momento, a ponto de fechar seu ateliê pela última vez e

para sempre, sentiu desejos de chorar. Seus belos olhos verdes

avermelharam, uma lágrima abandonou um deles e deslizou pela

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rosada maçã do rosto até morrer nos ladrilhos negros. Tamara deixou

a caixa que carregava no chão e abraçou a sua amiga. Seus sonhos

tinham chegado ao fim.

Os alunos se surpreenderam ao ver Nicolas L. Hagen, o

professor titular de uma das cadeiras de Estruturas III na carreira de

Arquitetura, muitas vezes pela universidade, apresentou-se para

conversar com seu colega sobre o projeto conjunto e logo com seus

alunos. Misturado entre eles, escutava com atenção a um jovem,

Tomas Achával, que lhe comentava suas perspectivas em relação a

seu trabalho.

— Pensei em lhe dar um toque histórico, mas ainda não consigo

encontrar a relação entre a história e a medicina... - contava-lhe.

Quando Nick os atendia, envolvia-se com seus problemas de

projetos fictícios como se se tratasse de assuntos verdadeiros.

— Tudo tem uma história - respondeu ele, muito sereno. — E

estou de acordo com isso que disse a respeito de que a edificação

ultra-moderna está acabando com os lugares históricos da cidade.

Mas tome cuidado que o excesso de historicismo resulte incompatível

com a tecnologia da medicina.

Depois de passar duas horas na universidade, Nick se reuniu

com três possíveis clientes em um restaurante. Uma vez livre desses

compromissos, dirigiu-se a seus escritórios.

Entretanto, havia algo que o mantinha distante,

impossibilitando-o de concentrar-se por completo em seu trabalho.

Esse assunto era o belo rosto da designer, ruborizado pela emoção e

o medo de ser descoberta. Recordava seus deliciosos movimentos

enquanto lhe media os ombros. Suas mãos eram suaves e deslizavam

sobre ele como acariciando um objeto muito apreciado, com gentileza

e humildade. Sobre tudo humildade. A designer de Sonhos era sem

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dúvida uma mulher muito digna apesar de sua mentira, notava-se

que estava desacostumada a mentir.

No momento não tinha podido reagir as emoções que ela lhe

provocou, enterradas tão profundo que, graças a um grave esforço,

permaneceram ali, imóveis. Ele mesmo achou irônico que ela lhe

tivesse agradado tanto e que, mesmo assim, não a tivesse

perturbado.

Possivelmente o impediu essa espantosa honestidade que

emanava cada movimento que ela fazia, cada onda sonora produzida

por sua delicada voz.

Agora, à distância, arrependia-se por não haver-se assegurado

uma noite com ela. Ele gostaria, queria voltar a vê-la, e nesse

momento essa necessidade ardia em sua virilha como um vulcão em

erupção. Finalmente deixou de desejá-la como a uma espécie de

objeto adorado e fez sua aparição conhecida, de desejo sexual, a

paixão caprichosa de possuí-la pelo simples feito de demonstrar que

ele podia com todo mundo, que não havia mulher que resistisse que

em sua natureza estava em ser um idiota.

Ficou pensando que ao menos sabia onde ficava o ateliê e em

seguida arranjaria uma desculpa para dirigir-se ali. Com o ânimo de

um menino cometendo uma travessura, procurou o pacote que tinha

deixado no guarda-roupa que tinha em seu escritório tal como o

havia trazido, e deixou o terno descoberto. Arrancou-lhe um botão e

o guardou no bolso interno do casaco que tinha posto. Pouco tempo

depois, encontrou-se sentado em sua caminhonete.

Conduziu a grande velocidade até Sonhos. Estacionou em frente

ao local e se aproximou da porta com o terno pendendo do

antebraço. O lugar estava fechado e às escuras. Olhou seu relógio:

eram três da tarde. No dia anterior tinha visto um pôster no vidro no

que figuravam os horários. Esse pôster já não estava, mas como bom

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observador, recordava que abria às três. Decidiu que esperaria um

momento, possivelmente se tinha atrasado. E se pela tarde só

atendia a morena? Não importava, tinha que correr o risco.

Enquanto deixava passar o momento, pegou-se ao vidro e fez

sombra com as mãos para ver o interior. Na aparência o local se

encontrava vazio. Não conseguia ver a caixa registradora, nem as

prateleiras, nem os objetos. Tampouco estava o cortinado azul que

dividia o salão em dois quartos, só o mostrador. Assim, decidiu

esperar.

Às três e vinte, sua esperança se esfumou por completo.

Experimentou uma estranha sensação que não havia tornado a sentir

em muito tempo: desolação. Não uma nostalgia entristecedora, mas

sim uma picada de ausência. Sentiu-se terrivelmente desiludido,

como um menino sem presentes no natal, porque seu capricho não

poderia encontrar solução. Uma vez que fui bom, pensou com ironia,

rindo dos que ousavam considerá-lo um afortunado.

Caminhava para sua caminhonete ao tempo que preparava as

chaves para abrir a porta quando viu um comerciante sair da loja

junto ao ateliê. O coração lhe deu um salto no peito. Imediatamente

se voltou com o temor de perder de vista a esse homem do mesmo

modo em que tinha perdido à designer, e o seguiu.

— Senhor! - chamou-o. O homem voltou-se. Nick esboçou um

sorriso diminuto.

— Estou procurando à proprietária deste local – assinalou. —

Uma moça loira de olhos verdes. Tive um percalço com um terno que

me confeccionou e me perguntava se você sabe onde posso encontrá-

la.

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— OH, sim - respondeu o ancião com amabilidade. — Acredito

que vive a umas quadras, pela rua Díaz Vélez - e lhe explicou como

chegar.

Nick agradeceu a direção ao homem, e a esperança voltou a

ressurgir em seu preocupado coração. Voltou-se para a caminhonete,

colocou-a em marcha e pisou no acelerador.

Enquanto Nick dobrava a esquina em sua Mercedes negra,

Lavínia apareceu pela outra, mas ele não chegou a vê-la. Com terrível

pressa, ela abriu a porta de seu antigo ateliê e procurou na gaveta do

mostrador. Tal como tinha pensado, ali tinha deixado os apliques

chapeados para sua roupa de sábado.

Quando Nick estacionou sua caminhonete último modelo em

frente aos monoblocos em ruínas onde o homem lhe havia dito que

vivia a designer, um grupo de adolescentes que bebia na esquina o

observou com receio. Não era comum ver por ali semelhante veículo

e homens de terno entrando nessa pocilga.

Subiu as escadas entre as pessoas que fumavam, desviando de

pernas que ninguém se dignou a encolher, embora Nick não se

importasse. Parou para pensar o que fazia uma princesa como aquela

em um inferno como esse; conhecia seu objetivo e não se deteria até

encontrá-la.

Golpeou à porta do apartamento que o ancião lhe tinha

indicado. Josué apareceu com os olhos muito vermelhos, estava

drogado.

— Estou procurando Margarida Farias - falou Nick. Sabia que

esse não era o nome real da designer, mas era o único que tinha. O

ruído do televisor resultava ensurdecedor.

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— Cristina! - gritou o moreno, girando a cabeça para um lado.

— Conhece uma tal Margarida Farias? - Josué pareceu escutar uma

resposta.

— Não é aqui - disse a Nick, que nem remotamente pensou em

dar-se por vencido.

— É uma moça loira e muito branca, de olhos verdes -

descreveu. Josué soltou uma gargalhada que se escutou até a

escada. Desprendia aroma de álcool.

— Loira, branca e de olhos verdes aqui? - burlou-se. — Você

deve estar mais bêbado que eu! Melhor que corte o papo furado e

deixe de importunar.

Nick arqueou as sobrancelhas. Embora um certo abatimento

voltou a fazer peso em seu peito por causa da ausência da designer,

tirou de um bolso e acabou dando cem euros ao sujeito, só porque no

fundo de seus olhos negros encontrou um indicio de ignorância, de

uma vida vivida do único modo que lhe tinha sido ensinado.

Josué sentiu a esperança de que todos os dias aparecesse por

sua casa um perdido como esse, lhe obsequiando dinheiro.

— Cristina - disse nem bem fechou a porta. — Um idiota que

procurava uma flor me deu de presente cem euros.

— Sim, Josué - respondeu ela. — Está tão bêbado que não te

dá conta de que acaba de passar um porco voando do outro lado da

janela.

— Não acredita? - questionou o moreno.

— Cale-se - ordenou ela, e voltou sua atenção ao televisor.

— Deixe-me escutar.

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Josué pensou que era um idiota por ter dito a sua mulher sobre

os cem euros, mas estava tão surpreso que lhe escapou. Por sorte

não tinha acreditado e tinha asseguradas suas porcarias por uns dias

mais. Era uma tarde de boa sorte.

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Capítulo 4

— Animo! - exigiu Tamara a Lavínia. Gritava pelo forte som da

música. — Troque essa cara! Esta noite... Estamos festejando! -

adicionou com entusiasmo enquanto sacudia a sua amiga.

Ambas se encontravam sentadas nos sofás de uma discoteca de

São Telmo. Depois do divertido comentário de Tamara, Lavínia logo

sorriu, sem tempo para pensar em uma resposta porque sua amiga a

agarrou pela mão e a pôs de pé em um salto. Estava disposta a

obrigá-la a dançar até esquecer todos os problemas daquela semana

difícil.

Nesse momento, uns jovens se interpuseram entre as duas

amigas e começaram a dançar um com uma, e o outro com a outra.

— Qual seu nome? - perguntou o que havia tentado a sorte

com Lavínia.

— Se eu lhe pedir que adivinhasse, não acertaria - brincou ela

em resposta.

— Então não me peça isso - replicou ele. Conservava um olhar

risonho. Lavínia se inclinou para o menino e este abaixou a cabeça

para poder ouvi-la.

— Escutou alguma vez falar de Enéas?

— Não - negou ele, com a palavra e também com a cabeça.

— Bom, eu sou sua esposa: Lavínia.

O menino deu um passo para trás. Elevou ambas as

sobrancelhas.

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— É casada? - indagou surpreso. Ela soltou uma gargalhada

perante a desilusão que experimentava o bailarino.

— Não ria. Quero dizer que meu nome é Lavínia.

— E quem é Enéas? - perguntou então ele, ainda mais confuso.

Lavínia deu de ombros com resignação.

— Não tem importância - disse.

Alguém lhe chamou a atenção por sobre o ombro de seu

momentâneo amigo. Uma bonita moça de cabelo castanho comprido

até a cintura e corpo voluptuoso dançava sobre uma plataforma. Seus

movimentos sensuais convidaram a um jovem a aproximar-se e

dançar com ela.

Pouco a pouco, o moço ia tomando confiança: aproximou-se da

dançarina, rodeou-lhe a cintura com um braço, encostou a braguilha

da calça a seu traseiro e assim o baile sensual se transformou em um

áspero espetáculo de obscenidade e ousadia.

O gole mais amargo de digerir para Lavínia foi que sua irmã

Helena não se incomodou pela atitude do desconhecido, mas sim deu

a volta, rodeou-lhe o pescoço com ambos os braços e o beijou na

boca. As línguas se entrelaçavam à vista de todos, as mãos do moço

se deslizavam até as nádegas da mulher, que tampouco se

preocupava em lhe impedir o gesto.

Lavínia soube então que tudo seguia igual: a minissaia

ajustada, as botas até o joelho, o espartilho apertado ao corpo miúdo

e o decote que fazia saltar o busto.

Se quando vivia com Helena tinha poucas notícias em relação à

vida privada de sua irmã, agora que já não vivia na mesma casa, o

número de informação decrescia notavelmente. Fazia dois anos que

não sabia nada ao certo a respeito de Helena, por isso encontrá-la

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naquele lugar e em uma situação tão pouco encorajadora acrescentou

um véu de tristeza ao rosto de Lavínia. Aparentemente seu

companheiro notou a expressão, porque girou a cabeça para trás

para ver o que havia apanhado a atenção de sua nova amiga e logo

voltou para ela com discreta curiosidade.

— Você a conhece? - indagou em relação à garota que dançava.

— Sim - confessou Lavínia. — Fazia muito tempo que não a

via... assim.

— Parece que ela gosta de Madonna - brincou o menino. Fazia

alusão à canção que soava nesse momento, a que Helena parecia

dançar com extraordinário prazer.

Lavínia sorriu com a brincadeira. Não tinha sentido lamentar-se

por uma realidade que a mesma Helena não desejava trocar, nem

tinha querido fazê-lo quando Lavínia lhe disse que pagaria seus

estudos, até com todo o sacrifício que isso significaria para ela, em

função de que abandonasse a rua.

Enfim, Helena nunca reconhecia seu meio de subsistência nem

era habitual tais discotecas, se não fosse para procurar clientes. Para

divertir-se, Helena escolhia bares que às vezes se tornavam

perigosos, não discos de São Telmo.

— Parece preocupada - disse-lhe o menino enquanto elevava

uma mão para lhe acariciar o queixo. — Posso fazer algo por você?

Lavínia virou o rosto com suavidade. Não estava disposta a ser

rude com o moço só por tentar beijá-la. Soube que ele procurava

esse tipo de aproximação, como quase todos os que se encontravam

nesse tipo de lugares, desde o começo.

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— Olhe quem fala - respondeu. Tinha notado que ele também

estava preocupado desde que a tinha tirado para dançar, embora

tentasse esconder.

— É verdade - se surpreendeu o menino. — Como sabe disso?

Se você quiser dizer. Quer se sentar?

Lavínia aceitou. O jovem, que se chamava Tomas, entendeu a

mensagem que ela tinha querido lhe dar e com isso perdeu todo

interesse em beijá-la. Em troca parecia disposto a utilizar a poltrona

de uma discoteca como o divã de um psicanalista, e a Lavínia de

psicóloga.

Sentados em um canto onde a música soava com menos

estridência, ele falou.

— É por meus estudos - explicou com simplicidade. Esperava

uma resposta por parte de Lavínia.

— É por meu trabalho - comentou ela, disposta a usar também

da psicanalise gratuita. — Eu tinha um ateliê. Fechamos ontem.

O jovem fez uma careta. — Nossa.

— Sim, é duro - admitiu Lavínia - mas assim é a vida: dura. E

você? - roçou-lhe o braço sem segundas intenções, só para atrair seu

olhar, disperso em algum setor da discoteca. — O que você estuda?

— Estou no último ano de Arquitetura - explicou ele, voltando a

olhá-la com ansiedade. — O problema é que estou trabalhando no

projeto final e o meu professor apareceu lá na classe duas vezes

seguidas.

— O que tem isso? - indagou Lavínia, intrigada e divertida.

— Que estava acostumado a aparecer com menos frequência -

explicou ele. — Suponho que colocarei mais atenção a este projeto

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que a nenhum outro de minha vida, e tenho medo de não alcançar

seu nível.

Lavínia se encolheu de ombros.

— Bom, sempre terá que pensar que os professores

necessariamente foram alunos - respondeu.

Tentava consolá-lo, mas como ela passou pouco tempo na

universidade, não tinha muita ideia das exigências que ficavam em

jogo nos últimos anos, só podia imaginar.

— Estou segura de que seu professor não se esquecerá de que

foi aluno e esse conhecimento o ajudará a avaliar seus trabalhos. Não

finja ser igual a ele, seria um pouco ingênuo de sua parte.

Tomas deixou escapar uma risada irônica.

— Essa eminência não tem um só cabelo de ingênuo, disse-lhe.

— Até as eminências têm um pouco de misericórdia! -

exclamou, ainda com um sorriso nos lábios.

— É muito famoso.

— Ah, sim? É um arquiteto?

— É um engenheiro. Nicolas Hagen.

O coração da Lavínia deu tombos. Podia ser possível que a boa

sorte golpeasse outra vez a sua porta? O homem que tinha entrado

em seu ateliê era famoso. Famoso! E comprou seu terno!

Arranjou-se no assento com renovado interesse na conversa,

que sem querer se encaminhou para o inesperado.

— Quem? - perguntou para estar segura. Era tão estranho que

algo bom lhe acontecesse, que tinha que certificar duas vezes a

informação.

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— Nicolas Hagen - repetiu o moço - Sempre constrói com...

— Díaz - completou Lavínia com devaneio.

— Você conhece Nicolas Hagen? - perguntou o jovem

entusiasmado.

— Um pouco, nada de mais - indicou Lavínia. — Mas não posso

te negar que eu adoraria conhecê-lo - fingiu que brincava. Ambos

riram.

— Sim, isso dizem todas - concluiu ele. — Em realidade não sei

para que trabalha na universidade, não acredito que necessite o

salário miserável de um professor sendo... ele.

— Possivelmente sim necessita - propôs Lavínia. Acreditava que

os falatórios que fazia referência seu amigo a respeito de Nick só

partiam de alunos fofoqueiros.

— Nem tudo passa pelo dinheiro, ser professor não é um bem

econômico para quem ensina, a não ser espiritual - pensava em seu

pai.

— Bem, seu espírito sim que gosta de divertir-se! - exclamou o

menino com dissimulação na voz e até certa inveja.

— E você como sabe tudo isso de seu professor? - questionou

Lavínia com ar de professora.

— Aparece em qualquer revista - contou-lhe ele. — Você

conhece Sofia Morais, a modelo?

— Sim - apressou-se a responder Lavínia.

— Ele teve algo com ela, como muitas outras - ocupou-se

Tomas de adicionar. Lavínia arqueou uma sobrancelha. — É um

arrogante sortudo, mas sim é uma eminência!

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Lavínia sorriu perante a expressão de admiração do moço e por

sua própria ilusão de que alguém importante comprou um de seus

ternos. O engenheiro devia estar utilizando-o nesse preciso

momento, posto que tivesse indicado que o levaria no sábado. Lavínia

quase saltou de alegria.

Procurou a Tamara com o olhar para lhe contar o feliz

acontecimento, mas a viu dançando com o amigo de seu

companheiro e por isso decidiu não incomodá-la. Na segunda-feira

compraria a revista onde visse o famoso engenheiro e... poderia

exibir que usava um de seus modelos! Que modo de começar um

novo empreendimento! Possivelmente se a vida lhe sorri-se enfim e

lhe desse uma oportunidade.

— Me fale mais de seu professor - pediu Lavínia a seu recente

amigo. Ele riu.

— Acreditei que estava interessada em mim, não em meu

professor, embora não te culpo - brincou. Ela sorriu, logo ele ficou

muito sério.

— Olhe, se o conheceu, esqueça - sugeriu com honestidade. —

Duvido que volte a vê-lo. Por acaso não te deixou como lembrança

duas passagens para o Paradise? É com isso que está acostumado a

agradecer a suas...

Logo depois de descobrir o que acabava de dizer e o efeito que

poderia ter gerado em Lavínia o conhecimento daquela verdade, ele

guardou silêncio. Entretanto, não encontrou olhar algum de dor nela.

— E o que é o Paradise? - perguntou Lavínia, que até estava

divertida com a anedota. Ela tinha entendido o que seu amigo tinha

omitido a respeito do que agradecia Nick com as passagens.

— Seu cruzeiro.

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Os jogos de luzes eram iguais em todas as discotecas, mas as

festas privadas sempre resultavam muito mais íntimas e exclusivas.

O salão tinha sido decorado com tecidos negros, cor que servia como

símbolo para a marca de champanhe que oferecia a celebração por

seus vinte e cinco anos no mercado e inclusive os convidados deviam

vestir nesse tom, esporte elegante.

Nick tinha posto um terno. Um terno que não era confeccionado

por Lavínia, tal como ele tinha previsto. Beijava uma mulher,

acariciava-lhe as costas, e ela procurava enredar seus finos e longos

dedos no cabelo do homem. Era inútil, porque ele o levava curto.

Embora o beijo tivesse acabado, ela continuou lhe acariciando

as bochechas. Ele abriu os olhos. Uma mulher o saudou com a mão

da pista de dança. Nick respondeu do mesmo modo. Depois, ela

cochichou algo com outra e se afastaram do lugar que se viam as

poltronas brancas em uma das quais se achavam Nick e sua

companheira.

A mulher acendeu um cigarro com ar preguiçoso, inalou-o duas

vezes e logo o colocou entre os lábios de Nick. Ele gostava que as

mulheres lhe acendessem o cigarro e o provassem primeiro com seus

próprios lábios; se elas não o faziam por sua conta, ele o ensinava e

o pedia.

— Nick! - gritou uma loira que saltava sobre si mesma a uns

metros de distância e o saudava agitando uma mão.

Do mesmo modo febril, desceu dois degraus e se sentou na

mesa de centro que estava frente à poltrona na qual Nick abraçava a

jovem de cabelo castanho. Ele se levantou, tirou o braço dos ombros

da mulher e se inclinou para frente para apoiar os cotovelos sobre os

joelhos e assim estar mais perto da loira.

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— Você chegou a Margarida Farias? - indagou a moça com voz

exageradamente divertida. Evidenciava, possivelmente, algumas

taças que já devia ter bebido. — Passei o endereço a Pablo, mas me

parece que lhe disse algo. Quando me pediu isso, eu estava um

pouco... - deixou a frase em suspense, mas para completá-la levou

travessa um dedo à boca.

Os olhos de Nick brilharam de excitação ao mesmo tempo em

que inalava o cigarro.

— Esse engano foi o mais afortunado que pôde me ter ocorrido

em dias - disse enquanto a fumaça escapava de seus lábios

avermelhados de forma preguiçosa. Ele também falava com lentidão,

fazendo uso de um tom pastoso e superficial. — Pelo menos esse dia.

Lavínia aguardou a segunda-feira com ansiedade. Saiu de sua

casa antes que Hector despertasse. Levava um suéter branco, uma

calça vaqueira e botas marrons.

Procurou em uma banca, percorreu página por página as

revistas de celebridade, mas a pressa e com o atento olhar do

vendedor sobre o que ela cheirava, não encontrou nada. Ela teve que

pagar pelas três revistas para estudá-las em sua casa com detalhe.

Só em uma achou o que procurava. Entre as dez fotografias que

ilustravam a festa de aniversário de uma das marcas de champanhe

mais famosas do mercado, Nick se destacava mais que qualquer

outro homem.

Encontrava-se de pé diante do pôster publicitário da marca.

Tinha abraçada a seu lado uma mulher morena, de vestido negro e

decotado que contrastava com o destemperado dessa noite de

primavera. Nick levava um terno posto. Um terno que de maneira

nenhuma era o que ela tinha confeccionado.

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Sentiu uma grande desilusão. Perguntava-se se seu cliente não

teria gostado do terno na realidade, se teria se arrependido de usá-lo

no último momento ou se teria tido algum problema com a mão de

obra. Ficou pensando que ao menos tinha obtido uma imagem dele, a

que poderia recorrer quando recordasse que alguma vez o homem

mais lindo do mundo tinha pisado em sua loja.

Espremeu a revista contra o peito, cuidando de apoiar a

imagem de Nick justo onde pulsava seu coração, e franziu o cenho

com melancolia. Sentia-se uma adolescente que admirava a

fotografia de seu cantor favorito.

— Lavi?

A vozinha de Hector interrompeu seu devaneio. Provinha da

porta da casa, onde o pequeno de quatro anos se achava de pé.

Observava a sua irmã, que se encontrava sentada à mesa.

O apartamento era pequeno e precário, mas ao menos o edifício

não estava lotado de delinquentes como o que ainda habitavam sua

mãe, sua irmã e Josué.

Depois daquele anoitecer, no qual Lavínia tinha fugido dos

monoblocos com seu irmão nos braços e logo tinha denunciado a sua

própria família, as coisas tinham mudado muito. Josué tinha passado

umas horas na prisão e um juiz tinha disposto que a custódia de

Hector passasse às mãos de sua irmã maior, que era a única da

família que podia comprovar ganhos mensais nítidos e um lugar onde

viver com o pequeno. Tratava-se desse apartamento que tinha

alugado em La Boca a muito bom preço. De todos os modos, Lavínia

devia levar o pequeno à casa de seus pais uma vez por semana e

nunca lhe fazer perder contato com eles.

— Sim? - respondeu. O menino, em pijama, se aproximou

correndo.

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— O que esta fazendo? - perguntou aos pés de Lavínia.

— Procuro a foto de um cliente - explicou ela.

— E a encontrou? - indagou o moreno, curioso.

— Sim - admitiu Lavínia com certo pudor, e logo voltou a vista

para aquele rosto formoso que a olhava da página quarenta e oito. —

Mas estou triste porque não leva meu terno posto - viu-se obrigada a

admitir com desilusão. — Possivelmente teve algum problema. Terá

lhe ficado mal? - Lembrando que se negou a prová-lo.

— Você fez tudo bem, Lavi - disse seu irmão. Lavínia sorriu

enternecida e elevou ao menino para deixá-lo sobre seus joelhos.

— Obrigado, Cotito - disse-lhe. — Você gosta de minhas

criações?

— Sim! - exclamou enquanto lhe dava um abraço.

— E eu das tuas - expressou Lavínia com total sinceridade,

respondendo simultaneamente ao ato de afeto de seu irmão. Referia-

se aos desenhos que ele fazia com esmero.

— Vamos hoje ver mamãe? - continuou o menino.

— Amanhã. As terças-feiras vemos a mamãe - recordou-lhe ela.

Lavínia cumpria com as visitas, mas ia embora com Hector

assim que notava que o ambiente ficava desagradável. Helena quase

nunca estava.

Tal como tinha prometido, na terça-feira pela tarde levou o seu

irmão ao apartamento de sua mãe. Nem bem a viu, o menino correu

a seus braços, e a mulher aproveitou para destilar algo de seu

veneno.

— Sentiu saudades de mim , meu príncipe - lançou.

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Lavínia não respondeu à provocação. Sentou-se diante da

mesa, lugar onde permaneceria o resto da tarde. O televisor soava a

todo volume; o aroma de graxa, charuto e umidade impregnava a

moradia.

Algumas horas depois, Lavínia falou com sua mãe, que estava

sentada com Hector sobre as pernas, vendo televisão.

— Não pode Josué chegar cedo algum dia? – perguntou. — Não

posso ficar até qualquer hora sempre, esperando-o - evitou adicionar

um "como se ele tivesse tantas coisas que fazer" só porque não

desejava entrar em conflito com Cristina.

— Rouba o nosso filho e ainda por cima pretende nos impor

horários - gritou a mulher, irritada. Lavínia preferiu não dar resposta.

Não desejava que Hector se sentisse um troféu de guerra.

Esperou até as seis, hora em que Josué se dignou a aparecer

bêbado. Logo depois de sua chegada, a estadia na casa não durou

mais de meia hora. Lavínia sabia que, se permanecesse ali, o

ambiente se tornaria insuportável.

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Capítulo 5

Passou uma semana em que Lavínia se acostumou a sua nova

metodologia de trabalho e Nick viajou para Mendoza para atender a

um cliente exigente. Ele se dava conta de que, desde que tinha

conhecido a misteriosa designer, preferia passar seu tempo com as

loiras, e se possível parecidas com ela, embora nenhuma pudesse

competir com a falsa Margarida Farias. Ele precisava assegurar uma

noite com essa mulher, apagar a sede que o consumia e o fazia sentir

um estúpido por não ter podido lidar com isso enquanto lhe comprava

o terno.

O que lhe tinha impedido de atuar como sempre o fazia?

Possivelmente o tinha privado o fato de que aquela não parecia uma

mulher fácil como as que costumava conhecer, nem disposta a passar

uma noite por mero prazer com um desconhecido, por mais atrativo

que este lhe resultasse. Nick se propunha a alterar essa estúpida

convicção.

Ele estava voltando para o aeroporto. Não tinha dormido por

passar a noite com uma loira, neta ou sobrinha de seu cliente, já não

o recordava com exatidão. Só sabia que lhe tinha convidado para um

vinho e era tão doce que acabaram com três garrafas.

Perguntou-se de onde vinha uma canção de Coroa, Baby,baby,

que soava no interior da caminhonete como de uma panela. Demorou

um momento para compreender que se tratava de seu telefone

celular e que, como de costume, não tinha ideia de onde o tinha

deixado. Aproveitou para buscá-lo ao parar em um semáforo. Mexeu

em sua bolsa, que tinha abandonado sobre o assento do passageiro,

mas não o encontrou. Olhou o semáforo. Como continuava em

vermelho, inclinou-se e tateou entre papéis debaixo do assento caso

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tivesse caído. Quando deu com o celular, observou a tela. "Connie".

Ele tinha gravado o número da mulher porque ela o tinha exigido,

uma vez que estavam juntos tinha tido que tirar o telefone do bolso,

mas como demônios teria conseguido ela seu número? Ele se cuidava

muito bem para que nenhuma pudesse obtê-lo. Olhou o semáforo de

novo.

Por diante de seus olhos passou uma miragem. Era realmente a

misteriosa designer ou se tratava de sua imaginação? Ela terminava

de cruzar a rua! Outra vez a perderia!

Assim que o semáforo ficou verde, Nick não seguiu circulando

em direção reta, como pensava fazer, mas sim girou e trocou de pista

sob a reclamação de outros condutores. Nick não se importou: seu

único objetivo era não perder a Margarida, ou como fosse que se

chamasse, mais uma vez.

Não tinha dúvidas: era ela. Vestia o mesmo terninho do dia em

que a tinha conhecido; levava o cabelo loiro muito liso preso em uma

fivela. Caminhava com facilidade em direção a uma loja de roupas

feminina.

Nick parou o automóvel. Olhou-se pelo espelho retrovisor e

arrumou o cabelo: o rosto parecia cansado e ainda tinha um pouco de

ressaca, mas se se esforçasse poderia esconder bem. Estava

acostumado a fazê-lo. Desceu do automóvel mal estacionado,

acionou o fechamento o alarme com um botão e caminhou para a loja

que ela tinha entrado.

Uma vez ali, olhou pelo vidro da loja, e ao não ver a designer, o

coração lhe deu um salto no peito. Temia que se tratasse de uma

miragem ou de uma mulher parecida com ela. Resultava lógico,

porque era impossível que levasse o mesmo terninho que o dia que a

tinha conhecido, como se não tivesse roupa descente para vestir.

Possivelmente tivesse se equivocado de mulher.

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O desgosto voltou a lhe encolher o peito. De todos os modos,

decidiu dar uma olhada dentro; a loja tinha muitas curvas e a falsa

Margarida podia haver-se perdido por qualquer delas.

Percorreu o salão absorto em sua busca, estirando o pescoço

para chegar a ver além do que seus olhos e seu metro oitenta e seis

de estatura lhe permitiam, até que uma vendedora se interpôs entre

ele e seu hipotético objetivo.

— Busca algo para sua namorada? - perguntou.

Nick voltou os olhos para a mulher. Não se tinha dado conta de

que tinha acabado na seção de lingerie feminina. Pensava com

desilusão em retirar-se, pois não havia rastro algum da mulher de

seu interesse.

— Não – respondeu. — Na realidade procuro uma amiga,

acredito ter visto-a entrar aqui.

— Tem o salão com objetos de festa do outro lado do cortinado

- assinalou a mulher, a qual Nick agradeceu e se encaminhou para

onde lhe tinha indicado.

Foi obra de sua boa fortuna ou do destino, porque ali estava

ela, de costas para ele, desdobrando vários objetos sobre um

mostrador enquanto tentava convencer à vendedora de que a cor

violeta sentava muito bem para qualquer temporada. Ao menos esse

foi o fragmento de conversação que ouviu Nick.

Era um milagre tê-la achado por pura casualidade em uma

cidade tão grande. Avançou até ela e se deteve a poucos centímetros,

onde seu delicado aroma invadia seus sentidos e reavivava seu

desejo de possuí-la, onde seu cabelo loiro e sua pele lisa e feminina

enchiam sua mente de fantasias.

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— Nós já temos fornecedores, não compramos de designers

independentes - dizia a jovem vendedora do local.

— Margarida? - falou Nick. Lavínia não se deu conta de que se

dirigiam a ela, continuou falando com a vendedora como se ele não

existisse.

— São confeccionadas com minha própria garantia de qualidade

- explicou, assinalando uma costura. — Pode ver esta costura? Nem

sequer se nota, certo? É meu próprio ponto, perfeito para desenhos

de festa.

— Margarida? - repetiu ele com voz muito suave.

— Acredito que lhe chamam - assinalou a vendedora, que de

um princípio se mostrou desinteressada nos desenhos que lhe

oferecia Lavínia.

— A mim? - perguntou ela. — Quem?

A vendedora voltou a assinalar. Lavínia compreendeu que a

suposta pessoa que lhe falava se encontrava a suas costas, por isso

girou sobre os calcanhares para verificar que, tal como pensava,

ninguém se dirigia a ela. Entretanto, levou-se a surpresa de sua vida.

Seu corpo ficou mole e fraco. Nick percebeu imediatamente e

reconheceu nas reações de Lavínia o efeito que produzia sempre as

mulheres que tentava impressionar, e às que não. Nessa

oportunidade, a diferença do que lhe acontecia com qualquer outra,

sentiu certo alívio e não interesse em vangloriar-se por seu triunfo.

— Você! - exclamou a designer, congelada.

Ele sorriu; jogava as mãos assim de sua segurança e de sua

imagem.

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— Não têm ideia de quanto te procurei - disse com toda

intenção de apanhá-la, de que Lavínia se desse conta de que ele

estava interessado nela sem rodeios, sem eufemismos

desnecessários.

Nick se surpreendeu de que, em lugar de ficar nervosa pela

insinuação aberta, Lavínia parecia estar por outra coisa.

Possivelmente ainda pensava que ele não sabia que sua identidade

não era a de Margarida Farias. Não fez esclarecimentos, permitiu que

Lavínia o pegasse pelo braço e o tirasse do salão por uma porta que

dava a outra rua. Uma vez na calçada, ela voltou a olhá-lo.

— Você não usou meu terno - espetou com o cenho franzido. Se

Nick não tivesse sabido que ela estava tão nervosa, até teria

acreditado que se zangava a sério.

Lavínia não tinha querido dizer isso, era consciente de que

boicotava sua própria ilusão pelo simples feito de ter mentido em

relação a sua identidade. Tinha começado a conversação com o

homem que mais lhe tinha interessado na vida com uma

recriminação, agora que finalmente ele decidiu lhe falar.

— Perdão - continuou, ainda antes que Nick pudesse dar uma

resposta. — Não quis dizer isso, não quero te perder.

Lavínia se amaldiçoou de novo. Como podia ser tão idiota de

deixar-se trair assim por seus sentimentos? Agitou a cabeça com

rapidez enquanto ficava subitamente vermelha.

— Quero dizer... como cliente - adicionou cabisbaixa.

Nick se dava conta de cada um dos pensamentos que cruzavam

a mente de Lavínia e se esforçava por não rir. Nunca tinha visto

mulher mais transparente que essa.

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— Você tem alguns minutos? - perguntou em seguida,

ignorando todo o resto.

Lavínia elevou os olhos verdes e imensos para ele.

— Um pouco - respondeu. Estava disposta a cuidar do queria

dizer, como de um acidente de trânsito.

— Ah, que lástima - replicou Nick, olhando para a loja por sobre

o ombro de Lavínia.

— Por que? - perguntou ela.

Ele se virou para olhar para ela.

— Porque tenho um momento livre antes de voltar para o

trabalho e pensei que poderíamos tomar algo juntos.

Lavínia sorriu e ele leu um mundo de ilusões em seu olhar.

Agora que a via com detalhe, achava possivelmente que tivesse

menos idade do que ele tinha imaginado.

— Sim claro - apressou-se a responder. Devia estar sonhando, e

nenhuma advertência a respeito de Nick iria dar cabo do sonho.

Nick sorriu. A sensualidade do gesto provocou um comichão na

boca do estômago de Lavínia, sensação que se transformou em um

torvelinho quando ele se inclinou para ela e lhe falou com uma voz

muito suave.

— Se quiser que te confesse algo – disse - eu tampouco quero

te perder.

Ruborizada; Lavínia não foi capaz de lhe sustentar o olhar.

— Espere – pediu - Volto em um momento.

Até com certo medo de voltar a perdê-lo, viu-se obrigada a

entrar outra vez ao salão de vendas e aproximar-se do mostrador. A

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vendedora já não se encontrava ali, atendia a uma cliente junto aos

provadores. Lavínia guardou seus delicados e queridos objetos em

suas bolsas temendo esquecer alguma pelo estado de excitação em

que se encontrava. Também duvidava a respeito de retirar-se de

qualquer jeito do local depois de ter conseguido que, ao menos,

escutassem-na, pois sempre se negavam antes de lhe dar sequer a

oportunidade de mostrar seu talento. Tinha que vender alguma coisa,

ou até mesmo deixá-los em consignação para poder pagar o aluguel

do apartamento, os impostos, a comida e tantos outros gastos.

Pensar nisso funcionou como um anjinho em seu ouvido direito, que

lhe sugeria esperar à vendedora e tentar lhe vender algo do que

tinha. Entretanto, o diabo do ouvido esquerdo lhe sussurrou que se

passava a vida adiando seus próprios interesses pelos dos outros, e

foi esse o que, depois de suspiros e dúvidas, triunfou.

Quando saiu do local, uma das bolsas que levava se enganchou

no marco da porta, entretanto conseguiu retê-la entre as mãos e sair

graciosa da situação. Olhou para ambos os lados da rua: não havia

rastros de Nick. O coração deslizou por todo seu corpo até chegar aos

pés: ele não se encontrava nessa calçada, nem na outra. Voltou a

olhar até que o viu sair de um quiosque, abrindo um pacote de

cigarros.

A alma de Lavínia retornou a seu corpo. Foi muito agradável

não ter perdido aquele sorriso sem motivo aparente. Ao chegar a seu

lado, Nick lhe ofereceu um cigarro estirando o braço com o pacote

para ela.

— Não, obrigado - respondeu Lavínia.

O colocou um em sua boca e logo foi em busca do isqueiro

prateado que sempre levava consigo.

— Aonde você quer ir? - perguntou enquanto acendia o cigarro

encurvando a mão diante do fogo para que não se apagasse.

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— A qualquer parte - respondeu ela ao tempo que se encolhia

de ombros.

Como Nick pôs-se a caminhar para uma esquina, Lavínia o

seguiu, arrastando consigo o peso das bolsas. Nick se deteve ao notar

que ela estava para trás e sem consultar-lhe sequer, pegou as bolsas.

O toque das mãos foi suave, mas eletrizante; teve o poder de

deixar a Lavínia sem fala, incapaz de lhe dizer que não era necessário

que carregasse as bolsas por ela. Nick seguiu caminhando rumo a um

bar que se achava no quarteirão seguinte.

— Senhor! - ouviram. Tratava-se de um inspetor de trânsito que

se dirigia a Nick. — Este é seu veículo? - assinalou.

Nick sabia que estava mal estacionado.

— Deixe uma multa - indicou sem deixar de caminhar.

Lavínia tentava seguir seus passos apressados, quase parecia

que Nick não desejava perder nem um segundo.

— Você realmente não se importa se for multado? - perguntou-

lhe Lavínia com assombro, ainda mais do que lhe tinha provocado a

Mercedes Benz preta que pertencia a seu partido.

— Enviarei alguém para pagá-la e terei perdido menos tempo

do que perderia movendo o veículo para procurar estacionamento

nesta cidade - respondeu ele sem deixar de caminhar e nem voltou

para olhá-la.

Pelo ruído, Lavínia custou entender o que ele dizia, mas

acreditou dar com a ideia e respondeu:

— O que poderia perder? - perguntou. Nick se voltou para lhe

falar de maneira tão abrupta que ela quase esbarrou nele.

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— Precioso tempo para estar com você - respondeu sem virar-

se para trás.

Lavínia sentiu que a resposta a fazia corar as bochechas. Nick

notava aquele delicioso tom rosado na pele branca cada vez que lhe

insinuava algo e sabia que conseguia pô-la nervosa porque ela

gostava dele. Notava-o em seu olhar, em seus gestos. Entretanto, até

o momento considerava que não tinha obtido nenhuma resposta

definitiva a seus embates. Se fazia evidente que ela era muito jovem

e inexperiente, mas ele estava disposto a ser paciente.

Lavínia despertou de seu universo de devaneio quando Nick

abriu a porta vidrada do bar.

— Aqui está bem? - perguntou-lhe ele.

— Sim, claro - respondeu ela, que rapidamente entrou no lugar,

aproveitando que Nick sustentava a porta para que o fizesse.

Nick não esperou para ordenar. Nem bem ocuparam uma mesa,

chamou à garçonete e lhe pediu um submarino para ele e o que sua

amiga quisesse. Lavínia pediu o mesmo, surpreendida porque ele não

tivesse pedido café.

— Agora que me aproximei um pouco mais à verdade, serei

merecedor de seu verdadeiro nome? - perguntou Nick com olhar

inquisitivo.

Lavínia sentia que aqueles olhos entre azuis e cinzas a

atravessavam com intensidade. Exigiam e contemplavam. Ela riu,

aparentemente mais relaxada, mas Nick sabia que o corpo feminino

era um manual de sensações.

— Você gosta de adivinhações? - perguntou ela em resposta, o

qual fez sorrir com curiosidade.

— Eu adoro - respondeu.

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— Está bem - assentiu ela. — Começarei por te dizer que meu

pai era professor de história.

Nick não pareceu meditar muito a resposta.

— Helena - arriscou. Lavínia sorriu.

— Esteve perto. Assim se chama minha irmã, embora o nome

foi escolhido pela minha mãe – confessou. — Possivelmente gostava

de história, depois de tudo.

— Assim deveria se chamar você - replicou ele.

Lavínia entendeu o elogio perfeitamente. Nick se referia à

mulher mais formosa do reino. Sorriu.

— Porque você não conhece minha irmã! - exclamou.

Conseguiu assim eclipsá-lo com sua humildade. Mas a Nick pouco

importava a irmã de Lavínia, a não ser a adivinhação que ela

representava para ele.

— Phaedra - continuou arriscando. Lavínia negou com a cabeça

— Juana. Ariadna.

— Lavínia.

— Ah! - ele se recostou no assento. Parecia mais depravado

agora que o mistério se havia desvelado. — A namorada de Enéas.

— Exato! - surpreendeu-se ela. — Conhecedor da mitologia.

— Conhecedor de mulheres bonitas - respondeu ele

fluentemente. — E se Helena foi a grega mais formosa do reino, sem

dúvida você é a mais bela romana.

Logo depois de dizer isto, Nick levou o cigarro aos lábios de

novo. Inspirou vagamente enquanto contemplava o rubor que ia

cobrindo as bochechas da deusa com lentidão.

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— Você conhece de mitologia... - sussurrou ela de novo.

Nick se inclinou para frente e apoiou o queixo no punho com os

olhos entrecerrados. Falou uma vez que a fumaça escapava por entre

seus lábios.

— E diga me uma coisa, você acha que eu pareço Enéas?

A posição sensual do homem obrigou a Lavínia a baixar o olhar.

Ela mordia o lábio inferior para não estourar de nervos. Nick tinha

cansado de insinuações superficiais e agora pretendia chegar ao final

daquele caminho que ela impôs.

— É provável... - admitiu Lavínia, completamente vermelha. —

Mas gostaria de encontrar meu Turno - interrompeu-se para fazer um

esclarecimento. — Vivo.

Nick apenas sorriu. Sabia que a Lavínia mitológica era a filha de

um rei latino e que se casou com Enéas quando este tinha retornado

de Troia. Turno... desconhecia Turno.

— Conte-me sobre o Turno - pediu. Enquanto aguardava a

resposta, inalou de novo o cigarro e voltou a encostar-se no assento.

— Turno era o prometido de Lavínia antes da chegada de Enéas

ao Lácio - explicou ela com entusiasmo. — Eu gosto de pensar que

eles deveriam estar juntos, mas os deuses se empenhavam em torcer

o destino. Quando um oráculo advertiu ao Latino, o pai de Lavínia,

que sua filha devia casar-se com alguém chegado do mar, neste caso

Enéas, Turno se enfureceu e o enfrentou. Acabou derrotado, e sua

alma se foi "precipitada, indignada, ao reino das sombras" – citou. —

Foi injusto. Acredito que os deuses são injustos com muitos heróis da

mitologia.

Nick acabava de perder-se na suavidade da voz da mulher, na

delicadeza de sua expressão, no modo em que mais parecia uma

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professora de história. E em como sua própria alma alguma vez

também se foi "precipitada, indignada, ao reino das sombras".

— A vida é injusta, mais vezes do que nós gostaríamos -

concluiu ele.

Seus olhos pareciam ter mudado; seu tom de voz, a velocidade

com que se conduzia tinha se entorpecido, quase como se aquele que

falava não fosse ele. Mas isso durou muito pouco, em seguida

retornou a seu olhar, a sua voz, a seus gestos, a ser o Nick sem um

só momento de sombra. Lavínia tinha dado sinais de aceitação a seus

impulsos e não iria desperdiçar em uma conversa sobre história e

filosofia.

— E você não vai contar me nada? - interrogou ela, adiantando-

se ao próximo ataque de seu competidor. — Eu sei algumas coisas,

mas eu gostaria de conhecer sua versão dos fatos.

Ele esmagou a bituca do cigarro no cinzeiro. Essa lhe resultava

uma conversação simpática.

— E o que você sabe? - indagou.

— Que você é uma eminência - ela não se apressou a

responder, o fez devagar, desfrutando de cada palavra e cada reação

de Nick. — Em engenharia... e em mulheres.

Nick deixou escapar uma risada rouca, emudecida pela fumaça

que ainda invadia sua garganta.

— Ah, sim? - não parecia surpreso nem incômodo, a não ser

divertido, como se aquela confissão tivesse sido esperada. — E quem

te disse algo como isso? Não acredito que um amigo me fizesse uma

publicidade tão má.

— Eu não o chamaria seu amigo - repôs ela. — Dada sua

posição, acredito, bem é um...

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— Um aluno! - exclamou ele em seguida, ao qual permitiu a

Lavínia descobrir que de verdade Nick era um homem muito

inteligente.

A Nick não pareceu estranho que Lavínia conhecesse algum de

seus alunos, dado que devia ter mais ou menos a idade de qualquer

deles.

— Dizem que sou um tipo com sorte - recordou.

— E o é? - respondeu ela com curiosidade.

Nesta oportunidade, Nick demorou para responder. Inclusive

suspirou antes de fazê-lo.

— E você em que acredita? - disse por fim.

— Que ninguém poderia ter pior sorte que eu - respondeu ela

com uma careta irônica desenhada nos lábios.

— Vejo-me obrigado a acreditar que eu sou - concluiu Nick. —

Do contrário, você não estaria sentada aqui hoje.

Antes que Lavínia pudesse voltar a ruborizar-se por completo, o

telefone celular interrompeu a conversação. Nick nem sequer se havia

dado conta de que o tinha guardado no bolso do casaco antes de

descer da caminhonete.

Enquanto Nick olhava a tela do aparelho, Lavínia sentiu outra

vez uma grave sensação de vazio. Esse chamado ia arrancá-lo de seu

lado, e com as tolices que havia dito pelos nervos e o pouco tempo

que tinha tido para ser ela mesma, estava segura de que ele não

quereria voltar a vê-la.

— Sim - falou o homem ao microfone do telefone. Logo ficou

em silêncio para escutar a voz do outro lado da linha. — Que horas

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são? - perguntou a seguir. Olhou seu relógio de pulso. Também

Lavínia olhou o seu: eram três e vinte da tarde. — Já vou.

Nick colocou uma nota sobre a mesa ao mesmo tempo em que

terminava a ligação. Logo mexeu em seu bolso, olhou a Lavínia e

estendeu uma mão para ela. Sustentava um cartão entre os dedos.

— Este sou eu – anunciou. — Mas como não confio em você, e

sabemos que tenho motivos para fazê-lo, preferiria que me desse seu

número. Desse modo nos asseguraremos de que voltaremos a entrar

em contato.

Apesar de sentir-se abandonada, Lavínia sorriu e tomou o

cartão com esperanças renovadas: ele desejava estar em contato

com ela, do contrário não lhe teria dado seu número. "Nicolas L.

Hagen, Engenheiro", leu. Debaixo se lia "Construtora Hagen e

Associados", um endereço e um telefone que já não leu.

— Vai ser melhor manter meus dados em segredo - brincou

enquanto guardava o cartão em sua bolsa. — Desse modo eu me

asseguro de que estará esperando.

Ela piscou o olho e lhe sorriu. Nick não gostava da ideia de

depender de Lavínia para um próximo encontro, mas conveio que

seria melhor desse modo, como estava acostumado a acontecer, para

que parecesse que ela estivesse interessada nele e não ao contrário.

Motivado por essa ideia, assentiu.

Uma vez que estavam na rua, ofereceu-se para levá-la até sua

casa. Pretendia assim conhecer ao menos seu endereço, mas Lavínia

se negou. Teria morrido de vergonha se Nick visse seu bairro, se ao

menos tivesse conhecido primeiro; isso o teria desencantado antes do

necessário. Como ele insistiu, ela foi deixada em um ponto de ônibus.

Nick não se atreveu a lhe roubar um beijo... ainda. Percebia que com

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Lavínia tinha que ser paciente. A qualquer outra mulher teria beijado

ali mesmo, mas a ela não.

Lavínia entrou no ônibus até a parada mais próxima de sua

casa e depois caminhou, ainda flutuando entre nuvens, tão perdida

em seus pensamentos que nem sequer pareciam pesar as bolsas de

mercadoria que levava. Estava a ponto de dobrar na esquina de sua

casa quando um adolescente roubou sua bolsa. Ela estacou pronta

para defender-se, mas foi tão forte o puxão que, impossibilitada de

atuar com suficiente rapidez pelos sacos e as bolsas de roupa que

carregava, ela acabou no chão e o jovem saiu correndo com sua

bolsa. Lavínia correu atrás dele, mas não pôde alcançá-lo.

Ao chegar a seu apartamento, Tamara, que cuidava de Hector

depois de ir buscá-lo no jardim de infância, notou-a agitada e por isso

lhe perguntou o que tinha acontecido.

— Roubaram-me a bolsa - respondeu Lavínia antes de deixar

cair as bolsas com sua mercadoria no piso.

— Não pode ser! - sua amiga cobriu a boca com ambas as

mãos. — Levava algo importante? Seu documento, dinheiro? Fizeram-

lhe algo?

Lavínia suspirou.

— Tinha recebido um dinheiro por um trabalho, sim, mas eram

apenas vinte euros. Os documentos tenho-os no bolso do casaco –

ela disse. Para ajudar contou os objetos com os dedos. — Levava os

vinte euros, uma foto do Hector... OH, não! - exclamou de repente,

lembrando-se do cartão que lhe tinha dado Nick. — Seu número de

telefone! OH, Deus! - deixou-se cair sobre uma cadeira, apoiou os

cotovelos sobre a mesa apoiando o queixo com a mão. — Não posso

ter tanta má sorte!

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Tinha perdido Nick de novo. Possivelmente um deus também

resolveu torcer seu destino, como na mitologia.

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Capítulo 6

Nick tinha assumido que Lavínia não ligaria um dia depois do

encontro, mas esperava que o fizesse no outro. Poderia até mesmo

deixar passar outro dia, caso ela fosse como as mulheres as quais

eles estava acostumado a sair, queriam fazer ele as desejar um pouco

mais. Mas o entusiasmo e a urgência que tinha visto nos olhos e nas

atitudes da designer lhe diziam que isso era impossível. Esperar?

Quanto podia resistir, com o medo que sentia de nunca mais poder

ouvi-lo? Era óbvio que Lavínia o desejava tanto como ele a ela,

embora sua aparente inexperiência a fizesse ficar envergonhada.

Até o terceiro dia se formulou muitas perguntas, questionou-se

todas as alternativas para que ela não o tivesse chamado. Pensou

que podia ser menor e que seu pai possivelmente lhe tinha advertido

a respeito das intenções de um homem vários anos mais velhos que

ela, mas descartou a ideia. Ela não parecia uma mulher guardada

pela família, e isso ele sabia de explorar as mulheres.

Poderia não estar interessada nele? Podia ser tão sincera e

depois nada? Também se amaldiçoou várias vezes por ter permitido

que ela mantivesse em segredo seu número. Como tinha sido tão

estúpido? Quando ele tinha deixado ir uma mulher que havia gostado

tão facilmente? E para cúmulo duas vezes!

Conforme foram passando os dias, enlouqueceu cada vez mais

por desvendar os mistérios da designer. Lavínia... Não deviam existir

muitas com esse nome, nem sequer mesmo na Itália. Mas como

procurá-la em uma lista telefônica ou no computador, se desconhecia

seu sobrenome? Além disso, isso ia contra seus princípios: jamais

tinha estado dependente de uma mulher, nem tinha perdido tanto

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tempo em ter sexo com ela, tampouco alguma lhe tinha resistido.

Selecionava bem, nunca errava em seus cálculos.

No sétimo dia, Nick descobriu que sempre lhe tinha sido fácil

levar mulheres à cama porque elas o tinham elegido ou porque ele

tinha medido com cuidado a quem escolher. A diferença nesta

oportunidade era que a eleição tinha sido involuntária. Lavínia tinha

entrado em sua mente sem nenhuma razão.

Disse então que, se conseguia levar a Lavínia, essa beleza

rebelde e ingênua, para a cama, então acreditaria no que sempre lhe

haviam dito: que era o homem mais sortudo sobre a face da Terra e

uma eminência. Ao menos em questão de aventuras.

A designer se converteu em um desafio para ele, em uma luta.

Lavínia passou o resto da semana tentando conseguir o número

de Nick. Sentia-se a mulher mais sem sorte do universo por tê-lo

perdido, embora ela não tivesse tido culpa porque a tinham roubado.

Entrou em uma cabine de seu bairro. Como imaginou, a lista

telefônica tinha desaparecido. Aproveitou então um dia que se dirigiu

ao centro para procurar em uma cabine da cidade.

Caminhou pela Rua Alem e entrou em uma cabine que supôs

ter a guia com todas suas folhas. Entretanto descobriu com pesar que

o número de Nick não estava na seção de telefones particulares. Era

lógico que um homem tão importante não publicasse sua linha

pessoal na guia, assim desistiu. Procurou nas páginas de comércios e

empresas, no item da construção. Como não podia ser de outra

maneira, faltava a folha correspondente, Lavínia já não se

surpreendeu: tinha muito má sorte.

Não sabia utilizar um computador nem tinha conhecidos que

pudessem fazê-lo, exceto sua irmã, mas não podia lhe falar de nada.

Tampouco lhe ocorreu pedir ao dono da cabine que procurasse por

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ela, e estava começando a chamar sua atenção: acabava de passar

por debaixo do imenso pôster de uma construção quase terminada no

que estava escrito "Hagen e Associados", junto com os dados da obra

e de contato, e nem sequer se deu conta.

Na sexta-feira, recebeu uma nota do tribunal. Deveria

apresentar-se na segunda-feira para uma audiência com o juiz de

menores. Passou o fim de semana intrigada com a entrevista e presa

no temor de que alguém queria separá-la de Hector.

Quando a segunda-feira chegou por fim, colocou a roupa que

usava para ir trabalhar e se encaminhou ao tribunal. Queria parecer o

mais adulta possível.

Ao chegar se surpreendeu ao ver sua mãe e Josué melhor

vestidos que nunca, e até tinham chegado antes dela, Lavínia

compreendeu assim qual era a intenção e imediatamente se sentiu

invadida pelo medo e a preocupação.

Não demorou muito para que o juiz anunciasse sua decisão:

— O casal Perez exigiu a custódia de seu filho Hector Perez faz

seis meses. Neste período as visitas de nossas assistentes sociais

demonstraram que os pais melhoraram notavelmente seu modo de

vida: contraíram matrimônio, o senhor Perez conseguiu um trabalho e

sua filha Helena retornou os estudos. A custódia do menor voltará a

ser de seus pais.

Enquanto Cristina sorria com satisfação, Lavínia sentia que lhe

enterravam uma adaga no peito.

— Ele nem sequer está limpo! - alcançou a dizer assinalando ao

Josué, mas o juiz apertou a mão dos pais, logo a ofereceu a ela, e ao

notar que Lavínia não pensava lhe retribuir o gesto, retirou-se.

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Lavínia pensava que esse homem não tinha ideia de que, ao

permitir aos Perez custodiar a seu filho, estava matando o futuro de

seu irmão. Ao menos assim o sentia ela, dadas às condições de vida

que o menino seria exposto a partir de então.

Só lhe restava confiar que Hector recordasse tudo o que lhe

tinha ensinado: as diferentes possibilidades de vida que uma pessoa

podia ter, que nem sempre se pertence ao lugar no que se nasce, e

que para pertencer a outro lugar se deve lutar.

— Não me contará uma parte da história hoje? - perguntou o

menino, recostado sobre o peito de sua irmã, na cama.

A pele branca de Lavínia contrastava com a escura do pequeno.

Ela tinha os lábios sobre seus os cachos de seu cabelo; com a mão o

sustentava junto ao coração.

— Claro – respondeu - onde tínhamos parado?

— Em que o guerreiro devia enfrentar-se com o irmão do

raptor. Ah, sim... e sabe quem morre ali?

— Hector.

— Então quer que te conte essa parte de novo?

Lavínia sorriu ternamente e lhe beijou a testa enquanto lhe

acariciava a bochecha com a mão. Não queria que o pequeno visse

suas lágrimas. Era a última noite que o teria ali, só para ela. Por isso

quando ele adormeceu, permaneceu um longo momento acordada,

observando-o. Tanta inocência desperdiçada!

Na tarde da terça-feira, Lavínia levou Hector à casa de sua mãe

como sempre, só que desta vez retornaria a seu apartamento

sozinha.

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Cristina a recebeu com ar de vencedora, como se tivesse

ganhado um partida de truco.

Lavínia deixou a bolsa com as coisas de seu irmão sobre a mesa

e a abriu. Enquanto isso, o pequeno tinha deslocado para os braços

de seu pai, que passeava com ele sobre os ombros por toda a casa.

Vendo aquela ação, Lavínia pensou que Josué teria sido um bom

homem se tivesse se mantido sóbrio. Mas isso não ocorria com

frequência, e obscurecia a infância do menino.

— Esta é a Ilíada - explicou a sua mãe com o livro na mão. —

Estou segura de que a conhece muito bem, mas pelas dúvidas

deixarei isso. Hector gosta que lhe leia a história, uma parte cada

noite, quase sempre o confronto entre Hector e Aquiles ou a parte do

cavalo de Troia.

— Leva isso se quiser, sei de cor - replicou Cristina ofuscada.

— Deixarei para Hector de todos os modos - respondeu a filha.

— Possivelmente o queira apenas para vê-lo. Também te deixo alguns

de seus brinquedos favoritos.

Cristina suportou que sua filha tentasse lhe ensinar a ser mãe

de Hector com respostas curtas e secas. Quando chegou a hora de ir,

Josué ainda tinha o seu filho nos braços.

— Já vou, Cotito - disse Lavínia, já junto à porta.

— Você esta indo? - indagou ele, com a cabeça girada para sua

irmã. — Vamos!

Hector saltou dos braços de seu pai, mas com toda a dor de sua

alma, Lavínia não o recebeu entre os seus.

— Não - teve que dizer. — Hoje não. Ficará aqui, com seus pais.

— E você também ficara?- insistiu ele. Lavínia baixou o olhar.

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— Não... Eu não.

— Não! - gritou o menino. — Vai me deixar aqui? Por quê? Já

não me quer, já não quer cuidar de mim?

As palavras feriram Lavínia no mais profundo. Doía-lhe o

coração de ter que deixá-lo ali. Dobrou os joelhos e ficou à altura do

menino.

— Você ficara aqui porque papai e mamãe sentiram muitas

saudades suas - tentou explicar.

— Mas eu quero ir com você! - gritou Hector antes de abraçar-

se a seu pescoço. Lavínia respondeu ao abraço.

— Esta noite mamãe vai te contar o episódio do cavalo de Troia

- prometeu até sem ter conversado com sua mãe sobre isso.

Não queria deixar o menino, mas recusava voltar à casa de

seus pais.

— Fica até que ele durma - disse Cristina, e Lavínia aceitou.

Até às 10. Cristina tinha preparado o jantar para Hector, mas

ele se negou a comer argumentando que não gostava e que Lavínia

cozinhava melhor. Sua irmã o repreendeu por isso, disse-lhe que não

devia criticar o que faziam os outros se a gente não podia fazê-lo

melhor. De todo modo compreendia que Hector não desejava ferir sua

mãe, mas fazer os adultos compreender que queria ser feliz.

Nick respondeu ao quarto chamado do telefone.

— Entendi! - exclamou a voz do outro lado da linha. — Têm

papel e lápis?

Nick caminhou pela sala de estar, procurou o que seu

interlocutor lhe pedia e replicou:

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— Diga.

— A única Lavínia que aparece em meus registros se chama

Dickinson. Lavínia Dickinson. E tem três números em seu nome.

Nick apontou os três números telefônicos que lhe tinham sido

ditados com seus respectivos domicílios. Identificou que um pertencia

ao local já fechado, outro no endereço no qual o tinha enviado o

velho que saía do negócio junto ao ateliê e que lhe havia custado cem

euros, e um terceiro cuja direção desconhecia. Tinha que ser esse.

Lavínia já havia tirado a roupa de trabalho. Vestia, como

sempre que estava em sua casa, roupa esportiva. Encontrava-se

sentada à mesa, com o rosto escondido entre os antebraços,

chorando. Perguntava-se que sentido tinha tido seu esforço, que

maldição pesava sobre ela para que nada lhe saísse bem, nem sequer

proteger a seu irmão.

Antes que o desespero tomasse conta dela, ficou de pé e ligou o

rádio. Subiu o volume quando encontrou uma música de seu agrado,

tanto que a aturdiu, mas ao ir em direção ao seu quarto o som

cedeu. Enfaixou as mãos e atacou o saco de boxe que pendia de uma

corda em seu quarto.

Depois de uma publicidade, começou outra canção, desta vez

um rock. Os golpes ao saco se acentuaram porque através deles

Lavínia suava dor e impotência.

Nick olhou seu relógio de braço. Eram onze da noite. Para ele,

uma criatura da noite que dormia apenas três ou quatro horas a cada

vinte e quatro, era o mesmo que dizer que era meio-dia, mas

possivelmente para Lavínia não. Mesmo assim, leu o número e

discou.

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O telefone soava em casa da Lavínia, mas a música não lhe

permitia escutá-lo. Golpeava e socava como se nele se refletisse seu

destino.

Nick desligou. Primeiro pensou que ela estaria dormindo, mas o

temor de que se tratasse de uma casa desabitada o levou a insistir.

Tinha começado outra canção. Lavínia estava dobrada com dor

nas costas de tanto caminhar. Foi oferecer a roupa que ela

confeccionava com todo carinho, mas que ninguém queria comprar.

Sou uma lutadora, repetia-se. Sou uma lutadora... mas isto é

acaso o que quero ser? Até quando? Até quando...

Esgotada como estava, ergueu-se e deu outro golpe ao saco.

Nesse momento, escutou um tinido, uma música de fundo alheia à

canção. O telefone.

Abandonou tudo o que fazia e se se dirigiu a sala de estar.

Olhou de passagem o relógio da parede, que indicava onze e quatro

minutos da noite. Ninguém mais que Hector podia chamar a essa

hora, por isso quase se jogou sobre o rádio para deter a música e

responder logo o chamado.

— Diga? - soava agitada e angustiada, como em realidade se

sentia.

— Lavínia?

A voz a deixou tremente e assustada, muito mais que o pranto

ou o esforço físico.

— Nick? - balbuciou.

Ele sentiu algo. Sentia frio, possivelmente em um episódio de

choro, mas fiel a seu instinto indescritível logo se livrou dessas

sensações.

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— A Lavínia que eu conheço? - brincou.

— OH, Meu deus! - exclamou ela. — Sinto muito!

Nick nunca pedia desculpas. Nem pela hora, nem por deixar

alguém à espera, nem por abandonar as namoradas. Tampouco se

desculpou com Lavínia por ser onze da noite.

— Estava dormindo? - perguntou.

— Não, não estava dormindo – disse ela. Como eu teria

desejado poder dormir! — Na verdade, estou muito triste. Mas não se

preocupe, não quero aborrecer a um interessante Enéas que ligou

para o telefone com intermináveis problemas.

Nick sorriu. Sorriu de verdade, suavizado pela resposta, o qual

descobriu instantes depois de ter cometido o grave engano de

albergar um sentimento. Apagou o sorriso sincero imediatamente.

Primeiro não era seu estilo, ele não chamava as mulheres, as

mulheres o chamavam. Em segundo lugar, não queria parecer

interessado. Sempre era mais fácil que fossem elas quem se

interessasse nele, por isso se esforçou por fingir-se sereno.

— Quero saber porque não me ligou... - disse ele a seguir.

Por Deus, morria por saber! Entretanto, respondeu indiferente:

— Não, em realidade não.

— Roubaram-me a bolsa - explicou Lavínia, ignorando a

resposta de Nick. Queria lhe dar explicações, não desejava lhe fazer

pensar que não se importava.

Mas Nick não acreditou. As mulheres eram excelentes

mentirosas, sobretudo quando um homem se humilhava a mover céu

e terra por conseguir seus dados, levantava o telefone e discava o

número. Preferiu ignorar esses pensamentos porque sabia que o

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conduziriam a arruinar seus planos de levá-la para a cama, assim

como tinha ignorado sua tristeza para não sentir-se comovido. Por

que ficaria triste uma mulher? Por um namorado, talvez? Por que não

tinha podido comprar roupa?

— Ah - replicou indiferente. — Vejo que teve uma semana

difícil.

Foi irônico, mas Lavínia não o entendeu assim.

— A pior de minha vida - disse referindo a todas as situações

pelas que tinha passado e que Nick desconhecia.

— Não se preocupe - respondeu ele. — Eu tenho a solução

perfeita para que se esqueça de tudo.

— Não acredito poder esquecê-lo.

— Faremos um esforço.

O tom da voz de Nick tinha sido sugestiva, pastosa. Ele pensava

em sexo, ou ao menos o insinuava; Lavínia soube, e possivelmente

por seu passado ou porque de verdade a ofendia pensar que pudesse

esquecer a dor pela perda de seu irmão em uma cama, incomodou-

se.

— Não o entendo – disse. — Não estou dizendo que me fizeram

um mau corte de cabelo. Digo-te que de verdade estou muito triste,

que passei a pior semana de minha vida e você faz piada todo tempo,

como se não fosse importante. Não pretendo te aborrecer com meus

problemas, mas é de boa educação não fazer piadas e ter respeito.

Nick emudeceu. Engoliu em seco. Embora a princípio o sacudiu

a idéia de que uma mulher pudesse não gostar de uma parte dele,

justo a que as outras pareciam valorar mais, em seguida se encobriu

com a casca que sempre o protegia. Quem acreditava ser esta mulher

para recriminar a ele sua indiferença. Ele não era seu amigo, muito

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menos seu namorado, nem queria saber nada dela. Não lhe

interessava sua vida privada, nem o motivo de sua tristeza, e muito

menos a opinião que a inexperiente pudesse fazer dele.

Era evidente que ela precisava de prática; que ao contrário das

demais mulheres como as que ele se relacionava, não tinha

aprendido que os problemas se esqueciam entre seus lençóis.

Só a queria para o sexo, pensou. Para levá-la para cama e

depois desativar seu número. Era ela que tinha que lhe pedir, não ao

contrário, não lhe permitiria ter poder sobre ele. Isso nunca mais.

— Peço-te desculpas - resmungou zangado. — Não devia te

incomodar. Que tenhas uma boa noite.

Desligou. Tinha acabado.

Lavínia entreabriu os lábios, incapaz de convencer-se de que

tinha arruinado tudo por ter descarregado sua raiva não só no saco

de boxe, mais também em quem não a merecia. E que ele fora tão

infantil em fugir da conversa só porque ela se equivocou, não

acreditava.

— Nick? - perguntou em um sussurro, esperançada que o clique

tivesse sido apenas uma pequena falha. Mas suas esperanças foram

frustradas quando o silêncio se converteu no tom.

Era muito claro: como ela, uma inexperiente, ia acusar de

medíocre e de superficial a um homem experiente, maior que ela,

muito mais importante em tudo. Ele podia ter uma dezena de

mulheres desejosas para agradá-lo com um único olhar. Não

necessitava dela. Se havia ligado era porque estava interessado, e

com suas atitudes: - primeiro por não chamá-lo, logo depois reclamar

por suas brincadeiras - indicava que não queria saber de nenhuma de

suas propostas.

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Lavínia chutou o pé da mesa e logo massageou a ponta dos

dedos doloridos. Perguntava-se como podia ser tão tola, como era

capaz de afastar os pequenos instantes de felicidade que a vida lhe

punha na palma da mão como se não os merecesse. Nick, um

homem sedutor, rico e atrativo se interessava por ela, e ela não fez

mais que espantá-lo. Tudo porque o único que lhe interessava nele

era sua honestidade. Por que não podia ser como os demais? Por que

não podia conformar-se com o que ele estivesse disposto a dar?

Precisava que Nick soubesse que ela não queria feri-lo, que

tinha jogado a raiva sobre quem não merecia. Mas nem sequer tinha

seu número. Tinha-o perdido, por ser estúpida.

Só pode dormir ao amanhecer. Odiava-se. Às dez, finalmente

subiu para abrir a porta. Do outro lado se encontrava Tamara, que

havia tocado três vezes e sustentava uma folha de jornal diante do

rosto.

— Olhe o que consegui para você! - exclamou.

Ainda um pouco adormecida, Lavínia nem sequer distinguiu do

que se tratava a nota.

— O que é isso? - perguntou.

— Olhe a foto - reclamou sua amiga. — É uma obra.

Os olhos da Lavínia se iluminaram.

— De Nick? – animou-se.

— De quem mais?

Na imagem via-se a esquina da Rua Alem onde se construía um

centro médico privado. De fato o titular anunciava sua conclusão

antecipada.

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Lavínia teve que visitar algumas lojas antes de poder dedicar-

se a Nick, embora ele não abandonasse seus pensamentos. E

enquanto ela tentava convencer à vendedora de uma loja de que

ficasse com algumas roupas, os operários do Centro Médico retiravam

o enorme pôster que até esse dia tinha ostentado os dados da

companhia de Nicolas L. Hagen.

Quando Lavínia chegou, já não havia nada. A ira cresceu tanto

nela que deixou escapar um insulto e cruzou a rua na metade da

quadra. Entrou em um edifício que estava frente à obra terminada e

falou com a recepcionista.

— Me diga que sabe, por favor - a mulher a olhou perplexa,

então Lavínia se esforçou por dar uma explicação. — O telefone que

aparecia no pôster da obra em frente, que já não está. Não me diga

que nunca leu um pôster que esteve dois anos em frente a seu nariz!

A mulher a olhava como se ela não fosse mais que uma pobre

louca, e não era para menos. Lavínia não estava louca, não. Estava

farta de que tudo lhe saísse mal.

Perante a ausência de resposta por parte da mulher, que até

parecia a ponto de chamar segurança, Lavínia olhou para a porta.

Dali podia ver que dois operários com capacetes amarelos se

encaminhavam à porta da obra em construção virtualmente

terminada.

Saiu correndo. Não o tinha notado antes por distração, mas

aquele edifício era tão majestoso como seu engenheiro. Imponente e

estratégico. Bonito.

Lavínia se deu conta de que ficou quieta na calçada, admirando

a maravilha que tinha construído Nick e, antes que perdesse aos

homens de vista, apressou-se para que isso não acontecesse.

Pretendeu cruzar a rua, mas justo quando colocou um pé no asfalto,

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uma das bolsas rasgou e suas queridas roupas foram parar na beira

da calçada onde uma água enlameada escorria para a boca-de-lobo.

Todo seu trabalho de meses desperdiçado. O dinheiro que tinha

investido em materiais, o tempo, e desejo.

Presa em uma angústia desconhecida, Lavínia suspirou.

Recolheu as roupas como pôde, atou a bolsa, e quando elevou a

cabeça, os operários já tinham desaparecido. Cruzou a rua de todos

os modos. Deu uns gritos chamando a quem a ouvisse até que

conseguiu que um dos homens aparecesse.

— Preciso do número de telefone da construtora que fez este

edifício - gritou. Teve que repetir duas vezes a frase para que ao final

o operário a entendesse e lhe indicasse com a mão que aguardasse.

Por obra de Deus deu-lhe um cartão e lhe desejou sorte. Sorte!

Lavínia não lhe riu na cara por mera educação. Com o número entre

as mãos, obstinado ao peito para que não extraviasse nem alguém

pudesse tirá-lo caminhou até um telefone. Discou. A voz de uma

mulher com tom de locutora de rádio a surpreendeu.

— Hagen e Associados. Meu nome é Carolina, no que posso

ajudá-lo?

— Olá! - exclamou Lavínia, aliviada. — Preciso falar com o Nick.

— Desculpe?

Lavínia soube que a mulher reprimia a risada. Claro, como ia

ser tão burra de chamar uma grande empresa pedindo falar com o

chefe maior como se tentasse comunicar-se em casa com sua irmã.

— Com o senhor Hagen - corrigiu-se. — Meu nome é Lavínia -

continuou explicando perante o silêncio da operadora. — Ele deu-me

o número pessoal, mas... roubaram-me a bolsa e o perdi.

— Claro - resmungou a moça. — Pode deixar sua mensagem.

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— É que não quero deixar uma mensagem - defendeu Lavínia.

— Preciso falar com o Nick.

Depois de outro instante de silêncio, a mulher replicou: —

Obrigado por comunicar-se com a Hagen e Associados. Que tenha um

bom dia.

E desligou. Lavínia olhou incrédula para o telefone. Voltou a

discar, mas desta vez ninguém respondeu. Para terminar, quando

retornou à rua, chovia muito. Só isso lhe faltava em um dia péssimo,

um dia para esquecer.

Ao chegar em casa encharcada, acionou a secretária enquanto

secava o corpo com uma toalha furada. A primeira mensagem era de

Hector. Sorriu com ternura. A segunda mensagem respondia a uma

voz desconhecida.

— Senhorita Dickinson, encontrei sua bolsa. Espero-a às cinco

na esquina do Mitre e Sarmento, na Avellaneda. Se quiser sua bolsa,

tem que vir sozinha e trazer vinte euros.

Lavínia voltou a calçar os sapatos e correu pela rua como se

fosse perder a vida. De fato sentia que assim seria: eram quinze para

às cinco.

Chegou à esquina atrasada cinco e cinco. Aproximou-se do

sujeito que abraçava sua bolsa, um tipo alto e musculoso que a

Lavínia pareceu mais um ladrão que um cidadão honesto. Trocou a

bolsa pelos vinte euros e se foi. Os tornozelos escorregavam porque

tinha os sapatos molhados, sentia frio e sede, mas ao menos tinha

recuperado sua bolsa, e nela o cartão de Nick.

Agora que tinha tudo servido de bandeja, ela tinha medo de

ligar. Passou longos minutos estudando o telefone que descansava em

uma mesinha na sala de estar até que uma rajada de valentia e

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indiferença se apoderou dela e então discou. Mas o escritório da

secretária de Nick já estava vazio, e também o dele.

No dia seguinte, Lavínia se encontrou com a assistente social de

Hector. Perante as negativas da mulher, começou a se desesperar.

— E tudo o que fiz por ele? – dizia. — Tudo desperdiçado!

Ninguém se ocupa dele nessa casa. O dinheiro...

— O dinheiro não é um problema - interrompeu-a a mulher.

— Mas comigo tinha acesso a muitas coisas!

— Senhorita Dickinson, não se pode tirar um filho a uma família

por ser pobres.

Lavínia não podia acreditar que ela terminasse sendo a

desalmada quando tudo que tinha querido fazer era resgatar Hector

de uma perdição segura, como não tinha podido fazer com Helena

porque ela era naquela época quase tão pequena como sua irmã.

— Ser pobre não é o problema – explicou. — Eu também o sou,

mas tudo o que ganhava era para ele. O problema é o uso que minha

mãe e seu marido fazem do dinheiro.

— Pode ajudá-los economicamente se o desejar - replicou a

mulher.

— Você não entende - Lavínia se esforçava por não soar

impaciente, pois sabia que isso podia prejudicá-la, mas para falar a

verdade lhe estava esgotando a paciência. — Não penso em dar um

só centavo porque conheço o destino que teria esse dinheiro e posso

lhe assegurar que não será para meu irmão.

Lavínia retornou a casa com as mãos vazias e com uma terrível

dor de garganta. Os três dias que seguiram a febre lhe impediu até

de se mover. Tamara cuidou dela e finalizou alguns arranjos que

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Lavínia devia a seus clientes, mas mesmo assim, o trabalho se

acumulou junto à máquina. Não lhe bastava passar três dias de

agonia, mas também se torturava só de pensar que tinha trabalho e

não podia sair da cama, e quando poderia falar com Nick.

Retomou suas ocupações habituais ao quarto dia, e só teve

tempo de preocupar-se com o trabalho atrasado e em seus

insistentes clientes, que sempre necessitavam os acertos de roupas

esquecidos para o mesmo dia.

Logo teve uma manhã livre de pressões mentais ao sétimo dia,

então se dispôs a chamar Nick. Embora tivesse planejado bem o que

diria ao telefone, ao discar o número lhe tremeram os dedos. Depois

de dois chamados, uma voz feminina atendeu.

— Escritório Hagen - disse. Nesse instante, Lavínia se esqueceu

de tudo o que tinha pensado dizer.

— Sou Lavínia - pronunciou quase sem fôlego. — Poderia por

gentileza falar com o senhor Hagen? - desta vez não cometeria o

engano de chamá-lo "Nick".

— Qual o assunto? - perguntou a mulher, surpreendida porque,

se fosse uma amante de seu chefe, o teria chamado "Nick", no

máximo "Nicky" ou "Nickito", como faziam outras.

— Bem, ele me comprou um terno... - explicou Lavínia, mas a

mulher não a deixou seguir.

— Hã –assentiu. — Pode me deixar sua mensagem.

— Senhora... – apelou. — É realmente impossível que eu fale

com Nick? É que preferia tratar este assunto em privado.

A senhora Rosales confirmou suas suspeitas ao escutar "Nick"

da boca de uma mulher, mas sabia por instinto que algo diferenciava

a essa moça do resto das conquistas de seu chefe.

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— Se o senhor Hagen considerar necessário chamá-la, o fará -

explicou com respeito, mas cuidando de não criar falsas ilusões na

moça. O certo era que jamais tinha visto Nick comunicar-se com

nenhuma delas, e duvidava de que essa fosse uma exceção.

Lavínia suspirou. Falar com Nick era mais difícil do que localizar

o Presidente da Nação.

— Está bem - assentiu com resignação. — Só lhe diga que o

sinto muito.

— Que você sente muito? – replicou, remarcando o pronome

pessoal.

— Sim - assentiu Lavínia com dignidade. — Lhe diga que sinto

muito e que não quis machucá-lo - Lavínia percebeu o silêncio do

outro lado da linha e temeu por um momento que a comunicação

tivesse terminado, por isso adicionou: — Olá...

— O direi - respondeu a mulher.

— Suplico-lhe que o faça.

— Não tem que suplicar. O farei.

Lavínia agradeceu com a tranquilidade de que essa parecia ser

a secretária pessoal de Nick e não uma mera recepcionista, e

desligou.

Alguns minutos depois, a secretária levou uma pasta ao

escritório de Nick, que não levantou a cabeça quando ela entrou e lhe

deixou o material sobre a mesa.

— O que é isso, Fi? - perguntou tirando uns papéis.

— O contrato com o Porte Zuelo e uma mensagem. Ligou uma

mulher de nome estranho. Pediu-me que te dissesse que o sente

muito e que não quis te machucar.

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Nick deteve as mãos sobre a calculadora e franziu o

sobrecenho. Em seguida levantou o olhar para sua secretária.

— Que ela o sente - repetiu, incrédulo.

— Hã.

— E não te censurou nada? - indagou. A mulher negava com a

cabeça. — Não te disse que eu vou pagar e não me enviou nenhum

insulto?

— Não.

Nick se encostou a sua cômoda poltrona de couro,

impossibilitado de acreditar em tal notícia.

— Como se chamava?

Fi engoliu em seco. Não acostumava errar em seu trabalho,

mas desta vez devia confessar que tinha falhado.

— Não o recordo. Fiquei tão surpreendida que nem sequer pude

escrever o nome, e era tão estranho que depois esqueci. A... Lau...

— Lavínia! - exclamou Nick.

— Sim, isso! - replicou Fi. — Lavínia! De onde terão tirado

semelhante nome?

— De Enéas.

Fi não respondeu. Tampouco fazia falta. O sabor do triunfo

invadiu a boca de Nick, que já podia pressentir o que aconteceria.

Como em todo jogo de sedução, agora ela estava pendente dele. Já

sabia que não podia ser muito distinta das demais mulheres que se

cruzou na vida. Agora ele se faria desejar, tal como tinha feito ela.

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Foi de viagem a Córdoba para atender assuntos de um cliente.

Ali conheceu duas mulheres, ambas morenas e bonitas, com as quais

passou muito bem os quatro dias que esteve fora de Buenos Aires.

Enquanto isso, Lavínia seguiu com seu trabalho de reparações

de costura, com o que ganhava pouco, mas que graças a Deus era o

bastante. Tinha posto a foto de Nick, essa que tinha recortado da

revista embora ele não usasse seu terno, em um porta-retratos e

tinha colocado junto seu cartão. Algum dia o homem pensaria que ela

tinha crescido, e possivelmente então voltasse a chamá-la.

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Capítulo 7

Pela manhã, Nick desceu do elevador. Passou frente ao

escritório de sua secretária e lhe deixou um papel amarelo.

— Bloqueie estes números, por favor - pediu à velocidade que

se movia rumo a seu escritório.

Obediente, Fi o fez com rapidez. Estava acostumada a isso.

Enquanto isso, Lavínia pressionava o pedal de sua máquina de

costura com cuidado, para que a costura não ficasse imperfeita. O

telefone a sobressaltou. A distração fez com que a máquina

começasse a engolir tecido como um monstro faminto e impiedoso, e

Lavínia não pôde deixar de dar um puxão para que soltasse. Não

houve caso. A agulha se quebrou: o vestido estava rasgado. Soltou

uma maldição. Para cúmulo, quando chegou ao telefone, este parou

de tocar.

Deixou escapar um suspiro de frustração e se sentou no sofá

que estava junto ao telefone. Tentava ficar tranquila para poder

pensar com maior clareza o que ia fazer agora que seu trabalho se

arruinou, mas a campainha interrompeu suas reflexões.

— Diga - respondeu.

— Lavínia?

A voz a deixou perplexa, mas não muda. Só de escutá-lo

eletrificava a pele.

— Nick! – exclamou ela. Antes que desligue, quero te pedir

desculpas - apressou-se a falar. — De verdade estou muito

arrependida, tinha tido um dia terrível.

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Nick riu.

— Hoje também têm um mau dia?

— Não tão mau como o outro, mas raramente posso dizer que

tenho um bom dia - justificou-se ela. Como considerou que não lhe

tinha passado nada muito grave, exceto o do vestido, contou as

vicissitudes da jornada com certa graça. — Para começar, entupi o

ralo e inundei o banheiro. Tive que chamar um encanador que me

cobrou os únicos setenta euros que tinha. Também fiquei sem fio

preto e tive que sair e comprar um carretel de linha fiado sob a

chuva. Quando voltei, recordei que tinha deixado um novo e sem

estrear na última gaveta. Não fique surpreendido, eu sou

desorganizada e distraída. Para acabar, acabo de arruinar um trabalho

urgente, por isso estou me levando com meus demônios. Mas estou

bem. Em comparação com outros dias, hoje posso dizer que tenho

boa sorte.

Lavínia escutou encantada como Nick ria a todo pulmão. Não

estava zangado, não parecia falso. Sempre estava de bom humor.

— Hoje é quinta-feira – disse ele. — As quintas-feiras são meus

dias de boa sorte.

Uma quinta-feira tinha ganho no Paradise e em uma quinta-

feira tinha a conhecido. — Que tal terminar sua maldição em um

encontro com sorte?

O coração de Lavínia começou a pulsar desenfreado. Nick a

estava convidando para sair, estava lhe dando uma nova

oportunidade. Tinha-a perdoado.

— Todos os dias de minha vida são malditos - lamentou-se ela

um pouco a sério, outro pouco em brincadeira.

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— Ah, vamos! - ele ria todo o tempo. — Não pode ser tão

negativa! Estou seguro de que essa é a causa de sua má sorte. Não

são os eventos, mas sim como os toma, o que assinala um bom ou

um mau dia.

Lavínia sentiu que as palavras de Nick, sua risada, sua

simpatia, embargavam-na. Abstraiu-se de tal modo pensando nas

emoções que experimentava, que até se esqueceu de que a tinha

convidado para sair.

— E o que diz? - insistiu ele.

— Sobre o que? - lhe escapou. Em seguida se deu conta de que

voltava a atuar como uma boba, mas ao parecer Nick não o entendeu

assim.

— Você sim que faz isso difícil... - refletiu em voz alta. Lavínia

soltou uma risada.

— Claro - respondeu.

— Claro o quê?

— O que seja...

Nick se sentiu agradado. Por fim tudo saía tal como o tinha

calculado.

— Você prefere que vá te buscar, ou nos encontramos no bar?

Nick não podia buscá-la. Ela não tinha modo de reunir o valor

suficiente para descer as escadas desse edifício maltratado e subir

depois em sua preciosa Mercedes.

— Prefiro que nos encontremos no bar.

Nick aceitou. Deu-lhe o endereço e o horário de uma discoteca

bar de Porto Madeiro, e se despediram.

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O coração de Lavínia não deixava de pulsar. Esqueceu-se do

trabalho arruinado, do dinheiro que tinha perdido com o encanador,

de seu dia de má sorte. Com crescente entusiasmo procurou em

todas as gavetas em busca de roupa. Procurava algo digno de um bar

tão caro e de Nick.

Ela deu se conta de que queria estar bonita, e estava

convencida de que a roupa era essencial na hora de impactá-lo, por

isso acabou escolhendo um vestido preto e sandálias que

combinavam com sua bolsa de mão. Apanhou o cabelo em uma

trança e se maquiou com cores sutis. O vestido, que tinha sido

confeccionado por ela mesma, deixava ao descoberto seus ombros

pálidos e se ajustava às curvas de seu corpo.

Pensou em chegar dez minutos atrasada para assegurar-se de

que Nick já se encontrasse ali quando ela aparecesse. Enquanto

acomodava as últimas coisas na carteira, soou o telefone. Tinha medo

de que Nick suspendesse a saída, mas mesmo assim respondeu.

— Lavi... - sussurrou a débil voz de seu irmão nem bem ela

disse "olá".

— Hector! - replicou Lavínia. Pressentia que algo não estava

bem.

— Sinto-me mal... - choramingou o menino. Lavínia deixou cair

a carteira sobre a mesa, preocupada.

— Como que te sente mal?

— Dói-me a barriga.

— Faz quanto dias que te dói a barriga? - indagou.

— Dois dias. Tens que vir aqui, Lavi! Não aguento mais!

— E não te levaram ao hospital?

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Lavínia se indignou com a resposta que seu irmão não chegou a

dar porque lhe desligaram o telefone. Cheia de raiva, recolheu a bolsa

e quase saiu correndo do apartamento.

Com a espera que tinha tido no ponto de ônibus e a caminhada

até o edifício onde vivia seu irmão, já estava vinte minutos atrasada

para o encontro com Nick. Golpeou a porta e esperou que Josué

abrisse. Como de costume, estava bêbado.

— Você está aqui por mim! - exclamou com um tom libidinoso

que Lavínia preferiu passar por cima.

— Onde está Hector? - perguntou dando um passo dentro.

Josué assinalou o quarto com a cabeça e Lavínia se encaminhou

a seu antigo quarto. Hector estava deitado na cama que antes tinha

sido sua.

— Lavi! -exclamou nem bem a viu entrar. — Dói-me muito!

Tinha os olhos escuros cheios de lágrimas. Lavínia avançou

justo no momento em que o menino teve em uma crise de vômito

que acabou sobre seu maravilhoso vestido preto. Sem pensar nisso,

envolveu-o em uma manta e o elevou em seus braços. Carregou-o

até o hospital.

— É apendicite - informou-lhe a pediatra de plantão. — Temos

que operar o quanto antes ou pode se converter em uma peritonite.

Sentia pena por seu irmão e pena por ela mesma. Adeus encontro.

Nick olhou seu relógio de braço. Eram onze da noite; tinha

combinado com Lavínia de encontrar-se às nove e meia.

Sentado no sofá em um lugar escuro, levou a taça de

champanhe à boca e pretendeu apreciar a música, uma canção

eletrônica de ritmo bem marcado. Entretanto, uma estranha sensação

de raiva o percorria. Tinha levado um fora de uma costureira.

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— Senhor Hagen - disse-lhe um garçom. — Uma senhorita

chamada... né... - revolveu uns pequenos papéis que levava em um

bolso e leu: — Lavínia ligou. Disse que teve um percalço e que não

poderá vir ao encontro desta noite.

Nick deixou escarpar o ar de seus pulmões. A raiva ardeu em

seus olhos de gelo.

— Obrigado - disse apertando os dentes.

Nem bem o moço se afastou Nick percorreu o recinto com o

olhar. Outra vez essa menina zombava de sua paciência, como se ele

não tivesse melhor coisa que fazer se não dançar a seu ritmo.

Deteve o olhar em uma ruiva que conversava animadamente

com duas amigas. Acendeu com preguiça um cigarro. Cruzaram

olhares quando ela sorriu, Nick sabia que a intimidava, por isso

seguiu olhando para ela. Estava seguro de que assim ela se

aproximaria, e não se equivocou. A mulher apontou para o peito; não

podia acreditar que um homem tão arrumado e sedutor a tivesse

escolhido entre a multidão de mulheres que havia a seu redor. Nick

assentiu com ar malicioso.

Pouco depois a teve sentada junto a ele no sofá, entregue a

seus beijos e carícias. Duas horas mais tarde, teve-a na cama. E

enquanto ele dormia com a ruiva recostada sobre seu peito, Lavínia

se mantinha acordada na sala de espera da sala de cirurgia,

aguardando notícias sobre a operação de seu irmão.

Só pode deixar Hector às onze da manhã seguinte, porque

Cristina apareceu com um pote de sorvete. Lavínia evitou uma

discussão porque Hector precisava recuperar-se tranquilo, foi para

casa com o pior humor possível.

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Nem bem chegou a seu apartamento, tirou o vestido e o pôs

para lavar. Tomou um banho, vestiu-se e se sentou junto ao telefone.

Nick merecia uma nova desculpa, por isso discou o número.

— Escritório Hagen - respondeu a secretária.

— Olá - disse ela. — Sou Lavínia outra vez. Gostaria de deixar

uma mensagem para o Nick.

Enquanto isso, Nick acabava de descer do elevador e se

encaminhava ao escritório de sua secretária, radiante.

— Bloqueia este número, por favor - indicou deixando um papel

sobre a mesa. Fi cobriu o microfone do telefone e gesticulou:

— Lavínia.

Nick indicou com um sinal de sua mão para passar-lhe a

chamada. Imediatamente Fi, que não tinha escutado nada do que

Lavínia lhe dizia, replicou:

— Aguarde um momento, por favor.

Lavínia esperou. Escutou a odiosa musiquinha de circo durante

um minuto até que a voz de Nick retumbou em seu ouvido.

— Não sei que jogo você está jogando, mas eu não gosto.

Ele mesmo reconheceu isso. Jamais lhe tinha importado o que

uma mulher fizesse. Não lhe interessava que chamassem ou não

chamassem que se fizessem desejar ou se dessem de presente.

Tampouco estava acostumado a levar um fora, nem a perder o bom

humor que o caracterizava, nem a andar todo o dia pensando em

uma mulher como se ela fosse sua vida.

— Não há jogos, juro - respondeu Lavínia com verdadeiro

remorso. Tinha parecido triste e arrependida, mas se esforçou por

relaxar brevemente.

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— Hoje é sexta-feira, ainda estamos a tempo de fazer algo

sugerido. Por favor, me dê outra oportunidade, estou implorando...

Isso era o que Nick desejava e ao que estava acostumado, a

secreta súplica. Entretanto, essa atitude da Lavínia não chegou a sua

boca com o sabor do triunfo. Logo que pôde respondeu sério, com

aparência de zangado.

— Está bem. Espero-te no restaurante O Farol, do Hotel Hilton,

às dez. Não chegue tarde.

Lavínia aceitou sem voltas. Depois de desligar, dormiu um

pouco para estar lúcida pela tarde, quando visitou seu irmão. Ali se

reencontrou com Helena, que não abriu a boca nos escassos vinte

minutos que visitou Hector.

Lavínia permaneceu com sua família o tempo completo

permitido. Acabado esse tempo, viu que sua mãe ficava de pé e

recolhia sua bolsa da cadeira com modéstia. Era evidente que ia

embora.

— O que você esta fazendo? - perguntou-lhe.

— Vou embora - respondeu Cristina, como de costume, ao

tempo que se encolhia de ombros.

— Como você está indo? - Lavínia ficou de pé também e deu

um passo para ela. Da mesma forma a pegou pelo braço e a conduziu

ao corredor. Não queria que seu irmão as ouvisse. — Você não vai.

Hector precisa de você.

— Para que?

— Como para que? Ele não pode ficar sozinho.

— Se não quer que ele fique sozinho, pode lhe fazer

companhia. Ninguém lhe impede isso.

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Lavínia apertou os punhos para não sacudir a sua mãe. Às

vezes tinha vontade de sacudi-la e ver se assim conseguia lhe

acomodar as ideias, lhe fazer entender como devia ser a vida em

realidade.

— Por que você me tirou ele? – exclamou. — Você nem sequer

toma conta dele!

— Me deixe em paz, Lavínia - replicou Cristina. — Você nem

sequer imagina o que é ser mãe.

Lavínia observou Cristina afastar-se junto com Josué. O sangue

ardia em suas veias como lava incandescente. "Se não quer que ele

fique sozinho, pode lhe fazer companhia você. Ninguém lhe impede

isso", recordou. E se sentiu capaz de matar.

Voltou junto a seu irmão sem emitir palavra.

— Conta-me uma historia? - perguntou ele. Sua voz carregada

de inocência que conseguiu acalmá-la.

— Mamãe não lhe conta?

— Não.

Hector dormiu às nove. Então Lavínia pediu a uma enfermeira

que estivesse atenta a ele para poder ir um pouco mais tranquila.

Correu até seu apartamento, tomou banho em dez minutos e se

vestiu tão rápido como foi possível. Para não perder tempo, deixou o

cabelo solto. Tinha que usar um vestido amarelo pouco adequado

para a noite, mas a falta do preto, não lhe restava muitas opções.

Apanhou o ônibus quinze para às dez. Quando chegou ao

restaurante, uma sensação emocionante lhe apertou o coração, ela

vacilou.

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— Nicolas Hagen? - perguntou a uma recepcionista que

rapidamente lhe indicou a mesa.

Nem bem o viu, Lavínia ficou sem fôlego. Ele tinha posto um

terno sem gravata, o casaco aberto e os primeiros botões da camisa

desabotoados. Ficou de pé para recebê-la, mas Lavínia ficou sem fala,

cativada pelo seu belo rosto e seu perfume. Jamais tinha visto um

homem objetivamente tão bonito.

— Perdão - desculpou-se com um sorriso tímido. — Cheguei

tarde de novo.

— Não importa - replicou ele com um tom de voz descontraído.

Nick não o demonstrou, sempre parecia seguro e rápido, mas

se sentiu atemorizado por seus próprios sentimentos. Lavínia não lhe

ficou indiferente, nem podia olhá-la como a qualquer outra mulher,

como a um corpo que em pouco tempo levaria para a cama e logo

desprezaria como as outras. Sua mente lhe dizia que a conservasse

no espaço de seu desejo, mas os pálidos ombros descobertos, o loiro

cabelo combinado com o verde dos imensos olhos anulava aquela

vontade.

— Que lindo lugar - sorriu ela admirando o teto.

— Ele é - assentiu Nick.

Ele já estava acostumado com aquele restaurante, mas ao

parecer, Lavínia não estava acostumada a estar em um lugar como

esse. Não lhe notava mais que pelo brilho no olhar e a falta de

ocultação com que estudava cada canto, porque toda ela era uma

criatura deliciosa, muito mais bela que esse lugar e qualquer outro.

Ao contrário do que Lavínia esperava, Nick não lhe perguntou

por que o tinha deixado plantado na noite anterior. Mas ela mesma

imaginava o motivo: Nick acreditava que, interrogá-la, receberia uma

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mentira como resposta. Para ele, o percalço que lhe tinha impedido

de vê-lo antes resultava muito claro: a teria chamado seu namorado

universitário, ou a teria visitado por surpresa, e então tinha tido que

suspender sua aventura.

Quando o garçom se aproximou, Nick pediu pelos dois.

— Espero que não se incomode, mas quero que prove a

especialidade deste lugar - explicou-lhe sua intromissão ao tempo

que levava a taça de vinho aos lábios. Gostava da comida, qualquer

comida, mas não ia admitir.

— Está bem - sorriu Lavínia. — Eu gosto de surpresas, e estou

segura de que esse prato será uma.

— Brindemos - propôs Nick a seguir elevando a taça da qual já

tinha bebido um gole, como destroçando voluntariamente o mito do

brinde. Lavínia respondeu segurando também a sua. — Por nós -

adicionou ele com uma voz gutural que fez Lavínia tremer.

Entretanto, não se notou porque em seguida fez com que as taças se

chocassem. Logo beberam um gole.

Enquanto esperavam a comida, Lavínia se deu conta de que

tinha deixado uma mão estendida sobre a toalha porque Nick a roçou

com um dedo. Olhou imediatamente a zona onde se estendia um

calor estranho e soube que a sensação se devia ao fato de que ele

não tinha acabado a carícia. O dedo de Nick se deslizava rumo a seus

dedos e ela sabia que provinha de seu pulso.

Sentiu-se sedenta e calorosa. Pestanejou inutilmente para

acabar com o ardor das bochechas e umedeceu os lábios. De acordo

com essas reações, Nick esboçou um ligeiro sorriso de satisfação,

apressou-se a chegar à ponta do dedo maior, e quando roçou a

toalha, retirou a mão.

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Lavínia pensou que ia desmaiar. Obter tanto e de repente ficar

sem nada...

— Você sempre pensou em construir ou vem de família? -

perguntou tratando de ocultar seus sentimentos. O garçom servia o

jantar.

Ao escutar essa pergunta, Nick soube que seria difícil manter

conversações fúteis. Com as mulheres que se esteve era fácil falar de

assuntos superficiais: moda, viagem, gente e festas em comum. Com

Lavínia não compartilhava nenhuma dessas coisas, só sobrava as

profundas, as que o derrubavam a ela como rio ao oceano.

— Sim – respondeu seco.

— Sim a que? - riu ela em resposta. Não tinha ideia de que Nick

se esforçava por parecer ou era um enigma.

— A ambas as coisas.

— E quem era o engenheiro?

— Arquiteto - repôs Nick com tom áspero. — Meu pai era

arquiteto.

— OH, sinto muito! - exclamou Lavínia levando as mãos à boca.

Nick franziu o cenho, confundido.

— Por que? - interrogou.

— Disse "era". Faleceu recentemente?

Nick se engasgou com um “Deus”. Em vez de dizê-lo em voz

alta, bebeu de um só gole o resto do vinho que estava na taça e logo

a colocou sobre a mesa. Tomava tempo para responder, na realidade,

tampouco estava seguro de que lhe servisse de algo.

— Não se preocupe – disse. — Não está morto.

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— Ah, que alívio! - sorriu Lavínia sem intenções duplas. — Eu

nunca vou deixar de estragar tudo com você, certo?

Nick sorriu com sinceridade perante quão inocente Lavínia lhe

pareceu atrás daquele comentário, toda a ternura e sensibilidade.

Apesar desses bons sentimentos, quase majestosos para uma alma

que se havia arrefecido por força de sacrifício, uma sombra ofuscava

o olhar para mais um bom momento.

O resto da noite, Nick se sentiu incômodo e nu. Como Lavínia

não pertencia a seu mundo, não havia ninguém a quem criticar,

nenhuma festa que recordar, nenhuma viagem que relatar. Porque ele

jamais relatava os seus, só tirava informação às mulheres fingindo

que suas historias banais lhe importavam. O que podia dizer ele de

suas viagens, se nelas passava o tempo todo em reuniões de

negócios e em camas alheias?

Soube que tinha cometido um engano em convidá-la a um

restaurante onde o silêncio e a intimidade permitiam as conversações

pessoais que ele desejava evitar. Quanto menos conhecesse as

mulheres melhor para ele. Melhor também se elas tampouco lhe

permitiam as conhecer. Não queria ataduras de nenhum tipo com

suas amantes, e conhecer algo verdadeiro sempre pesava em sua

consciência de algum modo. As mulheres com quem saía jamais

desejavam mostrar-se tal como eram em troca, entretanto, Lavínia

mal escondia sua pobreza.

Ele a devia ter levado aonde a música lhes impedisse de

conversar, onde as línguas não se utilizassem para falar, a não ser

para beijar, onde ninguém notasse que se fingia ser extrovertido e

imbatível quando em realidade aquilo não era mais que uma ilusão.

Lavínia lhe contou que tinha uma irmã e um irmão, que os três

levavam nomes mitológicos. Omitiu lhe dizer que levavam

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sobrenomes distintos, possivelmente por isso seu único laço de união

era, além de sua mãe, a mitologia.

— E você? - perguntou ela. — Têm irmãos?

— Você gosta dos animais? - perguntou ele a procura de

escapar da pergunta sobre se tinha irmãos. Recordava que muitas

das mulheres com as que se deitava diziam ter pequenos cães de

raça.

— Eu adoro! - soltou Lavínia com entusiasmo. Dava-se conta de

que Nick evitava certas perguntas, mas pensava que se devia à

velocidade que sempre levava para tudo e que por isso desejava

passar de tema como folhas de uma revista.

— Acredita que levo meu irmão ao zoológico mais por mim que

por ele – brincou.

— Mas eu não gosto dos animais presos - disse depois.

Lavínia seguiu falando de seu irmão. Só omitiu que ela o tinha

criado os dois últimos anos, que tinha sido operado no dia anterior e

que era tão diferente dela em sua aparência física porque isso

delataria que não eram filhos do mesmo pai. Não lhe envergonhava

essa situação, seria o fato de que sua mãe não tivesse tido

escrúpulos em deixá-la só para ir atrás de tantos namorados quando

seu pai havia falecido.

— Vamos? - propôs ele quando percebeu que Lavínia formularia

outra pergunta incômoda.

— Claro - sorriu ela, sempre amável.

Enquanto ele ficava de pé sem pedir a conta, Lavínia se girou

sobre o assento e recolheu sua bolsa, que estava no encosto da

cadeira.

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— Você pode me deixar no hospital Elizalde? – comentou. —

Você não tem problema de me levar até lá, certo? Você vive ali perto

ou ficará fora do caminho?

Nick teve apenas um instante para processar o que ela acabava

de dizer antes que Lavínia lhe enterrasse outra vez seus olhos

grandes e verdes nos gélidos dele. Ele ficou quieto, com as mãos nos

bolsos, medindo a chave da caminhonete que não tinha pensado em

tirar.

Deixá-la no hospital? O que ele tinha pensado era em levá-la ao

elevador, lhe roubar ali um beijo e acabar fazendo amor no quarto do

hotel! Era para isso que a tinha convidado a esse restaurante, para

não perder tempo e tê-la o mais perto possível da cama. E agora lhe

falava que ele a deixasse no Elizalde?

Lavínia leu algo em seu olhar, mas claro que não alcançou a

interpretar as perversas intenções que ele tinha albergado até esse

instante, por isso supôs que se tratava de preocupação.

— Ah, não se preocupe! - exclamou ficando de pé. — Me

perdoe, devia ter explicado. Não é por mim, é por meu irmão. Ontem

o intervieram cirurgicamente e concordei com minha mãe que eu

cuidaria dele esta noite, nada mais que isso. Não estou doente, nem

me caiu mal a comida – sorriu. — Ai, Nick - baixou o olhar e apertou

a bolsa entre as mãos. — Sinto-me terrível também por ter mentido

sobre a tal Margarida, de verdade - elevou a cabeça de repente - se

quiser o seu dinheiro, o que me deu pelos ternos, devolvo-lhe - não

tinha ideia de como o devolveria porque já o tinha investido em pagar

dívidas, mas só Deus sabia que o faria.

— Não quero meu dinheiro – interrompeu ele, ainda sem

alcançar e processar a informação que ela acabava de lhe dizer.

Estava aborrecido, zangado. Como não estar! Preferia isso antes que

o acesso de sentimentos que estava experimentando, essa estranha

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compaixão por Lavínia, esse perigoso repicar de seu coração perante

algo que pudesse lhe estar ocorrendo, como o de seu irmão.

Caminhou para fora do restaurante sem dizer uma palavra.

Lavínia pensou que, se não pagava a conta, era porque ali o

conheciam, e o seguiu sem dúvida. Enquanto caminhavam, ele tirou

do bolso as chaves de sua Mercedes.

Levou Lavínia até o hospital em perfeito silêncio. Não

demoraram muito em chegar, o condutor se movia veloz e preciso

pela cidade, assim como fingia dirigir cada aspecto de sua vida.

Convenceu-se de que Lavínia era infantil e indecisa, que o estava

deixando louco de propósito, e prometeu que não lhe daria o gosto.

Depois dessa noite, que se esquecesse dele para sempre porque não

voltaria a chamá-la e bloquearia seu número para que ela tampouco

o chamasse.

Deteve o automóvel diante do hospital sem parar o motor.

Soube que Lavínia o olhava, mas ele se manteve com a vista à frente.

Do outro lado do para-brisa via cruzar alguns catadores e pensou nos

perigos que corria Lavínia só em uma instituição a essa hora da noite.

Pensou em acompanhá-la até o interior do hospital para assegurar-se

que nada lhe ocorresse, mas logo desprezou a ideia porque se

recordou que ela o tratava como um brinquedo.

— O que aconteceu, Nick? - perguntou Lavínia com tom de voz

preocupado.

— Nada - respondeu ele, seco.

— Disse algo que te incomodasse? Algo te preocupa?

Que não posso me desfazer de você, pensou Nick, mas se

esforçou por reprimir rápido o sentimento.

— Não - replicou.

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— Então me olhe - ele não obedeceu. — Me olhe...

Diante do segundo pedido, Nick girou a cabeça. A penumbra

que se gerava no interior do veículo pelas luzes de fora conferia a

beleza mitológica de Lavínia, deu um ar de perfeição. Ela se

aproximou dele, olhou-o aos olhos e o beijou na bochecha, lhe

acariciando a outra.

Sentiu suave ao primeiro tato, mas assim que os dedos

pressionaram um pouco mais, o áspero da barba apareceu. A

sensação se estendeu pelos dedos de Lavínia e lhe resultou tão

prazerosa que aumentou sua tensão.

Nick percebeu imediatamente que lhe tremiam as mãos. Sem

dúvida estava nervosa, mas isso não lhe impediu de fechar os olhos

e, depois de beijar sua bochecha, deslizar-se para seus lábios.

Nick ficou rígido. Algo lhe queimou por dentro. A suavidade de

Lavínia lhe provocou uma eletricidade que lhe percorreu a coluna e se

instalou no ventre. Voltar a sentir o assustou. Tinha que converter

aquele ato em um fato meramente físico para acautelar-se, e se

esforçaria por consegui-lo.

Colocou os dedos no loiro e extenso cabelo de Lavínia e

saboreou o interior da boca feminina. Era deliciosa, ainda tinha sabor

de vinho e a devaneio. A língua de Nick, cálida e perita, arrepiou a

pele da mulher. A umidade dos lábios, o aroma de ambos e a

delicadeza das carícias os deixaram indefesos.

Ela entregou-se por completo ao beijo, Nick se negava a deixá-

la ir. Uma mão de Lavínia se deteve na coxa dele, e foi o caráter não

intencional daquela ação o que o excitou até lhe fazer doer as

vísceras. Tinha que levá-la para cama com urgência, acalmar o fogo

que o devorava, já que sem dúvida seria o único modo de tirá-la de

dentro.

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— Nick... - sussurrou ela, ainda contra sua boca. — Tenho que

ir.

Tinha percebido a excitação masculina e, embora não a

assustou, sim foi difícil de segurar. Ela sabia como terminavam essas

coisas, mas não estava pronta para isso acontecer, por isso se

afastou.

— Obrigado por esta noite maravilhosa - disse antes de descer

do automóvel.

Nick a observou caminhar ao hospital sem forças sequer para

gritar que esquecesse dele, que jamais voltaria a chamar e que

encontrasse um namorado de sua idade. Sua idade... Nem sequer lhe

tinha perguntado quantos anos tinha. Tinha-a tido por horas na

mesma mesa e não lhe tinha ocorrido perguntar algo tão simples.

Porque não lhe importava, nunca lhe tinha importado a idade de uma

mulher sempre que concordasse em ir para cama.

Não queria tornar-se vulnerável, mas aí estava, não tinha

movido o automóvel ainda para ter certeza que ela entrasse sã e

salva ao hospital.

No preciso instante em que Lavínia entrou em um lugar de

maior escuridão que a rodeava, prometeu-se que não lhe telefonaria

que tampouco responderia suas ligações e que a esqueceria.

Convinha reconhecer que tinha perdido a aposta, que Lavínia era uma

jovem malcriada acostumada a sair com meninos de sua idade. A

diferença entre eles, ele era um homem e sabia muito bem o que

queria. Sobretudo se convenceu disso, de que ele sabia o que fazia,

de que tinha um plano, um objetivo, não só com Lavínia, mas com

sua vida, na qual uma menina como essa era descartável.

Desnecessária. Que maldita obsessão tinha com essa mulher, tendo a

todas as que queria na palma da mão?

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— Bruxa - murmurou com os olhos semicerrados.

Pensou em todas essas questões até no sábado à tarde, quando

lhe ocorreu justamente o contrário: deixá-la ir seria lhe dar o gosto,

você acredita que uma mulher adulta, podia ser diferente de qualquer

outra. Lavínia não era diferente, todas as mulheres eram iguais, vis e

interessadas, e ele estava disposto a demonstrar-lhe.

Então decidiu ligar para ela. Mas esta vez, as coisas se fariam a

seu modo: nada de restaurantes formais, nada de silêncios

incômodos e conversações pessoais. A levaria a uma discoteca de

Porto Madeiro onde a música invadia os sentidos e os sofás

escondiam os pecados dos olhos públicos. Um lugar onde para ele

não havia intimidade, alma nem luz.

Lavínia respondeu ao segundo chamado do telefone.

— Olá.

— Ainda está internado seu irmão?

Foi tudo o que Nick disse. Nem sequer respondeu à saudação,

como se fazê-lo subtraísse tempo de suas verdadeiras prioridades.

— Nick! - exclamou ela, um pouco aturdida pela velocidade que

ele levava. — Não. Teve alta faz...

Nick a interrompeu.

— Espero-te no bar às doze.

Disse a direção, que era a mesma onde tinham planejado o

primeiro encontro fracassado, e desligou.

Surpreendida pela fugacidade do chamado, Lavínia olhou seu

relógio de braço. Eram dez. Teria que apressar-se se queria chegar a

tempo.

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Capítulo 8

Lavínia chegou ao bar às doze e quinze. Nick tinha dado a

ordem de que, se ela ligasse, só se fosse ela, passassem-lhe o

telefone para assegurar-se de que ela viria nem que tivesse que

matar o presidente.

Não havia necessidade, porque Lavínia chegou e em seguida

procurou por Nick. Tinha dificuldade de ver pela quantidade de gente

e a escuridão, e também porque ele preferia as zonas mais ocultas.

Conseguiu encontrá-lo perdido em um sofá de estofado vermelho

quando ele levantou uma mão. Bebia uma bebida azul.

Lavínia suspirou. Tinha posto seu adorado vestido de veludo

preto, um pouco velho para a época, mas sempre atual. Viu Nick tão

atraente que ficou nervosa e por isso apertou a bolsa. Aproximou-se

com pressa até que um jovem quase a levou para frente quando deu

um passo atrás e lhe interrompeu o caminho. Lavínia se esquivou e

seguiu avançando até o sofá, onde se deixou cair, um pouco instável.

— Olá - saudou.

Em resposta, Nick se inclinou para ela, agarrou seu pescoço e a

aproximou de sua boca para devorá-la com os lábios e com a língua.

Lavínia ficou estática, presa de seus sentimentos, as que ele

despertava em seu corpo como ninguém antes.

A língua de Nick a invadiu sem aviso prévio deslizou-se por

seus lábios lhe fazendo uma cócega estremecedora até alcançar o

interior, onde começou um jogo que lhe fez tremer as pernas.

Procurava sua resposta, a que demorou em chegar porque ela achou

difícil reagir por causa da surpresa. Nunca a tinham beijado com

semelhante paixão, com tal abandono. O fato transbordava com tanto

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poder que ela ficou com medo, mas ao mesmo tempo experimentou

um prazer novo, até esse dia desconhecido, que começou a pulsar em

seu peito ao tempo que o fazia na zona mais profunda de seu corpo.

Estava excitada. Um beijo lhe tinha excitado não só o sexo, mas

sim, além disso, os sentimentos, que trabalhavam em seu interior

como o crepitar do fogo.

Os dedos do Nick lhe davam ligeiros apertões na zona baixa da

cabeça, era uma massagem estremecedora que acabou de repente.

Depois da molhada demonstração de domínio, depois de deixá-la

tremente e sedenta, Nick se separou dela e a soltou como se jamais

tivesse desejado tocá-la.

— O que você quer beber? - perguntou amável, mas muito

direto.

Lavínia engoliu em seco antes de responder. Precisava assumir

que acabava de ser beijada com voracidade desconhecida e que tinha

sido liberada com a mesma intensidade.

— Qualquer coisa - conseguiu murmurar.

Nick estava de excelente humor, como sempre. Entretanto, algo

em seu estado de ânimo tinha mudado. Lavínia o notou mais seguro

de si mesmo, acelerado e exigente que em qualquer das

oportunidades anteriores.

— E o que teve seu irmão? - perguntou ele com ar indiferente,

ao tempo que deixava escapar a fumaça de um cigarro que tinha

acendido. Tinha um braço apoiado no encosto da poltrona, muito

perto do ombro de Lavínia.

— Apendicite - respondeu ela. Tinha dificuldade de ouvir e falar

porque era muito alto volume da música.

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Assim gostava dos encontros: sem espaços para compartilhar

mais que as línguas, sem momentos para cruzar mais que duas

palavras. Só relação física. Só sexo.

— Esse vestido fica magnifico - disse Nick a seguir. Lavínia

sorriu pensando que até no dia anterior o pobre vestido tinha estado

banhado em vômito, mas não podia confiar a Nick esse pensamento.

— Você também esta muito bem - confessou com

acanhamento.

Nick não respondeu, nem sequer olhou para ela. Voltou a tragar

o cigarro e deixou escapar a fumaça por entre os lábios vagamente,

como se não fosse importante quanto tempo lhe demorasse fazer.

Depois se deslizou até ficar junto a ela.

— Você gosta? – perguntou olhando com insistência aos olhos.

Lavínia sorriu e baixou o olhar. Ele levantou sua cabeça segurando

pelo queixo.

— Não, assim não. Me olhe – ordenou. — Você gosta?

— Nick! - exclamou ela, completamente vermelha, vítima de

um sorriso nervoso.

— Porque eu gosto muito de você - acrescentou ele sem

contemplações. Nick pensava em tirar toda essa falsa ingenuidade

que ela fingia. Depois se afastou, outra vez como se jamais tivesse

desejado tocá-la, e jogou a cabeça atrás com os olhos fechados.

— Você gosta desta canção? - indagou.

— Não estou certa de havê-la escutado antes - respondeu

Lavínia com total honestidade. Ela não escutava música eletrônica.

“The world is mine” parecia ser uma das canções favoritas de

Nick, porque ele ainda não abria os olhos nem trazia a cabeça para

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frente. Além disso, respirava de maneira diferente, de uma vez com

profundidade e agitação. Um momentâneo silêncio permitiu escutar

os murmúrios dos clientes, as taças, os passos. Em seguida ressonou

um tamborilar que foi fazendo-se cada vez mais forte até que se

acrescentaram outros sons e a música estalou em um grito de luxúria

e de paixão.

Nick se comportou do mesmo modo irracional da canção.

Levantou-se, atraiu Lavínia para si pós a mão na nuca de novo e

devorou sua boca em um beijo intimidante, poderoso.

Lavínia chegou a pensar que Nick estava drogado, mas isso não

era certo. Conhecia muito bem os sintomas do consumo de drogas e

do excesso de álcool, e esse homem estava limpo. Era apenas um

escravo de seus sentidos.

Lavínia o seguiu no jogo, entregou-se ao beijo como a melhor

de todas as mulheres que ele tinha tido e deixou que a música se

apoderasse de sua prudência como se levava a do homem.

Passaram umas duas horas assim, afundados na poltrona,

gozando da música eletrônica, beijando-se, acariciando-se. Tal como

ele fazia sempre e como tinha planejado fazer também com ela.

Lavínia não notou quanto tinha bebido até que Nick a convidou para

ver as estrelas e ela se atreveu a responder:

— Eu adoraria.

A suíte do Hilton estava decorada em cores salmão e branco.

Atraída por uma janela que se podia admirar meia cidade, Lavínia se

encaminhou direto para ali.

— Que vista bonita! – exclamou. — É uma verdadeira beleza...

Nick se apoiou na parede e acendeu um cigarro antes de

responder.

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— A única beleza que eu vejo neste quarto é loira e tem posto

um bonito vestido preto.

Lavínia girou a cabeça para ele e sorriu. Nick umedeceu os

lábios. Desejava-a, desejava-a tanto! Então se aproximou por detrás

e a abraçou. Do mesmo modo febril apoiou os lábios sobre o pescoço

longo e branco.

— O vestido é precioso - murmurou sobre a pele feminina,

provocando a ela um formigamento sugestivo - mas para ser

honesto, estou morrendo de vontade de arrancá-lo de você.

Lavínia se sentiu orgulhosa de que ele admirasse uma criação

que ela tinha confeccionado, mas nesse momento não estava em

condições de pensar. Tinha fechado os olhos, presa na sensação

arrebatadora dos lábios de Nick sobre seu pescoço. Girou sobre os

calcanhares e ficou de frente a ele, posição em que pôde apoiar as

mãos sobre seus largos ombros.

Nick a apertou contra sua ereção que pulsava em sua calça e

apagou o cigarro aceso com os dedos para deixá-lo cair sobre o

tapete. Uma vez livre desse incomodo, deslizou as mãos até o fim do

vestido de Lavínia até encontrar o zíper, ao qual poderia desprendê-

lo.

— Quero te despir - murmurou com voz rouca. E logo, sentiu

desejoso de voltar a saborear a mulher, invadiu-lhe a boca com sua

língua.

Lavínia não resistiu. Abriu os lábios e se juntou ao jogo de

paixão que se iniciou entre ambos na discoteca, presa no mesmo

fogo que o consumia. Sentia a urgência de Nick em cada um de seus

movimentos e sabia que já não havia como voltar atrás. Estava

apaixonada por ele, por seus mistérios e seus defeitos, tudo o que

seu corpo em chamas lhe dizia, o que ele podia ser.

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Não queria resistir. Queria enfrentar seus temores e entregar-se

pela primeira vez ao sexo prazeroso, a esse aspecto humano que

desconhecia.

Nick deixou cair o vestido que a envolvia. O deslizamento do

tecido produziu uma cócega suave em todo o corpo de Lavínia. Com a

roupa interior como única roupa, a pele arrepiou quando Nick voltou

a apertar contra seu peito. O atrito com a roupa masculina fez

estragos nela, que por instinto se aproximou mais à fonte de tão

extraordinária sensação. Cheirava a um suave perfume e aos dois.

Quase imediatamente, como demonstrando quem assinalava o

ritmo, Nick se afastou uns centímetros. Lavínia sentiu sua falta

perante a ausência de calor, mas entendeu que ele queria vê-la

seminua, tal como tinha anunciado. Ela fechava os olhos, abriu-os

quando percebeu que Nick se afastava um pouco mais.

Ele não teve piedade da inexperiência feminina, a que se

negava a admitir. Com os olhos irritados e a mente feita em um

turbilhão, examinou o corpo de Lavínia, estudou-a de cima abaixo

com lentidão. Em um princípio, ela se sentiu intimidada pela

intensidade do cinza que a contemplava. Compreendeu nesse preciso

segundo que os olhos de Nick eram um oceano tão profundo e

proibido que ninguém alcançava seu final. E lhe resultou incrível que

um olhar tivesse o poder suficiente para excitar a distância, sem

necessidade de beijos ou atrito, porque seus olhos a acariciavam de

longe.

Lavínia perguntou para ele se queria que ela acabasse de se

despir, já que a despia com os olhos, mas em troca baixou os dela.

— Não, assim não - disse ele. — Quero ver você olhando para

mim, que entenda que és linda.

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Ele se convenceu de que desejava por de lado a falsa vergonha

de Lavínia, mas em realidade tudo o que fazia era controlar suas

emoções. Ansiava o contato visual com ela porque o excitava, estava

tão agitado em seu interior que até o fazia pensar que não estava

morto. Ele fingiu personalizado e luxúria enquanto apertava os

punhos ao lado do corpo para conter os sentimentos.

O que estava errado? Por que o que ele mais tinha visto eram

corpos esculturais antes, porque o de uma deusa romana lhe parecia

gloriosa?

Por um instante, Lavínia perdeu todo vestígio de timidez, algo a

distraiu daquela impressão. Não sabia o que significava o brilho que

acabava de ver nos olhos de Nick, mas a cativou ao ponto de lhe

fazer esquecer o resto.

Para acabar com riscos sentimentais desnecessários, ele

começou a desabotoar a camisa ao mesmo tempo em que levantava

um e outro pé para abandonar os sapatos. Pretendia igualar em

condições a Lavínia. Desejava que tivesse mais que uma lâmpada

acesa para gozar da imagem que a mulher lhe oferecia, mas não

queria perder tempo em acender mais luzes.

Lavínia não se moveu. Poderia ter se aproximado, como

seguramente faziam as outras que ele levava para cama, tomar o

sensual atrevimento de lhe tirar a roupa. Ela não se atreveu. Tinha a

boca seca, estava sedenta e encadeada aos segredos que se

desvaneciam a escassos centímetros.

Pouco a pouco, o peito do Nick ia aparecendo por debaixo do

tecido que se abria, tão comprometedor como seu rosto. Ele não

sentia pudor algum, queria que Lavínia o visse nu, que se abrisse a

seus sentimentos.

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A camisa deslizou pelos braços até cair enrugada aos pés de

seu dono. Tudo tinha o tamanho justo, pensou Lavínia. Os músculos

desenvolvidos do torso, o ventre e os braços; as pernas, o vulto que

se avistava proeminente debaixo das calças pretas.

Ela mordeu o lábio inferior a procura de compreender suas

próprias emoções. Eram muito fortes para seguir as suportando

quieta em seu lugar.

Os pensamentos de ambos coincidiram, porque Nick avançou os

passos que os separavam até ficar frente a ela. Estava a menos de

dez centímetros.

Lavínia estremeceu quando os dedos de Nick lhe rodearam um

pulso. Do mesmo modo possessivo e exigente, ele levou sua mão

direto para braguilha de sua calça.

— Isto quero que faça você - solicitou.

Lavínia umedeceu os lábios e apertou os dedos sem querer. A

dureza que percebeu debaixo do tecido a deixou perplexa, um

momento brilhou o olhar. Entretanto, como desejava Nick e sua

imagem enchia todos seus sentidos, não duvidou em estender a outra

mão e ajudar-se a cumprir com o que lhe tinha pedido. Tremeu um

momento, mas em seguida ouviu o ronrono do zíper e soube que

tinha completado com sua meta. Nick sorriu. Parecia honesto. Ele

era.

— Falta o botão - disse elevando uma sobrancelha em uma

careta simpática. Tinha um rosto muito expressivo, de gestos

sensuais e sugestivos, e notava que estava desfrutando do momento.

A brincadeira ajudou a Lavínia a relaxar-se. Ela também sorriu

e seus olhos cintilaram ao cumprir com o desafio. Enquanto o fazia,

não soube como, roçou algo carnudo e quente. Muito quente. Deu-se

conta de que tinha chegado dentro da cueca.

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A surpresa que seu parceiro teve com o contato entre a mão

feminina e sua masculinidade, produziu tanto prazer em Nick que

fechou os olhos um instante enquanto inspirava profundamente.

Pouco a pouco, ela descobria que o sexo não era solene nem

complicado, a não ser um jogo divertido que só requeria liberar-se de

ataduras, culpas e repressões. Ou possivelmente ele o fazia assim,

não sabia por que não tinha feito amor com outros homens. A mescla

de nervos, paixão e gritaria que se agitava em seu peito a estimulava

para seguir experimentando.

As calças caíram como instantes antes tinha feito a camisa.

Então se fizeram visíveis os boxes brancos, Nick se agachou para tirar

as meias. Quando se levantou depois do rápido movimento, levantou

sua companheira e a levou até a cama. Lavínia riu porque todo o

tempo ele conseguia surpreendê-la.

Foi um instante angélico em meio de algo que Nick pretendia

fazer algo demoníaco. A maioria das mulheres falava e ele estava

acostumado a rir com elas enquanto se preparavam para o sexo.

Lavínia por momentos estava calada, como se em seu interior se

debatessem ideias que ele desconhecia, mas em momentos se

relaxava e tudo se convertia em uma espécie de música.

Nick decidiu não questionar mais a situação. Cobriu-lhe a boca

com a sua para acabar com a risada e manter o silêncio, que era

melhor que lhe permitiria o coração participar de um ato físico, e

assim se sentiu tranquilo. Conseguiu dominar-se.

Lavínia sentiu que a possuíam e gemeu perante a insinuação. A

língua de Nick parecia mais cálida que nos beijos anteriores, sua

temperatura corporal tinha aumentado. Ainda com a umidade dos

dois nos lábios, ele deslizou os seus pelo rosto feminino, onde esse

calor ia misturando com a pele da mulher como gotas de chuva no

oceano.

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— Não faça isso - pediu Nick de repente. — Não te negues para

mim.

Lavínia abriu as pernas imediatamente. Não se tinha dado conta

de que as tinha encolhido, aprisionando-o a ele entre elas e lhe

impedindo o livre movimento. Esforçou-se por reprimir essa ação

inconsciente com a qual pretendia impor um limite e tentou entregar-

se ao prazer de novo.

Não demorou muito em chegar; a mão que ele deslizou pelo

interior de sua coxa enquanto lhe beijava o pescoço a fez estremecer

de gozo e de emoção. Nick queria que ela se preparasse para ele, que

estivesse pronta para recebê-lo em seguida, por mais que ainda

pensasse tomar seu tempo antes de entrar nela. Com intenção de ir

provando a sorte, apanhou seu sexo entre as mãos e com o polegar

lhe acariciou o ponto mais sensível através do tecido de seda da

calcinha. Lavínia se queixou de gozo. Os dedos peritos de Nick lhe

produziram sensações que conseguiram deixá-la tremente e de uma

vez exigente. Em procura de saciar essa extraordinária necessidade

de mais, arqueou-se para o corpo de seu amante, até que algo

distraiu sua atenção.

Girou a cabeça. Primeiro a tinha sentido na cara, mas agora o

via: o cortinado se balançava com lentidão, produto da brisa que

entrava no quarto por uma das janelas abertas. Então terríveis

lembranças se amontoaram em sua mente e um calafrio lhe

percorreu as costas. Nick se deu conta de que Lavínia se debilitava,

seu desejo por ele se obscurecia.

— Feche a janela - sussurrou ela com a voz tremendo de medo

e já não de prazer.

Nick se sustentou sobre os cotovelos para olhá-la aos olhos.

Durante esse instante pareceu ter abandonado de repente ao homem

apressado, superficial e exigente no que se converteu.

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— Há algo que queira me dizer? - perguntou.

Lavínia não podia ser virgem. Nenhuma mulher o era se tinha

passado a adolescência, pensou Nick. Mas também era certo que ela

não tinha a idade das mulheres com as que ele se deitava e

tampouco levava a mesma vida que elas. Nem sequer se tinha

movido até que lhe indicou o que queria que fizesse, tão distinta de

todas as demais com as que tinha intimidade. Quase se parecia com

as garotas de sua adolescência.

— Feche a janela, por favor - repetiu Lavinia sem olhá-lo aos

olhos. Ainda via a cortina.

Nick se deslizou para trás, ficou de pé e obedeceu sem dizer

uma palavra. Não estava irritado. Contra sua vontade e de seu férreo

controle das emoções, preocupou-se.

Quando voltou para a cama, ficou quieto um momento,

admirando o corpo que ali aguardava sua volta. Secou-lhe a boca e

lhe arderam os olhos. Seu coração pulsou desenfreado enquanto

lutava contra os sentimentos. Em procura de escapar deles,

estabeleceu-se sobre Lavinia e a olhou aos olhos.

— Se tiver que me dizer algo, é melhor que o faça agora -

repetiu.

Há tanta coisa!... Pensou Lavínia. Que tenho medo do vento,

que gosto muito de você, que acredito que te amo. Que por isso me

confio em seus braços. Mas calou.

— Que te desejo - disse em troca. — Que te quero muito.

Nick não acreditou, mas acostumado a não sentir, sorriu. E

enquanto a beijava nos lábios de novo, ela se atreveu a responder à

provocação colocando uma mão em sua nuca para pressioná-lo mais

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contra sua boca. Queria que Nick lhe fizesse esquecer tudo de mau,

que a protegesse do passado com sua experiência.

As carícias recomeçaram. Primeiro em seu rosto, onde Nick

deslizava um dedo, logo em seu pescoço. Ambos os polegares do

homem correu para baixo do sutiã rosa até alcançar a zona erógena

feminina, toque que fez Lavínia estremecer de novo. Quase lhe

parecia que não podia respirar. Com a mesma habilidade, Nick

desprendeu o sutiã e o puxou para longe.

Também se afastou e a olhou. Outra vez a observava

abertamente, sem ocultar o desejo que percorria cada fibra de seu

corpo e lhe iluminava os olhos obscurecidos.

As mãos de Nick percorreram a parte interna da perna de

Lavínia, até a coxa. Assim se apropriava de sua roupa interior.

Enquanto lhe tirava a calcinha, pensou que ela era bonita, que tinha

visto e medido centenas de corpos que objetivamente podiam ser

mais belos que esse, entretanto nenhum se igualava. Lavínia era

perfeita por seus sentimentos, tão distinta e natural. Tinha levado

muitas mulheres para a cama, mas uma Lavínia nunca.

Tinha pretendido ignorar sua atitude em relação à janela

aberta, mas não pôde fazê-lo embora se propusesse. Pressentia algo,

embora não sabia o porquê. Por isso não investiu com ferocidade,

aproveitou para fortalecer seu autocontrole enquanto tirava a cueca.

Lavínia pestanejou várias vezes ao ver pela primeira vez um

homem inteiramente nu ao vivo e a cores. E pensou que se era

maravilhoso, não despertava medo nem impressão, a não ser

curiosidade e regozijo, possivelmente porque se tratava de Nick e não

de qualquer outro.

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Gostava de vê-lo, admirava o modo em que seus músculos se

esticavam ou se distendiam de acordo com seus movimentos; a

forma em que ele agia, o olhar que a consumia.

Nick nunca era rude com as mulheres, exceto com a que assim

o exigia. Com Lavínia não bastaria o mesmo de sempre, com ela teria

que ser mais cuidadoso porque não podia arriscar-se a lhe dar uma

má estreia. Não queria preocupar-se, não queria sentir-se

responsável por uma mulher que não voltaria a ver em sua vida. Mas

a verdade lhe impediu de atuar conforme seus costumes.

Não se impulsionou dentro dela. Além disso, ainda não tinha

colocado a camisinha, e jamais tinha sexo com alguém sem proteger-

se e as proteger. Deslizou primeiro dois dedos pelo púbis que cobria o

secreto lugar feminino até dar com o contorno, onde jogou um

momento. Lavínia sorriu com os olhos fechados, jogando a cabeça

para trás. Sentia-se fabulosa, como uma eletricidade que ia e vinha

que nascia ali abaixo e morria não sabia onde. Acrescentou-se

quando algo quente e molhado lhe cobriu um peito. Era uma boca,

que começou a lhe sugar um mamilo e com isso conseguiu deixá-la

sem ar.

Ele achou outra vez o ponto exato onde lhe sentia mais agradar

e o estimulou com o polegar. Enquanto isso deslizou dois dedos em

sua cavidade, no caso dela jamais tivesse albergado ali algo. Nunca

tinha tirado a virgindade a alguém, não tinha ideia de como devia

fazer, mas só Deus sabia que faria todo o possível para que, em caso

de que sua suspeita fosse certa, Lavínia tivesse uma grata lembrança

do sexo. Depois de tudo, ele se considerava um especialista. Acaso

não o era?

Sentia-se um inexperiente. Era a primeira vez que se tomava

tanto tempo para começar com um ato sexual, mas também era a

primeira vez que tinha a uma mulher virgem em sua cama. Embora

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não o demonstrasse, isso lhe gerava novas responsabilidades e

temores. Não queria ser responsável e odiava-se por sentir medo.

O que estava fazendo? Perguntou-se. Devia deter-se nesse

preciso momento, não podia tirar a virgindade a uma mulher que

possivelmente a tivesse conservado intacta para o homem de sua

vida. Isso já não existe, retratou-se. Se fosse virgem, não estaria na

cama com um desconhecido, esforçou-se por pensar. Mas, a quem

queria enganar? Sabia que Lavínia não tinha estado com um homem

antes por algumas razões que ele jamais saberia, porque depois

dessa noite, não haveria mais Lavínia para ele. Tinha que deter-se,

entretanto, não podia. Era um egoísta ganancioso, sempre o seria.

Queria sê-lo.

— Lavínia... - ouviu-se murmurar com voz rouca. Esperava que

ela o detivesse, mas, pelo contrário, a mulher replicou: — Quero isto,

Nick - assegurou. — Quero que continue.

Em vista de que Lavínia não emitia sinal algum de dor, a não

ser de gozo, ele introduziu outro dedo. Morria de excitação de ver ela

perto do orgasmo, mas tinha que conter-se, devia esperar. Estava

úmida e preparada, mesmo assim, ainda tinha mais caminho para

percorrer, porque também era estreita. Muito. Já não podia enganar-

se que possivelmente tinha feito amor com alguém antes.

Aproveitou que podia afastar-se dela para abrir a gaveta da

mesa da noite e extrair quase às cegas uma camisinha de todas as

que haviam ali. Abriu o pacote com a boca e usou ambas as mãos

para colocar o látex sobre seu membro erguido. Cuspiu a parte de

plástico que tinha ficado entre os dentes e retornou a Lavinia,

esperançado que a breve interrupção não lhe tivesse feito diminuir o

desejo.

Queria que ela soubesse o que lhe esperava. Em busca que

compreendesse, roçou a entrada de seu corpo com a ponta de seu

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membro sabendo que ali encontraria asilo. Introduziu-o apenas um

milímetro e logo o deixou sair para voltar a entrar, desta vez um

pouco mais.

Devia ter cancelado tudo, dizia enquanto lhe acariciava as

têmporas com os polegares e ia deslizando lentamente nela. Devagar,

muito devagar. Devia de ter protegido ela de minhas intenções.

Enterrou a cara entre os peitos de Lavínia, que, ansiosa e

excitada, já se arqueava para ele para lhe facilitar a entrada. Ela o

fazia por puro instinto, porque o que estava fazendo e gostava.

O instante em que Nick sugou o rosado mamilo de Lavínia, seu

membro se deslizou no interior da mulher quase sem que ele fizesse

algum esforço. Ela apertou os olhos. Ele colocou uma mão sobre a

sua.

— Olhe para mim - ordenou.

Lavínia abriu os olhos. Não era Josué quem a possuía, era o

homem que ela tinha eleito, o homem por quem estava apaixonada.

Nesse instante, Nick pôde sentir o lugar exato onde acabou com

a inocência de Lavínia e repetia com força. Não sabia conter suas

emoções quando de uma vez devia dominar a força impetuosa de seu

corpo. Nunca tinha tido sexo com alguém devendo controlar ambas

as torturas juntas.

Os únicos sinais de dor que ela emitiu foram um suave gemido

e que apertou as pernas.

— Por favor, me ajude – pediu a ela, tão suave e sereno que

quase parecia outro homem. — Relaxe.

Quanto mais ela se fechava, mais doía, e mais custava a ele

reter sua explosão interior. Por sorte Lavínia obedeceu

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imediatamente. Confiava nele. Confiava tanto que tinha entregue seu

corpo e ele não era mais que o pior engano de sua vida!

Sacudiu a cabeça. Essa relação o ia deixar inútil; esgotado de

conter, esgotado de ignorar.

Pouco a pouco foi recuperando o movimento. Primeiro de

maneira muito lenta, logo compassada. O choque que se produzia

entre os sexos foi relaxando o interior de Lavínia até que a dança de

ambos os uniu cada vez mais freneticamente, ela rompeu-se em

gemidos e a ele em grunhidos involuntários. Seus corpos estalaram

uma bomba cuja ressonância durou apenas uns instantes, mas foi tão

capitalista que os deixou sem forças para mover-se ou para falar.

Nick não tinha tido um sexo tão bom fazia anos. Ao parecer

conter, cuidar e esperar surtiam efeitos devastadores. Ou

possivelmente era Lavínia, não quis refletir sobre isso.

Ela se abraçou a Nick. Pensava que a vida se resumia a esse

instante, o mais feliz de sua existência até agora, quando

comprovava que podia desfrutar como mulher apesar do passado e

do medo.

— Obrigada - sussurrou com os olhos úmidos.

O coração de Nick reagiu imediatamente, atou-se e lhe fez

cravar a pele. Jamais uma amante tinha lhe agradecido o sexo e não

era motivo para fazê-lo. Por que ela agradecia, se a tinha feito perder

sua inocência? A sorte e a culpa o invadiram em partes iguais, e

como se negava a qualquer tipo de sentimento, sua mente reagiu

quase tão rápido como seu coração e restabeleceu a barreira que o

separava da alma. Vazio, assim se sentia. Assim devia ser.

Meia hora depois, tinham pedido serviço de quarto. Ambos se

apoiavam no encosto da cama; ele fumava um cigarro e Lavínia bebia

um suco de frutas com um sorvete. De não haver-se esforçado por

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ser distinto, Nick até haveria sentido indiferente com a atitude da

mulher e teria desejado fazer o mesmo, mas em troca esbanjava sua

saúde no cigarro.

De repente percebeu que ela tinha pegado o olhar indiferente

em seu rosto, então a olhou. Lavínia o observava com os olhos de um

anjo e o sorriso de uma deusa apaixonada por um mortal.

— Você é muito elegante - disse-lhe. — Acredito que a palavra

justa seria bonito, embora os homens não gostem que lhes digam

isso.

A confissão o abrandou involuntariamente e o levou a sorrir

com ternura. Os olhos de gelo estavam mais quentes, o tempo

parecia não correr.

Horas depois, Lavínia despertou. Não se tinha dado conta

quando adormeceu. O forte corpo de Nick estava junto ao dela,

pequeno e delicado em comparação com o dele.

Estava amanhecendo. O céu cinzento, tão parecido com os

olhos de Nick, refletia-se em seu rosto juvenil e renovado. Lavínia o

observou dormir, quente e depravado, até que o sono voltou a vencê-

la e ela também dormiu.

Quando voltou a despertar, achou-se sozinha na cama. Uma

terrível sensação de desolação e medo lhe percorreu o corpo. Sentou-

se alarmada.

— Nick? - perguntou.

O quarto parecia estar vazio. Tinha banheiro, quarto, cozinha e

sala, mas pressentia que ele já não estava ali, em nenhuma parte

onde ela pudesse voltar a vê-lo.

— Nick? - repetiu com voz tremente.

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Lavínia engoliu com força antes de girar a cabeça em busca de

quem lhe faltava. Mas em troca se encontrou com dois largos papéis

que saiam por baixo do abajur. Pegou tremendo.

Paradise conseguiu ler, porque era o que mais destacava do

conjunto, antes que as palavras de seu amigo interrompessem

qualquer outro pensamento.

Por acaso não te deixou como lembrança duas passagens para

o Paradise? Com isso dizem que está acostumado a agradecer a

suas...

— Amantes - completou a frase que na discoteca nenhum tinha

querido completar.

Lavínia cobriu o rosto com ambas as mãos e balançou a cabeça.

Como não se deu conta antes? Por que se tinha permitido abrigar a

fantasia de que Nick pudesse chegar a querer algo dela? Era uma

estúpida, uma iludida que ainda acreditava em contos de fadas.

Zangada consigo mesma ficou de pé, tomou um ducha e se

vestiu. Pensou em deixar as passagens na mesa de noite, mas

sabendo que elas eram a última coisa que Nick estava pensando

sobre ela as pegou, reuniu as partes de sua dignidade, as que tinham

ficado dispersadas, como sua roupa, por esse quarto de hotel muito

caro, e se encaminhou ao elevador.

No hall de entrada, aproximou-se da recepcionista e entregou o

cartão magnético que servia para abrir a porta do quarto.

— Lhe devo algo? - perguntou por cortesia. Duvidava que Nick

a deixasse pagar a conta, isso teria sido o cúmulo, e também não

tinha ideia de como ia pagar em caso de que assim fosse.

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— Dever? Claro que não - respondeu a moça dando um meio

sorriso. — O senhor Hagen é virtualmente o dono desse quarto. Está

reservado para ele todo o mês.

Lavínia amaldiçoou a funcionária por soltar tanta informação

que de certeza tinha sido proibida de dar. Se o fazia era só para as

amantes de Nick, dando o presente que lhe ofereciam, como a ela.

Lavínia sentiu que lhe enterravam uma adaga em uma ferida

ainda aberta. Nick estava acostumado a levar a esse quarto uma

mulher distinta cada noite, e outros se divertiam as vendo desfilar.

No domingo contou tudo a Tamara.

— Aqui está o presente - disse deslizando os dois ingressos do

Paradise para o lado da mesa onde sua amiga se encontrava sentada.

— Toma-o como meu presente de bodas: sua lua de mel. O que você

acha disso?

— De maneira nenhuma, Lavi - replicou Tamara, quase

ofendida. — Você tem que ir a essa viagem.

— Você esta louca? - replicou a outra com uma risada irônica.

— Por que?

— E se ele estiver lá? Se não foi uma despedida, e sim um

convite?

— Não posso ser tão ingênua duas vezes - respondeu Lavínia,

resignada.

— Os ingressos para o cruzeiro são um pagamento, e se fosse,

estaria aceitando-o.

— E o que tem? Quantas mulheres o fazem? - gritou Tamara.

Lavínia arqueou as sobrancelhas, indignada.

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— Você faria isso? - perguntou não sem certa irritação. Tamara

encolheu os ombros ossudos.

— Por que não? Esquece-o, divirta-se. Depois de tudo, quando

foi para cama com ele, sabia bem que classe de homem era.

— Sim, sim, sabia! - reconheceu Lavínia, ainda irritada com ela

mesma.

— Mas acreditei que possivelmente desta vez fosse especial

para ele... diferente.

— Ai, Lavi! - exclamou a outra, risonha pela ingenuidade de sua

amiga. — Não existem mulheres especiais para esse tipo de homens.

Como viu que o ânimo de Lavínia estava longe de melhorar, e sim

piorava, decidiu acabar com as provocações. — Você tem que ver o

lado positivo do assunto, amiga.

— Ao menos pôde fazê-lo... sempre acreditou que não poderia,

depois de Josué. Você fugiu de cada relação que teve, nem bem seus

namorados conseguiram se insinuar um pouco mais. E agora foi para

cama com um desconhecido! É genial! Nota-se que o tal Nick te

pegou forte. E acredite, têm em suas mãos a possibilidade de uma

princesa. Um cruzeiro, Lavínia! - Tentou pôr um pouco de entusiasmo

tomando as mãos de sua amiga por sobre a mesa. — É algo com o

que jamais haveríamos sequer sonhado!

— Não quero poder fazê-lo, nem quero um cruzeiro. Quero que

ele me ame - replicou Lavínia com pesar. A Tamara estremeceu o

coração.

— Não acha que é muito rápido? Tiveram dois encontros. Além

disso, não pode fazer com que alguém te ame, muito menos um

homem como esse. O melhor que pode fazer é embarcar neste navio

e te deixar levar.

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— Você iria comigo? - Tamara entreabriu os lábios, morta de

vontades de dar o sim. — Seria sua despedida de solteira.

A morena engoliu com força. Morria por dizer que sim, mas não

podia aceitar. Não tão perto do casamento.

— Você sabe que eu adoraria te acompanhar, mas não posso. O

casamento está próximo e tenho que ir ao meu novo trabalho.

Lavínia assentiu em silêncio enquanto suspirava.

— Está bem - acabou por dizer. De repente se sentia valente e

poderosa, tanto que até se ergueu orgulhosa. — Depois de tudo, é

uma oportunidade única.

Na segunda-feira, Nick chegou ao piso de seu escritório com o

mesmo bom humor de sempre. Aproximou-se do escritório de sua

secretária com um sorriso e um papel na mão. Era uma das folhas do

bloco de papel de notas do hotel que, como cada começo de semana,

entregava a sua fiel Fi.

— Bloqueie este número, por favor - ordenou ao passar.

— Acreditei que traria muitos mais - brincou a mulher. As

segundas-feiras, Filomena bloqueava mais de um número sempre,

porque Nick levava várias mulheres para cama. Ele riu.

— Este foi um fim de semana pouco convencional - admitiu.

A mente da secretária se disparou com rapidez. Que mulher

podia deixar Nick esgotado? Possivelmente pensando que a

combinação de números podia lhe dizer algo da pessoa que era sua

proprietária, recordou-os enquanto os marcava na máquina que

servia para impedir as chamadas entrantes de certos telefones. Se

não se equivocava, tratava-se de uma característica de La Boca.

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Apesar de saber com claridade que Nick não se comunicaria

com ela, Lavínia aguardou sua chamada na segunda-feira, mas o

telefone jamais soou.

Nick, por sua parte, experimentava uma estranha sensação de

desamparo. Acreditou que o sabor do triunfo por ter conseguido levar

Lavínia para cama seria muito mais doce. Pensou que o faria se sentir

vivo, como cada vez que se vingava de uma mulher com a ignorância

depois de ter sexo, embora tivesse bem claro que não lhes doía,

porque tampouco se interessavam por ele. No máximo as afetava em

suas intenções, porque muitas queriam conquistá-lo para lhe tirar

outras coisas. Por isso ele as conquistava primeiro, tirava-lhes o que

queria, e logo as bloqueava. Neste caso, até se sentia irritado,

nenhuma parte de seu corpo experimentava algum tipo de satisfação.

Quando o telefone soou na terça-feira, Lavínia chegava de uma

agência de turismo que tinha ido perguntar quais eram os

documentos que necessitava para embarcar em um cruzeiro pelas

costas da Argentina, Uruguai e Brasil, como explicava a passagem do

Paradise. Correu para atender, era impossível não ter ilusões, mas

desapareceram nem bem descobriu que se tratava de uma cliente

para lhe perguntar quanto lhe cobrava para colocar um fecho em um

blusão de napa.

Embora o negasse, Lavínia esperou o telefonema de Nick toda a

semana. Trabalhou enlouquecidamente para reunir dinheiro, Tamara

lhe emprestou parte do que estava economizando para seu

casamento como reserva, e embora Lavínia se negasse porque lhe

parecia uma loucura que, com tantas obrigações econômicas que

tinha, iria viajar com pessoas que um salário dela, equivalia a uma

gorjeta para eles, disse-se que tinha direito a sonhar. Alguma vez

acontecia algo de bom em sua vida, por que desperdiçar uma

oportunidade que jamais se repetiria?

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Pensou em ligar para Nick, e logo se negou a fazê-lo em

princípio, acabou cedendo.

Podiam ser amigos. Sim, por que não. Depois de tudo, jamais

lhe tinha prometido nada mais que o que lhe tinha dado. Mas embora

tentasse ligar para seu escritório a todas as horas, nunca ninguém

atendia.

Nick se obrigou a deixar de pensar em Lavínia enchendo-se de

ocupações. Sem querer, seu sócio a trouxe para a memória por tudo

quando antes a tinha relegado.

— Nick! - exclamou Pablo da porta do escritório de seu sócio.

Sem esperar resposta, avançou até o escritório de seu amigo, diante

do que se sentou bastante depravado.

— Arrumei algo por minha conta – anunciou - para que não

diga que sempre dependo de você para as decisões. Lembra-te que

amanhã chegam os empresários de Tóquio?

Nick se encostou na poltrona de couro com ar displicente.

Brincava com um lápis.

— Não poderia esquecer nem que quisesse - brincou.

— Bom, em lugar de trazermos para cá, vamos para o porto.

— Para o porto? - surpreendeu-se Nick, que de repente perdeu

toda posição serena. — Você quer dizer em um restaurante de Porto

Madeiro? - esperançou.

— Lembrei-me de seu conselho, esse de que para os negócios

sempre é melhor ter os empresários em seu interesse devasso, e lhes

ofereci passagens para o Paradise. Precisava ver como ficaram

felizes!

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— Que está dizendo? - Nick se inclinou para frente. — Pablo! -

exclamou ao tempo que deixava cair o lápis sobre a mesa.

— O que?

— Não devo estar nesse navio. Não esta semana.

— Perdão, Nick. Acreditei que você gostava da ideia de fazer

negócios e de uma vez ter umas férias.

— Merda!

Nick levou às mãos a cabeça. Tinha três opções: cancelar as

passagens de Lavínia, cancelar as dos japoneses, ou ir e

encomendar-se a sua boa sorte. Possivelmente Lavínia não

aparecesse depois de tudo. Mas se fosse assim, para que teria levado

as passagens? Como lembrança, pensou. Sim, podia ser.

Não podia cancelar suas passagens, e se aparecesse no

embarque, e rechaçassem-na. Não seria justo para ela nem para sua

própria consciência. Queria que Lavínia levasse algo da fugaz relação

que tinham mantido, que levasse o pagamento, como faziam as

outras. Acaso não era isso o que procuravam? Dinheiro para uma

cirurgia estética, bom sexo, uma viagem. Prazer.

Suspender as passagens dos japoneses tampouco era uma boa

opção. Isso mostraria indecisão e debilidade, e era o que menos

queria aparentar frente a seus investidores.

Seria melhor confiar-se a sua boa sorte. Depois de tudo, o mais

provável era que Lavínia jamais embarcasse nesse navio.

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Capítulo 9

Tamara chegou com Hector quando Lavínia terminava de

colocar sua mala na sala de jantar. Ajudaram-na a repassar a lista

mental de objetos que levaria e logo a acompanharam até o porto.

Tinha que preencher uns formulários e anexá-lo a mala antes

de as entregar ao encarregado, antes de assumir o controle de seu

destino. Disse adeus a sua família e quase lhe escapou uma lágrima.

Estava nervosa, porque nunca tinha viajado.

— Adeus! - saudou-a Hector agitando a mãozinha. Lavínia

respondeu do mesmo modo, mas logo girou sobre os calcanhares

para não olhá-lo enquanto escorria uma lágrima.

Entre uma coisa e outra, passou-se uma hora. Enquanto

embarcava, tremiam-lhe as pernas de medo, e de excitação.

Pressentia que essa seria uma das experiências mais enriquecedoras

de sua vida.

O navio era enorme, nem bem o viu se lembrou do Titanic.

Claro, o Paradise reluzia muito mais moderno, mas o filme do

Leonardo Di Caprio era o mais perto que tinha estado alguma vez de

um navio como esse.

O Paradise era um gigante branco de porte soberbo e desenho

extraordinário. Tinha oito coberturas públicas e capacidade para dois

mil passageiros. Lavínia se sentia minúscula ao lado de seu tamanho

e majestade, tanto que se impressionou.

Uma vez dentro do cruzeiro, uma senhorita a acompanhou até

seu camarote, que resultou ser um quarto com varanda, a segunda

de melhor qualidade em todo o navio. As primeiras eram as suítes

com varanda externa.

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O espaço não era tão amplo, mas ali entravam uma cama de

casal, um sofá, um televisor e banheiro com ducha. Sentou-se sobre

a cama, sorridente.

Não podia acreditar, estava embarcando a lugares que

desconhecia, em meio de um luxo que jamais teria imaginado.

Tudo estava decorado em cor branca: o tapete, os cortinados, o

acolchoado, as toalhas e os lençóis. Parecia tudo tão limpo, tão puro,

que até ela se sentiu uma pequena mancha nesse lugar perfeito.

Ficou de pé e deu uma volta sobre si mesma. Quase podia

sentir-se uma princesa. Logo voltou a sentar-se sobre a cama para

ler um folheto que encontrou na mesa de noite. Ali explicava tudo o

que poderia fazer no navio: havia três restaurantes, cinco bares,

galeria comercial, três piscinas, duas jacuzzis, salão de beleza,

discoteca, cassino, centro esportivo, sala de jogos, capela e cinema.

Deixou escapar uma exclamação de assombro. Essa sim que era toda

uma cidade flutuante.

Encontrou detalhes do centro esportivo: havia ginásio, duas

quadras de esportes de tênis, quadra de basquete, simulador de golfe

e mini golfe, pista de patinação sobre gelo, parede de escalada,

piscinas e plataforma para esportes aquáticos, "entre outros", leu.

Esperava que nesses "outros" entrasse algum céu terra ou um saco

de box.

— OH, Por Deus... - balbuciou. Amava os esportes.

Continuou lendo especificações técnicas que não compreendia,

revisou os mapas e pensou em percorrer as que se chamavam áreas

comuns para ver melhor a cidade flutuante, como começou a chamar

o Paradise desde que leu tudo o que continha.

De repente a excitação deu lugar à tristeza quando recordou

quem era o dono de tudo isso. Com razão era tão lindo, grande,

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chamativo e estava tão bem decorado. Contava em um folheto que

tinha sido remodelado de novo quando tinha passado a formar parte

do Hagen Interprises e transladado do Caribe às costas de Buenos

Aires.

Engoliu com força, esperançada em banir a lembrança daquela

fantasia e em que trariam sua bagagem logo. Pensando nisso, e como

não tinha ideia de se lhe deixavam sua bagagem ali embora ela não

estivesse presente, preferiu ficar e esperar. Não podiam demorar

muito mais em lhe devolver seus escassos pertences.

Enquanto Lavínia aguardava em um camarote de média

importância que o casco do navio zarpasse para Punta de Leste, Nick

recebia na zona vip de abordagem privada os quatro empresários

japoneses que estavam tão interessados em sua brilhante capacidade

construtiva.

Nick e Pablo estreitaram as mãos com os quatro homens e logo,

em um inglês bastante fluído, convidaram-nos a conhecer o Paradise.

— Até agora só fazemos viagens pela costa nordeste da

Argentina, Uruguai e Brasil - explicava Nick aos homens enquanto

mostrava uma de suas áreas favoritas, o cassino - mas assim que

termine a temporada, moverei-o a uma costa veranista. Além disso,

estou pensando seriamente em fazê-lo chegar até o Caribe, inclusive

já estamos estudando essa oferta para este mesmo ano, embora

ainda estejamos esperando uns últimos detalhes burocráticos.

— Acredita que resista? - perguntou um dos japoneses.

— Estou investindo para fazê-lo um navio mais forte.

Enquanto esperava, Lavínia se perguntou se Nick embarcaria

nesse navio, em caso afirmativo, se já o teria feito. Duvidava de que

ele viajasse no casco do navio porque estava segura de que não

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queria encontrar-se com ela e que tinha muito trabalho para fazer. O

Centro Médico, por exemplo.

Deu-se conta de que começavam a navegação pelos ruídos e o

leve movimento que experimentou o navio. Ainda não lhe tinham

levado sua bagagem: que estranho, pensou. Então decidiu deixar um

pôster na porta avisando que tinham sua permissão para lhe deixar a

bagagem dentro do quarto, e saiu para percorrer o navio.

Deu voltas por duas horas. Conheceu os espaços

compartilhados de fora, sem entrar em cassino ou à discoteca,

tampouco aos bares e restaurantes. Espiou, percebeu qual podia ser

mais caro e não se lamentou porque dependeria do menu que se

oferecia para quem não queria fazer uso dos serviços de comidas

especiais. Tinha a possibilidade de estar ali, que não era pouco.

As pessoas eram muito mais distintas do que ela estava

acostumada a ver nas ruas. Eram pessoas de um nível econômico

elevado: notava-se em seus objetos, em seus movimentos. Eram

pessoas com as quais jamais teria imaginado compartilhar sequer

uma conversa. Era impossível não admirar a possibilidade que tinham

de passar tempo em lugares como esse navio quantas vezes

quisessem..., quando quisessem..., sempre... Tudo lhe parecia

maravilhoso, um sonho feito realidade.

Pablo não viajou com Nick e os empresários. Alguém tinha que

custodiar os interesses da Hagen e Associados durante os dias em

que um dos dois estivesse fora.

Uma vez livre dos japoneses, que tinham ficado nas suítes

atribuídas para cada um, Nick pediu ao capitão para ver a lista de

passageiros. Enquanto esperavam que a trouxessem, falaram do

oceano a essa altura do ano e das vicissitudes da maré. Poucos

minutos depois, tinha entre as mãos os nomes das mil e quinhentas

almas que justificavam um investimento tão grande.

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"Dickinson, Lavínia", leu. E embora dissimulasse muito bem seu

desgosto, várias grosserias sulcaram sua mente. Não tinha ideia do

motivo, dado que não era a primeira vez que se cruzaria com uma de

suas amantes, inclusive tinha compartilhado mesas onde havia várias

delas ao mesmo tempo. Não lhe preocupava cruzar-se com Lavínia. O

problema era outro, que ela tinha aceito seu pagamento. Era tudo o

que queria, tal como ele tinha pensado: diversão, um homem

arrumado e riquezas, porque era igual a todas.

Lavínia retornou a seu quarto, onde encontrou um convite que

tinha sido deixado na porta. A recepção de boas-vindas, que se

realizaria no salão de usos múltiplos, começava às oito da noite.

Pareceu-lhe estranho que tivessem deixado um convite e não

sua bagagem, e começou a sentir-se preocupada. Investigou a quem

tinha que dirigir-se para consultar por seus pertences e quando

encontrou à pessoa indicada, quase lhe rogou que lhe desse alguma

informação. A empregada, muito amável, chamou terra firme,

confirmou suas suspeitas e as transmitiu a Lavínia com pesar.

— Sentimos muito, mas sua bagagem não está no navio.

O rosto da Lavínia perdeu a cor.

— Como diz?

— Ao parecer cometeu algum engano no formulário de

abordagem e ficou em terra firme. Tem outra bagagem que tenha

trazido? Também pode fazer uso das lojas da galeria. É tudo o que

posso lhe oferecer.

— "Fazer uso"? - balbuciou Lavínia.

— A que se refere com "fazer uso"?

A moça sorriu; estava acostumada a que os turistas

abordassem esse navio com muito dinheiro nos bolsos. Mas o certo

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era que Lavínia não podia se dar o luxo de gastar em objetos que

consumiriam o pouco que levava para subsistir nas costas onde

atracassem e para pagar bebida, que não estava incluída na

passagem, se não queria terminar bebendo água do mar.

— Que pode comprá-lo nas lojas. Com prazer a

acompanharemos se necessitar um assessor.

Lavínia se negou amavelmente, mas tinha vontade de chorar e

de uma vez de rir na cara. Assessor? Não tinha onde cair morta e ia

às lojas com um assessor! Não podia gastar em roupa e quão único

levava era o que tinha posto: o Jeans, a camisa branca e as sandálias

ao tom.

— Não entendo como pude ter cometido um engano no

formulário - expressou.

— Isso é o que me informaram da terra firme.

— E não existe modo de que me façam chegar isso ao próximo

porto? Pagaria um envio se necessário - insistiu. Sair-lhe-ia muito

mais barato um envio, embora ficasse sem um centavo, que comprar

um só dos objetos que se ofereciam nessas lojas.

— O problema é que ainda não foi descoberto o destino de sua

bagagem - respondeu a mulher. — Assim que tenhamos novidades, a

faremos chegar por nossa conta. Se não aparecer, certamente será

indenizada.

— Quando será isso? - perguntou Lavínia. Tinha recuperado as

esperanças.

— Pode demorar um mês ou dois. O cheque chegará a sua

casa.

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Lavínia assentiu em silêncio, vítima de uma tristeza que lhe

turvou o olhar. Resignação, isso é o que tinha aplicado sempre em

sua vida. Era seu modo de voltar a começar.

— Obrigado - disse antes de partir devagar.

O que ia fazer agora? Não podia sobreviver com o que estava

usando, tinha que arranjar uma maneira ou retornar para casa do

primeiro porto que tocasse o navio. Podia sair sempre tudo tão mal?

Por que as fadas se confabulavam em seu contrário e não lhe

permitiam desfrutar de nada em forma completa?

Caminhou taciturna até seu quarto e se fechou ali, meia hora

depois que tomou a cabeça entre as mãos e se arrependeu de ter

aceitado a passagem, de ter acreditado como uma iludida que Nick

podia encontrar-se a bordo, de sentir que podia entrar em um mundo

onde ela não tinha capacidade. Reconheceu que a razão que mais a

tinha impulsionado a aceitar essa passagem era Nick, e voltou a se

sentir uma ingênua.

Passado esse tempo, sacudiu a cabeça e se recordou que ela

era uma lutadora, sempre brigava até sair adiante e não podia vacilar

agora. Foi nesse momento quando olhou a seu redor e descobriu o

que já tinha notado: as cortinas, os lençóis, as toalhas. Tudo branco.

Iria cometer um delito, mas tampouco podia andar nua. Se ali

havia uma máquina de costurar, então estava salva.

Com novas esperanças, caminhou até o posto de informações e

se dirigiu ao empregado que ali aguardava as consultas dos

passageiros.

— Olha... haverá nesta cidade flutuante uma máquina de

costurar - arriscou.

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— Sim, claro - replicou o menino. — Se necessitar que façamos

alguma reparação...

— Não, não - interrompeu-o - eu sou designer de modas e

costumo elaborar minha própria roupa do dia segundo meu estado de

espirito.

Por sorte, ele não se horrorizou. Estava acostumado a escutar

muitas loucuras das pessoas ricas, se importaria com uma excêntrica

designer de modas?

— Não trago roupa - confessou Lavínia - só tecidos. Mas

extraviaram minha máquina de costurar e não penso comprar nas

lojas onde vendam roupa de alguns competidores, que não a minha.

Para dizer aquilo por último, inclusive se fingiu ofendida. O

moço arqueou as sobrancelhas, Lavínia soube exatamente o que

estava pensando, porque era o mesmo que teria pensado ela perante

uma reclamação tão frívola, e se preparou para receber uma resposta

idêntica a sua exigência.

— Para utilizar a máquina, como se encontra em uma zona

restringida para os passageiros, necessitará uma permissão por

escrito do capitão.

Pensou que ele a enviaria por aonde veio, mas se surpreendeu

com o menino que, muito respeitoso e apesar de não ter podido

ocultar certas expressões, deu-lhe uma possibilidade.

— Perfeito.

— Chamarei para saber se pode recebê-la agora.

Lavínia agradeceu e esperou. Depois da breve conversação que

o empregado levou a cabo em voz muito baixa por um telefone

branco, este voltou a olhá-la e lhe anunciou:

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— O capitão a espera em seu escritório. Em seguida aparecerá

um membro da tripulação que a escoltará até o lugar correto.

Lavínia voltou a agradecer e esperou outra vez. O tripulante

não demorou para chegar, pediu-lhe com amabilidade que o

acompanhasse e a conduziu para um elevador. Todos ali eram

serviçais, respeitosos, cordiais.

Quando o capitão autorizou o ingresso da designer, Lavínia

sentiu medo. Uma coisa era mentir ao empregado de uniforme; outra

muito distinta, ao capitão. Limpou a garganta e deu um passo dentro.

O homem arqueou as sobrancelhas brancas. A mulher que

esperava ver em seu escritório sem dúvida não era nem

remotamente parecida com essa que se aproximava. Pareceu-lhe de

uma beleza sublime, elevada, de uma vez honesta e humilde.

— É você menor de idade? - perguntou com o cenho franzido.

— Traz permissão de seus pais?

Lavínia riu com a brincadeira, um pouco mais relaxada.

— Não sou menor de idade! - respondeu.

— Devo confessar que quando me falaram de uma designer de

modas com um capricho tão excêntrico não pude fazer menos que

imaginar a uma mulher... adulta.

Lavínia não se ofendeu pelo comentário. De ter sido uma

designer com esse capricho seguro se teria ofendido, mas ela não.

Pensou inclusive que podia dizer a verdade ao homem e que este a

ajudaria a recuperar sua bagagem, mas se arrependeu porque não

queria passar vergonha. Não queria que ele pensasse que ela era

uma jovem tão ignorante que não sabia completar um tolo

formulário, e muito menos que se inteirasse de como tinha chegado a

esse navio. Deitei-me com o dono nada mais que uma noite, pensou

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amargamente. Sou outra de suas "amiguinhas" e a número cem mil,

possivelmente. Muito prazer. Esse pensamento a levou a sorrir com

ironia.

— Sente-se, por favor - pediu o homem, que, respeitoso, pôs-

se de pé para recebê-la.

Lavínia obedeceu. Por sorte não teve necessidade de explicar-se

porque ele falou por ela.

— Não tenho problema de que utilize a máquina de costurar da

lavanderia, mas lhe advirto que é um lugar bastante inóspito para os

passageiros e que não posso suspender ao pessoal que trabalha na

área enquanto você esteja usando a máquina, de modo que haverá

ruídos e vapores.

— Não há problema - sorriu Lavínia com sincero agradecimento.

— Nesse caso, lavrarei lhe a permissão agora mesmo e

solicitarei a um de meus tripulantes que lhe indique o caminho.

Preciso saber seu nome e sobrenome.

— Lavínia - respondeu ela em seguida - Lavínia Dickinson,

capitão.

— Oh, que nome tão exclusivo! - expressou o homem. — Devo

lhe confessar que foi o que mais me chamou a atenção da lista de

passageiros.

Lavínia sorriu com amabilidade.

Uma vez que obteve a permissão e se despediu do capitão para

ser escoltada à lavanderia pelo tripulante, pediu-lhe para passarem

primeiro por seu camarote para procurar os tecidos. Tinha uma hora

para fazer de um cortinado, um vestido de festa.

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No quarto acariciou cada um dos materiais, todos de alta

qualidade. Pensou que, se alguém descobria seu delito, iriam fazer-

lhe pagar os objetos faltantes do quarto, entretanto acreditava que

poderia repor as cortinas e a roupa de cama com outras que

conseguisse na lavanderia. Depois de tudo, a Nick custava muito

pouco comprar um par de tecidos novos, enquanto que a ela fazê-lo

podia lhe requerer quinze dias sem comida.

Considerou que também lhe viria bem levar as cintas rosadas

que retinham as cortinas e se fez com elas antes de encaminhar-se à

cama em busca de sua bolsa de mão, o único que tinha ficado de sua

bagagem. De acordo com a seleção realizada, seguiu ao tripulante

pelos corredores internos do navio até a lavanderia.

— Senhoras - falou o moço a quão empregadas ali trabalhavam.

— Esta é Lavínia Dickinson, designer de moda, e utilizará a máquina

de costurar com autorização escrita do capitão.

Todas a saudaram com um ligeiro assentimento e lhe cederam a

cadeira que estava frente à máquina de costurar industrial, que até o

momento tinha estado lotada de objetos.

O calor era cansativo. As seis mulheres que ali trabalhavam

estavam acostumadas a ele, mas Lavínia, embora alguma vez

também tivesse feito trabalhos de esforço, não. Enquanto marcava o

contorno do objeto com o lápis delineador, secou o suor da testa duas

vezes. Os sons eram estrondosos antes de melodias, mas quando se

concentrava na tarefa de cortar e costurar ignorava-os com

facilidade.

Depois de uma hora e meia, por que conhecia de cor suas

medidas e que na lavanderia havia todo tipo de materiais para

reparar os objetos dos passageiros, tinha transformado uma insossa

cortina branca em um singelo, mas formoso vestido com detalhes

rosados na cintura e no bordo das mangas.

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Até que tomou banho, penteou e maquiou, passou outra meia

hora. Por sorte na bolsa de mão levava todos os elementos de higiene

pessoal que pudesse necessitar. Uma vez preparada, calçou as

sandálias brancas, a única que tinha, e se olhou ao espelho, de

acordo com o que tinha criado.

Antes de ir, colocou na porta o pôster de "Não incomodar".

Esperava que com isso não fizessem a limpeza no camarote e ela

pudesse conservar em segredo que o esvaziaria pouco a pouco. O

último dia de navegação reporia tudo, já que tinha acesso à

lavanderia.

Nick estudava o ambiente da porta do salão com os olhos

semicerrados. Dispunha-se a levar uma taça de champanhe aos

lábios quando uma voz interrompeu seu gesto atrás de suas costas.

— Olá, Nick.

Aquela voz.

Nick voltou-se. Nem bem a viu, seus olhos resplandeceram com

um estranho temor que se esforçou por apagar antes que ela se

desse conta dos sentimentos que lhe produzia.

Sempre de vermelho. O cabelo, os lábios, o vestido, os sapatos.

Se algo trocaria nesta mulher era essa maldita cor.

— O que fazes aqui, Patricia? - alcançou a resmungar. Ela

sorriu, frívola.

— Inteirei-me de que faz tempo compraste este navio e quis

conhecê-lo - explicou com desdém. — Foi muito descortês de sua

parte não me convidar à viagem inaugural.

— Você não têm nada que fazer aqui.

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— Eu não vim por você, Nickito - replicou ela com voz

melodiosa. — Vim por seu navio, mas ao parecer o destino nos jogou

uma boa passada e nos voltou a reunir.

Nick entrecerrou os olhos de gelo, que se tinham convertido em

fogo.

— Para você, não a mim - respondeu cruel, quase despótico.

Ela ignorou esse fato, como se não tivesse sido destinado a ela.

Até afogou uma risada.

— Não me leva a festa? - interrogou divertida.

— Peça ao Horácio Lowenstein para que o faça? - replicou ele

com dissimulação.

Ela soltou a mesma risada estrondosa com a que acostumava

atrair a atenção de seus amigos, logo lhe enterrou seu olhar luxurioso

e respondeu: — Tenho a você.

Quando Lavínia chegou ao salão, o lanche já estava sendo

servido. Se Nick tinha embarcado, tinha que estar aí, entre essa

multidão que se amontoava para receber o canapé de boas-vindas,

mas não conseguia achá-lo por nenhuma parte. Ficava em pontas dos

pés para ver por sobre as cabeças mais altas, percorreu o lugar sem

comer nada - e vá tinha fome! - até que o coração lhe deteve.

Ali estava ele, em uma roda de homens, levando no braço uma

dama de cabelo vermelho. Alguém bastante maior que ela, soberba e

altiva, com o porte de uma imperatriz. Uma mulher muito distinta,

por certo, daquelas com as que Nick saía nas revistas. Tinha o

aspecto de ser uma qualquer, sim, mas ali mandava ela.

Embora a distância lhe impedisse de ver a mulher com

claridade, só por seu porte Lavínia soube que não formava parte da

coleção de bonecas que Nick levava para a cama e logo desprezava,

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como tinha feito com ela. Tampouco se tratava de sua esposa porque

era solteiro, diziam todas as revistas.

Preferiu concentrar-se nele, tão arrumado e elegante em seu

smoking negro. Então ficou ali parada, em meio de um nada,

enquanto todos já ocupavam seus lugares nas mesas.

Nick estava rodeado de japoneses que conversavam corajosos

com a mulher de cabelo vermelho e com ele. Pareciam antes

mafiosos que empresários, por isso Lavínia se perguntou no que

andaria metido Nick, e inclusive chegou a temer por sua vida.

Por que temia, se ele nem sequer se lembrava dela? Lavínia

sabia que, para Nick, ela tinha sido apenas uma boneca mais para

acrescentar à coleção.

A dor lhe atou o peito e a obrigou a sair do salão. Outra vez se

arrependia de ter embarcado nesse navio, de ter acreditado que Nick

podia recordá-la. Acreditando que se achava a salvo de seu desgosto

no corredor, apoiou as costas contra a parede e respirou.

— Sente-se bem? - perguntou-lhe um moço que se aproximava

da porta.

— Sim - respondeu com segurança. A questão era que ficando

quieta serviria para ordenar seus pensamentos.

Tinha mudado de ideia: queria ver Nick com sua amante, sua

namorada, ou o que ela fosse. Queria vê-lo e assumir de uma vez por

todas que ela jamais seria dele. Então voltou a entrar na sala.

Viu-os sentados à mesa em companhia do capitão e dos

japoneses. A mulher permanecia junto a Nick, mas ele não tinha

contato físico algum com ela. A Lavínia pareceu estranho, dado que

tinha chegado a conhecê-lo embora fora pouco e sabia que gostava

de se gabar de quem o estava acompanhando. Salvo que em

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realidade não o estivesse... Tudo nele era um mistério que Lavínia

não acreditava poder resolver.

Durante a estadia das pessoas nas mesas, um apresentador

nomeou ao capitão e também a Nick. Referiram-se a ele como "o

dono deste paraíso", e quando ficou de pé para que os passageiros o

aplaudisse e soubessem que se referiam a ele, a do cabelo vermelho

se parou a seu lado. Nick lhe sussurrou algo. Ela não se alterou.

— Sente-se - ordenou Nick entre dentes, com a voz tão baixa

que só Patrícia pôde escutá-lo.

— Deveria me agradecer em público - replicou ela sem lhe fazer

caso, com um sorriso radiante. — Tudo o que têm, têm graças a mim.

Nick se sentou antes dela, porque não queria compartilhar a

glória com ninguém. A glória era dela, como nada o tinha sido na

vida.

Pouco depois se fez um brinde. Logo as pessoas ficaram de pé e

voltaram a dispersar-se pelo salão. Lavínia pensou em retornar a seu

camarote com o orgulho manchado, mas depois se disse que, se

queria voltar a sentir-se digna, tinha que enfrentar Nick e lhe

demonstrar que não lhe tinha importado seu abandono. Sim, esse era

o melhor modo de não ficar como uma parva, pensou. Iria mostrar-

lhe que ela não era como as demais putas que ele levava a um hotel.

Lavínia avançou para seu objetivo com passo decidido, mas

uma vez que se encontrou o suficientemente perto para lhe falar com

suas costas, emudeceu. A estridente risada da mulher que o

acompanhava penetrou nos ouvidos de Lavínia como seu forte

perfume importado o fez em seu nariz. Tudo nessa mulher, as cores

que a cobriam até sua voz, estavam desenhados para atrair a

atenção de todos.

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Patrícia destilava poder e luxúria, altivez e descaramento.

Ninguém a passava por cima, ninguém, e sua força de caráter

dobrava o aço como débil junco de campo.

Lavínia virou-se e refez o caminho que a tinha levado até Nick

para perder-se entre a multidão e logo no corredor que conduzia ao

elevador e a seu camarote. Enquanto caminhava, pensava que

sempre lhe acontecia o mesmo. Lutava por algo, chegava a isso, e a

ponto de consegui-lo, resignava-se. Sentiu-se triste e tola, como se

se tivesse deixado enganar pela segunda vez na vida, e assim era:

tinha sido vítima de sua ingenuidade ao acreditar que poderia

enfrentar Nick.

Para deixar de pensar nele, ficou sem roupa no interior e

repassou o que faria no dia seguinte, quando atracassem a Punta de

Leste, uma cidade de praia, como todas as que visitariam. Não podia

ir ao mar sem traje de banho e tampouco podia comprar um em um

destino tão caro. Nem pensar no navio.

Umedeceu os lábios e para não sentir-se decepcionada, pensou

na roupa que sim poderia confeccionar com o outro pano das cortinas

e com os lençóis. Decidiu que fabricaria um calção curto e uma

minúscula saia das savanas.

Passou a metade da noite costurando na lavanderia. A mulher

que cobria o turno da noite se sentou a seu lado e a ajudou com os

retoques.

— Você é muito famosa? - perguntou-lhe ingenuamente.

Lavínia se sentiu tão mal que franziu o cenho e não pôde mentir.

— A você vou dizer a verdade - murmurou cabisbaixa, com os

dedos detidos sobre o tecido do lençol. — Sou costureira, em

realidade. Minha loja faliu - disse com um suspiro - e já não tenho

nada. Meu sonho é ser designer de modas, mas ao parecer terei que

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me resignar a pregar zíper de calças quebradas - encolheu os

ombros. — Não me importo. Dá-me de comer e pago meus impostos.

Digamos que ganhei a passagem neste navio e decidi me dar um

gosto uma vez na vida, mas claro, não podia sair tudo tão bem, e

minha bagagem se perdeu. Estou literalmente nua.

A mulher ficou boquiaberta.

— Por Deus! - exclamou. Por sorte para Lavínia, não perguntou

de onde tirava os tecidos para confeccionar os objetos, possivelmente

pensava que os tinha dado o capitão junto com a permissão.

— E como pensa ir à praia?

— Não vou à praia - negou Lavínia com a cabeça.

— Têm que ir, o que fará se não for? Todos os lugares que se

para este navio têm praia.

— Posso conhecer a cidade, passear pela areia e molhar os pés

na água.

— Façamos uma coisa - propôs a senhora antes de ficar de pé e

mergulhar em um cesto. — Escolha um destes – indicou. — São

trajes de banho que esquecem ou abandonam as turistas.

— Oh, não, por favor, não - replicou Lavínia. — Não quero te

colocar em problemas.

— De maneira nenhuma - respondeu ela. — Ninguém os

reclamou em meses. Vamos, escolha um.

— Não sei como te agradecer.

— Não têm que fazê-lo. Assim, escolha. Este será nosso

segredo.

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Embora Lavínia temesse que a empregada se desse conta de

que ela estava destroçando seu quarto pouco a pouco, sua bondade a

privou de arrepender-se de lhe haver dito a verdade. Ninguém

merecia uma mentira ali, eram todos tão bons que quase não

pareciam empregados de alguém tão detestável como Nicolas Hagen.

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Capítulo 10

Dormiu apenas quatro horas, coberta só pelo acolchoado que

ainda não tinha utilizado para confeccionar nada.

Pela manhã atracaram na cidade de Punta de Leste, que a

surpreendeu por sua beleza arquitetônica. Os altos edifícios tinham

quase todos varandas que imitavam as ondas do mar, da cor turquesa

das águas que formavam o oceano.

Lavínia não conhecia o mar. Vê-lo em toda sua imensidão e

escutar o som das ondas romper contra a areia lhe acelerou o pulso,

levou-a a abrir os braços e fechar os olhos como tinha visto em um

filme, e a rir como se fosse uma menina em um filme da Disney.

Era maravilhoso. O mar, sua eternidade, o que lhe sussurrava

ao ouvido.

Quando abriu os olhos depois de um momento que de tão

singelo era sublime, encontrou-se com o inferno. A mulher que

andava com Nick passeava pela praia com um biquíni vermelho como

o fogo enquanto conversava com uma amiga.

Agora que podia observá-la melhor, Lavínia notou que sua pele

ostentava um torrado que prometia ser durado, possivelmente

adquirido nas praias caribenhas todo o ano. Era uma mulher bela,

muito mais generosa que ela em peitos e nádegas, de corpo

escultural e temperamento de carvalho.

Estava segura de que, ao menos, tinha a idade de Nick, e de

que não era sua amiguinha de volta. Não tinha pinta de ser. Era

poderosa e soberba, tinha o aspecto dessas mulheres que sempre

procuram sentir prazer elas mesmas antes que os outros, nada do

que Nick podia procurar em uma amante ocasional. Ou era sua

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amiga, ou era sua namorada. Essa ideia lhe espremeu o estômago e

lhe fez pensar que jamais poderia competir com ela.

Nunca.

À manhã seguinte, atracaram em Porto Belo, Brasil, um lugar

paradisíaco de Santa Catarina onde Lavínia pôde ver que a mulher de

vermelho tinha trocado o modelo do traje de banho, mas não de cor.

Ela, com seu modesto biquíni dourado emprestado, banhou-se

no mar e desfrutou do dia entre sessões de água salgada e

caminhadas pela ilha.

Antes de partir procurou um telefone e ligou para Hector. Tudo

estava bem, o qual a deixou tranquila para bordar e desenhar um

novo objeto.

Desta vez pegou o pano do cortinado que ficava a esquerda e

dois acessórios que conservavam as toalhas de banho enroladas.

Eram pingentes dourados que imitavam um desenho romano.

O produto que obteve depois de passar várias horas frente à

máquina de costurar foi um vestido magnífico comprido até o joelho,

branco imaculado. Ajustava-se ao corpo, as fitas que se atavam ao

pescoço estavam decoradas com as argolas douradas das toalhas.

Havia confeccionado um vestido com ar romano.

Perguntou-se aonde ir. Já conhecia boa parte do navio, por isso

disse que passaria um momento em um lugar divertido e adequado

para sua roupa. Então foi para a discoteca.

Entrou por uma porta de vidros opacos que abria um tripulante

do navio. Lavínia lhe deu boa noite e entrou umedecendo-os lábios.

— Que lindo! - Pensou.

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Avançou até a pista de baile e ficou estancada ali, de onde

podia admirar o lugar completo, porque ainda quase não havia gente.

Tudo estava decorado em cor azul e turquesa. Umas linhas

irregulares de luz cruzavam o teto, resultava evidente que evocavam

o mar. Os assentos celestes iluminados, sofás em cantos escondidos,

barras de vidro também com forma de ondas. O piso tinha linhas de

cor que brilhavam com distinta intensidade. Estava escuro, mas o

jogo de luzes permitia ver quando os olhos se acostumavam ao

ambiente, e a Lavínia pareceu uma das discotecas mais bonita que já

tinha visitado. Sem dúvida Nick tinha investido muito de seu tempo

em fazer esse lugar.

Não esperava encontrá-lo aí. Não pensava encontrá-lo em

nenhuma parte depois da recepção no salão, em realidade, porque

não havia tornado a vê-lo após. Entretanto, ali estava ele, sentado

em uma poltrona beijando uma loira platinada. Perguntou-se se acaso

podia ser tão descarado para enganar a sua namorada em seu nariz,

e concluiu em que não, de modo que a mulher de vermelho devia ser

sua amiga.

Lavínia ficou de pé em meio à pista de dança semi vazia,

retorcendo as mãos diante do quadril como uma menina curiosa. Ele

tinha posto o casaco preto de um terno desabotoado, por isso se via

sua camisa branca, também desprendida na parte superior. Estava

tão atraente e a música eletrônica combinava com ele na perfeição.

A cálida voz de Susana, que entoava a canção Shivers para o

Amin Van Buuren, calou e cedeu espaço ao tinido que pressagiava um

estalo, um momento detido no tempo.

A amante ocasional do Nick lhe beijava o pescoço, sentada na

mesa de centro, em meio de suas pernas masculinas abertas. Ele

manteve os olhos fechados até que de repente os abriu como se

despertasse de um sonho, como se tivesse sido chamado a fazê-lo.

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A música estalou. O coração de Lavínia estalou. A alma de Nick

sofreu a sacudida.

Lavínia não deixava de olhá-lo envolta nesse tecido branco que

a luz negra fazia resplandecer entre as pessoas, igual a uma

escultura de uma deusa romana. Arrancou-lhe o fôlego. Deixou-o

vulnerável e o descoberto.

Não esperava vê-la nesse lugar, não a tinha encontrado até

agora e tinha chegado a esquecer de que poderia cruzar-se com ela.

Involuntariamente se envergonhou. Pareceu-lhe odioso que Lavínia

visse o que ele fingia. Não o merecia.

Um golpe sacudiu Lavínia e a obrigou a distrair sua atenção

para quem a tinha levado por diante.

— Sinto muito - desculpou-se o moço com sotaque estrangeiro.

Saltava ao ritmo da música. Lavínia sorriu em gesto de assentimento.

Quando voltou a olhar, Nick tinha retornado ao que estava

fazendo. Não tinha sentido continuar hipnotizada por sua presença

naquele lugar tão grande e cheio de cantos. Podia afastar-se de onde

ele estivesse ao alcance de sua vista e tratar de desfrutar da noite

ignorando sua presença. Por isso se dirigiu a uma das mesas e se

sentou em uma cadeira alta da qual não assistisse ao triste

espetáculo que ele dava beijando e acariciando uma passageira.

Estabeleceu-se no assento no que passou uns minutos até que

o barman se aproximou. Entregou lhe uma taça cheia de um líquido

azul que combinava com o cenário à perfeição.

— Eu não pedi nada - apressou-se a repor Lavínia, temendo

que o colocasse a uma conta que lhe resultaria impossível pagar.

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— O senhor Hagen mandou - esclareceu o barman indicando

com o dedo indicador para o lugar onde Nick ainda permanecia

sentado.

Lavínia acreditou que não veria Nick ali, mas ao que parece

tudo estava tão bem planejado que ainda neste canto tinha acesso ao

lugar onde ele se encontrava sentado, porque de qualquer parte se

podia ver tudo. Não soube o que fazer. Movida por sua amabilidade

de sempre, olhou-o e lhe agradeceu com um leve movimento de

cabeça e um sorriso tímido. Ele respondeu da mesma maneira, com

um braço sobre o ombro da loira, que o olhava encantada.

Apesar de ter dado o obrigado como uma cortesã pensou em

não levar a bebida aos lábios. Podia rechaçar o convite desse modo

sutil, ainda estava em tempo de resgatar sua dignidade manchada,

mas não foi capaz de fazê-lo, assim bebeu um gole.

Surpreendeu-se ao descobrir que se tratava da bebida que ela

tinha gostado, quando tinha ido com Nick ao bar de Porto Madeiro.

Isso lhe fez tremer as mãos. Ele podia recordá-lo? Lembrava-se dos

gostos de todas as suas amantes?

— Sozinha?

Lavínia girou a cabeça e pestanejou várias vezes antes de dar

crédito ao que via. Um homem pouco maior que Nick a olhava com

olhos amáveis e humor simpático.

— Sozinha - replicou com sinceridade.

— E não gostaria uma mulher só dançar com outro solitário?

Lavínia riu com o convite e até se sentiu adulada pelo homem,

mas não estava com ânimo para dançar.

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— Em realidade estou esperando que me tire para dançar outra

pessoa - confessou amargamente. Nick a tivesse tirado para dançar,

mas isso jamais aconteceria.

O sujeito não se alterou. Ficou sentado a seu lado, conversaram

um bom momento e Lavínia chegou a esquecer-se que Nick

compartilhava o mesmo ambiente. Recordou-o quando outros dois

cavalheiros vieram por seu amigo e o homem teve que retirar-se.

Queriam ir ao cassino. Convidaram Lavínia, mas ela preferiu deixar

esse percorrido para outra ocasião.

Então se voltou por volta da pista de dança agora recarregada

de bailarinos e ali, do outro lado, voltou a ver Nick, já não com a

loira, a não ser rodeado dos japoneses. Parecia muito sério, ninguém

apostaria que até fazia um momento se esteve manuseando com

uma estranha que tinha desaparecido como se nunca tivesse existido.

Lavínia suspirou. Para falar a verdade, desejava dançar e se

arrependia de não ter aceitado o convite do homem que se foi para o

cassino. Mas desejava dançar com Nick.

— Por que esperar? - balbuciou.

Tinha escutado a Tamara dizer várias vezes, quando não tinha

namorado, que não lhe importava tirar para dançar um homem e que

sempre era divertido notar a expressão de surpresa que despertava

ver essa atitude em uma mulher. Claro que, desde que ela era

adolescente até agora, as mulheres tinham mudado muito, e agora

tirar para dançar a um homem era algo muito comum. Inclusive Nick

estaria acostumado a isso, mas talvez não esperasse que fosse ela

quem se atrevesse a fazê-lo.

Possivelmente foi o álcool que tinha bebido, que embora fosse

pouco sempre a animava a fazer coisas que em todas suas faculdades

não se atreveria, ou o impulso de seus próprios sentimentos, mas de

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repente se achou de pé, caminhando com passo lento para as

poltronas onde Nick e seus conhecidos conversavam.

Nick não se precaveu da presença de Lavínia até que estava

frente a ele, com seu luminoso vestido branco deslumbrando a todos.

Girou a cabeça para olhá-la e em seus olhos brilharam por um

instante em confusão. Possivelmente temia que lhe fizesse uma cena

frente aos japoneses, mas a Lavínia nem lhe tinha cruzado pela

cabeça algo como isso. Não tinha nada que reclamar, porque Nick não

lhe tinha prometido nada. Entretanto, algo a levava a ele, uma

atração que apesar de inconveniente, não podia evitar. Quão mesma

o tinha levado a ela.

— Dançaria comigo? - perguntou lhe estendendo a mão.

Conservava um sorriso tímido nos lábios. Ela jamais tinha tirado

alguém para dançar.

— Olá - alcançou o olhar dele. Lavínia ampliou a curva em seus

lábios.

— Olá - replicou.

— Eu... não danço.

Lavínia ficou séria e vermelha de repente. Sentia-se tão tola,

tão humilhada de novo, que lhe tremeram as pernas. Deixou cair à

mão devagar. Ele a expulsava. Outra vez. Quando se cansaria ela de

expor-se a seus encantos?

— Compreendo – disse. — Desculpe por incomodar.

Voltou por onde tinha vindo tão rápido que temeu por um

momento coroar aquela cena com um tropeção. Por sorte isso não

ocorreu. Deu um passo adiante para afastar-se o mais rápido possível

quando a voz de Nick a deteve.

— Lavínia! - gritou ele.

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Recordava seu nome. Lembrava-se dela! Lavínia se voltou

imediatamente. Nick se tinha posto de pé e se aproximava para poder

lhe falar sem que outros ouvissem.

— De verdade estaria encantado de dançar com você –

confessou - mas eu não sei dançar.

Lavínia não tinha ideia se ele mentia - como tinha pensado em

um primeiro momento - se havia se sentido culpado por havê-la

afastado de modo tão brusco, ou se na verdade desejava dançar com

ela.

Nick tampouco tinha ideia do que estava fazendo. Se o tiravam

para dançar, dizia que não e as mulheres se voltavam às vezes lhe

fazendo uma careta graciosa de aborrecimento ou como se nada

tivesse ocorrido. Lavínia era distinta. A Lavínia seu afastamento

sincero tinha doído.

Mas ele não se aproximava por culpa. Nem sequer sabia por

que o fazia, mas não estava mentindo.

— Está bem - replicou ela, cautelosa. — Não têm que me dar

explicações.

— Ensina-me.

Lavínia ficou congelada. Não entendia nada.

— Não quero sua piedade, Nick – balbuciou. — Prefiro um

afastamento sincero que uma mentira piedosa. Sério.

— Ensina-me - repetiu ele, muito sereno.

Lavínia percebeu que Nick não mentia. Gostava da música, mas

não se atrevia a mover-se ao ritmo dela. Inclusive, como prova

irrefutável de que era sincero, foi ele quem desta vez lhe estendeu a

mão. Lavínia a olhou umedecendo os lábios.

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— Está bem - concedeu antes de tomá-la.

O contato voltou a ser entristecedor; silencioso, mas intenso.

As mãos unidas não passavam despercebidas para nenhum dos dois.

— Você diz - indicou Nick, sempre de bom humor. Lavínia

sorriu. Contagiava-lhe seu excelente estado de ânimo.

— Você gosta desta música, certo? - perguntou.

— Muito - respondeu ele.

— Nota-se. Isso é bom. A base da dança é que o dançarino

goste da música, porque isso faz que a sinta. Se desfrutarem, os

passos saem sozinhos.

— Soa muito fácil, fazê-lo é o difícil - brincou Nick. — O certo é

que me dá bastante vergonha dançar.

Lavínia franziu o cenho. Vergonha? Nick não sentia vergonha de

nada.

— Vergonha, você? - lhe escapou.

— Às vezes penso que é um pouco tolo.

— Dançar? - ela assentiu. — Oh, mas que lindo é ser tolo! -

exclamou ela. — Olhe quão tola sou!

E a seguir deu alguns saltos ao ritmo do Sweet dreams, A

Bouche. Depois elevou os braços e deu uma volta deixando escapar

um grito que, entre o som estridente da música e as pessoas que ali

se encontravam, passou despercebido. Nick soltou uma risada tão

sincera que lhe iluminou a cara.

— Vejo-me tola? - interrogou-o Lavínia.

— Você é maravilhosa - replicou ele. Admirava-a.

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— Olhe, têm que fazer assim.

Para lhe mostrar o passo, que de todos os modos não era muito

complicado, Lavínia colocou a mão nos ombros de Nick, e ele em sua

cintura. Por um momento esqueceu as sensações que lhe transmitia e

ficou tão perto de seu corpo que estas voltaram a atordoá-la. O

aroma da pele masculina a envolveu até lhe fazer perder a razão. Por

isso tremeu entre seus braços e o olhou com os olhos cintilantes.

Sentia saudades, queria-o. E o demonstrou com o olhar.

Nick pensou que tinha que romper essa dança com urgência.

Então a soltou e começou a dançar. Pretendia fazer que ela se

esquecesse do contato que tinham mantido, e de fato o conseguiu. O

motivo foi que, quando queria, dançava muito bem, quase parecia ter

dançado música eletrônica toda a vida e estar reprimindo a oitenta

por cento de todos os movimentos que podia chegar a fazer.

Lavínia cruzou os braços e deixou escapar um risinho.

— Dançava esta música quando era adolescente, não? -

arriscou, intuitiva. Nick se sentiu descoberto, por isso se deteve.

— Aprendo rápido - desculpou-se.

— Muito rápido? - ela franzia o cenho.

— Assim é quando a gente tem bons professores - brincou.

Lavínia riu.

— Acreditei que a eminência fosse você! – respondeu. — Só

que você tem assistido às aulas com mais frequência.

Nick soltou outra risada.

— Ah, bom! Quem te mantém tão bem informada?

— Não lhe posso dizer isso.

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— Mmm... está bem - Lavínia considerou que não havia nada

de mau em lhe contar que se encontrou com um de seus alunos. —

Acredito que se chamava Thomas. Thomas, sim.

Nick parecia de bom humor, atraente e juvenil, sempre

acelerado; tinha uma personalidade avassaladora. Entrecerrara os

olhos, pensativo. Foi um gesto que deixou a Lavínia sem prudência e

sem pudor.

Doeu-lhe o coração de tanto amor que albergava dentro.

Sentimentos que devia guardar porque Nick não queria que os desse.

E até sabendo tudo isso não pode resistir a seus impulsos.

Deu um passo adiante, ficou em pontas de pé e o beijou.

Quando os lábios da mulher se assentaram sobre os seus, todo

o corpo de Nick se converteu em rocha. Se não o fazia, acabaria

destroçado, sabia, e jamais o permitiria. Necessitava que o beijo

acabasse, mas não queria.

Também lhe doeu o coração pensando que era um egoísta por

sentir-se confortável com o beijo. O que podia dar a uma mulher

como Lavínia, se não era dor e amargura?

Por sorte ou por desgraça, Lavínia pareceu dar-se conta do que

fazia muito em breve porque se separou e se esforçou por apartar-se.

Egoísta como era, Nick a impediu segurando a pela cintura.

— Perdão - resmungou ela, vermelha de vergonha.

— Não há problema - respondeu ele, que pretendia tomar o

beijo roubado com a naturalidade que sempre fingia.

A reação de Lavínia tinha sido juvenil e impulsiva, a de uma

mulher apaixonada. E isso destroçou seus planos.

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Não queria que Lavínia se sentisse mal pelo que acabava de

fazer. De fato queria que se esquecesse dele porque era o mais

conveniente, entretanto não conseguia recusar de uma vez. Se ela se

aproximava, aí estava ele dando resposta. A coisa foi ficando fora de

controle uma vez que colocou as mãos no corpo de Lavínia, que deu

um prudente passo atrás para afastar-se.

Enquanto isso, Patrícia entrou no salão e procurou Nick nas

poltronas.

Ao ver dois dos japoneses, se aproximou.

— Senhores. E Nick? - perguntou.

— Dançando - respondeu um. Patrícia riu com superioridade.

Ela conhecia tudo de Nick. Tudo.

— Isso não pode ser - discutiu, convencidíssima. — Nick não

dança.

— Não é aquele o senhor Hagen? - disse o outro japonês,

assinalando a pista.

Patrícia deu a volta como em câmara lenta. A imagem lhe

cravou na boca do estômago como uma flecha. Quem era essa

menina a que Nick olhava aos olhos com tanta insistência? O que

pretendia obter?

Nick não tirava os olhos de Lavínia, e Lavínia se dava conta de

que ele a estudava, de que as palavras se amontoavam em seu

cérebro, mas não se atrevia a dizer nada.

— Fale – pediu. — O que aconteceu?

— Não fui honesto com você - acabou por dizer Nick. — E estou

arrependido. Você... não o merecia.

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Lavínia sentiu que o ar a abandonava. Uma eletricidade

percorreu sua coluna e as perguntas se pulverizaram por sua mente

como um furacão. Nick era tão complexo, tão estranho. Em um

momento ria como o homem mais feliz do mundo e ao outro a olhava

com esses olhos quentes de menino. Um instante a abandonava

sozinha em um quarto de hotel e ao outro lhe pedia desculpas.

— Não falemos disso - decidiu propor e sorriu em busca de

aliviar a carga do homem. Fazia-se evidente que levava uma.

— Comecemos de novo. Sou Lavínia Dickinson - disse com um

tom de voz sutil.

— Você é...?

— Nick.

Só isso, um pseudônimo muito curto que quase parecia de

outra língua. Nem um nome nem um sobrenome, apenas um apelido,

como se assim ele representasse ou desejasse ser outra pessoa.

Nick parecia hipnotizado por Lavínia ou pelo que ela fazia nele.

Até que um brilho vermelho o arrancou do devaneio e o fez girar a

cabeça.

— Oh, olá, Nick! - exclamou Lavínia, alheia aos pensamentos do

homem. — O que posso fazer por você?

Nick voltou a olhá-la com intensidade entristecedora, tão veloz

como o som.

— Tenho que ir - disse de repente. Seus olhos se tornaram

frios, sua voz superficial. — Divirta-se.

Depois de dizer isso, abandonou-a como a tinha feito no bar e

no hotel. Como se jamais a houvesse conhecido, como se desejasse

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que ela não existisse. Lavínia o viu voltar com seus conhecidos e

acreditando que compreendia melhor a situação, afastou-se.

— Terminou a pequena cena romântica com essa garotinha? -

perguntou Patrícia com ironia quando Nick se aproximou dos

japoneses, que se achavam de pé na mesma roda de conversa que

ela.

Ele a tirou do braço sem condescendência. O apertou até quase

lhe deixar uma marca e lhe falou ao ouvido.

— E você terminou com o Horácio Lowenstein?

Patrícia deixou escapar uma de suas risadas histéricas e se

soltou do apertão de Nick, consciente de que podia lhe fazer dano, se

soltou.

— Foi encantador que te deitasse com sua filha por despeito.

Nunca ninguém tinha feito algo assim por mim.

Nick apertou os dentes antes de resmungar: — Ninguém o fez,

e muito menos eu.

E se encaminhou à porta.

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Capítulo 11

Havia passado sete dias desde que embarcaram na viagem.

Nick jogava tênis em casais. Como fazia há muitos anos tinha

formado equipe com Patrícia e enfrentavam a uma amiga dela e seu

amante. Com um forte golpe na bola, Nick conseguiu que o

adversário não pudesse segui-la e com isso ganharam a partida.

Patrícia se aproximou tamborilando a raquete com os dedos.

— Tão implacáveis como sempre - disse em referência a Nick e

a ela mesma, e sorriu a sua amiga em gesto de triunfo. A exuberante

morena esfregava o cotovelo que havia golpeado por tentar salvar a

bola que não tinha conseguido alcançar seu namorado.

Nick apertou a mão do homem e se encaminhou ao interior do

ginásio enquanto passava a toalha que tinha pendurada ao pescoço

pela testa. Pensava dirigir-se à barra em busca de uma garrafa de

água fresca, mas se deteve no meio do trajeto quando a imagem de

Lavínia o deixou paralisado.

Ela vestia um traje esportivo cinza e sapatilhas brancas. Levava

o cabelo loiro sujeito em um rabo-de-cavalo alto e sua pele tinha

adquirido uma cor dourada pelo sol do Brasil. Nick se surpreendeu de

que tivesse as mãos enfaixadas e de que golpeasse com

profissionalismo um saco de boxe. Esqueceu-se por completo da água

que desejava beber, cruzou os braços e admirou a agilidade e

destreza dos movimentos femininos sem que Lavínia se desse conta

de que estava sendo observada.

— Você vem? - interrompeu-o Patrícia tomando-o pelo braço.

Sem emitir palavras, Nick a seguiu fora do recinto.

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Lavínia não havia tornado a ver Nick desde a noite na discoteca.

Nesse tempo notou que ele não ia à praia, embora sim o fizesse a

mulher de vermelho. A chegada ao destino principal, Salvador,

impulsionou-a a comprar um par de sapatilhas e um conjunto

esportivo cinza porque os preços resultavam mais acessíveis. Além

disso, comprou lembranças para o Hector e Tamara.

Tinha passado a manhã percorrendo a cidade e seu histórico

colonial. Depois do almoço, decidiu fazer um pouco de exercício antes

de ir à praia, onde tinha descoberto que lhe fascinava estar.

Lamentava não ter uma câmera fotográfica para mostrar a seu irmão

e a sua melhor amiga o verdadeiro paraíso que a rodeava.

Depois de brigar com o saco de boxe, tomou uma ducha e foi à

praia. Voltou a tomar um banho ao retornar e acrescentou detalhes

ao primeiro vestido que tinha confeccionado para que parecesse um

traje distinto.

Na lavanderia, já se tinha feito amiga de todas as mulheres que

ali trabalhavam. Estas lhe contaram anedotas das viagens do

Paradise e de seu dono, de quem destacaram que pagava salários

muito altos e que era a pessoa mais amável do mundo, em especial

com os empregados de baixo escalão, o qual intrigou Lavínia. Diziam

que ganhou alguns milhões apostando no póquer e se deu o gostinho

de comprar esse cruzeiro. Suspeitavam que tinha tido que investir

mais dinheiro do que o obtido no jogo, mas foi a partida de cartas o

motor para que decidisse comprá-lo. O fato de ganhar um casco de

navio em uma jogada de cartas se converteu em um mito do

Paradise. Cada navio tem suas próprias histórias.

Depois da historia, Lavínia e as mulheres terminaram refletindo

a respeito de por que a vida parecia tão fácil para alguns e tão difícil

para outros, como o era para ela, e terminaram por acordar que

existe o destino, sim, mas que todos são capazes de modificá-lo.

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Jantou algo frugal e de noite decidiu voltar para a praia onde

tinha visto uma espécie de bar. Era em realidade um bar onde

serviam bebidas e se escutava música até a madrugada, coisa que

gostava de fazer e podia permitir-se já que os preços, embora

estivessem em reais, pareceram-lhe bastante convenientes de acordo

com a mudança.

Não pensou que encontraria Nick nesse lugar tão pouco

atraente para um homem como ele por sua localização e porque era,

para falar a verdade, precário. Mas ali estava, beijando uma mulher

de cabelo negro, possivelmente trazida do navio, com as mãos

rodeando o rosto juvenil da moça e a língua em sua boca.

Lavínia se sentou no lado oposto do bar, de onde podia vê-los

com clareza, embora não o tivesse desejado. Nick não percebeu sua

presença. Acabou o beijo, extraiu um cigarro do bolso do casaco e o

colocou na boca da mulher. O acendeu. Ela tragou. Como não o

devolvia, que era o que Nick esperava, pegou outro. A mulher por fim

entendeu a mensagem implícita no ato e retirou o novo cigarro da

caixa. Logo então colocou o que já estava aceso nos lábios de Nick, e

ele se mostrou agradado.

Lavínia sentiu nojo. Nojo pelo modo em que Nick se conduzia

na vida, pela atitude promíscua que procurava nas mulheres, e pena

pelo amor que ela não podia desterrar de seu coração. O que podia

lhe atrair em um homem tão perverso e frívolo como esse que a tinha

usado e descartado como a tantas outras? A verdade, possivelmente.

O que ele calava, o que escondia.

Uma voz um tanto excedida de alegria para o que Lavínia

costumava escutar a sobressaltou. Olhou com certa desconfiança ao

sujeito moreno que acabava de lhe dizer "olá" em português, que de

todos os modos era muito parecido ao castelhano, e depois sorriu.

Deu a resposta. Ele se sentou a seu lado.

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A voz suave, benéfica e feminina de Lavínia penetrou nos

ouvidos de Nick como uma lança. Tinha divulgado em lugar da

música, que nesse momento tinha terminado porque a canção

brasileira dava lugar à outra. Nem bem elevou a vista e a viu ali

sentada, entrando em conversa com um homem de cor, apertou o

cigarro entre os dedos até que apagou.

Lavínia conversou com o estranho por um longo momento.

Entendiam-se muito bem, porque se havia palavras que Lavínia ou

ele não dominavam no idioma do outro, explicavam-se com gestos.

Alguns deles os levaram a rir e a beber duas bebidas mais. Passada

uma hora, ele a convidou a dar uma caminhada pela praia e Lavínia

aceitou.

Nick estava cativado por ela, que nem se dava conta da mulher

que o acompanhava, que bebeu além da conta. Quando viu que

Lavínia ficava de pé e seguia ao moreno para a escuridão da praia,

desejou estrangulá-lo.

Lavínia era ingênua e inexperiente, e ele não podia permitir que

corresse perigo com aquele estranho. Estava seguro de que esse

moreno forte, de traços poderosos e braços grossos de músculos,

queria ter sexo. E ela seria sua vítima.

As taças a mais, a confusão da noite e a brisa do mar o fizeram

ficar de pé.

— Nicky... - chamou-o a mulher que o acompanhava. Corria-lhe

a voz, parecia inclusive um pouco adormecida de tanto que tinha

bebido.

Nick não lhe deu atenção. Tinha os olhos cinzas entrecerrados,

fixos nas duas figuras que se afastavam caminho à costa. Quando os

tragou a penumbra, a ira se apoderou de seus sentidos e os alcançou

em uma corrida.

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O moreno que caminhava junto à Lavínia voltou ao sentir uns

golpes nas costas. Não deu tempo de ver quem o chamava porque o

punho de Nick aterrissou sobre sua mandíbula fazendo-o tropeçar.

— Nick! - exclamou Lavínia. Não só estava surpreendida,

também irritada, e indignada.

O moreno se equilibrou disposto a devolver o golpe, mas

Lavínia o deteve interpondo-se entre os dois.

— Quem é este idiota? - interrogou o homem em seu idioma.

Ninguém lhe respondeu.

Lavínia deu um passo mais para Nick e o enfrentou com toda a

integridade de que dispunha.

— O que você está fazendo? - repreendeu-o.

— Você ainda pergunta! - exclamou ele. O fôlego a álcool e a

cigarro fez retroceder a Lavínia, que o olhou com pena.

— Não se meta em meus assuntos - ordenou em um sussurro

furioso.

— Não me meter em que? - reagiu ele. — Você não se dá conta

do por que ele te afastou da vista de todos? É tão ingênua!

— Não! - gritou ela, voltando a dar um passo adiante. — A

ingênua não sou eu, é você. Um pobre idiota que pensa que todos os

homens são uns filhos da puta como você.

Nick ficou duro, perplexo.

— Nos faça um favor - rematou ela - me deixe em paz.

Então deu as costas a Nick, pegou o braço do moreno e

começou a caminhar em direção aonde antes se dirigiam. Nick se

sentiu furioso, por isso exclamou: — Ele vai abusar de você!

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Lavínia deteve seu andar e se voltou para ele com uma careta

sarcástica.

— Já fui abusada – replicou. — Por você.

Depois de soltar essas palavras, Lavínia girou sobre os

calcanhares e retornou junto ao moreno, com quem se afastou rumo

à penumbra. Ao testemunhar tudo aquilo, os olhos de Nick arderam

de ódio.

"Um pobre idiota que pensa que todos os homens são uns filhos

da puta como você". "Me deixe em paz". "Já fui abusada. Por você",

recordou. Para Lavínia, isso tudo se convertia nele. Em um filho da

puta e em um violador. Não do corpo, mas sim da confiança, dos

sonhos, das ilusões da mulher que não podia arrancar de seu

pensamento.

Uma gargalhada e um puxão à manga de sua camisa o tiraram

para fora de seus raciocínios. Sua amante, cujo nome nem sequer

recordava, ria a gargalhadas lutando por manter-se em pé sendo que

os saltos afundavam na areia e o corpo lhe impedia de conservar o

equilíbrio.

Nick a olhou com desprezo e tirou o braço de seu contato. Ela

nem se alterou. Seguiu rindo inclusive enquanto ele se afastava e

retrocedia o caminho para o Paradise.

Lavínia passou um momento mais com seu amigo, tomaram um

café e logo se despediram trocando endereço e o telefone de cada

um. Ela acabou sozinha na praia deserta ao amanhecer, sentada

numa imensidão similar a que Enéas havia trazido para as margens

do Lácio. Tal era a emoção que lhe produzia e os sentimentos que

despertava esse paraíso que fez uma promessa.

— Voltarei – disse ela. — Voltarei algum dia e já não me sentirei

sozinha.

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Nick bebeu outro gole. A noite que tinha passado sem dormir

era evidente em seu cabelo emaranhado, em seus olhos vermelhos e

na posição encurvada de sua coluna, como se protegesse o copo de

uísque qual tesouro milenário.

Sentado à beira do bar deserto do Paradise, passava um dedo

pelo bordo do recipiente e pensava que precisava dormir, mas não

queria fazê-lo. Desde que tinha visto Lavínia afastar-se com o

moreno, desde que suas palavras tinham impregnado tão fundo em

seu peito, preferia a vigília, porque dormir significaria deixar de as

recordar, e fazê-lo reviver.

— Depois de tudo, não resultou tão libertino como tinha

entendido.

A voz de Patrícia interrompeu suas reflexões. Nick não girou a

cabeça, não se moveu.

— Não estou de humor para suas provocações - respondeu a

contra gosto, fazendo um esforço para que não lhe corressem as

palavras como à mulher da praia que tinha aborrecido.

Patrícia, com seu vestido vermelho decotado, soltou uma

gargalhada que lhe partiu o crânio. Doía-lhe a cabeça como se em

seu cérebro tivesse repicado um tambor toda a noite.

— Oh, Nick! - exclamou ela com ironia. — Está tão tenro como

sempre. Não te parece que já bebeu muito?

Nick elevou uma sobrancelha.

— Que curioso. Preocupa-se comigo agora.

— Sempre o fiz.

— Não enquanto se deitava com o Horácio Lowenstein.

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A acusação não causou efeito algum em Patrícia. Para ela se

tratava de uma brincadeira.

— Nicky, é tão... - riu.

— Tão o que? - interrompeu-a ele apertando o punho.

— Tão encantador! Vai deixar que esta viagem acabe assim? -

ela deslizou um dedo pela barba. O dedo escalou o antebraço nu do

homem, que tinha as mangas da camisa dobradas até os cotovelos, e

logo chegou até sua mão, a que ele retirou bruscamente.

— Vai me deixar ir outra vez?

Nick girou a cabeça para ela e semicerrou os olhos para poder

olhá-la.

— O que você quer, Patrícia? – interrogou. — O que procura?

— Sei que ainda me ama como o primeiro dia.

— E isso o que?

— Então não me equivoco.

— Perguntei o que quer - resmungou ele com voz dura,

exigente.

— Você.

— Você tem ao Lowenstein.

— Mas Horácio não é o mesmo! - exclamou ela, morta de

risada. — Horácio é velho e feio. Você em troca é jovem e eu gosto

muito.

Nick deixou escapar um sorriso sem graça.

— Que pena que não se deu conta antes - replicou.

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Com tudo o que Deus sabia que lhe custava, ficou de pé e

abandonou o lugar que compartilhava com Patrícia.

Ela o viu afastar com a certeza de que ainda tinha o poder de

mobilizá-lo, mas ele estava resistindo o bastante. Não a tinha

esquecido, entretanto, uma força estranha o privava de entregar-se a

ela. A velha melancolia que o cuidava como se se tratasse de seu

filho? As amiguinhas que tinha? Não. Não tinham podido com ela

antes, menos o fariam agora. A razão tinha que ser outra mulher,

outra pessoa.

— E qual é o quarto da costureira? - perguntou Patrícia à

empregada da limpeza a que lhe tinha tirado todos outros dados a

respeito da loira a qual Nick, como um bobo, ficou olhando enquanto

praticava boxe. A mesma com a que tinha dançado. Nick, que não

dançava. Nick, que não olhava realmente a ninguém mais que a ela.

— Não sei senhora - respondeu a empregada, cautelosa. Mas

Patrícia não era nenhuma boba.

— O que eu acredito é que não quer me dizer. E não têm ideia

dos problemas que isso pode te causar.

— Não sei, juro.

— E quem sabe? - insistiu Patrícia. A moça encolheu os ombros.

— Possivelmente a recepção. As domésticas de seu setor, o

capitão...

Patrícia cruzou os braços em gesto ameaçador.

— E como se chama? - interrogou.

— Lavínia.

— Lavínia de que?

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— Lavínia Dickinson.

— E como sabe isso sem saber o quarto que lhe foi atribuído?

— Já lhe disse tudo o que sei - respondeu a jovem, temerosa.

— Entreguei à garota seu menu diário na sala de jantar e tive

que excluí-la da lista. Na lista figurava o camarote, mas eu não o

recordo.

— Não o recorda, mas pode averiguá-lo – a empregada engoliu

com força. Não fizeram falta palavras.

— Vais fazer.

Lavínia Dickinson, repetiu Patrícia em sussurros. Nenhum

sobrenome conhecido, nada de importância. Tinha-o pressentido,

mas comprová-lo demonstrava que desfazer-se dessa mulherzinha

seria muito mais fácil do que pensava. Sem dinheiro e sem família

que servisse como respaldo, era muito fácil que uma moça se visse

desprestigiada perante um homem como Nicolas.

Lavínia se despediu do lugar principal do destino sabendo que

pela tarde, pouco depois de meio-dia, embarcaria de volta. Ainda

havia mais dois destinos onde parariam ao voltar, mas saber que a

viagem tinha chegado a seu ponto máximo, que permanecia apenas o

retorno, atou-lhe a alma.

Depois de passar por Búzios e Santos, a última noite no

Paradise chegou muito rapidamente. Muito rápido para Lavínia, que

não voltaria a viver algo como isso nunca. Separou seu vestido

romano e foi para seu quarto tomar um banho e preparar-se para o

jantar. Pensava comer e depois ir ao cassino, que ainda não tinha

conhecido.

Maquiou-se com esmero e dedicação. Penteou seu cabelo

dourado e sorriu ao espelho para sentir que estava acompanhada.

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Voltar para casa não era tão mau, depois de tudo. Havia dito umas

quantas verdades a Nick e sabia que em algum ponto, embora fosse

profundo e secreto, o tinha deixado surpreso. Voltaria a ver seus

entes queridos, às pessoas que de verdade se preocupavam com ela,

e escaparia da frivolidade e o superficial da riqueza. Ser pobre era

duro, mas a liberava de falsidades e hipocrisias.

Em seu bairro, se duas pessoas não se suportavam, não se

saudavam. Entre os ricos, as saudações eram uma espécie de

obrigação social, embora ao virar a cara o outro falasse mal daquele

ao que lhe tinha sorrido. Em seu bairro, quando dois moços de

turmas distintas se odiavam, batiam-se em duelo como nos princípios

do século XX e depois, possivelmente, até faziam as pazes. Isso a

aterrorizava, às vezes até acabavam mortos ou feridos com gravidade

e temia que algum dia Hector também se tornasse a esses atos

mafiosos; mas os ricos também se batiam em duelo, só que não

arriscavam a vida nisso.

Deixou de filosofar e empreendeu caminho. Queria aproveitar o

máximo de tempo possível.

No cassino, as luzes enchiam o ambiente de cor. O aroma era

distinto de qualquer outro conhecido, assim como os ruídos que

geravam as máquinas caça-níqueis. Passar junto às damas e

cavalheiros que jogavam nos distintos entretenimentos lhe contribuiu

uma cota ainda mais interessante ao percurso, porque os perfumes

que despediam aqueles corpos eram um mais delicioso que o outro, e

isso harmonizava qualquer passeio.

Nick já tinha visto Lavínia em seu vestido de romana, como a

noite da discoteca, mas ela não se deu conta. Ele estava de pé diante

na porta da sala privada de póquer, onde tinha ficado quieto,

admirando-a.

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— Não pensa jogar o homem mais afortunado do mundo? -

perguntou-lhe um conhecido colocando uma mão sobre seu ombro.

Nick assentiu com um leve movimento da cabeça, voltou-se e

entrou na sala.

Lavínia suspirou. De pé entre as máquinas caça-níqueis,

levantou a vista para as mesas de póquer e ali recordou o conto das

lavadeiras, a história de Nick e a compra desse navio. Pensar que

nesse lugar tinha nascido a ideia que hoje a tinha nesse lugar. Nada

era por acaso, nada era tão mau. Entregar-se a Nick tinha sido o mais

maravilhoso que lhe tinha passado na vida, e o segundo eram os

lugares que tinha conhecido graças a essa viagem, se não tinha em

conta o seu irmão e a sua melhor amiga.

Nisso pensava: recordava a seu maninho, imaginava o que

podia estar fazendo nesse preciso momento, quando uma bela

mulher de vestido prateado invadiu a sala. O universo inteiro pareceu

deter-se ante sua interrupção descontrolada.

— Foi ela! - gritou assinalando com o dedo.

Patrícia se deu a volta e sorriu. Seu cúmplice tinha chegado.

Lavínia seguia abismada na mesa de póquer e os pensamentos

a respeito de seu irmão.

— Senhorita - chamou-a um membro da tripulação.

Lavínia o olhou. Reconheceu-o pelo uniforme e pela cara: era o

mesmo que a tinha escoltado até o despacho do capitão e depois à

lavanderia. Então viu a loira que lhe aproximava fora de si.

— Foi ela! - voltou a gritar. Lavínia não entendia uma palavra.

— Está certa? - interrogou o jovem.

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— Mais que certa - replicou a dama antes de dirigir-se a

Lavínia, que franzia o cenho presa da confusão.

— O têm, ladra? Não dissimule e me devolva.

Ao dar-se conta de que não entendia palavra, Lavínia olhou ao

tripulante.

— De que fala?

— De meu anel de diamantes, és estúpida! - gritou a senhorita.

Lavínia ficou vermelha como as luzes de alguns caça-níqueis.

Embora não tivesse ideia do que lhe falavam, todos a olhavam e isso

a pôs nervosa.

— Nos acompanhe, por favor - sugeriu o tripulante.

Ante os olhares que não deixavam de estudá-la, alguns

inclusive a olhavam com desprezo, como se já se provasse que ela

era uma ladra, aceitou. Uma vez no corredor, o tripulante continuou:

— Teremos que revistar seu quarto.

Só de pensar que pudessem entrar nele e notar a ausência de

lençóis e cortinas revolveu o estômago de Lavínia. Ainda não tinha

tido oportunidade das repor e não teria modo de fazê-lo antes que

entrassem em seu quarto. Pensava conseguir o que lhe faltava no

tanque essa madrugada, porque só ficava uma mulher de guarda.

— De maneira nenhuma – respondeu. — Não sei quem é esta

mulher nem sei de que fala.

— Não te faça sonsa! - replicou a outra. Teria poucos anos mais

que Lavínia.

— Me devolva o que me roubou!

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— Senhorita Dickinson - interveio o homem. — Tudo se

esclareceria se nos permitisse jogar uma olhada a seu quarto.

Lavínia suspirou. Estava perdida. Sem dúvidas não

encontrariam um anel de diamantes porque ela não tinha roubado,

mas sim descobririam que tinha destruído os lençóis e as cortinas.

— Façam o que considerem necessário assentiu cabisbaixa, com

um fio de voz.

Estava acostumada a que na vida tudo, absolutamente tudo,

saísse-lhe mau, por que teria que pensar que a travessura de vestir-

se com lençóis e cortinas podia lhe sair bem?

Transitaram os três, o caminho até seu camarote. Na porta

acharam dois homens mais que falavam com o tripulante de alta fila

em segredo.

Os dois homens eram um o gerente do cruzeiro e o outro um

cadete, além do tripulante que revisava o pôster de "Não incomodar".

Lavínia o tinha pendurado no trinco exterior para que ninguém

entrasse em quarto nem sequer para fazer a limpeza. Acomodou-o

em seu lugar e abriu a porta.

A devastação do quarto deixou a todos com a boca aberta.

Faltavam as cortinas, os ganchos, as cintas que permitiam os sujeitar

e isso dava a impressão de um quarto vazio. Além disso, faltavam os

lençóis: a cama estava desfeita e o acolchoado feito um pão doce na

ponta.

Sem pedir permissão, como se não tivesse se encontrado com

semelhante desconcerto, o gerente deu um passo dentro.

— Mas o que se passou aqui? - perguntou-se em voz alta. —

Passou um tornado e não nos inteiramos?

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— Duvido - disse a altiva mulher que acusava a Lavínia de

roubo.

— Revistem - ordenou o gerente.

— Lamento, senhorita Dickinson - desculpou-se o tripulante,

que se fazia evidente tinha sentido pena por ela.

Lavínia conservava esse gesto taciturno no rosto e a cabeça

encurvada. — Confiamos em que tudo se arrume logo. O penoso é

que as câmaras de segurança não hajam capturado nada, do

contrário nos economizaríamos todo este procedimento.

— É este? - o empregado elevava um anel que tinha recolhido

da cômoda.

— Isso era de meu pai - explicou Lavínia. Ela sempre levava o

anel de bodas de seu pai em sua caixa de joias. Nessa oportunidade,

tinha-o deixado sobre a cômoda porque tinha esvaziado o conteúdo

da caixa onde este se achava em busca de um par de brincos.

— Isso é uma bagatela - replicou a mulher sobre a voz baixa de

Lavínia. — O meu Pingente é de diamantes.

Lavínia não se sentiu ferida pelo comentário depreciativo da

mulher, mas sim pela agressão para seu pai. Estava segura de que

lhe havia sido um bom sacrifício comprar algo que uma ricaça que

jamais tinha conhecido a fome ousava menosprezar. Entretanto,

tragou o discreto insulto que acabavam de lhe proferir e permaneceu

calada.

— É esse! - gritou a mulher antes que o empregado de menor

escalão, que acabava de extrair o luxuoso anel de uma gaveta,

pudesse falar.

Lavínia elevou a cabeça imediatamente. Isso era impossível, ela

jamais roubou nada.

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— Jamais o tinha visto em minha vida! – reclamou. — Isso não

é meu!

— Claro que não é seu, ladra! - respondeu-lhe a mulher com

toda a presunção do mundo.

— Senhorita Dickinson... - começou a falar o tripulante, mas a

mulher o interrompeu.

— Não sente mal que me tenha roubado, tendo em conta o que

fez deste quarto! - soltou.

— Isso posso explicar! - defendeu-se Lavínia.

— Então nos explique isso por favor - pediu o homem, que

conservava a calma.

Lavínia tragou com força. Calou.

— O que aconteceu neste quarto? - interrogou o gerente.

Lavínia ficou calada. Não se atreveu a falar, seus olhos se encheram

de angústia.

— Já veem! - gritou a mulher.

— O que está se passando?

Só isso faltava, pensou Lavínia. Nick. Todos ficaram congelados

ante sua aparição.

Patrícia pensava fazer que Nick se inteirasse mais tarde do

delito que tinha cometido a costureira, porque não imaginou que ela

estaria no mesmo lugar que ele quando a acusassem do roubo.

Tinha-lhe saído melhor do que esperava, porque Nick se deu conta do

escândalo e os tinha seguido até o lugar dos fatos. Por prudência, ela

não se moveu. Se queria fazer acreditável a mentira, tinha que fingir-

se interessada na intriga, mas não muito envolta na ação.

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— Esta ordinária roubou meu anel de diamantes! - exclamou a

mulher em resposta à pergunta de Nick, sem olhar se ele era o dono

do navio ou um tripulante qualquer.

Em lugar de falar, Lavínia cobriu o rosto com as mãos e

irrompeu em um pranto desconsolado. Tremiam-lhe as mãos e as

pernas, era incapaz de reagir de outro modo ante a injustiça.

Nick se aproximou com intenções de lhe limpar a cara, mas

quando deu um passo dentro do quarto, ficou congelado ante o

desabastecimento.

— Mas o que...? - perguntou com o cenho franzido.

— Isso é o que todos estamos esperando que a senhorita

Dickinson explique - respondeu o gerente.

Nick se voltou para ela.

— Lavínia - disse-lhe em um tom muito suave.

— Conhece-a! - exclamou a vítima do roubo. — Como posso

esperar que receba um castigo justo?

Nick olhou à mulher com irritação. Não o demonstrava, mas lhe

tinha provocado desgosto ao maltratar a Lavínia, que ainda chorava

como uma menina acusada de roubar um anel caro. Ninguém

merecia semelhante trato, ninguém. E ele odiava às pessoas que se

acreditavam mais que outros porque tinham tido a sorte de nascer

para serem servidas. Despertavam asco, repugnância; mas sobravam

em seu mundo.

— Vi-a sair de meu quarto - explicou a mulher. — Segui-a

porque não vi que levasse uniforme de limpeza, mas não pude

alcançá-la. Logo descobri que meu anel tinha desaparecido e por isso

a procuramos. Estava no cassino, a descarada, gastando o dinheiro

que deve ter roubado a tantos neste navio.

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Ela não tinha roubado nem tinha jogado um só centavo no

cassino, mas ao parecer ser pobre e haver-se equivocado em um tolo

formulário eram sinônimos de ser ladra e merecer castigo.

— O que fazia no quarto da senhora, senhorita Dickinson? -

perguntou o gerente. — Como explica que nenhuma não há uma só

roupa em seu quarto?

Encarregaram-se de averiguá-lo quando pesou sobre ela a

acusação. Era o que o gerente tinha comentado ao tripulante de alto

escalão ao ouvido nem bem tinham chegado ao quarto.

— Nos diga o nome de uma loja - pediu o tripulante, um pouco

mais amável. — Uma só casa respeitável que tenha alguma de suas

roupas.

Esse homem sim parecia conservar certa fé nela. Foi isso o que

impulsionou a Lavínia a ser honesta com ele. Presa dos prantos e os

saltos que dava pela angústia, articulou algumas palavras sem

levantar a cabeça.

— Pode perguntar a meus clientes - replicou. O som saía entre

um oco que deixava a união de suas duas mãos frente à cara. —

Prego botões e aviamento. Não sou mais que uma costureira.

Nick sacudiu a cabeça. Cravava-lhe o coração. Não queria que

Lavínia se sentisse descoberta e humilhada, ninguém melhor que ele

podia saber na própria carne o que isso significava. Não queria sentir,

mas já era muito tarde para impedi-lo.

— Isso não é verdade - replicou com voz poderosa. — É que

ainda não descobriram seu talento.

— Perdão? - interrompeu a vítima do roubo.

— Esta costureira me roubou um anel de diamantes - recordou

a todos os presentes. Destacou a palavra costureira.

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Nick semicerrou os olhos porque o tinha percebido e a teria

calado de uma boa indireta, mas tinha que guardar réplicas porque

era uma passageira e, acima de tudo, tinha que conformá-la.

— E o quarto? - continuou o gerente, ofuscado. — O que

aconteceu com tudo o que falta nele?

— Basta! - Nick calou a seu empregado como não podia

emudecer à passageira, possivelmente muito brusco.

— Lavínia - falou-lhe com suavidade, tomando-a entre os seus

braços em um intento para que levantasse o rosto. Estava seguro de

que, além de angústia, ela sentia vergonha.

— Explique-me isso.

Lavínia levantou o rosto lentamente. Tinha a pele das maçãs do

rosto avermelhada e úmida, e Nick se odiava por desejar secá-la.

— Não fui eu... - alcançou a balbuciar ela.

— Já! - burlou-se a mulher. — "Não fui eu"! Boa desculpa!

— Quão segura está de que foi ela? - insistiu Nick sem olhar à

mulher nos olhos porque temia que se desse conta de que a odiava.

— Vi-a com meus próprios olhos! E o anel foi achado em sua

gaveta. Diga-lhe - ordenou ao gerente. — Parece mentira, a vítima é

uma e todos defendem à ladra.

— Lavínia - insistiu Nick com suavidade. — Pode explicar o que

aconteceu neste quarto? Pode nos dizer por que o anel estava em seu

poder?

Lavínia permanecia em silêncio, angustiada.

— Deixá-la aqui é uma ameaça para todos! - gritou a

proprietária do anel.

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— Vou fazer saber isto a todos os meios de comunicação para

que ninguém mais ponha um só pé neste navio onde se premia aos

ladrões. Meu marido é o dono de um canal de tv!

Nick negou com a cabeça. Não ficou mais opção que levar a

cabo o plano mais desagradável.

— Está bem – consentiu. — Levem-na ao quarto de detenção.

Lavínia lhe dirigiu um olhar pétreo.

— Não consultamos a decisão ao capitão? - indagou o

tripulante.

— Não será necessário - replicou Nick sem deixar de olhar a

Lavínia. Atrevia-se a lhe sustentar o olhar.

— Eu decidi.

Lavínia estalou.

— É um lixo, Nicolas! – gritou. — Vá à merda!

E o esbofeteou. A boxeadora lhe deu volta a cara.

O empregado se aproximou para detê-la, mas Nick o impediu.

— Está bem - disse elevando uma mão em gesto preventivo.

Que ninguém tocasse a Lavínia. Ninguém.

— Já vê! - exclamou a que tinha sido vítima do roubo. — Já vê

em o que é capaz de fazer esta malcriada!

Não fez falta que os homens detivessem a Lavínia como a

palavra o indicava. Ao ver que se aproximavam, Lavínia caminhou

diante deles para dirigir-se para onde queriam levá-la.

— Tratem-na com gentileza - advertiu Nick aos homens.

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— O agradeço - disse-lhe a mulher, que pareceu não ouvir

aquela ordem. — Tem que fazer-se justiça.

Nick não lhe prestou atenção. Ficou-se olhando o pôster de

"Não incomodar".

Uma hora mais tarde, Lavínia se debruçava sobre si mesma,

com os joelhos pegos ao peito, tratando de suportar o frio que nesse

lugar afastado e solitário lhe impregnava os ossos.

Jamais tinha vivido uma humilhação semelhante, tanta mentira

e injustiça a afligiam, mas ao menos tinha deixado de chorar. De

repente o tripulante que sempre tinha conservado a fé nela abriu a

porta e lhe dirigiu a palavra.

— Me acompanhe, por favor - pediu.

Lavínia elevou uma sobrancelha.

— Por quê? - Se notava mais forte e inclusive com sotaques de

ironia. — Pensam em jogar aos tubarões?

O tripulante soltou uma risada e a esperou para levá-la até o

elevador.

Uma vez no piso indicado, conduziu Lavínia por uma série de

corredores secretos até uma zona privada. Um corredor estreito ao

fundo do qual só havia uma porta branca de folha dupla.

— Aonde me leva? - interrogou ela, desconfiada.

— A nadar com golfinhos - respondeu o homem.

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Capítulo 12

Quando Nick abriu a porta, Lavínia tentou ir embora, mas o

tripulante a impediu.

— Obrigado - disse Nick antes de tomar a Lavínia pelo braço

para introduzir à força na habitação.

Embora ela resistisse, pouco pôde fazer para liberar-se de Nick

e evitar que ele entrasse consigo no camarote. Deu-se conta de que

já não poderia fugir ao ficar com o nariz frente à porta branca.

Nick tinha se estabelecido atrás dela, aprisionando-a entre sua

imensidão e a madeira.

— Se te solto sentará sem pigarrear? - perguntou.

Indignada, Lavínia replicou: — Sou uma ladra, mas não sou sua

prisioneira.

— Ambos sabemos que não é nenhuma das duas coisas -

respondeu ele.

Em sua voz se adivinhavam diversão e ternura. O primeiro

motivo ofendeu a Lavínia, por isso se deu a volta. Ficaram frente a

frente, tão perto que podiam respirar-se. Ela sorriu, irônica.

— Ao que parece ser humilde é sinônimo de ser desonesto –

resmungou.

— Mas aos que eu vi sorrir e se insultar ao dar-lhe as costas é a

vocês, os ricos, não a mim. Duvido que tivesse acusado de ladra a

qualquer de suas outras amiguinhas.

— Assim que te considera uma mais de minhas... "amiguinhas"

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- concluiu ele, como se o único que tivesse importado de tudo o que

lhe dizia fosse este último. Até lhe custou repetir o término.

— Como se me tivesse tratado como algo melhor! Acaso não o

sou?

Lavínia o desafiava. Nick não respondeu.

— Sente-se.

— Não. Chamem a seu robô e decide que me leve de volta ao

quarto de detenção, onde devia ter estado sempre.

Nick soltou uma risada enternecida.

— Ah, Lavínia! - exclamou.

— Se não o fizerem, volto por meus próprios meios. Algo vai

ser melhor do que ter que compartilhar um espaço com você.

Nick não se alterou. Encolheu os ombros e encheu os pulmões

de ar.

— Pareceu-me melhor que ficasse aqui em lugar daquele quarto

- explicou com simplicidade.

— Mas que amável! - ironizou ela. — Lastimo que pensou mal.

Prefiro que me joguem aos tubarões antes que ficar aqui com o pior.

Com sua permissão.

Voltou a lhe dar as costas para retirar-se, mas ele a impediu de

novo apoiando uma de suas pesadas mãos sobre a porta.

— Me dê uma oportunidade - pediu.

Lavínia soltou um risinho mordaz.

— Quantas mais? - pensava que estava cansada de lhe dar

oportunidades, de fingir que ele podia ser bom e justo.

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— As que sejam necessárias - respondeu Nick com serenidade.

— Sente-se.

Lavínia cruzou os braços enquanto se voltava para olhá-lo.

— Por quê? Nessa posição se pode julgar melhor ao acusado? -

espetou-lhe.

— Eu não te julgo - respondeu ele em um sussurro. Lavínia

arqueou as sobrancelhas.

— Oh, de verdade? – ironizou. — Entretanto me enviou a... - ia

dizer "detenção", mas Nick a interrompeu, pressentindo-o.

— Isso o fiz porque tinha que calar à passageira. Sempre soube

que não tinha roubado nada - assegurou. — Mas se algo que morro

por saber é o que fez com tudo o que desapareceu do quarto.

O tom gracioso de Nick enterneceu Lavínia, embora um pouco,

nada mais.

— Isso não importa - replicou ela. — Podem carregá-lo a minha

conta se quiserem, porque esses objetos não vão voltar.

— Conte-me isso, por favor, que me pulsa o coração como a um

assassino de ansiedade.

Lavínia notou o brilho divertido nos olhos de Nick e não pôde

evitar abrandar o ânimo um pouco mais. Baixou a cabeça, as

bochechas se tingiram de vermelho. Já não sentia frio, sentia o calor

do corpo de Nick pego ao seu e um estranho orgulho.

— Não me diga que não se deu conta - brincou.

— Do que, por quer que, diga?!

— Se você pensou a decoração desses camarotes...

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Nick se levou uma mão à frente. Os dois se esqueceram de que

ele travava a porta ou não. Deixou-a cair em seguida.

— Lavínia... - foi uma súplica de intriga que a fez sorrir.

— Senti saudades de você, Nick, um homem tão acordado.

Acaso não o vê? Estou vestida com suas cortinas.

Nick deu um passo atrás com o cenho franzido. Lavínia elevou a

cabeça e sorriu ao notar que o homem a estudava. Depois, com

expressão que evidenciava que não acreditava numa palavra, ele

exclamou sorridente: — Não pode ser!

Lavínia riu e lhe ofereceu um pedaço do tecido.

— Toca-o - convidou-o.

Nick obedeceu imediatamente. Quando comprovou que se

tratava de suas cortinas, deixou escapar uma risada. Lavínia tinha

transformado um par de cortinas no vestido mais formoso que Nick

tinha visto algum dia, ou ao menos assim lhe parecia quando ela o

tinha posto. Sentiu-se orgulhoso do talento e a capacidade dessa

mulher para desenhar, para costurar e para vestir.

— Lavínia! - exclamou com assombro. — Por que se vestia com

os tecidos que encontrou no camarote? E a roupa de ginástica?

— A roupa de ginástica comprei quando chegamos a Salvador,

porque aí saía tudo mais barato - confessou.

Ao Nick lhe espremeu o estômago ao dar-se conta de algo que

sempre tinha sabido, mas que não tinha tido em conta na hora de lhe

deixar as passagens: ela era pobre.

— Tive que me vestir com suas cortinas porque perdi minha

bagagem.

— O que?

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A frase o tirou de toda reflexão, seu rosto perdeu qualquer

vestígio de brincadeira ou diversão. Parecia sentir-se modesto,

zangado.

— Que conforme me disseram, equivoquei-me em um número

do formulário de carga... - apressou-se a esclarecer Lavínia.

— Merda! - interrompeu-a ele.

— O que?

Nick negou com a cabeça, passou a mão pela nuca e se afastou

até sentar-se no tamborete que estava aos pés da cama. Quase

parecia ele o acusado. Lavínia avançou uns passos até ficar frente a

frente de novo; ela de pé, ele sentado.

— Pensa me explicar? - exigiu Lavínia com tom triste.

Pressentia que Nick estava a ponto de dizer algo que odiaria.

— Por que não me disse isso? - afligiu-se ele. — Dormia sem

lençóis e te resignava a que ninguém limpasse seu quarto por não me

dizer pessoalmente que os estúpidos de meus empregados tinham

perdido sua mala?

— Como ia te dizer isso? - replicou Lavínia, ofuscada.

— Não foram seus empregados, fui eu, e você não acreditaria

em quão idiota fui, em não saber completar um formulário. Tive

vergonha, Nick, porque gente que costuma viajar seguro sabe

completar esses papéis, em troca eu...

Nick ficou de pé e deu uma volta pelo quarto. Depois se voltou

para Lavínia com expressão indecifrável.

— É que não houve equívoco - confessou.

Lavínia soltou uma risadinha, parecia-lhe impossível.

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— Ai, Nick, obrigado, mas já sei que sou bastante distraída -

recalcou.

— Não, Lavínia - insistiu ele, muito sério.

— Se tivéssemos que vestir passageiros pela quantidade de

bagagem que perdemos, afundaria.

Lavínia entreabriu os lábios, incapaz de acreditar na verdade.

— Nick... - balbuciou. Ele seguiu falando.

— A ordem que têm os empregados é pôr a desculpa do engano

no formulário para que ninguém solicite que os vistamos em sua

travessia. E assim gastam nas lojas. Ninguém se importa muito

porque fazem uma reclamação em outro papel e com sorte lhes

fazemos chegar a bagagem ao porto seguinte.

— Mas é o que menos tenho é sorte e jamais encontraram a

minha, verdade? - interrompeu-o ela, ainda boquiaberta.

Nick se afligiu.

— Se não lhe fizeram chegar isso, é porque não. Não a

encontraram.

Produziu-se um instante de silêncio no que ambos se olharam:

um culpado, a outra zangada.

— É um filho da puta - soltou Lavínia, embora o dissesse com

certa graça, sem poder fechar a boca.

— Isso não é novo para mim, diga-me algo original - respondeu

ele, recordando a quantidade de vezes que tinha escutado a Fi lhe ler

as mensagens que suas amantes lhe deixavam quando ele ainda não

tinha encontrado o modo de bloquear os números. "Nick, é um filho

da puta". "Filho da puta, não quero vê-lo nunca mais". "Vais-me

pagar por isso, filho da puta". E infinidade de coisas similares.

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Lavínia encolheu os ombros. Nick lhe pedia algo mais original.

— Fazer acreditar às pessoas que é estúpida para que não

reclamem e pague pelo engano de seus empregados é de um

capitalismo covarde.

— Vai melhorando.

— Algum dia vai pagar. Ninguém está isento de ficar impune.

Nick a olhava como se fosse um menino em penitência e depois

do presságio pôs-se a rir. Lavínia perdeu todo vestígio de seriedade e

acabou rindo também. O que começou sendo uma melodia suave se

converteu em gargalhadas: um ria mais que o outro. Até que

acabaram derrotados os dois, arrojados de costas sobre a cama com

os pés pendurando ao piso.

Fez-se um momento de silêncio no que procuraram voltar a

respirar.

— Você mandou desenhar o teto deste quarto? - perguntou

Lavínia, reflexiva.

Era um desses momentos filosóficos que só acontecem depois

de um comprido e profundo episódio de risada não justificada.

— Sim.

— É precioso.

— Obrigado.

Voltou a fazer-se silêncio.

— Nick.

— Mm...

— O que vê?

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Lavínia não o perguntava ressentidamente nem com inveja,

mas sim como uma psicóloga analisando um paciente. Nick não se

alarmou. Não entendia o que lhe acontecia que uma estranha

sensação de familiaridade o invadia agora que tinha alcançado certa

liberdade com Lavínia. Sentia que podia confiar nela, que tinha uma

amiga. Embora ele não quisesse ter verdadeiras amigas, nada mais

que "amiguinhas", como Lavínia as chamava que era algo muito

distinto.

— É que não entendo, Nick - continuou ela sem esperar

resposta.

Depois de tudo, ele não tinha muita ideia do que lhe estava

falando e por isso não podia responder.

— De verdade me custa acreditar que sendo você um homem

tão inteligente, brilhante em tudo, procure atitudes tão degradantes

em uma mulher. Nego-me a acreditá-lo. Sabem bem o que querem!

Possivelmente uma noite divertida, sua cara bonita ou uma viagem

em seu navio. E por isso o passam bem, para que possam realizar

seus desejos, mas você... não posso acreditar que de verdade passe

isso bem, que seja isso o que deseja.

Nick se sentiu nu. Lavínia tinha expressado tão bem e em tão

poucas palavras o que se reduziu sua vida que se assustou. Suspirou.

O certo era que apesar de tudo desejava responder, mas não o fez.

Ou possivelmente sim.

— Sabe o que me passou uma vez quando era menino? -

perguntou.

— Eu adoraria saber - respondeu ela com ânimo de seguir a

conversação.

— Todos os verões, minha mãe armava uma bacia com água

para que me entretivesse com os amiguinhos do bairro.

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Lavínia notou a matiz que cobrou a voz de Nick ao nomear a

sua mãe. Era um tom especial novo nele, mas não emitiu palavra a

respeito porque não queria interromper o conto.

— Não saíamos de férias - esclareceu Nick.

A Lavínia pareceu estranho o fato das férias, porque sempre

pensou que os meninos ricos passeavam todos os verões e tinham

piscinas de concreto ou de plástico, essas grandes fundas na grama,

mas talvez os tinha prejudicado.

— Numa dessas tardes - continuou ele - dois de meus amigos

me afundaram a cabeça na água. Estavam brincando, mas me

inundaram tanto tempo e sem preparação prévia que quase me

afoguei.

Lavínia arqueou as sobrancelhas, surpreendida.

— Depois disso tenho pavor à água em grandes quantidades,

como em piscinas, ou o mar... por pouco não temo à água na jacuzzi

também - brincou.

Lavínia compreendeu de repente por que não tinha visto Nick

na praia, embora não se fazia ideia de que alguém que tinha terror à

água pudesse comprar um navio.

— Comprou um navio... - refletiu em voz alta.

— É o que se faz com os medos - respondeu ele - enfrenta-os.

— Me parece que não o está enfrentando em realidade, só te

aproxima sem te atrever a tocá-lo - replicou ela. — Enfrentará se o

navio afundar, ou se te animam a ir à praia e nadar no mar, que te

asseguro é precioso. Eu não o conhecia.

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Como sabia que Lavínia tinha razão, mas não estava preparado

para reconhecê-lo, Nick se descalçou e se deslizou para trás. Lavínia

não se moveu.

— Eu também tenho medo - seguiu falando ela. Esperava

compartilhar parte de um segredo com ele, depois de ter notado que

acabava de pô-lo em evidência com algo que parecia ser muito

profundo.

— De altura - para lhe tirar dramatismo ao assunto, também se

descalçou e se deslizou para trás, como antes tinha feito ele, que já

tinha recostado a cabeça sobre o travesseiro. — Sugeriria que compre

um avião?

Nick soltou a risada que tinha estado esperando seu turno para

sair e a abraçou. O fez sem que metesse o sexo nisso, nem segundas

intenções, nem sequer o desejo. Passou o braço por detrás do

pescoço de Lavínia e a atraiu para seu flanco porque ela era sua

amiga e porque acreditava lhe guardar certo afeto.

Lavínia sentiu que o coração lhe estalava. Ele se via tão atrativo

quando ria! Jovem, aberto, renovado. Pressentiu que Nick não a

considerava uma "amiguinha" e isso a levou a encostar mais contra

seu flanco e a apoiar uma mão sobre seu peito para senti-lo ainda

mais perto. Sentiu-se honrada. Não era amor de casal o que ele

parecia disposto a lhe brindar no momento, mas que a considerasse

sua amiga a encheu de sorte.

A Nick custava abrir seu coração. Ela sabia, como também sabia

que ainda não se abria de tudo, a não ser apenas um escasso

milímetro. Ele era capaz de muito mais que abraçar, relaxar-se e rir.

Entretanto, Lavínia não estava segura de chegar a conhecer essas

capacidades alguma vez.

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— Me conte um sonho - pediu-lhe. — Um sonho que tenha

seguido.

— Um sonho desses que sonhamos acordados, ou um sonho

dormido? - perguntou ele para estar seguro.

A Lavínia não importou enquanto se tratasse de um sonho dele.

— Qualquer dos dois - consentiu.

— Há um que é o mesmo em ambos os casos - explicou Nick.

Sua voz soava outra vez estranha, presa de certa angústia e

saudade.

— Sonho com o sorriso de minha mamãe quando me levava

uma xícara de chocolate bem quente a meu quarto enquanto eu

estudava. Esse sorriso consegue me temperar nos momentos mais

frios, mais escuros.

Lavínia tragou com força. Esperava não ser tão fraca de deixar

escapar uma lágrima, não queria que ele sentisse que ela tinha pena.

Mas Nick era quem lhe tinha irradiado essa tristeza, possivelmente

porque ele mesmo a sentia. Lavínia voltou a esforçar-se por lhe tirar

dramatismo ao assunto, pois sua intenção não era que ele passasse

mal com ela. Queria que de verdade passasse bem, não como estava

segura de que ocorria com suas "amiguinhas".

— Eu estou acostumada a sonhar com a história - contou ela.

— Com a história?

Reposta pelo possível pranto, Lavínia se estabeleceu sobre um

cotovelo e elevou a cabeça para ver Nick nos olhos. Os dele

brilhavam; tinham perdido esse véu de frieza e distância com que

sempre os ocultava.

Nick, o inalcançável, era ao fim um ser humano.

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— Sonho com muitos sucessos históricos, mas resulta evidente

que me obceca um em particular - contou ela.

Ele se sentia intrigado por saber qual era, e ela não o fez

esperar.

— O enfrentamento entre Hector e Aquiles - culminou. Nick

arqueou as sobrancelhas, surpreso. — Mas em meu sonho, Hector é

uma criança.

Nick soltou a gargalhada. Lavínia não pôde evitar fazê-lo.

— Estou louca, já sei! – seguiu. — Deve ser porque meu irmão

insiste com que lhe conte sempre essa mesma história e depois

termino associando a Hector o herói com Hector meu irmão.

— Sim que está louca - replicou ele. — Não sonhou com o

cavalo de Troia também?

— Não - respondeu Lavínia seriamente. — Com isso não.

— Menos mal - aliviou-se ele. Ela elevou as sobrancelhas,

intrigada.

— Por quê? - perguntou. Nick sufocando uma risada.

— Parece-me que Homero ou quem é que tenha escrito a Ilíada

haveria se sentido muito ofendido se lhe trocasse o cavalo por um

burro. Ou por uma vaca. Imagine? Disse que é um anjinho, se não,

nem eu te perdoaria semelhante sacrilégio.

Lavínia se pôs a rir como se fosse o fim do mundo. De repente,

ficou muito séria.

— Eu não sou um anjo, Nick – confessou, afligida pelas novas

sensações que ele lhe produzia. — Uma vez, quando tinha doze anos,

até roubei a um ceguinho.

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Nick arqueou as sobrancelhas, divertido.

— Isso sim que está muito mal – concluiu. — Que maldade, eu

nunca cheguei a tal nível de sujeira - brincou.

Não conseguia imaginar a Lavínia roubando nada, e se o tinha

feito tão mal como mentir sua identidade, já podia deduzir como

tinha terminado o assunto. Isso o fez rir.

— Roubei-lhe um pedacinho de sua torta - seguiu confessando

ela, constrangida com a lembrança. — Mas estava tão boa!

Nick se esforçou por acabar a risada e fingir-se sério.

— Ah. Bom, tivesse começado por aí – interveio - por uma

parte de torta, eu teria feito exatamente o mesmo. Eu adoro. Mataria

por uma em qualquer momento, e se for de chocolate, melhor.

Lavínia o olhou arqueando as sobrancelhas.

— E sério? - interrogou. Das poucas coisas que sabia cozinhar

bem, uma eram as tortas.

— Não sabe quão a sério falo. Algum dia vai ver.

E depois dessa promessa, acabaram jogando-se brincadeiras a

respeito de anedotas e coisas mundanas até que Nick voltou a atraí-

la para si e a beijou na fonte. Isso desarmou Lavínia, e também a ele,

que não alcançava para compreender por que atuava do modo que se

esforçou por desterrar de si.

— O que quer dizer? - gritou Patrícia à empregada de limpeza.

Era a mesma a que lhe tinha pagado para que escondesse o anel de

sua cúmplice no camarote de Lavínia.

— Se não está no quarto de detenção, onde está?

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— Conforme entendi, o senhor Hagen pediu que a levassem a

seu quarto.

— Onde? - reclamou Patrícia, como se a empregada não tivesse

sido o suficientemente clara ou tivesse a culpa de seus enganos. O

problema era que ela mesma não podia acreditar que, tentando

separar Nick da costureirinha, tinha terminado reunindo-os no mesmo

quarto.

— A seu quarto - repetiu a outra, obediente, embora sem dar-

se conta de que revolvia assim a adaga enterrada no ventre de

Patrícia.

— Sempre vou estar aqui para você, Lavínia - disse-lhe Nick

enquanto adormeciam. — Sempre.

Lavínia sorriu. Ainda abraçados, ficaram dormindo.

Ao abrir os olhos, o fantasma da lembrança daquela manhã no

hotel alarmou a Lavínia. Ela pensava que ele já não estaria a seu

lado, entretanto, ali estava, com os olhos abertos, sorrindo enquanto

a via despertar.

— Cumpriu - balbuciou Lavínia. Recordava que lhe tinha

prometido que estaria ali para ela sempre.

— E sempre será assim - recordou-lhe ele. — Somos amigos,

não? Não é uma "amiguinha", Lavínia, é minha amiga. Entende a

diferença?

Lavínia pressentiu que aquelas palavras tinham um significado

especial para Nick. O problema radicava em que ela, que não queria

ser sua "amiguinha", no fundo tampouco se conformava sendo sua

amiga.

— Sim - respondeu, tratando de contentar-se com sua

confiança. Ao menos Nick já não a queria longe, a não ser perto, tão

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perto como um amigo pode estar. Mas ser sua amiga sem que ele se

abrisse sem restrições tampouco cabia em sua lista de

conformidades.

Nick rompeu com toda seriedade ou preocupação.

— Convido-te a tomar o café da manhã - propôs. Estava de

bom humor, mas de um modo estranho, não como Lavínia o tinha

visto antes. Nem excitado, nem acelerado, nem com segundas

intenções.

— Aqui no quarto ou fora? - perguntou Lavínia.

— Fora. A algum dos bares onde ninguém nos encontre.

— Acredito que conheço o lugar perfeito - indicou ela. — O bar

da multidão – riu. — Ali não vi japoneses nem garotas de vermelho -

lhe piscou o olho.

Apesar de que percebeu que Nick se havia tensionado, Lavínia o

ignorou e propôs encontrar-se no bar que oferecia o café da manhã

incluído na passagem em uma hora.

Ao chegar ao restaurante, notou que ele já estava ali. Nick a viu

chegar com objetos que não tinham sido confeccionados com suas

cortinas e se perguntou se essa roupa também a teria comprado na

viagem. Sentia-se culpado por ter deixado a Lavínia as passagens a

um mundo ao qual não pertencia e para o qual deve ter sacrificado

várias coisas necessárias por culpa de sua omissão. Não entendia

como tinha sido tão estúpido de lhe deixar as passagens sem

facilidades para que pudesse utilizá-las. Pensava que ela tinha tido

que sobreviver com moedas entre o luxo e que teria criado nela

desejos frente à riqueza dos outros, saudades que por culpa sua

agora sentia e jamais poderia cumprir. Era o culpado de ter criado

sonhos em alguém e que estes fossem se converter em frustrações.

Exceto... exceto se ele pudesse fazer algo para que ela cumprisse

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esses sonhos. Tinha comprovado que era verdadeiramente boa

desenhando, algo poderia fazer.

Saudaram-se e tomaram assento. O sol iluminava parte da

mesa e o rosto de Nick. Lavínia levava posta a roupa do dia que

tinham embarcado, mas como ele não a tinha visto, não sabia.

Eram sete. Às nove, o navio chegaria ao destino e isso os

separaria. Aquele pensamento contraiu as feições de Lavínia.

— Pensei que não fosse vir - confessou cabisbaixa.

— O que combinamos? - replicou ele.

— Que somos amigos.

— Exato. E eu gosto de ter tempo com meus amigos, não?

Lavínia suspirou e sorriu em gesto de assentimento. Era um

sorriso um tanto rígido, eclipsado por um mau pressentimento.

Nick não parecia o mesmo. Luzia limpo, amável e gracioso.

Nem sequer tinha fumado. Todo rastro daquele homem egoísta e

libertino tinha desaparecido; sua postura, seu tom de voz, seu olhar

tinham mudado. As conversações aconteciam com naturalidade, sem

que ele evitasse nada, embora ela tampouco houvesse tornado a

fazer perguntas. Não parecia sentir-se incômodo nem procurar

oportunidades para incomodá-la ou esmagá-la com sua personalidade

arrasadora.

Nick, o verdadeiro Nick, apaixonava-a ainda mais que o outro.

— Nunca me tinha dado conta de não ter sido por você -

comentou ele, enquanto lhes serviam o café da manhã. Chocolate

quente, como Nick gostava.

Depois da conversação da noite, Lavínia compreendia o motivo.

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— Do que? - perguntou. Tratava de voltar para a realidade e

desfrutá-la enquanto durasse.

— De que fazer roupa é arte.

Lavínia elevou as sobrancelhas, gratificada com seu comentário.

— Você acredita?

— Se tivesse se visto vestida com minhas cortinas! - exclamou

ele. Lavínia riu, mas rápido voltou a ficar muito séria.

— Se quiserem que pague as cortinas posso...

— Sobram-me cortinas – interrompeu ele. Olhou a hora. — E

mais, neste momento devem estar pendurando as de reposição.

— Conte-me: como posso ser diferente?

Nick sim era rápido e expedito. Ou só o fazia para que ela

deixasse de lado o assunto do roubo, Lavínia não soube. De qualquer

modo, a atitude conseguiu lhe fazer esquecer o triste que se sentia

por ter que despedir-se dessa viagem de sonhos e dele, e relaxou.

— Em minha opinião, têm muito bom gosto para a roupa -

respondeu detrás de um sorvo de chocolate.

— Sim, isso já sei - respondeu Nick, que se esquecia de relegar

a humildade quando não era preciso fazê-lo. Lubrificava uma torrada

com geleia de morango, comia uma atrás de outra. — Mas não me

refiro a escolher boa roupa, mas sim a que a roupa me faça sentir

diferente.

— Diferente como?

— Um pouco mais... implacável - contou ele. Lavínia riu.

— Implacável?

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— Sim, essa é a palavra - assentiu antes de introduzir a torrada

inteira na boca. Como gostava da comida! Tanto que já quase não

parecia esse que virtualmente não tinha provado um bocado no

jantar no Hilton. Lavínia arqueou as sobrancelhas.

— Ainda mais? - brincou. Nick ficou sério.

— De verdade acredita que pareço implacável? - perguntou com

os olhos muito abertos e a boca ainda cheia.

Lavínia suspirou perguntando-se como dar resposta a essa

pergunta, porque se alguém queria aparentar algo era porque

disfarçava sua verdade, e se ela o tinha acreditado implacável quando

em realidade não o era, devia-se a que Nick fingia muito bem.

— Se quiser que te diga a verdade, acredito que a roupa não

pode fazer alguém como não é, mas se acreditarem que o é, pode

colaborar.

— Não entendo o ponto de vista - interveio Nick com o cenho

franzido. Engoliu com força o que antes mastigava.

— Que me parece que te esforça tanto por te mostrar

implacável que todos acreditam que o é, assim por esse lado não têm

que preocupar-se. O perigoso seria se acabasse acreditando isso

você, porque se o fizesse, o falso Nick acabaria destroçando ao

verdadeiro. Mataria seu verdadeiro eu.

Nick ficou olhando. Seus olhos pareciam transpassá-la, embora

já não de modo luxurioso, mas sim pelo simples feito de que eram

reflexo de si mesmo.

Os olhos de Nick tinham deixado atrás o véu escuro que os

recobria e eram agora transparentes, como se estivesse permitindo a

Lavínia ver em seu interior porque não se atrevia a soltar o que

levava dentro.

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Ele se deu conta de que Lavínia estava entrando em seu

coração, por isso baixou o olhar, inventou um semi sorriso,

equipamento a que se esforçou por soar distendido.

— Eu gosto do chocolate - disse. Tinha o nariz que para a

Lavínia era tão perfeito dentro da taça. — Isto não é chocolate, é

água suja.

Lavínia riu e bebeu, como ele, um pouco de "água suja".

— Vai me contar como te fez engenheiro? – interrogou. — Os

amigos contam suas coisas, não?

Nick não pareceu nem remotamente incômodo como na

primeira oportunidade que lhe tinha formulado quase a mesma

pergunta, mas sim se fazia evidente que o tema não lhe trazia boas

lembranças.

— Estudei seis anos na Universidade de Buenos Aires – brincou.

Lavínia inclinou a cabeça e umedeceu os lábios de uma vez que

esboçava um sorriso pormenorizado. Nick baixou o sedutor olhar e

adicionou: — Posso te contar em troca como me fiz conhecido?

Lavínia assentiu. Não queria obrigá-lo a nada e valorava que,

embora de maneira implícita, ele tivesse tido a honestidade de lhe

dar a entender que não queria recordar como ou por que tinha se

feito engenheiro.

— Ganhei uma licitação para um projeto nacional – explicou. —

Um para construir uma ponte importante.

— Deve ter sido um grande orgulho para você e para os teus -

aventurou Lavínia.

Nick não respondeu, mudou de tema como quando ela tinha

falado das cortinas, desta vez para proteger-se a si mesmo.

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— Tenho um presente para você - anunciou.

Lavínia sorriu. Seu rosto se iluminou como o despontar do sol

da manhã. Fazia muito tempo que não recebia um presente.

— Para mim? - Nick procurou no bolso do casaco e dali extraiu

um papel. Ela o leu. — O que é isto?

— Não quero que desça deste navio com essa roupa - explicou

ele.

— Devo-lhe uma valise cheia de objetos, se esqueceu?

— E a que utilizei para abordar... - explicou ela, ainda

surpreendida pelo valor do crédito em seu favor para ser utilizado nas

lojas do Paradise. — Sinto muito, Nick, não posso aceitá-lo.

Ele estirou uma mão para tomar a da mulher. Os dedos de

Lavínia tremeram. Ela o olhava com os olhos verdes de deusa

romana, muito abertos, assustada por quão forte era o sentimento

que despertava.

— Quero que me perdoe - argumentou Nick.

— Te perdoar? - ela se encolheu de ombros. — Por que?

Nick baixou o olhar.

— Devia me dar conta de que era diferente.

Lavínia tragou com força. Acaso ele queria dizer que ela não era

uma de suas "amiguinhas"?

— Diferente? - exigiu saber. — Diferente como?

— Sabe o que quero dizer...

Havia algo que impedia Lavínia terminar de interpretar aquilo

que tinha pensado primeiro, e não descansaria até saber o que era.

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— Por que sou diferente, Nick? - insistiu.

Ele não teve mais opção que explicar.

— Deixei-te duas passagens sobre a mesa de noite sem pensar

em que para vir teria que deixar de trabalhar, e, além disso, subsistir

aqui. Nesse momento não recordei que era...

Ele se interrompeu. Percebeu que os olhos da Lavínia se

obscureciam, mas não alcançava a compreender a razão.

Ela sim: pedia-lhe perdão e lhe obsequiava com roupas porque

era pobre, não porque a quisesse, nem porque se importasse dela.

Nick só se preocupava com ele mesmo, por seu próprio ego, porque

se sentia culpado. Mas não ia calar com dinheiro. Não.

Retirou a mão que Nick lhe tinha tomado com pressa.

— O era o que? - indignou-se. — Pobre? Sou diferente de suas

amiguinhas porque sou pobre?

Ele ficou congelado, como se sua intenção tivesse sido

interpretada mal ou suas palavras. Mas em lugar de esclarecer-se,

enterrou-se; quase parecia que o fazia de propósito.

— Necessitasse uma boa soma para vir aqui, mais se perderam

você...

— Não te incomode em seguir falando - espetou ela ao tempo

que elevava uma mão em gesto preventivo. A seguir rasgou o vale

em quatro partes que logo jogou sobre a mesa com desdém.

— Sabe o que? Pode conservar seu presente e suas desculpas.

Conheço pessoas muito mais pobres que eu, e não precisamente pelo

dinheiro. Entre elas, você. Pessoas tão pobres que nem sequer sabem

quem são. Com licença.

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Lavínia ficou de pé e, doída como estava, afastou-se. Esperava

que Nick a chamasse, que tentasse desculpar-se por havê-la ferido,

mas não se surpreendeu de que ele não o fizesse. De fato também

lhe tinha machucado onde mais doía, só que não sabia.

— Quero te ajudar - escutou que lhe falava Nick da mesa

enquanto a via afastar-se. — De todas as formas que possa fazê-lo.

Por favor, me chame se necessitar algo.

Embora tenha escutado tudo com muita claridade, Lavínia não

se voltou.

Patrícia se aproximou de Nick. Faltava menos de meia hora para

que o navio atracasse no porto de Buenos Aires e ele se internou a

beber uísque no bar desolado. Via-se tão arrumado com o reflexo do

sol matinal lhe dando em cheio na metade da cara que a Patrícia lhe

acelerou o pulso.

— Passou um bom momento ontem à noite com a

costureirinha? - perguntou com ironia.

Nick mordeu o lábio inferior e sorriu.

Quando ele girou a cabeça e elevou os olhos para ela, o desejo

foi entristecedor.

Patrícia apertou as pernas em seu vão intento por transpassar

aquele olhar azulado, mas se chocou com o muro de ferro que Nick

tinha construído dentro.

— Foi muito baixo, mas o que poderia esperar de você -

espetou ele em relação ao roubo do anel. — Não sei de que

telenovela tirou, mas teria sido justo que o televisionassem.

— Não sei do que fala - defendeu-se ela. Nick a olhou de cima

abaixo com desdém.

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— Sim, é completamente capaz – completou enquanto a

estudava. — Lástima que te tornou tão ambiciosa. O que fez foi

estúpido, infantil e perverso.

— Não te entendo, Nickito.

Nick pós de lado o copo de uísque com um gesto violento.

Tornando-se ameaçador quando elevou o dedo para falar com a

mulher, embora o fizesse em voz muito baixa.

— Isto não tem nada que ver com ela, assim deixe-a em paz.

— Não sei do que fala - cantarolou Patrícia.

— Não é por ela, nem é por você - continuou ele ignorando sua

intervenção. — É por mim.

Depois de dizer isso, Nick ficou de pé e passou ao lado como se

ela fosse apenas uma sombra.

— Espero tenha desfrutado da travessia - burlou-se enquanto

se ia.

Patrícia fechou os olhos. Todo o desejo que tinha experimentado

até fazia um momento se converteu em ressentimento.

Era impossível que ele não a desejasse. Tinha passado mais

tempo do habitual da última vez que se viram, sim, mas ele mesmo o

havia dito: era-lhe fiel até a morte. Tinha que ser assim.

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Capítulo 13

Elevou a cabeça quando escutou a porta do elevador. Viu

chegar Nick e aproximar-se de bom humor para seu escritório.

— Nick! - exclamou a mulher, que já ficava de pé abrindo os

braços com gesto maternal. — Como foi?

Nick se aproximou dela e respondeu ao abraço. Estavam

acostumados a manifestar esse tipo de afeto quando ninguém os via.

— Tudo saiu muito bem, Fi, melhor do que o esperado -

respondeu ele.

— Habilite este número, por favor.

Nick estendeu um papel com o cabeçalho do Paradise a sua

secretária e entrou no escritório. O trabalho atrasado devia chegar ao

teto, porque Pablo não podia dar conta de tudo enquanto ele estava

ausente.

Fi se sentou no escritório e manipulou o aparelho para habilitar

o número, ação que interrompeu quando o reconheceu. Tinha-o

bloqueado não fazia muito tempo.

Suspirou. Resultava evidente que por fim alguém real tinha

chegado à vida de Nick. Só esperava que não fosse como Patrícia

Cólon.

A lembrança dessa má mulher ainda lhe revolvia o estômago.

Patrícia fazia o impossível por separá-la de Nick, alertada porque ela

sabia muito bem que classe de mulher era essa que tinha roubado o

coração e a ilusão de seu moço. Separá-los devia ser quão único

Patrícia não tinha conseguido, porque o resto... o resto Nick o tinha

dado tudo.

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A tarde que Nick conheceu Patrícia o sol iluminava a fachada do

edifício gótico da faculdade com singular esplendor. O outono ainda

não tinha despido todas as árvores, por isso alguns ramos com suas

folhas se refletiam como sombras nas janelas. A rua ocultava seus

segredos com o ruído do trânsito posterior ao meio dia.

O primeiro que chamou a atenção de Nick foi o conversível

vermelho que lhe passou ao lado enquanto ele caminhava rumo à

entrada. Era impossível que passasse despercebido, igual à mulher

que o conduzia. Ela levava óculos de sol, o cabelo de uma cor

castanho avermelhado solto e volumoso, os lábios no tom de seu

carro em contraste com a pele fina e branca. O reflexo do sol naquele

cabelo, os brilhos da chapa do pegeout e o inalcançável da figura

celestial que o conduzia enfeitiçaram Nick, deixaram-no boquiaberto e

ditoso. Gostava de admirar a beleza em todas suas formas, por isso a

seguiu com o olhar até que o veículo desapareceu do alcance de sua

vista.

Por um momento tinha conseguido esquecer-se inclusive de que

lhe iria apresentar seu trabalho na classe dirigida pelo professor

Cólon. Estava acostumado a ficar nervoso quando ia ser avaliado,

embora sempre o fosse muito bem. Gostava de ensinar, era ajudante

de uma das cadeiras de Estruturas do primeiro curso, mas resultava

bastante tímido, para opor isso dele eram as classes que quase

pareciam particulares. Reunia-se em pequenos grupos de trabalho e

orientava a todos os interessados em superar-se. Ensinar o fazia

sentir-se útil e lhe permitia deixar algo de si nos outros. Ser professor

requeria de certa generosidade, porque o conhecimento era o mais

prezado que alguém podia transmitir.

Isso não tinha importância quando o aluno passava a ser ele.

Nunca tinha deixado de sê-lo, em realidade, e por isso faltava ao

menos um ano e meio. Estava em seu sexto ano de Engenharia Civil,

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mas era consciente de que não alcançaria render todos os exames

finais a tempo para terminar no fim do ano.

Caminhou até a sala de aula preparada para expor no quadro.

Enquanto esperava a chegada de seus companheiros, repassou pela

centésima vez as ideias que tinha feito para não esquecer nada de

tudo o que queria dizer em apenas vinte minutos, que eram os que o

professor Cólon dispunha para que cada aluno concentrasse as ideias,

e repetiu ao menos uma vez o começo de sua exposição.

Calou quando chegaram vários alunos juntos. Estavam

acostumados a reunir-se em grupos para conversar ou estudar antes

da aula, por isso depois chegavam os grandes grupos. Nick era bem

solitário, unicamente formava equipe quando tinha que preparar e

entregar algum trabalho em conjunto, do contrário sempre se

arrumava por sua conta. Levava-se bem com todos, mas não tinha

feito grandes amigos.

Quando o professor chegou, ficou de pé imediatamente, já que

até o momento tinha ocupado o assento do escritório. Saudou o

homem com um gesto feito com a cabeça e esperou a que todos se

calassem para que Cólon lhe desse a ordem de falar.

— Muito bem - disse o velho engenheiro respaldando-se na

cadeira. — O que preparou para hoje, Larrazábal?

Nick explicou uma revisão da teoria de Joukowsky e suas

aplicações em um problema construtivo concreto. Dispunha-se a

avançar com o que tinha recolhido do livro de Prandtl e Tietjens, mas

de repente esqueceu o vocabulário do espanhol. Ficou calado, com os

olhos fixos na figura escultural que acabava de atravessar a porta.

O senhor Cólon, ao igual ao resto da classe, notou sua

dispersão, por isso todas as cabeças giraram para a entrada. Ali

estava Patrícia, com seus jeans azuis e sua camisa vermelha,

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destilando beleza soberana. Ninguém a olhou mais de um momento,

mas para Nick o sol acabava de entrar por aquela velha porta e isso

merecia o silêncio.

— Perdão, não queria interromper - desculpou-se ela.

A voz ressonou nos ouvidos do moço, que ficava cada vez mais

nervoso por não poder continuar com sua exposição e porque todos

seus companheiros já tinham se dado conta de que o culpado

daquela mudez repentina era Patrícia Cólon.

O velho professor sentia adoração por sua filha. Fez-se evidente

porque a chamou com um gesto de sua mão e lhe ofereceu um

assento diante de todos.

— Esta é minha filha Patrícia, formada com honras em Ciência

Matemática.

Patrícia sorriu e se balançou brandamente, com aparência

envergonhada.

— Ai, papai... - resmungou.

— Pedi-lhe que ficasse na cafeteria, mas é ansiosa e veio me

buscar - adicionou o homem. Todos riram.

— É suficiente, Larrazábal - determinou a Nick. — Esteve muito

bem. Demos passo ao seguinte aluno porque parece que me vou ter

que ir cedo.

Ao dizer isso, olhou a sua filha com um sorriso. Não era

estranho que o velho senhor Cólon se sentisse igualmente enfeitiçado

em relação à mulher, que era toda sensualidade e cor.

O resto da hora, Patrícia bocejou cinco vezes, estudou o teto da

sala de aula outras tantas mais e acabou com a vermelha cabeça

apoiada no ombro de seu pai. Pouco depois de que isto acontecesse o

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senhor Cólon deu por terminada a classe e se retirou de braço dado

com sua filha.

Quatro horas mais tarde, depois de cursar a segunda e última

matéria do dia, Nick transitava pelo corredor rumo às escadas até

que uma poderosa voz o deteve em seco.

— Larrazábal - escutou. Foi como um canto. Deu-se a volta.

A alta e generosa figura de Patrícia se aproximava com suas

largas pernas, dando um passo diante do outro para que seu quadril

se balançasse com o compasso de seu movimento.

Nick ficou nervoso. O coração lhe pulsava como se uma tropa

se agitasse em seu peito rumo ao ventre e a entreperna, onde

estranhas mariposas batiam suas asas e lhe faziam transpirar a

palma das mãos.

— Senhorita Cólon - assentiu com respeitoso interesse.

— Pode me chamar Patrícia - exigiu ela, que já chegava a ele.

— Como te chamam?

— Nicolas. Mas todos me tratam por Nick - respondeu como se

estivesse dando lição como o professor. Ela sorriu.

— Eu gosto de seu nome, Nicolas – respondeu. — E você gosta

do meu?

Nick não tinha ideia de onde levava essa pergunta, mas se

esforçou por ser sincero e educado.

— Eu gosto muito, senhorita Cólon - assentiu.

— Patrícia! - assentiu ela enquanto ria.

— Patrícia - repôs ele.

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Patrícia ficou olhando. Nick não alcançava a entender suas

intenções, seu silêncio, mas o compreendeu quando ela seguiu

falando.

— Estou segura de que está pensando algo – insinuou. — Diga-

me, Nicolas, no que está pensando?

Nick tragou com força. Não podia lhe dizer que lhe roubava as

palavras, que quando a tinha na frente se amaldiçoava por ser um

nerd sem vida social ao qual somente faltavam óculos e uma gravata

borboleta para corresponder com seu acanhamento. Um menino que

nunca poderia sequer sonhar com uma mulher como ela.

— Estava pensando em... - queria mentir.

Tinha que fazê-lo, por isso ia dizer-lhe algo a respeito de sua

lição, ou possivelmente lhe cruzasse um pouco de Joukowsky antes

que palavras adequadas para uma garota que gostava, mas não teve

necessidade de dizer nada.

Patrícia elevou uma mão com a que fingiu acomodar a gola da

camisa e sorriu enquanto o interrompia: — Estava pensando em me

convidar a sair, sei. Aceito. Pego você às nove. Diga-me seu

endereço.

Nick não podia acreditar, Patrícia Cólon estava interessada nele!

Embora lhe provocasse certo medo que ela fosse nada mais nem

nada menos que a filha de seu professor, a alegria do triunfo não lhe

permitiu pensar.

Por esse tempo então, ele tinha vinte e três anos e ela vinte e

seis. Três anos de diferença que fizeram um racho em Nick, porque

nesse momento não pensou em que podia sentir-se envergonhado

porque a garota que gostava visse a casa pobre em que ele vivia,

nem que teria que ir trabalhar para seu pai se queria ter um pouco de

dinheiro para pagar a ela uma Coca-Cola ou, com sorte, o jantar em

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algum restaurante. Somente lhe importava conquistá-la e suprir com

sua paixão juvenil qualquer outra falta.

Nick chegou a sua casa em outro mundo. Não lhe faltava

experiência com garotas, mas todas tinham sido menores que ele e

de seu bairro. Também se tinha envolvido com várias que tinha

conhecido em discotecas e bares, nada muito distinto do que faziam

outros meninos de sua idade. De todos os modos, saía muito pouco

desde que tinha começado a cursar na universidade.

— Olá, mamãe! - exclamou nem bem entrou no hall, mas ali,

em lugar de achar a sua mãe, encontrou-se com Fi. — Olá, Fi -

saudou-a. — E minha mamãe?

— Olá, Nick - respondeu a mulher. — Está na cozinha.

— Obrigado.

Ainda com o livro de Prandtl e Tietjens que tinha tirado da

biblioteca na mão, Nick procurou a sua mãe, a quem achou na

cozinha. Aproximou e a beijou na fronte. A mulher de olhos cinzas

como os de seu filho sorriu e o abraçou pelo quadril. Ele deixou uma

mão apoiada sobre seu ombro e o acariciou enquanto falavam.

— Não vou jantar aqui hoje – avisou. — É uma pena porque o

que seja que está preparando cheira muito bem - seguiu dizendo.

Teresa sorriu.

— Obrigado - respondeu enquanto girava a cabeça para ele.

Dirigiu-lhe um olhar cheio de picardia. — O que te traz entre as

mãos, meu amor?

Sabia que seu filho tinha ficado sem amigos quando tinha

começado a universidade e que a gente que tinha conhecido aí não

era mais que companheiros de classe com os que se levava muito

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bem, mas jamais se viam fora dos trabalhos que tinham que fazer

juntos.

Ele sorriu com orgulho. Tinha um sorriso sensual e enigmático,

de lábios bem formados e dentes muito brancos.

— Menos averígua Deus e perdoa, MA – brincou. — Você me

dizia isso sempre quando te perguntava como vinham os bebês ao

mundo com apenas cinco anos.

Teresa riu com a resposta. Fi, que os olhava enternecida da

porta que comunicava a cozinha com o hall, também sorriu.

— Com os filhos, tudo o que diga poderá ser usado em seu

contrário - adicionou. Os três riram. Depois Nick se separou de sua

mãe e lhe avisou algo mais.

— Vou a casa do Octávio.

— Agora? - indagou a mulher.

— Sim, agora mesmo. Posso trabalhar ao menos duas horas

antes que fechem.

Nem bem escutou ao Nick subir as escadas, Teresa transmitiu

sua preocupação a sua querida amiga Fi.

— Deve estar necessitando de dinheiro - lamentou-se.

Fi lhe sorriu, pormenorizada. Esta vez não tinha nada que

adicionar.

Nick chegou ao grande piso da Construtora Larrazábal meia

hora depois. Os escritórios estavam localizados em um edifício

vidrado em pleno Microcentro. Ali esperava encontrar o escritório da

secretária do Octávio ocupado, entretanto o achou vazio. Pensou que

possivelmente Elisabete e seu pai podiam estar muito ocupados com

suas intimidades no escritório do arquiteto, mas desprezou logo a

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ideia. Já não eram amantes, que necessidade podiam ter de andar

fazendo amor às escondidas no escritório? Assim abriu a porta.

Ali não estava Elisabete, a não ser seu pai reunido com dois

investidores.

— Perdão - desculpou-se Nick. Falava com a voz abafada,

parecia evitar a maior quantidade possível de palavras. — Pensei

que...

— Nicolas! - interrompeu-o seu pai. — Já que ao fim decidiu

aparecer, nos alcance dois cafés e uma soda sem gás - Nick assentiu.

Enquanto se encaminhava ao bar do escritório, escutou que Octávio

comentava aos homens.

— Lhe ocorre vir para ver-me quando necessita algo. É igual à

mãe, não gosta de trabalhar. O que vamos fazer! Os filhos nem

sempre são o que alguém quer, não? Sobretudo se os fazemos com a

pessoa equivocada.

Disse-o com desdém, com ironia. Os homens riram acreditando

que era uma brincadeira. Possivelmente o era, mas para Nick

significava o princípio do que sempre acontecia cada vez que ia ver

seu pai. Apertou a garrafa de soda para segurar os nervos e se disse

que estava aí por um fim muito mais importante que qualquer outra

coisa, que tinha que suportar para obter o que necessitava e sair

correndo dali.

Serviu dois cafés e ficou de pé ao lado do escritório, esperando

novas instruções. Ninguém lhe prestou maior atenção. Não queria

pensar que era como um alto floreiro vazio de vida, preferia acreditar

que seu pai ao menos não lhe tinha pedido que se retirasse e lhe

permitia escutar os últimos dez minutos de sua reunião de negócios.

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Finalizado o encontro, os homens deram a mão a seu pai e

também a estenderam a ele, quem as estreitou com esmero e

amabilidade. Gostaria de ser importante, mas somente era o floreiro.

Elisabete entrou justo quando os dois homens saíam.

Surpreendeu-se ingratamente ao ver Nick, ele soube por que ela

entrou com uma cara e nem bem o viu a trocou por outra, uma muito

mais amarga que a anterior.

— Nicolas - disse a modo de saudação.

— Olá - respondeu ele.

Falou com Octávio ao ouvido, como se temesse que Nick

pudesse escutar os assuntos de trabalho dos que lhe falava e lhes

fazer perigar o negócio. Para não sentir-se excluído, ele se afastou

uns passos e se sentou no sofá que estava frente a uma mesa de

centro.

Elisabete saiu em seguida e fechou a porta atrás de si. Octávio

se sentou a seu escritório e começou a revolver os papéis que lhe

tinha deixado.

— E o que faz por aqui, Nicolas? - demandou.

— Vim trabalhar - explicou ele com simplicidade. O homem

fingiu um sorriso.

— Ah, sim? - burlou-se. — E o diz assim sem razão? Não me

serve que venha quando te dá vontade e na última hora, sabe? -

houve silêncio. — E por que hoje?

— Porque sim.

— Porque sim não é uma resposta, Nicolas. Manda-te sua mãe

por dinheiro? – silêncio. — Não é?

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Como lhe ia ocorrer pensar que pudesse ficar calado? Seu pai

indagava e pressionava até que obtinha a resposta que queria, e ele

nunca sabia escapar desse mau momento.

— Tenho que fazer algo hoje - esforçou-se por manter seus

segredos, sua privacidade, o que sua mãe respeitava, e isso que vivia

com ele, em troca Octávio não.

— E que mais pode ter que fazer que não seja estudar? -

repreendeu-o o homem.

— Tenho que sair.

— Sair? - burlou-se. — Por que não fica estudando? - Nick

apertou os punhos para suportar. Tudo por vinte e cinco pesos.

— Porque sempre fico estudando.

Nesse momento, Elisabete voltou a entrar no escritório

carregando outros papéis.

— E com quem vai sair? - continuou falando Octávio, sem se

importar se seu filho desejava ou não que sua amante, agora sua

concubina, soubesse de seus assuntos. De fato percebeu que a

mulher sufocava uma risada e dirigia um olhar cúmplice a Octávio.

— Com uma companheira da faculdade - mentiu Nick entre

dentes.

— Assim hoje sai com uma garota! - exclamou o pai. Nick leu

seu pensamento: acreditava - uma debutante.

— E o que diz sua mãe a respeito?

Nick se perguntou que importância tinha o que sua mãe

opinasse a respeito de sua intimidade, como se a Octávio tivesse

importado alguma vez o que Teresa opinasse a respeito de algo.

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— Nada - respondeu engasgando-se com o grito de que ela o

respeitava, não como ele.

Octávio sempre tinha tido o costume de controlar. Ninguém

podia fazer as coisas melhor que ele, ninguém trabalhava mais que

ele, e Nick se sentia terrivelmente incômodo cada vez que tinha que

compartilhar um espaço com esse homem que resultava ser seu pai,

com sua mulher ou os filhos que ela tinha de outro matrimônio.

Sentia-se um sapo de outro poço, uma moléstia, um estúpido. Tanto

necessitava o dinheiro que não podia rebelar-se. Tinha que seguir lhe

vendo a cara, suportando suas perguntas, suas humilhações.

— Bom - disse Octávio por fim - se quer trabalhar, teve sorte:

hoje tenho uns papéis que ordenar, mas não me serve que apareça

quando quiser. Venha todos os dias às nove da manhã em ponto.

— Não posso - respondeu Nick.

— Como que não pode? Se não tem nada que fazer.

— Tenho que estudar.

— Eu estudava e trabalhava, e mesmo assim me formei

arquiteto com honras. Vamos, mostrarei o que quero que faça.

Nick voltou a sentar-se no sofá azul de dois corpos que estava

diante da mesa de centro. Embora preferisse não pensar na

autoexigência que sempre se impunha como resultado daqueles

comentários que desde menino tinha ouvido da boca de seu pai, se o

fazia impossível desterrá-los de sua mente. Já tinham impregnado

fundo nele e não tinha ideia de como dirigi-los. Não sabia ser

diferente.

Seu pai lhe entregou uma pilha de folhas de papel vegetal.

— Ordena-os por grossura. Do mais grosso ao mais fino.

Entende?

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Nick não respondeu. Tinha estudado quase seis anos de

Engenharia Civil para aprender a ordenar papéis do mais grosso ao

mais fino, isso era o que seu próprio pai acreditava capaz de fazer.

— E sua mãe? - perguntou-lhe Octávio do escritório com ar

depreciativo. — Já foi procurar trabalho?

— Minha mamãe faz o que pode - desculpou-a ele. Octávio riu

com ironia.

— A sua mãe não gosta do trabalho - voltou a rir. — É uma

vagal.

Nick calou. Apertava os dentes.

— E seguem lhe chegando contas de telefone? - perguntou

Octávio um momento mais tarde.

— Não - replicou ele. — Assim e tudo, o dinheiro não cobre.

— O que vocês têm que fazer é administrá-lo melhor.

Nick levantou a cabeça e observou a seu pai com meia cidade

detrás de sua figura, que se abatia onipotente diante da janela. Era

fácil falar quando se tinha tudo e mais também.

— Para que comprou sua mãe um ventilador? - continuou

Octávio Larrazábal com seus ataques. Nick abriu os olhos como duas

moedas azuis.

— E você como sabe? - surpreendeu-se.

— Porque me chamou me pedindo dinheiro, por que poderia

ser? Já disse que não quero que me incomodem mais para esses

assuntos. Arrume-se com o que te dou porque quero que siga

estudando, ou que vá trabalhar.

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— Ela vai trabalhar - defendeu-a Nick. De fato estava cansado

de ver que sua mãe saia às oito da manhã, passava o dia esfregando,

e voltava às oito da noite só para que ele não tivesse que ir trabalhar

e descuidar o estudo.

— Se quiserem mais dinheiro, aprendam a ganhá-lo - continuou

Octávio sem interessar-se pelo que Nick dizia. Interrompeu-se de

repente para lançar um grito.

— Esse que está pondo nessa pilha se vê daqui que é mais

grosso que os outros! - falava do papel. — Preste atenção no que faz,

Nicolas. Se não puser atenção jamais poderá ser um bom arquiteto.

Nick suspirou.

— Estudo Engenharia - repôs.

— Muito mais fácil ainda! Quão único têm que fazer é calcular.

Quando se fizeram às oito e Nick disse que tinha que ir-se, seu

pai abandonou o escritório só para dizer a Elisabete: — Dê vinte e

cinco pesos a Nicolas - logo se dirigiu a Nick. — Espero que venha

mais frequentemente.

Depois de dizer isso, fechou a porta. Nick se aproximou do

escritório da mulher e esperou. Esta se dignou a olhá-lo momento

depois de tirar algumas notas. Contou prazerosamente o dinheiro e o

depositou sobre a mão estendida de Nick. Vinte pesos exatos.

— Meu papai disse vinte e cinco - reclamou ele em voz muito

baixa, respeitosa.

— Não eram vinte? - perguntou ela com dissimulação. — Disse

vinte.

— Disse vinte e cinco - repetiu Nick entre dentes.

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A mulher suspirou como se ele fosse uma moléstia e pinçou em

seus bolsos em busca de cinco pesos mais.

— Tome - disse entregando-lhe - mas acredite que vou lhe

perguntar o que disse na realidade.

Nick não respondeu mais que para saudar e retirar-se. Chegou

a sua casa com a dignidade pisoteada e se sentou à mesa onde sua

mãe e Fi já comiam o molho que Teresa tinha preparado. Falavam a

respeito de algo que tinha acontecido a sua mãe em casa de uma das

famílias para as quais trabalhava como empregada doméstica. Ambas

as mulheres tratavam de ignorar o mau humor de Nick porque

sabiam qual era a causa.

— E me disse que assim não se engomava - contava Teresa.

— Te disse? - surpreendeu-se Fi, que trabalhava de empregada

também. — E você o que lhe respondeu?

— Disse-lhe que a empregada doméstica era eu e que sabia

engomar muito bem. E que não penso trabalhar mais lá. Sabem que

queria deixar essa casa onde sempre tinham algo que dizer, mas

nunca me tinha atrevido.

— O problema é que não querem trabalhar - lançou Nick com

crueldade involuntária. Sua voz soou fria, desencantada da vida.

— O que disse? - perguntou sua mãe. Uma rajada de dor sulcou

seu olhar.

— Que procuram desculpas para não trabalhar, por isso brigam

com todo mundo.

— Isso não é certo, disse-me que não sabia...

— Blah, blah, blah.

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— Nick - intrometeu-se Fi, que o conhecia desde que era um

menino. — Acredito que está sendo injusto com sua mamãe.

Nick se sentiu indignado com a resposta dessa velha que

acreditava uma autoridade para lhe dizer o que tinha que fazer em

sua própria casa.

— E quem se preocupa com quão injustos são todos comigo? -

proferiu antes de ficar de pé e fugir para seu quarto.

A música eletrônica se escutava inclusive até a esquina até às

nove da noite. O velho centro musical prateado se apagou logo

quando Nick viu o conversível vermelho na porta de sua casa. Então

guardou os vinte e cinco pesos no bolso da calça junto com o resto do

dinheiro que ficava para a condução até a faculdade, baixou as

escadas de uma corrida e se aproximou de sua mãe, que bordava

uma toalha no corrimão.

— Mas que lindo que está meu filhinho! - exclamou ela ao vê-lo

com sua calça negra e sua camisa cor verde oliva. Penteou o cabelo

com gel e a pele cheirava a pós-barba e uma colônia que gostava.

Nick tinha esquecido a breve discussão que se desenvolveu

durante o jantar. Fi já não estava em casa e sua mãe também parecia

ter esquecido a briga, como sempre acontecia com as mães.

— Tchau, mamãe - saudou-a antes de lhe dar o beijo de sempre

na bochecha.

— Tchau, minha vida. Tenha muito cuidado, por favor.

Nick assentiu.

Voltar a ver Patrícia lhe fez esquecer todo o vivido essa tarde e

lhe reavivou o coração, que começou a pulsar com força uma vez que

subiu ao carro e a viu embainhada em seu vestido vermelho, com o

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cabelo lhe emoldurando a cara. Entretanto, algo em sua expressão o

deixou intranquilo.

— Esta é sua casa? - interrogou ela dissimulando um gesto de

provação. Nick se sentiu incômodo.

— Estamos a ponto de nos mudar - mentiu. A mulher pareceu

relaxar-se ante a notícia.

Nick estava nervoso. O penetrante olhar de Patrícia o

perturbava. Por sorte ela não demorou em conduzir.

— Aonde vamos? - perguntou ele. Não podia lhe confessar que

temia que não lhe chegasse o dinheiro para pagar, morreria de

vergonha se lhe acontecia algo assim. Ela deixou escapar um sorriso

indecifrável.

— Não se preocupe com isso. Replicou.

Embora a resposta não o consolasse, guardou silêncio.

Patrícia conduziu até um bar de Porto Madeiro. Deixou o

automóvel no estacionamento que estava em frente, cruzaram a rua

e caminharam até o lugar. O ambiente era escuro e recatado, e a

música soava a todo volume. Patrícia se aproximou de uma mesa.

Sorrindo.

— Olá! - exclamou a todos os que se achavam ali sentados.

Outros responderam do mesmo modo.

Patrícia passou eternos minutos conversando com essa gente e

ignorando Nick, que tinha cruzado os braços atrás dela e estudava o

ambiente distraído. Ela reparou nele quando se lembrou de que

estava ao seu lado e então se sentaram em uma mesa.

Patrícia bebia um gole atrás de outro. Ele, por não ser menos,

imitou-a.

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— E o que fazem seus pais? - interrogou ela.

— Meu papai é arquiteto - respondeu ele. Ao menos para isso

lhe servia seu pai, para não ter que dizer que sua mãe era faxineira.

— Ah, sim? - ela semicerrou os olhos, especulativos.

— E quem é?

— Octávio Larrazábal - respondeu ele. — É um grande

arquiteto.

— Não o conheço - replicou ela sem piedade. — Construiu com

meu papai alguma vez?

— Não acredito.

— Então não deve ser tão grande - lançou a mulher. Em

seguida percebeu a angústia que sua resposta havia trazido para os

formosos olhos cinzas desse bombom desperdiçado e riu.

— É brincadeira, tolo - disse ao tempo que lhe roçava a ponta

do nariz com a unha larga e vermelha.

Essa noite Nick gastou todo o dinheiro que levava, e mesmo

assim não lhe alcançou para pagar. Sentiu-se envergonhado ao não

poder arcar com o gasto de uma saída, por isso decidiu que alguma

vez devolveria a Patrícia tudo que não pudesse lhe dar agora. Queria

lhe dar tudo.

Voltaram para o carro. Patrícia conduziu em direção à costa.

Estava séria. Nick pensava que tinha se ofendido porque não tinha o

dinheiro para lhe pagar as bebidas, mas em realidade ela estava

desapontada porque Nick nem sequer a tinha beijado.

Ele quis ser amável.

— É muito bonita - disse como se falasse com um anjo.

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Patrícia estacionou o automóvel à borda do caminho do rio,

onde muitos casais se detinham para ter sexo. Girou a cintura e se

aproximou.

— Ah, sim? - replicou. Mordendo-se o lábio. Sorriu com lascívia.

— Você gosta?

Nick respirava com agitação. Já não sabia como conter sua

ereção. Ela respirava tão perto de sua boca que não tinha ideia de

por que ainda não a beijava. Porque era a filha de seu professor,

possivelmente. Porque a queria a sério.

— Muito - disse com honestidade. E não resistiu.

Nick apanhou os carnudos lábios femininos entre os seus,

transportando a Patrícia ao universo que tinha saudades. Ela não

ficou atrás. Rodeou o pescoço de Nick com os dedos e pegou os seios

a seu peito musculoso. Subia e baixava para que o roce da roupa lhe

arrepiasse os mamilos.

Patrícia estava longe de ser uma inexperiente. Nick tampouco o

era, mas respeitava o corpo da mulher de seu encontro, tanto que

apenas o tocava em partes que não a fizessem sentir-se invadida.

Ela, em troca, apalpava o torso masculino sem reparos, em toda sua

magnitude. Primeiro o peito por sobre o tecido da camisa, depois os

ombros e a parte superior das costas. Logo deslizou os dedos pela

coxa do moço, foi subindo a mão até apanhar o fecho de suas calças.

Apertou um pouco antes de baixá-lo para sentir o que ali se escondia,

sabia que assim o excitava e ela se ia pondo em forma.

Nick inspirou profundamente como resultado desse contato.

Enquanto lhe baixava o zíper, sua fantasia se propagava. Respirou

Patrícia, seu forte perfume, seus lábios que se moviam sobre os seus

e lhe umedeciam a boca. O sabor do lábio avermelhado, a textura de

seus dentes. Eram sensações que turvaram Nick, porque nunca tinha

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tido relações com alguém tão ousado, a não ser apenas com garotas

que não eram virgens nem tampouco peritas.

Depois do zíper, ela se dedicou ao botão. Depois de havê-lo

dominado, passou os dedos por debaixo da cueca boxe e rodeou o

membro de seu amante com toda a mão até deixá-lo para fora do

amparo que lhe oferecia a roupa. Pulsava entre seus dedos e a ela

dava água na boca. Ao mesmo tempo, deslizou a outra mão por

debaixo da camisa masculina. Roçou o ventre plano e o flanco até

alcançar as costas. Abraçou-se a ele para pegar os seios ao peito do

homem de novo. Nick sentiu os mamilos erguidos de Patrícia e ela

emitiu um gemido.

Separou-se dos lábios de Nick para lhe passar a língua pela

orelha. Logo abaixou o rosto. O jogou a cabeça atrás só de imaginar

o que ela estava a ponto de fazer. Y... Oh, quando o fez! Nunca o

tinham feito assim e se sentia como que transportado. Patrícia

sugava, mordia, apertava. E com ela Nick aprendeu a conter-se,

porque teria ejaculado em sua boca se não tivesse um bom controle

de si mesmo.

— Não me importa, faça-o - sugeriu com voz sedutora. — Faça-

o.

— Não posso - replicou ele.

— Faça-o...

Mas Nick não o fez, não se atreveu. Seu desejo de amparo e

sua tenra experiência atraíram a Patrícia, que pelo geral se deitava

com homens muito versados em sexo. Sentiu-se uma professora.

Pinçou em sua bolsa e dela extraiu um preservativo. Não fazia

falta que o colocasse. Nick sabia como fazê-lo, mas ela não o

permitiu. Negou com a cabeça quando ele quis tomá-lo entre as mãos

e ela o colocou. Logo passou uma de suas largas pernas por sobre as

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de Nick e se sentou escarranchada sobre ele. Ela não levava calcinha.

Não levava roupa interior! Nick desvairou. Patrícia o olhou nos olhos.

Em suas pupilas se dilatavam o desejo e a perdição.

— Não há nenhum lugar ao que queira me levar, Nickito? -

indagou, presa do desejo.

— Ao altar - sorriu ele, tão agitado como ela. Patrícia riu.

— Algo um pouco mais próximo.

Nick não respondeu. Morria por levá-la ao lugar que ela sugeria,

mas não ficava mais dinheiro para ir a um motel nem podia convidá-

la a sua casa porque não vivia sozinho.

— Juro que queria – confessou - com toda a alma, mas...

— Sei - interrompeu-o ela, próxima a ele. Embalava-lhe o rosto

barbeado entre as mãos. — Não têm onde cair morto – concluiu. —

Mas é tão lindo!

E voltou a beijá-lo com tanta urgência que tudo terminou

acontecendo nesse mesmo lugar, à borda do rio e entre outros

automóveis onde ocorria o mesmo, com o tinido musical da copiosa

chuva que golpeava o teto.

Como a água, Patrícia se deixou cair para que o membro de

Nick lhe enterrasse até o mais profundo. Quando alcançou esse

batente esperado, ela jogou a cabeça atrás ao tempo que deixava

escapar um gemido gutural, poderoso, e se abria o vestido para que

seus peitos ficassem ao descoberto.

Eram grandes, proeminentes pelos silicones, e os mamilos se

arrepiaram porque toda ela estava muito quente. Nick reagiu.

Apanhou-os entre os lábios, sugou com força; apertava os seios dos

flancos para que se avultassem no centro, e ao parecer, quanto mais

bruto se comportava, a Patrícia mais a avivava.

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Não soube como, mas logo se encontrou com os ombros ao

descoberto. Tinha-lhe aberto a camisa e a descia pelos braços, mas

deixou as mangas a meio caminho. Deslizou as mãos para cima e

apertou com os dedos os ombros de Nick. Girou a cabeça para onde

isso acontecia. As unhas vermelhas lhe enterravam na carne e oh,

quanto lhe doía! Mas esse amor estava destinado a doer e ele assim o

queria, porque dor era tudo o que merecia; o fazia sentir-se vivo.

Patrícia se agitou convulsivamente com o homem dentro dela.

Subia e baixava enquanto o arranhava, apertava-o, feria-o. Então

Nick também a machucou. Apertou-lhe as nádegas nuas e a ela isso

também a fez sentir-se renovada. Quando ele era bruto e duro, sentia

que voava.

— Como está, minha vida...! Dê-me mais – exigiu. — Mais

duro! Me chupe - ofereceu-lhe um mamilo e ele o pôs na boca. — Me

dê duro, bem dentro. Dê-me!

Moviam-se com rapidez inusitada, com desenfreio. E quando o

choque dos corpos se tornou brutal e extremo, tudo ficou negro. Ela

gritou, ele gritou. Tinham acabado.

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Capítulo 14

Patrícia deixou Nick em sua casa, eram cinco da manhã. Depois

dessa noite, ele já não pôde esquecê-la. Trabalhava no escritório de

seu pai todas as tardes, não gastava um só centavo na faculdade

para economizar para o fim de semana e às vezes descarregava em

sua mãe a inferioridade que seu pai o fazia sentir. O fazia sem dar-se

conta, sem poder controlá-lo, porque não sabia canalizar tanta dor de

outro modo.

Assim passou um mês no qual Nick resistia a tudo por Patrícia:

as humilhações de Octávio, as largas caminhadas para economizar o

dinheiro do transporte para a faculdade, os meios-dias sem comer

para não investir em um almoço que subtraísse um gole a Patrícia no

sábado de noite.

Quando iam ao bar, falava com os amigos de sua namorada, o

via feliz e seguro de si mesmo; comprava-lhe presentes e flores.

Como lhe tinha passado poucas vezes na vida, sentia que flutuava em

uma nuvem.

Na quarta noite que faziam amor no automóvel - viam-se

sozinho aos sábados - lhe disse que a amava. Ela o olhou ao tempo

que saltava sobre seu membro erguido para que lhe afundasse mais e

mais até levá-la ao orgasmo.

— O importante é que você goste - replicou antes de enterrar a

cara de Nick entre seus avultados peitos torrados.

Passaram outro mês vendo-se aos sábados. Nick não se

cansava de falar com todos de sua formosa namorada e de explicar

quão maravilhosa era a vida desde que Patrícia tinha aparecido.

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Uma noite de sexta-feira, dois de seus amigos da universidade

foram ao bar de Porto Madeiro e ali estava Patrícia Cólon, a famosa

namorada do Nick, beijando-se com um arrumado homem de sua

idade.

Quando quiseram contar-lhe Nick os insultou. Disse-lhes que o

invejavam, que eram os piores amigos que jamais poderia ter tido e

que sua namorada era uma mulher irrepreensível.

No sábado, ela o deixou plantado. A esperou três horas sob a

chuva em uma esquina do centro, mas Patrícia jamais apareceu e não

atendia o celular. No domingo ligou para sua casa. A empregada lhe

disse que tinha saído. Não a achou até a quinta-feira.

— O que quer, Nicolas? - perguntou-lhe ela a contra gosto. —

Disse-me Rosita que me chamou toda a semana. Não têm nada que

fazer?

— Preocupei-me - respondeu ele. — No sábado não apareceu.

— Não pude.

— O que aconteceu? Está bem?

— Não pude - repetiu ela. Com seu tom de voz lhe fez saber

que não pensava lhe dar nenhum tipo de explicação.

— Podemos nos ver? - insistiu ele com a voz tomada pela

angústia.

— Hoje? Impossível!

— Quero te ver.

— Não atue como um adolescente, Nick - espetou-lhe ela. —

Vemo-nos no sábado.

E desligou.

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Que ela fosse três anos mais velha às vezes pesava sobre Nick,

porque Patrícia o tratava como a um inexperiente, sensação que se

acrescentava porque ele não era solvente. Não tinha dinheiro, e o

dinheiro punha contente a uma mulher. Iria demostrar que, até sem

riquezas, era todo um homem.

Na sexta-feira foi procura-la no bar ao que ela frequentava.

Comprou-lhe flores e levou o anel que tinha pertencido a sua avó

materna para lhe oferecer um compromisso sério. Ele era um homem

e ela tinha que se dar conta.

O coração lhe acelerou ao ver o conversível na porta. Pensou

que sua namorada podia estar com seus amigos, mas isso não lhe

importou. Estava seguro do que faria, e se Patrícia o rechaçava em

público, bem valia a pena correr o risco. Não o rechaçaria, ela o

amava, e ele confiava em si mesmo.

Entrou no lugar, o primeiro ao que ela o tinha levado. A

escuridão lhe impediu de ver com clareza a princípio até que os olhos

se acostumaram à penumbra e alcançou a divisar seu esbelto corpo

coberto de objetos vermelhos diante do balcão de bebidas.

O coração lhe paralisou. Ela estava sentada junto a um homem

elegante e arrumado, visivelmente mais velho que ele. Notava-se em

seu traje e em seu porte distinto. Ele tinha a mão em sua cintura.

Nick viu que ela sorriu e depois se jogou em cima como uma

prostituta.

Beijou-o com ardor, com desejo insatisfeito, e logo voltou para

seu lugar para beber um gole.

Nick estava congelado. De repente se deu conta de que uns

quantos pares de olhos indiscretos se detiveram nele, possivelmente

porque o tinham visto com Patrícia em outras oportunidades e agora

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observavam seu desengano com curiosidade e até com um pouco de

diversão.

Deixou o buquê de flores sobre uma mesa vazia e se aproximou

dela. Tragou com força o nó de dor que lhe tinha formado na

garganta, procurava assim recompor-se antes de falar, embora não

tivesse ideia de como poderia fazê-lo.

— Patrícia - ao final a voz lhe saiu afogada, como uma súplica.

Ela se deu a volta. O sujeito que a acompanhava não se dignou a

fazer o mesmo.

— Nick - resmungou a mulher com frieza. — O que está

fazendo aqui?

— Vim por você - respondeu ele com a voz murcha.

— Disse-te que não atuasse como um adolescente, e isso é

exatamente o que faz - espetou-lhe com crueldade.

— Patrícia...

Patrícia não podia acreditá-lo: Nick estava a ponto de chorar,

continha o pranto! Soprou impaciente, tomou sua bolsa de mão e

saiu do bar. Não queria que ele a fizesse passar vergonha diante de

seus amigos. Nick a seguiu. Pensou que ela o conduziria até seu

automóvel, mas não o fez. Tão somente se sentou em um banco

frente ao rio.

— Nick - disse-lhe quando ele se sentou a seu lado. — Parece

que não entendeu.

— O que fazia, Patrícia? - perguntou ele, ignorando o que lhe

dizia, detento de sua dor.

— Será melhor que não voltemos a nos ver.

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As palavras espremeram o peito de Nick, fizeram-no sentir

desolado.

— Mas Patrícia...

— É o melhor.

— Por favor, não o faça – suplicou. — Perdoo-te. Não importa o

que tenha feito, eu te perdoo.

Ela sufocou uma risada de incredulidade. Nick a beira do

pranto! Isso sim que era gracioso! Isso lhe passava por meter-se com

meninos.

— Não estou te pedindo perdão, Nick - replicou dura e

inflexível.

O tom zombador de sua voz feriu Nick no mais profundo.

Recordou-lhe as brincadeiras e humilhações que suportava desde

menino por parte de seu pai. Quando este lhe arrebatava os cadernos

das mãos para controlar que tivesse feito a tarefa, ou quando lhe

dizia que sua mãe era a pior mulher do mundo. Sim, essa mesma que

para ele, em troca, era sua vida.

Entretanto, ignorou todos esses pensamentos porque Patrícia o

amava, não era como Octávio, e lhe demonstraria que sentia o

mesmo por ela.

— Não me deixe - suplicou. Os olhos se encheram de lágrimas.

— Te amo.

— Isso não é suficiente, Nicolas - respondeu ela com os olhos

frios e a voz impaciente.

Em realidade gostava de ver Nick nesse estado, fazia sentir-se

forte e onipotente, mas de uma vez estava apurada por voltar com

seu novo namorado.

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— Não te dá conta? Não é homem para mim. - Começou a

enumerar com os dedos: — Ainda te falta receber, vive com sua mãe,

depende de seu pai para subsistir. Não posso perder cinco anos, que

é o que pelo menos te levaria a estabelecer em uma casa medíocre,

transando em meu automóvel! Não sou uma qualquer para estar

fazendo isso, seria bom que o entendesse. É você o que deveria me

pedir desculpas por pretender me fazer perder tempo. Quero um

homem independente e solvente. E você sabe bem que não o é.

— Prometo-lhe isso - apressou-se a dizer ele. Tentou tomar as

mãos, mas ela as apartou. — Prometo que o vou ser.

Patrícia riu, irônica.

— E quando será isso, Nick?

Nick não podia responder. Não tinha ideia de quando poderia

converter-se no que ela esperava nem se alcançaria alguma vez o

nível de vida que Patrícia pretendia. Tampouco queria mentir. Só

sabia que sempre tinha desejado ser solvente para não depender do

Octávio e tinha muito claro que faria tudo o que estivesse ao seu

alcance para que esse objetivo se cumprisse.

— Prometo isso!

Ele chorava. Patrícia não resistiu. Ficou de pé e se aproximou

do degrau que a internaria outra vez no bar.

— Basta, Nick – ordenou. — Deixemos a birra para lá. Deveria

arranjar alguém de sua altura, em todos os sentidos. Adeus.

Nick não se moveu. Observou Patrícia afastar-se, essa figura de

sonhos que o abandonava quando ele mais a amava.

Comprou cerveja e bebeu até não ter um só centavo mais.

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Depois acreditou que voltar com semelhante bebedeira a sua

casa seria uma falta de respeito para sua mãe, então ficou vagando.

Minha pobre mãe pensou. E voltou a chorar.

Caminhou pelas ruas enjoado, consternado pela dor que

ocasionava a perda. Apoiou-se contra uma parede acreditando que

vomitaria - nunca tinha se embriagado - mas em troca acabou

chorando de novo, detento das lembranças. Sua mamãe... Tinha sido

tão injusto com ela. Parecia-lhe vê-la nos banheiros, colocando a mão

em sujeira alheia para lhe sustentar.

— Olhem! - exclamou uma voz detrás dele. — Chora uma

joaninha!

Os quatro patoteiros tentaram lhe tirar a pequena parte de

dignidade que ficava, e ele se rebelou. Golpeou seu destino, sua

pobreza, sua estúpida idade. A ira lhe deu forças, mas quatro eram

demais para um ébrio, e acabou estendido no piso, moído a patadas e

sem o anel de sua avó.

Tudo lhe saía mal: seu pai o humilhava, sua mãe limpava

imundície alheia para sustentá-lo, sua namorada não era para ele.

Caminhou até o bar outra vez. Sentou-se no mesmo banco no qual

Patrícia, sua adorada namorada, tinha-o deixado. Tudo lhe dava

voltas. Então vomitou e logo adormeceu.

— Né, nenê! - uma peta lhe afundou o atrativo e piorado rosto.

— Nenê!

Nick abriu os olhos e elevou a cabeça. Um policial lhe falava

desde seu metro oitenta e cinco de estatura.

— Se não for, levo-te a delegacia de polícia. Onde vive?

Nick ficou de pé sem dar resposta e caminhou rumo a sua casa.

Já tinha amanhecido. Até que chegou ao destino se fez às dez da

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manhã. Sua mãe o esperava de pé, com os braços cruzados diante da

mesa da cozinha.

— E onde estava? - foi a primeira pergunta. Ele quis avançar

sem responder, mas ela elevou a voz, obrigando-o a deter-se.

— Onde estava, Nick?

— Me deixe em paz - replicou ele. Sua mãe, como só umas

poucas vezes na vida tinha feito, gritou-lhe.

— Não vai responder! – reclamou. — Enquanto viva sob meu

teto, aqui não chegará bêbado nem golpeado, nem à hora que te

ocorra, muito menos sem avisar. Não me deixará com a palavra na

boca nem dará respostas de adolescente desrespeitoso, porque eu

não te criei assim. Entendeu?

Nick, que tinha ficado quieto de pé diante da escada com o

primeiro grito, não respondeu. Baixou a cabeça e recebeu paciente a

carícia que sua mãe lhe proferiu na nuca.

— Vá, sente-se - pediu ela com a voz suave de arrependimento.

Não queria gritar com seu filho, mas era tanto o medo que tinha

sofrido por ele que até se sentia capaz de lhe dar uma bofetada.

Nick obedeceu. Sentou-se à mesa com mais gana de estar

morto que vivo e esperou a que sua mãe lhe voltasse a falar.

— Alguma vez tinha feito uma coisa assim - disse-lhe antes de

secar o nariz com um lenço. — Como foi que te embebedou? Têm

aroma de cerveja por toda parte.

— Como quer que não me embebede, se alguma vez antes

tinha tomado? - replicou ele. Em sua voz se evidenciavam a dor e a

angústia de sentir-se desolado.

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— Todos tomaram menos eu, o estúpido do Nicolas que durante

o secundário passava encerrado em sua casa porque nunca tinha um

centavo para fazer outra coisa.

— Não tem nada de bom tomar, Nick - quis consolá-lo sua mãe,

mas ele não se contentou com essa justificativa.

— Nunca fiz nada! - exclamou ao tempo que chorava. — Nunca

pude. Todos saíam, todos bebiam, todos faziam o que queriam menos

eu. Eu nunca pude fazer nada!

— Têm toda a vida por diante...

— Mas minha vida está transcorrendo agora e eu estou morto!

Teresa o abraçou. Seu filho não respondeu ao abraço.

— Não diga isso, filhinho, por favor - replicou sua mãe, afogada

em lágrimas. Conhecia a dor de seu filho e chorava não só porque o

sentia igual a ele, a não ser além porque não podia saná-lo.

— Me acredite, Nick – tentou. — Se pudesse te teria dado um

melhor pai, também uma melhor mãe, mas isto sou eu e não posso

ser outra coisa.

— Nem sequer posso conquistar uma boa garota! - reclamou

ele, zangado com a vida. — Vou terminar como um qualquer saído de

um bairro de má sorte. Nem sequer isso! Acabarei sozinho, sentado

frente ao fogo com você!

Teresa suspirou e tomou a mão molhada. Nick limpava as

lágrimas com os dedos.

— Nick, é um rapaz formoso com toda uma vida por diante.

— Vou me atirar para baixo do trem! - exclamou ele ignorando

as palavras de sua mãe. — Isso é o que vou fazer! Para que quero

viver se não tenho nada por que lutar?

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— Algum dia conhecerá uma boa mulher, terá filhos com ela e

formará sua própria família, que não tem por que ser como a nossa.

Você não é Octávio e essa mulher não será como eu.

— Já a conheci e não me quer. Não me quer porque não tenho

nada e minha mãe não é mais que uma faxineira. Você limpa a merda

de gente como ela todos os dias!

Nick tremeu com a força do pranto e da culpa. Acabava de dizer

algo que não sentia, algo que não valia a pena dizer por que feria a

pessoa que mais amava no mundo. Mas ele era mau, tinha-o herdado

de Octávio, e não podia controlar.

— Perdão – balbuciou. — Me perdoe, mamãe, me perdoe... -

suplicou amontoando as palavras. Sua mãe lhe beijou a cabeça e

ignorou o dano que lhe tinha causado por ajudá-lo a sanar as feridas,

pois sempre as teria abertas.

— Se essa mulher se envergonha de você porque é pobre,

então não é uma boa mulher e não te quer.

— Você o que sabe? - ofendeu-se ele. — Patrícia é a melhor

mulher do mundo, sou eu o que não a merece.

— Não digo que não o seja, mas...

— Mas sou eu o que não tem nada que lhe oferecer! -

interrompeu-a. — Nada!

Seu pranto desconsolado abriu uma profunda ferida no interior

de sua mãe, que lhe apertou a cabeça contra seu ventre com

desespero. Nick se afundou em seu roupão, devorou as mangas de

cor violeta e sussurrou entre o pranto:

— Me perdoe por tudo, mamãe – suplicou. — Me perdoe. Te

amo.

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— E eu amo você, meu céu - respondeu Teresa e lhe beijou o

cabelo emaranhado. Sustentou-o assim, contra seu ventre, como se

desejasse protegê-lo em seu interior de novo, prolongando o

momento.

Uma semana depois, Teresa encontrou a resposta para as dores

e afecções físicas que a afligiam fazia ao menos três meses. Tinha

câncer ósseo.

A toda a dor de sua alma, Nick teve que somar o fato de que

perderia a única pessoa que o tinha amado como ele necessitava, e

assumir que ficaria sozinho. Completamente sozinho.

Recordava que alguma vez havia dito a sua mãe que passaria

sua vida com ela como se isso fosse a pior coisa do mundo. Agora

não só desejava que isso acontecesse, mas sim se sentia

atormentado pela culpa de havê-la ferido com palavras vazias, com

coisas que em realidade não sentia. Sua mãe tinha sido uma vítima

do ressentimento de seu pai e logo do dele. A escrava de suas

frustrações tinha descarregado em sua mãe sua dor sem

compreender a dela.

Teresa tinha se casado com Octávio apaixonada, quando os dois

trabalhavam em uma fábrica. Enquanto isso, o homem completou

seus estudos e quase imediatamente sua excelente capacidade lhe

permitiu crescer em sua carreira. Muito em breve sua mulher passou

a ser um estorvo, insignificante para ele com o primário mal

completado, e a deixou em casa. Sem trabalho e sem amigas, Teresa

se encerrou em seu lar para atender a seu bem-sucedido marido

enquanto ele a enganava com Elisabete, sua secretária, no escritório.

Desde que se converteu em um homem de êxito, Octávio se

tornou frio e despótico. Controlava cada movimento de Teresa; criava

a Nick, que era um menino sensível como sua mãe, com dureza

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desnecessária, e relegava a sua família em função de que se

sentissem ínfimos frente a sua grandeza.

Um bom dia se cansou de fingir e se foi. Foi reclamando a

metade da casa e exigindo que Teresa e seu filho se mudassem a

uma moradia menor, uma que ele tinha comprado entre as

propriedades que negociava. Teresa, que podia ter sozinha educação

primária, mas era uma mulher inteligente, pediu um empréstimo,

pagou por um advogado e obteve o divórcio, a casa em São Telmo e

uma pensão com a qual Octávio teria que contribuir até que Nick

completasse os estudos universitários. Naquela época, ele tinha sete

anos.

A Construtora Larrazábal cresceu ao ponto que muito em breve

o dinheiro que Octávio enviava todos os meses para seu filho

equivalia à soma que pagava pelo seguro de seu carro. Não por isso e

porque as coisas foram aumentando, inclusive os gastos escolares de

Nick, mas não pagou um centavo mais. Então Teresa procurou

emprego e acabou esfregando casas.

— Não vais trabalhar mais - disse Nick a sua mãe depois de

escutar a trágica notícia de sua enfermidade, embora ainda não

caísse na conta do que isso implicaria para sua própria vida. Fazia

tempo que desejava trabalhar, mas ela não o permitia para que

terminasse seus estudos, que lhe consumiam quase todo o dia.

— E eu não vou mais a trabalhar com Octavio - adicionou

depois. — Estou farto de suas humilhações. Penso procurar outra

coisa que nos permita viver e seguir estudando.

— Seu pai quer te ensinar o negócio - Teresa tentava resgatar a

seu filho do rancor. Se ela tinha que partir, queria deixá-lo

acompanhado, não queria deixá-lo sozinho.

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— Classificando papéis? - riu ele com ironia. Fez-se um silêncio

que Nick rompeu com uma reclamação, com o desespero de sentir-se

impotente. — Tudo isto é uma merda, mamãe! Por que tinha que

adoecer?

Nick teria lutado contra qualquer um que desejasse machucar a

sua mãe ou obrigá-la a abandoná-lo, mas como lutar contra uma

enfermidade? Como resignar-se a que sua vida se apagava?

— Filho... - continuou a mulher. — Não viva pedindo explicações

à vida. Não guarde rancor em seu coração, porque isso amargurará

seus dias.

— Esse é seu problema - reclamou Nick. — Com a desculpa de

não guardar rancor ao Octávio sempre o justificando, perdoando e

deixando que faça o que queira, inclusive que me humilhe. Nunca foi

capaz de me defender.

— O que quer que lhe diga? Que é um estudante brilhante, que

será um engenheiro muito mais capaz e bem-sucedido que ele algum

dia?

Nick não a olhava. Sorriu com ironia.

— Não pode acreditar isso de mim – replicou. — Nem sequer eu

acredito.

— O será - sua mãe tomou a mão. — Eu sei que sim.

Trataram de viver os últimos meses de vida de Teresa como se

tudo fosse continuar. Só houve uma ação cotidiana e na aparência

transcendente que se converteu na mais importante de suas vidas.

Foi uma tarde invernal de sol em que Nick desenhava um trabalho

sobre a mesa e sua mãe entrou como de costume, com a fumegante

taça de chocolate quente entre as mãos. Estava mais magra que

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nunca, pálida e dolorida, mas ainda se levantava da cama. Ainda lhe

levava a taça ao seu quarto.

Nick girou a cabeça quando se abriu a porta. Teresa se

esqueceu de toda dor e lhe sorriu como sempre fazia porque não

desejava preocupá-lo. Os lábios de Nick tremeram, pestanejou com

ligeireza: sua mãe não voltaria a entrar em seu quarto, o chocolate

jamais voltaria, ou seja, igual ao preparado com suas mãos cheias de

amor; teria que conformar-se com o que preparasse o empregado de

uma cafeteria por um salário, ou que fizesse ele, que só albergava

dor e maldade, por isso sua infusão sairia amarga. Sua mãe já não

voltaria a lhe sorrir da porta nem a lhe perdoar todas suas injustiças;

ninguém o faria porque só ela o amava tanto para isso, nem o

abraçariam para que a dor fosse diminuindo até quase parecer que

jamais tinha existido.

Deu-se conta de que nunca voltaria a ter tudo isso porque sua

mãe morreria. Então ficou de pé e correu a ajoelhar-se frente a ela,

chorando como um menino.

— Não me deixe, mamãe, por favor – suplicou. — Não me deixe

sozinho!

Teresa lhe acariciou o cabelo molhado. Nick tinha tomado banho

fazia um momento e cheirava a colônia, quão única podiam comprar.

— Eu sempre vou estar com você - prometeu-lhe ela com

integridade. — Sempre te sorrirei, orgulhosa do maravilhoso homem

que é, tal como estou fazendo hoje. Isso é tudo o que deve levar de

mim em sua memória. O resto deve ser futuro. O grandioso futuro

que eu te vou enviar do céu.

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Capítulo 15

Ninguém cuidou melhor de Teresa no último lance de sua vida

que Filomena Roseiras. Conheceram-se trabalhando em um hotel, no

qual ambas eram empregadas. Em pouco tempo, Teresa tinha sido

afastada por problemas na coluna, mas Fi permaneceu em sua vida

como sua grande amiga.

Limpava a casa, atendia a Teresa, preparava a comida de Nick

como uma segunda mãe. Ele trabalhava entregando pizzas de dia e

estudava de noite, tinha tido que trocar de volta e mesmo assim

deveu duas matérias. Foi nesse último tempo que Nick, como Fi tinha

a idade de sua mãe e fazia tanto por eles, tomou um carinho

especial, uma devoção que levaria em seu coração para sempre.

Quando Teresa morreu, Nick e Fi estiveram mais unidos que

nunca. Abraçados, sozinhos no meio do enterro e a desolação. Nick

estava indefeso, por isso ela o protegeu, e ele se deixou proteger. A

vida estava sendo muito dura com aquele rapaz que sempre tinha

demonstrado ter uma alma muito sensível, muito profunda para um

mundo vazio de amor e de confiança.

Mas o que parecia fraco resultou ser bastante forte.

Possivelmente foi a secreta promessa que sua mãe lhe fez iluminada

pelo sol do inverno ou que com cada dor ele se fazia mais insensível,

levantava um muro mais sólido para não sofrer, mas não se deixou

vencer. Continuou trabalhando e foi num desses meios-dias quando

encontrou algo interessante no jornal que comprava Juan, o dono da

pizzaria.

O governo publicava licitação para construir uma magnífica

ponte entre Buenos Aires e Colônia, e oferecia em troca milhões de

pesos para quem apresentasse o projeto ganhador.

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Levou a folha do jornal para casa. Essa noite, na faculdade, o

que menos fez foi prestar atenção à matéria que se ditava. Pensou

todo o tempo no projeto, em como se concursaria em uma licitação

sem ter uma empresa reconhecida e em como se assinava um

projeto de construção sem ser engenheiro ou arquiteto.

Na manhã seguinte, Fi passou a lhe preparar o café da manhã,

como de costume. Na falta de marido e filhos, ela tinha a ele.

Sentado à mesa, Nick lhe mostrou a folha do periódico.

— Olhe isto - pediu assinalando o aviso. — O que acha?

Fi leu a grandes rasgos o que dizia e não lhe pareceu algo

possível.

— Pensa participar? - perguntou, preocupada porque Nick

tivesse outra desilusão mais na dura vida que vivia. Pensou no que

haveria dito Teresa a respeito, mas como não soube com exatidão,

preferiu dizer o que ela pensava.

— Sim - assentiu ele. Fi suspirou. Não queria desalentá-lo, mas

tampouco podia permitir que se fizesse falsas ilusões. As

probabilidades de que ganhasse o projeto eram quase nulas, e temia

que investisse tempo e energia em algo que jamais daria os

resultados esperados.

— Aqui diz que é para empresas. Supõe-se que seja necessário

ser o dono de uma construtora – argumentou. — Não quero ser

desmancha-prazeres, Nick, mas me parece que deveria esperar e te

estabelecer para...

— Me estabelecer? - interrompeu-a ele. — Isso não vai ser

possível em um ano, pelo menos, atrasei-me bastante em relação ao

que tinha planejado. Além disso, tenho a capacidade. - Era a primeira

vez que Nick dizia algo como isso. — O único que me falta é a pauta

assinada.

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Fi tragou com força.

— Assina-a? - perguntou com voz tremente. Tinha medo.

— O projeto tem que estar assinado por alguém titulado.

Nick parecia tão convencido de que podia consegui-lo que ela

não se atreveu a discutir mais. Talvez a louca ideia se esfumasse de

sua mente como se foram tantas outras.

Mas enquanto conduzia sua motocicleta de volta à pizzaria, Nick

só pensava em um nome: Pablo Díaz, seu companheiro da primária

com quem se tinha cruzado um par de vezes em eventos conjuntos

da Universidade e que se formou arquiteto no ano anterior.

Chegou a pizzaria, tirou o casco e entrou para deixar o dinheiro

do último pedido que tinha levado. Não alcançou a atravessar toda a

soleira da porta que já lhe deram uma nova ordem.

— Nick - falou a caixa - tem que levar um pedido a Avellaneda.

Nick olhou seu relógio: faltava menos de um minuto para as

três. Embora aceitar um pedido de último momento em um trabalho

novo lhe outorgaria sem dúvida o visto bom de seu empregador,

sabia que em Província jamais obteria uma boa gorjeta. Além disso,

tinha algo muito importante que fazer a revanche de sua vida, e não

pensava falhar.

— Já vou – respondeu. — Passe para o Mariano. Tenho algo

importante que fazer.

Jaun arqueou as povoadas sobrancelhas negras.

— Ainda não são três! - recriminou vendo seu entregador

afastar-se. Nick se deteve na porta. Olhou de novo o relógio de pulso,

deixou passar trinta segundos e replicou: — Agora sim.

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Enquanto a motocicleta avançava, Nick ia pensando no que diria

a Pablo quando este abrisse a porta. . Olá, pensou, Lembra-te de

mim? Sou Nick, seu companheiro da primária. Cruzamo-nos um par

de vezes em eventos da Universidade.

O bairro de Pablo era tranquilo e bonito. Sua casa era uma linda

residência com um jardim cheio de flores. Notava-se que ali tinha

passado a mão de um arquiteto. De um bom arquiteto com noções de

paisagismo, em realidade.

Deixou a moto junto às grades que davam à rua, tirou o casco e

tocou a campainha. Do interior da casa saiu uma mulher que teria

pouco menos idade que a que tivesse tido sua mãe.

Nick a recordava de alguns aniversários que tinha passado

nessa casa, era a mãe de Pablo.

— Olá - saudou-a com a voz e um gesto de mão. — Recorda-

me, senhora Díaz? Sou Nicolas Larrazábal, fui companheiro de seu

filho na primária.

A mulher franziu o sobrecenho.

— Nicolas? - perguntou.

— Sim. O filho de Teresa.

— Ah, Nick! - exclamou a mulher em seguida. — Como não te

reconheci antes? Por Deus, que grande e bom moço está!

Nick sorriu.

— Obrigado, senhora - respondeu respeitoso. — Estou

procurando o Pablo.

— Ele não está neste momento, foi ver o terreno de uma amiga

minha. Vai projetar sua casa - adicionou com orgulho materno. —

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Não acredito que chegue muito tarde, pode deixar a moto no jardim e

esperá-lo no hall, eu adoraria saber de você.

Karina era uma mulher cordial e carinhosa. O fez entrar, serviu-

lhe um refrigerante como toda mãe e lhe perguntou por sua vida.

— Faltam-me duas matérias para me tornar engenheiro -

contou ele.

— Que bom! - exclamou a mulher. — E sua mamãe? Sempre

me lembro dela.

Nick baixou a cabeça e o olhar. Cravou-lhe o coração, mas se

esforçou por recompor-se em seguida.

— Minha mamãe faleceu - respondeu. A mulher cobriu a boca

com uma mão.

— Teresa faleceu? - entristeceu-se. — Oh, Nick! Sinto-o tanto.

Pode contar conosco para o que necessitar.

Nick voltou a olhá-la. Sorriu com certa rigidez.

— Obrigado – respondeu. — De verdade, agradeço.

Pablo chegou meia hora depois. Não reconheceu Nick e até o

saudou ao passar, como se não tivesse estado esperando-o e fosse

uma visita de sua mãe.

— Este é Nick - assinalou Karina para tirá-lo de seu engano.

Pablo tinha deixado uma mão sobre o ombro de sua mãe, ação que

trouxe lembranças a Nick.

— Lembra-te dele?

— Nick? - perguntou-se Pablo esfregando a cara.

— Nick, seu companheiro da primária!

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— Ah, Nick! - Pablo parecia tão amável como sua mãe. — Como

está?

Estendeu a mão para que Nick a estreitasse, e ele assim o fez.

Karina se retirou argumentando que os deixava sozinhos para que

falassem de suas coisas. Depois de repetir que sua mãe havia

falecido porque Pablo perguntou por ela e de explicar duas ou três

coisas tolas a respeito de sua carreira universitária, Nick foi ao ponto

que de verdade lhe interessava graças à pergunta de seu

companheiro.

— Foi toda uma surpresa te encontrar em minha casa. O que te

traz por aqui?

Nick suspirou. Agora vinha o difícil.

— Uma proposta - respondeu.

— Não será relacionada com minha irmã, não? - brincou o

arquiteto. Nick riu.

— Não. Trata-se de uma licitação. Uma espécie de concurso.

A princípio, Pablo julgou a ideia descabelada, mas com o correr

dos minutos e com a energia que Nick depositava no projeto, acabou

por pensar que possivelmente não era tão louco, e acessou a ajudá-

lo.

Nick se oferecia a projetar tudo e só requereria sua revisão e

sua assinatura.

Pablo não deixaria que fizesse tudo sozinho, mas tampouco

prometeu fazer muito mais que revisar e assinar. Preferia ocupar-se

de trabalhos seguros, como a casa para a amiga de sua mãe, que de

grandes ilusões com poucas probabilidades de converter-se em

realidade.

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Assinar e fazer-se responsável por um projeto ideado por outro,

para cúmulo, ainda estudante, não era nada fácil. Requeria confiança

e trabalho, por isso preferia manter-se perto de Nick enquanto

levasse adiante o projeto que ele deveria assinar, embora não

contribuísse muito por falta de tempo.

Estava fazendo seus primeiros trabalhos como arquiteto e isso

requeria atenção se desejava abrir seu próprio escritório algum dia.

Fi, que tinha acesso à casa de Nick, chegava às três da tarde

para lhe preparar o almoço. Depois, enquanto ele estava na

universidade, limpava um pouco a casa e o esperava com o jantar

pronto. Ele comia o mais rápido possível e logo se encerrava no

mezanino com a música eletrônica a todo volume e litros de chocolate

quente para desenhar sua ponte. Ao meio-dia, com só três horas, às

vezes duas dormidas, ia trabalhar na pizzaria, e assim repartia seus

dias entre trabalho, estudo e ilusões.

Aos domingos se reunia com Pablo e lhe mostrava como estava

ficando o projeto. Explicava-lhe os cálculos, que era a parte mais

chata porque se falhava em algo a estrutura não resistiria e Pablo

acabaria entre as grades. Claro que para isso primeiro tinham que

ganhar, e como Pablo pensava que era impossível, não prestava

muita atenção enquanto Nick soasse tão convencido de que estava

fazendo tudo bem. Contribuía com algumas ideias em relação ao

desenho, e logo se despediam.

Fi não desejava fazer Nick cair na realidade, mas temia que

todas essas fantasias que ele albergava em relação a esse projeto se

desmoronassem. Como um estudante de Engenharia Civil podia

superar as grandes construtoras com anos no mercado nacional e

internacional? Os pesos pesados se apresentariam e entre eles Nick

não era mais que um pobre diabo que trabalhava no armazém de sua

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casa forrado de desenhos de um super-homem que tinha inventado

aos dezesseis anos.

Passava os sábados curvado sobre o tabuleiro, que estava no

armazém, planejando. Fi levava chocolate quente e biscoitinhos

várias vezes ao dia, e o observava trabalhar sem descanso, sem

remissão. Parecia que o objetivo que ele tinha encontrado para seguir

vivendo eram esses cálculos, esses desenhos que riscava e coloria

como um menino entretido.

O projeto foi finalizado no último dia de recepção das

apresentações. Nick tinha pintado as vistas em aquarelas, tão

maravilhosas que pareciam reais, tão belas que faziam crescer o

desejo de ver realizadas. Frente a trabalhos preparados com

programas de informática, o seu parecia primitivo e pobre, mas

levava implícitas suas horas sem descanso, a arte que saía de suas

mãos, a morte de sua mãe.

Fi foi a primeira a olhar a apresentação. Espremeu-lhe o

coração quando notou que o trabalho seria entregue em nome de

Construtora Hagen e Associados.

— Seu sobrenome legal, o primeiro e válido, não é Hagen -

indicou-lhe Fi. — É Larrazábal. Não terá problemas com isso?

— Não sou Nicolas, nem sou Larrazábal - explicou Nick com voz

serena, mas implacável. — Sou Nick Hagen e penso fazer honra a

quem me deu isso tudo, não a ele. Nada dele merece ser parte de

minha glória, nem sequer seu sobrenome.

Com "ele" se referia a seu pai. Fi sabia e por isso se sentiu

comovida primeiro pelo amor incondicional e profundo que Nick

professava por sua mãe, e logo porque ele soava mais firme e

convencido que nunca. Tinha tanta fé que a assustava. Não queria

vê-lo cair, não queria que saísse machucado.

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Um mês depois, Nick recebeu um chamado. Seu trabalho era

finalista e tanto ele como Pablo tinham que apresentar-se a uma

entrevista para defender sua ideia diante dos representantes

governamentais.

A Construtora Hagen e Associados se ouvia como um vestido

novo entre reconhecidas figuras como Lowenstein e demais

sobrenomes importantes, e isso despertou o interesse de todos.

Nick falou muitíssimo mais que Pablo. Ele sempre tinha sido de

tímido para o envergonhado, até lhe custava expor trabalhos na

universidade, mas diante dos membros do governo, pareceu todo um

perito. Era-o. Tão seguro de si mesmo, tão inteligente, tão arrogante

envolto nessa beleza física que recobria seu interior destroçado, que

conquistou a todo mundo.

Felicitaram-no por sua juventude e ímpeto e lhes disseram que

conheceriam a decisão em outro mês de espera. Todo isso estava

muito bem para Pablo, que se sentia realizado pelo simples feito de

ter sido chamado para uma reunião tão importante, mas Nick era

como uma máquina descontrolada. Ele não parecia sequer contente

por essas palavras. Era como se acreditasse que isso era quão

mínimo tinham que lhe dizer, ou pior, como se as palavras desses

estranhos não valessem nada porque não saíam da boca que ele

esperava, que era a de seu pai, e exigia muito mais. Nick queria

ganhar.

Um mês e meio depois, obtiveram a notícia de que o projeto

ganhador era o seu.

Fi não podia acreditar, Pablo não podia acreditar... Nick tomava

com tanta naturalidade que dava medo. Para ele, nada tinha passado,

nada trocava: não se sentia de acordo com isso. Queria muito mais.

Tinha encontrado algo com o que encher o vazio de sua alma, e não

se deteria até que estalasse, até que morresse de tanto ambicionar,

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lutar, conseguir, voltar a ambicionar, e tudo sem um ápice de gozo ou

de emoção, tudo sem sentir-se satisfeito nunca.

Octávio jamais se comunicou com ele para felicitá-lo. Nick

tampouco o esperava, mas embora não o demonstrasse, não podia

dizer que não lhe tivesse importado. Seu pai não estava acostumado

a participar de concursos nem licitações do governo, e tampouco

ganhou uma. Seu nome jamais tinha sido tão importante como o de

Lowenstein ou Cólon, que de repente tinham passado a soar

pequenos frente ao prodígio que representava Nicolas Hagen.

Um estudante de Engenharia Civil que, endividado ainda com

duas matérias para obter seu título, tinha passado a perna nos

grandes da construção. Nick era um competidor imparável, uma

eminência. Nick era um risco iminente.

Choveram-lhe projetos, e dos mais importantes. Viu-se

obrigado a contratar pessoal, capatazes, operários, e quando quis

dar-se conta, tinha o título de engenheiro em uma mão e dinheiro a

mares na outra.

O primeiro que fez foi associar-se com Pablo. A empresa era

dele, mas seu amigo de infância tinha passado a ser parte do seleto

círculo de escassas pessoas de sua confiança. Fi era a outra, a

primeira. Exigiu-lhe que abandonasse seu trabalho de empregada e a

converteu em sua secretária pessoal com um salário muito superior

ao de qualquer outra. Fi não se animava, dizia-lhe que não tinha

secundário e que ela não sabia nada de números, empresas nem

computadores. Nick a obrigou. E aprendeu rápido.

Para Nick existiam duas classes de pessoas: as importantes e

as demais. Não oferecia sua amizade verdadeira a ninguém, não

confiava em ninguém, não entregava um só sentimento a nenhuma

pessoa que não fossem Fi ou Pablo.

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De dia, a mulher era sua secretária; de manhã e de noite, era

sua segunda mãe. Ia a sua casa, preparava-lhe o café da manhã, iam

juntos trabalhar e retornavam juntos para casa, onde ela preparava o

jantar.

De trabalhar na garagem do Pablo, passaram a um escritório,

logo a um piso, por último ficaram com os quatro últimos andares de

um alto e luxuoso edifício de Porto Madeiro.

Quando Patrícia Cólon soube que Nick, aquele rapazinho que

tinha deixado escapar converteu-se no melhor partido que jamais

tinha tido, odiou-se. Mas logo recordou que ele a tinha amado e que

o amor não passava tão rápido, razões que lhe serviram para

serenar-se. Só tinha que reencontrar-se com ele. Voltar a vê-lo,

medir o terreno e confirmar se na piscina ainda havia água. Bastaria

olhá-lo aos olhos para saber se seguia sendo o menino muito sensível

e profundo que tinha conhecido. Se assim fosse, seria muito fácil

dominá-lo.

Uma noite, apareceu na vida de Nick como se tivesse surgido

do nada.

— Larrazábal - chamou-o no meio do salão no que se

desenvolvia uma festa, como o tinha feito uma vez no corredor da

universidade.

Nick reconheceu a voz em seguida e volteou para confirmar sua

suspeita. A figura de Patrícia, pouco mudada da última vez que a

tinha visto, ainda o cegava. Tinha os lábios um pouco mais grossos,

possivelmente tinha posto colágeno, e os olhos mais rasgados, mas

em essência era ela, a mesma de sempre.

— Patrícia - replicou. Um só olhar bastou para que ela soubesse

que ele não a tinha esquecido.

— Tomamos um café em algum lugar um pouco mais privado?

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Voltar a vê-la despertou lembranças em Nick, trouxe-lhe para o

coração a sensação de que vivia no passado, de que sua mãe não

estava morta. Na procura de prolongar essa maravilhosa sequência,

aceitou sair do salão, ser conduzido até um bar e sentar-se a uma

mesa com Patrícia. Pouco depois, estavam casados.

Nick acreditou que tinha tudo: tinha êxito, trabalho desejado, a

mulher que sempre quis. Entretanto, não se sentia satisfeito: esse

acaso era realmente o futuro que sua mãe lhe tinha prometido que

lhe enviaria do céu? Possivelmente a felicidade fora algo que para ele

estava negado, porque não sabia ser feliz. Lutava, sangrava-se,

chegava ao topo, não parecia nada. O círculo que lhe angustiava se

repetia em cada aspecto de sua vida, sem descanso.

Do primeiro dia que Fi encontrou Patrícia em casa de seu filho

postiço, soube que essa mulher não trazia nada de bom entre mãos.

Nick desejava umas bodas pequenas, ela exigiu uma festa de luxo, e

foi concedida. Nick preferia seguir vivendo em sua casa, mas Patrícia

exigiu um piso em Porto Madeiro, e foi dado. Possivelmente pensava

que com a mudança se tiraria Fi de cima, mas não foi assim.

— Quando pensa dizer a essa mulher que já não faz falta que

venha todas as manhãs? - perguntou a Nick um dia na cama.

— Patrícia... - Nick se negava a manter outra vez essa

conversação.

— Diga-lhe que já não necessitamos mais dela neste

departamento.

Patrícia não entendia que para Nick, Fi não era uma faxineira,

não era uma empregada.

— Não posso fazer isso, você sabe.

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— Por que não? - manifestou ela. — É tão fraco que não pode

dizer a uma velha que deixe de incomodar!

— Devo muito a Fi, e a amo.

— Ai, sim, Nick! - prosseguiu ela com a brincadeira. — Você

deve isso a meio mundo, sobre tudo a mim.

Nick não respondeu, mas tampouco fez conta. Fi continuou lhes

preparando o café da manhã, indo com ele ao escritório,

encarregando-se da limpeza de sua casa. Com isso, a ira de Patrícia

cresceu ao extremo de ficar olhando fixamente para Fi, com grande

ódio. Não alcançava a entender o porquê, sendo Nick flexível e

manipulável, ela ainda não tinha podido conseguir que se tirasse a

velha de cima.

Seis meses depois do casamento, Patrícia se sentiu aborrecida.

Sempre lhe ocorria em suas relações, que por essa mesma razão não

duravam mais que uns poucos encontros sexuais. Quis viajar e

viajou, enquanto Nick se resignava a seus desejos, se é que ficava

algum, por agradá-la.

Fi sabia muito bem o que passava cada vez que Patrícia ia de

viagem sozinha, mas Nick preferia ignorá-lo. Uma vez tinha chegado

a discutir com Fi para defender Patrícia, com o qual a mulher

compreendeu que Nick não entraria em razões porque não queria

reconhecer que havia se equivocado. Até que não visse sua esposa

derrubando-se com qualquer, um quase como lhe tinha acontecido

aquela vez quando era jovem, permaneceria cego e mudo.

Nick teve que aprender a lutar com seus competidores, sobre

tudo com Horácio Lowenstein, que estava acostumado a jogar

malotes pesados com o objetivo de conseguir projetos grandes e

executá-los. Tinha tomado cobranças com Nick desde que este lhe

tinha arrebatado a ponte sendo um novato; considerava-o perigoso.

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Ao mesmo tempo, Nick ia sendo trovado por Patrícia: trabalhava sem

cessar para lhe dar o nível de vida que ela esperava, converteu-se em

um amontoado de tensão que canalizava com seu novo vício: o

cigarro. Nem pensava em ter filhos.

Patrícia adorava a vida social, e entre suas viagens e a

quantidade de horas que Nick passava trabalhando, já quase não

compartilhavam tempo a sós. Fi se dava conta de que ela o tirava de

cima como se lhe incomodasse ou lhe impedisse de viver sua vida,

por isso o evitava fora da cama.

Patrícia nunca falava de sua vida juntos, nunca planejavam

nada. Patrícia vivia o mero presente, adorava a beleza de seu marido

e seu desempenho sexual, podia dizer que era o melhor amante que

tinha tido, sem dar-se conta de que a razão era que ele acreditava

amá-la.

Isso não lhe bastava. Tal como Octávio Larrazábal, Patrícia

Cólon nunca estava de acordo com nada que Nick fizesse. Então Nick

se esforçava cada vez mais por agradá-la, sonhando que ela seria

feliz a seu lado enquanto ela sozinha era feliz em camas alheias. Nick

se exigia até já não ser ele mesmo. Se se tinha convertido em uma

máquina no projeto da ponte, agora era um robô. Parecia preocupado

e triste, fumava todo o tempo, vivia sujeito aos desejos e exigências

de Patrícia. Mas assim não estava sozinho. O trabalho, os caprichos

de sua mulher e os vícios enchiam sua vida vazia de propósitos, vazia

de amor.

Fi tinha terminado por odiá-la. Em lugar de significar a

redenção para Nick, Patrícia tinha sido sua ruína, o novo Octávio

quando ele tinha conseguido deixar ao outro para trás. Para ela, tudo

o que Nick fazia estava mau ou incompleto.

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Um fim de semana, Nick se foi de viagem de negócios. Passou

por seu apartamento para despedir-se de sua esposa, mas ela não

estava.

O destino lhe pôs as coisas em claro quando por uma tormenta

o vôo foi cancelado. Esperou uma hora no aeroporto, onde lhe

informaram que não haveria decolagens até o amanhecer, e por isso

retornou para casa para ganhar umas horas de sono.

Um silêncio sombrio invadia o lugar. Nick pensou que sua

esposa dormia, mas ao chegar à habitação matrimonial, encontrou-se

com a ingrata surpresa de que ela armava uma valise. Quando ele

reparou nisso, Patrícia saía do closet carregando uns objetos.

— Nick! - exclamou. Fazia-se evidente que ele a tinha

encontrado fazendo algo que desejava lhe ocultar.

Nick se apoiou no marco da porta, de braços cruzados.

— Meu voo foi cancelado - explicou sucintamente.

— Ah - disse ela em resposta, agitada e com o rosto fechado.

Havia-se posto nervosa. — E até quanto pensa ficar? - perguntou

depois.

Nick, pela primeira vez nesses dois anos e meio de matrimônio,

sem contar os seis meses de preparativos, decidiu não permanecer

indiferente.

— O que se passa Patrícia? - perguntou-lhe aproximando-se

com passo lento e voz pausada. — Não se supõe que uma esposa

apaixonada deveria receber contente de ver que seu marido esteja de

retorno antes do esperado?

Ela se afastou dele dando um prudente passo atrás. Nick não

voltou a aproximar-se e sentou-se na cama.

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— O que se passa Patricia? – continuou. — Não é feliz comigo?

— Estou com alguém mais - soltou ela sem piedade, sem

olhares.

A adaga se enterrou em Nick e o obrigou a baixar o olhar.

Respirou fundo para não cometer uma loucura.

— E o ama? - perguntou em voz muito baixa.

— Alguém muito melhor que você - replicou ela. Nick elevou o

olhar aceso de impotência.

— Não te perguntei se ele é melhor ou pior que eu, perguntei-

te se o ama - repetiu cortante, perigoso.

— Basta, Nick! - exclamou ela, molesta. — Você nunca me deu

nada. Nem sequer me deu o gosto de que essa velha deixasse de

invadir nossa intimidade.

— Esta se referindo a Fi?

— É obvio que me refiro a Fi! - ele franzia a sobrancelha. Ela

aproveitava para magoá-lo e ia deslizando o fecho da mala pelo

trilho. — É tão patético. Nem sequer sabe dançar!

— Deixei de dançar porque cada vez que o fazíamos se

envergonhava de mim - recordou-lhe ele com incredulidade. Não

podia acreditar que ela o estivesse acusando de que tinha provocado.

— Tenho muitos motivos mais para sentir vergonha de você!

Nick ignorou esse comentário que só pretendia desviar a

conversa do tema principal: o outro homem.

— E quem é? - perguntou.

— Quem é quem? - ela pretendia fazer-se de desentendida. Ele

não o permitiu.

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— Seu amante. Conheço-o?

— Me deixe em paz, Nicolas.

— Conheço-o? - repetiu ele, tentando conservar a calma.

Patrícia recolheu a valise e tentou avançar, mas Nick a impediu

que se movesse colocando-se diante de seu caminho.

— Vou embora.

— Isso já o notei – seguiu. — Pensava me deixar assim, às

escondidas, se evadindo como quando éramos namorados?

— Eu nunca te disse que era sua namorada.

— Mas sim disse que queria ser minha esposa - recordou-lhe

antes de recordar a si mesmo que não queria perdê-la. Não podia. —

Amo-te, Patrícia, amo-te - assegurou com frieza.

— Mas isso não é suficiente, já lhe havia dito isso - replicou ela

em tom soberbo. — Necessito um homem competente, Nick.

— Antes me disse que me deixava porque necessitava um

homem solvente - recordou-lhe ele. — Agora o sou, certo? Também

disse que queria um homem independente, vai me dizer que não o

sou?

— Horácio é muito mais que você.

— Horácio? - repetiu ele semicerrando os olhos. — Horácio

Lowenstein?

— Aborrece-me, Nick - espetou ela, seguindo com seus atos de

crueldade. Ferir a fazia sentir viva, amada. — Aborrece-me muito

porque é muito chato. Sempre sério, sempre trabalhando como se

não tivesse empregados.

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— Posso te perdoar, Patrícia - interrompeu-a ele ignorando tudo

o que lhe dizia. Entretanto, não repetiu as súplicas que fez há anos.

Falou com frieza, como se estivesse fechando um negócio. — Perdôo-

te.

Isso a desesperou. Nick não suplicava, mas lhe disse que a

perdoava. Ela não queria seu perdão, queria... o que queria em

realidade? Não sabia com exatidão, mas sem dúvida não um perdão,

como ele se equivocou.

— Não te estou pedindo desculpas! – falou.

— Quer me deixar? - interrogou Nick sem mover um milímetro.

— Por quê? Quero dizer, por que me deixava às escondidas?

Ela o enfrentou.

— Porque é perigoso, por isso – disse. — Porque fica violento e

tenho medo.

— Violento? - Nick franzia as sobrancelhas. Era a desculpa mais

estúpida que jamais lhe tinha dado.

— Quando eu me ponho violento? Vai dizer-me quando se

passou isso? Quando te encontrei beijando com esse tipo do bar faz

anos?

Patrícia voltou a tentar se esquivar para ir-se, e ele outra vez se

interpôs, sem tocá-la.

— Não te suporto, Nicolas! - gritou ela com ódio feroz, como se

fosse Nick quem lhe estava fazendo mal. — Não suporto seu passado,

não suporto a sua babá, não suporto a vergonha que me faz sentir.

Necessito um homem, não um menino!

Nick inspirou fundo e tremeu de impotência. A teria matado, a

teria matado para que fosse só dele, para que o amasse, para que

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não o deixasse sozinho e abandonado como uma vez o tinha deixado

sua mãe, mas em troca só saiu do caminho e se sentou sobre a cama

que já não compartilhariam como um peso morto.

— Amo-te - disse com os olhos fechados, procurando os dela,

secos como um deserto. — E te sou fiel até a morte.

Patrícia não respondeu, nem sequer se voltou para olhá-lo,

consolá-lo ou lhe dizer nada. Saiu da habitação e poucos segundos

depois, Nick escutou fechar a porta de entrada.

Liberar-se de repente da extrema pressão a que se viu

submetido nesse último tempo causou estragos a Nick. Primeiro se

sentiu culpado, mas ao receber a citação de divórcio e ver aparecer

as primeiras fotografias de Patrícia e seu pior competidor, Horácio

Lowenstein, juntos nas revistas, um profundo rancor lhe invadiu a

alma. Tinha sido enganado duas vezes e quem sabia quantas mais

por uma mulher, a mesma pela qual não tinha olhos nem coração

para nenhuma outra. Nick se tinha fechado aos sentimentos, porque

esse era o único modo que tinha encontrado para não sofrer.

Construiu uma vida como construía pontes e edifícios, formou

uma couraça de ferro com incrível rapidez. E embora soubesse que a

única capaz de vencê-la seria sempre Patrícia, pouco a pouco se

resignou a deixá-la ir.

A partir de então, Nick demonstrava que era um desgraçado,

um cínico e um Dom Juan com quantas mulheres parecidas com

Patrícia cruzasse por diante. Jamais havia tornado a tomar a

nenhuma a sério, todas eram iguais para ele porque assim as elegia:

capazes de ser compradas. No fim de contas, não havia mulher

dessas que escolhia que não procurasse seu atrativo físico, seu

dinheiro ou sexo.

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Nesses cinco anos que tinham estado divorciados, Patrícia tinha

voltado para sua cama algumas vezes, todas com o objetivo de aliviar

o aborrecimento que experimentava no sexo com o Horácio

Lowenstein, seu segundo marido. Embora Nick conhecesse estas

razões e era consciente de que ela não o amava, acessava porque ele

se convencia de que a amava e por isso a necessitava. O sexo com a

Patrícia era como voltar a respirar depois de fazer vãos intentos por

ingressar nos pulmões ínfimas partículas de ar.

Nesse tempo, raras as vezes que dormia em sua casa, porque

para dormir com suas mulheres utilizava o quarto do hotel. Por isso Fi

já não ia com ele para o escritório, tinha que fazê-lo sozinha, e

embora o ritmo de vida acelerado e superficial que ele levava a tinha

preocupado, compreendia-o e preferia vê-lo desse modo antes do que

sofrendo como o tinha feito pela perversa e egoísta Patrícia Cólon.

Nick queria amá-la e lhe seria fiel até a morte, tal como lhe

tinha prometido, porque ao dizer isso Nick não falava de sexo. Falava

de amor.

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Capítulo 16

E chegou o dia do desembarque do Paradise, Nick esperou o

chamado de Lavínia toda a semana. Sua amiga se havia sentido

ofendida pela oferta de dinheiro em roupa e ele não tinha sabido

explicar suas intenções, mas mesmo assim acreditava que ela devia

perdoá-lo. Sua mãe sempre o perdoava, Fi o perdoava, por que não

podia fazê-lo também Lavínia?

Embora estivesse ocupadíssimo com o trabalho atrasado, igual

a ela, não deixava de pensar nessa mulher que sofria como já o tinha

feito ele, só que agora ele tinha a culpa.

Equivocou-se com a Lavínia, não entendia como lhe tinha

ocorrido levá-la para a cama se ela não era como todas as demais,

não sabia o que lhe tinha passado para equivocar-se tanto ou para

não ter podido conter-se. Esse era o problema, nunca outra mulher

que não fora Patrícia tinha despertado nele um sentimento, um

desejo irrefreável de passar tempo com ela.

Mas Patrícia era a mulher de sua vida, a que devia ocupar o

lugar de esposa. Fi o de mãe, Pablo o de seu melhor amigo... Lavínia

o de sua amiga. Tinha-lhe devotado isso porque não a queria longe,

necessitava-a perto porque lhe fazia bem, mas não podia lhe dar

mais.

Apesar dos cálculos de Nick, Lavínia não chamou. Nick esteve a

ponto de discar seu número várias vezes, mas em todas desistiu. Ele

já tinha feito sua parte, havia dito a ela que eram amigos, muito mais

do que qualquer um podia esperar lhe ouvir dizer. Tinha aberto o

círculo para alguém mais depois de havê-lo mantido fechado durante

muitos anos, inclusive lhe tinha confessado alguns segredos de sua

alma, embora com cautela, com certo hermetismo, porque sabia

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muito bem que abrir o coração sempre fazia danos. Era ela quem

tinha que ligar, e se não o fazia, estaria desprezando sua amizade e

sua entrega, valentia que tinha demonstrado ao lhe confiar algo.

À medida que passava o tempo sem que Lavínia ligasse, tratou

de convencer-se de que não lhe importava que o fizesse. Fez uso de

sua couraça protetora, tão efetiva com o resto do mundo, mas logo

alcançou a cobrir com ela uma porção do vazio que sentia ao saber-

se traído de novo. Além disso, sentia-se culpado. Com Lavínia sim

tinha sido um desgraçado, e embora sempre tivesse acreditado que

levava isso nos genes graças a Octávio, por culpa da parte que

correspondia a sua mãe resultava impossível não reconhecer que se

equivocou e que tinha ferido Lavínia injustamente.

Lavínia, por sua parte, se propôs a se afastar de Nick e

desterrar a sua vida. Ele não era homem para ela, jamais poderia

amar a alguém frio, insensível e carente de afeto. Não era o que tinha

demonstrado a noite que tinham passado em seu quarto, mas era o

que ele queria que todos acreditassem, e se era o que desejava, lhe

daria o gosto. Não havia lugar para ela em sua vida despreciada, em

seu corpo formoso, nesse coração de gelo, e Lavínia não queria

migalhas. Não queria sua lástima.

Dois dias depois de ter abandonado o Paradise, um empregado

de um correio privado golpeou a porta de sua casa e lhe deixou sua

valise, a que tinham perdido os empregados de Nick.

— Bem a tempo - brincou ela. O homem pensou que falava a

sério.

Os dias que seguiram ao desembarque, Nick se transformou em

um chefe ocupadíssimo e em um professor mal-humorado,

acreditando que só existia uma razão pela qual Lavínia não o ligava, e

essa razão era o aluno que lhe tinha falado dele a Lavínia e que agora

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tentava fundir a moderna tecnologia de um hospital com a história e

a arte de um edifício histórico da cidade.

— Não - disse-lhe Nick cruamente. — Em lugar de um hospital,

parece um centro comercial. Se isso for o que vai apresentar, não me

faça passar vergonha e melhor espere outro quadrimestre que deve

ver se lhe esclarece que isto é o último ano, não um berçário. Não me

faça perder mais tempo. Quem segue?

Assim, o moço passava suas noites desenhando, enquanto Nick

pensava em Lavínia e fazia amor com todas as mulheres que

encontrasse disponíveis.

— Não - disse-lhe na classe seguinte. — Agora o centro

comercial tem uma galeria de arte. Não lhe repetirei o que já lhe

disse. Quem segue?

Tomas não conseguiu compreender seu admirado professor até

que a este lhe escapou uma indireta.

— Sua namorada lhe deve ter recomendado isso que fez neste

ponto - assinalou o plano. — É evidente que ela nada sabe de

circulações, porque se você puser uma coluna aí...

— Mi... namorada? - indagou o moço, preocupado e confundido.

Nick elevou o olhar. Que não pretendesse fazer-se de

desentendido com ele, que para algo tinha mais idade que todos

esses rapazes.

— Como está ela? - sorriu com ironia. — Contou-lhe como

passou em meu cruzeiro?

— Desculpe?

— Lavínia - pronunciou Nick entre dentes - lhe deu a ideia de

unificar história e tecnologia, certo?

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— Lavínia? - repetiu o menino, antes de defender. — A ideia é

minha! Você sabe disse: isso da arte e a razão. Porque eu sou

escultor... presto-lhe atenção.

— Siga trabalhando - repreendeu-o Nick, acreditando que tinha

confirmado suas suspeitas. — Não pense que se obtém um bom

projeto dedicando-se a ele apenas uma hora por dia.

O menino não devia dormir fazia semanas, Nick sabia, mas não

podia com seu mau gênio. Estava exigente e crítico com todos, mas

muito mais com Tomas e consigo mesmo.

Na quarta-feira da terceira semana depois do desembarque,

Lavínia viu Tomas saindo de um McDonald's com dois ou três amigos.

Estava pálido e cansado, como se se tivesse mantido com esse tipo

de comidas durante muito tempo.

— Tomas ! - chamou-o.

Todos voltearam. O aspecto dos outros não distava muito do

que tinha o moço, mas a ele algo parecia atormentar de modo

distinto.

— Não quero falar com você - espetou-lhe o menino - muito

menos que nos vejam juntos.

Lavínia riu, sem poder acreditar o que escutava.

— O que? – perguntou. — Por quê?

— Ainda pergunta! - exclamou ele. Lavínia coçou a cabeça.

Sorria.

— Não te entendo, sério - replicou.

— Vou muito mal, Lavínia - respondeu o menino. — Tenho que

te ignorar se não quiser que vá muito pior.

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Lavínia não sabia o que pensar. Ficou séria e preocupada.

— Do que fala? – perguntou. — Me explique algo pelo menos,

por favor.

Tomas suspirou. O notava esgotado.

— Do Hagen, de que mais poderia estar falando?

— O que há com ele?

— Vamos, Lavínia! Não sei o que lhe haverá dito, mas me está

pondo louco. Está-me matando. Acredita que estamos saindo, ou algo

assim, e está ciumento ao ponto de jogar por terra tudo o que faço -

Tomas dizia, inclusive, temeroso. — Nunca reprovei em nada e não

vou fazê-lo porque você tenha dito que é minha namorada.

As palavras surpreenderam a Lavínia ao ponto de lhe fazer

entreabrir os lábios.

— Como pode pensar que eu lhe disse algo como isso! -

exclamou indignada. — E de onde pôde ter tirado essa ideia?

Lavínia não tinha ideia da fonte de informação que tinha

mentido a Nick em relação a sua relação com seu aluno, embora não

lhe interessava absolutamente. O único que lhe importava era pôr os

pontos nos is com esse sádico malcriado.

— Tampouco pode acreditar que de verdade Nick está ciumento

de mim – concluiu. — É orgulhoso e cínico, nada mais, e se merece

ser aprovado, Nick te vai passar, dou-lhe minha palavra.

Na quinta-feira pela manhã, Lavínia entrou no edifício de

escritórios de Nick e se aproximou dos empregados de segurança que

controlavam a entrada.

— Bom dia! - saudou-os. — Vou ao piso da Hagen e Associados.

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Vestia um original conjunto de saia e casaco azul marinho,

combinados com uma camisa branca e sapatos negros de salto.

Levava o cabelo solto como chuva sobre os ombros e as costas em

cascata dourada. Seu rosto belo e angélico estava maquiado com

cores suaves, parecia que ia a uma entrevista de trabalho e essa era

a intenção. Sabia que de outro modo não conseguiria chegar a Nick.

— A recepção está no piso dezesseis - indicou a mulher do

dueto de segurança.

Enquanto isso, Lavínia tinha observado o pôster detrás dos

empregados. Nele estava escrito que os últimos quatro pisos

correspondiam a Construtora Hagen e Associados, de modo que se no

primeiro deles se encontrava a recepção, Nick, como todos os

presidentes de algo, teria escolhido o último, o de mais difícil acesso

e o de vista mais chamativa. Era uma dedução, possivelmente nem

sequer fosse real, mas valia a pena correr o risco.

Agradeceu e se encaminhou ao elevador. Marcou o número

vinte, embora subtraíssem dois mais, correspondentes a pisos que

não se alugavam porque eram o salão de usos múltiplos e o terraço,

e esperou.

Quando as portas se abriram, encontrou-se com uma vista

indescritível da cidade. Tudo ao seu redor estava vidrado, exceto a

parede da frente, revestida em madeira muito clara, e a da esquerda,

onde havia duas portas mais que conduziam a distintos salões de

reuniões, ou ao menos isso dizia os pôsteres de vidro que os

decoravam. As luzes não estavam acesas, o sol que entrava pelas

janelas bastava para iluminar o escritório no que uma mulher de ao

menos sessenta anos escrevia.

Fi elevou o olhar em seguida. A imagem de Lavínia a deixou

dura pela surpresa.

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— Como chegou aqui? – perguntou. — Ninguém me avisou que

subiria.

— Sei - admitiu ela. — Estou procurando o senhor Hagen. É

este seu setor?

— Tem que anunciar-se na recepção.

— Sei.

— E o fez?

— Tanto você como eu sabe que não o fiz, e se tivesse feito,

jamais teria chegado aqui - replicou Lavínia apelando à honestidade

da mulher. Enquanto falava, tinha caminhado para ela até deter-se

frente a sua mesa. — Agora, acredito que poderia dizer ao Nick que

aqui se encontra Lavínia Dickinson. Serei muito breve, prometo, não

roubarei muito de seu prezado tempo.

— Entendo - disse Fi com ar pormenorizado. — Você é a... - e

recitou seu número de telefone. Sabia de cor. Lavínia ficou atônita.

— S... sou - balbuciou com o cenho franzido.

Fi lhe respondeu com um sorriso sereno. Em seguida lhe

avisou: — Por favor, sente-se.

Fi compreendeu com essa única olhada que tinha jogado a

Lavínia, as razões pelas quais Nick tinha inabilitado e logo habilitado

seu número. Ela não era como as demais. Era delicada, humilde, nem

por acaso rica como as outras. Sensível, profunda, teimosa igual a

ele, mas sem couraça.

Lavínia se sentou nas poltronas que se achavam perto das

portas que conduziam aos salões de reuniões, na parede oposta a

quão vidrada estava detrás da secretária.

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— Senhor Hagen - escutou Lavínia que a mulher dizia ao

microfone do telefone.

— Encontra-se aqui a senhorita Dickinson e deseja vê-lo.

Nick sentiu que o coração lhe dava um tombo. Uma alegria

súbita e inacreditável se apoderou de seu rosto, após dias rígido e

carrancudo, que relaxou de repente. Entretanto, semicerrou os olhos

e recordou que Lavínia o tinha mantido à margem durante três

eternas semanas. Quem se acreditava para voltar agora como se

nada tivesse acontecido?

— Diga- lhe que vai ter que esperar - respondeu com o tom

mais frio e modesto que pôde encontrar, e cortou.

— Vai ter que esperar - repetiu Fi, obediente.

— Não há problema - replicou Lavínia com um sorriso amável, e

se fez silêncio.

Nick desejava ver Lavínia, cravava-lhe a curiosidade por

descobrir o que trazia ela entre mãos, por saber para que tinha

reaparecido, e além disso tinha medo de que se fartasse de esperar e

desaparecesse. O desejo por sair a seu encontro picou dentro dele,

mas o enterrou como se esmaga a uma mosca. Ela o tinha feito

esperar três semanas, era justo que ele se cobrasse vingança

fazendo-a esperar também. Lastimava que não pudesse deixar

acontecer semanas.

Enquanto isso, Lavínia tomou uma revista de arquitetura das

tantas que havia em um móvel junto às poltronas e começou a

folhear sem apuro. Não era consciente de que Fi a observava com

atenção, sem poder lhe tirar os olhos de cima embora tentasse

dissimular movendo as mãos sobre os papéis.

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Mas que mulher peculiar! Pensava a secretária. Lembrava-se

dela, de sua voz e de seu número: era a que tinha chamado para

pedir desculpas a Nick. Achava-se por completo concentrada na

leitura e não tinha uma só gota de irritação ou modéstia porque Nick

a fizesse esperar. Estava segura de que ele o fazia de propósito, não

acreditava que estivesse fazendo algo tão importante para não

recebê-la um momento, se nem sequer estava em uma reunião ou

atendendo um chamado telefônico. Ao cabo de meia hora, Fi esteve a

ponto de entrar e ralhar com Nick pelo abuso que estava cometendo

com aquela senhorita, mas em troca falou primeiro a ela.

— Parece que está muito ocupado - comentou a secretária.

— Assim parece - respondeu Lavínia esboçando um breve

sorriso de resignação. Uma vez que tinha chegado até ali, nada a

deteria até ver Nick. Podia ser essa a única possibilidade que tivesse

para fazê-lo. Não lhe importava esperar, sempre que aparecesse. Os

seguintes dez minutos, Lavínia não separou os olhos da revista. De

repente, a porta do escritório de Nick se abriu de par em par.

— Diga ao Pablo que se comunique com o Esteban para os

detalhes do projeto da rua Esmeralda - ressonou sua voz.

Fi olhou-o com um olhar reprovador que Nick compreendeu

muito bem. Ele não tinha saído para lhe dar uma ordem que bem

podia lhe dizer por telefone, a não ser para demonstrar a essa pobre

e formosa moça que não tinha tempo para ela. Nick clareou a

garganta, incômodo pelo olhar de Fi, e decidiu voltar para os

assentos.

— Ah - fingiu indiferença - siga-me por aqui.

Lavínia se tinha posto de pé e olhava Nick com o objetivo de

não o perder de vista, agora que ele se dignou a sair de sua guarida.

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— Necessita que lhe espere um pouco mais? - perguntou com

doçura e até com compreensão. Sabia bem que Nick a estava fazendo

esperar de propósito, mas não se importou. Diante dele se dava

conta de que jamais poderia esquecê-lo.

— Tomará muito tempo o que viestes dizer? - Lavínia se

surpreendeu ao dar-se conta de que ele já não soava indiferente, a

não ser modesto, possivelmente até magoado. E será que estava!

Abrira-lhe seu coração e não lhe devolvia o gesto sequer com um

chamado.

Fi também se surpreendeu por isso. Nick experimentava um

sentimento frente a alguém do grupo de seres humanos que não lhe

importavam um sentimento tão profundo que o levava a fingir-se

indiferente quando se notava com facilidade que se sentia ferido.

Ferido e zangado! Não o tinha visto zangado por algo em anos.

— Não - replicou a senhorita que o feria. — Se nos

entendermos rápido, pode tomar muito pouco tempo.

Nick assentiu com dureza e lhe indicou o caminho para seu

escritório. Lavínia o seguiu, e uma vez que ela estava dentro, ele

fechou a porta. Fi ficou olhando a porta de madeira que lhe impedia

de seguir escutando.

— Pode se sentar, se quiser - ofereceu Nick de mau humor,

embora conservasse sempre seu cavalheirismo inato.

— Não vai fazer falta - replicou Lavínia do outro lado do

escritório - vim esclarecer algo somente.

Ante a negativa de Lavínia, ele se sentou e cruzou os braços.

— Assim quer que esclareçamos algo – repetiu. — Desaparece

quase um mês, nem sequer me liga, e ressuscita uma manhã sem

razão para "esclarecer algo".

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Nick se amaldiçoou internamente por ser tão estúpido. Por que

lhe reclamava, como se lhe importasse? Tinha que controlar-se,

fingir-se indiferente, de bom humor, como sempre o punham as

insólitas recriminações de suas amantes. Mas Lavínia não estava

recriminando nada, nem sequer que a tinha feito esperar de

propósito.

— Tampouco parecia muito interessado em que te chamasse -

replicou Lavínia com dignidade.

— As vezes que te chamei antes, acreditei que era um número

bloqueado ou algo do estilo.

Nick semicerrou os olhos e apertou a mandíbula. Como ela não

entendia a diferença entre essas outras vezes e a do navio? Como

não o compreendia apropriadamente sem que ele tivesse que

explicar-se?

— Disse que somos amigos - respondeu entre dentes.

— E eu não te disse isso, mas sua pena não me basta -

respondeu Lavínia com fúria reprimida. — Se não te voltei a chamar é

por isso, não por Tomas nem nenhuma outra fantasia que te asseguro

foi retorcida na mente do menino malcriado. Assim deixa-o em paz.

Os olhos de Nick não eram de gelo, eram de fogo, ardiam de ira

pelo que Lavínia lhe espetava à cara e porque não podia ficar de pé,

apanhá-la entre os braços, beijá-la e lhe lançar ele também todas as

verdades que lhe engasgavam nas mandíbulas apertadas.

— Que classe de professor, misturando seus problemas pessoais

e egoístas com o trabalho, arruinando a carreira de um estudante

excelente? - continuou ela sem medo nem piedade. Que piedade

podia sentir por um idiota insensível que só existia para transtornar a

vida dos outros? — Não estou saindo com Tomas, Nick, nem sequer

somos amigos. Só nos vimos uma vez em uma discoteca e ontem

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pela rua, mas o pobre não queria nem aproximar-se de mim por

causa do leão faminto no que te transformou. Já lhe disse isso uma

vez, direi isso pela segunda, mas não haverá a terceira: nos faça um

favor a todos e me deixe em paz.

A dor sulcou os obscurecidos e entrecerrados olhos de Nick

assim que ela se deu a volta e começou a caminhar para a saída.

Estava-o deixando. Abandonava-o. Nick prometeu que não ia segui-

la. Não o faria, não! Não lhe importava e era a perversa prostituta

que ousava desprezar o presente mais valioso que ele tinha dado a

uma mulher, depois de Patrícia. Rechaçava sua confiança, ignorava

sua amizade, e isso era imperdoável.

Entretanto, queria gritar. Mas o que gritaria? Como ia gritar o

não tinha ideia do que se agitava em seu peito cada vez que a via, ou

quando ela, com sua dignidade de ferro, demonstrava-lhe em seus

olhos que o amava enquanto com a voz lhe dizia que era um

desgraçado?

Lavínia abriu a porta do escritório, não se incomodou em fechá-

la e avançou até o elevador ante o atento olhar de Fi, que não se

perdeu o instante em que ela apertou o botão de chamada e ficou ali

de pé, esperando que o cubículo aparecesse frente a seus olhos.

Tão pouco se alterou no momento em que Nick saiu de seu

refúgio dando largas pernadas como uma fera enjaulada. Hipnotizado

por seu objetivo, passou diante do escritório de sua secretária até

ficar atrás de Lavínia e assentar com força descomunal a palma da

mão na porta chapeada do elevador.

— Disse que somos amigos - repetiu entre dentes, em

sussurros sem poder dizer nada de tudo que lhe cruzava pela mente

e pelo coração. Nick se tinha fechado à comunicação e aos

sentimentos, e estes estavam fazendo estragos nele ao que parece

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assim, de improviso, sem que se achasse preparado para enfrentá-

los.

— E depois me disse que eu era diferente de suas outras

amiguinhas porque sou pobre - replicou Lavínia sem dar a volta. —

Isso não se diz a uma amiga, Nick, nem se esfrega uma passagem

em seu bruto cruzeiro, nem se cala seu coração culpado com um

pouco de roupa de marca.

Fi abriu a boca como se estivesse a ponto de comer, mas só

mastigava surpresa e sem ar.

— Como é isso - resmungou ele em voz tão baixa que Fi não

alcançou para escutá-lo. — Têm que saber que não importa quão

pobre é.

Nick falava tão bem de projetos arquitetônicos frente a

centenas de pessoas que ninguém teria apostado que nesse

momento não tinha ideia de como dar-se a entender. Não sabia

explicar que não lhe tinha dado o vale por piedade nem porque

tentasse comprá-la. Não lhe tinha devotado sua amizade porque se

sentisse culpado nem porque quisesse somente sexo dela. Mas

também queria sexo dela! Por Deus, queria tantas coisas!

— Não, claro. Todas as vaginas são iguais - replicou Lavínia sem

lhe importar se a mulher mais velha escutava nem se Nick

interessava ou não o que lhe dissesse.

A porta do elevador se abriu e Lavínia entrou sem que Nick

subtraísse forças para mover-se. Ficou de pé diante da abertura,

suspenso, com o sangue lhe fervendo nas veias e as palavras

cravando-se como aguilhões na garganta.

Lavínia não permitiu porque os olhos de Nick expressassem

tortura. Tinha-os visto enterrados no piso do elevador quando tinha

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tido que dar a volta para pressionar o botão que a levaria de retorno

ao andar de baixo.

Nem bem a porta se fechou, Lavínia se respaldou no espelho e

cobriu a boca com as mãos. Os olhos se encheram de lágrimas que

não demorou em derramar. Amava Nick, estava apaixonada! Por isso

se sentia tão estúpida e tão assustada de ter que lhe gritar todas

essas coisas, tanto que teria retornado sozinha para assegurar-se de

que em realidade não o tinha ferido. Não o fazia, verdade? Se a Nick

nada importava dela, nem de suas amantes, nem da gente em geral.

Nick era duro, soberbo, mal intencionado. Quem podia lhe importar

suas grosserias ou seus insultos?

Nick ficou de pé diante do elevador ausente dois, três minutos,

até que se voltou e com a mesma lentidão com a que tinha feito esse

movimento se internou de novo em seu escritório. Fechou a porta tão

devagar que não se escutou o som do trinco.

A sós, primeiro tentou refugiar-se no ressentimento. Quem se

achava essa moleca para lhe dizer o que tinha que fazer ou para

julgá-lo como professor ou pior, como pessoa? Não era mais que uma

caprichosa a quem gostava e desejava possuí-la para logo afastar-se

sem lhe dar nada em troca.

Conforme passaram as horas e chegou a noite, o ressentimento

mudou para medo. Medo de que não tivesse vontade nem ânimo para

ir às putas, nem para provar a sorte com as mulheres do bar, nem

para encher o vazio de sua existência a custa do sexo.

Foi para a cama, mas não pôde dormir. A insônia o consumiu

toda a madrugada, vingou-se dele fazendo ressoar uma e outra vez

as palavras de Lavínia, seus olhos feridos e amorosos, sua voz digna

e humilde.

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"Não, claro. Todas as vaginas são iguais". Lavínia pensava que

era isso que significava ela para ele: sexo, um passatempo que lhe

tinha saído um pouco mais caro que os outros porque lhe havia

oferecido uma amizade.

Merda! Por que a tinha machucado tanto? Por que se tinha

confundido com ela? Por que se machucavam...? Se necessitava estar

perto, por que a afastava?

Não a tinha elegido, recordou-se. Tão somente lhe cruzou no

caminho e não pôde controlar sua sede dela, enquanto que às demais

as tinha escolhido com serena vontade.

Fumou um maço de cigarros até que descobriu com pesar que

não podia suportar que Lavínia acreditasse que era um desgraçado.

Jamais lhe tinha importado e até gozava com que o fizessem as

demais, mas ela não. Não queria ser para Lavínia um ser

inescrupuloso e vazio, insensível, infiel, incapaz de amar alguém. Um

ser como Patrícia, um ser como Octávio. Nick reconheceu que isso era

no que se converteu e que Lavínia... Lavínia tinha sido sua vítima,

como ele foi a vítima de sua esposa e sua mãe a de seu pai. Então se

sentiu mais morto que vivo.

— Hei, Nick! - saudou-o Fi quando entrou na cozinha com duas

bolsas cheias de mercadoria. Surpreendeu-se tanto de que Nick

amanhecesse em sua casa que lhe assentou uma mão sobre a frente

para comprovar que não tinha febre. — Está doente? - perguntou. Ele

negou com a cabeça enquanto fumava um cigarro.

A resposta era óbvia, ele alguma vez adoecia?

— O que faz aqui? - continuou a mulher. — E fumando a esta

hora da manhã! - Fi lhe arrancou o cigarro dos lábios e o atirou na pia

de lavar os pratos. Nick a observou da mesa, elevando os olhos

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porque a cabeça a deixava encurvada. Ela cruzou os braços antes de

continuar: — O que aconteceu?

— Nada - respondeu ele com um tom de voz baixo e pausado.

— Mmm... - duvidou Fi. — Resulta evidente que têm um grave

problema com uma loira.

Nick sorriu, meneou a cabeça de um lado ao outro e extraiu

outro cigarro do pacote. Fi lhe golpeou, firme, mas doce, a mão.

— Quantos têm fumado? - exigiu saber. — Certo que ainda não

dormiu em toda a noite.

— É o costume - replicou ele. Ela riu.

— Prepararei o café da manhã, como nos velhos tempos.

Lembra?

Nick sorriu.

Passou a sexta-feira no trabalho e com o passar do dia

prometeu que essa noite sim iria às putas. Não lhe desejava muito

uma prostituta, ia ver sorte no bar com alguma mulher que lhe

recordasse que todas procuravam o que ele estava disposto a dar.

Entretanto, chegada a noite, voltou para sua casa, tal como tinha

feito na quinta-feira. Desta vez, a falta de sono do dia anterior lhe

jogou uma boa passada e logo dormiu.

No sábado passou percorrendo obras e controlando projetos até

às seis da tarde. Ao retornar a casa encontrou-se com Fi que tinha

preparado o traje que usaria essa noite para a inauguração do Centro

Médico. Não podia faltar, era o engenheiro que tinha construído essa

maravilha que todos admirariam com o qual ele mesmo se sentia

admirado, mas com o traje em uma mão e a honestidade na outra,

reconheceu que não tinha ânimo de ir. Estava acostumado a gostar

das reuniões sociais porque ali conhecia muita gente nova, também

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muitas mulheres, e falava trivialidades com todo mundo. As pessoas

o admiravam, surrupiavam-lhes informação, criticava-o nas suas

costas. E ele os observava fingindo-se um deles, mas sabendo quais

eram seus movimentos exatos.

Esse traje que jazia sobre a poltrona de passagem de seu

quarto representava todo mundo superficial e vazio que tinha

construído a seu redor, esse no que ele se sentia tão cômodo porque

não lhe pedia nada verdadeiro a mudança, mas de uma vez tão

ausente.

Conhecia-o muito bem, muito melhor que outros que o

formavam, porque ele tinha sido um observador fazia muito tempo,

em uma época que se esforçava por enterrar na memória. Eram

esses tempos, entretanto, a única verdade que Nick levava em sua

alma.

Não queria voltar para um mundo superficial. Algo o tinha

reencontrado com sua mãe, com seu sofrimento por causa de seu

pai, com o estudante tímido que tinha sido, e não queria deixá-lo ir.

Quem era ele? Por que não podia combinar ambos os mundos?

Às dez da noite, jazia sobre sua cama, observando o forro do

teto do quarto. Não tinha acendido a luz, tudo o que tinha era a

claridade que entrava pela janela apesar dos cortinados fechados. A

fumaça do cigarro saiu lenta e preguiçosa de sua boca, estendeu-se

em uma nuvem que lhe impediu de ver a sombra do abajur do teto

projetada no branco da pintura.

Então se ergueu como impulsionado por uma força inesgotável.

Apagou o cigarro no cinzeiro que sempre tinha ao lado da cama,

abarrotado de cinza e bitucas, e se dirigiu à poltrona. Tomou o traje

envolto em um náilon transparente, estudou-o um momento e o

deixou cair como se fossem os últimos objetos que usaria no mundo.

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Capítulo 17

Lavínia adicionou ao desenho de uma odalisca uns tecidos mais

largos. Queria que seus trajes para a amostra do Instituto de Danças

tivessem mais movimento e cor para que se distinguissem de outros

e pensava consegui-lo com acrescentados originais. Pintava os novos

traços de vermelho quando ressonaram três golpes à porta.

Desligou a música que provinha baixa do rádio e olhou a hora.

Às onze da noite. Aproximou-se com passo lento à porta, temendo se

tratasse de um ladrão, que não eram escassos no bairro.

— Quem é? - perguntou. Ninguém respondeu. — Não tem graça

– reclamou. — Fale ou chamo a polícia.

— Sou eu.

O rosto da Lavínia se converteu em pedra. Ficou pálida e lhe

tremeram as pernas. A voz era suave, serena, pacífica, mas era a voz

dele. Ainda era a voz de Nick. Então abriu a porta de par em par.

Ele tinha um antebraço apoiado no marco da porta e a frente

sobre o dorso da mão. Lavínia se encontrou com seu atrativo rosto

levemente inclinado para baixo, mas os olhos elevados para cima,

estudando-a. Era seu traje. Nick levava o traje que ela tinha

confeccionado com suas próprias mãos e não um smoking!

— Estava saindo para uma reunião social, mas tive um

problema com um botão de seu casaco - disse ao tempo que estendia

a mão livre com o botão na palma. — Perguntava-me se podia

costurá-lo e em pagamento aceitar que te leve a festa.

Lavínia não recordava como se fazia para respirar. Tinha a boca

aberta como um peixe sem que o ar pudesse encontrar o caminho até

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seus pulmões. De repente ele franziu o cenho, tinha passado a

preocupação.

— Têm algo para vestir? - adicionou com o mesmo tom de voz

suave. — Porque se não tiver nada, então nenhum dos dois irá a uma

festa. Ficarei aqui, com você. Posso passar um pouco de tempo com

você, Lavínia? Um pouco... nada mais.

Lavínia ainda estava muda, com a boca entreaberta e os olhos

como pratos. Ao fim colou os lábios e deixou escapar o último resto

de ar que ficava.

— Sim – disse. — Sim tenho - esclareceu. De repente tinha

esquecido o vocabulário, mas com uma palavra respondia ambas as

perguntas.

— Entre.

Nick não esperou que Lavínia insistisse. Entrou no apartamento

e ficou ali parado até que ela fechou a porta, trancou com a chave e

voltou a olhá-lo nos olhos.

Muito tinha trocado. Para começar, Nick já não estava

acelerado, nem forçava um olhar implacável. Tampouco pretendia

levar o mundo por diante.

— Eu... - balbuciou ela sem saber bem o que dizer. — Têm um

momento?

— Estou chegando bastante tarde, mas sim, é obvio que tenho

um momento – replicou. — Muitos momentos para você.

Lavínia não entendia nada. Depois de haver-lhe insultado e

recriminado que era um mau professor e um mau homem, ele vinha

procurá-la e lhe dizia todas essas coisas sem um desejo sexual. Ou

com muito desejo sexual, mas sem que as palavras fossem algo

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superficial nem uma armação para a conquista. Eram palavras reais,

eram palavras saídas do coração. Por isso sorriu.

— Que bom - disse. Quase ao mesmo tempo se sentiu

abruptamente envergonhada. — Desculpa a desordem - desculpou-se

ao ver os desenhos e tecidos estendidos sobre a mesa, os retalhos

dispersados pelo piso.

— É que você não viu meu apartamento ainda. Se não fosse por

Fi, tampar-me-ia com lixo. Tampa-me a minha caminhonete.

— Fi? - indagou Lavínia, ainda sem poder acreditar a

conversação que mantinham. Não lhe ocultava nada.

— Fi, minha secretária, a mulher que conheceu em meu

escritório.

— Ah, sim - assentiu ela, conforme. Mas ele não ficou calado.

— Em realidade ela é muito mais que minha secretária –

continuou. — Fi é uma velha amiga, uma segunda mãe para mim. E

de quem gosto muito.

Lavínia assentiu sem entender essa estranha confissão de Nick,

como se ele quisesse dizer-lhe tudo.

— Está bem - disse sorridente. — Suponho que isso é bom para

você.

— É.

Fez-se silêncio, mas nem por isso deixaram de olhar-se. Lavínia

lia tanto nesses olhos que sentiu medo, porque embora reconhecesse

que havia muito por dizer, era mais o que se esforçavam por calar.

— Vou trocar de roupa – anunciou. — Não se preocupe porque

não sou de demorar muito.

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— Que bom - replicou ele. — Eu também sou muito rápido para

tudo, inclusive para me vestir.

Lavínia sorriu enternecida.

— Sim, é evidente - disse a respeito da velocidade que sempre

levava Nick, que saltava à vista em tudo.

Ele também sorriu. Sorriu de verdade, sem reticências, sem

temor de que um sorriso significasse ceder ante as intenções

desconhecidas de alguém, porque ele acreditava conhecer as de

Lavínia. Lavínia era uma pessoa de sua confiança.

Ela correu para seu quarto. Tinha mentido, não tinha vestidos

de festa que pudessem fazer honra a uma da categoria a que

certamente estava pensando em levá-la Nick, mas podia levar o

vestido romano que confeccionou para o casamento de Tamara.

Enquanto Lavínia se vestia, penteava e maquiava, Nick deu

uma volta pelo pequeno apartamento desordenado. A mesa estava

cheia de tecidos vermelhos e amarelos, lentejoulas, moedas, fios e

agulhas. Também havia alguns desenhos. De fato descobriu que

Lavínia desenhava muito bem, se é que os tinha feito ela. Não

ficaram dúvidas quando encontrou os lápis de cores com os quais

pintava.

Junto ao telefone havia um porta-retratos. Nick sorriu quando

viu sua fotografia com uma mulher e seu cartão. Como se chamava

essa garota? Não o recordava, mas se algo lhe desgostou foi que

Lavínia tivesse que vê-lo com uma mulher cujo nome ele nem sequer

se lembrava, como souvenir da porcaria que ele tinha sido. Que era.

Que não queria ser.

Caminhou junto à parede até um manequim onde havia um

vestido de namorada ainda não terminado. Alguém se casava. Depois

se sentou na cadeira que antes tinha ocupado Lavínia.

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Pensou por um momento que ela o faria aguardar uma hora ou

mais em vingança porque ele a tinha feito esperar em seu escritório

na quinta-feira, mas isso não ocorreu. Apenas vinte minutos depois

de ter entrado no quarto, saiu envolta em um maravilhoso vestido

comprido cor verde maçã, com o cabelo recolhido em uma cauda alta

e o rosto maquiado com tons suaves. Sentado como estava, Nick

estirou as pernas e cruzou os dedos detrás da nuca.

Lavínia notou que ele a devorava com o olhar. Umedeceu os

lábios ressecados sem poder evitar ruborizar-se. Assentou uma bolsa

de mão da cor do vestido sobre a mesa e dali extraiu um brilho labial

transparente e um espelho. Começou com a tarefa de pintar os

lábios.

Nick sentiu tanta satisfação de vê-la fazer isso que o corpo se

cobrou a modéstia. Traduziu o prazer em uma pressão no peito e um

desejo desconhecido de que aquela ação natural e cotidiana se

repetisse incansáveis vezes até que pudesse dizer que ela era sua

família, que nunca estaria sozinho.

Lavínia roçou um lábio com o outro enquanto fechava o espelho

e o batom. Nick tinha recuperado seu bom humor, sua picardia e sua

impaciência, mas de um modo diferente. Tornou-se para frente e

apoiou os cotovelos sobre os joelhos.

— Assim têm umas bodas - arriscou.

— Sim - respondeu Lavínia enquanto guardava as coisas em

sua bolsa. — Casa-se minha melhor amiga.

— E eu estou convidado? - perguntou ele. — Porque eu penso

convidá-la para a nossa.

Lavínia sorriu com a insinuação, mas não se deixou enganar.

Nick era muito instável, muito imprevisível para pensar que o dizia a

sério. Em um momento a fazia esperar quarenta minutos fora de seu

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escritório como se ela não valesse nada e no outro insinuava que se

casaria com ela. Lavínia o olhou com amor, mas sem um ápice de

ilusões.

Nick soube que não lhe acreditava e não a culpou. Sabia que

não tinha dado mostras de segurança antes e não podia pretender

que ela esquecesse todo o passado porque as dava agora.

— Têm o botão? - pediu Lavínia com amabilidade. Nick não

deixava de olhá-la, nem tinha soltado o botão em todo esse

momento, porque abriu a mão e ali estava.

Lavínia enfiou o fio na agulha e se ajoelhou frente a ele para

fazer seu trabalho. Nick a observava com tanta intensidade que a pôs

nervosa e a fez cravar um dedo. Depois de deixar escapar um suave

gemido, levou a ferida à boca. Nick tomou a mão e aproximou

delicadamente a seus lábios, entre os seus apanhou o dedo

machucado. Lavínia tragou com força. Saía-lhe sangue. Nick não

pareceu lhe importar. O que fazia era como uma amostra de

confiança ou uma mensagem que ela não alcançava interpretar. Nick

caminhava pelos extremos, gostava de ir sempre pela borda. Falava

com os atos, expressava-se com o olhar, e a atraía no jogo.

— Põem-me nervosa - confessou, vermelha como os tecidos

que a esperavam para converter-se em trajes de bailarina.

— Queria te pôr nervosa todo o tempo - replicou ele com os

lábios sujos de sangue. O sangue de Lavínia.

— Por quê? É vampiro ou algo do estilo? - brincou ela. Sentia-

se perturbada pelas abruptas mudanças de Nick, estremecida por seu

contato.

— Quero te pôr nervosa para ver-te ruborizada - repôs ele com

soltura, até com naturalidade. — Parece-se muito como quando

fizemos amor.

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Lavínia sentiu que se deslizava por um turbilhão de sentimentos

até tocar no fundo suave e fofo onde a esperava Nick para recebê-la

entre seus braços. Se era correto ou não deixar-se levar e enganar

por esses sentimentos de novo não soube, mas se sentia tão bem

entrar na fantasia de que ele a amava, que não pôde resistir à

tentação e sucumbiu ao sonho. Entregou-se ao amor que albergava

por ele em suas vísceras.

Elevou-se para lhe rodear o pescoço com os braços e Nick não

deixou de responder ante seu gesto. Também a abraçou, acariciou-

lhe o cabelo com ternura e a beijou no alto da cabeça.

— Não quero te machucar - prometia a Lavínia. — Quero te dar

razões para sorrir.

Durante o curto trajeto que fizeram no automóvel de Nick que

Lavínia desconhecia, pois sempre o tinha visto na caminhonete que

ele usava para visitar as obras, deixou-se levar pela sensação de que

flutuava em uma nuvem.

Deixaram o carro no estacionamento e Nick a abraçou pela

cintura até o lugar aonde se desenvolveria a festa: o novo Centro

Médico. No caminho a pé lhe contou algumas questões da construção

e respondeu a duas perguntas que Lavínia lhe formulou em relação

com o desenho, curiosidades que estavam acostumados a atacar a

qualquer um.

O interior do edifício era tão majestoso como o que se via na

fachada. A festa se desenvolvia no último piso, que se utilizaria para

congressos e reuniões sociais. Nem bem os viu entrar, Pablo se

equilibrou sobre eles dando o braço a sua esposa.

— Nick! – exclamou. — Esperava-te faz duas horas. Que se

passou?

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— Nada - respondeu ele. — Já estamos aqui. Lembra-se de

Lavínia?

Lavínia sorriu ante o olhar confundido de Pablo.

— Margarida Farias? - recordou-lhe ela sorridente. O homem

caiu na conta muito rápido porque jogou a cabeça atrás e deixou

escapar uma exclamação de assombro.

— Ah! A desenhista! - exclamou. Os três envolvidos riram.

Lavínia se deu conta de que muitos olhares reparavam em Nick,

sobre tudo os de mulheres. Entretanto, preferiu ignorar esse

pensamento. Essa noite, Nick era dela, e embora na manhã seguinte

voltasse a sentir-se como qualquer uma de suas amiguinhas, por

essa vez queria viver o momento.

— Hagen! - exclamou uma voz proveniente de suas costas.

Tanto Nick como Lavínia deu a volta para receber quem se

aproximava. Um homem mais velho avançou para eles até estreitar a

mão que Nick lhe oferecia amavelmente.

— Doutor Dickinson – disse - apresento a minha namorada.

O homem olhou a Lavínia e estreitou sua mão, mas ela

congelou.

— Muito prazer - disse-lhe o médico, que logo a soltou e passou

a olhar outra vez para Nick. — Tem tão bom olho para escolher

namorada como para a construção.

Nick assentiu com um movimento da cabeça e um sorriso.

— Ela é minha pequena luz no final do túnel - afirmou

estreitando-a mais contra seu flanco.

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O médico sorriu ante os apaixonados e logo se afastou quando

outra pessoa o chamou.

Nick convidou Lavínia a sentar-se com ele em umas poltronas e

lhe pós a mão pela cintura para mantê-la abraçada. Necessitava-a

perto, necessitava seu contato.

— O que quer tomar? - ofereceu-lhe. O cinza de seus olhos

afligia, olhava a Lavínia como procurando que lhe internasse dentro.

— O que seja - respondeu ela, deixando-se afligir.

Nick chamou o moço com um gesto de mão e tomou duas taças

de champanhe da bandeja. Depois que o jovem se afastou, voltou a

falar.

— Espero que não esteja chateada- disse antes de beber um

gole.

— Por que teria que estar? - indagou ela.

— Porque te chamei minha namorada.

Lavínia pestanejou em procura de ordenar seus sentimentos,

alvoroçados como poucas vezes os tinha notado antes.

— E o sou? - perguntou.

— É - assegurou ele.

Lavínia sentiu que o coração lhe enchia de mariposas, fazia

cócegas e a levava a sorrir. Não podia apagar a curva de seus lábios.

— Nesse caso, não estou zangada, estou feliz – afirmou. Nick,

que até esse instante procurava concentrar-se em sua taça, olhou-a

nos olhos. — Amo-te.

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Nick a observou, calado entre o murmúrio da gente que falava

trivialidades e da música que ali não soava tão forte. Elevou uma mão

e acariciou uma bochecha de Lavínia, venerava-a.

— É a melhor mulher que conheço, Lavínia - respondeu.

Ela compreendeu a razão pela qual Nick não podia dar resposta

a sua confissão de amor apesar de considerá-la sua namorada e

apresentá-la como tal diante de todos. Nick não a amava.

Necessitava-a, mas isso não era o mesmo que amar. Mesmo assim,

não se atreveu a afastar-se. Possivelmente algum dia ele descobrisse

que albergava também esse sentimento como acabava de descobrir

que lhe era necessária.

— E te sou fiel até a morte - adicionou Nick imediatamente.

Uma lágrima abandonou os olhos de Lavínia e deslizou por sua

bochecha rosada até chegar ao dedo de Nick, que a escorreu com

calma.

Ele não falava de amor, falava de sexo, mas por algo se

começava.

— Que bom - replicou ela, conformando-se com o que Nick

pudesse lhe dar. Já não lhe valiam o orgulho nem a dignidade porque

o amava. Oh, quanto o amava! E sem ele simplesmente ficaria sem

ar. — Porque eu também o sou.

Nick olhou a pista de baile. Queria fazer feliz a Lavínia e para

isso jamais lhe mentiria e faria sempre o que sabia que a

reconfortava. Podia suprir a falta de amor com o imenso afeto que

sentia por ela, com ações que a manteriam flutuando entre as

nuvens. Não podia amá-la, ele já tinha prometido isso a outra

pessoa, a alguém que podia suportar um amor egoísta e duro como o

seu. Porque ele era como seu pai, e pessoas como Octávio só sabiam

ferir.

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— Dançamos? - perguntou-lhe. Lavínia gostava de dançar e ele

estava disposto a lhe dar tudo para compensar a proibição de lhe

retribuir o amor que lhe dava.

— Acreditei que não dançava - replicou Lavínia esforçando-se

por sorrir.

— Mas quero dançar esta canção com você - respondeu ele.

Lavínia sorriu e se deixou levar a improvisada pista de baile,

onde Nick a estreitou contra seu peito e a transportou ao mundo que

sonhava com a canção “If you leave me now”.

No transcurso da noite, todos se aproximaram para saudar

Nick. Fazia-se evidente que era reconhecido em seu ambiente e que a

partir desse dia ninguém teria dúvidas de que Lavínia era sua

namorada, porque assim a tinha apresentado acima de tudo ao

mundo.

Uma fotografia coroou o momento, uma que Nick não se negou

a que tirasse abraçado a Lavínia. Inclusive pediu ao fotógrafo uma

cópia que o homem prometeu lhe fazer chegar.

Nick tinha o mundo a seus pés. Era tão arrumado, tinha um

sorriso tão encantador e um olhar um tão sensual que Lavínia não

alcançava a compreender como ou por que a tinha eleito para essa

velada e todas as demais que lhe tinha prometido agora que era sua

namorada.

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Capítulo 18

Retiraram-se da festa às quatro e meia da madrugada. Uma vez

no automóvel, Nick ligou o motor e começou a circular muito lento.

Com a desculpa de um passeio, estendia as horas junto à Lavínia.

— Qual é o parentesco com o diretor do centro médico? -

interrogou de repente. A pergunta sacudiu a Lavínia porque não

estava preparada para recebê-la. Nick notou e se desculpou por isso.

— Perdão, não sabia que podia te resultar incomodo que lhe

perguntasse isso.

— Não, não me resulta incômodo - apressou-se a repor ela com

um suspiro.

— É uma história muito longa. Como te deu conta?

— Levam o mesmo sobrenome, embora nunca me tivesse

ocorrido que o mundo é tão pequeno se não fosse porque hoje os vi

juntos. Senti-o - respondeu e logo sorriu com serenidade. — Sabe

que vou estar aqui para escutar se algum dia precisar falar com

alguém - ofereceu para terminar a conversa.

— É meu avô, acredito - disse ela. A resposta de Lavínia deixou

Nick emudecido. Tinha-o tomado de surpresa.

— É assim se saúdam avô e neta? - replicou.

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— Não lhe disse meu nome nem meu sobrenome, não se deu

conta de que era eu porque nunca antes me tinha visto, ao menos

sendo já adulta.

— Como é isso? - depois de ter perguntado se arrependeu.

Jamais era detalhista sobre sua vida, era injusto que pretendesse que

Lavínia o fizesse. — Me perdoe. Não tem que responder.

A ela não pareceu importar. Fazia-se evidente que tinha sabido

assumir seus traumas muito melhor que ele.

— Minha mãe se casou com seu filho, que era professor de

História em seu colégio. Engravidou de mim, nasci, e em pouco

tempo meu pai foi assassinado. Trabalhava em um bairro perigoso.

Lavínia não se estendeu contando a Nick o que pensava a

respeito de sua mãe, a história com outros namorados que tinha tido,

nem a confusa procedência de sua irmã, ou a história de seu irmão e

Josué. Mas suas palavras tinham impregnado fundo em Nick. Ela

tinha tido uma vida difícil, e isso o entristeceu. Não queria que

sofresse, não queria que recordasse tempos nos que tinha sido

infeliz, se é que alguma vez tinha conhecido a felicidade.

De repente se lembrou do vento e das cortinas que se

balançavam no hotel e ela o obrigou a fechar antes de ter sexo.

— Sua mãe... - sussurrou. Tinha medo da resposta que Lavínia

pudesse lhe dar. — Teve muitos namorados depois de seu pai?

Deteve o automóvel. Nem sequer se deu conta de que o fez no

mesmo lugar onde tinha feito amor com Patrícia pela primeira vez.

Lavínia o olhou assustada. Colocou um braço por detrás de sua

cabeça e esperou com o cenho franzido a que ela respondesse.

— Desta vez não vai pedir desculpas por perguntar algo tão

íntimo? - interrogou Lavínia evidenciando o medo a dar resposta.

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— Não - replicou ele com naturalidade. — Isto sim, quero que

me responda.

Lavínia baixou o olhar e umedeceu os lábios.

— E porque o pergunta – replicou. — Não chegou a acontecer,

mas esteve muito perto - suspirou e elevou a cabeça com

assombrosa força de espírito. — Já podemos ir?

Nick tinha ficado calado, olhava-a não com pena nem com

medo, a não ser com ódio.

— Eu gostaria de lhe fazer dano - confessou entre dentes.

— A mim não - respondeu ela com desencanto. — Já o está

fazendo sozinho.

— Ainda o vê?

— Não tenho mais opção que fazê-lo, é o pai de meu irmão.

Nick assentiu em silêncio. Era incrível como abrindo-se a seus

próprios sentimentos se conectava com os de outros. Como não se

deu conta do que Lavínia tinha querido lhe dizer quando pediu que

fechasse a janela para poder ter sexo? O tipo teria entrado pela

janela, estava seguro. Filho da puta.

Queria que Lavínia enterrasse essa má lembrança. Desejava

que fosse feliz, que amasse o sexo, e sabia que com sua experiência

podia ajudá-la a fazê-lo.

Voltou a sair para o trânsito e se encaminhou de retorno à zona

da qual provinham, como se não devessem havê-la abandonado.

— Aonde vamos? - perguntou-lhe Lavínia. Nick lhe respondeu

sorridente.

— Ver as estrelas.

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Lavínia compendia que Nick a levava ao hotel e não pôde evitar

sentir-se frustrada por isso. Amava-o e ter sexo com ele era como

voltar a respirar, por isso não se negava, mas o fato de que fossem

fazê-lo na mesma cama que ele compartilhava cada noite com uma

amante distinta não a fez se sentir bem. Mesmo assim guardou

silêncio e se entreteve cuidadosa observando o painel. De repente se

deu conta que ele diminuía a marcha antes de chegar ao destino que

ela esperava. Deteve-se diante de um precioso edifício de Porto

Madeiro. Lavínia o olhou imediatamente.

— E onde estamos? - perguntou.

— Em minha casa. - respondeu Nick muito sereno.

Lavínia emudeceu. Tinha pensado que Nick a levaria ao hotel ou

a qualquer outro lugar alugado, entretanto acabava de deter o carro

frente ao edifício no qual tinha seu apartamento. O lugar onde ele

vivia, onde conservava todos seus segredos.

— Deixe-me imaginar que nenhuma mulher veio aqui - pediu

Lavínia com a cabeça encurvada.

Ele a segurou o queixo e a obrigou a olhá-lo.

— Não tem que imaginar - assegurou-lhe. — É assim.

Nick abriu a porta da garagem com o botão que apertou do

chaveiro e logo estacionou o automóvel em um cubículo. Subiram ao

elevador e permaneceram em silêncio até que a porta se abriu no

penúltimo piso.

— Você gosta dos lugares altos - refletiu ela uma vez no

saguão.

— Sim - admitiu marcando em um painel a chave que dava

acesso ao seu apartamento.

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O piso era tão exclusivo como o edifício no que se encontrava

localizado. Estava decorado com cores escuras. Tanta escuridão não

respirava o coração de ninguém, muito menos o de Nick, mas de

frente a janela se podia apreciar meia cidade, convertendo a casa em

um lugar majestoso.

— É precioso - admitiu Lavínia em voz alta.

— Obrigado - replicou Nick retirando o casaco dos ombros. — O

que quer tomar?

Lavínia não tinha ideia de que tinha que responder. Tinha

bebido muito.

— Me surpreenda - brincou encolhendo os ombros.

Enquanto Nick se afastava para a cozinha, ela avançou um

passo mais. Passado a vista pelas poltronas negras de couro, a mesa

de centro, o vestido vermelho. Um vestido vermelho?

Aproximou-se do porta-retratos com a respiração agitada, os

músculos contraídos. Nick apareceu com duas taças de vinho tinto.

— O que faz ela aqui? - interrogou Lavínia ajoelhada frente à

mesa redonda, com ambas as mãos junto à imagem da ruiva que o

acompanhava no navio.

— É minha esposa.

A naturalidade com que Nick deixou escapar essas palavras

indignou a Lavínia ao ponto que ficou de pé e o enfrentou contraída e

com o olhar fulminante. Nick sorriu ante essa atitude de mulher

romana que ela tinha tomado, pareceu-lhe gloriosa.

— Perdão, quero dizer, minha ex - repôs. Estava tão

acostumado a pensar que Patrícia tinha que ser sua esposa porque

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ele assim o tinha decidido que lhe custava fazer-se à ideia de que se

divorciaram fazia cinco anos.

Lavínia sentiu que o mundo de ilusões que tinha forjado em sua

mente se diluía com a força daquela revelação. De repente

compreendia muitas coisas, sobre tudo que Nick sem dúvida estava

apanhado nesse amor do passado, pois acompanhava à mulher no

navio e ainda tinha sua fotografia na sala de sua casa.

— Não sabia que tenha sido casado... - balbuciou cabisbaixa.

— Fui - repôs ele, ainda com ambas as taças entre as mãos. —

Isso acaso troca em algo o que temos? Estou sozinho agora. Quero

dizer, estou com você.

Lavínia voltou a olhá-lo.

— Se estivesse sozinho ela não estaria aí - assinalou a foto com

a mão. — Se estivesse comigo, muito menos.

Nick assentiu.

— Têm razão - disse. Logo deixou ambas as taças sobre a

mesa, pegou o porta-retratos e o olhou com desdém. — Na realidade

não sei por que continua aqui.

Com dois golpes pegou uma ponta da foto e retirou-a, deixando

o quadro vazio. Sem voltar a olhar a imagem, rasgou-a em quatro

pedaços e as jogou junto às taças.

— Sentamo-nos? - ofereceu.

Lavínia não tinha ideia de quão importante resultava para Nick

ter rasgado aquela fotografia que o tinha acompanhado durante cinco

longos anos, por isso deu um basta àquela ação. Ficou-se quieta,

triste e isso se notava em seu rosto adormecido. Eram cinco e meia

da madrugada e não tinha descansado da noite passada.

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Nick se sentou no sofá e Lavínia suspirou sem mover-se. Tomou

a mão de Lavínia.

— Falo-lhe com suavidade, podemos desperdiçar nosso tempo,

pensando no passado, ou perdoar meus enganos e seguir com nossas

conversas. Respeito-te e se a imagem de minha ex-mulher te fez

mal, peço-te com sinceridade perdão.

Lavínia não o olhava, mas cometeu o engano de fazê-lo quando

ele terminou de falar. Era honesto, demonstrava-o em seu olhar,

diziam-no seus gestos, esse rosto tão expressivo que ele tinha.

Entretanto, o que tinha prejudicado a Lavínia não era a imagem da

ex, pois possivelmente ele não tinha pensado levá-la a sua casa

quando tinha saído e por isso não a tinha escondido, a não ser o que

de fato essa foto estivesse ainda ali implicava para Nick.

Ele não a tinha esquecido. Possivelmente a amasse e ela não

fazia mais que lutar contra o fantasma da indiferença da outra.

Lavínia não queria ser a segunda, mas tampouco queria perdê-lo.

— Perdoa-me? - perguntou-lhe Nick. Ela suspirou.

— Não faz falta que me peça perdão - resolveu. Nick não tinha

a culpa de estar apaixonado por outra e de que ela fosse tão fraca

para ignorá-lo.

— Então volte a sorrir - pediu ele, lhe dando de presente em

troca um sorriso de menino encantado. — Por favor...

Lavínia obedeceu, mas se notava que o fazia sem muito

entusiasmo. Deixou-se cair frente a Nick embora evitasse olhá-lo.

Conversaram um momento enquanto Nick, distraído e sem

segundas intenções, jogava com os bocadinhos da fotografia de

Patrícia. Devagar foi transformando em quadradinhos, logo em

bolinhas, finalmente, em ínfimas partículas brancas.

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— Você gosta? - -indicou-lhe um momento depois. Lavínia

olhou para onde assinalava. Mostrava-lhe o vitral.

— Eu adoro - respondeu com sinceridade.

Nick se voltou para olhá-la e se aproximou de sua boca.

Respirou sobre seus lábios, roçou-os com a língua.

— Tenho uma vista muito mais especial dentro de minha casa -

sugeriu, mas a insinuação não provocou em Lavínia o que ele

esperava. Ela contraiu as feições, lhe entristeceu a cara.

— Me diga que não é isso tudo o que queres de mim, Nick -

pediu com um sussurro afogado. — Por favor.

— Morro por podermos fazer amor – respondeu. — Mesmo

assim, passaria todas as noites de minha vida em abstinência só por

ficar ao teu lado.

Lavínia deixou escapar um risinho sincero.

— Não precisa mentir. Sou ingênua, mas não tanto para

acreditar nisso - recriminou. Ele não riu.

— Não estou mentindo – assegurou. — O sexo não é tão

importante para mim.

— Não me diga! - ironizou Lavínia arqueando as sobrancelhas.

— O sexo não é mais que sexo - replicou ele. — Apenas uma

descarga física que te satisfaz um momento. Fazer amor é o que de

verdade importa.

— Então te passaria em abstinência de fazer amor, mas não de

ter sexo - jogou ela com as palavras.

— Ambas - replicou ele. — Sabe uma coisa, Lavínia? Aborreço-

me.

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— O que te aborrece? - ela franziu o cenho.

— Na cama, com as mulheres - precisou. — Com as mulheres

que levo para a cama, quero dizer - seguiu esclarecendo. Lavínia

suspirou.

— Oh. Obrigada.

— Não com você - repôs o homem com um sorriso. Parecia um

adulto e um menino travesso.

— Tampouco com sua mulher - recriminou Lavínia com rancor,

mas em seguida se arrependeu de ter falado desse modo. — Não. Me

perdoe – pediu - não devia dizer isso, estou-me deixando levar por...

— ... ciúmes - sorriu ele.

— Não! - replicou ela horrorizada.

— Sim está ciumenta! Eu adoro.

Nick pensou que nunca o tinha sentido. Nem Patrícia, nem

ninguém. Não do modo em que o fazia Lavínia, por amor. Isso o

enterneceu ao ponto de que se arrependeu de haver dito aquilo a

respeito da abstinência e beijou Lavínia sem lhe pedir permissão nem

esperar aprovação.

Como ia passar a vida inteira a seu lado sem lhe dar amor?

Impossível! Iria convencendo pouco a pouco, para isso se treinou

tanto, mas ela ia ser sua sempre.

Não foi necessário, Lavínia respondeu ao beijo lhe rodeando a

cara com as mãos e entrelaçando a língua com a sua. Jogavam

cálidas no interior um e do outro.

O beijo se prolongou em carícias. Nick enredou os dedos no

cabelo comprido da mulher, roçou-lhe a nuca e logo seguiu a linha

reta por sua coluna passando uma unha junto ao fechamento do

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vestido. Lavínia tocava o peito masculino, mas a camisa se

interpunha entre ela e suas intenções.

Desta vez não esperou que Nick lhe indicasse o que tinha que

fazer, não lhe fez falta porque se deixou levar pelo que sentia já sem

temores nem fantasmas. Precisava voltar a viver.

Impulsionada por essa premissa, apropriou-se dos botões

enquanto ele fazia o mesmo com o fecho de seu vestido. De repente

se arrependeu. Era uma pena despedir-se dos objetos, que tão lindas

sensações lhe brindavam e que serviam para ganhar novas

experiências. Para isso se deteve e se separou dos lábios de Nick;

queria atrair sua atenção. Conseguiu seu intento, porque não sabia

que fazia e o olhou.

— Está muito lindo - sussurrou ela com um sorriso travesso nos

lábios, acariciando o pescoço de sua camisa. — Nos deixemos a roupa

posta.

Nick baixou o olhar aceso para os seios de Lavínia, que

apareciam tímidos pelo decote recatado, e suspirou. Adorava a ideia

de que os objetos funcionassem como barreira; a limitação imposta

de não poder tirar as acrescentaria ao desejo, mas para falar a

verdade também morria por voltar a vê-la nua. Mesmo assim, aceitou

a proposta trazendo as mãos ao rosto da mulher e rodeando-o com

elas para lhe dar um beijo apertado.

Lavínia gemeu. A língua de Nick era cálida e se movia

preguiçosa dentro de sua boca. A lentidão do beijo afligiu os sentidos

da mulher. As mãos de Nick se deslizaram das bochechas femininas

ao pescoço, logo à nuca. Apertou-a mais contra seu rosto e então o

beijo se tornou mais exigente e possessivo, mas continuava sendo

suave. Ela se perguntou como na natureza de um homem podiam

conviver qualidades tão contraditórias. Compreendeu ao mesmo

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tempo em que era graças a elas que morria de desejo. Foi o que a

impulsionou a apoiar as mãos em seu zíper.

Nick sorriu contra seus lábios. Lavínia abriu os olhos e viu os do

homem brilhar.

— Está indo rápido - murmurou ele com regozijo, voltando as

mãos às bochechas de Lavínia. Estavam ruborizadas e nelas pulsava

o mesmo desejo que ela se esforçava por reprimir mais abaixo, onde

ainda os separava um fino tecido de seda.

— Tive saudades... - atreveu-se a responder.

— E eu de você.

Nick a recostou sobre o tapete. Lavínia se removeu ao tempo

que umedecia os lábios. Pôde sentir neles o sabor de Nick, e isso lhe

fez faltar o ar. Que seus sabores se mesclassem, lhe fazia palpitar a

carne.

Introduziu uma mão por debaixo do tecido verde água,

procurava chegar à roupa interior. Ficou arrastando os dedos pela

parte interna da coxa de Lavínia, castigando-a com sua lentidão. Ela

se estremeceu. A carícia se sentia de uma vez cansada e fabulosa,

porque o fazia cócegas, mas a excitava. Repercutia em sua

intimidade, e quando as mãos do homem alcançaram o objeto

ansiado e deslizaram por suas pernas rumo aos pés, arqueou a

coluna e jogou a cabeça atrás. Apertava as pálpebras.

— Não abra os olhos - pediu-lhe Nick. Lavínia tremeu. Por quê?

Perguntou-se. Por...?

— Têm que me prometer isto - interrompeu os seus

pensamentos enquanto lhe flexionava uma perna.

Incapaz de outra coisa com tal de que a doce tortura seguisse

seu curso, Lavínia tragou com força e respondeu sem fôlego.

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— Prometo.

Uma carícia cálida e úmida lhe pôs a pele arrepiada atrás do

joelho, logo na parte interna da coxa, ali por onde antes se deslizou

um dedo. Não era uma unha, não. Queria abrir os olhos, mas os

apertava com todas suas forças porque tinha prometido fazê-lo.

Tampouco era uma unha o que subiu até perder-se no lugar onde a

escuridão prometia encher-se de luz.

Enquanto a úmida calidez se movia rápida e às vezes lenta em

cada rincão daquela parte secreta da mulher, Lavínia não se dava

conta de que gemia e se retorcia, incapaz de conter-se mais. Se Nick

seguia jogando esse jogo, ela já não poderia guardar seu ponto

máximo de gozo para ele, como desejava fazer.

Se agarrou ao cabelo de Nick. Assim o apertou contra esse

lugar que estava lhe brindando tantas sensações - cócegas,

espetadas, eletricidade - e lhe pediu que seguisse com a magnífica

tortura. Uma mão penetrou pela parte superior de seu vestido, mas

como era apertado os dedos não alcançaram o lugar desejado. Como

lhe tinha ocorrido deixar-se de roupa posta? Tinha sido uma ideia

muito estúpida. Mas Nick não se dava por vencido tão rápido como

ela. Não lhe importou mais que sentir prazer e atirou com impulso e

rapidez o tecido, pretendendo rasgá-lo. Era bom, estava bem

costurado, sem dúvidas o vestido o tinha feito Lavínia porque não se

rompeu. Devorou com mais força. O tecido se rachou e seguiu

rompendo. O fato custou a Lavínia uma marca vermelha nas costas e

um ardor o que, longe de feri-la, excitou-a. Toda a situação era em

realidade muito estimulante.

Quando os dedos de Nick alcançaram seus mamilos e os

arrepiaram com movimentos circulares e ligeiros apertões, Lavínia se

queixou. Não resistia mais pressão.

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— Vamos fazê-lo- murmurou ele. Deixava-lhe o fôlego sobre a

sensível pele de sua vulva. — Vou gostar de ver isto - e acelerou as

carícias com a língua, com as mãos, com os lábios.

As palavras terminaram de afligir a Lavínia. Estalou em gemidos

afogados, mordeu-se o antebraço para não gritar. E depois, agitada e

tremente, entreabriu os olhos irritados de sentir.

Nick descansava com a frente apoiada sobre sua coxa. Tinha

um braço estirado e lhe acariciava com essa mão o esterno, justo

nesse momento passava por entre seus peitos em direção ao ventre.

Os dedos baixaram devagar e se detiveram no umbigo, onde riscaram

alguns círculos. Ele também parecia cansado, e permaneceram os

dois assim incontáveis minutos.

De repente Nick apareceu por entre suas pernas, apareceu por

sobre sua pélvis. Os olhos brilhavam e sorria com cara de menino

travesso.

— Você gosta? – perguntou. — O fiz bem?

Lavínia não pôde acreditar nessa pergunta.

— Mm mm.... - resmungou. Parecia adormecida. — Dou-te um

oito.

Nick franziu o cenho e se fingiu zangado.

— Um oito é uma nota medíocre, senhorita, eu gosto do dez.

— Já sei que você é muito exigente - brincou ela - vai ter que

seguir praticando - disse. Ele riu e se sentou na posição de índio.

Brilhavam-lhe os lábios. Lavínia começou a limpar-lhe com as

mãos. Cheirava estranho. Não queria imaginar como devia saber tudo

isso que ele tinha na boca.

— Por que o fez? - perguntou. Nick se encolheu de ombros.

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— A primeira razão é que não tinha preservativos na casa, e

não queria te decepcionar - respondeu. Ela continuava lhe secando a

boca com os dedos. — A segunda, me deu vontade. Em conclusão. Eu

adoro.

— Agora te devo uma - queixou-se ela baixando as mãos.

— Não se preocupe, agora me paga a dívida em casa. Olhe

como me deixou.

Tomou uma mão e a levou até sua entreperna. Lavínia sorriu.

Não fazia falta explicar com palavras como o tinha deixado. Tomou o

rosto entre as mãos e o beijou na boca. Agora ela descobria o que

sabia seu próprio corpo.

— É tão bonita - sussurro-lhe sem lhe soltar a cara. Olhava-a

encantado. — Não tem ideia do quão linda que te põe nesse

momento, quando chega ao final. Sinto-me como uma fantasia.

Lavínia sob o olhar. Ainda lhe custava acostumar-se às

conversações nas que o sexo era sinônimo de intimidade e de

confiança. Sorriu com as bochechas tintas de rubor, mas não se

intimidou. Ela também queria mais.

— Então não percamos tempo - atreveu-se a dizer. — Eu não

gosto de dever nada a ninguém.

Para levantá-la do piso, Nick lhe rodeou a cintura. Lavínia riu

porque os dedos lhe enterravam no flanco, e ela era sensível às

cócegas. Quando estava em situação, não se dava conta, mas agora

que seu corpo tinha ficado mais sensível, vibrava com qualquer

estímulo.

Nick a soltou sobre a cama, apoiada sobre seu lado esquerdo.

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— Não te mova - ordenou com voz suave, prometedora, Lavínia

fechou os olhos. Já tinha comprovado que quando dava uma ordem,

vinha-se algo que a ia deixar nas nuvens.

De repente sentiu que terminavam de lhe arrancar literalmente

o vestido. O som do tecido ao rasgar-se foi tão sensual como seu roce

na pele enquanto abandonava seu corpo. Por uns segundos, ficou

sozinha na cama, e o silêncio envolveu o quarto em penumbras.

— Nick? - interrogou sem abrir os olhos.

Surpreendeu-a um tremor no colchão e logo toda a pele nua do

homem, que se pegou as suas costas. Uma mão úmida de suor lhe

apanhou os seios, quão mesmos receberam um ligeiro apertão

quando serviram de sustento para que Nick se aproximasse mais a

ela. Percebeu um grande signo de masculinidade duro e quente entre

as nádegas e com isso cresceu sua necessidade de senti-lo dentro.

— Quero-te dentro de mim - atreveu-se a mandar. Não se dava

conta do que dizia. E embora a imaginação dele voasse a fez esperar.

Foi melhor porque o desejo aumentou.

Sustentou-se sobre um cotovelo e apartou as mãos dos seios

de Lavínia para transladá-la para seu flanco.

— Você gosta disso? - perguntou-lhe com voz serena. Mas

carregada de prazer.

— Muito... - replicou Lavínia sorridente.

Começou no ombro com dois dedos que se deslizaram para as

costelas, logo à cintura, e acabaram no quadril, onde a mão se

aferrou com força, mas sem machucá-la. Enquanto fazia isso, beijou-

lhe o ombro e depois as costas. Lavínia vibrou de quão receptivo era

seu corpo ante essas carícias.

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— E isto? - seguiu perguntando ele. Abandonava o silêncio em

sua pele sensível e nua.

— Eu adoro.

A mão de Nick fez outra vez o percurso, só que de forma

ascendente, até apanhar os seios de Lavínia, brincou com os mamilos

enquanto lhe beijava o pescoço até ouvi-la respirar com agitação e

senti-la tremer de ansiedade.

Como ele também queria estar dentro de Lavínia, internou-se

nela sem tempo a desperdiçar, aferrando-se ao pedido que sua

namorada lhe tinha feito momentos antes. Lavínia se queixou pela

invasão, presa de um frenesi que jamais tivesse apostado que seria

capaz de demonstrar.

— Você gosta que sejamos um? - perguntou-lhe enquanto se

movia dentro dela. — Porque eu gosto muitíssimo.

Lavínia já não respondeu, não podia fazê-lo. Abriu os olhos,

subiu um pouco a cabeça e viu as mãos de Nick lhe apertando o

busto, que se inchava para cima ou para baixo segundo os

movimentos que ele fizesse. Vendo o ato, a fricção contra a pele

sensível de seus peitos e mamilos parecia sentir mais.

Começou a ofegar. Adiante lhe doía o vazio e por isso se levou

uma mão ali, onde se produziu ela mesma agradar enquanto o

tamborilar de suas nádegas contra a parte inferior do ventre

masculino oficiava o doce castigo por detrás. A penetração era uma

força magnética que a balançava primeiro devagar, logo tão rápido

que a transportou em seguida aonde ansiava chegar.

— Ah - gemeu, mas uma mão quente lhe cobriu os lábios

procurando sua língua. Lavínia a aceitou.

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Depois de acabar, ficaram quietos; Nick dentro dela, procurando

voltar a respirar. Pouco mais tarde, saiu de seu interior, tirou o

preservativo e se respaldou no travesseiro com intenção de atrair

Lavínia, mas ela já girava sobre si mesma para se ajustar contra seu

peito. Nick passou um braço por sobre seus ombros e a apertou

contra si, tão perto que podia respirá-la.

Depois de pagar sua dívida, esgotada, Lavínia adormeceu. Nick,

em troca, passou um longo momento olhando o teto do quarto

enquanto fumava um cigarro e a mantinha abraçada sobre seu peito.

Quem era ele? Por que tinha tanto medo? Podia fazer feliz a

uma boa mulher, como tinha sido sua mãe, ou acaso necessitava de

Patrícia, do ódio que lhe brindava e o forte que lhe parecia, para não

sentir temor de si mesmo? Necessitava que ela o dominasse para

assim estar seguro de que jamais a machucaria como seu pai tinha

machucado a Teresa?

Sob a cabeça. Sentiu que roçava o dourado e suave cabelo de

sua deusa romana com o queixo e soube que não podia perdê-la.

Horas mais tarde, Lavínia abriu os olhos com o temor de que

Nick tivesse desaparecido. Mas não só o viu a seu lado, ainda com

um braço debaixo de sua cabeleira, mas sim além se recordou que se

encontrava em sua casa e que não havia lugar algum onde ele

pudesse ir sem que ela o notasse.

Via-se tão juvenil quando dormia, tão lindo. Lavínia elevou uma

mão e lhe acariciou o nariz que tanto gostava. Nick reagiu com um

grunhido ao tempo que sacudia a cara. Lavínia saltou de susto e pôs-

se a rir.

— Que mau! - brincou.

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Nick girou, hábil entre os lençóis e se estendeu sobre Lavínia.

Ela pensou que ia fazer amor, mas em troca a beijou na testa e lhe

sorriu.

— Convido-lhe a tomar o café da manhã - ofereceu.

— Não - respondeu ela. — Eu te convido. Posso ir à cozinha e

preparar o chocolate que você gosta tanto.

Nick assentiu e a deixou livre. Amava o chocolate e sabia muito

melhor quando era preparado com amor, por isso aceitou a oferta.

Lavínia estranhou imediatamente o peso daquele prodigioso corpo

sobre o seu, mas se sentou na cama sem emitir objeções e procurou

algo que vestir.

— Essa sim que é uma formosa vista... - comentou Nick

admirando as costas femininas nuas. Tinha as mãos detrás da nuca e

um sorriso travesso desenhado nos lábios. Os olhos, como nessas

últimas horas, expressivos.

Lavínia girou a cabeça e lhe sorriu em gesto de agradecimento.

Logo encontrou a camisa do Nick e foi isso o que vestiu, além da

calcinha, embora o objeto masculino ficasse bastante grande. Saiu do

quarto e atravessou a sala rumo à cozinha.

Ela saltou de susto. Fi a assustou.

— Oh - concluiu a mulher. — Também se encontra aqui

senhorita Dickinson. Em seu escritório, em seu apartamento... já

vejo. Estas sim que são boas notícias - Lavínia soltou uma risada. —

Sempre soube que o... seu número de telefone seria o eleito.

Nick apareceu por detrás de Lavínia com as calças como único

objeto. Rodeou-lhe a cintura com os braços e apoiou o queixo sobre

seu ombro. Sorria, parecia outra pessoa. E seus olhos brilhavam

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quando Lavínia apoiou suas mãos sobre as dele para responder ao

abraço.

— Vejo que já se reencontraram – disse. — De todos os modos,

acredito que nunca as tinha apresentado formalmente. Lavínia, esta é

Fi. Fi, esta é Lavínia. Minha namorada.

— Você... namorada... - resmungou Fi, que não cabia em seu

assombro. Um medo irracional sulcou sua mente: só esperava que

essa mulher não fosse como Patrícia. Não, não o era, mas aquele

seria um temor sempre latente até que provasse o contrário.

— Prazer em conhecê-la, Fi - sorriu Lavínia. — Nick não me

falou muito de você porque na realidade não fala muito de ninguém,

mas te nomeou - brincou. Nick sorria.

Não. Essa mulher não era como Patrícia. Fi riu sem restrição.

Nick apareceu na segunda-feira na universidade. Tomas foi um

dos últimos em aproximar-se e demorou tanto que Nick chegou a

pensar que jamais se aproximaria.

— Modifiquei a localização das salas de cirurgia - explicou o

menino. Sua voz evidenciava os nervos que sentia.

— Deixe-me ver - pediu Nick, que tinha voltado para sorratear,

cortando a brecha entre ambos.

Tomas desdobrou um cilindro de papel na mesa de ensino sua

criação com medo de que Nick voltasse a mandá-lo por onde tinha

chegado. Mas o professor tinha recuperado o bom humor e a simpatia

de sempre.

— Está bem – admitiu. — De todos os modos, o que tinha feito

antes não estava tão mal. Só tenha em conta que o salão de

exposição deve estar em uma área pela que não circulem pessoas

amarguradas, entendeu-me?

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— Sim.

— Longe de emergências, internação... tampouco o pode pôr

em administração.

— Sei.

— Está bem. Bastante bem. E achável - o menino, que tinha

começado a enrolar o papel para retirar-se, deteve as mãos sobre a

folha e o olhou. — Comportei-me como um desgraçado, perdoe-me.

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Capítulo 19

Lavínia costurava moedas e lantejoulas a velocidade relâmpago

para recuperar o tempo que não tinha destinado ao seu trabalho

durante o fim de semana, não deixava de sorrir. Cravou-se o dedo ao

menos cinco vezes e cada vez que o levava a boca para apaziguar o

ardor provocado pela agulha, lembrava-se de Nick e de que ele tinha

feito o mesmo para lhe demonstrar algo que já não lhe importava

entender. Que ele confiava nela, possivelmente, que a queria para

sempre, que talvez algum dia a amasse. Que esse amor estava

destinado a doer e ele a sarar as feridas que lhe provocasse. Ignorou

essa última opção, não queria pensar nisso, não queria reconhecer

que se Nick amava outra pessoa, cedo ou tarde ela teria que deixá-lo

ir.

No sábado seguinte da inauguração do Centro Médico, Nick

passou por Lavínia para levá-la a uma festa que se ofereceria em

uma discoteca. Uma marca de roupa apresentava sua nova coleção e

ele queria que ela fosse estabelecendo contatos nesse mundo. Queria

que pensasse em desenhar de maneira profissional. Não o havia dito,

mas ele se encarregaria de lhe apresentar às pessoas adequadas.

Enquanto se arrumava, Lavínia o espiou do quarto. Ele se tinha

detido frente ao porta-retratos com sua imagem e manipulava algo.

Lavínia se sentiu envergonhada. Não se lembrava de que tinha

deixado ali sua foto recortada de uma revista, como uma boba.

— O que faz? - perguntou-lhe a tempo que se aproximava.

— Magia - respondeu Nick. Quando ela chegou a seu lado,

notou que ele enrugava um papel.

— O que é isso? - insistiu.

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— Uma má lembrança.

Lavínia passou a vista pela mesinha do telefone e ali o viu: o

porta-retratos já não luzia aquele recorte de revista, a não ser a foto

que o jornalista tinha tirado dos dois no Centro Médico, no qual Nick

usava o traje que ela tinha confeccionado. O coração de Lavínia deu

um tombo e a impulsionou a abraçá-lo.

— Oh, Nick! – exclamou. — É tão doce!

Passaram uma noite divertida. Dançaram, tiveram muita vida

social, e sem que Lavínia sequer se desse conta, Nick a introduziu em

círculos de desenhistas profissionais e marcas de roupa. Ela estava

fascinada com tudo o que via, com as conversações que escutava e

nas quais animava a participar com entusiasmo. Nick sorria orgulhoso

cada vez que notava os olhares de aprovação de outros desenhistas

em relação às ideias de sua namorada e pensava que em dois ou três

encontros mais, acabariam lhe oferecendo um trabalho. Estava

seguro disso.

Lavínia amanheceu na casa de Nick outra vez. Fi já não se

surpreendeu de que Lavínia aparecesse pela porta da cozinha

esfregando os olhos e a saudou com familiaridade e prazer.

Desde que era a namorada de Nick, Lavínia não tinha tempo

para todos os trabalhos que tinha que fazer. Se não passava a noite

com ele e logo o dia dormindo, passava o dia pensando nele, com o

qual suas tarefas se atrasavam. Costurar uma prega, ação que

normalmente lhe demandava vinte minutos, podia lhe levar inclusive

quarenta e cinco. Suspirava, ficava olhando o vazio, as lembranças

com Nick, e marcava seu número no telefone sem levantar o

auricular, só para senti-lo perto.

Foram juntos às bodas da Tamara. Como o velho Mustangue de

seu primo, que devia levar a namorada à igreja, avariou-se, Nick

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acabou transportando-a em seu Audi. Não foi o único estranho que

lhe aconteceu naquela festa, porque na recepção que se levou a cabo

em um Clube da Avellaneda, terminou jogando futebol com outros

moços, como há muito tempo não o fazia.

— Hei! - exclamou Tamara quando as damas os descobriram. —

Jogando uma partida sem avisar à torcida? Que descortesia!

Desse modo, os homens jovens da festa e alguns outros já

maiores terminaram jogando futebol como profissionais enquanto as

mulheres torciam por uma e outra equipe. Finalmente, Nick e o irmão

menor de Tamara ganharam. Ao finalizar, o menino se aproximou, ele

o elevou no ar e deram juntos o grito da vitória. Lavínia ria a

gargalhadas e tampouco se salvou da alegria desmedida dos

jogadores. Nick se aproximou, a tomou pela cintura, deu-lhe um

efusivo beijo nos lábios e justo nesse momento, alguém tirou uma

câmera.

— A ver, uma foto do jogador estrela e namorada - brincou.

Lavínia se inclinou para trás com um braço esticado fazendo

uma brincadeira e Nick fez uma careta divertida que completou seu

verdadeiro ser. A fotografia capturou ambos os corpos e se apoderou

das duas almas.

Na segunda-feira pela tarde, Nick passou por seu apartamento

para lhe avisar que iria viajar. Ligou na terça-feira e na quarta-feira

do hotel, sempre às onze da noite para assegurar-se de que ela

estivesse em casa esperando seu chamado. Não deixava mensagens,

odiava as secretárias eletrônicas.

Ele se mostrava natural e carinhoso, o qual apagou toda

sombra de temor da mente de sua namorada. Lavínia poderia ter

pensado que, estando longe, Nick ia enganá-la, ou que, acostumado

a trocar de par sexual cada noite, faria o mesmo tendo-a ou não

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tendo a ela. Entretanto, acreditou no que lhe tinha prometido: que

lhe era fiel e que a respeitava.

E Nick assim o fazia. Guardava todo seu desejo e seu ímpeto

para Lavínia, porque quando estava sozinho pensava nela, em sua

namorada, que sentia saudades como poucas vezes tinha sentido

saudades de alguém. Tanto que começou a pensar no modo de

convencer que o acompanhasse em sua próxima viagem.

Não lhe interessava lhe dar de presente jóias e perfumes, isso o

tinha feito com outras. Queria passar tempo com ela, dar a Lavínia

algo que nenhuma podia obter: partes de si mesmo.

Na quinta-feira Lavínia passou pela casa de sua mãe para

visitar o Hector e terminou por levar o menino a sua casa, já que o

garoto insistiu em que queria dormir com ela e Cristina não se negou

a que o fizesse.

Nick olhou pela décima vez seu relógio de pulso. Tinha

esperado nesse corredor em penumbras uma hora. De repente, uma

voz rompeu o silêncio.

— Mas eu o queria em vermelho. Diga-lhe que troque isso.

Nick girou a cabeça. Lavínia estava de cócoras para estar à

altura de que devia ser seu irmão.

— Disse que não, Hector - dizia-lhe com voz maternal.

Acomodou-lhe o pescoço da camisa. — O quiosque não sabe de que

cor vem o brinquedo de chocolate.

Ficou de pé. Nick a observava com as costas apoiada na parede

lotada de cogumelos de umidade, com o olhar divertido que sempre o

caracterizava. Lavínia se sentiu tão feliz de vê-lo que um sorriso

radiante lhe invadiu o rosto.

— Nick! Voltou da viagem! - exclamou antes de correr para ele.

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— Venho do aeroporto, não via a hora de ver-te.

Lavínia ficou na ponta dos pés para abraçá-lo. Do mesmo modo

apaixonado lhe beijou toda a cara. Sem querer, encheu-lhe o coração

de uma emoção singular. Ele se simulou aturdido e a fez rir. Logo a

beijou na boca.

— Lavi... - falou a vozinha a seu lado, então Lavínia elevou

Hector nos braços.

— Carinho, este é Nick - apresentou-os - meu namorado.

— Seu namorado? - interrogou o menino com o cenho franzido.

— Querido - replicou ela antes de olhar ao Nick. — Este é meu

irmão Hector - explicou. Quase não pareciam irmãos, não se

pareciam em nada.

— Levo o nome de um herói da Troia! - exclamou o menino que

gostava de acrescentar aquele comentário cada vez que conhecia

alguém. — Olhe o que me deu Lavi.

O menino sustentou em alto uma moeda de cinco centavos, que

era o troco que Lavínia lhe tinha dado da compra do chocolate.

— Empresta-me isso? - pediu Nick. Hector cedeu seu tesouro.

Nick moveu as mãos até que a moeda desapareceu. O rosto de

Hector se transformou em uma careta desconsolada.

— Onde está? - perguntou.

— Acredito ter visto algo por aqui... - replicou Nick enquanto

levava uma mão a sua maleta e extraía uma rosa vermelha do

compartimento exterior, abandonando ali a moeda.

O gesto paternal de Nick fez sorrir a Lavínia, deixou-a

encantada pensando em quão diferente ele era em relação ao homem

que tinha conhecido.

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Quando Hector viu que sua moeda tinha dado uma rosa, saltou

dos braços de sua irmã e olhou ao estranho como se este acabasse

de lhe roubar.

— Para você - disse Nick a Lavínia. Ela sorriu e tomou a flor

iludida.

— Oh, obrigado! - exclamou.

— E minha moeda? - reclamou Hector, cruzando os braços. Nick

o olhou.

— Sua moeda se converteu nessa linda flor, mas em troca pode

ficar com isto.

Deu ao menino uma nota de dez pesos, que tinha no bolso do

casaco, e o deixou mais que contente. Mas a Lavínia não.

— Dê-me isso Hector - ordenou. Logo olhou ao Nick com pesar.

— Me perdoe, mas é muito para um menino tão pequeno.

O problema não era só Hector ser pequeno, a não ser como

ficava seu pai por uns poucos pesos e o que aquilo significaria: todos

saberiam que ela tinha namorado, averiguariam que era

endinheirado, e quereriam tirar proveito. Não estava disposta a expor

Nick a isso.

— Não! - recriminou o menino. — É meu dinheiro e não lhe

penso dar isso, estúpida!

Lavínia tremeu. Baixou a cabeça, pálida e piorada primeiro pela

vergonha, depois porque era a primeira vez que seu irmão repetia tão

claramente algo que estava acostumado a ouvir em sua casa.

— Ei, amiguinho - chamou-o Nick com simpatia. — Essa não é

forma de tratar a uma garota. Assim nunca vai conseguir uma

namorada.

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Hector não respondeu por que possivelmente não entendeu a

mensagem, mas ficou olhando. Para ele não havia nada estranho em

um grito ou um insulto.

— Entremos - propôs Lavínia com a voz entrecortada.

Hector se afastou uns passos agitando sua nota qual bandeira

de triunfo e Nick aproveitou para abraçar Lavínia, que tinha ficado de

costas para ele, de frente à porta. Rodeou-lhe a cintura com os

braços, enterrou a cara entre seu cabelo e lhe falou ao ouvido para

que esquecesse o assunto de seu irmão.

— Não têm ideia de quanto senti saudades – murmurou. — De

quanto te necessito.

Lavínia sorriu involuntariamente. Conseguiu encaixar a chave

na fechadura com ajuda das mãos de Nick, que se moveram precisas

e cálidas sobre a sua até abrir a porta.

Enquanto preparava o jantar na cozinha, Lavínia se sentia

culpada porque não tivesse querido que Nick e seu irmão se

conhecessem. Hector estava perdendo a inocência, e Lavínia temia

que a fizesse passar outra vergonha como a da porta. Por outro lado,

não queria sentir-se envergonhada de seu pequeno irmãozinho. Era

um menino, não se dava conta de que alguns costumes não deviam

ser exibidos, aprendia com o mau exemplo que tinha em sua casa.

Apesar de seu medo, tudo se desenvolveu com normalidade até

a sobremesa, quando a ela lhe ocorreu reclamar a nota de dez pesos

a Hector de novo.

— Maninho, não te parece que com dois pesos seria suficiente?

— É meu. Deram-me isso, e você têm inveja - replicou o

menino.

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— Não é isso, Hector. É...

Lavínia se interrompeu de repente. Não podia seguir falando

sem pôr em evidência de onde provinha, quem era sua família e

quais eram seus costumes.

— É uma porcaria, como diz Helena! - gritou-lhe Hector. — Uma

porcaria!

— Basta, Hector! - reclamou Lavínia. — Vocês pensam que falar

assim é divertido, mas não o é. Isso não é normal, nem é divertido,

nem deve fazer-se! Assim não é a vida. Não deve ser assim.

— É uma merda! - exclamou o menino sem lhe emprestar

atenção, como acontecia sempre em sua casa, que ninguém escutava

a ninguém e cada um dizia o que queria.

Lavínia o calou de uma bofetada. Uma vez sim podia tolerar

esse trato, duas não. Nick estava mudo. Imediatamente, ela reagiu e

cobriu a boca com ambas as mãos, horrorizada pelo que tinha feito.

— Me perdoe, maninho! – exclamou. — Eu não quis fazer isso,

me perdoe!

— Quero ir para a minha casa, com mamãe - reclamou o

menino.

— E tudo o que te estive ensinando? - Lavínia estava a chorar,

Nick se dava conta por seu tom de voz suave e pausado. — Tudo

desperdiçado em umas semanas com eles...

— Helena tem razão! - reclamou o menino. As lágrimas

escorregavam de seus olhos escuros e se deslizavam pela pele de

suas bochechas. — Cuida-te mais que nós. Quero ir para casa, com

mamãe - e começou a fazer manha de criança. — Quero ir para casa!

Quero ir para casa!

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— Não é necessário que faça isso - interrompeu-o Lavínia. —

Posso te levar para casa se me pedir isso com modos. Junta suas

coisas.

Hector correu ao quarto. Nick ficou de pé.

— Aonde vai? - perguntou-lhe Lavínia. — Por favor, fique.

— Vou levá-los - respondeu ele, respeitoso da situação.

— Não, por favor - replicou ela. Não queria que sua mãe visse o

carro de Nick, seria ainda pior que lhe deixar saber que tinha dado

dez pesos a Hector.

— Agradeço-lhe isso, mas prefiro que me espere aqui. Se quiser

conservar seu automóvel, convém-te ficar deste lado do Rio.

— Prefiro conservar a minha namorada.

A resposta serena de Nick conseguiu relaxar um pouco a

Lavínia, embora os olhos da moça não deixassem de ver-se tristes e

úmidos. Que mais dava? Tampouco podia ocultar a Nick eternamente.

Tomou o telefone e discou um número.

— Mamãe – disse. — Estou levando ao Hector a sua casa, quer

passar a noite com você. Nos espere na porta, por favor.

Desligou muito rápido.

A viagem se desenvolveu em silêncio. Quando Nick deteve o

automóvel frente aos monoblocos, reconheceu que era o lugar onde

tinha ido procurar a Lavínia segundo o dado de seu vizinho de

negócio, mas não comentou nada a respeito. Viu a mãe de Lavínia

receber ao menino a uns metros da grade de entrada, na porta de um

dos edifícios. Cristina observou com os olhos semicerrados o carro

caro que acabava de deixar a seu filho e tentou ver quem o conduzia,

o qual não foi possível dado que os vidros eram polarizados.

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Uma vez que Lavínia viu Hector com sua mãe, pediu a Nick que

arrancasse o automóvel. Retornaram em silêncio. O estacionou na

porta do edifício de Lavínia, mas não apagou o motor.

— Vai? - perguntou-lhe ela.

— Tenho que ir - respondeu ele.

— Se está horrorizado ou algo, rogo-te que me diga isso.

— Lavínia - tentou interrompê-la Nick, mas Lavínia não se

calou.

— Por favor, diga-me a verdade. Escutar essas coisas da boca

de um menino! Deve pensar que sou uma...

Lavínia não conseguiu completar a frase. Ela o olhou.

— Penso que é a mulher mais lutadora que jamais tenha visto.

Lavínia baixou o olhar. O coração lhe espremeu pelas palavras

de seu namorado.

— O diz para me consolar - argumentou.

— Não, não o digo para te consolar – defendeu-se Nick e

desligou o motor do carro. — Digo-o porquê é certo.

Lavínia não queria, mas se pôs a chorar.

— Dei-lhe uma bofetada, Nick – recordou. — Nunca tinha feito

algo como isso. Como pude fazê-lo agora? Sou uma selvagem.

Nick tomou a mão e a apertou para que ela o olhasse.

— Lavínia.

— Eu não sou sua mãe, jamais lhe bati! Resgatei-o dessa casa

quando seu pai fez o mesmo.

— Resgatou-o? - indagou ele, alertado pela frase.

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— Sim... - ela dizia quase envergonhada. Baixava o olhar. —

Viveu comigo estes dois últimos anos até que me obrigaram a

devolvê-lo a minha família.

Nick expressou o orgulho que sentiu por Lavínia com seu tom

de voz.

— Você bateu nele, mas seu pai não fez o mesmo - disse em

relação ao golpe.

— Sim! Tinha-lhe batido!

— Saberá que existem distintos tipos de golpes - corrigiu-a

Nick. Ela o olhou. Ao fim se calou e o olhava com atenção. — Meu pai

nunca me bateu - continuou ele - nenhuma bofetada, nem uma

ferida, nem sequer uma palmada na cabeça por fazer uma

travessura. Não vivia comigo. Mas minha mãe o fez, muitas vezes. A

última foi quando tinha doze anos, Doze! E não era que me

entregasse às drogas ou à bebida nem nada disso, mas era insolente.

Respondia mal às vezes, e ela não o merecia.

Lavínia o olhava com olhos enternecidos, imaginando a esse

Nick adolescente que respondia mal a sua mãe e agora recordava

esses momentos com carinho tão imenso. Notava-se na suavidade

com a qual se referia à mulher, no brilho que cobrava seu olhar

quando falava dela. Era fácil deduzir que já não estava ao seu lado.

— Lavínia, se ninguém o corrigir em casa, alguém tem que

fazê-lo fora - continuou Nick referindo-se a Hector. — Esse menino

tem a sorte de ter uma irmã que lhe dê uma palmada por amor, e o

dia de amanhã te recordará como eu recordo a minha mamãe: como

a pessoa que fez tudo por amor a mim.

Lavínia suspirou mais serena e animada.

— Obrigada, Nick - e sorriu.

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— É a verdade. Não fez nada mal, pelo contrário... - ela o

interrompeu.

— Obrigado por confiar em mim – esclareceu. — Por me contar

suas coisas, sei que não é fácil para você. Têm que saber que eu

jamais trairia sua confiança.

Ele ficou olhando. Não se tinha dado conta do que fazia até que

ela o fez notar, porque conversar com Lavínia se converteu em algo

natural. Embora não se arrependeu, tampouco comentou nada a

respeito e o coração lhe espremeu ao pensar que Lavínia lhe estava

prometendo cuidar de seus segredos como ele mesmo o fazia.

— Tenho que ir porque me espera Pablo para...

— Está bem - assentiu ela. — Vou sentir muitas saudades.

Abraçou-o. Nick respondeu imediatamente, mas logo a soltou

porque recordou algo.

— Tenho uma coisa para você - estirou-se para o assento atrás

e entregou a Lavínia um saco marrom que ela ficou olhando. — Não o

abre agora?

Lavínia elevou a vista e lhe sorriu. Logo se dedicou a abrir o

saco, do qual extraiu três revistas. Abriu a primeira na marca que

Nick tinha deixado.

— Oh, por Deus! - exclamou sem poder acreditar que em uma

imagem a via com um vestido branco, de pé junto a Nick na entrada

da discoteca. Leu em voz alta: — "O conhecido construtor Nicolas L.

Hagen com sua namorada, a desenhista Lavínia Dickinson" - elevou

os olhos para olhar Nick em seguida - por que dizem que sou

desenhista?

— Porque foi o que lhes disse eu.

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Lavínia se ruborizou e baixou o olhar.

— Mas eu não sou desenhista, Nick – corrigiu. — Nunca

terminei a carreira. Logo sou costureira.

Elevou-lhe a cabeça tomando-a pelo queixo.

— Mas é a melhor costureira do mundo, e a melhor costureira

do mundo merece ser desenhista.

Lavínia meditou um instante as palavras, mas em seguida

baixou a cabeça de novo e encolheu de ombros.

— Obrigada, mas sei que não sou a melhor do mundo. Invento

muitas coisas, e todas me saem mal – repôs. — Hector viveu comigo

desde que tinha dois anos até não faz muito tempo. Foi porque uma

noite Josué o golpeou e eu me revoltei. Então o denunciei como

drogado e bêbado. Não passou mais de umas horas na cadeia, mas

os antecedentes e que nenhum tinha um trabalho fixo serviram para

que o juiz me desse a posse temporária.

— Foi muito valente - Nick de verdade pensava que Lavínia

tinha sido muito forte para enfrentar a sua família pelo bem de seu

irmão.

— Sim, mas não serviu de nada, só piorou as coisas -

lamentou-se ela. — Minha mãe se casou com o Josué para recuperar

Hector, o juiz o devolveu, e em umas poucas semanas ele já se

acomodou à vida com eles, aos maus costumes que minha mãe

adotou ao unir-se a Josué e que acreditei Hector não havia

interiorizado. Equivoquei-me, tem mais sangue deles que meu. Tenho

que aceitá-lo: minha vida de sacrifício não pode resultar atrativa

frente a uma vida cheia de facilidades e diversões, como a que levam

eles. Não poderei resgatá-lo, como não pude resgatar a Helena.

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Nick suspirou. Teria desejado aliviar a dor de Lavínia, a vida

dura que lhe havia dado, entretanto era consciente de que quão único

podia lhe dar era um melhor presente e um futuro promissor.

— Depois meu negócio está falido - seguiu contando ela.

Ele interveio: — Isso foi sua culpa.

Lavínia o olhou surpreendida, com as sobrancelhas arqueadas.

Nick não demorou para explicar-se: — Vendia suas criações, certo?

— S... fui duro Lavínia. Não sabia o que seguia.

— Sem estar a par das tendências, sem estudar à competência.

Não olhava revistas de desenho nem podia viajar a Paris ou a Nova

Iorque, capitais da moda, para te instruir. Equivoco-me?

— Sabe que não tinha acesso a nenhuma dessas coisas.

— Então, tal como pensei, desenhava por intuição. O faz de

maneira extraordinária, seus objetos têm uma qualidade que

evidência uma capacidade com a que qualquer desenhista estaria

enlouquecido - ela baixou o olhar de novo, disposta a discutir, mas

ele não o permitiu. — Quieta - disse com o tom alto. Lavínia tragou

um sorriso enquanto secava as lágrimas com a mão. — É fabulosa,

mas aponta muito baixo e pôs um negócio como esse em pequena

escala e no bairro equivocado - Lavínia elevou os olhos para Nick, que

parecia ter feito um estudo de bens e serviços formidável em muito

pouco tempo. — Para vender teus desenhos, primeiro deveria fazê-los

em função do que demanda o mercado. Logo pôr o negócio em um

bairro onde as pessoas valorizem os objetos exclusivos: Recoleta, As

Cañitas, Porto Madeiro - lhe piscou os olhos porque era onde ele

vivia. Lavínia sorriu. — E pô-lo em grande, sempre chamando a

atenção. A gente tem que pensar que se não entrar no seu negócio,

se comprar em outro lado, é medíocre e não serve para nada.

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Lavínia riu porque já tinha se dado conta de que Nick fazia tudo

assim como aconselhava, muito bem: suas construções, seu cruzeiro,

as pessoas. Nick entrava em um lugar e jamais passava

despercebido; se não obtinha a atenção de todo o mundo, não era

Nick Hagen.

— O que teria que ter posto em Avellaneda é algo que essa

gente necessita com urgência - continuou dizendo ele.

— E o que necessitam? - interrogou Lavínia, curiosa.

— Algo que está em extinção, mas sempre é útil, e para o que

só ficam quatro ou cinco pessoas em toda Buenos Aires – brincou. —

Nesse local, deveria ter colocado um imenso pôster que dissesse

"Hospital da roupa", ou algo como isso. "Reparo todos em objetos", e

essas coisas. - Pelo rosto de Lavínia, ele se apressou a esclarecer: —

Já sei, não é o que queria fazer, mas terminou fazendo de todos os

modos e em pequena escala, escondida em seu apartamento.

— Sim - assentiu Lavínia. Ele tinha razão.

— Eu também fiz coisas que não queria ao princípio. Trabalhei

em uma pizzaria, por exemplo. "o do Jun", essa era.

— Quer dizer que construiu o local - provou ela, incapaz de

pensar outra coisa. — Sim, deve ter sido uma construção muito

pequena para você.... - quase riu pela expressão que acabava de

utilizar respeito de que nada do que ele fazia passava despercebido.

— Entregava as pizzas - disse Nick sem alterar-se.

Lavínia ficou olhando, o sorriso se apagou do rosto. Nick não

parecia brincar, mas ela formou uma imagem tão soberana dele que

lhe pareceu impossível que falasse a sério.

— Minha mamãe estava doente e já não podia trabalhar -

explicou ele. — Tampouco podíamos contar com meu pai, estavam

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divorciados. Teria gostado de trabalhar antes, mas se o tivesse feito

possivelmente jamais me teria formado. Como em quase tudo, minha

mãe sempre teve razão.

— Suponho então que nem sempre foi...

— O típico único filho rico e malcriado - completou ele,

sorridente. — Único filho sim, malcriado um pouco, mas rico não.

Ela também sorriu, mas com pesar. Baixou a cabeça.

— Prejulguei-te e me arrependo. Zanguei-me com você por

quão mesmo eu estava fazendo, fui muito injusta.

— Sim - deteve-a elevando uma mão. — Não seja tão dura com

você mesma, todos erramos. Muito mais se nos mostrarem uma falsa

imagem tão convincente.

Lavínia suspirou. Sabia que Nick calava muito, que guardava

em seu coração dores e pesares que, pouco a pouco, possivelmente

se atrevesse a confiar. Sempre que seguissem juntos, sempre que

algum dia a amasse.

— Além disso, esse não era o ponto - continuou Nick - se der às

pessoas o que necessitam em grande escala, esse será o meio que te

permita fazer o que em realidade quer. Sempre peça mais, nunca

aceite menos.

Lavínia estava encantada com as palavras, certas e

esclarecedoras, mas muito duras, inclusive para esses olhos que a

observavam de um abismo. Então resmungou a única ideia que o

conselho lhe trouxe para a mente: — Para sangrar como você?

Nick a olhou em silêncio. Ficou rígido um momento, sentia-se

descoberto. Pensava.

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— Está sangrando de todas as maneiras - concluiu. E ela

aceitou com entrega as palavras, porque nunca lhe haviam dito algo

tão próximo à verdade.

A sensação não durou muito tempo. Logo ele se esforçou por

fazê-la sorrir de novo lhe dando um apertado abraço e um beijo na

testa. Era carinhoso, expressivo, gostava de manifestar-se através do

contato físico.

— Se prepare para sábado - anunciou com gesto travesso.

Lavínia se separou dele para olhá-lo, intrigada. — Vamos ao teatro.

— Ao teatro? Por quê?

— Porque me entregarão um prêmio.

— Um prêmio! - Lavínia sorriu e apoiou uma mão em seu peito.

— Oh, Nick! Estou tão orgulhosa de você! É o primeiro? Quantos já

ganhou?

— Algo assim como... cinco - contou ele sem um ápice de

orgulho ou soberba na voz, nem sequer com alegria. O

reconhecimento que ele de verdade esperava, jamais chegaria,

portanto outros lhe pareciam insuficientes, passavam despercebidos.

— Este será o sexto.

— É tão importante...

— Todos são importantes - replicou ele, outra vez com essa

estranha humildade que demonstrava quando se tratava de aspectos

positivos de sua pessoa.

— Não do modo em que o é você - respondeu ela. Nick sorriu,

não acreditava. — E por que é o prêmio?

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— Por algo que estive desenvolvendo - contou ele. — Agora

estou com outra coisa, mas não posso falar disso por agora.

Possivelmente tenhamos outro prêmio para receber.

Lavínia se entusiasmou de só imaginá-lo.

— Tem algo que ver com os japoneses do Paradise? –

aventurou. — Me deixe dizer que pareciam mafiosos antes que

empresários.

Nick sorriu.

— Tem tudo a ver com os japoneses. Vou te contar muito em

breve.

Enquanto pensava em como voltar a ver Nick, Patrícia percorria

as páginas de uma revista da moda. De repente, os olhos verdes da

costureirinha se enterraram nos seus com singular firmeza. Era o que

a tinta depositava na ação de olhar uma e outra vez a mesma página.

"O conhecido construtor Nicolas Hagen com sua namorada, a

desenhista Lavínia Dickinson".

— Essa desenhista! - exclamou, respaldada em sua cama.

Fechou a revista e a jogou na mesa de cabeceira quando a

porta do quarto se abriu. Horácio entrou; tirando os sapatos e a

gravata. Prosseguiu depois com a camisa.

— Deveria ir a academia - espetou-lhe sua mulher, ímpia,

descarregando nele a frustração de que Nick se mostrasse em público

com uma menina de bairro. — Têm flacidez e o corpo de um velho.

Não sei como pretende me agradar, nem sequer tinge o cabelo. Nick,

em troca, tem o corpo jovem...

— Então tivesse ficado com Hagen - replicou o homem

enquanto se desprendia a calça. Horácio estava começando a odiá-la.

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— Já não será possível - vingou-se Patrícia. — Deita-se com sua

filha – riu. — E tudo porque me ama!

Horácio o odiava.

Saiu de casa, internou-se em seu escritório e dali fez uma

chamada telefônica. Recebeu outra às duas horas.

— O que conseguiu? - perguntou.

— Encontramos o que procurava senhor.

— Muito bem. Nesse caso, nos veremos logo.

Patrícia não se surpreendeu de que poucos dias depois seu

marido tentasse compensar suas disfunções sexuais lhe dando o

dinheiro para uma nova cirurgia e aceitando que se levasse ao Centro

Médico construído por Nick, tal como lhe tinha pedido. Claro que não

lhe havia dito que esperava voltar a ver seu ex ali.

O último encontro que tinha mantido com Nick a tinha deixado

mais caprichosa e altiva que alguma vez. Rechaçá-la Nicolas? Pouco

lhe importava a presença de Horácio. Nick voltaria a ser dela e

quando ela desejava algo, obtinha-o como fosse.

— Olhe isto, Helena - disse uma quarentona antes de lhe lançar

a revista sobre as coxas.

Helena deixou de passar o lápis delineador pelos olhos para

reparar no que lhe tinha dado a mulher, que já se sentava na

penteadeira que estava junto a dela para maquiar seu próprio rosto.

— Página trinta e quatro - indicou. Helena deu volta as páginas

até dar com a indicada.

— É isto? - perguntou.

— Não é sua irmã?

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— Onde?!

Helena chegou à fotografia quase tão rápido como abriu a boca,

surpreendida. Semicerrou os olhos e estudou melhor a imagem.

— Sim... não há dúvidas, é Lavínia. E este quem é? Será o

namorado?

— E que namorado! - exclamou a outra que se deteve detrás de

Helena, com as mãos apoiadas no respaldo da cadeira, para poder

farejar com gosto.

— Não sabe ler? - perguntou-lhe a que tinha levado a notícia. —

Note.

— "Noite de festa em..."

— Debaixo da foto, tola! - interrompeu-a a outra. Helena baixou

o olhar.

— "O conhecido construtor Nicolas L. Hagen com sua

namorada, a desenhista Lavínia Dickinson" - riu. — Desenhista? Mas

se minha irmã é uma pobre costureira que passa o dia encurvada na

máquina de costurar! Sempre quis fazer a diva, sempre. Acha-se

melhor que nós porque teve pai.

Nem bem essas palavras abandonaram sua boca, sentiu o vazio

da ausência. Lavínia... Amava-a, sempre a tinha admirado, e se

merecia algo bom na vida tão dura que havia tido, depois de lutar e

lutar em vão. Sua irmã se levou mal com ela, tinha-a deixado

sozinha, mas embora demonstrasse o contrário, em seu interior não

queria que aquela relação também resultasse um fracasso. Se Lavínia

estava saindo com alguém de tanto dinheiro, meteria-se em sérios

problemas.

Não se incomodou em terminar de delinear olhos nem pensou

que estava fugindo do lugar onde fazia pouco menos de um mês lhe

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tinham dado trabalho e que era melhor que a rua. Tinha que ir para

casa.

Chegou para a hora do jantar. Com em uma rápida olhada não

viu Josué, fez uma pergunta.

— Você sabe se Lavínia esta saindo com alguém?

Cristina encolheu os ombros ao mesmo tempo em que enchia o

prato de Hector.

— Outro dia a trouxe alguém em um carro caro. Por quê? –

respondeu. — Pensa que anda em coisas estranhas? Pelo menos terá

sabido buscar um lugar digno, não como você.

A referência a seu trabalho não fez efeito em Helena. Zangada

como estava, deixou cair a revista, que aterrissou sobre a mesa,

aberta na página trinta e quatro. Sua mãe tinha que saber que

Lavínia não era prostituta. Nem fina, nem das ruas.

— Assim já sabia – resmungou. — E pensam guardar o segredo

ou tirar proveito? Porque se está pensando em tirar proveito...

— Lavínia! - interrompeu-a Cristina.

Não lhe demandou muito tempo notar que sua filha maior

destacava entre as fotografias. Vestia de branco diante de um fundo

negro com o logotipo de uma marca de roupa, e estava de pé junto a

um homem alto, grande e indubitavelmente distinto. Deixou-se cair

na cadeira e leu em voz alta.

— "O conhecido construtor Nicolas L. Hagen com sua

namorada, a desenhista Lavinia Dickinson". Com que este é o do

automóvel!

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Josué saiu do banho e lhe arrebatou a revista de entre as mãos.

Helena se amaldiçoou porque não se deu conta de que ele podia estar

aí.

— É o tipo que me deu os cem pesos! - gritou.

— Deu-te cem pesos? - saltou Helena. Suas suspeitas se

confirmavam: todos tiravam proveito da Lavínia. — Quando? Por quê?

— Por que não me disse isso? - zangou-se Cristina. — Me

deveria ter dado. Depois de tudo, é o namorado de minha filha -

destacou o pronome possessivo.

— Disse-lhe isso, mas não acreditaste! - defendeu-se Josué.

— Para que poderia te dar o namorado de Lavínia cem pesos? -

insistiu Helena, preocupada. Com que até Josué já estivesse a par de

tudo e tinha começado a tirar dinheiro do moço. Josué se encolheu de

ombros.

— Não sei.

— Fale a verdade, que estava bêbado e por isso não te lembra

de nada - espetou a moça deixando cair no assento.

— Não provoque, Helena - desafiou-a a mãe. Helena apoiou as

pernas sobre a mesa em um gesto involuntariamente sensual e

colocou uma batata frita na boca. Estava acostumada a ser assim

embora essa não fosse ela em realidade.

— Não sei quem se pensa que é este bêbado imundo - seguiu

dizendo a do cabelo castanho, embora indecisa ainda sobre seus

sentimentos. De repente o rancor voltou a afligi-la. Por que Lavínia a

tinha abandonado? Por que não se precaveu do que para ela

significou "a noite trágica"? — E Lavínia, que se acreditava uma

princesa só porque teve um pai - seguiu dizendo, incompreendida.

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— Cale a boca, Helena - voltou a desafiá-la a mãe.

— É a verdade, sempre lhe demos asco. Eu nem sequer conheci

o pai que me fez, e o pobre de seu filho, com este bêbado...

— Helena!

— Eu vou dormir, hoje não tenho vontade de... - ir "trabalhar" -

mas se calou bem a tempo.

Um momento mais tarde, Josué saiu em busca de seus amigos.

Retornava a casa quando alguém deu uns golpes nas costas. Voltou-

se a ponto de dar uma trombada ao ar. Só Deus sabia quão perigoso

era circular por esse bairro a essa hora da madrugada e com uma

bebedeira nas costas.

Como não se encontrou com um vadio, a não ser com dois tipos

de traje e gravata que levavam um auricular no ouvido e um cabo

que se perdia por debaixo do pescoço de suas camisas brancas, ficou

quieto. Com essa gente não se brinca.

— Gervásio reclama o que lhe deve, Perez - indicou o sujeito,

que conhecia seu sobrenome.

— Eu não lhe devo nada - respondeu Josué de mau humor. —

Que nem sonhe com que lhe pague um só peso.

Josué sentiu a ponta da arma sobre suas costelas, o calor da

ameaça nas vísceras, quase como se já lhe tivesse entrado a bala.

— Têm um filho, não? Um tal... Hector. Você não gostaria que

lhe acontecesse nada, certo? - Josué ficou mudo. — Lhe daremos

quinze dias para pagar toda a mercadoria que levou ou é passe.

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Capítulo 20

Como ainda não tinha terminado de arrumar-se para ir ao

teatro, Lavínia pediu a Nick que a esperasse no salão. Quando saiu do

quarto, achou-o pinçando no bolso. Sabia que procurava os cigarros,

então o impediu.

— Não faça isso - rogou-lhe - Isso faz mal a você e eu não

gosto de te beijar com aroma de cigarro. Dê-me permissão para te

proibir uma coisa, como fazem todas as namoradas? - Nick sorriu

enquanto assentia. — Vou te proibir de fumar.

Nick mordeu o lábio inferior, divertido e de uma vez preocupado

por não poder cumprir. Tentaria não fumar pelo menos quando estava

com ela. Viu-a tirar algo da bolsa. Era uma tira de chicletes verde que

dizia algo de nicotina. Serviam para deixar de fumar.

— Tinha tudo planejado, não? - perguntou-lhe, risonho.

— Tudo - respondeu Lavínia com inocência. — Não via a hora de

que tirasse um cigarro para te dar o pacote de chicletes.

Nick riu e a beijou enternecido. Logo se encaminharam ao

automóvel.

— Estou tão excitada! - comentou ela enquanto ele conduzia. —

Um prêmio! Eu nunca ganhei nada, nem sequer um sorteio ou um

troféu por desenhos na escola - Nick só sorriu. — Mas você não está

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nada excitado com este assunto, é porque está acostumado a

ganhar?

— Não... - refletiu ele. Em realidade não tinha ideia do que se

sentia estar de acordo com algo.

— Diga-me: a primeira vez que recebeu um prêmio, estava

excitado? - Ele encolheu os ombros.

— Nervoso talvez, excitado não. Cada vez que tenho que

enfrentar o público sinto que morro.

— Você? - Lavínia não podia acreditar. Ele parecia sempre tão

desenvolvido, tão simpático e cômodo quando atraía a atenção de

todos.

— Sim, olhe - disse-lhe, e assentou uma mão sobre o antebraço

dela para demonstrar-lhe que estava gelada e úmida. Lavínia sorriu.

— Não se preocupe, porque ninguém se dá conta.

Nick a olhou, fugaz.

— Me alegro de que o note você.

Lavínia se sentiu adulada por ele valorizar que ela fosse a única

pessoa de todas as que se encontrariam na sala que saberia o que de

verdade se agitava em seu interior, mas não pôde dizer nada em

seguida. Ficou pensando em outra coisa.

— É um lucro tão importante, algo que muitos querem, mas

poucos podem alcançar - adicionou pouco depois. — Por que não te

sente excitado, feliz?

Nick umedeceu os lábios e suspirou. Não sabia dar resposta a

isso porque em realidade não tinha ideia de por que nada o

conformava. Lavínia nem imaginava quão desesperador resultava

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jamais sentir-se realizado com nada, ansiar sempre mais e que

quando o ansiado chegava, assemelhasse-se a nada.

— Não sei - concluiu. Lavínia lhe acariciou a bochecha com

ternura. Como se tinha detido por um semáforo que estava vermelho,

ele a olhou.

— Quando pensa parar? - lhe sorria como um anjo caído do céu

para aliviar sua pena. — Até onde pensam seguir?

Uma buzinada acabou com a filosofia. O semáforo ficou verde e

deviam ter avançado fazia um momento, só que o condutor que os

seguia não tinha paciência.

Lavínia sabia que ela estava de passagem, que não era mais

que um degrau na vida de Nick, porque ele queria mais, sempre

mais, e a imobilidade o acovardava. Nick era instável, exigente até a

indigestão, um lutador de convicções muito peculiares. Se uma

mulher poderia havê-lo retido, essa era sua ex-alma gêmea, Lavínia

sabia muito bem e isso a destroçava.

— Amo-te, Nick - sussurrou olhando as mãos. As unhas

pintadas com francesinha que tanto trabalho lhe havia dado fazer

sozinha para que Nick a visse bonita e delicada.

Como de costume, ele não respondeu, mas Lavínia não sabia o

furacão que se desatava no interior de Nick cada vez que ela dizia

essas palavras e ele ficava mudo. Ela podia resistir a seu silêncio? Até

quando? Esperava que pudesse fazê-lo durante muito, muito tempo

que passaria a seu lado embora fosse em silêncio.

— Lembra-te dos japoneses do navio?

Lavínia soube: Nick pretendia lhe pagar a falta de amor lhe

contando um segredo. Dava uma coisa por outra como se fosse o

mesmo, e ela o permitia só porque o amava e não queria perdê-lo.

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Sabia que Nick se iria. Sabia e isso a desesperava porque não podia

abrir seu coração. Não podia mandar sobre seus sentimentos.

— Sim - replicou com obediência. Queria lhe gritar que não

podia viver sem amor e condená-lo a ele a viver sem amar, mas em

troca logo que sussurrava assentindo a proposta de trocar amor por

segredos.

— Investem em um projeto que estou desenvolvendo em um

lugar secreto - continuou ele.

Nick parecia mais entusiasmado porque investigava uma

novidade do que receber um prêmio por algo já conseguido. Nick

fazia isso: lutava e lutava até que chegava a um ponto que logo lhe

parecia nada, e só lhe subtraía seguir lutando. A Lavinia não tivesse

sentido saudades que ao descobrir isso que procurava naquele lugar

secreto ao que se referia, sentisse-se indiferente, depois de ter

procurado tanto.

— Se conseguir, meu nome vai passar à história - seguiu ele

ante o disperso olhar de Lavínia, que se fingia interessada no assunto

embora o que em realidade fazia era segurar o pranto.

— Procuro que meu sistema resista a qualquer terremoto, e

então estará preparado. Bonito, resistente e barato.

Lavínia assentiu com calma. Quanto estava disposta a resistir?

Quanto estava disposta a dar?

Depois da velada, acreditou que já se repôs do mau gole.

Entreteve-se vendo Nick subir ao palco para receber o prêmio,

agradecê-lo. Até a tinha saudado do camarote. Pensava em já não

dizer a Nick que o amava, e então economizaria a dor, mas lhe

escapava da alma, como aconteceu essa noite enquanto faziam amor.

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Começaram no elevador, apenas com um beijo. Nick lhe

perguntou como tinha estado e se o tinha notado nervoso, lhe disse

que era o homem mais lindo do mundo e o beijou. Pretendeu afastar-

se, mas ele não o permitiu. Pôs uma mão detrás de sua cabeça,

pegou-a contra sua boca e irrompeu na dela com sua língua, que

desta vez não se movia lenta a não ser possessiva na deliciosa

cavidade da mulher. Lavínia ficou nas pontas dos pés e colocou os

braços ao redor de seu pescoço. Ele aproveitou a ação de sua

namorada para lhe rodear a cintura e arrastá-la contra a parede

espetada contra um cubículo. Amorteceu o golpe com sua própria

mão e logo aproximou as costas de Lavínia devagar.

Deixou uma mão apoiada no espelho. O frio do elemento

contrastava com o intenso calor que despedia de seu corpo e causava

uma excitante sensação de eletricidade nas costas nuas de Lavínia,

que as tinha descoberta pelo decote traseiro do vestido. Nick utilizou

a mão livre para rodear um peito de Lavínia sobre o tecido de sua

roupa. Ela gemeu. Nesse momento, ele abriu os olhos.

Viu o rosto avermelhado de sua namorada, que tinha os olhos

fechados, e o reflexo deles dois. Isso desatou sua fantasia, era tão

apaixonante que quis compartilhá-lo.

Girou a Lavínia entre os braços para deixá-la de costas a ele e

de frente ao espelho. Rodeou-lhe a cintura com um braço e lhe pegou

o traseiro a sua entreperna. Baixou uma mão e a arrastou do joelho

feminino para a coxa, levantando assim o vestido, que se enroscava à

medida que subia. Lavínia sentiu que os dedos lhe queimavam a pele

sensível da perna. Como tudo tinha acontecido tão rápido, ainda

estava confusa, então ele se explicou.

— Olhe - sussurrou-lhe ao ouvido. — Você não gosta de nos

ver?

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Lavínia abriu os olhos. A imagem lhe encheu as retinas: eles

dois com as bochechas acesas de prazer, as pupilas banhadas de

paixão. Tragou com força, os lábios lhe tremeram. Nick não esperou

resposta, leu-a nos olhos de Lavínia, por isso seguiu estimulando-os.

Ela se aferrou as barras que dividia o espelho em duas metades

e entreabriu os lábios inchados e vermelhos enquanto ele se apertava

mais contra suas nádegas lhe rodeando os seios. Era a imagem mais

excitante que Lavínia tinha visto alguma vez: um braço lhe rodeando

a cintura e uma mão que, de sua perna, tinha passado a lhe friccionar

um peito por sobre o vestido. Os dedos se deslizaram por debaixo do

tecido e lhe roubaram um mamilo, que se estremeceu pelo contato.

Dali partiu uma corrente elétrica que repercutiu em seu sexo.

— Pare o... - murmurou ela. Respirava com agitação. Sentia

pulsar o desejo de Nick em suas nádegas e lhe anulava a razão. —

Detenha-o.

Referia-se ao elevador. Mas Nick não fez tempo a estirar uma

mão para o botão que se ouviu um ruído suave que indicava a

detenção. Os dois se deram a volta como meninos apanhados

fazendo uma travessura. Nick se separou dela, passou-lhe um braço

por sobre os ombros e fingiu sua melhor cara de aborrecido. A Lavínia

não resultava tão fácil enganar; com as bochechas vermelhas e o

rosto sulcado pelo desejo insatisfeito, quão único atinou a fazer foi

acomodar o vestido e logo baixar a cabeça, rogando que ninguém

desse conta do que acabava de acontecer ali dentro.

O casal, muito correto, desses que está perto das bodas de

ouro, vestia de ornamento.

— Boa noite - saudou o cavalheiro.

— Boa noite - replicou Nick com uma respeitosa inclinação da

cabeça.

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— É uma noite calorosa, certo? - comentou o senhor de fraque

em relação ao clima, típica conversação de elevador compartilhada

com estranhos. Lavínia se esforçou por conter a risada, mas um som

áspero escapou de sua garganta. O casal a olhou sentindo saudades.

Nick sofreu o mesmo inconveniente.

— Nem o diga - respondeu, morrendo por dentro. Lavínia pôs-

se a rir. Já sem poder conter-se, ele a imitou. Os velhinhos de

categoria os olharam como a dois loucos, e até deram um passo para

o lado pretendendo afastar-se deles.

Descendo no piso de Nick, ainda rindo do assunto. Entretanto,

nem bem as portas do elevador se fecharam, lhe separou os pés do

piso e a arrastou contra a parede, amortecendo de novo o golpe com

o braço.

Beijaram-se como dois adolescentes apurados. Nick a elevou

sobre seu quadril e ela enredou as pernas ao redor dele. O vestido,

que tinha um comprido talho na perna direita, lhe enroscou no

quadril. A frieza da parede lhe arrepiou as costas, como antes o tinha

feito o espelho. Levantou os braços, Nick passou as mãos por detrás

deles, e foi baixando, desprendeu-lhe o fecho do vestido e logo, como

não saía pela cabeça com facilidade, rasgou-o. Um grito de êxtase

surgiu dos lábios de Lavínia. Tudo em uma fração de segundo.

— Vai rasgar todos os vestidos que tenho? - interrogou ela

fingindo-se chateada. Parecia dormida, mas estava muito excitada. E

por Deus que adorava que lhe rompesse a roupa.

— Todos. Você os arruma ou faz outros. Eu gosto de te arrancar

os vestidos - respondeu ele com tom sedutor. Lavínia riu. Era

impossível não rir com Nick.

Voltaram a abraçar-se e a beijar-se com paixão desenfreada.

Lavínia deslizou os dedos pelo pescoço de Nick até dar com a gravata

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do smoking, da qual se desfez sem ver. Jogou-a no piso. E avançou

uns passos levando-a consigo até a porta, onde digitou uns números

em um painel, também sem olhar, enquanto as línguas se

entrelaçavam nas bocas, e a madeira se abria.

Ao tempo que avançavam contra a parede beijando-se, ela,

presa ao quadril masculino, procurou às cegas os botões da camisa e

começou a desprendê-los sem tempo que perder. Não chegou aos

que se escondiam dentro da calça. Passou as mãos pelo peito nu do

homem, apartou as mangas para que deixassem ao descoberto os

ombros e os beijou. Mordeu a pele e isso o fez emitir um gemido de

exaltação.

— Perdão - resmungou ela antes de lhe passar a língua

insistentes vezes onde pensou que o tinha ferido.

— Não é dor, é luxúria - explicou ele sem dar maiores voltas, e

a arrastou consigo até outra parede, cada vez mais perto do quarto.

— Me dê mais disso. Eu gosto.

Lavínia tomou o rosto entre as mãos, apertou-o e lhe mordeu

os lábios. Adorava fazê-lo. Pressionou mais as pernas ao redor do

quadril masculino para sentir a dureza de seu membro na zona

erógena dela, o que a fez gemer de prazer. Nick se apartou sem

soltá-la. Jogou um olhar aceso ao corpo que tinha diante dos olhos: a

pele branca resplandecia e o setor procurado se ocultava debaixo de

um sustento negro de encaixe bordô.

Apanhou um peito com uma mão e esfregou o mamilo por

sobre o tecido do sutiã; isso a fez umedecer. Enquanto isso beijou os

lábios que, vermelhos e entreabertos, procuravam um pouco de ar

entre tanta paixão. Colocou um polegar entre a pele e a alça do sutiã

para liberar um mamilo e beijá-lo com a língua. Ela tremeu ante a

calidez da carícia, fechou os olhos e jogou a cabeça atrás emitindo

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um som afogado da garganta. Nick extraiu o outro peito, os dois se

avultavam fora do sutiã. Logo levou as mãos às nádegas de Lavínia e,

sustentando-a contra seu quadril, fez o trajeto mais largo: levou-a

para o quarto.

Depositou-a sobre a cama com suavidade, mas com urgência.

Desprendeu-se as calças enquanto ela pinçava na gaveta da mesa de

luz. Achou a caixa de camisinhas fechada e rompeu com uma unha

para tê-la pronta para quando ele estivesse completamente nu,

deslizou-lhe a calcinha pelas pernas.

— Segundos fora - brincou com a boxer enquanto se desfazia

também da mesma.

Lavínia riu, presa de um desejo entristecedor que lhe percorria

o corpo como pequenas serpentes, enquanto deslizava o preservativo

pelo membro de seu amante. Logo abriu os braços e Nick se refugiou

entre eles.

Penetrou-a de uma só vez, rápido e firme. Estirou-lhe os braços

e os colocou por sobre o cabelo, que se esparramava no travesseiro e

no edredom negro. Lavínia jogou a cabeça atrás. Sentia as mãos

quentes de Nick fechar-se em suas bochechas, as apertar até quase

lhe fazer perder a sensibilidade nos dedos. Que bom era tudo isso,

que incrível. Ele sabia exatamente o que, como e onde fazer para que

ela se esquecesse do mundo. Investia-a com tanta força que o fazia

tremer as pernas.

Abriu as pálpebras. Ele a olhava. E foram os olhos de ambos os

que gritaram antes que suas gargantas a reta final daquele encontro.

— Enfeitiçou-me - disse-lhe Nick beijando-a. Ainda não

abandonava o lugar estreito que o retinha.

Lavínia não respondeu com palavras. Mordeu-lhe os lábios,

beijou-lhe as bochechas e lhe lambeu o lóbulo da orelha. Isso os pôs

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prontos de novo, as investidas se reiniciaram e não diminuíram até

que outra vez abriram os olhos e em silêncio gritaram pela segunda

vez que tinham acabado.

— É maravilhosa, Lavínia - disse-lhe Nick sobre seu corpo, lhe

beijando o pescoço, sem sair de seu interior. A rapidez tinha lugar

agora a uma lentidão dolorosa. — A mais formosa de todas - logo a

beijou nos lábios e lhe perguntou, ainda sobre ela. — Sabe por que

não te chamam Helena?

— Porque não sou a mais formosa do reino, depois de tudo? -

arriscou ela divertida, com os braços ao redor do pescoço de seu

namorado.

— O é. Mas definitivamente o romano foi um império muito

mais importante que o grego - disse Nick deslizando um dedo pelo

interior do braço da Lavínia, ainda no alto. Ela sorriu.

— Mas sem os gregos, os romanos não teriam crescido em

vários aspectos de nossa cultura - disse. Nick assentiu.

— É certo, mas a lei natural é que o aluno supere ao professor.

— Isso sim que é verdade - concedeu ela. — Quer que te

demonstre quanto te supero? - brincou. Nick tomou a sério, era uma

promessa muito tentadora para resistir.

— Eu adoraria.

Lavínia pôs as mãos sobre os ombros de Nick e o impulsionou

para trás. Ele obedeceu. Grunhiu ao sair dela, mas o mal-estar

passou muito rápido: em seguida teve que respeitar outra ordem.

Lavínia o fez inverter as posições. Nick ficou com as costas sobre o

colchão, e ela sobre suas pernas. Arranhou-lhe o peito. Percebeu que

ele se esticava de novo debaixo de seu corpo e a olhava como

drogado por seus encantos, então lhe fez uma promessa:

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— Se continuar assim, não sabe o que te vai passar com o que

te vou fazer...

O membro se inchou mais. E ela se sentiu forte: tinha o poder

de pôr Nick em estado de vírgula.

Foi deslizando-se para trás lentamente, enquanto beijava e

lambia o torso masculino. Mordeu aqui e lá; escutava os sons que

escapavam da garganta de Nick cada vez que fazia isso, a respiração

que se agitava, e assim se ia pondo outra vez em circunstância ela

também.

Quando chegou ao lugar desejado, tirou o preservativo, deixou-

o cair no tapete e sucumbiu vítima da dúvida. Não sabia o que fazer,

como agradar. E também pensou que voltaria a provar sabores

estranhos. Mas não tinha sido tão mau a outra vez, de modo que só

limpou a zona com as mãos e com essas ideias em mente, exerceu

certa pressão na base e começou. Uma, duas, três vezes, cada vez

mais ao fundo da garganta, mais rápido, porque assim o exigiam

quão grunhidos ele deixava sair. Tanto fez que sentiu arcadas e Nick a

deteve segurando com suavidade o cabelo. Não aguentaria muito

mais tempo sem acabar e não queria fazê-lo dentro de sua boca.

Lavínia elevou os olhos. Escondida entre as pernas do homem,

olhou-o com uma bochecha ainda cheia e ele sorriu. Sustentava um

preservativo novo com a mão livre e em seus olhos cintilou uma luz

estranha. Foi o instante preciso em que Nick lhe cruzou pela mente

uma pergunta. O que tinha de distinto o sexo que experimentava com

Lavínia, se já o tinha feito virtualmente tudo com outras? Porque para

falar a verdade, nunca se havia sentido tão excitado e feliz como com

ela. A posição sexual mais tradicional do mundo com Lavínia era

melhor que a mais prazenteira e rebuscada com outras, inclusive com

Patrícia.

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Para evitar que ele se ausentasse do ato, Lavínia ficou de

joelhos sobre a cama disposta a respeitar seu pedido enquanto Nick

colocava a camisinha. Logo a tirou do quadril e a fez sentar-se sobre

ele. Lavínia se deslizou para baixo, enterrando-se nela. Acima e

abaixo. Acima e abaixo. Dali podia dirigir o ritmo além de se fazer

muito mais cômodo porque Nick lhe acariciava os seios todo o tempo,

e às vezes deslizava uma mão por todo seu torso e seu quadril até

lhe apanhar uma nádega. Ia lento, logo rápido, de novo lento, até

que sem sair de seu interior ele a abraçou e a girou para lhe deixar as

costas sobre o edredom desordenado.

Impulsionou-se mais dentro tomando do respaldo da cama.

Estava-lhes custando chegar ao clímax porque não tinham respirado

entre uma relação e outra, e foram já pela terceira. Nick a beijou nos

lábios olhou-a com a pergunta pulsando nas pupilas e então gritaram

juntos o terceiro orgasmo.

Lavínia tomou o rosto entre as mãos, olhou-o e lhe disse a

verdade que escondiam suas pupilas.

— Amo-te, Nick. Amo-te.

Abraçou-o imediatamente, não queria que ele visse o brilho de

suas lágrimas. O não obter resposta era um pouco esperado, mas

mesmo assim quanto doía!

Horas mais tarde, enquanto amanhecia e o sol se filtrava pelo

enorme vitral do quarto, Lavínia abriu os olhos. Não estava sozinha,

os de Nick a observavam de um abismo.

Por que não posso te amar, Lavínia? Perguntava-se. Por que não

posso reconhecer que te amo?

— Diga-me o que está pensando - pediu ela em seguida. Nick

umedeceu os lábios.

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— Que é formosa... - fingiu um sorriso.

— Não é verdade - replicou ela com calma. — Pensava: "por

que não posso te amar, Lavínia? por que se é bonita?".

Nick não queria ver-lhe os olhos, não queria reconhecer que ela

estava a ponto de chorar por sua culpa, por isso a estreitou contra

seu peito e a beijou na têmpora. Tinha a melhor mulher do mundo

entre seus braços e seu coração se fechava a ela como a tudo o que

alguma vez lhe tinha feito bem na vida. Era egoísta e insensato,

estava fazendo perder o tempo a seu lado, mas não podia deixá-la ir!

Necessitava-a como à própria respiração.

Lavínia se despediu de Nick antes que Fi chegasse a seu

apartamento. Ele tinha um mau pressentimento, mas se esforçou por

ocultá-lo. Lavínia estava séria, triste, suspirava.

— Levo-te ao aeroporto? - ofereceu ele. Não queria separar-se

de Lavínia e estava disposto a acompanhá-la até aparecer a Tamara,

que chegava de sua lua de mel, para passar mais tempo com ela.

— Não é necessário - respondeu Lavínia sem perder a seriedade

que a cobria. — Vou até sua casa e seu primo me leva com ele em

seu carro.

Não era irritação, não era maldade. Era frustração, pena e dor.

Nick se odiava. Não queria que Lavínia perdesse todo seu

brilho, sua alegria, por sua culpa. Não insistiu em acompanhá-la,

possivelmente ela necessitasse um tempo a sós e logo tudo voltava

para a normalidade, ao menos a que lhe impunha. Quando viu chegar

Fi, esforçou-se por fingir que tudo estava em ordem com um sorriso

falso. A mulher os achou na porta do edifício.

— Já vai? - perguntou a Lavínia.

— Sim - replicou esta sem poder sorrir como Nick fazia.

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— Já vi, Fi - brincou ele com rosto exageradamente

compungido.

— Minha namorada me deixará sozinho todo o domingo.

— Me perdoe - desculpou-se Lavínia com sinceridade. — Minha

melhor amiga chega de lua de mel e quero ir recebê-la.

— Isso está muito bem - coincidiu Fi.

— Tchau, Fi - saudou-a Lavínia e deram-se um beijo.

— Tchau.

Fi a observou afastar-se e logo se voltou para Nick. Ele também

olhava a Lavínia de um lugar afastado do mundo, onde só existiam

ele e seus emaranhados sentimentos.

— Definitivamente é o homem mais afortunado do mundo -

comentou Fi, percebendo que algo acontecia. Pensava que Nick fazia

uma boa escolha em Lavínia e apostava que ele não a merecia.

— É formosa - concluiu ele.

— E te ama - repôs a mulher. — Isso é o importante.

A Nick não fazia falta que Fi lhe dissesse que Lavínia o amava.

Sua segunda mãe tampouco se dava conta do impacto que esse

comentário tinha nele em um momento como esse.

Lavínia se reencontrou com Tamara. No lar recém-estreado, os

contos dos namorados lhe fizeram esquecer por um momento a dor

que albergava em sua consciência. Entretanto, ao retornar a casa,

uma singular sensação de solidão se abateu sobre ela como o pó que

dispersava pelos móveis. Por sorte desfazendo-se dele sobre a

desordem que sempre a caracterizava, mas a dor continuava

instalada em seu peito, seguia-a como uma sombra.

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Acabou sentada à mesa da sala, pensando em que não davam

cinco da tarde e ela já estava sozinha em casa, e Nick só em seu

apartamento. Queria correr para ele, passar o que ficava do dia a seu

lado, mas se conteve. Até quando faria o papel de tola, da que não se

dava conta de que desperdiçava seu amor e a vida ao lado de um

homem que não a amava? Nick era honesto, tal como lhe tinha

prometido, e nem sequer procurava lhe mentir em relação a seu

amor. Não lhe respondia quando lhe dizia que o amava. Que o tivesse

feito sem senti-lo teria sido pior, consolou-se. Entretanto, quanto

daria por uma mentira!

Tinha que ir desprendendo-se de Nick e sabia. Tinha que

abandonar o amor absurdo que albergava em seu coração, que

pulsava desenfreado cada vez que o via. Tinha que desenterrar de

sua mente, por isso não o chamou, e tentaria não fazê-lo enquanto

ainda tinha forças para resistir a seus próprios sentimentos. Falar...

não podia. Sabia como era difícil de tê-lo em sua frente, acabaria

rendendo-se a seu coração apaixonado, e assim se converteria em

um ser egoísta. Até quando poderia ele viver sem amor?

A manhã de segunda-feira passou percorrendo comércios,

tratando de deixar objetos em consignação. Só ficaram com duas

blusas: em uma feira americana, como se seus objetos tivessem sido

usados. Sentia-se tão triste por sua má sorte sentimental e

profissional que nem sequer almoçou. Além disso, não tinha nada

para comer e não tinha cobrado seus últimos trabalhos. Estava no fim

do mês, e se as pessoas tinham que ficar devendo a alguém, era à

costureira.

Lavínia suspirou e se encurvou sobre a máquina de costurar

para terminar mais trabalhos e verificar se tinha a sorte de que essas

pessoas lhe pagassem, assim poderia comprar algo para o jantar.

Estava cansada e de mau humor para suportar que golpeassem a

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porta. Mesmo assim, quando a ouviu, levantou-se e perguntou quem

era.

— Hector! - exclamou a voz de Josué do outro lado.

Josué jamais tinha pisado em sua casa. Se se atrevia a ir ali

era porque passava algo grave. Lavínia abriu sem duvidar.

O grandão cheirava a álcool e a imundície. Lavínia apertou as

mãos e tentou manter-se em seu lugar para que ele não pudesse

entrar, mas não foi possível, Josué pôs um pé dentro e empurrou a

Lavínia para trás.

— Diga-me o que se passou com Hector e vá embora agora

mesmo - indicou ela sem perder seu centro.

— Têm sozinha duas formas de fazê-lo, mas de uma ou outra

maneira o vais ter que fazer.

— Não entendo de que fala - interrompeu-o ela. — Se não veio

pelo Hector, se retire agora mesmo.

— Pelas boas ou pelas más - continuou ele, ignorando sua

ordem.

— Saia de minha casa, Josué - replicou Lavínia. — Agora!

Josué se lançou contra ela, mas não a tocou. Deteve-se um

passo. Lavínia se fez para trás para não respirar seu ar viciado.

— Necessito prata. Têm que me dar mil pesos - reclamou ele

mostrando-se perigoso. — Ninguém mais pode.

Lavínia semicerrou os olhos.

— O que se passa? - espetou-lhe. — Vá pedir a Helena ou a

minha mãe, como tem feito sempre. Nem sequer te dá vergonha que

seu filho te veja assim, que siga seu mau exemplo.

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— Vai dar os mil pesos - ele soava ameaçador, mas Lavínia não

tinha medo.

— Não tenho - defendeu-se. — Estava costurando para jantar,

nem sequer almocei.

— Peça-os a seu namorado. Se sai com você nas revistas, é

porque é endinheirado.

Lavínia entreabriu os lábios. Sabia! Sabia que ser publicamente

namorada de Nick traria problemas!

— Quem te acredita que é? - enfrentou ao moreno. — Por que

pensam que pode vir e reclamar o dinheiro de alguém a quem nem

sequer conhece, porque cheira a álcool e te drogas e por isso as

pessoas de bem lhe consideram perigoso? Eu não tenho medo, e por

mim tu podes morrer antes que tirar ao Nick um só centavo para

seus vícios.

— Não vou morrer - replicou Josué elevando uma navalha. —

Antes vou te matar - ameaçou, mas Lavínia não se acovardou.

— Me mate - desafiou-o.

— Peça o dinheiro ao tal Hagen.

— Nem morta.

Depois de um intenso olhar, Josué guardou a navalha e se

encaminhou à porta ignorando aquela resposta.

— Têm uma semana – sentenciou. — Ou pode ir te despedindo

de seu enterro.

— Já não saio com Nick - informou-lhe ela, mas Josué voltou a

ignorá-la.

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— Do contrário, podem ir escolhendo com quem compartilhar a

campa: com Helena ou com Hagen.

Nem bem Josué fechou a porta atrás de sua imensa e odiosa

figura, Lavínia se levou as mãos ao peito e se apoiou na parede,

incapaz de conter a agitação que a devorava. Quase não podia

respirar.

Josué se tinha tornado perigoso e macabro, tinha-a ameaçado

matando a sua irmã ou a seu namorado. Quem sabia que dívidas

tinha e por que o dinheiro que Cristina ou Helena pudessem lhe dar já

não lhe chegava. Necessitava mais, e Lavínia, através de Nick, era a

melhor opção.

Não podia permiti-lo. Sempre soube que assim que sua família

se inteirasse de que ela tinha um namorado economicamente

acomodado, as coisas se complicariam ainda mais do que já o

estavam. Somado a que Nick não a amava, o círculo fechava perfeito.

Devia deixá-lo ir.

Já não pôde trabalhar. Quando o telefone soou as onze, soube

que se tratava de Nick, mas não se atreveu a responder. Não podia

fazê-lo, acabaria cedendo, por isso se armou de coragem, tampou os

ouvidos como se com isso pudesse deixar de ouvir a campainha do

telefone, e esperou. Como odiava as secretárias eletrônicas, ele não

falou. Lavínia o agradeceu porque do contrário não sabia como ia

fazer para não levantar o telefone e lhe dizer que o amava.

Nick merecia uma despedida, mas ela não podia dar-lhe. Não

devia vê-lo de novo.

Na terça-feira a situação foi a mesma: Lavínia passou a manhã

inteira na cama, dando voltas como tinha feito toda a noite. O

telefone soou várias vezes, mas decidiu não responder. Tentou

costurar a máquina. Não pôde.

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Às onze da noite o telefone voltou a soar. Lavínia não

respondeu. Ao segundo chamado, saltou a secretária eletrônica.

— Lavínia - disse a voz de Nick. A pele de Lavínia se arrepiou

ao escutá-lo, todo seu corpo tremia de impotência. Sentia-se inútil

ante as ameaças de Josué e ante o desamor de quem a chamava.

— Lavínia sou eu, Nick. Sabe que eu não gosto de falar com as

máquinas, por favor, atenda-me? - fez uma pausa. — Lavínia... Está

bem, me chame assim que possa, me tem preocupado. Deixe-me que

te dê de presente um celular? Por favor. Já o devia ter feito, teria

proposto isto antes: tenho que viajar e queria que esta vez fôssemos

juntos...

Um assobio acabou com a gravação. O tempo tinha terminado.

Lavínia se jogou sobre o telefone seguindo o impulso de chamar Nick,

mas se conteve. Com a cabeça apoiada sobre os braços estendidos,

venceu o desejo de voltar para ele, de retornar à vida.

De noite, Nick passou pela casa de Lavínia a caminho do

aeroporto. Ela, até sabendo que ele estava do outro lado da porta,

limitou-se a soluçar com o ouvido pego à madeira, pressentindo os

passos do homem, que iam e vinham pelo corredor. Antes de ir-se,

ele deslizou um papel por debaixo da porta.

"Você está estranha, estou preocupado com você. Tenho que

viajar, ficarei três dias em Rio Negro. Te ligo esta noite", leu. Debaixo

tinha anotado um número de telefone e o nome de um hotel, sem

dúvida onde se hospedaria.

Lavínia suspirou. Ele era tão sincero que quase não parecia o

homem que tinha conhecido.

Os dois dias seguintes tampouco respondeu aos chamados

telefônicos, exceto quando alguma de suas clientes falava com a

secretária eletrônica. Entre esses chamados, ressoou a voz de Fi.

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— Lavínia, sou eu Fi. Nick me está pondo louca, está

preocupado porque diz que não responde seus chamados e ele não

podia suspender sua viagem. Pediu-me que te avisasse que vai ligar

hoje às onze da noite e que se não atender volta hoje mesmo e põe a

porta abaixo, assim será melhor que responda. Assim é como me

disse isso, e sabe que tenho uma arte para repetir o que me dizem.

Adeus. Espero que esteja bem. Fale para me deixar tranquila.

Quando o telefone soou às onze, Lavínia não teve mais opção

que atender. Para isso se cobriu de um ar de indiferença, tão falso

como se Nick não lhe importasse absolutamente.

— Por Deus! - exclamou ele nem bem ela respondeu o

chamado. — Estava preocupado, por que não respondia, onde

estava?

— Por aí - replicou ela o mais breve possível.

— "Por aí"? Está bem?

— Muito bem - depois de dizer isso, Lavínia fez silêncio. Escutou

a respiração de Nick, quase parecia atemorizado.

— Passa algo?

— Estou ocupada, Nick, nada mais - respondeu ela, escassa de

paciência. Pensava que, se seguisse falando, já não poderia sustentar

a farsa.

— Está zangada? - repôs Nick com voz paciente. — É porque

viajei? Juro-te que tentei me comunicar, mas não consegui. Se até

falei com a secretária eletrônica por você! Sabe que odeio isso -

pretendia soar divertido, fazer rir a Lavínia ou ao menos lhe arrancar

um comentário gracioso, mas ela se manteve em silêncio. O vazio do

outro lado da linha era frustrante. — Lavínia?

— Disse-te que estou ocupada, Nick - repetiu ela de mau modo.

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— Volto na sexta-feira. Posso passar aí?

— Não te incomode, tenho um compromisso.

Nick se perguntava o que a fazia ser tão cortante e nervosa,

mas podia intuí-lo. Ele tinha um passado e jamais poderia apagá-lo.

Possivelmente alguma mulher tinha reaparecido, ou alguém havia

dito a Lavínia que ele continuava levando uma vida que tinha

abandonado.

Por Deus que tinha abandonado tudo por ela! Porque não o

necessitava. Não necessitava nada mais que a Lavínia.

— No sábado, então – tentou. — Diga-me a que hora estará

livre e eu...

— Não estou livre no sábado - interrompeu-o Lavínia. — Não

venha. Disse-te que tenho um compromisso e não penso dizer qual é.

— Não ia perguntar.

— Saudações, Nick. Boa sorte.

Depois de cortar o chamado, Lavínia estalou em pranto. Só

Deus sabia quanto amava a esse homem, mas por um lado, não

estava disposta a ser o prêmio de consolo de um namorado

apaixonado por outra. Por outro lado, não podia condená-lo a uma

vida sem amar. Por último, Josué o tinha na mira, e Lavínia não

queria expor Nick às perversas ações de sua família.

Nick não voltou a chamar até a sexta-feira de noite, embora

não o fez às onze, a não ser às oito. Deu-se conta de que chamava

em um horário inesperado, era mais provável que ela respondesse.

— Têm um melhor dia hoje? - disse nem bem escutou a voz da

Lavínia, triste e apagada, do outro lado da linha.

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— Disse-te que tinha um compromisso hoje a noite - replicou

ela, tão dura como foi possível. — Ligou para me controlar? Nem

todos mentimos tão bem como você, Nicolas.

Que ela dissesse seu nome completo lhe provocou uma

sensação tão desagradável que ele também esteve a ponto de ficar

muito sério, quase como quando se ofendeu com aqueles primeiros

chamados que tinha feito a Lavínia. Entretanto, conseguiu vencer

todo o desgosto e se reconheceu culpado do vazio de seu anjo.

Lavínia era boa e não atuaria desse modo se não se devia a que ele a

tinha magoado.

— O que aconteceu, Lavínia? - perguntou com a voz afogada. —

O que fiz? O que fiz mal esta vez?

Lavínia se sentiu morrer. Pensou em lhe dizer a verdade, em

que ele não tinha feito nada mal porque amar a outra pessoa não

significava ser perverso e que Josué a pressionava, mas guardou

silêncio. Não podia dizer todas essas coisas, não resistiria.

— Estou ocupada, Nick - argumentou.

— Compreendo - respondeu ele - Não te incomodarei mais.

— Obrigado.

Lavínia desligou primeiro. Já não tinha lágrimas que chorar,

mas em troca podia destroçar suas costas encurvada frente à

máquina de costurar, e assim o fez. Toda a madrugada.

Nick pensou em fazer algo de sua vida, não queria passar a

noite sozinho. Entretanto, não tinha vontade de sair, não sem Lavínia.

O que ia fazer em um bar ou em uma discoteca, se não tinha

interesse em ninguém mais que em sua namorada? Além disso, era-

lhe fiel. Tão fiel que não sentia ânimo de notar se alguém o

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provocava, nem desejos de provocar. Tampouco desejava outro corpo

que não fosse o dela.

Josué entupiu a secretária eletrônica de Lavínia com mensagens

arrepiantes, mas ela em nenhum momento pensou em trair Nick lhe

pedindo dinheiro para Josué. O marido de sua mãe estava louco se

pensava que o faria.

Quando Fi chegou no sábado pela manhã a casa de Nick,

surpreendeu-se de não achar Lavínia com ele que ficava dormindo

algumas sextas-feiras e todos os sábados.

— E Lavínia? - perguntou enquanto servia duas taças de café.

— Brigaram?

— Ela tinha um mau dia - explicou ele com voz serena.

— E você teve algo que ver com isso?

Nick elevou o olhar. Fazia-se evidente que Fi o estava acusando

e que não acreditava nem por acaso que Lavínia pudesse haver-se

zangado sem que ele fosse a causa.

— Não - respondeu sucintamente. — Não que me tenha dado

conta.

Fi sentou na borda da mesa e cruzou os braços.

— Nick. Essa garota é boa.

— Já sei, Fi - ele franzia o cenho. A mulher sorriu e lhe

acariciou o cabelo que, sem gel, caía-lhe em algumas mechas sobre a

frente. Sempre o levava curto e polido, mas nesse momento não era

mais que um matagal sem forma que lhe dava um ar sensual

involuntário.

— Toma o café - disse lhe estendendo uma xícara. — Eu vou

arrumar sua casa.

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— Não têm que fazer isso - pediu ele. — Sente-se.

— Quero fazê-lo. E depois te preparo chocolate.

Os olhos do Nick brilharam. Sorriu. Não havia modo de impedir

Fi de fazer o que se propunha.

No sábado, Nick resistiu a solidão à força de trabalho atrasado e

café. Evitou o cigarro com os chicletes que Lavínia lhe tinha

comprado. No domingo, esperançado em que ela melhorasse de

ânimo, foi ao seu apartamento.

— Quem é? - perguntou Lavínia de mau modo, pensando que

se tratava de Josué. Se cumprisse com o prazo estabelecido,

retornaria pelo dinheiro na segunda-feira, e já não a encontraria

despreparada, mas se se tinha adiantado, tampouco.

— Nick.

Ante a voz, o corpo de Lavínia, fraco de suportar tudo com

grande esforço, tremeu.

— Estou ocupada, Nick - falou. - Ele se deu conta de que a voz

da Lavínia não soava como de costume, parecia ter chorado ou estar

doente. Graças a isso acreditou dar-se conta da razão pela qual ela se

negava a vê-lo. Mas acaso podia ocultar-se só por uma gripe?

Preferiu pensar que era assim.

— Três vezes a mesma desculpa? – brincou. — Parece-me que

está perdendo originalidade.

— Vá embora, de verdade estou ocupada.

— E doente - sorriu ele em resposta. — Agora entendo por que

não queria obrigá-la. Não se preocupe, não tenho medo, eu nunca

fico doente. Lavínia? - ela se tinha afastado. Ele soube e não pôde

resistir. A incerteza chegaria até esse ponto, não mais.

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A porta se abriu de uma patada, com tanta força que a

fechadura se rompeu e a madeira golpeou contra a parede. Lavínia,

que lavava um lenço na pia da cozinha, saltou de susto e voltou no

momento em que Nick lhe aproximava sem permissão.

— Não! – exclamou. — Que parte não entendeu de que já não

quero te ver?

Nick a sujeitou pelos braços e a sacudiu. Toda essa reação não

lhe parecia normal, nem sequer possível.

— O que fiz? – indagou. — O que lhe disseram que fiz?

Pensava que alguém podia lhe ter mentido, lhe haver dito que

ele a enganava ou que o tinham visto com outra mulher. Não sabia o

que pensar.

— Não quero voltar a ver-te! - reclamou ela em um grito de

fúria e de impotência.

Nick não gritou, não a sacudiu nem lhe disse nada, somente a

abraçou. Apertou-a contra seu peito e lhe beijou a testa.

— Tem febre - anunciou em sussurros.

— Já não me serve - espetou-lhe ela com crueldade. —

Aborreceu-me. O que te passa? – ironizou. — Acredita que é o único

que pode aborrecer-se de suas amantes e desfazer-se delas como de

um par de meias?

Nick a ignorou. Feriam-no suas palavras, mas as perdoaria.

Perdoava-as sozinho porque a necessitava para seguir vivendo. Não,

isso não era amor, repetiu-se. Mas tampouco soube dizer do que se

tratava então.

— Deixe que cuide de você - pediu-lhe. Lavínia sentiu que se

rasgava de dor.

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— Nicolas, falo a sério - replicou, mas lhe tremeu a voz.

Aí estava esse maldito nome. Para Nick soava tão frio, tão duro

e distante... Odiava que o chamassem assim, em troca quando as

pessoas, embora fosse um estranho, chamava-o "Nick", ele se sentia

querido. Esse mal-estar não se transmitiu em sua voz sempre serena,

sempre longe de suas emoções.

— Sente-se - pediu.

— Não. Vá!

— Está doente - repetiu ele pinçando no bolso do casaco.

Procurava seu telefone. — Não é bom que esteja sozinha. Deixa que

chame Fi e suspenda tudo. Fico aqui com você. Vou cuidar de você,

vou fazer você se sentir melhor.

Lavínia o empurrou para trás. Não tinha forças, mas conseguiu

que ele se apartasse por si mesmo. Respirava com agitação para não

dar-se por vencida.

— Falo a sério – assegurou. — Aqui termina tudo, Nick. Não te

quero.

Ele a observava em silêncio.

— Isso é o que quer? - perguntou indignado. — É sua última

palavra?

— É minha última palavra.

Nick baixou a cabeça e apertou as pálpebras antes de abri-las

de novo. Jogou-lhe um último olhar, logo se voltou para a porta e

caminhou uns passos até a saída. Voltou-se na soleira e semicerrou

os olhos de fogo.

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— Nunca te traí. Sabe, não? - perguntou. A Lavínia não bastou

o coração para mentir. Ela poucas vezes mentia, e quando o fazia,

tudo saía mal.

— Sim - confessou com os olhos úmidos.

— E com você fui o melhor que posso ser, dava o melhor de

mim – continuou. — Acredito que ao menos não merecia que

pretendesse terminar com o que tínhamos me ignorando. Acaso te

dava a impressão de ser um homem com o qual não podia se

justificar?

— Não... - a resposta de Lavínia foi quase imperceptível, disse-

a em um tom baixo e pausado, em um sussurro. Sentia-se mal-

agradecida e cruel.

— Então quero que me diga uma só coisa. Por quê? Quero dizer,

por que me deixa – esclareceu. — Há algo que queira me dizer?

Lavínia apertava os lábios. Não podia dizer a metade do que

acontecia, mas sim o que se agitava em seu próprio coração. Elevou

a cara e deixou que uma lágrima abandonasse seus olhos verdes.

— Você não me ama - replicou afogada. — Quer que descreva

como vejo esta relação? Aqui eu não sou mais que uma adolescente

junto à rádio, e você o grande cantor.

Nick sentiu que as palavras abriam uma ferida fechada à força

em sua alma e em sua memória. Octávio fazia quão mesmo Lavínia

descrevia com Teresa, e ele morreria se fazia isso a sua namorada.

— É isso que te faço sentir? - perguntou tremente. Quase

parecia capaz de chorar. — Possivelmente ao princípio, mas quando

de verdade me conheceu... isso é o que sou?

Lavínia tragou com força, incapaz de dar uma resposta. A

verdade era que Nick não a amava e que sua família queria

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aproveitar-se dele, nada mais. O resto eram invenções apoiadas em

assuntos que, tal como Nick anunciava, só se tinham dado no início.

Sabia que ele estava sendo honesto, possivelmente muito.

Podia sentir sua dor, e embora desconhecesse a causa, era consciente

de que ela o estava provocando.

— Não me ama, Nick - recordou-lhe. — Me ama? - Nick apertou

os punhos e tragou com força, mas guardava silêncio. — Me ama? -

repetiu Lavínia com um tom baixo de voz. Nick baixou o olhar. Ela se

voltou de costas. — Vá embora, por favor. Não temos nada mais que

falar.

Lavínia escutou fechar a porta de casa e pensou que esse era o

último dia de sua vida, ao menos da que tinha conhecido em

companhia de Nick. Não estava disposta a expô-lo aos caprichos de

sua família, nem ela se resignava a passar a vida junto a alguém sem

amor. Se Nick não a amava, mas ela sim o amava, era melhor deixá-

lo livre, que pudesse lutar pela mulher que de verdade queria e

então... então ser feliz. Ele o merecia. Necessitava-o.

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Capítulo 21

Era segunda-feira. Lavínia não queria abandonar sua casa, mas

estava consciente de que se não se medicasse, a febre ia seguir

subindo. Adoecia seguidamente para ser verão, pensou. Sem dúvidas

as necessidades econômicas, o trabalho constante e a tristeza por

Nick a estavam consumindo mais rápido do que o esperado.

Abrigou-se mais da conta para a época do ano em que se

encontravam, recolheu o último trabalho que tinha terminado e saiu

de sua casa rumo à de seu cliente.

Secou o nariz com o lenço. Como não fosse suficiente, soprou,

e mesmo assim não pôde respirar com normalidade. Tocou a

campainha. A mulher abriu a porta com gesto sério. Fazia-se evidente

que a visita de Lavínia lhe incomodava.

— Desculpe - disse-lhe ela esforçando-se por falar sem

interromper-se pela falta de ar e a dor de garganta - ficou de passar

para pegar sua roupa no sábado e como não veio...

— Irei mais tarde - replicou a mulher.

— É que não posso esperar até mais tarde - respondeu Lavínia.

— Desculpe, mas por fazer este trabalho que você me pediu para o

sábado deixei de fazer outros, e se não cobrar, não posso comprar

uma medicação. Será possível que lhe entregue meu trabalho em

troca me dê o dinheiro?

A mulher soprou, recolheu a bolsa de mau modo e se meteu em

casa. Lavínia suspirou e se abraçou para dar-se calor. Não fazia frio,

mas lhe parecia que estavam em pleno inverno. Tiritava e quase não

podia manter-se em pé.

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A cliente demorou eternos minutos em voltar a sair, como se

Lavínia fosse uma moléstia, como se a estivesse ofendendo lhe

aproximando o objeto reparado e lhe reclamando o dinheiro como se

ela não fosse pagar.

Lavínia se sentia envergonhada de ter que expor sua situação

para cobrar, parecia mendigar em lugar de estar trabalhando. Quando

Hector vivia com ela, mendigava a quem fosse necessário para lhe

encher a barriga, lhe oferecer água, luz e gás, mas agora que estava

sozinha podia deixar de fazê-lo. Se não fosse porque estava doente e

porque se não se curava não podia seguir trabalhando, não teria

pedido nada. Tampouco estava com ânimo para fazê-lo, só queria

deitar-se na cama e chorar.

Com os vinte pesos que acabava de cobrar nas mãos, caminhou

rumo à farmácia que estava perto de sua casa. Transitava por uma

rua do bairro até que um automóvel se deteve a seu lado e abriu uma

porta. Não fez tempo a olhar do que se tratava o assunto que um par

de braços fortes a pegou pela cintura, elevou-a no ar e a introduziu

no carro.

Lavínia pensou em seguida que eram os sujeitos que

pressionavam ao Josué. Era o dia que o marido de sua mãe tinha

disposto como limite e estava segura de que, para tirar-lhe de cima, o

muito covarde lhes haveria dito que ela lhes pagaria. Possivelmente

até lhes tinha falado de seu namorado rico e de todas as fantasias

que ele tecia em sua mente em relação a esse assunto.

O namorado rico que não a amava.

Só isso lhe faltava, que um par de mafiosos a sequestrasse e

pretendesse lhe tirar o pouco que tinha, quer dizer, os vinte pesos

que acabava de cobrar.

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Subiram-na a um veículo negro de vidros polarizados. Embora

sentisse medo, não o demonstrava. Podia tentar uma defesa, mas

não viu sentido em fazê-lo. Sentia-se tão mal que lhe faltavam as

forças e, além disso, era melhor parecer entregue que fazer-se de

valente porque possivelmente assim a deixariam em paz logo.

Esperava que lhe cobrissem o rosto para lhe impedir de ver o

traficante, entretanto isso não ocorreu. As portas do BMW de

assentos de couro se travaram e Lavínia duvidou se olhava ou não ao

sujeito que pressentia a sua esquerda. Finalmente, a ansiedade por

saber foi mais forte que o medo e girou a cabeça.

Tratava-se de um tipo vestido com um traje tão exclusivo como

os de Nick. Embora tivesse aparência jovem, seu cabelo era grisalho

e em seu rosto despontavam algumas linhas de expressão. Soube

que era judeu porque levava uma kipá. Muito estranho, para ser um

mafioso.

— Não tenho mais que estes vinte pesos que pensava usar para

comprar um remédio para a garganta - disse Lavínia com pesar.

Notava-lhe na voz que estava doente, que já não aguentava mais. Ele

mostrou a nota.

— Tudo o que Josué lhe disse é mentira. Não tenho um

namorado rico nem posso pagar suas dívidas. Lamento que se tome

tanto trabalho comigo.

Horácio Lowenstein elevou suas povoadas sobrancelhas

grisalhas e cruzou os braços. Seu chofer já fazia andar o automóvel.

Estirou um braço e golpeou a janela de madeira que os separava.

— Rogério - disse quando esta se abriu. — Primeiro pare em

uma farmácia.

Nick não deixava de pensar em Lavínia. Embora um cliente

tivesse chegado com uma boa proposta à primeira hora da manhã,

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ele não tinha prestado muita atenção. Era consciente de que Lavínia

tinha todo o direito do mundo de deixá-lo se ele não podia lhe dizer

que a amava. Tinha razão, por Deus, mas desejava retê-la a seu lado

assim, no silêncio, sem que ela esperasse nada em troca! Por que as

mulheres como Lavínia não podiam viver sem que seu parceiro lhes

dissesse que as amava? Por que ele não podia dizê-lo?

A muita gente era fácil fingir, diziam-se "amo-te" como "chove"

ou "faz frio", embora isso não despertasse um só sentimento. Que

singelo seria poder fazer o mesmo com Lavínia, mas ele não era

capaz. As palavras não abandonavam sua boca se não jogassem

raízes em sua alma. Além disso, ela teria se dado conta de que

mentia e de todos os modos o teria abandonado, porque Lavínia

tampouco era dessas tantas pessoas capazes de fingir toda a vida por

conformismo. Acaso o era ele? Não, com ela não.

Podia deixar passar o tempo e logo tentar voltar com ela. Sim,

isso seria apropriado para que os dois ordenassem suas emoções.

Enquanto ele se debatia entre desenvolver esse interessante

projeto que acabavam de lhe oferecer nos Emirados Árabes e seus

alvoroçados sentimentos, Fi abriu a porta do escritório sem golpear e

avançou até seu escritório. Nick elevou a cabeça imediatamente. Sua

secretária parecia preocupada no momento em que colocou um papel

sobre a mesa de madeira.

— Atenda a linha um e leia isso - indicou.

Nick não estava com ânimo para falar com clientes

demandantes nem para suportar resultados de inspeções.

— Agora não posso - respondeu com falta de ânimo. — É muito

urgente?

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— É Eduardo já sabe de onde - respondeu a mulher. — Não

responda ao chamado antes de ver isso – assinalou. — E permaneça

tranquilo, estas coisas passam.

Fi saiu por onde tinha entrado antes que Nick respondesse o

chamado.

— Os japoneses desistiram do projeto, Nick - indicou a voz do

outro lado da linha. — Já leu sobre isso? - pelo silêncio, deduziu que

não. — Leia e não te desespere.

— Viu-me alguma vez desesperado? - replicou Nick com certa

graça.

— Suponho que esta será a primeira vez.

Em cima da mesa estava uma revista de desenho em que sua

assistente tinha marcado uma página com um marcador. Nick abriu

onde se especificava e leu o título da nota com discreta inquietação.

"Uma empresa que resiste a tudo", leu. O cabeçalho rezava:

"Construtora Lowenstein lançará no mercado um novo e

revolucionário sistema construtivo".

— Filho de puta - resmungou Nick. — Não quero pensar que é o

meu...

— Nos adiantou, Nick - exclamou a voz no telefone. — E os

japoneses já não querem investir em algo que lhes trará perdas.

Nick não se deixou derrubar pela informação. Apesar do

crescente ódio que experimentava por Lowenstein, serenou seus

ânimos e suspirou.

— Está bem, Eduardo – replicou. — Já me ocorrerá algo. Você

seguirá como vínhamos até agora, não detenha nada.

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Inclusive antes de cortar a comunicação, Nick sentiu que seu

telefone celular vibrava em seu bolso. Poucas pessoas tinham acesso

a esse número: Pablo, Fi, Patrícia e Lavínia.

Pensando que era ela, extraiu-o do bolso e olhou a tela.

Número restringido. Podia ser Lavínia de um telefone público ou com

um emprestado. Atendeu sem duvidá-lo.

— Para este momento já devem te haver chegado as boas

notícias - disse a reconhecível voz de Horácio Lowenstein do outro

lado da linha. — Quero que saiba que como você fode a minha filha e

a minha esposa, do mesmo modo eu fodo seus negócios e a sua

namorada. Se ainda têm dúvidas, pode vir ao Hyatt. Estarei entrando

com ela em... - olhou seu relógio de pulso - quinze minutos.

Nick ficou gelado, com as palavras engasgadas. Antes de ser

sua esposa era a minha, pensou em relação a Patrícia, você me tirou

isso primeiro, agora assuma as consequências.

Mas em lugar disso, se tinha que escolher uma só coisa para

fazer saber a seu inimigo antes que o chamado acabasse, era que

não se atrevesse a meter-se com Lavínia. Isso foi o que lhe saiu do

coração.

— Se puser um só dedo em cima de Lavínia...

Lowenstein desligou. Não lhe deu tempo sequer para entender

o que era esse misterioso "setenta e quatro" que lhe pareceu escutar

detrás da voz do homem quando lhe falava.

Horácio elevou a mão com o celular ainda na outra mão e se

aproximou da empregada da farmácia, sorteando o tumulto de gente

que se amontoava frente ao mostrador.

Antes de subir outra vez no carro, perguntou ao chofer se

Lavínia havia trazido problemas, mas este lhe disse que não, que ela

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não tinha tentado abrir as portas travadas ou golpear os guichês para

que alguém a ajudasse do exterior. Parecia tomar as coisas com uma

calma que assustava. Ao parecer já se deu conta de que ele não era

perigoso e de que não vinham a lhe cobrar nenhuma dívida, como

tinha deixado notar ao princípio.

Horácio não pôde com seu gênio e sentiu lástima. Pensou que a

namorada de um filho da puta como Nicolas Hagen viveria em um

palacete de Las Cañitas e que seria tão ou mais perversa que sua

própria esposa, mas em troca se encontrou com uma costureira que

habitava um bairro humilde e perigoso, tanto que pensava que a

estavam sequestrando uns mafiosos.

No interior do automóvel, Lavínia esperava.

— Você não vem pelo Josué, certo? - interrogou ao vê-lo ocupar

seu assento.

— Absolutamente - replicou Horácio amavelmente. — Não

tenho ideia de quem é Josué, nem sequer o conheço.

— Não se preocupe - respondeu Lavínia - não perde nada.

Horácio riu. A atitude relaxada do homem conseguiu abrandar

um pouco mais a Lavínia, que também se serenou quando seu

sequestrador foi à farmácia para comprar os remédios em pessoa e

ainda por cima não aceitou seus vinte pesos em troca.

Horácio sentiu-se mal por arruinar a relação de Hagen com essa

garota. Não por esse pedaço de ególatra desalmado, mas sim por ela.

Embora, por outra parte estava seguro de que lhe fazia um favor.

Qualquer que estivesse perto de Hagen era vítima de seu

egocentrismo. Isso o impulsionou a seguir adiante e não levá-la ao

hospital ou a sua casa.

— Aonde nos dirigimos? - interrogou Lavínia a seguir.

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— A um hotel - Horácio percebeu o alarme na moça porque

encolheu as pernas, por isso se apressou a repor. — Não se preocupe,

sou casado.

Lavínia arqueou as sobrancelhas.

— Não acredito que essa seja uma garantia de nada - replicou.

— Para mim sim.

— E o que lhe faz pensar que vou entrar em um hotel com

você? - perguntou ela com toda razão. Horácio suspirou. O namorado

abatido, triste, melancólico.

— Que seu namorado a engana com minha esposa,

possivelmente - respondeu.

Lavínia baixou o olhar. Nick não a enganava, não, lhe havia dito

que lhe era sexualmente fiel até a morte enquanto permanecessem

juntos. Fazia apenas umas horas que o tinha deixado, podia acaso

haver-se deitado com uma mulher casada e que seu marido se desse

conta e armasse toda essa armadilha para ele em tão pouco tempo?

Era impossível. Nick tinha que haver-se deitado com essa mulher

muito antes que ela o deixasse, possivelmente antes de ser seu

namorado. Mas se tinha deixado de ver a mulher desse, que agora

lhe parecia um pobre homem destroçado pelo amor não

correspondido que sentia por sua esposa, que sentido teria que o

marido tratasse de lhe dar uma lição levando a sua namorada a um

hotel?

Lavínia sentiu asco por Nick e pena por esse sujeito que

pretendia associar-se a ela por despeito e por desespero. O primeiro

que pensou foi negar-se à oferta porque apesar de tudo, amava a

esse déspota que tinha sido seu namorado e não queria lhe fazer

dano, nem sequer em seu orgulho machista, mas duvidou. Duvidou

porque queria desfazer-se dele quanto antes, arrancá-lo de seu

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coração e lhe dar uma lição por todas as vidas que Nick tinha

arruinado, como a desse sujeito que se apresentava ante ela agora.

— Com quem tenho o gosto? - perguntou elevando uma

sobrancelha. O homem estendeu uma mão.

— Oh, lamento-o, que descortês que sou - desculpou-se -

Horácio Lowenstein.

Ela sorriu e estreitou a mão que lhe oferecia.

— Lavínia Dickinson - apresentou-se.

— Sim... sei - disse ele. — Não posso acreditar que tendo a seu

lado a uma mulher como você o idiota do Hagen ainda insistisse em

deitar-se com a minha - Horácio percebeu a dor que suas palavras

provocavam em Lavínia, por isso calou. — Desculpe-me de novo,

senhorita Dickinson - expressou respeitoso - mas ele não merece seu

amor nem sua pena.

— E sua esposa sim merece a sua?- replicou Lavínia. Horácio

suspirou.

— Tampouco.

— Então compreenderá que nada se pode fazer contra os

sentimentos - repôs ela com serena resignação. — Um luta e luta,

mas aí estão, carcomem-nos a alma e o cérebro.

Horácio assentiu.

— O que diz, senhorita Dickinson? - indagou uma vez que o

carro se deteve na porta do hotel. — Aceita que passemos umas duas

horas conversando em um quarto de hotel? Não temos que falar

desta situação, podemos conversar a respeito da vida, do que

gostamos.

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Lavínia suspirou, indecisa. Pensava que Nick se sentiria ferido

se soubesse que ela se hospedou em um hotel com outro homem, o

qual sem dúvidas ocorreria. Do contrário, para que quereria esse

sujeito entrar com ela no hotel e passar ali duas horas, o que

pudesse durar uma aventura? Era consciente de que Nick passaria a

vê-la como a uma trepadeira, como às demais amantes que tinha

tido, e que isso destroçaria sua imagem. Que importância teria?

Pensou. Nick não a amava e se a via entrar em um hotel com outro

homem só sofreria em seu orgulho, não em seus sentimentos. Mesmo

assim, não resultava suficiente. Não queria ferir Nick nem em seu

orgulho nem em nenhuma outra forma possível, de modo que faria o

que o tal Lowenstein lhe pedia sozinho por uma razão válida.

— E me diga, senhor Lowenstein. Acredita que isto poderá reter

a sua esposa a seu lado? Porque se o faz sozinho para vingar-se de

Nick...

— Não - replicou ele antes de que ela pudesse terminar a ideia

que expressava. Baixou o olhar para confessar o resto: — Se lhe

dissesse que mesmo perversa como ela é eu a amo... você... iria

acreditar?

Como não lhe acreditar, se lhe ocorria o mesmo? O sentir-se

identificada com esse homem a impulsionou a tomar sua mão.

— Então o fazemos - consentiu.

Nick merecia uma lição, pensou Lavínia. Não podia andar pela

vida das pessoas destroçando matrimônios como se fossem peças de

xadrez. Sabia que elegia bem a suas amantes e segundo as palavras

do tal Horácio Lowenstein, sua mulher era merecedora de um caipira

como Hagen, entretanto, havia um homem detrás, um homem que

sofria pelo engano de sua esposa tanto como ela pelo desamor de

Nick.

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Nick viu os ocupantes do veículo porque a luz do sol os

mostrava através do vidro polarizado. Apertou o volante tratando de

sufocar a dor que ia afogando e esperou. Podia não ser Lavínia, podia

ser uma mulher parecida, porque ela jamais o enganaria com seu

pior inimigo.

Viu-os descer do automóvel. Horácio rodeou a cintura de quem

o acompanhava. Não havia dúvida: era ela, com seu loiro e comprido

cabelo sujeito em um rabo de cavalo, com os delicados objetos que

confeccionava roçando a mão de outro homem, o pior com o que

podia havê-lo enganado.

Como era possível que todas as mulheres que lhe importavam

acabassem enganando-o com Horácio Lowenstein? Por que ele não

merecia mais que traição e desprezo? Não valia a pena comportar-se

bem com as mulheres porque todas eram iguais. Todas eram como

Patrícia e Lavínia.

Reparou na sacola da farmácia, nas figuras que de costas se

internavam pela entrada do Hyatt. Ficou ali, escondido em seu carro,

até passados ao menos dez minutos de que entrassem no hotel.

Queria assegurar-se de que não se tratava de uma entrada e

saída fictícia, embora o duvidasse. Por que podia Lavínia fazer algo

como isso? Ela o tinha enganado sem pudor e sem lástima, tal como

tinha feito Patrícia.

Agora compreendia por que a distância repentina, por que a

ausência de explicações, e compreendeu que a tivesse matado para

que não o abandonasse, que morreria ao não ser capaz de matá-la.

No quarto do hotel a cama parecia e jamais se desarmou.

Lavínia e Horácio se sentaram a uma mesa onde havia fruta e

champanhe, mas embora o homem servisse ambas as taças, nenhum

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dos dois bebeu. Passaram um momento assim, em silêncio, até que

decidiram falar com uníssono. A coincidência os fez rir.

— Você primeiro - disse-lhe ele.

— Cedo-lhe a honra - replicou Lavínia com a mesma

amabilidade.

— Primeiro as damas - brincou o homem. Ela assentiu

agradecida.

— Como o descobriu? - perguntou então.

— Que coisa?

— O de sua esposa.

Horácio pareceu triste. Suspirou, olhou o forro do teto jogando

a cabeça atrás e depois voltou a olhar a Lavínia.

— Não o descobri, mas sei - respondeu. Tinha os olhos

cansados.

— Não entendo. Se não o descobriu, o que lhe faz pensar que é

a amante do Nick?

Agora ambos luziam preocupados, taciturnos, associados por

uma mesma causa: o amor a um ser indiferente a eles.

— Se o dissesse, Lavínia, morreria - replicou ele. — Você está

apaixonada pelo Hagen, nota-se em seu olhar quando algo faz

referência a ele.

Lavínia assentiu.

— Que esteja apaixonada não significa que não tenha bem claro

quem é Nick - replicou. Horácio arqueou as sobrancelhas.

— E quem é Nick? - indagou.

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— Um homem preso a seu passado - explicou ela com

sinceridade. — Conserva fotografias de sua ex-esposa em seu

apartamento, isso deveria deixá-lo tranquilo em relação à sua. Nick

não tem olhos para ninguém mais que sua ex-mulher - baixou o

olhar. — Por ela ele não tem coração sequer para mim.

Lavínia não tinha ideia da destruição moral que suas palavras

produziam no homem, que não pensava lhe dizer que a ex-mulher de

Nick a que ela se referia não era mais que sua própria esposa. Nada

dessa dor se evidenciou em suas facções contraídas.

— E quem é Nick para você? - interrogou ela a seguir.

— Um idiota - replicou ele lhe devolvendo a honestidade. — Não

posso entender como tendo a uma mulher como você insiste com a

minha, que é má e egoísta; perversa como poucas.

— Agradeço-lhe a cortesia - respondeu Lavínia com um sorriso.

— Me permita lhe dizer que sua esposa também é uma idiota.

Desperdiçar o amor de um homem como você...

— Patrícia é o mais longínquo a uma idiota - repôs ele.

— Não, além de idiota é... - Lavínia se interrompeu. Não queria

ferir Horácio ainda mais. Dizer-lhe que sua mulher era uma puta teria

sido o mesmo que dizer que Nick era um pervertido.

— O que é? - interrogou o homem, mas Lavínia não se atreveu

a responder.

— Esqueça-o, senhor Lowenstein – pediu. — Agora me diga isso

que ia dizer-me quando cedeu o turno da fala.

Horácio sorriu com pesar.

— Ia oferecer-lhe um copo de água para que possa tomar os

remédios. Espero ter comprado o que corresponde para a febre.

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Lavínia lhe devolveu o sorriso.

— O agradeço.

As duas horas se estenderam porque se sentaram um a cada

lado da cama, acenderam o televisor e viram juntos Cúpulas

borrascosas em sua versão de 1939. Coincidiram em que ambos

eram peritos conhecedores desse filme e graças a isso puderam

discutir cenas e fazer comentários em relação à trama sem roçar um

cabelo e quase sem sequer enrugar o cobertor.

Acabada a sessão de cinema, Horácio levou a Lavínia até sua

casa e se despediu no interior do automóvel.

— Como Hagen pode não amar um anjo como você! - exclamou

o homem tomando as mãos.

— Do mesmo modo que você não poderia - replicou ela com

pesar - porque ama a outra. Não se preocupe, senhor Lowenstein,

estou segura de que sua esposa comprovará que Nick só tem coração

para sua ex-mulher e retornará a seus braços. O garanto.

Horácio suspirou-se fosse cumprido o que Lavínia pressagiava

ambos perderiam as suas pessoas amadas, mas não o disse por

piedade ou por temor.

Despediram-se e Lavínia entrou em seu apartamento. Por sorte

não havia rastros de Josué. Ela se recompôs momentaneamente

graças à medicação que Horácio Lowenstein lhe tinha comprado,

sentou-se diante da máquina de costurar e seguiu trabalhando para

tentar cobrar algo mais que os vinte pesos que tinha. Enquanto dava

pontos recordava o encontro que tinham mantido. Sentia-se

orgulhosa de quão adulta tinha sido em relação a dor de jamais ter

Nick e de sua solidariedade com aquele homem que tão bem a tinha

tratado. Quase tanto como a tratava o que ela amaria até que suas

forças o permitissem.

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Nick trabalhou encerrado em seu escritório até tarde. Parecia

uma máquina imparável e Fi pensava que se devia ao desgosto que

se levou com seu projeto secreto. Era uma segunda-feira

entristecedora no que se deu conta de que sua confiança tinha sido

traída pela segunda vez em sua vida. Lowenstein também lhe tinha

roubado seu projeto, mas de um inimigo era o esperado, inclusive

podia esperar o de Patrícia, em troca o de Lavínia...

Tratou de concentrar-se no projeto dos Emirados Árabes, que

lhe outorgaria maior riqueza e renome. Era um bom salto para sua

companhia e para seu sobrenome, que era o de sua mãe.

Desconectou o telefone e pediu a Fi que não o interrompesse por

nada do mundo. Riscou desenhos à mão elevada provando se suas

ideias eram o suficientemente boas para aceitar o projeto, mas nada

o conformava. Quando acabou dando-se por vencido, rodeava-o um

amontoado de papéis amassados ao redor de sua cadeira. Anoitecia e

nem sequer se incomodou em fechar as cortinas da janela. Uma

janela maior que a que seu pai tinha detrás quando ele o visitava em

seu escritório, pela qual se podia ver meia cidade.

Lavínia... Lavínia o tinha traído de um modo muito mais cruel

que Patrícia. Tinha-o extorquido, porque quando Patrícia se foi com

Lowenstein, este só era sua competência, em troca agora era seu

inimigo. Detento desse rancor correu ao bar.

Embora passasse vários semáforos em vermelho, como se sua

vida não valesse nada, o caminho se fez interminável. Tinha entre as

mãos as graves perdas econômicas produzidas pelo roubo de seu

invento e possivelmente Lavínia tinha colaborado também com isso.

Entretanto, esse problema lhe importava muito pouco frente ao vazio

espiritual que voltava a abrir-se em seu interior ao saber que Lavínia

era a amante de quem lhe tinha roubado a sua esposa, que tudo

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tinha terminado, e que cada vez que confiava a alma a alguém

acabava ferido.

No bar escolheu um lugar escuro e oculto de olhares

indiscretos, mas de onde a música soava a volume muito alto e podia

ver o salão e a porta de entrada.

— Senhor Hagen! - exclamou o garçom lhe aproximando um

menu. — Quanto tempo.

— Não faz falta - brincou ele. — Começo com um uísque duplo.

Tal como anunciou, Nick começou com um uísque duplo, mas

conforme foram passando as horas, uma variada quantidade de goles

desfilou por suas mãos e por sua boca. Esquadrinhou um comprido

momento às mulheres do salão. Algumas o olhavam, outras se faziam

de interessantes, mas nenhuma o conformava. Às duas da

madrugada, fez um chamado telefônico.

— Roberto.

— Senhor Hagen! - replicou a voz no telefone. — Tanto tempo

sem saber de você.

— Quero que me envie uma mulher ao bar - a voz de Nick

soava distorcida pela dor e a bebida que tinha consumido, mais do

que podia suportar. — Mas me escute bem – ordenou. — Tem que ser

loira, de preferência a quero de olhos verdes. Não, tem que ter os

olhos verdes. Magra e branca. Muito branca. Também vestida de

branco.

— Sim, acredito que posso cumprir com isso - indicou o regente

do prostíbulo de categoria ao que Nick chamava de tempos em

tempos.

— Quero-a doce e inocente - seguiu dizendo Nick. — Delicada,

cândida e jovem.

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— Um anjo - brincou o outro.

— Uma puta - repôs ele com o tom áspero dos desenganados.

Não havia anjos entre as mulheres. Não havia mulheres depois de

Lavínia.

Desligou. Como sua mente continuava pensando em Lavínia, e

a dor, em lugar de desaparecer, se fazia cada vez mais forte, pediu

outros dois goles até que o enjoo e as náuseas o deixaram com a

frente apoiada em uma mão e o cotovelo sobre o joelho. Passou um

momento assim, internado em seu próprio mundo, até que pressentiu

algo. Então se ergueu devagar, como se movia desde que estava

ébrio, e nesse instante uma estridente cor vermelha o cegou. Seu

olhar se encontrou com Patrícia, que lhe sorria de pernas cruzadas,

sentada na mesa de centro.

— Sabia que te encontraria neste bar - disse com gesto triunfal.

— O que fazes aqui? - perguntou-lhe ele com voz áspera.

— Ah, tive de reconstruir meu tabique nasal - replicou ela com

desdém. — Ou te refere ao bar?

— Já disse o que faz no bar?

— O que te preocupa, Nick? - interrogou ela tal como uma

professora de escola seduzindo-o.

— Que veio para me buscar - arriscou ele. Ela negou com o

dedo de uma vez que estalava a língua e movia a cabeça em gesto

negativo.

— Que soubesse que te encontraria aqui não quer dizer que

tenha vindo por você - riu na cara dele. — Nick! Mudou, sim, por um

momento acreditei que muito, mas no fundo é o mesmo de sempre -

aproximou-se de sua boca. — Um menino. Mas eu gosto. Deus, eu

gosto e muito!

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Aturdido como estava, Nick apertou as bochechas de Patrícia

entre os dedos até lhe enrugar a boca e lhe atirou um beijo sobre os

dentes. Alagou a cavidade feminina com sua língua úmida de álcool e

de lágrimas que não deixava cair, que lhe oprimiam o peito como

adagas, mas sempre às escondidas. Patrícia respondeu ao beijo com

paixão e desenfreio. Assim gostava de Nick, muito mais que antes.

Assim era como lhe divertia.

De repente ele a soltou. Girou a cabeça bruscamente e

vomitou. Patrícia fez uma careta de asco, mas não se moveu da mesa

de centro que lhe servia como assento. Uma loira de cabelo comprido

vestida com uma calça branca e uma regata vermelha se aproximou.

— Senhor H? - perguntou. Nick elevou a cabeça e estudou a

prostituta com desencanto.

— Disse que a queria vestida de branco - espetou.

— Tenho as calças no tom - indicou a moça com voz libidinosa.

Patrícia soltou uma sonora gargalhada que ultrapassou o nível da

música, que nesse momento estalava ao ritmo da insônia.

Nick comprovou que nem sequer com dinheiro podia comprar

uma beleza pura e digna como a de Lavínia. Observou que a moça se

sentava a seu lado na poltrona, e se pudesse se teria afastado dela

como de um fantasma.

— Assim vamos fazer um trio - comentou a garota vendo

Patrícia. — Isso não me avisaram.

— Como queira? - burlou-se a outra com o tom mais

depreciativo que encontrou a seu alcance. Vir a confundi-la com outra

prostituta!

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— Me beije - ordenou Nick. A jovem, obediente, fez-lhe o gosto.

Para isso a tinham contratado. Uma vez que se separaram, passou-se

as mãos pelos lábios.

— Que gosto estranho – resmungou. — O que é?

— Um novo licor - respondeu Nick sem fazer referência ao

vômito. Patrícia soltou outra gargalhada. Com essa maldade,

incomum nele, Nick lhe pareceu muito mais atrativo que nunca.

Meia hora depois, ele teve à loira no quarto do hotel e só se

preocupou com jogá-la sobre a cama. Resultava evidente que tinha

bebido demais, mas ela, acostumada a seu trabalho, permaneceu em

seu lugar. Nick tirou o casaco do traje e o jogou sobre uma cadeira.

Depois se estabeleceu sobre o corpo magro e pálido da prostituta, tão

distinto do que havia perdido. Começou por lhe beijar o pescoço e

enquanto fazia isso lhe pressionou com força um seio. Ela emitiu um

suave gemido. Afrouxou a mão. Podia controlar seu ódio, disse-se.

Tinha que fazê-lo, a mulher não era culpada de nada.

Tudo se descontrolou quando lhe introduziu os dedos dentro da

calça e pretendeu manipular seus genitais. Que quisesse masturbá-lo

rompeu com a fantasia que Nick pretendia criar em sua mente

turvada, então a odiou. Não era cândida nem inexperiente, era uma

puta. Ele havia dito a palavra ao telefone, mas claramente tinha

pedido justamente o contrário. O que pretendia que lhe enviassem de

um centro de mulheres fáceis?

Separou-se dela violentamente.

— O que faz? - arreganhou-a - Disse que te queria

inexperiente.

— Posso ser o que quiser - tentou conformá-lo ela, mas Nick

não se deixou enganar.

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— Não – disse. — Essa atitude também é de puta - resmungou

e ficou de pé cambaleando-se. A garota riu. — Do que te ri? - gritou-

lhe ele. — Responda! - ela ficou confundida. Franziu o cenho,

temerosa. A Nick não importou, tampouco se tinha dado conta do

efeito que causava na moça. — O que é, mais troca?

Ofendida, a garota ficou de pé e recolheu sua roupa. O cliente

se havia posto violento e temia que a coisa se complicasse.

— Está louco - espetou-lhe com ira contida.

— E você? - perguntou-lhe ele deixando cair sentado sobre a

borda da cama. — Você gosta de fazê-lo com qualquer um? Acredita-

te bonita por isso? Acredita-te mulher?

— Sou uma mulher, filho da puta! - bradou ela colocando-se

torpemente as calças. Nick soltou uma gargalhada dessas que

sempre escapavam a Patrícia.

— Você é uma puta - replicou com voz poderosa. — Puta. E não

vale nada. Usam-lhe e lhe desprezam como a um preservativo. Você

gosta de te sentir isso, um lixo?

— Vai à merda - insultou-o ela antes de sair pela porta o mais

rápido que pôde.

Nick a viu desaparecer, viu a porta fechar-se com um golpe

seco e as lembranças voltar. Não havia modo de arrancar de sua

mente, não existia remédio para desenterrar os de seu coração.

Olhou as mãos suadas. Tremiam igual a seus lábios; os olhos

avermelhados, cansados de conter o pranto. Tragou com força o nó

que lhe tinha formado na garganta e descobriu que lhe custava

respirar.

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— Perdão - sussurrou sabendo-se um monstro, embora fosse

consciente de que a prostituta já não o ouvia. — Me perdoe, por

favor... Você não tem culpa.

Com boa sorte conseguiu chegar à recepção do hotel e falar

com a recepcionista.

— Encontre alguém que me leve a casa, por favor - pediu.

Entrou em seu apartamento aos tombos. Ao passar junto à

barra da sala, recolheu a garrafa de vodca e se inteirou em seu

quarto.

Fi o pressentia. Bastou-lhe abrir a porta do apartamento de

Nick para sentir o aroma de fechamento que impregnava a casa e o

calor do verão ancorado nas paredes. O sol se filtrava pelas janelas

fechadas, por isso tudo estava em penumbras. O aroma e a

temperatura se faziam insuportáveis, cresciam à medida que

avançava por volta do quarto.

Tal como tinha pensado, ali estava Nick, estendido na cama. O

ar condicionado não estava ligado, entretanto se coberto com os

lençóis, a manta e o cobertor de inverno até passar a cabeça, como

um cadáver no inferno. O calor resultava cansativo, ele o produzia. Fi

se sentou a seu lado, sabia que estava acordado.

— Está doente? - perguntou, embora conhecesse a resposta.

Ele nunca adoecia. — Por que não foi trabalhar? Deixou plantado o

senhor Ferreira. Graças a Deus o velho o adora e esperaria por você

até o fim do mundo - não obtinha resposta. — Nick - tentou lhe

descobrir o rosto, mas ele sujeitava com força seu esconderijo.

— Está doente? Fale-me, por favor.

Fi fingiu que se cansou de tentar tirar as mantas e afrouxou a

tensão. Ao perceber que Nick fazia o mesmo do outro lado, retirou-as

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com força e o descobriu banhado em lágrimas, encolhido como um

menino, tremente e destruído. Ao vê-lo assim o coração lhe desabou,

a pena lhe espremeu a garganta.

— O que acontece, filhinho? - perguntou-lhe com infinita

ternura ao tempo que lhe acariciava o cabelo curto. Nick chorava

fundo em um mundo de pesares, em seu verdadeiro mundo, tal como

uma vez o tinha visto chorar por sua mãe.

— Diga-me o que se passa, por favor - suplicou.

— Vá, Fi - respondeu ele. Quase não parecia sua voz.

— Não, não penso ir até que me diga o que te tem assim hoje.

— Quero estar como sempre - pediu ele - sozinho.

— Sente-te sozinho? - interrogou ela. — Sei que não sou muito,

mas estou aqui, com você.

— Não me querem, Fi - queixou-se ele. — Nem sequer ela me

quer.

— Ela? Patrícia? - pela imobilidade de Nick, Fi soube

imediatamente que o problema não era essa mulher, então arriscou:

— Lavínia?

Nick não foi consciente de que se largou a chorar ainda com

maior vigor. Estendeu um braço para o flanco da cama e pretendeu

agarrar a garrafa de vodca que tinha deixado ali, mas Fi o impediu.

— Quer-te, Nick – afirmou. — Eu sei que te quer - ele insistia

em pegar a garrafa. — Deixa isso, por favor!

Nick apartou à mulher com suavidade, mas com determinação e

se sentou na borda da cama. Estava de cueca, até parecia tremer de

frio enquanto ali fazia um calor de mil demônios. Cobriu-se o rosto

com as mãos.

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— Ele me roubou outra vez! - gritou antes de voltar a falar em

sussurros. - Não posso contra ele como não posso contra ninguém.

Elas o preferem, elas me engaram.

— Do que está falando, meu céu?

— Do Lowenstein!

Fi soltou uma risada suave e amarga.

— Ah, Nick! – exclamou. — Duvido muito que Lavínia possa te

enganar com o Lowenstein como o fez Patrícia. De onde tirou isso?

— Vi-os... - resmungou ele. — Vi-os com meus próprios olhos.

Fi arqueou as sobrancelhas.

— Seria uma boba se fizesse algo assim.

— É minha culpa - assegurou ele.

— Sua culpa? - repetiu a mulher. — Por que poderia seria sua

culpa?

— Porque sou um medíocre, por isso! – afirmou. — Porque não

sou nada, porque não sei dar amor...

— O que diz? - arreganhou-o ela com uma mão sobre seu

ombro. Sentia tanta dor por Nick que podia tornar-se a chorar

também. — Nunca vi alguém amar tanto como você.

— Sou um medíocre, Fi - repetiu ele tratando de respirar. —

Medíocre para estudar, medíocre para trabalhar, medíocre para

viver...

— Está louco, sabia? - espetou-lhe a mulher, enérgica. — Não

vê tudo o que conseguiu, tudo o que é teu?

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Nick passou o transpirado dorso da mão pelo nariz e voltou a

deixá-la cair sobre sua perna como uma parte morta de seu corpo.

— Não tenho nada... – chorou. — Eu não sou ninguém...

— Isso não é verdade - corrigiu-o Fi. — E tudo o fez com suas

próprias mãos, com sua inteligência e sua força de espírito.

— Não sou nada - lamentou-se ele. — Não sei fazer nada bem.

— Isso não é certo - insistiu ela. — Todos estamos tão

orgulhosos de você...

Nick elevou uma sobrancelha quase sem forças, e sem

esperanças.

— E quem são todos? - ironizou ao tempo que levantava a

cabeça. Seu olhar causou calafrios a Fi. Ele tinha as íris cinzas

azuladas pelo pranto, o rosto molhado de suor e água que

escorregava de seus formosos olhos, deslizava-se por suas bochechas

e acabava no vazio. — Você? Minha mamãe? Minha mamãe! -

exclamou ao tempo que voltava a esconder o rosto entre as mãos. —

Quero a minha mamãe, Fi! Quero a minha mamãe comigo! O que

daria para poder abraçá-la! Por que me deixou sozinho? Por que lhe

fiz tanto mal?

Fi o estreitou entre os braços como ao filho que jamais tinha

tido. Beijou-o na cabeça e o protegeu com seu amor até que sentiu

que podia falar sem estalar em pranto.

— Não diga que lhe fez mal - reclamou cheia de dor. Também

lhe custava recordar a sua amiga sem sofrer sua falta. — Foi a

felicidade de sua vida e merece encontrar a tua, porque é formoso.

Não sabe quão bem sua mãe me falava de você. Amava-te e por isso

sei que sanará sua alma desde qualquer lugar que esteja. Foi um filho

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excepcional e têm o coração maior e sensível que eu jamais tenha

visto.

Fazia muito tempo que Fi não o encontrava tão deprimido.

Embora estivesse acostumado a ter desigualdades anímicas e

episódios de pranto, a última vez que o tinha visto em tanto

desconsolo tinha sido quando sua mãe tinha morrido. Porque quando

Nick sofria, lembrava-se de todas suas penas juntas.

Por volta das duas da tarde conseguiu convencê-lo de que

deixasse a cama e se sentasse à mesa da cozinha. Preparou-lhe um

sanduíche, mas ele não provou nenhum bocado. Partia-lhe a alma vê-

lo ali sentado, com o olhar avermelhado e extraviado na mesa, o belo

rosto coberto de uma tristeza profunda e inesgotável.

— Nem sequer ele me quer - comentou em sussurros. Fi, de pé

com a mão apoiada na borda da mesa e os braços cruzados diante do

peito, soube que agora Nick pensava em Octávio.

— Quer-te, Nick – replicou. — A sua maneira, mas te quer.

— Que maneira de querer! - ironizou ele. Depois a olhou: —

Será que eu também só sei querer assim?

— Você não é como ele - tentou convencê-lo. — A relação com

Octávio, tens que pensar que nem todos têm a mesma capacidade de

querer.

— Não é casualidade que ninguém tenha essa capacidade para

querer a mim.

— Eu te amo, Nick - respondeu Fi, quase chata pela negação de

Nick. — Pablo te quer, seus alunos lhe admiram, todos lhe querem.

Sua mãe te amou.

Ele elevou um dedo e deixou de olhá-la.

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— Não é o mesmo admirar que querer, nem querer que amar -

repôs antes de umedecer lábios avermelhados. — É meu próprio pai e

não me quer.

— E porque ele supostamente não te quer ninguém pode fazê-

lo?

— Eu não tenho a capacidade de me fazer querer.

— Ah, Nick! - reclamou ela com ímpeto e se aproximou da

mesa, onde apoiou ambas as mãos para lhe falar cara a cara. —

Pensa que eu não te quero?

— Não.

— Então?

Nick tragou com força. Olhou-a. Os olhos carregados de largas

e grossas pestanas voltaram a encher-se de lágrimas.

— Penso que algum dia também me vai faltar – disse. — E

então ficarei ainda mais sozinho.

O coração de Fi voltou a espremer-se, umedeceu-lhe os olhos e

a impulsionou a abraçá-lo. Ele se prendeu ao quadril da mulher para

ocultar seu rosto molhado.

— Sempre haverá alguém para te querer, Nick, sempre -

prometeu-lhe Fi.

— Se eu não posso amar, como alguém pode amar a mim? Sô

minha mãe e você... nem sequer eu mesmo me quero.

— Não diga isso, Nicky, eu não sou a única que te quer. Têm

uma vida, se esquece? Têm amigos, clientes, mulheres... - Nick

deixou escapar um som parecido a uma risada de brincadeira. Fi

compreendeu o que ele pensava em seguida. — Já sei, sei que

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nenhuma é a que quer, mas nem sempre na vida obtemos o que

desejamos.

— Eu não obtenho nada.

— Acredito que tem tudo o que conseguiste, que é mais do que

qualquer se atreveria a sonhar.

— Não o quero!

Fi já sabia. Nada de tudo o que Nick tinha o enchia por

completo, nenhuma dessas coisas podia sanar um coração que vinha

sofrendo e padecendo desde que era muito pequeno.

Por isso não pôde lhe responder mais que lhe dando um beijo

na cabeça e com mais carícias.

— O que fiz de mal, Fi? - perguntou-lhe ele. — No que me

converti?

— Este é um mundo cruel e muitas das pessoas que o habita

são perversas, Nick. Você não fez nada mal, absolutamente nada. E é

bom e formoso.

Ninguém apostaria jamais que Nick tinha passado a terça-feira

em sua casa, com a sensação de que tinha morrido em vida e com

sua secretária como única companhia. Como alguém o tinha visto no

bar, todos pensaram que sua noite de farra lhe havia afetado na

terça-feira e ele se esforçou porque esse pensamento se... Ninguém

apostaria nunca que Nick, o gracioso, o desenvolto e bem-sucedido

empresário, entrava às vezes nesses estados depressivos dos que lhe

demandava bastante tempo sair. Só Fi conhecia essa verdade e as

que se enfureciam com ele quando o ruído se debilitava e o silêncio o

abatia.

Quem sou? Perguntou-se antes de dormir.

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Ninguém.

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Capítulo 22

Pesar de que a parte mais grave do episódio diminuiu na terça-

feira de noite, a busca de respostas não cedeu. Nick ainda se

perguntava no que tinha falhado, como tinha podido deixar-se

enganar por uma mulher outra vez. Primeiro Patrícia, agora Lavínia.

Nenhuma valia a pena. Entretanto, embora tentasse deixar de sentir,

pensava todo o tempo nela, na boa atriz que tinha sido, no estúpido

que tinha sido ele.

Lavínia era muito pior que Patrícia, pensava Nick, porque ao

menos sua ex-mulher não ocultava sua verdadeira personalidade.

Mostrava-se tal qual era, não lhe importava ir de uma cama à outra e

não fingia que era boa e cândida. Era simplesmente uma puta.

Esse pensamento lhe gelou o sangue. Patrícia era sua esposa,

tinha prometido amá-la para sempre e se estava deixando enganar

por uma mentirosa como Lavínia. E ele, que a tinha acreditado uma

vítima de seu egocentrismo e ressentimento!

Não se podia confiar nas pessoas. As pessoas eram perversas e

se valiam das debilidades dos outros para prevalecer, por isso teria

que mostrar-se sempre firme, sempre soberbo e feliz. Como Octávio

e Patrícia, que conheciam seus pontos débeis para humilhá-lo, agora

Lavínia tinha o mesmo poder, e ele se arrependia de ter sido tão bobo

de dar–lhe isso. Era sua culpa, sua inteira culpa, mas mesmo assim

não alcançava a explicar-se como ou por que ela o tinha traído. Só

tinha a si mesmo.

Sua mãe tinha lhe aconselhado que não pedisse tantas

explicações à vida, mas neste caso... neste caso as necessitava.

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Refugiou-se no trabalho. Confirmou sua participação na

construção do parque de diversões sobre gelo nos Emirados Árabes e

essa faísca acendeu um instante de esquecimento nele, embora

durasse um suspiro. Todos se davam conta de que Nick andava em

outro mundo: estava triste, lhe notava na cara e na obscenidade de

seus movimentos. Quase parecia que tinha morrido alguém.

Na quarta-feira pela manhã, Lavínia gastou os vinte pesos que

lhe tinham ficado dos remédios que pagou Horácio Lowenstei. Pela

tarde visitou a feira americana para ver se tinham vendido suas

blusas, mas a notícia foi negativa. Então percorreu alguns locais

mais, nos que até se negaram a recebê-la.

Como ia progredir alguém se nem sequer lhe davam uma

brecha de onde renascer? Se Nick tinha sido entregador de pizzas e

agora era um grande construtor, devia existir uma maneira.

Possivelmente se tratasse de que Nick apontava alto sem lhe

importar quanto lhe custasse chegar ao topo. Em troca ela voava

baixo, jamais se tinha proposto alcançar a cúpula da montanha,

porque sua resignação pela base da colina sempre prevalecia.

Lavínia descobriu que estava pensando de novo em Nick e se

amaldiçoou por fazê-lo. Ele não a tinha incomodado mais, tal como

lhe tinha exigido. Possivelmente já tivesse visto as provas de que

andava com Lowenstein e a odiasse por isso, além que ela tinha

acabado com seu orgulho de ser o que sempre deixava às mulheres.

Em vingança por isso e para demonstrar que ele seguia tendo o

poder, estava segura de que se tinha ido às putas. Aí ficava o quão

fiel Nick podia ser.

Mas apesar de todas essas questões, às vezes se arrependia de

havê-lo deixado. Lavínia suspirou, relegando aquele sentimento. Não

podia viver sem amor e não era justo que Nick vivesse sem amar.

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Que voltasse para as putas ou para sua ex-mulher, pensava. Se em

realidade o amava, deixá-lo ir era o melhor que podia fazer por ele.

Ocupava-se de aumentar a cintura de uma calça. Voltou a

cravar o dedo, como lhe acontecia desde que passava o tempo

pensando em Nick, e o levou a boca. O sabor do sangue lhe recordou

a noite em que ele tinha ido procurá-la, e quase lhe escapou uma

lágrima. Não tinha que chorar, disse-se. Tinha tomado a decisão

correta. Até quando ia condenar ao Nick a viver em sua fantasia de

princesa de conto de fadas?

Dispôs-se a seguir costurando, mas o telefone interrompeu sua

tarefa.

— Falo com a Lavínia Dickinson? - perguntou uma voz. — Você

deixou um curriculum como oficina de costura faz mais ou menos um

ano? - Lavínia tragou com força. Havia-se posto nervosa.

— S... sim - balbuciou.

Naquela época trabalhava com Tamara, agora teria que fazê-lo

sozinha, mas só Deus sabia que o tentaria porque necessitava um

trabalho mais estável. As fábricas que enviavam material às oficinas

de costura não o eram, a quantidade de trabalho que tivesse

dependia da época do ano e do que fizessem outras oficinas. Quando

procuravam a alguém novo geralmente era para um trabalho

temporário porque os de sempre não davam provisão com a produção

que necessitavam, mas mesmo assim era uma grande oportunidade.

Se virem quão bem ela trabalhava, que era pontual na entrega e

cuidadosa, isto é, que não tinham que lhe devolver nada porque

ficassem inconformidades com a confecção, podia converter-se em

uma oficina real, em uma das que a marca preferisse.

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— Queremos que faça uma amostra de trabalho. Poderá enviar

a alguém para recolhê-la e entregá-la para amanhã? Pagaríamos as

dez camisas que faça.

Lavínia assentiu. Quis ocultar seu entusiasmo, mas foi

impossível. Disse que já enviaria a alguém a procurar os materiais e

que levaria de volta os objetos ao dia seguinte. Indicaram-lhe por

quem perguntar e ela saiu correndo. A quem ia enviar, se sua oficina

de costura era unipessoal?

Retornou a casa com a esperança depositada nas dez camisas

femininas que devia confeccionar como mostra para o dia seguinte,

ordenadas por uma das marcas mais importantes do país.

Permaneceu na mesa de sala cortando os tecidos até que sentiu

fome. Ocorreu-lhe olhar o relógio de parede e descobriu que eram

dez e meia da noite e não tinha comprado nada para comer. Foi à

geladeira, sobre a qual tinha sua lata com algumas notas que tinha

começado a guardar para pagar o aluguel, mas ao contar o dinheiro

descobriu que não lhe sobrava para nada. Sem negócios abertos a

essa hora onde poder comprar embora fosse uma guloseima e muito

menos poder pedir comida fora, revolveu as despensas. Entre latas

de tomates e uma garrafa de azeite com os que não poderia fazer

muito, encontrou uma caixa de cereais aberta que tinha vencido no

dia anterior. Tinha ficado ali de quando Hector vivia com ela, mas

desde que estava sozinha se arrumava com algo. Às vezes pulava

uma refeição, mas por correr a procurar as camisas tampouco tinha

almoçado e sentia fome. Iria se arrumar com os cereais.

Enquanto comia o cereal açucarado, recortava e armava as

camisas. Às onze da noite, ressonaram fortes golpes à porta. Lavínia

elevou a cabeça para o relógio e imediatamente sentiu um brilho de

luz em seu interior seguido de um intenso temor. Primeiro pensou em

Nick, mas embora esse horário se convertesse em algo significativo

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para eles, ele não golpeava de forma tão violenta. Josué tinha se

atrasado em ir procurar o dinheiro, Lavínia tinha chegado a pensar

que possivelmente até estivesse morto, e embora lhe causasse pena

porque era um ser humano que merecia uma oportunidade como

todos, não podia negar que muitos dos problemas de sua família se

resolveriam se ele desaparecia de suas vidas.

Com medo e com precaução se aproximou da porta, onde

ressoavam novos golpes. Tal como tinha prometido, desta vez Josué

não a encontraria despreparada, por isso se preparou mentalmente

para a defesa.

— Quem é? - perguntou.

Não pôde reagir. Um golpe sobre-humano abriu a porta de uma

sacudida, arrojando-a para trás. Deu-se conta de que tinha fechado

os olhos porque de repente os abriu e tudo o que viu foi a porta

fechada como fundo do rosto feroz de Nick. Ao parecer ele a tinha

tomado pela cintura para que não caísse pela força do golpe e a

velocidade do movimento com que a arrastou até deixá-la contra a

parede. Como quando faziam amor, tinha amortecido o golpe com

seu antebraço para não machucá-la.

Parecia que ia matar, Lavínia não se defendeu, mas em troca

ele falou com um tom de voz tão rígido que quase parecia outro

homem.

— Perguntei-te se havia algo para me dizer, Lavinia, e não o fez

- espetou-lhe tão perto de seu rosto que podiam respirar-se, tão

perto de seus lábios que apenas se atrevia a olhá-los. Falava com

essa voz forte, poderosa e rouca que às vezes escapava de sua alma

avivada.

— Nick - tentou falar ela, mas ele não o permitiu. Terminou de

encurralá-la entre a parede e seu pesado corpo e a apertou contra

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seu peito, como se desejasse introduzi-la em seu interior para que

não escapasse, para que não se fosse de sua vida como antes seu

cabelo se escorria por seus dedos.

— Por que pretendia me deixar como ela, sem me dizer que me

enganava na cara? - reclamou com voz afogada. — Acaso é isso o

que eu provoco em vocês engano e silêncio? Isso é o que mereço?

Lavínia não tinha ideia do que lhe falava Nick. Possivelmente

tivesse recebido as provas de Lowenstein. Sim, tinha que ser isso o

que o trazia tão irrefletido, mas não chegava a compreender o da

outra mulher.

— Nick, não está escutando - tentou, mas outra vez ele a

interrompeu.

— Não, você vai escutar isso de mim. É uma covarde e uma

mentirosa. Jamais tinha pensado isso de você.

— Me escute, por favor - suplicou ela com olhos angustiados.

Nunca tinha visto Nick tão desencaixado, tão ferido. Tanto valia seu

orgulho? Tanto valia sua dignidade?

— Não! - gritou ele em resposta. O poder inato de sua voz fez

tremer a Lavínia. — E se pergunta isso, sim, estou ferido.

— Em seu orgulho! - replicou ela em um grito de

aborrecimento.

— Em meus sentimentos! - recriminou-lhe ele.

— Não pode ferir seus sentimentos alguém a quem não ama.

Só fere seu orgulho, mas é tão soberbo que já nem sequer nota a

diferença.

Nick ignorou tudo isso. Ignorou-o porquê não ia responder o

que ela queria.

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— Por que com ele? - perguntou em troca num sussurro. — Por

que se é velho e desleal e rouba as mulheres de outros?

Possivelmente até lhe vendeu meu projeto!

— O que? - agora sim estava completamente perdida nas

insinuações do homem. — Está blefando!

— Estou blefando? - perguntou-lhe ele aproximando-se

perigosamente da sua boca. Os olhos tinham se transformado em

duas fossas profundas pelos quais se vislumbravam a alma turvada e

sozinha. — Não vai perguntar como soube que me enganava?

— Se escutasse, saberia por que não o faço - replicou ela,

embora cada palavra de Nick a fazia tornar um passo mais atrás de

lhe dizer a verdade. Tinha sentido lhe sanar o orgulho ferido? Não,

que aprendesse a lição de que nem tudo respondia a seus caprichos.

— Não há nada mais que falar, Lavínia, já está morta para mim.

- Nick se voltou para a porta. Lavínia pensou que devia deixá-lo ir e,

pelas palavras que ele tinha articulado, o teria feito, mas seus olhos o

impediram. Puxou-o do braço tentando retê-lo. Ele se voltou

violentamente.

— Não me toque! - bradou. A sensação que lhe tinha produzido

a atitude de Lavínia ao pretender retê-lo tinha sido tão intensa que

temia não poder controlá-la, por isso voltou a abandoná-la contra a

parede, e ela se deixou abandonar. — Mentiu-me! - recriminou.

— É orgulhoso e presunçoso - começou ela. Ele a interrompeu.

— E você uma qualquer! Até deixou te comprar os remédios!

Que mais te comprou Horácio Lowenstein? Assim é como te paga?

Pediria mais, Lavínia! Vocês valem muito mais que uns remédios e

um momento em um hotel de luxo!

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Isso não o ia permitir. Lavínia sabia muito bem a diferença

entre ser uma qualquer, como eram as amantes desse que a acusava,

e ser uma prostituta, como era sua irmã. Sabia a diferença entre ser

estúpida e estar desesperada. E por Deus que sabia a diferença entre

ser honesta e ser desavergonhada!

— Acredita que sou como suas amiguinhas - murmurou para si

com aborrecimento, olhando os sapatos brilhosos e caros de Nick. Do

contrário, tinha que lhe dar uma bofetada.

— Traiu-me! - acusou-a ele.

Lavínia elevou o olhar. Em suas pestanas tiritavam as lágrimas.

Tremiam-lhe as pernas e uma palidez mortal se deu procuração de

seu rosto. Apesar de tudo, elevou um dedo com integridade e

replicou: — Passei a manhã tentando vender um objeto e jantei

cereal vencido. Não acredito que saiba o que é a dignidade, mas

antes de te trair, preferiria estar morta.

Foram as únicas palavras que de verdade Nick se permitiu

escutar. Então uma catarata de sentimentos se apoderou de seu

interior constipado e congelado: piedade, carinho, confusão. Teria

desejado ser tão forte para vencer suas barreiras e estreitar a Lavínia

entre os braços, lhe pedir perdão por quão idiota tinha sido e ignorar

as provas que a condenavam, rezando para que ela o perdoasse.

Tivesse desejado não ser tão estúpido para negar-se a amá-la.

Por que a castigava por seu engano, se a Patrícia tinha tratado

de contentá-la em todos os seus caprichos? Por que a Lavínia a

enfrentava como se esperasse lhe trocar os pensamentos e as ações

de uma sacudida? Como os meninos, queria que só beijá-la e abraçá-

la servisse para que ela o amasse incondicionalmente, para que lhe

perdoasse todos seus enganos e não o deixasse sozinho, que não o

abandonasse.

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Lavínia tinha ficado frouxa entre seus braços, que a

sustentavam entre a parede e seu peito. Nick respirava com agitação

sobre a frente de Lavínia, ambos em silêncio, até que lhe atirou um

pouco parecido a um beijo nesse setor onde seu ar se mesclava com

o aroma do delicioso cabelo loiro. Possivelmente só a roçou com os

lábios, mas se sentiu como um beijo. Tinha-o sido.

— Me perdoe, sou um bruto - resmungou em voz muito baixa.

Queria falar mais, mas não podia fazê-lo, tinha um nó na garganta.

Por que alguma vez falava no momento indicado, por que não podia

soltar todas as coisas que sentia? Elevou uma mão, mas apenas lhe

roçou o cabelo, não se atreveu a tocá-la. — Por favor, diga-me que

não te machuquei, jamais me perdoaria disso - arrependeu-se de o

haver pedido. Não sabia se a tinha ferido fisicamente, mas não lhe

cabia dúvida de que o fazia em seu espírito. — Me desculpe -

adicionou antes de afastar-se para a saída.

Nick a soltou de maneira tão repentina que Lavínia não teve

tempo de restabelecer-se. Tremeram-lhe as pernas e se encostou na

parede para não cair. Nem bem Nick desapareceu do outro lado da

abertura, ela estalou em pranto.

Permaneceu sentada no piso, abraçada aos joelhos um longo

momento, até que golpearam a porta. Estava farta de que nesse

edifício entrasse e saísse gente como se fosse a via pública, mas se

nem sequer havia campainha, como não iam entrar?

— Quem é? - perguntou, sem ânimo.

— Seu pedido.

A Lavínia soou suspeito. Ela não tinha pedido nada e ainda

tinha medo de que Josué passasse a cobrar a dívida que ela não

tinha.

— Eu não pedi nada - replicou de mau modo.

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— Jun me advertiu que você diria isso - respondeu a voz do

outro lado da porta - mas é dela.

Só escutar o nome do Jun serviu a Lavínia para saber de onde

vinha tudo aquilo. Abriu a porta e se encontrou com um entregador

muito jovem que lhe dedicou um sorriso. Assim que alguma vez, Nick

se tinha parecido a esse menino. Entregando as pizzas do Jun.

— Quanto lhe devo? - perguntou ela.

— Nada - respondeu o moço - já está pago.

Lavínia se debateu entre aceitar a pizza ou negar. Segundo

Nick, que Horácio Lowenstein lhe tivesse comprado seus remédios era

um modo de lhe pagar por ser sua amante. Seguindo essa hipótese,

aceitar a pizza seria tomar o pagamento que Nick lhe dava, o qual já

tinha feito com as passagens do Paradise. Com razão não lhe custava

trabalho pensar que ela se vendia por uns remédios. Isso diziam as

palavras, mas também estavam em seus olhos, e neles a pizza era

um modo de protegê-la, de cuidá-la, e não um pagamento. Negá-la

poderia voltar a feri-lo, se é que alguma vez o tinha feito, assim a

aceitou.

Agradeceu, despediu-se do moço e fechou a porta. Lavínia não

sabia o que pensar, se Nick a odiava, como tinha demonstrado, ou ao

menos a queria; se tinha feito bem em deixá-lo ou se sempre teria

saudades. Resultava evidente que ele não ia voltar. Esse era o final.

Nick fez um novo intento por voltar a gozar do sexo com uma

prostituta, que era o mais fácil de conseguir e desprezar, mas não se

atreveu a chamar o lugar de sempre e desconfiava de outros.

Comportou-se tão mal com essa pobre garota que lhe tinham

mandado, que merecia converter-se em um cliente indesejado.

Foi ao bar, mas a verdade era que tinha cara de velório e assim

que começou a ver figuras conhecidas, preferiu voltar para o

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automóvel. Não tinha sentido forçar as coisas, devia retornar a casa e

chorar se queria chorar romper se queria romper. Fingir uma

personalidade lhe estava fazendo cada vez mais difícil.

Com o passar dos dias, entretanto, pôde compor algo de seu

personagem e voltou a ser o que todos conheciam: vaidoso, seguro

de si mesmo, sempre de bom humor, um conquistador infalível. Em

um tempo, os números para bloquear voltaram a aparecer. Na sexta-

feira um, na segunda-feira três.

Mesmo assim, nada o conformava. Se antes se contentou com

essa vida, era porque sentia que nela se escondia algum propósito,

que era demonstrar ao mundo e demonstrar a si mesmo que era

igual a Octávio, ou que ele também podia ser igual a Patrícia.

Possivelmente que podia ser o que ela esperava, ou que podia fazer o

que lhe faziam, embora não o tinha conseguido com ninguém mais

que com Lavínia. Não lhe dava a alma para conquistar boas mulheres

e as abandonar, por isso a passava com putas e prostitutas, que bem

sabia eram duas coisas distintas. As primeiras eram na maioria das

vezes ricas ou aspirantes a ricas, em troca as segundas pelo geral

não tinham outra opção. Podiam ser mães, filhas, irmãs carinhosas

que vendiam seu corpo e por isso as tratava melhor que às outras,

embora não lhe dava a maldade para tratar mal a ninguém. Todas se

foram contentes de sua cama porque era generoso, gentil e perito.

Tinha que fazer algo de sua vida, algo distinto, algo que

aparentasse voltar a enchê-la. O que podia ser isso que fazia falta?

Pensou em Lavínia, pensou em outro salto, um trabalho muito

grande, pensou em Horácio Lowenstein. Se podia lhe arrebatar a

Patrícia, possivelmente... possivelmente se sentisse realizado.

Tomou seu telefone celular e discou um número.

— Nick - responderam-lhe do outro lado. A mulher tinha lido

seu nome na tela de seu telefone.

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— Espero-te em nosso bar às dez.

Soava sereno, especulativo, quase parecia a ponto de fechar

um negócio. Com a mesma sobriedade vestiu o casaco e saiu do

escritório.

Não olhou o relógio e igual soube que já tinham dado as dez,

entretanto, ainda estava sozinho. Tinha bebido apenas um uísque

sem gelo e observava ao redor com os olhos entrecerrados. Fazia

muito tempo que não ia a esse lugar, ficava perto do bar ao que ia

com frequência, mas não era o mesmo. Neste tudo cheirava a

Patrícia, em troca no outro tudo cheirava a ele.

Primeiro sentiu um perfume muito forte e logo um comichão na

nuca. Em seguida um par de mãos lhe cobriu os olhos. Não alcançava

a ver as unhas vermelhas e largas, os braceletes de ouro que

pendiam dos braços, mas sabia pelo aroma e pelo tato que se tratava

de Patrícia.

— Quem sou? - perguntou a voz feminina atrás de suas costas.

Nick tomou as mãos que lhe cobriam os olhos, esses dedos

cheios de anéis dourados, e as separou de sua cara. Patrícia riu e se

sentou no sofá, a seu lado. O vestido vermelho que tinha posto era

decotado e tinha um talho que lhe deixava meia perna ao descoberto.

Quase parecia uma bailarina de tango antes que uma esposa, mas

essa era ela e ao menos não o ocultava como Lavínia.

— Que lástima! - exclamou a mulher com divertimento. Nick

permanecia muito sério, tanto como quando tinha sido seu marido e

seu namorado, como quando o tinha conhecido na universidade. Pior.

Com ela já não era ingênuo nem inexperiente nem carinhoso.

— Que coisa? - perguntou ele sem perder a calma.

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— Que não esteja ébrio - respondeu Patrícia, ligeira de

palavras. Logo se inclinou para frente para lhe falar em sussurros,

com toda intenção de lhe mostrar mais de seus seios nus debaixo do

tecido vermelho do vestido. — Põem-te muito mais interessante

quando está bêbado.

— Patrícia! - exclamou uma voz feminina que correspondia a

um corpo que já se aproximava. — Olá, Nick - continuou dizendo a

mulher, embora não emprestou a ele maior atenção que um olhar

fugaz. Depois a loira se sentou sobre a mesa de centro e começou a

falar com sua amiga ruiva. Mantinham uma conversação leviana.

Nick pinçou em um bolso e extraiu um cigarro. A última vez que

tinha fumado como um condenado tinha sido a noite que Lavínia o

tinha enganado com Lowenstein. Lowenstein... .

Fumou até que a amiga da Patrícia se afastou, então apagou o

cigarro e falou com ela de mau humor.

— Têm que se distrair? - queixou-se. — Ainda faltam muitas

mais?

Patrícia o olhou como se lhe estivesse expondo que amanhã se

acabava o mundo.

— O que passa Nick? - espetou-lhe com o cenho e a boca

franzidos. — Se queria estar sozinho, não me tivesse convidado.

— Pensei que ia estar com você, não com seu séquito de

amigas - respondeu ele para surpresa de Patrícia.

Tratava-a mal. Nick lhe falava como a uma qualquer! Duvidava

que fizesse o mesmo com suas amiguinhas. Tinha que lhe pôr os

pontos logo.

Ergueu-se no assento e se acariciou o tabique nasal insinuando-

se. — Não me irritas com nada? - preguntou ela com desdém. Não

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levou a mal a ausência de resposta Nick com aspecto taciturno. Ela

sabia que ele queria, mas também que ele a amava, ela nunca seria

sua.

— Você gosta de meu nariz? - perguntou, divertida. Nick

encolheu os ombros. Se tinha que dizer a verdade, não notava

diferença alguma com o que tinha antes. Não tinha por que mentir.

— É o mesmo de sempre - respondeu.

— Nick! - ofendeu-se ela, sempre em brincadeira. — Custou-me

dois mil dólares!

— A você ou ao Horácio? - espetou ele com os olhos

entrecerrados.

Horácio Lowenstein. Ela riu a gargalhadas e se jogou em cima

como uma puta.

— Ai, meu amante ciumento! - brincou antes de beijar Nick na

ponta do nariz tão bonito. — Eu gosto, eu gosto que me zele, que me

deseje. — Deseja-me, Nick?

Ela meneou os ombros. Nick umedeceu os lábios.

— Eu gosto desta canção - disse. Referia-se ao Mysterious

teme, entoada com a suave voz de Tina Cousins, que soava a todo

volume.

— Não me convida para nada? - perguntou ela com desdém.

Não se levou a mal a ausência de resposta de Nick a respeito de se a

desejava. Estava com ele e não só sabia que a desejava, e não só

que a amava, que ele nunca deixaria de ser dela.

— Pede o que quiser - respondeu Nick sem vontade de distrair

sua atenção com Patrícia, preferia escutar a música. Podia lhe pagar

uma bebida, se ela quisesse.

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Patrícia ficou com a boca aberta num enorme O. Ao Nick lhe

cruzou pela mente a ideia de que com essa expressão se parecia com

uma boneca amante de borracha, razão pela qual lhe formaram duas

covinhas sobre as comissuras dos lábios, sinal de que evitava a

risada.

— Para isto me chamou? - reclamou ela séria, mas em seguida

recuperou o tom grosseiro. — Parece-me que está de mau humor e

isso só se tira de uma maneira... - se insinuou não só com palavras,

mas também com o corpo, porque o pegou tanto ao dele que quase

parecia um. — Você querido Nicolas, de mau humor?

Nick a olhava com seus olhos cinzas entrecerrados. De repente

viu os de Patrícia, e neles, seu passado. O corpo de sua esposa tinha

mudado, quem sabe em quantas camas tinha dormido, mas não por

isso deixava de ser essa mulher que ele havia amado quando ainda

era quase um adolescente. Mesmo assim, não podia sentir amor. Nick

não experimentava mais que indiferença, e isso era angustiante.

Pensou que com ela voltaria a sentir algo. Pensou que com ela

voltaria a sentir-se, pelo menos, encaminhado em algo, embora fosse

ódio. Equivocou-se.

Elevou uma mão para o empoeirado rosto e se aproximou dos

lábios pintados de vermelho. Quase parecia devorar a mulher com o

olhar, mas o que ele procurava não era a ela, a não ser seu passado,

por isso pescava nesses olhos vazios. Nada ficara nele desse moço ao

qual Patrícia conseguia acelerar o coração, nada dela o abrandava,

não despertava uma só fibra de seu corpo.

Apesar disso, beijou-a. Beijou-a lhe apertando a boca com fúria

desmedida. A língua se moveu no interior dela com violência, sem

cuidado nem muito menos amor. Tratava melhor às putas. Tratava

melhor às damas do prostíbulo. Tratava melhor a seu automóvel.

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Patrícia merecia esse trato, que era o mesmo que ele se dava a

si mesmo, porque agora os dois correspondiam ao mesmo mundo de

frieza e desencanto no qual Nick tinha assumido sua vida desde que

ela o tinha deixado.

Com o mesmo desenfreio, acabaram no quarto do hotel, onde

fizeram amor. Nick tinha adquirido uma experiência extraordinária; se

a tinham dado todas as amantes que tinha tido, Patrícia lhe estava

agradecida. Só havia uma que lhe preocupava, uma a que ainda

queria esmagar como a uma mosca, e essa era a costureirinha.

Pressentia que Nick a recordava, não tinha sido para ele como as

outras, embora tampouco chegasse a significar tanto como ela. Por

isso deduziu que o melhor para conseguir esse objetivo era recuperá-

lo. Sim, ficaria com Nick e a costureirinha os veria felizes e juntos em

todas as revistas.

Sorriu com esse pensamento. Nick, embora acabassem de

manter relações e a tinha ainda nua a seu lado, na cama do hotel,

não lhe emprestava a mínima atenção. Nem sequer a abraçava.

Tampouco lhe havia dito que a amava quando se derramou no

preservativo, como cada vez que se viam depois do divórcio. A

tratava fingindo-se alienado, mas quando tocava o céu com as mãos,

acabava por confessar. Esta vez não confessou, mas o sentimento

estava aí, intacto. Tinha que estar, pensava Patrícia. Ela se ocuparia

de que o gelo em que se converteu seu Nick voltasse a derreter-se.

Passaram o domingo juntos. Tiveram sexo e foram às compras.

De noite Nick a levou até sua casa de automóvel, esperançado de que

Horácio Lowenstein os visse pela janela ou que ao menos o vigilante

de seu bairro privado lhe informasse que tinha sido ele quem levasse

a sua esposa até em casa.

Não fez falta. Em efeito, Horácio observou Patrícia descer do

automóvel de Nicolas Hagen com atitude felina, inclusive beijá-lo nos

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lábios antes de baixar-se, e pensou que esse tipo sim que era um

estúpido.

Podia ser muito atrativo, jovem e forte como o descrevia

Patrícia, mas era um burro. Ter tido a uma mulher como Lavínia e

pretender ainda a puta que o tinha abandonado!

Patrícia entrou na habitação marital momento depois, mas

Horácio não lhe disse nada. Reclamou seus direitos de marido, ao que

ela respondeu com menos desejo que de costume, que desde fazia

um bom tempo sempre era pouco.

Na segunda-feira pela manhã, perto do meio-dia, Fi se paralisou

com a figura que desceu do elevador no escritório.

— Nick está? - interrogou Patrícia sem sequer saudar. Percebia

que Fi a olhava como se do cubículo metálico se escapasse o muito

mesmo demônio, mas não lhe importou. Quanto mais a odiasse essa

velha estúpida seria melhor. Patrícia vivia disso, vivia de atuar com

indiferença frente aos outros.

Fi morria por lhe dizer que Nick não estava e que o deixasse em

paz, mas sabia que Teresa não o teria feito porque respeitava a

intimidade de seu filho, e por isso tampouco o fez ela. Pensou-o:

quão único faltava para tornar os dias do Nick ainda mais amargos!

Patrícia Cólon!

— Patrícia - foi tudo o que pôde balbuciar, a secas e com os

olhos entrecerrados.

Justo nesse momento, a porta do escritório de Nick se abriu. Do

interior da sala saíam ele e outro homem ao qual lhe estreitou a mão.

— Fi - disse enquanto isso - reserve uma entrevista para o

senhor Latif para esta quarta-feira.

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Nick reparou em Patrícia uma vez que o sujeito já se

encaminhava ao elevador. Não emitiu palavra, tão só a olhou com as

mãos nos bolsos, perguntando-se quem se acreditava ela para invadir

seu escritório dessa forma, mas guardou silêncio. Lembrou-se de

repente de que estava interessado em recuperá-la.

— Convido-te a almoçar - disse ela sem esperar que ele falasse.

Sempre fazia o mesmo, não perdia o costume. Nick, beneficiado por

essa atitude, aceitou.

Depois do almoço, retornou ao escritório sozinho. Patrícia

percorreu comércios, comprou uma camisa vermelha e depois

retornou para casa. Ao chegar a casa, encontrou-se com Horácio

sentado na borda da cama, quase do mesmo modo em que tinha

visto pela última vez ao Nick quando ainda era seu marido.

— De onde vêm? - perguntou o homem.

— De onde acredita? - burlou-se ela elevando a bolsa que

continha a camisa, em cuja frente se via o logotipo da marca.

— Não sou adivinho - replicou Horácio, esgotado.

— Não sabe ler? Estive no shopping - Patrícia deixou cair a

bolsa sobre a penteadeira para tirar o objeto. Pretendia ignorar seu

marido, quem apesar de seu desdém, não se deu por vencido.

— E de onde mais vêm? - perguntou. Patrícia deixou o que

fazia, cruzou os braços e o olhou. Em seus olhos brilhavam a soberba

e a brincadeira.

— De um almoço com Nick.

Horácio a conhecia. Sabia que não tinha escrúpulos, entretanto

quando tinha sido seu amante, cuidou de Nick, até tinha pretendido

deixá-lo sem que ele notasse. Em troca agora, com ele, não tinha

nenhum reparo em lhe dizer o que fazia, em fazer-se levar até sua

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casa no carro de seu amante, que resultava ser seu ex-marido. Tão

estúpido o considerava ela? Tão pouco homem?

Queria golpeá-la, lhe dar seu castigo, mas fazer isso a uma

mulher, por mais perversa que esta fosse, não era de homem.

— Vamos à casa dos Estados Unidos esta noite - anunciou

ficando de pé. — Arrume sua mala.

— Não posso ir, Horácio, ainda tenho duas visitas pendentes a

meu cirurgião - replicou ela sem dar importância à ordem. Horácio

pretendia sair do quarto, mas se deteve ante as palavras de sua

esposa. Ainda o era, maldição! Era sua esposa!

— E quantas ao Nicolas Hagen? - replicou com voz murcha.

— As que considere convenientes.

Horácio se voltou para ela como um touro furioso, mas não a

tocou.

— Que puta você é! - exclamou. As palavras doeram mais a ele,

um homem adulto e necessitado de afeto, que a ela.

— E você um estúpido - lançou Patrícia sem piedade ao tempo

que se adiantava um passo para ele. — Já está velho, Horácio.

— Acreditei que tinha deixado Nick porque era um menino -

espetou-lhe ele. — Agora me engana porque sou um velho. O que

quer, Patrícia? O que procura?

— Descobri que os meninos são muito mais atrativos e

poderosos que os anciões - burlou-se ela. Até sorria. — Além disso,

você... você já nem sequer me satisfaz - uma dor profunda sulcou o

olhar de Horácio Lowenstein. Logo viu sua esposa voltar-se para a

cama e recolher o controle remoto do ar condicionado. — Vai embora

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só aos Estados Unidos, Horácio - disse ela indiferente. — Eu fico em

Buenos Aires.

— Como preferir - assentiu ele, e abandonou o quarto.

— Nick - disse Fi a seu chefe pelo intercomunicador - é Javier

Gonzaga na linha um.

Fi sabia muito bem para que chamava Gonzaga porque este o

tinha explicado, e depositava suas esperanças em que o sucesso

servisse para que Nick se afastasse de Patrícia Cólon. Respondeu ao

chamado do seu escritório.

— Nick! - exclamou o sujeito com ar alegre. Contrastava com o

de seu interlocutor. — Incomodo-te porque estive tratando de me

comunicar com sua namorada, a desenhista, mas não consigo

encontra-la. Possivelmente me deram o número errado. Estou

interessado em uma ideia que disse ao passar, algo sobre umas

calças que não vem ao caso explicar, e queria lhe fazer uma oferta.

Sabe se já está desenhando para alguma marca ou se está

independente?

Nick arqueou as sobrancelhas. Não tinham feito falta dois nem

três encontros para que Lavínia começasse a receber ofertas de

trabalho, tinha bastado com um. Lavínia, repetiu em sua mente.

Apertou-se as pálpebras com os dedos, suspirou e teve que admitir o

mais triste.

— Já não estou com a desenhista - reconheceu com pesar.

— Oh, quanto o lamento! - disse o outro só por cortesia, pois

Nick sabia que lhe interessava resolver seu próprio problema, que

nesse momento era localizar Lavínia, e não a situação sentimental de

seu interlocutor. Comprovou-o quando o homem seguiu falando. —

Poderia me confirmar se este for seu número?

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Nick não precisou procurar na agenda para saber que esse era

o telefone de Lavínia. O que não entendia era por que não podiam

localizá-la. Embora não quisesse fazê-lo, preocupou-se.

— Poderia me dar seu endereço, ou localizá-la por mim, por

favor? - pediu Javier. — De verdade é uma oferta que não acredito

lhe interesse recusar.

Nick sabia quanto necessitava Lavínia um trabalho estável no

que não tivesse que ser costureira, a não ser desenhista. Além disso,

havia se proposto no Paradise a ajuda-la de todas as formas

possíveis, como o tinham ajudado Fi e Pablo. Pedir a Javier que fosse

a casa de Lavínia a poria em evidência de que em realidade só tinha

trabalhado como costureira e tinha tentado vender seus desenhos

sem êxito.

Suspirou outra vez. Não queria enfrentar-se a Lavínia de novo,

mas tampouco podia renegar ao Javier, evitar lhe dar o endereço e

que ela perdesse uma oportunidade tão importante. Teria que admitir.

— Sim, está bem - disse muito sereno, como nunca antes o

tinha percebido Javier. — Eu vou dar seu número. Se lhe interessar

receber ofertas, entrará em contato com você - adicionou para dar

mais importância a Lavínia.

Por experiência própria, Nick sabia que era melhor fazer-se

desejar que correr com desespero a um trabalho novo. Quanto mais

importante parecia o candidato, mais lhe ofereciam para retê-lo e

mais se convenciam de que não podiam deixá-lo escapar, e ele queria

que a Lavínia oferecessem tudo.

Javier agradeceu e desligou. Nick pensou em transmitir a tarefa

a Fi, que ela chamasse a Lavínia e lhe desse o número do Javier.

Entretanto, algo em seu interior o levou a ficar de pé e recolher o

casaco do respaldo da cadeira.

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Queria estar perto de Lavínia, necessitava-a. Não ia para vê-la,

disse-se, tão só lhe deixaria uma nota por debaixo da porta e se

contentaria sabendo que ela estava ou tinha estado do outro lado.

Mas se Javier não tinha podido localizá-la, como saber que ela

continuava ali? E se tivesse mudado? O que aconteceria se o papel

que ele deixasse jamais chegasse a suas mãos?

Até sabendo-se infantil, escreveu-o de todos os modos. Um

direto "Javier Gonzaga tem uma oferta de trabalho para você.

telefone-lhe ao...", e o número de telefone. Levou-o consigo se por

acaso fosse necessário e saiu do escritório.

O tiro lhe penteou o cabelo pego ao crânio. Nem bem se deu

conta do que tinha acontecido, Josué se agachou. Isso não o privava

do calor das balas se a seus perseguidores lhes ocorria e disparar de

novo, mas ao menos entendia o que vinha a seguir. Não sabia se era

melhor estar a par de que queriam matá-lo ou não, porque isso o

fazia tremer, mas foi um alívio quando, em lugar de disparar, alguém

o puxou pela camisa e o levantou de um puxão.

— Seguimos esperando o pagamento - espetou o sujeito com

tom perigoso.

— Já mesmo o levava, estava passando para cobrar - mentiu

Josué.

— Semanas depois do dia acordado? - replicou o homem. — Já

lhe demos muita droga.

— Se querem cobrar, me vão ter que deixar ir.

O que o tinha agarrado pelo pescoço da camisa olhou ao outro,

que assentiu com a cabeça e em silêncio. Então se voltou para Josué

e resmungou: — Se amanhã não fizerem a entrega na praça, vamos

lhe deixar feito um coador.

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Soltaram-no. Josué se quadrou de ombros, colocou a mão no

bolso e respirou aliviado.

Tinha levado a navalha.

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Capítulo 23

Eram apenas três da tarde e Lavínia já voltava para casa depois

de entregar seus trabalhos. Tinha compreendido que as pessoas eram

uma grande montanha que jamais ia a ela, que era a parte do ditado

que dizia "Maomé", sobre tudo quando se tratava de retirar um

trabalho e pagá-lo, assim Maomé ia à montanha.

Retornou a seu edifício com cinquenta pesos e a alegria de que,

no dia seguinte, a marca de camisas lhe daria um modelo para

confeccionar em cinco dias. Deu-se conta de que a estavam tomando

como confeccionadora de modelos de prova para breve, talvez, lhe

dar a produção. Estava feliz: possivelmente as coisas ao fim se

encaminhassem e pudesse dizer que tinha mudado sua sorte.

A sensação durou pouco tempo. Nem bem entrou em casa,

encontrou-se com Josué, que jogava com sua navalha sentado à

mesa. Primeiro deu um salto de susto, mas em seguida se repôs e

não pensou nem por um instante em acovardar-se.

— Como...? - interrompeu-se. Ia perguntar-lhe como tinha

entrado, mas descobriu que pouco lhe importava isso. Só que ele se

retirasse. — Saia já daqui - ordenou sem fechar a porta. — E a

próxima vez que te encontre invadindo minha propriedade privada,

chamo à polícia. Sabe que o faço.

Josué ficou de pé, fingia que ia sair, mas ao ficar junto à Lavínia

fechou a porta de uma patada e lhe imobilizou as mãos deixando-a

entre a parede e seu imenso corpo. Sentia-se muito distinto ao de

Nick, pensou Lavínia, e ao fazê-lo odiosas lembranças se amontoaram

em sua mente. Não era a primeira vez que Josué a cobria com esse

horrível peito e esse gasto aroma de álcool. Sentiu que podia matá-

lo, mas se conteve muito bem de não fazer movimentos.

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— Preparou-me puta? - perguntou ele lhe colocando a navalha

perto da cara. — A pediu a seu namorado rico?

Lavínia respirava com agitação, mas não se mostrava temerosa.

— Já te disse que não saio mais com o Nick - expressou com

dor na voz. — E se o fizesse, tampouco permitiria que ele pagasse

suas dívidas. Tampouco o farei eu, assim pode ir por aonde chegou.

— Antes te mato.

— É tua decisão se quer ir deixando um cadáver que te condene

a vinte anos de cadeia - espetou ela, inflexível. — Não tenho dinheiro

e se o tivesse, nem pense que lhe daria. É hora de que te faça cargo

de seus enganos.

Josué compreendeu que com ameaças de morte não obteria

nada de Lavínia. Ela tinha descoberto que ele era um covarde quando

era uma adolescente, não podia pretender que agora pensasse o

contrário. Estava ficando sem armas em seu favor, carecia de poder, e

isso o fez sentir desesperado.

Baixou a navalha devagar, com o rosto rígido e as mãos

brandas.

— Se não lhes pago, matam-me – confessou. — Também ao

Hector. - Lavínia suspirou. Ainda lhe dava asco sentir o corpo do

Josué tão perto do dela, mas a honestidade que ele de repente

demonstrava a abrandou um pouco. Tinham ameaçado ao Hector e

odiava ao Josué por colocar em perigo a vida de seu irmão, mas ele

acabava de justificar-se e soube que tinha que lhe demonstrar que

assim era melhor, que com a verdade se conseguiam as coisas e não

com ameaças ou maus tratos.

Tragou com força de uma vez que meditava o que fazer. Jamais

pensaria em Nick como fonte de dinheiro, só sabia que ela não

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dispunha da quantidade que necessitava Josué. Nem sequer se

aproximava dessa soma.

— Eu não tenho esse dinheiro, Josué - confessou com voz

afogada. Tivesse desejado ter para lhe demonstrar que, se lhe pedia

as coisas com boa maneira e com a verdade, ela o ajudava, mas o

certo era que não podia fazê-lo. — Nem sequer paguei a conta do

telefone, com o que me faz falta para trabalhar, e me suspenderam a

linha.

Ele elevou os negros olhos para ela. Parecia decepcionado,

nervoso.

— Pede a seu namorado rico! - bradou.

— Estou-te dizendo que já não vejo Nick - insistiu Lavínia.

— Diga-me então por que ainda têm sua fotografia com você

junto ao telefone - assinalou em direção ao lugar ao que se referia

com a navalha.

Lavínia passou a vista pela imagem de maneira fugaz, vencida

pela dor que lhe produzia recordar aquela época, pensar que ela

conservava a imagem de Nick como Nick conservava a de sua ex-

esposa.

Tragou com força e baixou o olhar.

— Isso é coisa minha - resmungou.

— Quero o dinheiro! - exclamou ele. Algo em seu olhar tinha

mudado, em sua voz, em seus movimentos. As drogas começavam a

fazer seu efeito e se fazia evidente que muito em breve Josué não

responderia por seus atos.

— Por favor, Josué - rogou-lhe ela, que estava comprimida pelo

peso do corpo do homem e a parede. — Te afaste um pouco.

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Procuremos uma solução que não requeira a ninguém mais que a nós

dois.

— Eu tenho a solução - replicou ele violentamente. — Eu vou

dar a solução.

Voltou a elevar a navalha, mas sua intenção já não era matá-la,

não no momento. Lavínia soube quando uma mão do homem se

deslizou por sua perna, sobre o cós, rumo ao fechamento das calças.

Então reagiu. As atrozes lembranças do intento de abuso que

Josué tinha cometido em seu quarto em sua adolescência foram mais

fortes que sua prudência e a fizeram responder ao novo ataque.

Naquela época não estava capacitada para defender-se, mas sim o

estava agora, e jamais lhe permitiria voltar a tocá-la.

Elevou o joelho impulsionando-se para frente graças à parede.

Sua rótula impactou na virilha de Josué e o obrigou a se tornar atrás

tomando os testículos com as mãos. Então voltou a atacar. Golpeou-

lhe os ouvidos com a palma das mãos e logo atacou a garganta de

seu agressor com o antebraço. O passo seguinte era jogá-lo no piso

utilizando a força do corpo do oponente, mas essa parte lhe saiu mal.

Não era o mesmo praticar defesa pessoal com companheiros de

classe que com um atacante verdadeiro, e que a rotina se

desarmasse lhe fez perder o equilíbrio.

Josué elevou a navalha sem um ponto certeiro de ataque, só

para defender-se, e a folha cortou a Lavínia a palma da mão. A dor

não se fez sentir em seguida, pelo qual pôde continuar com a defesa.

Além disso, o estado psicológico no que se encontrava não lhe

permitia pensar em nada mais que em suas lembranças e em quem

os provocava.

— Era um bebê! - gritou desencaixada, sem recordar que com

isso desperdiçava energias para seu ataque. — Era um bebê, filho da

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puta! Doente! Não me vais fazer o mesmo agora! Antes lhe mato!

Não lhe importou que o atacante não tivesse cansado. Lançou

um golpe de punho à cara do Josué e outra patada a seus genitais. O

homem se dobrou em dois e estirou os braços para frente, o qual

permitiu a Lavínia colocar-se de costas, tomar a mão do homem e lhe

fazer soltar a navalha. Com o mesmo movimento conseguiu

acontecer o braço por sobre seu ombro e dobrar-lhe. Não conseguiu

quebrá-lo porque estava nervosa e assim perdia precisão, mas pelo

gemido que emitiu Josué soube que lhe tinha doído. Girou sobre os

pês, pegou-lhe com o punho no nariz, chutou-lhe o estômago e

finalmente lhe deu tal golpe na nuca com o antebraço que Josué caiu

tendido a seus pés, inconsciente.

Lavínia deu um passo para trás aturdida, tremendo como um

papel ao vento. Um suor copioso lhe percorria o rosto pálido banhado

em lágrimas.

— Josué... - balbuciou com a voz afogada. Não obteve resposta.

Cobriu-se a cara com as mãos.

E se tinha morrido? O que acontecia se o tivesse matado? Um

secreto terror se apoderou dela ao ponto que deu um grito, abriu a

porta e correu pelo corredor com tanta má sorte que quase tropeçou

no intento de fuga. Sustentou-se da parede para manter-se em pé e

seguiu.

Baixou as escadas sem olhar à frente, presa do medo de ser

culpada. Chegando à planta baixa se chocou contra um corpo alto e

forte que a sustentou pelos braços e acabou de joelhos com ela

quando se debilitou, amortecendo sua queda com sua resistência.

— Me ajude! - gritou Lavínia desencaixada. — Me ajude, por

favor!

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Nick ficou gelado. Ela tinha uma mancha de sangue no rosto,

mas não a via ferida. Então baixou o olhar em busca do lugar onde

Lavínia podia ter sido machucada e se encontrou com sua mão.

Elevou-a no ar, observou o corte. O sangue buliu em suas veias.

— Filho da puta - resmungou furioso, com essa voz poderosa

que às vezes emanava de sua garganta. Pensou em seguida no pai do

irmão de Lavínia. Em quem mais podia pensar? — Vou mata-lo.

Lavínia elevou o olhar. Que fazia Nick aí? Como ela não se deu

conta de que era ele quem a sustentava pelos braços?

Não teve tempo de formular uma hipótese para essas

perguntas por que Nick ficou de pé e subiu as escadas de dois em

dois, tão rápido que ela teve que correr para alcançá-lo. Ao chegar a

seu piso, viu que desaparecia no interior de seu apartamento.

— Não, Nick! - gritou-lhe ela quando chegou dentro. — Já o

matei! - estava desesperada, tão assustada que parecia que sofria

um ataque de nervos. — Matei-o! – gritou. — Matei a um homem, ao

pai de meu irmão!

Nick chutou a navalha e se ajoelhou junto ao suposto cadáver

que jazia de barriga para baixo junto à mesa da sala. Girou-o sem

delicadeza alguma e assentou dois dedos sobre uma veia do pescoço.

Pôs o ouvido sobre o nariz.

Os instantes que ele demorou para fazer isso pareceram

eternos, o tempo se suspendeu naquelas ações, até Lavínia deixou de

respirar.

Então viu que Nick ficou de pé, meditou algo um breve segundo

e logo lançou uma patada ao corpo. Deu-lhe no ventre. Outra patada

mais nos testículos.

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Nick o reconheceu. Era o tipo que lhe tinha pedido dinheiro na

Avellaneda, esse ao qual tinha dado cem pesos. De ter sabido a quem

se enfrentava, o teria destroçado naquele momento. Sentia tanta

bronca que se o maldito não estivesse morto, era capaz de matá-lo

ele.

— Não faça isso! - bramou Lavínia, outra vez cobrindo a cara.

Nick pareceu reagir e recordar que ela se achava ali, esperando

notícias do morto. Então se deu a volta e a tomou pelos braços para

sacudi-la.

— Não está morto, Lavínia, fique tranquila - falou-lhe com voz

tão tensa que quase não parecia ele. Fazia-se evidente que esperava

serená-la, mas que por dentro estava tão ou mais furioso que ela.

— Matei-o! - insistiu Lavínia.

— Digo que não está morto - repetiu Nick com voz poderosa. —

Juro-lhe isso.

As pernas da Lavínia perderam as forças e voltou a cair de

joelhos, como na escada, onde se tinha encontrado com Nick. Ele se

deixou cair a seu lado e a estreitou contra seu peito, procurando

contê-la. Aliviado porque ela estava a salvo, beijou-a na cabeça.

— Terá que chamar à polícia - anunciou. Quase ao mesmo

tempo pinçou no bolso do casaco, extraiu o telefone celular e discou o

número sem soltar à mulher que chorava, débil e temerosa, entre

seus braços.

Antes que chegasse a polícia, Nick chamou Fi e avisou que não

acreditava retornar ao escritório essa tarde. Em efeito, não o fez

porque levou Lavínia à delegacia de polícia para declarações. Depois

de ter terminado, indicaram-lhes que deviam sentar-se em um banco

em um corredor desolado e esperar a declaração de Josué.

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Lavínia suspirou. Olhou a mão que lhe tinha enfaixado a médica

da ambulância e pensou no que acabava de passar. Tinha Nick a seu

lado, não sabia explicar por que ele tinha ido a seu edifício e

tampouco se atrevia a perguntar-lhe. Não se esquecia de como

tinham acabado a última vez que se viram.

Sobressaltou-se quando ele se moveu. Foi lhe colocar o casaco

de seu traje sobre os ombros. Nesse momento Lavínia se deu conta

de que tinha estado tremendo.

Nick não sabia se Lavínia tiritava de frio ou de nervos, mas fez

o que acreditou conveniente para acautelar as sensações que a

afligiam. Queria abraçá-la, mas não se atreveu. Pressentia que ela

não tremia de frio, porque ali fazia calor, a não ser presa do que tinha

acontecido.

— Dói? - perguntou-lhe em relação à mão. Soava preocupado e

não podia deixar de está-lo. O que tinha escutado ela relatar à polícia

a respeito de Josué, o modo em que este a tinha ameaçado e como

ela se defendeu o tinha deixado assombrado.

— Um pouco - reconheceu Lavínia sem ânimos soando débil.

Nick ficou de pé e pretendeu afastar-se, mas ela o deteve.

— Aonde vai? - perguntou-lhe.

— Pedir algum analgésico para a dor - respondeu ele.

— Não, está bem - apressou-se a indicar Lavínia. — Obrigado.

— Está segura?

Lavínia assentiu e Nick voltou a tomar assento. Então se

produziu um breve silêncio que resultou incômodo para os dois. Nick

o rompeu com uma pergunta.

— Por que não me disse isso?

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Lavínia, que até esse momento estudava a parede, olhou-o.

— O assunto do Josué? - perguntou. Nick assentiu em silêncio.

— Porque não. Não tinha por que te envolver.

Nick não deu resposta. Ele tampouco sabia explicar por que

tinha preferido que ela o envolvesse e não que o pusesse de lado.

— Pensa que se pagássemos sua dívida aprenderia a lição? -

interrogou. Lavínia o olhou com seus olhos verdes muito abertos;

havia algo que não entendia.

— "Pagássemos"? - repetiu.

— Sim - assentiu ele. — Já sabe, lhe dar o dinheiro para que

saldasse sua dívida para que seu irmão não corra perigo. Acredita

que Josué aprenderia e não voltaria a meter-se com gente tão

pesada?

Lavínia inspirou profundo antes de voltar a falar. Os

pensamentos se amontoavam em sua mente sem uma direção

precisa.

— Primeiro, não acredito que pagar a dívida solucione algo em

longo prazo, Josué jamais aprende. Segundo, não entendo por que te

referiu a pagá-la em plural. Em caso de que alguém pague a dívida

do Josué, o farei eu.

Nick não queria ser duro com ela, mas compreendeu que devia

sê-lo se desejava resolver esse problema.

— Com o que? - perguntou. Lavínia o olhou como se acabasse

de acusa-la de um crime.

— Perdão?

— Não acredito que esses tipos se tomem tanto trabalho por

cem pesos, eu acredito que o débito de Josué é de muito mais -

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replicou Nick. — Se não me equivocar, disse mil. Minha pergunta é de

onde os vai tirar.

Lavínia suspirou. Deixou de olhá-lo.

— Um empréstimo - disse de modo reflexivo. Era a ideia que

lhe tinha ocorrido quando Josué a tinha aprisionado contra a parede.

— E pagar os juros abusivos que te cobrariam? - intrometeu-se

Nick. — Por que não te faço eu o empréstimo, sem interesses?

Lavínia lhe dedicou um sorriso sem graça.

— Primeiro, porque isso ataria você a mim – explicou. —

Segundo, porque não quero sua caridade. Aprecio sua preocupação,

mas não têm que fazer nada por mim. Arrumarei-me sozinha, como o

fiz sempre.

Nick pensou em seguida em Horácio Lowenstein. Possivelmente

Lavínia estivesse pensando em lhe pedir o dinheiro, depois de tudo,

era seu amante.

A quem queria enganar? Lavínia tinha menos probabilidades de

havê-lo enganado com o Lowenstein que ele de ser perfeito na

segurança e higiene de suas obras. Então, que fazia entrando em um

hotel com seu inimigo?

— Vai me explicar por que entrou em um hotel com Horácio

Lowenstein? - perguntou com tom pétreo. Lavínia se surpreendeu

pela abrupta mudança de conversação, sobre tudo porque se fazia

impossível seguir o fio dos pensamentos de Nick.

— Tentei fazê-lo, mas não me deixou, lembra-te? - respondeu

ela sem intenções de vingança.

— Necessitava que fizesse silêncio para falar?

— Necessitava que estivesse disposto a escutar.

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Nick olhou para outra parte. Ele não era um homem ciumento,

Oh, não! Primeiro Tomas, depois Horácio... quem mais seria vítima de

seus odiosos pensamentos?

— Não passou absolutamente nada, Nick - continuou ela ao

notar a repentina ausência mental do homem.

— Então entrou em um quarto com ele - Nick sentia que lhe

ardiam os olhos e as bochechas. Um calor súbito lhe percorria o

corpo.

— É obvio - indicou Lavínia a seguir. — A que se vai a um hotel?

Tínhamos que entrar.

— E deitou com ele - Nick fulminava a parede com o olhar.

— Não, isso não. Bom, sim, mas não.

Agora fulminava a ela.

— Não lhe parou - lançou com os dentes apertados.

— Nick! - arreganhou-o Lavínia com um grito afogado. — Como

pode pensar que dormiria com Horácio Lowenstein?

— Não digo que tenham dormido precisamente... - replicou ele,

irônico.

— O que seja! Primeiro nos sentamos à mesa e ele serviu duas

taças de champanhe, mas nem sequer a provamos.

Nick voltou a olhar a parede.

— Claro, devia estar muito apurado por te levar a cama antes

de que lhe acontecesse o efeito do Viagra.

Lavínia soltou uma gargalhada.

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— Não posso acreditar! – exclamou. — Já nem sequer tomo

como um insulto que seja tão presunçoso.

— Presunçoso eu? - respondeu ele voltando a olhá-la. — Nisto?

— Nick. Com o Horácio vi Cúpulas borrascosas e resultou que

os dois sabíamos bastante do tema, então passamos conversando

mais de duas horas.

Ao Nick revolveu o estômago que ela o chamasse "Horácio".

— Duas horas conversando sobre um estúpido filme? - não

sabia se dava crédito ao que ouvia.

— E sobre o livro - esclareceu Lavínia. — A ver, diga-me, quem

o escreveu? – o pôs a prova.

— É também um livro?

— Qual das irmãs Bronte? - tentou orientá-lo, mas não houve

caso.

— Havia mais de uma?

Lavínia riu, mas em seguida voltou a ficar séria, quase parecia

uma professora a ponto de dar um sermão a um menino com má

conduta.

— Olhe, Nick, acredito que deveria deixar de ser um hipócrita e

reconhecer seus próprios enganos - disse amargamente. — Não culpe

Horácio pelo que você mesmo provocou.

Nick a olhava com o cenho franzido, seus belos olhos

entrecerrados.

— O que eu provoquei? - repetiu destacando o pronome.

— Se te deitar com mulheres casadas, têm que aprender a

viver com as consequências.

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Nenhum soube a qual dos dois doeu mais essas palavras

porque o celular de Nick interrompeu a conversa. Ele tirou o telefone

do bolso e olhou a tela. Era Patrícia. Não queria responder, mas se

obrigou a fazê-lo porque as palavras de Lavínia o tinham deixado

desconfortável, machucado, embora não o demonstrasse em uma só

fibra de seu corpo.

— Alô.

Lavínia se surpreendeu de que essa fosse a voz de Nick. A

quem atendia com um tom tão duro?

— Estou na delegacia de polícia. Não importa por que.

Falava muito pouco, com a voz gélida.

— Sim, posso te dar o endereço, mas não quero que venha -

fez-se uma pausa. — Sei que se lhe dou, virá.

Que mais faltava? Pensou depois. Que Lavínia conhecesse a

mulher que Horácio Lowenstein tinha como esposa.

— Está bem.

Acabou por dar a direção e cortou sem sequer se despedir.

Lavínia sabia que Nick não tratava assim a suas amantes. A ela, que

tinha sido uma, tinha-a tratado com suavidade, pressentia que fazia o

mesmo com as outras porque assim se percebia no ar.

Nick se arrependeu imediatamente. O que ganhava

aproximando Patrícia e Lavínia? Só fazer mais vulnerável à segunda

frente à primeira. Então discou um número.

— Não venha - disse outra vez sem saudar. — Já vou.

Desligou. Lavínia não emitia palavra, olhava para outra parte,

mas se fazia evidente que Nick não estava de ânimo para que o

perseguissem e que, além disso, mentia, porque não sabiam quanto

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tempo mais teriam que passar ali. O que pretendia ele, enfrentá-la

com sua amante de volta como ela o tinha enfrentado a ele com o

suposto amante? Era óbvio que Nick não tinha acreditado em uma

palavra e pensava que ela era a amante de Lowenstein. Nick vivia

nesse mundo, pensava que todas as pessoas eram como ele e que...

— Acredito em você - Nick disse e interrompeu todo

pensamento de Lavínia, que o olhou com os olhos muito abertos,

surpreendida por essas palavras que escapavam de sua boca. — Têm

o coração tão grande que é capaz de ajudar Lowenstein a recuperar a

sua... esposa - indicou ele. — Embora isso signifique me trair.

Nick se referia a que, ajudando Lowenstein a conservar Patrícia,

Lavínia estava dobrando em seu contrário, porque primeiro Patrícia

tinha sido sua esposa. Nem sequer lhe interessava falar do assunto

de seu projeto secreto, porque em seu interior jamais tinha

suspeitado de Lavínia, embora lhe houvesse dito o contrário à cara.

Lavínia ia pedir-lhe uma explicação, mas nesse momento um

policial se aproximou e anunciou que podiam retirar-se. Nick ficou

primeiro de pé, perguntou o que aconteceria com Josué e lhe

informaram que passaria umas horas mais na delegacia. Estava

seguro de que queriam lhe tirar informação sobre o tipo ao que devia

dinheiro. Não emitiu palavra a respeito e se balançou para a saída.

Na porta do edifício, deteve-se para deixar passar a Lavínia. Em

lugar de fazê-lo, ela ficou olhando, intrigada pela conversa truncada

que acabavam de manter.

Nick ficou preso no verde de seus olhos, parecia-lhe que neles

se estendia um campo que o conduzia a um lugar incerto, ao futuro

sonhado.

Lavínia soube que ele estava a ponto de falar. Ia convidá-lo

para tomar um chocolate ou algo, porque entreabriu os lábios e não

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precisamente para colocar um cigarro entre eles. Entretanto não pôde

fazê-lo porque alguém interrompeu suas reflexões.

— Nick.

Nick girou a cabeça com brutalidade. Ficou perplexo, esqueceu-

se por completo de que Patrícia podia aparecer em qualquer

momento.

— Estava perto e vim te buscar - explicou ela ante seu

assombro.

Os olhos do homem se tornaram frios, displicentes. Lavínia se

deu conta e temeu aquele olhar. O corpo de Patrícia padeceu uma

sacudida. Não havia rastro algum de veneração ou sentimentos no

homem que até não fazia muito tempo estava louco por ela, e isso só

podia dever-se a uma razão.

Patrícia olhou em seguida a essa razão, que era a costureirinha

em quem tinha reparado desde que cruzava a rua em direção à

delegacia de polícia. Notou que a dor atravessava as pupilas verdes

da garota, e se aproveitou disso para sair triunfante da silenciosa

briga que lhe apresentava.

Pegou o braço de Nick e fingiu um sorriso que deixou a

descoberto o descontentamento que se esforçava por ocultar. A

costureirinha levava o casaco de seu marido sobre os ombros e isso

terminou de zangá-la.

— Não vai nos apresentar? - reclamou ao Nick. Também

pretendia fingir que o assunto lhe importava muito pouco, mas se

notava a simples vista que isso não era certo.

Lavínia sentia que podia tornar-se a chorar a qualquer

momento, mas resistia e o ocultava. Nick tinha voltado com sua ex-

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mulher, a das fotos que conservava em seu apartamento, a do navio

e isso a destroçava por dentro. Sabia que o tinha perdido.

Por um momento se arrependeu de havê-lo deixado. Se ela

tivesse suportado em silêncio e se conformado com seu carinho,

possivelmente ele não teria tornado a procurar a sua esposa. Mas em

seguida pensou que não podia enganar-se mais. Cedo ou tarde, Nick

teria voltado com sua mulher, e se desse modo era feliz, ela tinha que

aceitá-lo, porque somente assim se amava de verdade. Talvez algum

dia outro homem cruzasse por sua vida e fosse ela a que

permanecesse em silêncio quando esse outro lhe dissesse que a

amava. Então poderia compreender em carne própria o que

significava sentir-se como Nick.

Apesar de que Patrícia era a que falava, Nick não a olhou. Seus

olhos estavam enterrados em Lavínia, como se ainda quisesse

convidá-la a alguma parte ou fazer de conta que ninguém interrompia

sua conversa.

— Esta é minha ex-mulher - disse para lhe dar o gosto a que

lhe apertava o braço como se desse modo procurasse evitar que ele

pudesse escapulir. O corpo de Nick não se ia, mas sua alma vagava

muito longe de Patrícia, só que ela não o reconhecia.

Patrícia apertava as mãos ao redor do braço de Nick porque

sentia ódio e ressentimento. Ele a tinha apresentado antes a

costureirinha como sua ex-mulher, sendo que antes sempre a

chamava "minha esposa", inclusive quando já estavam divorciados.

Por outra parte, não a tinha renomado à outra, e Patrícia sabia muito

bem que se devia a que a estava protegendo dela. A vantagem era

que a costureirinha desconhecia essas intenções, notava-se em que

tudo o que Nick dizia lhe parecia com ela uma adaga que lhe

enterrava no peito.

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Patrícia sabia que estava perdendo Nick e não tinha ideia do

que devia fazer para retê-lo.

Lavínia, ao ver que Nick nem sequer desejava que sua ex-

mulher soubesse que ela era sua amiga, tal como ele a tinha

proclamado no navio, compreendeu que estava a mais nesse

encontro e se despediu.

— Tenho que ir – disse-lhe estendendo o casaco que ele tomou

sem apuro. — Obrigado por tudo, Nick. Estou em dívida com você.

Nick se adiantou um passo para que ela não se fosse, embora

Patrícia seguisse sujeitando-o. O apertão foi insignificante como

intento de que ele não se movesse.

— Quer que te leve até sua casa - perguntou. Lavínia não

entendia nada, em um momento a omitia na apresentação e ao outro

lhe oferecia levá-la até sua casa ainda contra o olhar que nesse

momento lhe lançava sua ciumenta mulher. Lavínia se esforçou por

soar tão amável e distante como ele, embora o tom rígido da voz de

Nick fosse impossível de imitar.

— Vou estar bem, não se preocupe – replicou.

— Ele não se preocupará, querida - repôs sua esposa com ares

de superioridade - só trata de ser cortês - logo olhou ao Nick. —

Vamos, querido – pediu. — Disse ao chofer que levasse o carro.

Nick não se dignou a olhá-la em toda a conversação. Ficou

calado, vendo como Lavínia se surpreendia pela resposta de Patrícia e

tentava ocultá-lo em um sorriso rígido. Notava-se em suas pupilas

que estalaria de dor a qualquer momento, e ele se sentiu morrer.

Lavínia se voltou e começou a caminhar rumo a sua casa. Nick

teria deixado Patrícia para seguir Lavínia, teria se esquecido do

mundo para levá-la até seu apartamento, deitá-la em sua cama,

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despi-la, lhe beijar os lábios enquanto lhe sussurrava que... que a

amava não, que lhe faria amor. Queria anunciar o que ia passar

para... para que se ruborizasse e lhe demonstrasse que o amava

tanto como ele necessitava que o fizesse.

— Vamos, Nick - insistiu Patrícia. Nick não tinha escutado que a

mulher já lhe tinha pedido o mesmo fazia um momento.

Como sempre: quando queria falar, ficava calado; quando

queria correr, ficava quieto.

Deu-se a volta e foi até o automóvel sem mediar palavra com

Patrícia. Nem sequer por cortesia esperou a que ela caminhasse

adiante ou ao mesmo tempo em que ele. Nick fazia o que queria e

isso matava Patrícia.

Sentado no automóvel, pôs o motor em marcha, mas não

moveu o veículo do lugar.

— Pobre moça! - comentou Patrícia sem medir seu ódio. — Tem

menos aula que suas prostitutas.

Mas com pesar se deu conta de que Nick não lhe emprestava a

mínima de atenção, nem sequer a tinha escutado. Ficou olhando o

corpo de Lavínia fazer-se pequeno e logo desaparecer no espelho

retrovisor.

As noites na delegacia de polícia sempre eram duras. Josué

tinha dormido em uma cela quando a presunçosa da Lavínia o tinha

denunciado por drogado, e tinha passado outra porque a princesinha

o tinha moído a paulada. Não tinha ideia de como ia pagar sua dívida

nem de como ia salvar-se das balas, e tampouco se preocupou.

Preferia olhar a televisão do outro lado da mesa na qual se

encontrava Helena, com o controle remoto reparado na mão e os pés

elevados a uma cadeira. Cristina tinha saído para fazer as compras

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com Hector. Josué adormecia sobre a mesa até que ressonaram uns

golpes à porta.

Ali viviam delinquentes, mas como não se roubavam entre eles,

podia-se confiar nas pessoas. Essa foi a razão pela qual Josué abriu a

porta sem perguntar quem a golpeava. Crasso engano.

Nick se jogou em cima como uma fera e o espremeu contra a

parede. Antes de falar olhou para o lado, onde Helena ainda estava

sentada com os pés sobre a cadeira, mas com o olhar marrom

cravado nos dois homens. A boca entreaberta, o chiclete suspenso

sobre sua língua.

— Não te mova - ordenou. A garota se encolheu de ombros,

indiferente.

— Nem o pensei.

Por ela podiam matar Josué que lhe faziam um favor. O que em

troca lhe tinha acelerado o pulso era ver em pessoa ao namorado de

sua irmã, o que fosse. Era muito mais atrativo, forte e capitalista do

que se via nas revistas, e além não tinha medo em tornar-se em cima

de um tipo grande e burro como Josué. E mais, tinha-o deixado

contra a parede como se fosse uma pluma. Resultava evidente que

Josué era puro tamanho, mas não tinha nada de coragem e muito

pouca força. A bebida e as drogas o teriam consumido todo.

Os olhos de Nick brilhavam de tão escuros e azuis quando

voltou a olhar ao moreno. Queria matá-lo, o teria assassinado com

suas próprias mãos para vingar quão terrível tinha sido esse homem

com Lavínia, mas soube que fazer isso não seria mais que condenar a

si mesmo e salvar a seu oponente da vida miserável que levava. A ele

sozinho interessava proteger o mais prezado.

— Já pagou sua dívida? - perguntou-lhe com rudeza. Quando

falava assim, a voz lhe voltava rouca e poderosa, e conseguia fazer

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tremer a todo mundo. O homem agitou a cabeça em gesto negativo.

— Eu a pagarei - anunciou Nick a seguir. Josué esboçou um sorriso,

esse tipo sim que era uma bênção! Cada vez que aparecia era para

resolver um problema.

Entretanto, o sorriso se apagou do rosto nem bem Nick lhe

apertou a garganta com o antebraço e voltou a falar com tom e gesto

ameaçador. — Não te ria - ordenou-lhe. — Não te penso dar o

dinheiro a você. E mais te vale manter a essa gente fora da vida de

Lavínia, porque se voltarem a pô-la em risco a ela ou a qualquer de

sua família que nada tem que ver com seus assuntos, eu mesmo me

encarrego de que esses tipos lhe voem a cabeça, vou arrumar com

eles. Não quero que te aproxime de Lavínia nunca mais. Aproxime-se,

e lhe fuzilam. Agora diga onde posso encontrá-los.

Helena estava absorta no que via, mas não se atrevia a mover-

se nem queria fazê-lo, porque assim teria arruinado um momento

sublime para ela, como esse o era. Sentia que algo tinha trocado em

seu interior: nem todas as pessoas eram tão distintas a ela,

possivelmente o namorado de sua irmã lhe parecesse mais do que

tivesse imaginado. Sentiu que ao fim tinha encontrado um espelho no

qual seu verdadeiro ser se refletia.

Josué cuspiu uma direção e Nick o soltou com tanta brutalidade

que o outro se cambaleou depois da partida. Helena viu sair Nick da

casa deixando a porta aberta. Sorriu de verdade, sem careta sensual

nem fingimento. Amava a esse homem.

Lavínia tratava de seguir com seu trabalho. Tinha que fazer as

camisas para a marca de roupa porque isso podia assinalar seu início

como oficina de costura e lhe contribuir um ingresso um pouco mais

amplo e seguro que os clientes particulares. Como a mão machucada

atrasava seu trabalho, pediu ajuda a Tamara, que acudiu nem bem se

liberou de suas tarefas.

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— Não estas como sempre, Lavi - comentou a morena

enquanto recortava um molde. O que se passa?

— Nada - respondeu Lavínia, ocupada na máquina de costurar.

— Diga-me o que se passa, não confia em mim?

— Claro que confio em você, Tami, é que não quero falar de

nada.

Uns golpes à porta interromperam a conversa. Lavínia, que

tinha ficado temerosa de que os traficantes a buscassem atrás do

acontecido com Josué, pensou que podia tratar-se deles e tremeu

involuntariamente. Tamara se deu conta.

— O que acontece, Lavínia? - perguntou assustada.

Ao parecer quem se achava do outro lado da porta também

pensou no medo que Lavínia podia sentir, por isso falou.

— Lavínia, sou eu, Nick. Está aí?

— Ah, entendo! - riu Tamara. — Terei que deixá-los sozinhos? -

brincou.

Lavínia não lhe tinha contado ainda que tinha rompido com

Nick. Tamara estava muito ocupada com sua nova vida de mulher

casada e se viam pouco. Olhou sua amiga com desencanto.

— Não diga nada, Tami, por favor - pediu ao mesmo tempo em

que ficava de pé para dirigir-se à porta. Embora a outra não

entendesse o motivo do pedido, aceitou.

Lavínia abriu com o rosto contrito. A expressão de Nick não era

muito distinta.

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— Como está? - perguntou. Lavínia não tinha aberto a porta de

tudo, como se não desejasse que visse o interior de seu apartamento.

Mantinha-o a distância.

— B... bem - Tampouco tinha contado a Tamara o acontecido no

dia anterior, havia-lhe dito que o corte da mão o tinha feito com um

prato na cozinha, pareceu-lhe o melhor para preservar a segurança

de sua amiga. Rogava a Nick que não deixasse escapar nada que a

pusesse em evidência.

— Como está a mão? - continuou perguntando ele.

— Bem - respondeu ela. Nick assentiu.

— Contudo ontem me esqueci da razão pela qual tinha vindo -

explicou com simplicidade. — Javier Gonzaga, um dos responsáveis

por uma marca que conheceu em uma festa, tem uma oferta de

trabalho para você - Lavínia entreabriu os lábios, surpreendida. —

Disse-lhe que o chamaria se te interessava receber esta proposta.

Estendeu para ela o papel que tinha escrito em seu escritório no

dia anterior e Lavínia o recolheu. Estava confusa e desconfiada.

— Se teve algo que ver com esta oferta... - começou.

— Juro que não - interrompeu-a ele. — Quando te levei a festa

sim quis te apresentar a todas essas pessoas, mas ao Javier o

conquistou por sua conta.

Lavínia tomou uma funda baforada de ar, sem poder acreditar a

possibilidade que Nick acabava de colocar entre suas mãos.

— Por que não responde o telefone? - perguntou-lhe ele em

seguida. Lavínia não quis lhe dizer que não tinha podido pagá-lo.

— Estou sem linha - explicou muito breve.

— Quer que chame a manutenção?

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— Não, está bem, já o fiz.

Nick assentiu. Apertou os lábios antes de falar.

— Ainda não aceita que te dê de presente um celular? -

perguntou. Lavínia suspirou. Se não o tinha aceito antes, quando

eram namorados, agora menos que nunca.

— Não - replicou.

Nick não queria ir-se, mas tampouco se atrevia a pedir a

Lavínia que o deixasse entrar. Compreendendo que ela não o faria,

disse-lhe adeus e refez o caminho para a escada. Em seu coração

esperava que ela o chamasse, mas em troca só escutou fechar a

porta.

Não podia culpá-la. Ele havia voltado com Patrícia.

— Essa é a maneira em que se saúdam e se falam dois

namorados? - perguntou Tamara cruzando os braços diante da

máquina de costurar. Lavínia baixou o olhar.

— Já não somos namorados - resumiu com dor.

— Então era o que se passava e não pensava dizer isso.

— Por favor, Tamara, não estou certa que suporte que te

ofenda.

— O que aconteceu? Enganou-te?

— Não.

— Então por que te deixou?

— Não me deixou, eu o deixei. Agora falemos de outra coisa,

por favor.

— Por que você o deixou? Porque te enganou!

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— Não. Nick não me enganou. Agora basta. Fale-me de você.

Fi se sentia desesperada cada vez que Patrícia Cólon cruzava a

porta do elevador. Pensava que Nick havia tornado a ser o cachorro

dessa perversa prostituta, que lhe dava todos os gostos e a tratava

como uma servente à rainha.

Arrogante, altiva e soberba, Patrícia passava por cima de Fi

como a uma estátua. E Fi, embora morresse por lhe soltar umas

quantas verdades na cara, calava por amor a Nick. Se falou foi

sozinho porque ele a obrigou a fazê-lo com a novidade que lhe fez

saber quando lhe entregava uns papéis.

— Quero que hoje jante em casa, Fi - disse-lhe enquanto

estudava o que ela acabava de lhe entregar.

— Festejamos algo? - perguntou a mulher, risonha.

— Patrícia deve jantar hoje conosco.

O sorriso do Fi se apagou como se lhe tivessem atirado uma

bofetada. Até esse momento, Patrícia não tinha pisado no

apartamento de Nick, o mesmo que uma noite tinha abandonado.

— É hora de que vocês duas se deem uma oportunidade -

seguiu ele, ainda ocupado em falar e em manipular as pastas.

— Não há trégua, Nick - replicou a secretária. Ele se

surpreendeu, porque elevou os olhos para ela e quase por milagre só

se concentrou no que falavam.

— Necessito que façam as pazes - explicou sucintamente, como

se se tratasse das cláusulas de um contrato - dentro de pouco penso

pedir a Patrícia que volte a viver comigo lá.

— O que? - Fi acabava de elevar a voz. Nick era um estúpido.

Tão inteligente e tão idiota!

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— O que escutou. É minha esposa e vou recuperá-la.

— Não é sua esposa - espetou-lhe Fi. A Nick não pareceu lhe

importar.

— Por isso mesmo, tem que voltar a sê-lo.

— Não conte comigo para isso - Fi soava na verdade zangada.

Nick nunca a tinha escutado dessa maneira.

— Por que diz isso?

— Porque não serei mais a testemunha silenciosa de sua

decadência. Sabe que é minha vida e que te amo, mas se quer te

destruir, vai ter que fazê-lo sozinho.

Nick ficou perplexo com a resposta; calado pela primeira vez

em muito tempo.

— Não seja tão dura, por favor - pediu em voz muito baixa.

— Não espere que eu volte a pisar em sua casa enquanto essa

perversa tenha um só pé posto nela - seguiu Fi, ignorando sua

súplica.

— Isso é injusto! - reclamou ele respaldando-se no assento.

— Injusto?

— Obriga-me a escolher entre ela ou você.

— Claro que não te peço que escolha - corrigiu-o Fi, ofuscada.

— Não te estou oferecendo nenhuma opção. Leve-a para viver com

você!

— A custa de que saia de minha vida.

— Seguirei trabalhando para você, mas só como sua secretária.

Não quero pisar em sua casa enquanto ela a pise, nunca mais.

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— É minha segunda mãe, não pode me fazer isto - Nick soava

desanimado, e o estava, porque nada saía como o tinha planejado.

— Já não - replicou a mulher com os olhos úmidos. Nick sentiu

que o peito lhe fechava.

— O que diz? - balbuciou. Não podia acreditar que Fi lhe

dissesse aquilo, era impensado.

— Uma boa mãe jamais permitiria que seu filho destroce a vida,

e eu não tenho garra para impedi-lo - replicou ela com pesar. — E

Lavínia? O que tem ela?

Nick preferiu fechar os ouvidos ao nome e congelar a palavra

quando ele mesmo a pronunciasse.

— Lavínia se foi - recordou à sua secretária.

— Você a deixou ir!

— Patrícia é minha esposa, tem que sê-lo - defendeu Nick em

um intento desesperado por convencer-se ele mesmo do que dizia.

- — Não vai me fazer acreditar nessa mentira! - gritou-lhe a

mulher. — Ou vai me fazer pensar que o que diz as pessoas é

verdade.

— E o que dizem as pessoas? - replicou ele entre dentes.

— Que é um presunçoso orgulhoso. O que quer, Nick?

Demonstrar ao Lowenstein que pode recuperar sua amante, como

uma vez demonstrou ao Octávio que podia ser muito mais que ele?

Nick tragou com força.

— Está machucando, Fi - resmungou. Dizia desorientado, não

podia digerir a dor, nunca tinha sabido fazê-lo.

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— Na verdade acredita que ainda ama a Patrícia? Acredita

poder amar a uma mulher como essa depois de ter conhecido

Lavínia?

— Parece que Lavínia é sua filha, não eu - concluiu ele. — Basta

- indicou depois inclinando-se para frente - não tolero isto.

— Porque não pode tolerar a você mesmo - espetou-lhe a

mulher sem pestanejar. — Faça-te o gosto! Reúna a Patrícia uma vez

mais!

Depois de soltar essas palavras, Fi girou sobre os saltos e saiu

do escritório sem olhar para trás.

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Capítulo 24

Lavínia respondeu ao telefone que tinha podido pagar graças ao

trabalho das camisas com um gosto na boca. Tinha chamado ao tal

Javier Gonzaga e este a esperava para a entrevista de trabalho em

uma hora. Estava entusiasmada e nervosa.

— Lavínia? - disse a voz do outro lado. Soava angustiada, presa

de pranto, e conseguiu alarmá-la.

— Mamãe?

— Necessito que me ajude. Pode me ajudar?

— S... sim - titubeou primeiro, pela entrevista e pela surpresa.

— Sim! - adicionou depois. Lavínia estava assustada: jamais sua mãe

tinha tido uma atitude semelhante. — O que necessita?

— Necessito que venha.

— Agora? Estava saindo a um encontro muito importante.

Passou algo com Hector?

— Não - replicou sua mãe compungida e também algo

temerosa. — Quando vier, golpeia cinco vezes de forma pausada para

saber que é você.

Lavínia tremeu. Tinha medo de que os que reclamavam o

dinheiro ao Josué tivessem invadido sua casa e assustado a sua

família. E se sua mãe a fazia ir porque eles estavam dentro e a

oferecia a ela como isca, porque era a única que, insistiam, podia

pagar? Era sua mãe capaz de tanto?

Se essa não era a razão de sua urgência, possivelmente se

achasse assustada porque a tinham ameaçado e de verdade estivesse

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procurando sua ajuda. Lavínia não tinha pedido o empréstimo porque

queria ver o que acontecia na entrevista de trabalho e com a

confecção de camisas para a marca importante, mas nesse momento

em que ouvia sua mãe tão angustiada pela primeira vez na vida,

arrependeu-se de não havê-lo feito. Com o empréstimo, a dívida já

teria sido saldada e nada disso estaria passando. Teria que suspender

a entrevista.

— Está bem, mamãe. Passo por sua casa em um momento -

consentiu.

Depois de desligar, chamou o Javier e se desculpou porque não

poderia assistir à entrevista. Tinha medo de que já não a quisessem

para o trabalho, de que a considerassem irresponsável, mas ao Javier

não pareceu lhe importar. Quase parecia esperar que Lavínia

suspendesse o encontro. O que ela não sabia era que gente

importante estava acostumada a suspender entrevistas e fazer-se

desejar pelos empregadores e que Nick já tinha aplainado esse

terreno. Ela não se considerava alguém importante e desconhecia

essa tradição. O assunto a beneficiou sem querer, como a

beneficiavam tantos outros nesse último tempo, embora ela

acreditasse produto de sua má sorte.

Lavínia chegou a casa de sua mãe e respeitou o código dos

golpes à porta por segurança. Apesar disso, a voz de Cristina

perguntou quem era com tom desagradável e Lavínia se apressou a

identificar-se.

A mulher abriu apurada. Lavínia soube em seguida o que tinha

passado porque não fazia falta nada mais que olhar o rosto e os

braços de sua mãe para notá-lo. Tinha a bochecha vermelha e

torcida, nodoas negras nos braços e debaixo do olho esquerdo.

— Sabe que isso não acontece sempre... - tratou de justificar-

se Cristina antes que Lavínia dissesse "olá".

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— Mas ocorre, e não deveria - corrigiu-a a filha. — Até quando,

mamãe? Até quando pensa suportar isto?

Cristina baixou o olhar.

— Até agora.

Lavínia elevou o rosto lhe sustentando o queixo. Estudou o

golpe mais notório e insultou ao Josué entre dentes.

— Por que te fez isto? - interrogou pensando nos malfeitores

que o perseguiam. — Queria que lhe desse dinheiro, não?

Cristina negou em silêncio.

— Estava zangado – explicou. — Seu namorado... -

interrompeu-se. Lavínia soltou o ar que levava nos pulmões.

— Mas por que não me acreditam que já não tenho namorado!

– exclamou. — De fato acredito que jamais o tive. Jamais o tive em

realidade - refletiu com tristeza. Se Nick não a amava, Nick não tinha

sido dela.

— Então me explique por que diz Helena que é um deus na

Terra, que ameaçou ao Josué como um valentão, que o jogou contra

a parede com tanta força que Josué parecia uma pluma e todas essas

coisas - soltou Cristina. — Não fez mais que me falar de seu Nick em

uma hora!

— Isso é impossível! - clamou Lavínia até contendo a risada. —

Nick jamais faria uma coisa assim.

— Por que está tão segura?

— Porque sei. Ele não é assim. Ele passa a vida detrás de um

escritório dando ordens, tirando contas, riscando linhas em papéis.

Nick não ameaça gente, não se chateia em fazer algo por alguém que

nem sequer lhe importa. E, sobre tudo, não pertence a nosso mundo.

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Cristina a olhava com as sobrancelhas arqueadas. Helena tinha

aparecido com as botas até o joelho, a minissaia e o espartilho pela

porta do quarto e cruzava os braços apoiada na parede. Mascava

chiclete com a boca aberta.

— Seu namorado entrou como uma tromba por essa mesma

porta que acaba de atravessar você – contou. — Jogou Josué contra

essa parede – assinalou - e lhe disse que ia pagar sua dívida.

Possivelmente você saiba do que estava falando.

Lavínia ficou pálida. No silêncio, Helena fez uma bola de chiclete

e esta arrebentou fazendo saltar a todos, menos a ela.

— Nick disse que... pagaria sua... dívida - resmungou Lavínia.

Ninguém mais que Nick, Josué e ela sabiam a respeito disso, Helena

não inventava.

— E também lhe disse que se voltasse a nos pôr a qualquer de

nós em perigo, ou que se voltasse a aproximar-se de você, o ia

mandar matar.

— Impossível! - exclamou Lavínia. — Esse não era Nick! Deve

haver algum equívoco.

Helena semicerrou os olhos. Odiava que a tomassem por

estúpida, porque de boba não tinha um só cabelo.

— Eu acredito que você não tem nem ideia de quem é seu Nick

- replicou orgulhosa. Lavínia se viu derrotada por sua irmã e por seu

pronto interrogatório, por isso calou.

— Qual é o ponto de discutir isso agora? – disse. — Não

permitirei que pague nenhuma dívida e ponto.

— Ao que parece já é tarde para que faça isso - respondeu

Helena muito rápido. — Por isso Josué zangou-se, sentiu-se o que é,

um covarde, e se agarrou com a única pessoa que ainda lhe cede o

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poder. É uma merda de homem um filho da puta. Nem meus... -

interrompeu-se antes de dizer um inapropriado "clientes". — Nem

meus amigos tratam assim a uma mulher - arrumou.

— Helena... - balbuciou Cristina, cabisbaixa.

— Para que me chamou mamãe? - perguntou Lavínia

pressentindo que sua mãe se guardava algo mais.

— Não quero que volte a entrar em casa - disse. Em seguida

olhou a sua filha de novo. — Até que se reponha.

Lavínia pensava por que sua mãe não afastava Josué de sua

vida para sempre e não o calou.

— Não entendo como pode querer a um homem como esse -

reclamou. Cristina franzia o cenho, pesarosa.

— Josué é um bom homem – assegurou. — E sim, eu o quero,

mas se estivesse recuperado, já não teríamos que viver assim.

Lavínia assentiu. O que podia reclamar ela a sua mãe, se

também estava apaixonada por um homem indesejável, embora em

outros sentidos. Um tipo mulherengo, que andava com esposas de

outros homens, que rompia famílias e que ainda por cima não soltava

um sentimento nem que estivessem a ponto de fuzilá-lo.

Mas pretendia protege-la de Josué...

Não podia pensar nisso agora.

— O que quer que faça? - perguntou a sua mãe.

— Agora se foi de volta a tomar com seus amigos - contou

Cristina - mas quando voltar, não lhe permitirei entrar na casa.

Helena me ajudou a pôr sua roupa em bolsas e penso jogá-las. Não

me sentiria segura sem que estivesse comigo.

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Lavínia se sentiu comovida. Não podia acreditar que sua mãe

ao fim tivesse reagido a respeito de Josué, que lhe impusesse como

requisito sua recuperação se queria voltar a ver sua família.

— Me perdoe - choramingou Cristina cabisbaixa. — Se eu

soubesse que Josué era assim, teria ficado sozinha com vocês duas.

Lavínia sabia muito bem que Josué se embebedou várias vezes

antes que Cristina decidisse viver com ele e pensava que isso deveria

haver servido a sua mãe como amostra de seu futuro, mas calou.

Não queria desperdiçar a possibilidade de que Cristina tivesse aberto

os olhos e finalmente estivesse decidida a pôr fim à situação que

tinha sofrido tantos anos.

— Seu pai era tão diferente... - continuou Cristina com um nó

na garganta. Helena escutava sem alarmar-se, na mesma posição

que tinha adotado ao sair do quarto. Podia passar horas como uma

estátua. Lavínia, em troca, não podia acreditar o que ouvia. Cristina

sorriu com melancolia: — Ele me tratava bem e me ensinou tantas

coisas... Quando o conheci, admirei-o no primeiro momento.

Os olhos de Lavínia se encheram de lágrimas.

— Nunca me havia dito todas essas coisas - sussurrou

emocionada. Sua mãe se encolheu de ombros. — Que sentido teria?

– chorava. — Para que lhe ia dizer isso, para que sentisse saudades

tanto como eu? Quando me tiraram isso, pensei que minha vida tinha

terminado.

— Mas foi - recordou-lhe Lavínia. — Não demorou para sair de

noite, em...

— Era jovem - replicou Cristina. — Sabe que me casei com seu

pai aos dezenove anos, e quando tinha sua idade, já estava viúva.

Senti que minha vida tinha terminado. Amava-o tanto... Todas

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minhas ilusões morreram no dia em que soube que me tinham

arrebatado isso, tão jovem, tão forte, tão formoso...

Lavínia cobriu a boca com as mãos. Seu coração não alcançava

experimentar tantas emoções.

— Mamãe... - balbuciou. Cristina continuou falando angustiada.

— Passei muito tempo triste, nem sequer te olhava porque seus

olhos me recordavam os dele – contou. — Imagine o que se sente ao

perder a pessoa que mais ama no mundo, com ela se vão sua vida,

suas ilusões, sua juventude.

Os lábios de Lavínia tremeram. Nick não era dela e sabia, mas

só pensar que pudesse morrer a aterrava. Não. Até esse momento

jamais tinha compreendido a sua mãe, nem ela se feito compreender.

— Mas depois minha mãe, minha irmã e minhas amigas me

obrigaram a seguir adiante - continuou dizendo a mulher. — Tinha

você, eu era jovem e devia te dar um pai. O mau foi que, depois de

seu pai, sempre me apaixonei pelas pessoas erradas - Cristina sorriu.

Parecia necessitada de recordar. — Gostava de colecionar coisas -

disse pensando em Carlos. — Tinha muitos, muitos livros, amava a

leitura. Sempre líamos juntos... Líamos Eneida, por isso quando

nasceu quisemos que te chamasse Lavínia. Foi o primeiro livro que li

em minha vida. Que diferente teria sido tudo se não me tivessem

matado isso!

Helena não se sentia ciumenta das notícias que estava

ganhando sua irmã, embora ela jamais pudesse as ter. Seu pai tinha

sido um amor fugaz de Cristina e nem sequer sabia quem era. Ou ao

menos isso dizia ela.

— Vou sentir saudades até meu último dia - acabou dizendo

Cristina, presa do pranto.

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Lavínia se inclinou para ela e a estreitou entre os braços.

Cristina respondeu a seu contato.

— Sinto muito, mamãe - desculpou-se Lavínia em seguida, ao

tempo que secava as lágrimas que lhe rodavam pelas bochechas com

a mão. — Se tivesse sabido tudo isto antes...

Helena jamais chorava e não queria fazê-lo, por isso olhou para

outra parte que não fosse sua irmã e sua mãe e pensou em algo que

não fosse aquela cena, mas as três estavam comovidas.

O ambiente se rompeu quando se moveu o trinco e, como

Cristina tinha posto chave, a porta não se abriu. As três olharam a

fechadura, a mãe com medo, as duas filhas com valor. Quase

pareciam duas jaquetas: uma de saia azul até o joelho e a outra de

minissaia negra que apenas lhe tampava a bunda.

— Vai lhe dizer que se vá, Lavínia? - perguntou a mãe referido-

se a Josué. Lavínia se deu a volta.

— Não – disse - O vai fazer você. Ninguém mais pode lhe pôr

fim a isto - Cristina assentiu em silêncio, sabia que Lavínia tinha

razão. — Tudo vai sair bem, mamãe - tentou tranquilizá-la. — Helena

e eu estaremos na sua casa, pendentes de tudo.

— Entretenham Hector - pediu Cristina, de repente preocupada

antes por seu filho que por ela mesma. — Seria muito duro para ele

se escutasse algo.

— Fique tranquila por isso - prometeu Lavínia enquanto sua

irmã, que parecia misteriosamente disposta a lhe fazer caso, abria a

porta da casa.

Quando Lavínia entrou em quarto, Hector abriu os braços.

— Lavi! - exclamou. Ao parecer se esqueceu de como tinham

terminado a última vez que se viram. Assim funcionava a mente dos

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meninos, desprezavam o mau e entesouravam o bom. Lavínia

desejava poder fazer o mesmo com os últimos encontros que tinha

mantido com Nick.

Os gritos de Josué não se fizeram esperar. Cristina, em troca,

não gritava. Logo alcançava para ouvir que lhe pedia que se fosse,

que levasse suas coisas e retornasse quando estivesse recuperado.

— Esta é sua família e lhe queremos - dizia ela - mas não

assim. Assim não!

Essa casa tinha sido comprada com o dinheiro que o seguro de

vida pagou pela morte de Carlos, o pai de Lavínia. Ao Josué não

correspondia nada e nada ia se levar mais que suas poucas coisas.

Quando se ouviu um golpe, Lavínia foi primeira em sair, mas

Helena não ficou atrás. Enquanto a primeira enfrentou Josué, a outra

se aproximou de sua mãe para lhe revisar o novo golpe. Josué elevou

o punho para Lavínia, mas não se atreveu a deixá-lo cair. Ela o

enfrentava com as mãos no quadril, ela o tinha moído a pauladas.

— Não me golpeia! - recriminou-lhe à cara. — Faz o que diz

minha mãe ou chamo à polícia. Ou melhor, chamo Nick para que te

mande matar.

— Como prometeu. Procure ajuda, Josué - ordenou depois. —

Se quiser voltar para esta casa, vais ter que fazê-lo são.

Josué baixou o braço com o que ameaçava Lavínia, de mau

grado recolheu a bolsa com seus escassos objetos de vestir, deu-se a

volta e partiu. Cristina chorava, abraçada por Helena. Lavínia se

voltou.

— Trocaremos a fechadura - determinou.

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Fi conservava a distância que tinha imposto entre Nick e ela. Só

ia trabalhar no escritório e lhe dirigia a palavra unicamente no que

referia aos negócios.

Nick tinha a coragem de fazer-se de ofendido e praticar com Fi

a mesma indiferença que ela fingia com ele. Seu apartamento estava

um alvoroço, em uma semana se transformou em uma desordem

descomunal que logo que pôde acomodar um pouco a empregada

doméstica que lhe enviaram de uma agência a que se viu obrigado a

chamar. Ele tinha prometido que jamais contrataria uma, mas se não

o tivesse feito, a imundície o teria abafado.

Para falar a verdade, era bastante desordenado, sempre o tinha

sido, e não queria empregadas porque se lembrava de sua mãe e de

sua tola ideologia de que era injusto que alguns nascessem para

servir e outros para mandar.

Amaldiçoava-se por ser tão estupido. Para ele era importante

que as coisas fossem feitas com amor: o café da manhã, o

acondicionamento da roupa, a limpeza. Pensava, como um bobo, que

o amor que se depositava nas ações se levava na alma ao beber o

chocolate matutino, vestir a roupa, aspirar o aroma de uma casa

limpa. Agora o chocolate o preparava uma máquina, a roupa a lavava

um tanque e a casa limpava uma empregada muito bem paga que

não queria ter. E embora desejasse conformar-se com todas essas

coisas, não podia evitar que lhe faltasse algo.

Fi ocultava sua preocupação a Nick, mas a sentia na alma.

Procurava a maneira de que ele reagisse a respeito de Patrícia, que a

desprezasse de uma vez como tinha feito com tantas amantes ao

longo desses anos. Não queria pensar que ele era tão idiota para

entregar-se a uma promessa que tinha feito que já não tinha nenhum

valor, porque tinha deixado de senti-la.

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Foi uma tarde que, procurando essa luz que iluminasse a vida

de seu filho postiço, chamou Lavínia.

— Fi! - recebeu-a ela com surpresa e alegria. — Que bom ouvir

sua voz!

Fi não soava feliz igual a Lavínia, embora estivesse contente de

voltar a falar com ela. A moça sempre conseguia lhe transmitir um

pouco de paz.

— Está ocupada? - perguntou, taciturna.

— Não - contou Lavínia - Acabo de chegar de uma entrevista de

trabalho – disse. — Estou tão feliz! Querem que trabalhe como

desenhista! Nick me passou os dados; aceitei trabalhar para o Javier

Gonzaga, conhece-o?

— Sim.

Fi estava triste, silenciosa.

— O que te passa, Fi? - indagou Lavínia. — Está bem?

— A verdade é que não - respondeu a mulher sem ânimo de

nada, e conseguiu assim preocupar a Lavínia.

— O que acontece? - disse enquanto aproximava uma cadeira

até o telefone com o pé, logo se deixou cair nela.

— É Nick.

— O que acontece com Nick?

— Tem-me preocupado muito.

— Está bem? Passa-lhe algo?

— Você é única que pode ajudá-lo.

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Lavínia se levou uma mão ao peito, com os olhos muito

abertos.

— Eu? - replicou.

— Só você pode resgatá-lo, Lavínia.

A urgência e o desespero com o qual falava Fi conseguiram

alarmar ainda mais a Lavínia. Assim, não tinha ideia do que a mulher

falava.

— Do que poderia eu resgatara Nick? - perguntou.

— De Patrícia Cólon.

— Sua amante - Lavínia recordava que Horácio Lowenstein

tinha renomado a uma tal Patrícia, tinha-a definido como sua esposa.

— Amante? - replicou Fi. — Que amante? Sua ex-mulher!

— A esposa de Horácio Lowenstein - respondeu Lavínia, muito

convencida do que dizia.

— A de Nick.

Lavínia entreabriu os lábios, franzia o cenho e já não respirava.

Não podia ser certo, devia haver duas Patrícias, depois de tudo não

era o nome mais estranho do mundo, não se chamavam "Lavínia".

— Entendo – disse. — As duas se chamam Patrícia.

— Que duas? - Fi tampouco entendia uma palavra.

— A do Nick e a do Lowenstein - repôs Lavínia. Fi negou com a

cabeça.

— Lavínia, não entendo nada – disse. — Patrícia Cólon é uma

só, e casou-se com os dois.

— O que diz? - sobressaltou-se Lavínia. — É bígama?

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— Lavínia... - uma sensação de alarme invadiu o interior de Fi.

Possivelmente Nick tinha sido tão estúpido que nem sequer havia dito

a sua namorada que alguma vez tinha estado casado. — Nick não te

havia dito que era divorciado?

— S... sim... - balbuciou Lavínia. Isso serenou a mulher. Ao

parecer seu filho não era tão idiota, depois de tudo.

— Não sei o que te terá contado Nick, mas é melhor começar

desde o começo – resolveu. — Nick nem sempre foi o que conheceu.

— Sim, isso já sei - interrompeu-a Lavínia um momento. Tinha

soltado a carteira ao lado da cadeira.

— Nick era um jovem convicto estudioso, responsável, tímido.

— Tímido Nick? - riu ela.

— Mais do que poderia imaginar - replicou Fi muito séria. Não

se incomodou porque Lavínia não lhe acreditasse de entrada o que

lhe contava; não era para menos, depois do que aparentava Nick. —

Tinha sofrido muito pelo divórcio de seus pais, inclusive tinha

padecido antes que, graças a Deus, Octávio Larrazábal os

abandonasse a ele e a Teresa, sua mãe. Porque o primeiro

sobrenome de Nick, pelo que o conheceu quase toda sua vida, não é

Hagen, que era o sobrenome da Teresa, é Larrazábal. Octávio foi

sempre seu pesadelo, sua sombra opressora.

Lavínia tremeu. Apertava tanto o tubo do telefone que parecia a

ponto de quebrá-lo em dois. Nick não abreviava um segundo nome

com um L, a não ser um sobrenome. Começava a compreender...

Quando se sabiam certas coisas, tudo se fazia tão claro.

"Arquiteto. Meu pai era arquiteto", havia-lhe dito com a voz

apagada, com o olhar escuro, quando fez a pergunta sem ter ideia do

que esta agitava em seu interior.

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— Nick era tão sensível que... - começou Fi. — Ainda o é -

repôs com amargura na voz.

Lavínia tragou com força um nó de dor.

— É tão sensível que sempre sofreu muito. Se agora o vir desta

maneira, imagine o que era quando começava a ser um moço. Não

sabia esconder suas emoções, não sabia dirigir seus sentimentos. E

em meio de todo esse terremoto, apareceu ela: Patrícia Colón, a filha

de seu professor mais admirado. Se visse como a amava, Lavínia!

Tinha depositado todas suas ilusões nessa relação.

Lavínia umedeceu os lábios. Não queria ouvir o que já sabia,

que Nick amava com loucura a outra pessoa. Nick era esse menino

instável, de emoções flutuantes, que era de uma vez capaz de fazer

as maiores loucuras por amor, as que os adultos não se atreveriam a

fazer.

Não queria saber tudo o que tinha feito por Patrícia Colón, não

queria pensar que essa puta o tinha ferido.

— Sei que te dói, Lavínia - seguiu dizendo Fi pressentindo as

emoções de Lavínia por seu silêncio - mas têm que escutar. Patrícia

jogou um tempo sendo a namorada de Nick. Ele fazia tudo por ela,

até trabalhou para Octávio, seu pai, com o estrago que isso lhe

causava. Tudo por ganhar algum dinheiro para ela. Teresa e eu fomos

empregadas domésticas, Nick não tinha um centavo para pagar os

gostos a essa descarada, e ela não soube valorizar tudo o que ele

fazia para satisfazê-la. E mais, quando o deixou lhe disse que ele era

muito novo para ela.

— Pobre Nick... - refletiu Lavínia em voz alta. Não tinha querido

dizer isso, mas lhe tinha saído da alma.

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— Octávio o humilhou até a indigestão - continuou Fi. — Sei

que se Nick souber que te estou contando isto vai se enfurecer

comigo, assim, por favor, conserva-o em segredo.

— Fi...

— Sim?

— Não quero que me conte coisas que ele não me diria - pediu

Lavínia entristecida. — Se Nick quer seguir sendo para mim o amante

descarado, simpático e febril que mostra a todo mundo, aceitarei

antes que saber quem é em realidade por outra boca. Será melhor

que deixemos de lado esta conversa.

— Lavínia... - Fi quase suplicava. — Não faz falta que Nick te

dissesse todas estas coisas porque ele havia tornado a ser ele mesmo

enquanto estava com você. Não faziam falta as palavras.

Lavínia logo tomou um pouco de ar. As observações de Fi a

deixaram débil e tremente. Nick não tinha sido ele mesmo com ela,

não o era com ninguém. Por que essa mulher lhe estava dizendo

isso?

— Ria e conversava. Dançava com você, Lavínia! - clamou Fi

com entusiasmo. — Tinha deixado de fazê-lo por culpa das demandas

de Patrícia. Mas isso aconteceu quando foi sua esposa. Pressionou-o

tanto que Nick acabou destruído. Fumava, não dormia, não vivia por

conformá-la.

— Acredito que me perdi de algo... - interrompeu-a Lavínia.

— Sim, claro, desordenei a informação - explicou Fi.

— Disse-me que Patrícia foi sua namorada e que o tinha

deixado.

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— Assim foi - assentiu a mulher. — Em pouco tempo Teresa

descobriu que estava doente e veio a falecer - a voz se tornou

sombria. — Nick sofreu tanto por isso! Sua mãe era tudo para ele, a

pessoa que mais amava no mundo.

"Esse nenê tem a sorte de ter uma irmã que lhe dê um tapa por

amor, e o dia de amanhã te recordará como eu recordo a minha

mamãe: como a pessoa que fez tudo por amor a mim", havia-lhe dito

ele.

"Sonho com o sorriso de minha mamãe quando me trazia uma

xícara de chocolate bem quente em meu quarto enquanto eu

estudava. Esse sorriso consegue me temperar nos momentos mais

frios, mais escuros", tinha-lhe contado.

Nick sim tinha se aberto com ela, até antes de proclamá-la sua

namorada!

Lavínia começou a chorar sem poder ocultar o pranto.

— Sinto muito, Lavínia - desculpou-se Fi no mesmo estado. —

Não quero te fazer dano, mas precisa saber tudo isto. Foi depois da

morte de sua mãe quando Nick começou a mudar. De repente tinha

fé em si mesmo, ou isso aparentava, conquistava a todos com seu

bom humor, seu aspecto físico, sua lábia. Se algo não pôde deixar de

ser, é inteligente. É uma luz para tudo! Mas se finge frívolo,

superficial, despreocupado. Sou testemunha de que, se triunfa nos

negócios, é porque realmente trabalha. Ninguém tão estúpido pode

crescer tanto. O certo é que seu primeiro lucro como engenheiro lhe

deve ter contado pela metade, mas ao menos lhe terá insinuado isso.

— Sim - assentiu Lavínia, quase sem voz - sim o fez.

— Obteve-o inclusive antes de graduar-se. Pablo o ajudou com

sua assinatura, porque já estava formado. Dá-te conta? Se em algo

as pessoas têm razão é em que é uma eminência.

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— Sim, eu também o penso - demarcou Lavínia um pouco mais

serena. Sorria.

— Então Patrícia teve a maldita ideia de voltar - seguiu Fi. Seu

ressentimento para com essa mulher se fazia evidente em sua voz. —

Sentiu-se atraída por um guerreiro, uma ave fênix, e todo esse poder

que Nick emanava de repente a enfeitiçou. O qual sonhava formando

uma família...

— Nick uma família...? - sussurrou Lavínia sem poder acreditar

no que escutava e repetia.

— ...aceitou-a. Aceitou-a porque ao tê-la com ele pensava que

voltava para o passado, mas só arruinou sua vida. Casou-se com ela,

mas como era de esperar-se, em pouco tempo Patrícia se aborreceu e

então arranjou amantes. Entre eles apareceu Horácio Lowenstein.

— Horácio Lowenstein! - exclamou Lavínia ao tempo que

saltava da cadeira.

"Tem o coração tão grande que é capaz de ajudar ao

Lowenstein a recuperar a sua esposa. Embora isso signifique me

trair", havia-lhe dito Nick. Ela o tinha acusado de deitar-se com uma

mulher casada, de destroçar uma família e ele... ele sozinho tratava

de recuperar o que tinha sido dele, essa odiosa mulher que o pegava

pelo braço no navio e à saída da delegacia de polícia. Lowenstein era

o que tinha destroçado sua família imaginária, e nem sequer tinha

tido o valor de dizer-lhe em mais de duas horas que tinham ficado

juntos no hotel. Lowenstein e essa horrível mulher tinham sido uma

ruína para Nick, depois de que ele tivesse superado outras.

Lavínia esteve a ponto de romper algo. Odiava-a! Patrícia Colón

tinha enganado a seu Nick, tinha-o feito sofrer! A teria matado.

— Nick lhe deu tudo - seguiu dizendo Fi. — Sei que queria

tratar a sua esposa como Octávio não tinha feito com sua mãe, que

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queria demonstrar a si mesmo que não era como ele. Mas Patrícia

não o permitiu, pelo contrário, foi o novo Octávio na vida de Nick

quando ele ao fim se desfez do outro. Transformou as ilusões e

princípios de Nick em debilidade, e quando se aborreceu disso

também, então se foi com seu amante. Divorciou-se de Nick e se

casou com Horácio Lowenstein, que até o momento não tinha sido

mais que um oponente de trabalho de Nick, como qualquer outro - Fi

tomou um momento para respirar. — Patrícia é um demônio, por isso

se veste de vermelho.

Lavínia teria rido daquela afirmação, mas não pôde soltar

palavra. Seus pensamentos iam e vinham em todas as direções.

— Patrícia destrói tudo de bom nos homem que cruzam em seu

caminho - assegurou Fi.

— Nick tampouco é um cão - espetou Lavínia fazendo uso de

sua estranha convicção.

— Não é - afirmou Fi. — Está longe de ser um cão, graças a

Deus. Mas você não conhece toda a verdade, nem sequer imagina, e

eu não sei se possa dizê-la neste momento. Ainda fica mais que não

conhece dele.

Lavínia não tinha dúvida de que assim era, mas saber que na

realidade ele sim se tinha aberto com ela, embora não tivesse podido

interpretá-lo, consolou-a.

— Acredito que me havia dito todas essas coisas depois de tudo

- concluiu com voz pausada - mas o fez de forma tão velada que se

faz difícil chegar até o final.

— Não sente saudades - assentiu Fi. — No fundo está

apavorado de não ser amado. Nick não havia tornado a confiar em

nenhuma outra mulher, nem tampouco se relacionou mais com

garotas como você.

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— Com garotas como eu?

— Mulheres dignas de serem amadas.

Lavínia suspirou. Sabia o rumo que tomava a conversa e não

desejava ouvi-lo.

— Realmente aprecio o que me diz, Fi, mas...

— Suplico-lhe isso! - interrompeu-a a mulher sem ocultar seu

desespero. — Nick necessita a um anjo como você.

— Mas ama o demônio - interpôs-se Lavínia - e não há nada

que possamos fazer a respeito.

— Rogo-lhe isso, Lavínia... Se reaparecesse em sua vida...

— E condenar a minha ao lado de um homem que me fará

amor pensando em outra? - reclamou Lavínia. Doíam-lhe o peito e a

alma ao pronunciar essas palavras, mas não ia enganar-se com

eufemismos. — Sinto muito, mas me quero mais que para acabar

desse modo.

— Esse é o problema, que Nick não se quer nem um pouco -

refletiu Fi amargamente. — Tem a autoestima pisoteada, inclusive

diria que se odeia. Do contrário não seguiria pretendendo convencer-

se de que ama a essa puta.

— É que a ama, Fi! - replicou Lavínia ofuscada.

— Isso é um capricho - assegurou a mulher - isso não é amor.

— Pois enquanto esteja apaixonado, encaprichado ou o que seja

com outra, por mim pode arder em seu próprio inferno - soou dura.

Era dor, não ressentimento. — Me perdoe - adicionou em seguida

para compensar o que disse anteriormente. — Entendo sua

preocupação, mas não há nada que eu possa fazer. Quero seguir em

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contato com você, podemos ser amigas, mas não falemos mais de

Nick. Por favor.

Fi suspirou. Não era o que ela esperava, mas devia conformar-

se com isso. Compreendia a Lavínia e sua determinação.

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Capítulo 25

Apesar da conversa que tinha mantido com Lavínia e da paz

que essa jovem lhe tinha irradiado, Fi não podia ficar tranquila.

Assim, dissimulava sua crescente preocupação diante de Nick e se

mostrava séria e distante. Só falavam de assuntos de trabalho e

quando ele tratava de lhe falar de seu distanciamento, com toda a

dor da sua alma Fi lhe perguntava se lhe oferecia algo mais, ele

calava-se em seu intento de comunicar-se com ela, e acabavam

separando-se de novo.

Nick acreditava ter superado o fato de que seu pai se

esquecesse de chamá-lo a cada três de março para seu aniversário

quando ele ainda esperava seu chamado, o qual aconteceu até seus

vinte anos. Entretanto, agora que cumpria trinta e quatro e estava

afastado de Fi, recordou-o. Por outra parte pensava que a mulher não

suportaria ignorar essa data e então teria oportunidade de

reconciliar-se com ela, mas foi chegar ao escritório e dar-se conta de

que desta vez, Fi não o perdoaria.

Depois de uma noite de sexta-feira muita agitada, esse sábado

Nick desceu do elevador e se encontrou com Fi que já estava sentada

a seu escritório. Não estava acostumado a trabalhar no escritório nos

fins de semana, mas como tinham vários assuntos atrasados, tinham

acordado fazê-lo. Em outras oportunidades, ela tinha ido a sua casa,

tinha-lhe preparado um café da manhã especial, tinha-o

acompanhado e logo até se incomodado em surpreendê-lo com uma

torta no trabalho. Sempre de chocolate e mouse, como ele gostava.

Nada disso se concretizou esse dia.

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Ele passou por diante de seu escritório, ainda pensando que

podia obter algo mais que uma saudação, o qual tampouco

aconteceu.

— Olá, Fi - tentou. Ela não levantou a vista de seus papéis.

— Olá - respondeu por mera educação.

Fi desejava saltar da cadeira, abraçar Nick e enchê-lo de beijos

enquanto lhe entoava feliz aniversário, mas resistiu estoicamente os

embates de seus sentimentos. Queria que Patrícia fosse quão única

possivelmente, se suas demais atividades vazias o permitiam,

desejasse um feliz aniversário a Nick, e que então ele se desse conta

de se essa única saudação era o que necessitava.

Decepcionado pela atitude de Fi, mas incapaz de dar o braço a

torcer, Nick acendeu o primeiro cigarro às nove da manhã. Precisava

relaxar-se para poder pensar com clareza e resistir a todas as

obrigações. Quase não dormia porque tinha insônia, fumava mais de

vinte cigarros por dia e não abandonava a noite. Se não podia dormir,

como não queria pensar, terminava no bar.

Lá pelas dez e meia, tinha fumado cinco cigarros, tinha

discutido com um sindicalista e tinha mais vontade de estar no bar do

que de trabalhar. No escritório não deixava de pensar em que era seu

aniversário e Fi nem sequer o tinha saudado, em que Patrícia não

fazia mais que sair às compras e em que Lavínia o mantinha inquieto.

Por que ainda tinha que lembrar-se dela? Por que não podia

desprezá-la e focalizar-se em seus objetivos? Mas quais eram esses

objetivos em realidade, se tudo o que fazia era recordá-la?

Tinha calor, mas não tirava o casaco deu-se conta inclusive de

que algumas gotas de suor lhe percorriam a fronte e de que lhe

estava custando respirar, entretanto, não abria a janela. Não porque

não quisesse, mas sim porque não se dava conta de que tinha os

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sentidos mitigados. Não soube até que seu escritório deu voltas a seu

redor a ponto de que lhe pareceu que podia vomitar.

Todo esse mal-estar tinha que acontecer. Tinha que passar, sim.

Não era mais que a lembrança das noites de insônia.

Mas piorou depois de que lhe doesse o pescoço, uma espécie de

eletricidade se estendeu por seu braço esquerdo. Estirou a mão

rápido, dobrou os dedos várias vezes pensando que se tratava de

uma cãibra, mas tampouco serviu. Pensou que tinha apertado o

punho muito forte, que jamais lhe tinha doído nada, que o ar se

negava a entrar em seus pulmões, que a dor se fazia insuportável. E

então sentiu: o peso de uma imensa grua em seu peito, como um

parafuso que lhe provocava uma opressão e lhe impedia de mover-se

ou respirar.

Não, isso não era nada conhecido, não podia ser normal. Sentiu

medo, um terror como jamais tinha experimentado, e o desespero de

morrer sem haver encontrado essa luz que lhe tinha sido prometida.

Tinha sido sua culpa. Sim, tudo era sua culpa.

Estava se dando por vencido. Ele nunca fazia isso, brigava até o

final sem importar nada; as coisas jamais deviam deixar-se na

metade e sempre era melhor saber até onde se podia chegar, qual

era o final do túnel, e não a incerteza.

Com as forças brotadas desses pensamentos, conseguiu fazer

chegar a mão ao intercomunicador e pressionar o botão que o

conectava com sua secretária. Fi recebeu o chamado.

— Sim? - perguntou. Esperava a ordem que lhe daria seu chefe,

mas não obteve resposta. — Nick? - insistiu. Possivelmente ele se

equivocou de botão. Mas por que não falava? Por que não cortava a

comunicação? — Nick?

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Levantou-se da cadeira e quase correu até o escritório,

pressentindo algo. Intuição de mãe, possivelmente. Quando abriu a

porta e o viu estendido sobre a mesa, rodeado do estranho silêncio

que invadia o escritório, soube que não estava dormindo, nem

chorando, muito menos lhe fazendo uma brincadeira.

O ar do Centro Médico a cortava como facas. Fi caminhava de

um extremo ao outro do corredor, ia e vinha da porta da sala de

emergências até a que comunicava com uma sala de espera inútil. Ela

não podia sentar-se e esperar. Nem bem viu aparecer um médico,

correu para ele.

— Por favor, me diga que está bem - suplicou com os nervos a

flor da pele, os olhos úmidos e a respiração agitada.

— Foi um pré-infarto.

Fi levou ambas as mãos à boca, logo as deixou cair

bruscamente para interromper. Não se deu conta de que, é obvio, o

médico não ia deixar a frase só nesse anúncio.

— Mas é muito jovem! - exclamou.

— Não há idade para estas coisas, senhora - replicou o homem.

— Fique tranquila. Estamos tratando de estabilizá-lo e de avaliar o

alcance dos danos.

Fi sabia por conhecimento popular que era mais difícil que um

homem jovem resistisse um infarto que um ancião, e se ainda

estavam tratando de estabilizá-lo, isso queria dizer que o perigo não

tinha passado.

O médico seguiu seu caminho. O medo percorreu cada

centímetro do corpo da mulher. Fi tragou com força e se perguntou o

que devia fazer. Sem duvidá-lo se encaminhou ao telefone público e

discou um número.

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— Olá - respondeu a voz aos gritos. Fi tentou falar, mas se fazia

impossível. Lavínia também se deu conta. — Não ouço – disse. —

Espere que abaixe volume da música, por favor.

Fi sentiu que Lavínia se afastava. A música acabou e ela

retornou ao telefone.

— Agora sim – disse. — Diga.

— Lavínia, sou eu, Fi.

— Ah, olá, Fi! - recebeu-a moça, sempre amável, lhe dando as

boas-vindas. — Como está?

Fi não podia responder a essa pergunta.

— Lavínia, me escute...

A voz de Fi conseguiu alarmar a Lavínia, a fez franzir o cenho e

tomar uma inspiração profunda.

— Algo está mau? - inquiriu com voz tremente.

— É Nick.

— O que acontece com Nick?

— Está no Centro Médico que conhece.

Lavínia sentiu que seu mundo se desmoronava, quase caiu ao

piso de medo porque soube pela voz de Fi que Nick não estava em

um centro médico por um dedo machucado, nem ele teria ido por

uma coisa tão simples. Nick nunca adoecia.

— Bateu o carro? - arriscou o primeiro que lhe veio à mente.

Tinha-o visto conduzir e sabia que quando dirigia ia rápido, fazia

manobras temerárias e parecia atender vários assuntos de uma vez,

com o qual podia haver-se acidentado.

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Fi se esforçou por soar tranquila, mas mesmo assim não pôde

esconder seu temor.

— Teve um pré-infarto.

Lavínia abandonou tudo que estava fazendo e, tal como estava,

largou-se a correr pelas ruas úmidas. A chuva a apanhou quando

desceu do coletivo.

Chegou ao Centro Médico empapada e tremendo de nervos. O

cabelo lhe caía pesado sobre as costas e algumas mechas loiras se

aderiam ao rosto compungido. Tinha a regata branca pega ao peito,

as calças esportivas pesadas e as sapatilhas emitiam um splash

estremecido. Aferrou-se ao mostrador da recepção para não cair

redonda ao piso de preocupação.

— Procuro Nicolas Hagen - alcançou a explicar.

— É um paciente internado? - perguntaram-lhe em resposta.

— Não sei, mas foi uma urgência.

O moço ingressou os dados no computador. Os instantes que

demorou em brindar alguma informação se fizeram eternos para

Lavínia, que estirava a cabeça em um intento vão por interpretar algo

do que se reproduzia no monitor.

— Está na sala de estabilização - comunicaram-lhe por fim.

— E onde é isso? - perguntou ela.

— Não pode entrar, tem que esperar aqui - ordenou-lhe o moço

em resposta a seu pedido.

— Mas isso não pode ser, sua... mãe está com ele - disse sem

pensar em quem era Fi em realidade. — Tenho que saber algo mais.

— Desculpe, mas deverá esperar aqui - insistiu ele.

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— Não vou esperar! - replicou Lavínia, que de uma vez pensou

em utilizar a única arma disponível. — Chame o doutor Dickinson, é o

diretor deste lugar – disse. — E é meu avô. Estou segura de que ele

me permitirá passar.

— Senhorita...

— O que? Também se nega a chamar a meu avô? - O menino

olhou a seu companheiro. Este assentiu com a cabeça, então tomou o

telefone.

— Sente-se, por favor - pediu a Lavínia. Embora ela quisesse

escutar o que dizia o jovem, obedeceu.

Enquanto o menino se comunicava com o diretor da clínica, Fi

apareceu. Viu Lavínia sentada em uma das cadeiras da sala de

espera, jorrando água e com a maquiagem deslocada pelas

bochechas, e o coração lhe encolheu. Essa moça sim que amava Nick.

Ela de verdade o queria!

— Lavínia - disse uma vez que chegou a seu lado. Lavínia ficou

de pé imediatamente, até esse momento tinha estado tão metida em

seus pensamentos que não tinha notado a presença de Fi.

— Já lhe disseram algo mais?

— Conseguiram estabilizá-lo.

O anúncio de Fi serenou um pouco a Lavínia, embora não levou

seu temor. — Mas tem apenas trinta e três anos! - exclamou, incapaz

de acreditar que um homem tão jovem pudesse estar sofrendo um

pré-infarto.

— Trinta e quatro - repôs Fi cabisbaixa. Sentia-se terrível por

não ter feito nada por Nick nesse dia, por havê-lo ignorado. Lavínia

franziu o cenho, então se viu obrigada a fazer uma elucidação: —

Hoje é seu aniversário.

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Nesse momento, o doutor Carlos Dickinson se aproximou delas

depois que seu empregado de recepção assinalasse em direção à

mulher que o buscava.

— Aquela jovem diz ser sua neta - tinha-lhe explicado.

— Senhoras. Buscavam-me? - perguntou uma vez junto à

Lavínia e a Fi. Seu olhar estudava a moça, que acabava de levar uma

surpresa. Lavínia tinha se esquecido por completo de que havia dito

ser a neta desse homem e agora teria que responder ante seu

engano.

— Desculpe, fui eu - explicou Lavínia. — Mas já não é

necessário, agradeço-lhe sua pronta resposta. - Ele franzia o cenho.

— Conhecemo-nos? – perguntou. — Oh, sim! - repôs em

seguida. — Conhecemo-nos na inauguração deste lugar, como

esquecê-la? É a namorada de nosso engenheiro.

— Sim - assumiu Lavínia sem ânimos de explicar ao médico os

pormenores de sua relação com Nick. — Vimo-nos na inauguração -

adicionou.

— Não me digam que o senhor Hagen requereu nossos

serviços.

— Está na sala de estabilização. Sofreu um pré-infarto -

explicou Fi, apanhada pela possibilidade de que o mesmo diretor do

Centro Médico se fizesse cargo de Nick. Foi o que o homem ofereceu.

— Santo Deus! Ocupar-me-ei eu mesmo dele - A conversa se

interrompeu quando uma voz se interpôs, ignorando todas as outras.

— O que passa aqui? - Patrícia reclamava. Não perguntava, não

se preocupava, exigia. — Cheguei ao escritório e uma empregada me

disse que levaram Nick em uma ambulância e não sei quantas coisas

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mais. É um menino, sempre chamando a atenção! O que lhe

aconteceu agora?

— E quem é esta simpática senhora? - ironizou o doutor.

Patrícia, altiva, dignou-se a olhá-lo.

— A esposa.

Lavínia baixou o olhar. Não só sentia que lhe enterravam uma

adaga, além disso, tremia de ira. Agora que podia estudar a tal

Patrícia Colón de perto, notava a grossa capa de maquiagem que

recobria seu rosto, o quanto tinha a cara operada, quanto se

esforçava porque seu corpo parecesse firme, e soube que tudo isso

não era mais que uma máscara. Essa mulher só tinha um corpo, não

tinha alma. Era uma vasilha vazia.

Perguntou-se como podia entrar destrambelhando contra Nick

como se o tivessem levado em uma ambulância porque tinha uma

unha partida, e quase se sentiu capaz de lhe dar uns quantos golpes,

como tinha feito com Josué. Tinha saudades do saco de boxe.

— Mas como... - balbuciou o doutor Dickinson, sem entender

uma palavra. Nicolas Hagen tinha esposa e namorada. Bom, podia

ser, embora a que tinha pinta de esposa era a que vestia de branco e

de amante a que vestia de vermelho, não ao reverso.

— Teve um pré-infarto - replicou Fi. Notava-se em seu tom de

voz e em seu olhar que acusava abertamente a Patrícia do mal que

Nick tinha padecido, mas esta nem se deu por aludida.

— E como não me chamou? - espetou-lhe. — Me inteirar por

uma empregada enquanto ela já está aqui! - assinalou a Lavínia sem

voltar-se, como se a costureirinha não valesse sequer um olhar. —

Você a chamou?

— Sim - respondeu a secretária.

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— E o que te fez pensar que ela era necessária?

— Lavínia... - começou a responder Fi, mas sua frase foi

truncada pelo médico, que tinha enterrado os olhos verdes em

Lavínia.

— Lavínia... – resmungou. — De verdade é você?

Lavínia ainda não se atreveu a elevar a cabeça.

— Sim, sou eu - replicou.

— Por Deus, quanto cresceu! - exclamou o doutor. — Como

duvidar de que é você! Se for... é seu fiel retrato.

Ninguém mais que o médico e Lavínia entenderam que se

referia a seu pai.

— Não pertencemos a esta conversa, Filomena - interveio

Patrícia sem escrúpulos. — Me indique onde posso achar Nick, a ver

se deixa de joguinho e posso ir para minha casa.

— Que merda te acredita que é? - começou Lavínia, que já se ia

em cima de Patrícia com os punhos apertados aos flancos do corpo,

incapaz de conter-se, mas o médico interrompeu essa ação.

— Estabeleçamos prioridades - disse. Procurava romper com a

briga que intuía vir. — Primeiro visitarei o senhor Hagen e depois

quero falar com você, Lavínia. Assim, por favor, não vá.

O doutor Dickinson se encaminhou ao corredor e Patrícia o

seguiu, mas antes de avançar além de Fi, deteve-se e a olhou.

— Você também podem ir - ordenou-lhe. — Tampouco é

necessária aqui.

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Lavínia tinha a boca aberta, não podia fechá-la. Fi se

estabeleceu a seu lado para ver, como ela, o odioso corpo de Patrícia

afastar-se atrás do doutor Dickinson.

— Vê o que te digo? - falou-lhe ao ouvido. — É uma puta. A

odeio. A odeio!

— Só me incomoda que maltrate ao Nick - disse Lavínia com

resignação. — Pelo resto, tem razão.

Fi a olhou sem poder acreditar o que escutava.

— No que tem razão? - perguntou.

— Eu não tenho nada que fazer aqui - Lavínia pensava que

tinha que assumir essa verdade indiscutível.

— E vai lhe dar o gosto? Eu não penso ir.

— Porque você é como uma mãe para o Nick. Em troca eu o

que sou?

— O que diz? Nick te adora.

— Ande, Fi - insistiu Lavínia, temendo o que essa mulher

pudesse fazer ao Nick tendo-o só para ela. Ele não estava em

condições de suportar seus embates. — Eu espero aqui. Já viu que o

médico é um familiar longínquo que não tinha visto por anos e me

pediu que o esperasse.

— Está segura? - Fi duvidava.

— Sim - sorriu Lavínia. — Me mantenha informada.

Fi se afastou. Nem bem Lavínia a viu atravessar a porta que

conduzia ao corredor pelo que antes se internaram Carlos Dickinson e

Patrícia, não esperou. Retornou para casa.

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Patrícia odiava os problemas, odiava perder tempo em um

hospital. Horácio Lowenstein nunca havia infartado, e tinha vinte e

seis anos mais que Nick, e vinha a fazê-lo ele.

O primeiro que inquiriu Patrícia foi se esse inconveniente em

seu coração lhe produziria algum tipo de disfunção sexual.

Perguntou-o sem reparos, sem disfarces, mas ao menos o fez pelas

costas de Nick.

— De maneira nenhuma - explicou-lhe o médico. —

Absolutamente nada. Se tudo sair como esperamos, poderá ter uma

vida normal. Isso sim: longe do cigarro e, se possível, do álcool.

Que demônios importava a ela. Se Nick ia seguir lhe fazendo

amor tão bem como o fazia até esse momento, um cigarro e um par

de taças não podiam lhe fazer dano.

No dia seguinte, Lavínia não saiu de casa esperando o chamado

de Fi, que não ocorreu até a tarde.

— Você se foi - reclamou-lhe a mulher. — Por quê?

— Já lhe disse isso, Fi - Lavínia soava esgotada, não tinha

dormido toda a noite por temor. — Diga-me como está Nick.

— Como se nada tivesse passado - largou a mulher.

Lavínia sentiu que se desmoronava. Tinha passado tantas horas

de tensão, pensando nele sem poder estar ao seu lado, que o alívio a

deixava agora débil e tremente.

— Os médicos dizem que saiu do episódio virtualmente ileso e

que poderá ter uma vida normal logo, mas o doutor Dickinson ainda

quer controlá-lo, por isso não o deixa ir para casa ainda. Isso sim:

fizeram-lhe uma ameaça coletiva em relação ao cigarro, à noite e o

álcool.

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Lavínia se tinha posto a chorar. O medo que tinha atravessado

todas essas horas a tinha deixado sensível, ainda pensando que Nick

podia ir-se e ela morreria se lhe chegava a faltar.

— Essa bruxa! - exclamou Fi ante o silêncio de Lavínia. — Se

pudesse dar ao Nick uma caixa de cigarros em plena clínica, a daria.

— Não quero saber deles, Fi - pediu Lavínia com pesar. — Dói-

me muito, por favor... não me diga nada. Só quero saber sobre a

saúde de Nick, nada mais. Eu desejo que ele seja feliz, tão feliz que

nem sequer se lembre de mim. Nunca mais.

Por piedade, Fi evitou lhe dizer que Patrícia não podia fazer feliz

a ninguém. Se Lavínia não queria ouvir nada a respeito dessa mulher,

teria que respeitar sua decisão. Então lhe deu seu número de telefone

pessoal e lhe pediu que por qualquer necessidade não duvidasse em

chamá-la. Lavínia agradeceu.

De noite, não pôde jantar. Fazia mais de vinte e quatro horas

que não provava nada e tampouco sentia que pudesse fazê-lo em

algumas horas mais. Tinha acordado com Javier Gonzaga que faria

algumas mostra de trabalho para lhe ensinar suas ideias, mas

tampouco podia concentrar-se nelas.

Precisava ver Nick, embora fosse uma última vez, por isso foi

ao Centro Médico, aonde chegou perto das onze. O recepcionista de

internação lhe informou que o horário de visita tinha terminado às

sete. Ante essa resposta, Lavínia, que se tinha feito uma perita

usurpadora de identidades, disse-lhe que era a substituta de quem o

tinha acompanhado até esse momento e que vinha a cuidá-lo toda a

noite.

— Sua esposa... - indagou. Tinha-lhe doído tanto dizer isso que

quase esteve a ponto de sair correndo e esquecer-se da tarefa que

tinha se proposto desempenhar. — Encontra-se com ele?

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Queria saber se Patrícia estava no quarto, porque nesse caso

não poderia ver Nick.

— Avisou-me que saía um momento - replicou o guarda. — Ela

tem o passe, mas está bem, pode passar e que logo o entregue

acima quando voltar a subir, mas não poderão permanecer as duas

no quarto.

Era perfeito, justo o que necessitava. Iria antes que Patrícia

voltasse.

— Entendido.

O homem disse o número do quarto e ela subiu de duas em

duas as escadas, para fazer mais rápido.

Antes de avançar espiou o corredor da sala de espera do setor

de cardiologia, em caso de que Patrícia tivesse subido sem que o

guarda se desse conta. Estava vazio. Avançou até o quarto

correspondente e abriu um pouco mais a porta, que estava

entreaberta. Nick dormia, e ao vê-lo, já não resistiu ao impulso de

entrar.

Escorreu-se como uma sombra até a cadeira que havia junto à

cama e se deixou cair ali. Colocou os braços sobre o colchão e

escondeu o rosto entre eles, incapaz de evitar o pranto.

— Oh, quanto o sinto, Nick... - sussurrou consciente de que ele

não podia escutá-la.

Mas o que estava fazendo? Ele não tinha morrido, estava mais

vivo que nunca e assim que saísse dali seguro desejaria deixar de

perder tempo e recuperar sua vida junto a sua esposa. Então para

ela, Nick morreria nesse quarto, nesse preciso instante.

Elevou a cabeça e ficou olhando. Via-se tão atrativo e jovem

quando dormia, tão capaz de amar, porque nesses momentos parecia

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que sua inocência nunca se perdeu, que sua alma seguia habitando

seu corpo formoso.

— Um dia vais despertar a seu lado - vaticinou com um sorriso

de tristeza e de amor nos lábios. — Será muito, muito velho, e

pensará vendo-a jazer em sua cama: "Aquela menina de nome

estranho... quanto me amava!".

Esse era o fim, essa era sua despedida. Até que um feixe de luz

artificial a cegou e a fez afastar-se de Nick como se só de estar

sentada a seu lado pecasse. Girou a cabeça e se encontrou com

Patrícia destilando ira pelos olhos.

Lavínia correu para a porta, não ficava mais opção que

aproximar-se do demônio para sair do quarto. Patrícia se apartou

para lhe dar passo, claro que desejava que Lavínia se retirasse! A

costureirinha passou ao lado pretendendo ocultar suas lágrimas.

Quem se acreditava para aparecer por ali! Quem se acreditava para

chorar por Nick!

— Ei, pequena! - chamou-a. Lavínia se deteve em seco. O que

devia fazer? Sem dúvidas o mais apropriado era ir-se, agachar a

cabeça e partir como o faria qualquer que na vida de Nick não fosse

ninguém, como ela, mas se voltou. — O que pensa que está fazendo?

Todo o valor e a força perdidos voltaram de repente para o

corpo da Lavínia. Voltou os poucos passos que a tinham afastado da

mulher e a estudou com asco e com lástima. Como Nick podia estar

apaixonado por esse ser vazio e inescrupuloso? Se antes lhe tinha

parecido uma mulher sublime, altiva e imponente, agora não lhe

parecia mais que uma egoísta malcriada.

Meneou a cabeça com resignação e se voltou. Não encontrou

sentido em gastar uma só palavra com alguém tão frívolo e estúpido.

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— Não te atreva a me dar as costas, moça! - bramou a outra

com esplendor.

Lavínia se deteve de novo. Ir-se? Ir-se sem lhe dizer nada? Por

quê?!

Em apenas três passos voltou a estar frente à ruiva.

— O que quer perguntar? - soltou-lhe à cara.

— Não vou te perguntar nada - replicou a outra, pretendendo

soar ameaçadora. — Vou te advertir. Não te interponha em meu

caminho - Lavínia lhe riu na cara. De verdade, sem fingimentos. E

Patrícia não pôde suportá-lo. Ela era a que ria! Ela ria de Nick, não

uma costureira dela! — Do que ri, estúpida?

— De que me têm medo - respondeu Lavínia gozando-a.

Essa resposta foi quão pior Patrícia poderia ter escutado. Medo

ela? Medo de uma costureira? Soltou uma de suas falsas e

estrondosas gargalhadas, essas que utilizava para atrair a atenção de

suas amizades.

— Me escute bem, trepadeira - quis seguir falando.

— Trepadeira eu? - Lavínia não se incomodava em deixar de

sorrir.

— É uma completa ingênua se pensa que Nick pode estar

verdadeiramente interessado em você! - pretendeu ferir a Lavínia. —

Faltam-lhe anos e experiência, neném. Ele te deixou, pode entender?

Ou é tão ignorante que não pode entender isso?

Lavínia arqueou as sobrancelhas. Mordiam-se os lábios para

não rir na cara.

— Nick me deixou? - já não pôde aguentar a risada. — Se eu o

deixei!

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A fúria se pulverizou por Patrícia como uma serpente que ia

envenenando. Ninguém mais que ela tinha deixado ao Nick, por isso

ele a amava! Adiantou-se um passo e se pegou ao corpo de seu

oponente, que era uns quantos centímetros mais baixa que ela.

— Não te meta em meu caminho, costureirinha, porque vai ver

isso comigo. Escutou? - ameaçou. Lavínia franzia o cenho, divertida.

Sentia-se milagrosa! Não tinha medo, não se sentia inferior a Patrícia,

nem sequer lhe provocava dor, só pena. Uma pena imensa por ela.

— É patética - lhe escapou. A outra montava mais e mais em

cólera. Não entendia como era possível que essa menina não

estivesse tremendo de medo.

— Como se atreve a me dizer isso? - clamou.

— Que é uma besta - Lavínia de verdade pensava que Patrícia o

era. Desperdiçar o amor puro de Nick!

— Serei uma besta, mas ele é meu. E você... - assinalou-a com

o dedo, olhou-a da cabeça aos pés. — Você não é mais que uma

pobre costureira que cedo ou tarde se dará conta de que não tem um

ápice de possibilidade com Nick. Nick jamais se interessaria por uma

mulher como você.

— Não, claro - assentiu Lavínia, cheia de paz. — Porque Nick

gosta das putas - sorriu para adicionar com um tom musical - como

você.

Acabada a luta por sua parte, deu-se a volta e transitou o

corredor sem atender as reclamações que fazia a outra, sem lhe dar a

mínima atenção. Seus ouvidos se fecharam a aquelas palavras vazias

e se sentia tão bem em tanto tempo que o sorriso não se apagou da

cara até que chegou a casa e chamou por telefone a Fi.

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— E então me disse que eu não tinha nenhuma só

probabilidade com Nick - contou. Fazia quinze minutos que falava de

Patrícia, esqueceu-se por completo de que tinha exigido a Fi que não

o fizessem nunca mais.

— E o que você respondeu? - Fi estava mais que interessada no

assunto que Lavínia lhe contava com tanto entusiasmo. Por isso lhe

resultava impossível dissimular seu assombro e curiosidade.

— Disse-lhe que isso era algo óbvio, porque Nick gosta das

putas.

— Oh, meu Deus, Lavínia! - exclamou a mulher, boquiaberta. —

Esteve genial! E o que te respondeu?

— Ah, não sei - encolheu os ombros Lavínia, indiferente. —

Afastei-me tão morta de riso que não escutei nada mais – suspirou.

— Ai, Fi, acredito que têm razão. Nick não pode estar apaixonado por

essa coisa - a expressão deu risada à mulher.

— Disse-lhe isso, Lavínia, disse-lhe isso.

— O problema é que me nego a que Nick seja um troféu de

guerra - adicionou Lavínia muito séria. — Além disso, ele sozinho está

interessado em um dos bandos, e esse não sou eu.

Depois a conversa se transladou a uma dívida que Nick tinha

pago por ela e que Lavínia desejava lhe retribuir. Evitou esclarecer a

Fi do que se tratava o assunto completo, e, a mulher tampouco

perguntou.

— Vai ser melhor que se esqueça disso - sugeriu a Lavínia. —

Nick jamais permitiria que lhe devolva dinheiro de uma dívida que ele

quis te pagar.

Lavínia não estava disposta a resignar-se e pensou em lhe fazer

chegar o dinheiro assim que pudesse, do modo que fosse. Entretanto,

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desistiu pouco depois, pensando que seria melhor deixar as coisas

como estavam. Depois de tudo, ele já não teria que lhe pagar mais

dívidas, porque jamais voltariam a ver-se e não queria lhe dar

motivos para fazê-lo, por exemplo, lhe devolvendo o dinheiro que ele

já tinha investido nela. Depois de tudo, estava acostumada à

resignação. Poucas vezes na vida tinha obtido o que desejava. Era

melhor fazer uma conta nova.

Além de lhe proibir fumar e beber mais da conta, os médicos

lhe indicaram reabilitação e lhe recomendaram que tirasse férias, mas

Nick se negou e pediu que no trabalho ninguém fizesse referência

alguma ao acontecido. O primeiro dia que voltou para o escritório,

seus empregados lhe fizeram um festa de boas-vindas no que ele se

mostrou, como nunca antes, envergonhado. O certo era que se

acreditava tão forte que a vergonha a sentia por ter estado doente e

porque nunca tinha gostado de ser o centro de atenção em nada que

lhe rendesse algum tipo de reconhecimento. Não queria que se

fizesse referência a seu acidente, pretendia que todos fizessem de

conta que isso nunca tinha acontecido.

Entretanto, quando escapou da multidão, fechou a porta de seu

escritório e se sentou sozinho no escritório, não pôde deixar de

pensar em que, em efeito, essa manhã poderia ter assistido a um

banquete também, mas do céu. Um convite porque ele tinha morrido

e todos acompanhavam a seus seres queridos, que não eram mais

que dois. Três, corrigiu-se. Fi, Pablo e... Patrícia? Não podia ter em

conta a Lavínia, ela já não era parte de sua vida.

A quem queria enganar? Não pensava em ninguém mais que

em Lavínia e se passava o tempo tratando de enterrar sua lembrança,

repetindo-se que essa história era uma mais do montão que tinha em

seu passado e que devia encontrar o rumo. Quanto mais agora que

não estava morto.

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Passou em torno de meia hora em silêncio, quieto, com as

mãos sobre o escritório e as costas pega ao respaldo do alto assento

de couro. Não se dava conta de que os minutos corriam no relógio a

menor velocidade da que vagavam seus pensamentos.

Reconheceu que tinha chegado a um ponto de sua vida no que

parecia ter tudo: êxito no trabalho, uma segunda mãe excepcional,

um sócio que valia ouro. Como não se deu conta antes de todas essas

coisas que eram dele? Além disso, a coroação dessas magníficas

circunstâncias era que tinha recuperado a sua namorada da

adolescência, sua primeira relação a sério, sua ex-mulher...

— Merda.

Nick se tomou a cabeça entre as mãos. Não podia sequer

pensar "a mulher que amo" quando se lembrava de Patrícia.

Suspirou e voltou a tornar-se para trás. Agora as mãos pendiam

frouxas sobre suas pernas. O que estava fazendo de sua vida? Que

curso tomaria agora que tinha nascido de novo?

"Quero-a", repetiu-se. "Quero ter Patrícia, é o que tive

saudades todos estes anos, o que esperava, poder tirar-lhe de

Lowenstein como ele me tirou isso primeiro". Tragou com força,

voltou a suspirar.

Estava embevecido aí, no assento, sem poder concentrar-se em

nada mais que em si mesmo.

Tudo isso soava a paraíso, mas mesmo assim não conseguia

encontrar estabilidade, não achava a calma. Ainda não havia paz de

espírito no que fazia, tudo era uma rotina, um costume, uma

necessidade de encher o vazio que ainda sentia na alma.

Apertou os olhos para não pensar, não queria fazê-lo. Apertou

os olhos e as lembranças, concentrou-se no presente e no que o

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destino lhe oferecia, e assim conseguiu armar um pouco parecido a

uma vida. Entusiasmava-o mais o projeto nos Emirados Árabes que o

matrimônio com Patrícia, mas ela representava o que sempre tinha

desejado recuperar. O passado.

Resignou-se a que ele nunca ia experimentar mais que pressões

e indiferença a respeito de tudo. Se alguns costumes tinham acesso a

seu coração de gelo na altura era o projeto da ponte, alguma outra

construção quando já era um engenheiro reconhecido, Fi e as

memórias de sua mãe. Mas nada igualava o sorriso da Lavínia.

— Lavínia...

Sorriu. Sorriu com sua lembrança e se apressou a afastá-la

para não sentir saudades. Não tinha possibilidades com ela, tinha que

deixá-la ir.

Ele nunca teria uma vida que de verdade lhe parecesse

excitante, viveria de aparências, porque assim tinha nascido. Octávio

tampouco a tinha, estava seguro disso. Mas outros podiam tê-la,

aqueles que se atreviam a ser. Pablo, por exemplo. Seu sócio estava

casado e fazia anos que não podia ir-se de férias com sua esposa

porque sempre ocorria algo que o retinha em Buenos Aires, Nick

sentiu-se culpado por isso: como ele não tinha uma vida, outros

também relegavam a sua. Prometeu que isso já não aconteceria ou

fez alguns planos. Não para ele, a não ser para seu sócio. Pablo

merecia um descanso.

Esse dia, todos notaram distinto ao Nick. Não corria, quase não

falava, não fumou um só cigarro.

Nick não tinha ideia do que fazer com sua vida, mas em troca

sabia muito bem o que fazer com a de Pablo, visitou seu escritório

sem demora.

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— Nick! - exclamou o homem, que tirava a cabeça do

computador, só para atendê-lo. — Está bem?

Ao que parece não tinham entendido que não queria que se

fizesse referência ao que tinha passado, pensou Nick, mas a razão da

pergunta de Pablo não era que pensasse todo o tempo no pré-infarto,

Pablo pensava em que jamais tinha visto um Nick tão sereno como

esse.

— Muito bem - repetiu fazendo-se de uma cadeira para sentar-

se.

— Estava modificando o teto do salão para que... como se

chama?

Nick parecia um pouco ausente.

— Quem?

— O menino novo que está no computador número três.

— Brian.

— Esse mesmo, Brian! - retomou Pablo seu anúncio. — Para

que Brian o passe no Auto CAD.

— Que coisa? - perguntou Nick em seguida. Pablo elevou as

sobrancelhas.

— Distraído você? – brincou. — Mas te arruinou o cérebro ou o

coração?

Nick não pôde evitar rir. Quando foram ao primário, Pablo tinha

sido uma porcaria. Carregava-o, incomodava-o, tinha chegado a lhe

deixar bolas negras nos joelhos ao lhe fazer uma trava enquanto

corria por um corredor da escola. Nick já não se lembrava disso,

porque embora ele fosse o nerd e seu companheiro do colégio, os

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dois eram excelentes profissionais agora, eram realmente bons no

que faziam, e se revelaram excelentes.

— É que não vim para que falássemos de trabalho - explicou.

Sempre que se via com o Pablo terminavam falando de projetos e da

companhia. — Vim te dar algo.

— Minha demissão? - voltou a burlar o homem.

Nick só sorriu enquanto mexia no bolso interno do casaco e

extraía dali dois ingressos brancos.

— Quero que Juliana e você vão viajar por seu aniversário.

Pablo arqueou as sobrancelhas, surpreso.

— Oh, não, Nick! – exclamou. — Não penso te deixar sozinho

agora, depois de...

— O que te disse? - advertiu-o Nick apontando-o com um dedo.

Pablo tragou com força.

— Sei que não quer que se faça referência alguma a sua saúde,

mas é impossível não pensar nisso – confessou. — Não posso te

deixar só quando mais sou necessário.

— Te enganas - replicou Nick. — Esteve aqui quando eu mais

necessitava e se não fosse por você, hoje eu não estaria aqui. Se

esquece quem assinou o projeto dessa ponte?

— Ah, por favor! - exclamou o outro. — Nós dois sabemos que

não movi um dedo até que vi a carta que nos tinham mandado. Tudo

foi você.

— Mas você assinou, Pablo, confiou em mim mais do que eu

confiava em mim mesmo - confessou Nick tão sério que afligia com

esse olhar profundo, sincero, aberto. Pablo não podia acreditar. —

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Isso não o fez outra pessoa, o fez você. Nem sequer o teria feito meu

pai.

Pablo ficou um momento em silêncio.

— Agradeço-lhe isso – disse. — Obrigado, Nick.

— Eu é que te devo agradecer obrigado - ficou de pé e deixou

as passagens do Paradise sobre o escritório. Decidiu tirar um pouco

de dramatismo à situação, por isso sorriu. — Veja se aproveitam a

viagem e me dão um afilhado.

Pablo riu.

Nick tinha encaminhado a vida matrimonial de Pablo, agora

tinha que encaminhar da sua. Convidou Patrícia ao bar ao que

estavam acostumados a ir e a esperou.

Ela entrou radiante como sempre, saudando gente com a mão

direita e com a esquerda. Gente, gente e mais gente, até que chegou

a ele e se sentou na poltrona. Não foi suficiente. Agitou a mão para

saudar outra pessoa mais que não era Nick.

— Olaaa! - cantarolou para sua amiga.

— Patrícia - resmungou ele. A voz serena, o olhar profundo.

Dedicou-lhe apenas um instante de sua atenção antes de voltar-se

para as mesas de novo.

— O que?

— Estou aqui.

— Ah, Nick! - queixou-se Patrícia, ao fim olhando para ele. —

Por que sempre está tão sério? – disse-lhe apertando o queixo. Nick

apartou a cara com suavidade.

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— Quero te falar e você não faz mais que saudar as pessoas -

explicou.

— Recém cheguei, Nicolas - argumentou ela. — Peça ao garçom

uma garrafa do melhor champanhe que tenham.

Nick obedeceu. Beberam uma taça enquanto Patrícia criticava a

uma das mulheres que tinha saudado.

— Acaba de entrar Loreley - anunciou-lhe Nick, irônico. — Não

pensa saudá-la também?

Patrícia, como de costume, não entendeu o sarcasmo. Nick

antes pensava que se fazia de boba, agora se dava conta de que

jamais tinha compreendido em realidade o que era uma ironia porque

não se fazia de boba: era-o.

— Está louco? - ofendeu-se. — Não viu a gorda que ficou? Se a

saúdo, outros vão pensar que eu me posso pôr igual.

Nick não acreditava nessa resposta. Mas ela sempre as tinha

dado, por que logo agora lhe soavam tão... estúpidas?

— O que importa o que pense essa gente? - replicou.

— O que importa? - repetiu ela, como se não tivesse entendido

a pergunta.

— Por que poderia te importar?

— Porque ninguém interessante se aproximaria com ela ao meu

lado, por isso - protestou Patrícia de mau humor. Em realidade lhe

estava custando interpretar e seguir Nick. Estava acostumada a

conduzir a conversa. — O que opina de meu novo nariz? - perguntou

acariciando o tabique nasal. Tentaria recuperar as rédeas da

conversa. Para Nick soou a um deja vú.

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— Já me perguntou isso antes e te disse que não noto a

diferença - respondeu indiferente.

— E se me fizesse uma cirurgia nos seios? - Patrícia mordeu o

lábio inferior e acariciou, sugestiva, a parte de seu peito que o decote

do vestido vermelho deixava ao descoberto. — O que diria?

Nick suspirou. O ar viciado do lugar já não se sentia ameno

como antes.

— Que estão muito bem como são – disse. — Embora tivesse

sido melhor que lhe deixasse isso como eram ao natural.

— Não me daria de presente isso, Nickito? - perguntou ela com

tom falsamente ingênuo, ignorando a asseveração de Nick.

— Sabe que te presentearia com tudo o que queira - respondeu

ele. — O dinheiro não é o importante.

— Essa é a parte que mais gosto de você - respondeu ela,

omitindo o assunto do dinheiro e sua importância. Acariciou-lhe a

ponta do nariz. — Que me ama.

Nick não respondeu. Bebeu de um só gole o resto de

champanhe de sua taça e recarregou forças para o que seguia.

— Patrícia.

— Mmm...

— Seria apropriado que voltasse a viver comigo.

— Aí está Sabrina! - gritou ela, fora de contexto, e começou a

agitar a mão à mulher com um enorme sorriso em gesto de

saudação.

Nick observou seu rosto resplandecente de maquiagem, seu

sorriso de plástico, seu cabelo do Barbie, e sentiu aborrecimento.

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Essa era a atitude petulante de uma mulher que se acreditava uma

diva e em troca era... era uma pobre iludida.

— Estou te falando, Patrícia - disse em um sussurro que a

música não conseguiu apagar.

— Ela fez as maçãs do rosto - continuava dizendo a ruiva em

relação à outra, preocupada ainda pelas cirurgias estéticas.

— Patrícia.

— Mmm... Sirva-me mais champanhe - agitou a taça no ar sem

olhá-lo. Nick não se moveu. Continuava falando com esse tom de voz

pausado e sereno, entrecerrando os olhos como um apostador frente

às cartas.

— Vai voltar comigo?

— Claro, Nickito! - riu ela. — Logo me terei mudado para sua

casa.

— Quero ter filhos - adicionou ele. Sabia que isso incomodaria

Patrícia.

Dizia-o de propósito, para estudar sua reação, para saber até

onde podia chegar. Mas se tinha que dizer a verdade, não o sentia, ao

menos não com ela. Não queria filhos de Patrícia, Deus o liberasse de

atar-se de alguma forma a essa mulher ou de trazer vida ao mundo

graças a esse ventre. Até lhe resultava ridículo imaginar que um

pouco tão importante os unisse.

— Ah, Nick! - exclamou ela, sorridente. — Já tinha que arruinar

tudo!

— Por quê? - perguntou ele semicerrando os olhos. — Por que o

arruinaria?

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— Porque isso já não vai ser possível, liguei as trompas - Nick

ficou calado, não emitiu gesto algum, não sentiu nada. A confissão de

Patrícia o deixou indiferente. Por que não sentia dor, por que não se

amargurava? Porque não queria filhos dela. Porque não lhe

importava. Sua expressão não trocou. — Não ia me deformar, Nick -

continuou dizendo Patrícia, como se tivesse pedido alguma

explicação. — Isso nem em sonhos! - voltou a lhe roçar a ponta do

nariz com a unha. — Divirta-se, tolo - aconselhou.

Patrícia colocou as mãos no bolso do casaco de Nick e extraiu

os cigarros que ele ainda comprava. Tirou um do pacote, o meteu na

boca, acendeu-o e deu uma tragada. Olhava ausente o tumulto do

outro lado da fumaça que escapava por seus lábios vermelhos.

— Sim... – murmurou - Logo mudarei para sua casa...

Nick não se interessou por saber o que era que tinha cruzado a

mente de Patrícia nesse momento para dizer que se mudaria a sua

casa. Tampouco por saber que benefícios poderia lhe dar ele que não

lhe desse Horácio Lowenstein. Juventude, sem dúvidas. Bom sexo.

Tudo de lhe resultava indiferente.

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Capítulo 26

— Escritório Hagen - respondeu a voz de Fi, tão cordial como

sempre.

— Olá - saudou-a um homem. — Fala o doutor Dickinson.

Recorda-se?

— Sim, claro! - replicou Fi com alegria. — Como se encontra?

Precisa falar com o Nicolas?

— Não em realidade - o homem fez uma pausa. Fi soube que

lhe custava dizer o que seguia. — Perguntava-me se você poderia me

dar o número de Lavínia.

Lavínia não reconheceu a voz de quem lhe falava até que o

sujeito se identificou.

— Sou o doutor Dickinson, Lavínia - disse o homem.

Imediatamente ela sentiu um comichão na boca do estômago. —

Perguntava-me, se não esta ocupada, claro, se quisesse... almoçar

comigo. Eu gostaria que de falar com você, eu gostaria de saber de

você.

De fato nesse momento tinha a mesa cheia de desenhos

rabiscados que tratava de encontrar os desenhos justos para levar ao

Javier Gonzaga, mas não podia negar-se de novo ao convite. Não

tinha esperado pelo doutor quando o tinha pedido no Centro Médico

porque não resistia sentir-se completamente alheia à vida de Nick,

mas em seu interior também albergava certo rancor pelo médico.

Não entendia por que ele e sua esposa não haviam tornado a

vê-la desde que seu pai havia falecido, por que não a tinham visitado

em casa de sua avó materna ou por que não a tinham ajudado a sair

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do inferno no que se consumia sua vida quando era adolescente. Os

Dickinson se desentenderam dela, e não estava segura de perdoá-los

por havê-lo feito.

Apesar dessa sensação que sempre lhe atava o ventre, aceitou.

Ficaram de ver-se na recepção do Centro Médico e para ali partiu,

deixando tudo a um lado para reencontrar-se com seu avô.

Na recepção já a esperavam, porque nem bem disse quem era

e a quem procurava, conduziram-na por um corredor interno até o

escritório do diretor, que era o doutor Carlos Dickinson. O médico

ficou de pé para recebê-la e se estreitaram as mãos antes de tomar

assento. Lavínia notava que ele a estudava abismado e até lhe

pareceu notar um brilho de melancolia em seu olhar.

— Espero não tenha estado ocupada - disse-lhe. —

Possivelmente me precipitei um pouco para que viesse, mas não via a

hora de que pudéssemos nos falar. Como está sua mãe?

— Bem - limitou-se a responder Lavínia, pensando que tinha

deixado de lado um trabalho tão importante com a possibilidade de

mudar rotundamente de vida para encontrar-se com o médico.

— Soube que tem outro irmão.

— Assim é - respondia, quase parecia não querer falar. — Como

soube?

— Quero que me chame Carlos, por favor - pediu ele. — Minha

irmã Alícia se encontrou com sua mãe pela rua faz pelo menos um

ano.

— Ah.

— Quero que me conte de você. O que é de sua vida? Por que

não me disse quem era na noite da festa?

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A porta se abriu detrás após dois ligeiros golpes, impedindo a

Lavínia responder. Um homem menor, mas muito parecido ao Carlos

pai entrou.

— Fernando! - exclamou este. Lavínia girou a cabeça para ver

de quem se tratava. Seu avô a assinalou: — Esta é Lavinia, lembra-te

dela? A filha de Carlos - referia-se a seu filho. — Este é seu tio,

Lavínia, o irmão de seu pai.

— Lavínia... - deixou escapar o outro médico aproximando-se

dela para lhe estreitar a mão.

— Almoça conosco? - perguntou Carlos.

— Neste momento estava indo à sala para uma cirurgia -

desculpou-se o outro; seu olhar admirando muito a moça, que era o

retrato de seu irmão falecido. — Mas eu adoraria que pudéssemos

nos reunir em outro momento.

Lavínia assentiu em silêncio. Pai e filho intercambiaram duas ou

três palavras a respeito de um paciente, que era para o que Fernando

tinha entrado no escritório, e logo este se retirou.

Carlos levou Lavínia a almoçar ao restaurante do pessoal da

clínica, onde serviam o menu geral e se sentaram.

— Me conte, Lavínia - pediu-lhe ele. — Estudou? Têm uma

profissão?

— Fiz a escola secundária - contou ela. Teria gostado de

terminar sua carreira de Desenho, mas isso não tinha sido possível

porque ninguém podia pagar seus estudos e, quando pôde fazê-lo

ela, teve de se encarregar de seu irmão.

— Têm trabalho? - Carlos parecia preocupado.

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— Sou costureira - disse ela - mas estou concursando para um

trabalho como desenhista - seu olhar se iluminou. Fazia-se evidente

que guardava uma grande ilusão.

— Isso é genial! - exclamou o doutor. — Ninguém colhe os

frutos de seu engenho em tempo imediato - adicionou. Exceto Nick,

pensou Lavínia, mas isso não o expressou. — Não pensou em ser

médica?

— Sou muito impressionável.

— Oh! - exclamou o doutor com olhar indecifrável. — Tal como

seu pai!

A Lavínia enchia a alma que lhe dissessem isso, que lhe

falassem de seu pai. Não tinha sabido nada dele até esses dias nos

que todos pareciam necessitados de lhe contar coisas, de fazer

comparações.

— Eu gostaria que conhecesse minha casa algum dia - sugeriu

ele. — A sua avó adoraria ver-te. Pode trazer o engenheiro.

O coração de Lavínia deixou de pulsar com força por causa de

seu pai e lhe cravou por causa de Nick. Baixou a cabeça

imediatamente.

— Já não saio com Nick - explicou sucintamente.

— Que pena! - replicou o médico. — Faziam um casal

estupendo.

Lavínia elevou o olhar e fingiu um sorriso. Não tinha vontade de

sorrir.

— Obrigado - replicou para ser amável.

De repente o homem ficou pesaroso, tenso e algo triste. Baixou

o olhar e se esforçou por expressar-se.

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— Se não voltamos a ver-te foi porque sua mãe se mudou e

sofremos tanto a perda de seu pai que...

— Não tem que dar explicações - repôs Lavínia quando

percebeu que os olhos de seu avô se umedeciam. — Haverá tempo

para isso, porque aceito o convite que me propôs - sorriu como um

anjo e encheu assim de sorte o coração perturbado do homem.

O encontro terminou quando o doutor recebeu um chamado no

que lhe pediam que se apresentasse com urgência na terapia

intensiva.

Pediu perdão a Lavínia por ter que suspender o almoço, lhe

disse que não se preocupasse com a interrupção e se despediram.

Enquanto isso acontecia, ela pensou em lhe pedir explicações

pelo abandono, em lhe recriminar veladamente os anos que tinham

passado, na aparência despreocupada por ela, entretanto, não falou.

Não encontrou sentido de pedir razões quando a vida lhes

apresentava uma nova oportunidade, para que viver pendentes do

passado? Haviam-se desencontrado, agora voltavam a reunir-se, isso

era o que importava.

Acabou com o almoço, como lhe tinha pedido seu avô que

fizesse, e depois, já que estava no centro, deu uma volta pelo Além

em direção ao Retiro.

— Faça-os ficar de casaco, Arturo! - bramou Nick um pouco a

sério, outro pouco em brincadeira, assinalando em direção a um

capataz. Normalmente Pablo se encarregava de visitar a metade das

obras enquanto ele fazia a outra parte e o árduo trabalho de

escritório, mas na ausência de seu sócio, agora tudo recaía em suas

mãos. — Não queremos que nos passe com esta obra o que nos vem

passando com todas - adicionou em voz baixa. — Inspeções são

nosso pesadelo.

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— Entendido, senhor Hagen - assentiu o homem.

Os operários de Nick estavam acostumados a serem pessoas

felizes com seu trabalho, porque Nick gostava de tê-los contentes.

Exceto alguns sindicalistas que, de acordo com o que Nick pensava,

sempre semeavam a discórdia, seus empregados não renegavam de

suas condições de contratação, que eram muito boas. Além disso, os

chefes não eram inalcançáveis, mantinham-se perto e em contato

com eles, conversavam e até brincavam juntos, e isso lhes dava mais

confiança. Jamais tinham recebido um trato diferente porque eram

operários e não engenheiros ou arquitetos, nem se haviam sentido

relegados.

Nick lhe aplaudiu o ombro e agradeceu.

— Por isso confio em você - disse-lhe. Gostava de fazer sentir a

seus empregados importantes, porque o eram, sem eles nada

funcionaria. — Vemo-nos amanhã.

O som de uma perfuratriz interrompeu a conversa que, de

todos os modos, já se tinha dado por terminada. Então Nick elevou

uma mão no ar em gesto de saudação e o operário respondeu do

mesmo modo antes de voltar para o trabalho. Tal como seu chefe lhe

tinha indicado, colocou o casaco amarelo para dar o exemplo a seus

companheiros.

Nick cruzou a rua até a Praça Roma. Internou-se por um dos

caminhos para cortar a distância entre ele e seu automóvel, que tinha

ficado em um estacionamento pela Avenida Eduardo Madeiro, e

enquanto pensava na obra que visitaria na hora seguinte, o destino

interveio outra vez em seus planos.

Lavínia elevou a cabeça como por instinto. Tremeu dos pés a

cabeça quando a escassos metros de distância, viu parado Nick.

Tragou com força, as mãos se transformaram em punhos apertados e

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suarentos aos flancos do corpo. Ele não deixava demonstrar suas

emoções, mas tinha sofrido o mesmo sobressalto que Lavínia. Quase

parecia que se encontravam com um fantasma e não como um ex-

casal.

Foi ele quem desprezou rápido essas sensações que o tinham

deixado paralisado e se aproximou. Nick sempre tinha sido mais

veloz, para ele ocultar as emoções resultava muito mais singelo que

para ela porque estava acostumado a fazê-lo.

Embora pôde mover-se, não pôde falar. Estava perto de Lavínia,

mas mudo. Aquele sentimento era muito forte, muito difícil de

dominar: enchia-o por completo. Tendo-a perto, não podia existir o

vazio, parecia que jamais tivesse existido.

— Olá - alcançou a pronunciar em voz baixa e pausada.

— Olá - respondeu Lavínia. Fazia-se evidente que sua

respiração estava agitada, que o coração lhe pulsava tão rápido que

ainda tremia.

O olhar deles se achou depois de uma árdua busca. Lavínia se

surpreendeu de que em nenhum momento o cinza azulado dos olhos

do Nick pretendeu lhe ocultar nada.

— Como está? - perguntou ele. Lavínia se deu conta de que sua

voz também soava transparente, distinta.

— B... bem – replicou. — Acabo de almoçar com o Carlos. O

doutor Dickinson - corrigiu. Nick sorriu. Em seu rosto havia paz, havia

descanso.

— Isso é muito bom – refletiu. — Eu venho de visitar uma obra.

Lavínia se forçou a sorrir.

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— Suponho que isso é bom também - disse. Nick a notava com

falta de ânimo, e se sentiu culpado.

— Como foi com o Javier? - indagou.

Nick era um bom amigo, pensou Lavínia. Nada mais. Mas ao

menos a pergunta lhe recordou que a vida lhe oferecia algo pela

primeira vez em muitos anos e que tinha motivos para seguir adiante,

para desfrutar.

— Bem - respondeu. Agora sorria de verdade. — Ficamos de

que apresentaria alguns modelos e ele me dirá se podemos inclui-los

em sua coleção ou se requererem alguma modificação. Se escolhê-

los, comprarão os modelos e possivelmente até me deixaria

trabalhando para ele. Não é genial? Obrigado, Nick. Devo-te isso -

interrompeu-se. Ficou séria de repente. — E outras coisas mais... -

disse recordando o assunto do Josué.

Nick também sorriu. Lavínia pensava que se via tão arrumado

com o jogo de luzes e sombras das árvores lhe dando de cheio na

cara, as covinhas que lhe formavam sobre a boca quando sorria e o

olhar risonho, que sentiu que podia lhe roubar um beijo, como na

pista de baile do Paradise. Mas se conteve. Limitou-se porque Nick já

não lhe pertencia. Jamais o tinha feito, em realidade.

— Não me deve nada – replicou ele. — Sou eu o que te deve

muito - seguiu dizendo com ar melancólico. Teve que tomar uma

profunda inspiração antes de continuar: — Sinto muito, Lavínia, de

verdade.

Lavínia franziu o cenho. Que ele não se atrevesse a lhe pedir

desculpas!

— Por que? - perguntou. Enterrava-se ela mesma a adaga.

— Patrícia e eu...

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— Cale-se, por favor - interrompeu-o elevando uma mão em

gesto preventivo. Pensou que voltaria a sentir-se ofendida, como

quando tinha entendido que lhe oferecia roupa para calar sua

consciência culpada, mas em troca só pôde sentir amor. Um amor

imenso que era tão generoso para deixá-lo ir. — Não tem que me

pedir perdão por isso - assumiu. — Está bem. Tanta gente passa pela

vida procurando e procurando algo que jamais encontrará... Nick

suspirou; encheu seu olhar dessa branca criatura que lhe roubava o

coração. — Você conseguiu achá-lo e nada deve te importar mais que

conservar isso que todos procuram, mas poucos podem encontrar: a

felicidade. Se ela for sua felicidade, é na verdade muito afortunado,

como todos dizem. E não pode deixá-la passar.

Lavínia voltava a sorrir sem disfarces, sem temores nem falsas

esperanças. Sorria de verdade e ele, afligido por sua generosidade,

sentia que podia elevá-la no ar, dar voltas com ela em meio da praça

e lhe gritar tudo o que guardava dentro. Teria sido lindo, mas o fez

pela metade.

— É tão boa, Lavínia... - expressou com admiração. — A melhor

de todas.

— Mas isso não é suficiente, Nick - interrompeu-o ela,

compressiva. — Não se pode ater a vida ao lado de alguém só porque

é uma boa pessoa. A vida é tão curta... - pensava em seu pai,

pensava nela mesma. — Se tiver a sorte de ter enchido seu espírito

com ela, não pode deixá-la ir. Não importa o que digam outros, não

importa quem esteja em seu contrário, tão só viva.

— É mi... amiga.

Nick não podia falar. Ficou sem palavras, como o dia em que a

tinha conhecido, vendo nesses olhos verdes somente futuro. Podia

acaso viver sem o passado? Onde o encontraria se não era em

Patrícia?

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Muitos pensamentos sulcaram a mente de Nick nesse breve

instante. E ele se estremeceu pensando que, quando morresse, todos

eles se perderiam no silêncio: uma tenda, que se chamava Sonhos,

extraviada na imensidão do mundo, quão nervosa Lavínia ficava

enquanto lhe mentia, o tremor de seus dedos quando tomava

medidas. Não eram mais que pequenos pontos na eternidade do

tempo, mas para ele significavam o universo.

Sorriu encantado com as lembranças, que eram o presente que

ainda podia agarrar estirando só uma mão.

— Obrigado - disse em troca, imóvel.

Como ela não queria que ele notasse suas lágrimas baixou a

cabeça. Por isso logo que pôde ver que um sapato brilhoso e negro se

aproximava; o resto a tomou de surpresa. Foram os braços de Nick,

que a rodearam e a apertaram contra o firme torso masculino.

Nick percebeu que Lavínia tremia, sem dúvida experimentava

as mesmas sensações que ele, e também outras que jamais diria,

que morreriam em seu silêncio.

Jamais, jamais poderei ser sua amiga! Clamava o coração de

Lavínia, mas em troca limpou o nariz com a mão que lhe tinha ficado

pega à cara e murmurou: — Sempre vou estar para você. Sempre -

notava-se em sua voz que chorava. Não queria que isso acontecesse,

mas tampouco podia evitá-lo.

Nick fechou os olhos para sentir com maior plenitude como sua

alma retornava ao corpo, a calidez de Lavínia a devolvia. Como viver

sem essa chama? Como apagar algo que lhe queimava por dentro?

Lavínia temeu não poder ir-se nunca mais daqueles braços que

deviam embalar a outra, por isso se separou dele, e Nick permitiu

que o fizesse.

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— Desejo-te o melhor, Nick, de verdade - disse ela secando as

bochechas.

— E eu a você, Lavínia - replicou ele. — Merece isso e sei que o

conseguirá.

Ela agradeceu com um ligeiro assentimento.

— Tenho que ir – anunciou. — Adeus.

Nick descobriu que se ela não o fazia, ele jamais se despedia. O

que pretendia, passar a eternidade aí, estagnado em meio de uma

praça, como se esse fosse o único instante de todo seu tempo?

— Adeus - devolveu a cortesia com as mãos nos bolsos e não

se incomodou em mover-se enquanto Lavínia dava uns passos atrás.

Ela elevou a mão em gesto de saudação e ele respondeu da

mesma maneira. Então Lavínia se voltou e começou a caminhar com

pressa em procura de fugir de seu olhar. "me chame", sussurrou. "me

chame, por favor, diga meu nome", sonhou. "Diga meu nome..."

Nick sentiu uma urgência, uma chamada interior que o fez dar

um passo à frente. Abriu a boca, ia chamá-la, mas se conteve.

Lavínia retrocedia os passos que a tinham conduzido para ele,

ia em direção contrária a que devia levar. Resultava evidente que

desejava escapar da fonte de dano, e Nick sabia que era ele porque,

ao estar ferido, só podia ferir. Era involuntário, não o fazia de

consciência.

Baixou a cabeça. Não podia seguir sendo tão cruel e egoísta

com Lavínia, que não era mais que uma vítima de seus vaivéns

emocionais, de seus fracassados intentos por voltar a ser quem era.

Descobriu com pesar que isso jamais aconteceria, nunca

voltaria a ser ele mesmo. O tempo tinha passado e nem sequer

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Patrícia poderia lhe devolver seu passado. Então a deixou ir. Deixou

que Lavínia se afastasse como se afastavam os pássaros no céu

pressagiando uma tormenta e o futuro se perdia entre as sombras

das árvores.

Essa noite tinha chamado Patrícia e depois ela ia se mudar a

seu apartamento, aproveitando a ausência do Horácio Lowenstein. Ia

deixá-lo como tinha pretendido deixá-lo a ele. Voltaria a ser sua

esposa, como sempre devia ter sido.

Tal como tinham convencionado, às nove esteve no bar. Em

lugar de ir beber, tinham acordado um jantar. Nick pensou que, dadas

às circunstâncias de reconciliação, tratar-se-ia de um encontro

íntimo, mas foi chegar ao bar e descobrir que todas essas hipóteses

não eram mais que falsos conceitos que sempre tinha albergado a

respeito de Patrícia. Que era uma mulher feita e direita, que era a

melhor mulher do mundo. A melhor mulher do mundo! Patrícia não

era nada mais que um pequeno ponto na imensidão de seu universo,

um ponto escuro e sinistro, antes que luminoso.

Não lhe incomodou a atitude da mulher, a não ser o fato de ver-

se obrigado a passar largas horas rodeado de gente que não

contribuía em nada para sua vida, gente que na realidade o

aborrecia.

Ela estava sentada à mesa, rodeada de sua grande quantidade

de amigos entre os quais falava e ria e se levava uma parte de carne

à boca. Era grotesca, era hipócrita, era má, pensou Nick, mas mesmo

assim avançou. Seguiria até o final, até tocar fundo, até as últimas

consequências, porque a queda para o abismo era o único modo em

que Nick sabia subir com mais força depois, como a ave fênix que

sempre tinha sido. Só descendo ao inferno se alcançava o céu.

Ocupou a cadeira que estava junto à de Patrícia, que tinha

estado esperando-o.

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— Olá - resmungou com desagrado a outros integrantes da

larga mesa. Alguns responderam com uma inclinação da cabeça,

outros nem se incomodaram em notar sua chegada.

— Chegou tarde - reclamou-lhe ela.

— Disse às nove.

— Mandei-te uma mensagem de texto para que estivesse às

oito e meia - Nick não respondeu. Não tinha olhado o celular em toda

a tarde. — Obrigado que pudesse te reservar um lugar. Apresse-te a

pedir, que já devem estar por trazer nossos pedidos.

Nick não se negou a pedir, mas sim a cruzar palavra com outros

convidados. Se lhe perguntavam algo, que de igual maneira nunca

era muito elaborado, limitava-se a responder com monossílabos e a

cortar com a conversação o antes possível.

— Troque a cara agora mesmo - ordenou-lhe Patrícia baixo. —

O que se passa?

Nick a olhou incrédulo, enojado. Patrícia só se preocupava em

ficar bem com seus amigos, não pelo que ele estivesse sentindo, por

isso o desejasse, e Nick estava farto de ceder e ignorar. Fazia tempo

se dava conta de que já não suportava Patrícia, mas a indigestão era

toda uma novidade.

— Pensei que estaríamos sozinhos - resmungou entre dentes.

— Qual é o problema? - respondeu ela, como se nada

acontecesse. — São nossos amigos.

— Não - interrompeu-a Nick entrecerrando os olhos, que lhe

ardiam pelo ar viciado. — Não são meus amigos, Patrícia, são os

teus. E sabe o que mais? Em realidade não quero estar aqui - dispôs-

se a levantar do assento ao mesmo tempo em que recolhia seu

casaco do respaldo da cadeira. — Vou para casa - anunciou.

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Patrícia tinha ficado boquiaberta, surpreendida. Não tinha ideia

de como controlar Nick. Ao parecer as técnicas de sempre já não

serviam, e ela não sabia fazer nada mais que ferir. Depois de

conquistar com o corpo, sabia reter com humilhações, mas não podia

aplicar essa técnica diante de seus amigos.

Tomou ao Nick pelo antebraço para detê-lo.

— Não quero ir ainda - espetou-lhe.

— Não te pedi que fosse - replicou ele. — Só te avisei que vou.

Como alguns amigos tinham começado a murmurar e já os

olhavam de esguelha, Patrícia fingiu um sorriso e soltou o braço de

Nick, quem sem esperar um segundo nem despedir-se, aproximou-se

da porta.

— Me espere no hotel, amor! - alcançou a gritar ela antes que

ele se afastasse o suficiente para não escutá-la.

Nick a ouviu, mas não se voltou para lhe assegurar nada.

Esperaria no hotel só se tinha vontade. Patrícia não queria ir para

casa, queria ir ao impessoal quarto de um hotel porque não lhe

interessava uma família, nem o amor, nem ele. Patrícia perseguia

seus próprios interesses, que não eram de maneira nenhuma os seus.

No automóvel, pensou em ir para casa como tinha planejado,

mas queria saber até onde podia chegar, quanto mais podia descer se

já vagava no inferno fazia anos. Ir ao hotel seria um modo de ficar a

prova, de indagar quanto desamor podia suportar, quanto era capaz

de relegar sozinho para derrotar Lowenstein.

Nem bem abriu a porta do quarto, o aroma dos tecidos limpos e

as cortinas recém-engomadas lhe recordou a pureza que podia

encontrar em um só lugar, esse que se chamava Lavínia.

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"Acaso não o vê? Estou vestida com suas cortinas", havia-lhe

dito ela. O poder que tinha a lembrança o fez sorrir. Com as costas

apoiada na porta mexeu no bolso do casaco em busca de um cigarro,

mas se lembrou de outra coisa que o acautelou de seguir revolvendo

entre as chaves do automóvel e o acendedor. "Isso faz mal a você e

eu não gosto de te beijar com aroma de cigarro". Voltou a sorrir como

um bobo, como um apaixonado, e deixou esse bolso em paz para

procurar algo no outro.

Dali extraiu um pacote de chicletes para deixar de fumar, abriu

um dos pacotes enquanto caminhava para a cama e introduziu a

borracha de mascar na boca. Sentou-se sobre o colchão, elevou os

pés e se respaldou com as mãos detrás da nuca. Sentia-se em paz,

como se voltasse a ser um menino e em sua mente se imprimissem

sozinha boas lembranças.

Fez uma bola que lhe cobriu a boca, queria ver quão grande

podia fazê-lo, se conservava essa faculdade de sua infância que o

fazia ganhar os campeonatos entre seus vizinhos.

"Deixa de comer chiclete, que te estraga os dentes e quando

dorme com ele na boca o perde e depois o tenho que remover do

pijama eu", estava acostumada a ralhar sua mãe. O chiclete era uma

guloseima barata, por isso passava com um na boca na falta de

chocolates ou alfajores. Essas sim que eram lembranças

maravilhosas!

Em seu apartamento, Lavínia desenhava uma blusa com

estranhos cortes nas mangas. Queria terminar o quanto antes os

desenhos com o estilo que lhe tinha solicitado Javier e confeccionar

os objetos para que fossem avaliados. O fazia em companhia do

rádio, que embora apresentasse a mesma programação musical que

a noite anterior, porque era automática, sempre gostava. Desfrutava

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dos clássicos dos anos oitenta. Interrompeu sua tarefa para atender

ao telefone, e resultou que era Fi.

— Estava ocupada? - perguntou-lhe. Lavínia se encolheu de

ombros.

— Não sei o que te responder porque estava ocupada, mas não

é algo urgente – disse. — Não me pediram isso para uma data em

especial, até parecesse que me deram todo o tempo do mundo para

fazê-lo, mas sou eu a que quer terminá-lo rápido e deixar de viver

nesta incerteza. Recorda-se dos desenhos que me pediu Javier

Gonzaga? - não esperou resposta. — Bom, estava-os desenhando.

— Desenha? - surpreendeu-se Fi.

— Sim, claro, necessita-se para o desenho de indumentária -

assentiu Lavínia sorridente. — Não sendo convencida, mas o faço

bastante bem.

— Que maravilha! - exclamou a outra em resposta. — Nick

também desenha muito bem. De fato desenhar era seu passatempo

favorito na adolescência.

— Ah, sim? - Lavínia se sentiu ditosa de que não lhe escapasse

uma lágrima apenas um sorriso melancólico ao falar de Nick, mas sim

experimentava uma estranha satisfação. Não sabia por que. — E o

que desenhava? - interessou-se.

— Quadrinhos.

— Quadrinhos?!

— E o fazia bem! - elogiou Fi. — Sem dúvida sua melhor

criação, uma das mais complexas, foi o Senhor H.

— O Senhor H? - riu Lavínia.

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— Não te soa conhecido? - brincou a mulher. — Sempre soube

que era um álter ego dele mesmo - de repente a voz de Fi se tornou

triste, sombria. — Tenho medo pelo Nick, essa é a verdade -

confessou.

— Mas eu o vi muito bem - contou Lavínia. — Cruzei com ele

hoje na Praça Roma, disse-me que vinha de verificar uma obra. Vi-o

tranquilo, detido no tempo, como nunca o tinha visto antes. Até

parecia em paz.

Lavínia escutou que Fi tomava ar pela boca.

— Nick é muito... instável - explicou a mulher. Lavínia

pressentiu que tinha duvidado sobre que palavra utilizar porque

estava escondendo algo.

— Isso já sei - respondeu.

— Não, não sabe - assegurou a secretária. — Nick sofreu muito,

não é como você pensa.

— E o que sabe como o penso eu?

— Estou segura de que não o pensa deste modo.

Produziu-se um instante de silêncio. Desde suas primeiras

conversas telefônicas sabia que Fi guardava algo, mas não imaginava

o que. É que com Nick nunca se sabia o que pensar, isso era parte de

seu mistério, de sua magia.

— Diga-me já, por favor - pediu.

— Nick... sofre às vezes de estados depressivos.

Lavínia deixou escapar uma risada de incredulidade.

— Nick depressivo? – repetiu. — Não, isso não pode ser.

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— Passa da euforia ao pranto como podemos trocar de canal no

televisor. Acredite quando te digo que nada é o que parece, que

Patrícia Cólon quão único pode fazer por ele é devolvê-lo às sombras

das que você o tinha tirado. Resgate-o, Lavínia – suplicou. — Salve-o.

— Eu não posso fazer isso, Fi - respondeu-lhe ela, triste, mas

inteira. — Ninguém pode fazê-lo. Só Nick pode resgatar a si mesmo.

Patrícia entrou no quarto do hotel duas horas depois de que

Nick a abandonasse no restaurante. Tirou o casaco de couro

vermelho, jogou-o no sofá junto com sua bolsa e ficou de pé diante

da cama. Observou Nick aí sentado, com o olhar perdido em um

ponto do quarto, e se deslizou para ele como uma serpente.

— O que mastiga? - perguntou-lhe, sugestiva. Como toda

resposta, Nick fez uma bola que lhe explodiu sobre os lábios. — Não

me pretende ficar fazendo isso como um adolescente, não? Atire-o ao

lixo - ordenou.

Nick girou a cabeça e cuspiu o chiclete para um lado da cama.

Sua boca voltou a encher-se, esta vez da língua de Patrícia, que o

beijou com esforço.

— Façamos amor - sugeriu sem apartar-se dos lábios

masculinos. — Pode ser que essas extraordinárias habilidades que

têm na cama me façam esquecer um pouco o que me fez no

restaurante - insinuou ela enquanto deslizava uma mão pela coxa de

Nick, através da calça. Ele não a olhou.

— Eu não te fiz nada - disse.

— Isso me passa por tratar com criaturas.

Nick não ia responder. De ter querido, tampouco teria podido

fazê-lo porque Patrícia lhe deu outro beijo apertado e caloroso, um

com o que reclamava tudo o que alguma vez lhe tinha dado.

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— Me beije - ordenou-lhe ela.

Acaso não o estava fazendo? Pensou Nick. Não, não o fazia.

Estava disperso, em outro mundo, com a boca frouxa e a língua

quieta, e Patrícia se dava conta. Entretanto, ele não se esforçou por

modificar essa situação.

Em poucos minutos se encontrou nu sobre o corpo de Patrícia,

colocando um preservativo como se fosse um ser inerte. Ela não

podia ficar grávida, mas ele se acautelava de outras enfermidades.

Sempre usava camisinha, sempre.

Nick não a olhava, via um nada sobre a mesa de luz e nesse

nada se desenhava o rosto de Lavínia. Não, de maneira nenhuma

estava sua alma nessa situação, nem sequer sua mente, apenas seu

corpo, que respondia a instintos básicos, mas não à vontade.

Patrícia já não lhe exigiu que a beijasse, nem sequer que a

olhasse. Nick seguiu o curso da situação com a vista extraviada em

seu próprio mundo e até deixou de mover-se por um momento sem

dar-se conta. Soube sozinho porque lhe apertou o braço e lhe exigiu:

— Te mova, Nicolas. O que aconteceu? O pré-infarto te deixou débil?

Então Nick se moveu. Sem paixão, sem gozo, sem espírito. Por

fim se deteve quando escutou que ela tinha terminado de gritar. Nick

não chegou a atravessar barreira alguma de prazer. Esse momento

que teve sexo com Patrícia foi como emprestar o corpo a uma dama

para que se entretivesse. Tinha-o passado milhões de vezes melhor

com as prostitutas.

Do mesmo modo disperso saiu do interior da mulher e se

respaldou de novo na cama. Tirou o preservativo vazio e depois

voltou a ficar assim, quieto e entretido com seu nada, que para ele

era tudo.

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Lavínia sorria quando ele a abraçava. Lavínia tinha cócegas em

todo o corpo. Lavínia sonhava que Hector, o herói, era uma criança.

Nick sorriu. O sorriso se converteu em uma suave música que

abandonou sua garganta no meio do silêncio.

— Do que ri? - espetou-lhe a achatada voz de Patrícia. Nick não

lhe prestou atenção.

Lavínia pintava os lábios com brilho. Lavínia tinha medo do

vento. A Lavínia não gostava do dentifrício branco.

Nick se perguntou o que estava fazendo de sua vida,

esbanjando o tempo ao lado de uma mulher a que não amava.

Pensou no que ia ser dele ao lado de Patrícia, infeliz até que ela o

abandonasse de novo.

Voltava a conviver com essa mulher. E depois o que?

Perguntou-se. O que havia depois desse topo? Mais indiferença. Mais

dor. Quanto mais podia descer? Quanto mais podia suportar? Acaso

fazia falta? Não era esse o final, não era esse o inferno em seu grau

mais profundo?

— Passava melhor com meu marido - riu Patrícia,

interrompendo seus pensamentos. Ria sozinha.

— O que? - Nick de verdade não a tinha escutado, fez-lhe a

pergunta só por amabilidade. Tampouco era questão de que um ser

humano lhe falasse e ele o passasse por cima, sua mãe não o tinha

criado para ser assim mal educado. Patrícia soltou uma gargalhada.

— Mmm... – gemeu - Que é forte, firme e atrativo – disse. — E

que é incrível a experiência que adquiriu te mofando dessas

mocinhas. Fez-me voar! - Voar? Esse sexo vazio e ausente fazia voar

a Patrícia? Nick não respondeu.

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— E que o passava melhor com meu marido é o que disse ao

Horácio antes de deixá-lo - continuou dizendo ela. Voltou a rir como

um espasmo. — Perdeu seus dotes de bom amante, converteu-se em

um velho puritano sendo que antes até gostava que se a... -

interrompeu-se para fazer um gesto com as mãos. — Você sabe. Até

lhe entreguei meu cu. Imagine, agora às vezes nem sequer conseguia

manter seu pênis de pé para me penetrar pela frente!

Nick sentiu asco. Imaginou o motivo pelo qual aquele homem

tinha perdido até a capacidade de manter uma ereção: as exigências

e demandas de Patrícia. Ela o teria torturado tanto com suas

reclamações de quarto que ele teria chegado a tal extremo de tensão

e medo de não satisfazê-la que a concentração o teria abandonado

por completo, como o tinham abandonado uma vez a vontade de

dançar.

Além disso, agora podia ver com claridade que ela não tinha

escrúpulos e que, pelo visto, era também egoísta e perniciosa. Não

tinha reparos em falar com ele de sua intimidade com Horácio

Lowenstein, não se perguntava se lhe doía ou se queria que lhe

contasse essas coisas, como se nada tivesse passado, como se ir e vir

de uma cama à outra fosse o mais normal do mundo. E, para cúmulo,

abandonando aos amantes destroçados. Patrícia só se ocupava dela

mesma e outros podiam morrer sem obter dela uma só gota de

atenção verdadeira, nenhuma só atitude honesta.

Podia ver tudo com tanta claridade que se atemorizava com ter

escolhido viver enganado tantos anos, tudo porque isso era mais fácil

que arriscar os sentimentos. Tudo porque se esqueceu de que, por

mais que se esforçasse por fingir-se diferente, sempre seria esse

menino adulto que não teve infância e que gostava de sexo como

manifestação da alma, a comida caseira e o amor. De convicções

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profundas, com uma visão filosófica da vida e ofegante de receber e

dar afeto.

Patrícia não despertava ira, nem ilusões, nem muito menos

carinho. Já nem sequer a queria para vingar-se de Lowenstein, que

agora não lhe parecia mais que outra vítima, outro Nick.

E descobriu que ainda era jovem. Soube que estava vivo.

Quem era ele?

Um ator. Uma fantasia. O pior inimigo de si mesmo.

O que era sua vida?

Uma peça de teatro que tinha chegado a seu fim. Tinha baixado

o pano de fundo.

Sem dizer uma palavra, levantou-se. Revolveu os lençóis até

dar com suas cuecas negras. Uma vez que a teve posta voltou a

sentar-se à beira da cama para vestir as calças. Patrícia cruzou os

braços.

— Aonde vai? - interrogou com voz feroz.

— Para casa - respondeu ele. As palavras tinham saído bruscas,

duras, com essa voz rouca que às vezes lhe escapava de dentro.

— Ah, não, Nick! - reclamou Patrícia e logo deu uma ordem. —

Eu não quero ir ainda. Vamos mais tarde.

— Não disse que fôssemos - repôs ele calçando os sapatos, sem

perder uma gota de paciência. — Só lhe disse que vou.

Ficou de pé para fechar a calça. Patrícia saltou da cama,

arrancou os lençóis brancos e com eles cobriu sua nudez, que pela

primeira vez a incomodava.

— O que diz? - bradou.

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— O que ouviu - replicou ele procurando a camisa. — Que vou,

Patrícia. Vou.

— Não pode ir! - gritou a mulher.

— O que não? - Nick já se prendia os primeiros botões.

— Porque têm que ir comigo.

— Que tenho que ir com você... - repetiu ele. Não podia

acreditar na ingenuidade dessa mulher.

— Voltamos a viver juntos! - reclamou ela com um grito. Nick

não perdeu a calma.

— Já não.

Como ele se afastava, Patrícia mudou de lado na cama e ficou

sentada na borda traseira do colchão.

— Como já não? - bradou colérica.

— Já não, Patrícia - respondeu de pé diante dela. — Não quero

viver com você - soltou com naturalidade. — Não a amo.

As palavras retumbaram nos ouvidos de Patrícia como o repicar

de um tambor errático.

— Mas eu já abandonei ao Horácio! – disse. — Tenho minhas

valises em outro quarto deste mesmo hotel!

— Esse é seu problema - respondia Nick, indiferente.

— Qual é o jogo? - ela começava a se tornar irritante,

pretensiosa, mas a Nick já não o afetava. — Sente-se - ordenou.

— Vou.

Nick colocou o casaco sobre um ombro. Patrícia caiu presa de

sua altivez e da única verdade que, de todas as que se desvelavam,

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alcançava sem compreender: Nick não se deitou com Patrícia

Lowenstein por ela, mas acabava de deitar-se com ela por Lavínia

Dickinson.

— Acreditei que tinha mudado, que te tinha feito homem,

Nicolas - começou com seus insultos. Sabia que Nick odiava seu

nome completo e acreditou que odiava sentir-se vulnerável como o

menino que, em efeito, era, por isso lhe dizia essas coisas. Mas com

isso não fez mais que dar outra patética amostra de seu desespero

por ver seu capricho burlado.

— Não me importa, Patrícia - respondeu-lhe ele. — Não me

importa não ter mudado, se nunca quis fazê-lo!

— Não é mais que o mesmo perdedor de sempre! - ela seguiu

destilando veneno. — Um menino incapaz de satisfazer a uma

mulher! O filho de uma faxineira que só pode se contentar com uma

costureira da mesma índole que sua mãe! - Patrícia soltou uma

gargalhada. Nick ia para a porta. — Pobre garotinho que não foi

amado!

Ele se voltou sem pressa nem dor, sereno como nunca antes.

— Não me ligue - pediu em um tom de voz baixo e pausado. —

Vou bloquear seus números.

A porta se fechou sem que Patrícia pudesse reagir. Nick a

ignorava. Nick lhe havia dito que não a amava, Nick a abandonava.

Nick se aproximou do mostrador da recepção do hotel e falou com

empregado.

— Pode dispor de meu quatro – anunciou. — Não o usarei mais.

— Algum problema com o hotel, senhor? - preocupou-se o

jovem.

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— Nenhum - explicou Nick com a mesma amabilidade que os

empregados do hotel sempre tinham mostrado para ele. — É um

lugar excelente, tão somente não o quero mais. Pode cobrar os

gastos produzidos até esta noite. Se a saída se produzir amanhã

depois do horário disposto por vocês para o abandono do quarto,

esses gastos já não correrão por minha conta.

Patrícia não se moveu do quarto. Nick voltaria. Tinha que fazê-

lo, não toleraria perdê-lo. Mas isso não ocorreu. Despertou ao meio-

dia, só quando dormiu, e compreendeu então que já não tinha a Nick,

mas ainda ficava Horácio.

Dirigiu-se ao quarto onde tinha deixado suas valises e logo se

encaminhou à planta baixa para sair do hotel. Aproximava-se da

porta de saída quando alguém a chamou e teve que voltar-se.

— O que aconteceu? - interrogou, altiva. Em seguida visualizou

o papel que lhe estendia o recepcionista.

— Sua conta.

Como era possível! Nick nem sequer tinha pago a conta dos

quartos! Extraiu seus cartões de crédito e entregou primeiro com o

Gold. O sistema não o aceitou. Entregou os outros três que tinha,

mas nenhum funcionou. Pareceu-lhe estranho. Só isso lhe faltava,

que Horácio os tivesse cancelado! Terminou pagando com o único

dinheiro de que dispunha.

Chegou à casa de Horácio carregando as valises que o taxista

não se incomodou em recolher. Procurou a chave de sua casa, meteu-

a na fechadura, mas não dava a volta. Pensou que se equivocou de

chave, olhou as outras duas que pendiam do aro prateado, mas não,

tudo estava em ordem, essa era a que abria a porta de entrada.

Provou outra vez. Nada. Tocou a campainha.

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Pensava que se encontraria com Norma, a empregada, mas foi

Horácio quem a recebeu sem pestanejar. Não esperava que ele

estivesse ali, pensou que se achava em sua casa dos Estados Unidos.

— O que está fazendo por aqui? - bradou ela. Ainda sentia que

tinha direito a arreganhar, exigir e manipular.

— Isso é o que me pergunto a respeito de você - espetou

Horácio sem piedade.

— Trocou a fechadura?

— É obvio que troquei a fechadura. O que pensava, que iria

entrar e sair de minha casa como entra e sai de camas alheias?

Esqueça, Patrícia. Já te denunciei por abandono de lar e não pode

voltar. O que aconteceu, Hagen se fartou de você e tampouco te quer

mais?

Patrícia ardeu de ira.

— Velho de merda! - exclamou.

— Puta! - replicou ele, e lhe fechou a porta na cara. Se Hagen a

tinha deixado também, esse era seu dia de sorte.

Patrícia ficou aniquilada, em silêncio.

— Horácio... - resmungou com voz doce, suave - Carinho...

Não obteve resposta.

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Capítulo 27

Domingo, apesar de ter negado sua assistência ao encontro que

tinham organizado seus alunos formados da universidade, Nick se

encontrou conduzindo seu automóvel rumo à quinta casa onde lhe

tinham indicado que se reuniriam.

Surpreendeu a todos com sua chegada e os meninos o

surpreenderam, porque nem bem dois ou três deles o viram

aproximar-se pelo caminho de terra depois de ter deixado o carro a

certa distância, correram a saudá-lo. Quase todos os professores

convidados tinham aceitado o encontro, ele tinha sido um dos poucos

em dizer que não iria, e foi o único em desfazer essa palavra.

Nick tinha compreendido que nada na vida era estático, nem

devia ser tão categórico. A engenharia nem sempre servia para o

coração. A combinação perfeita era razão e arte, ele mesmo o tinha

assegurado, razão e paixão.

— Que bom que tenha vindo! - exclamou um dos alunos que

tinha se aproximado.

Nick lhe devolveu a amabilidade com um sorriso. Queria-o.

Queria a seus alunos, até esse dia não tinha se dado conta.

— Olhe, mamãe - falou uma garota ao ouvido de sua mãe. —

Esse que vê aí era meu professor de Estruturas.

A mãe elevou ambas as sobrancelhas.

— Mmm... Que lindo! - exclamou.

— Mamãe! - ralhou a filha.

— Diga-me que você nunca o pensou.

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A filha riu antes de fazer sua própria confissão.

— Todo o tempo.

Muitos alunos se aproximaram de Nick com seus pais, queriam

que o conhecessem. Nick quase não parecia o mesmo que tinha sido

para eles todo o curso, mostrava-se tímido e retraído ante as

adulações que todos lhe proferiam, humilde, calado.

Entre esses meninos e suas famílias, também queria aproximar-

se Tomas junto a seu pai, mas Nick não lhe deu tempo porque foi ele

quem se aproximou deles.

— Tomas - chamou-o a suas costas. O menino voltou-se, pálido

e nervoso.

— S... Senhor Hagen - murmurou. Logo abriu a roda para que

sua família visse Nick. — Papai, este é meu professor de Estruturas, o

Engenheiro Nicolas Hagen.

O pai de Tomas, um sujeito alto e forte, estendeu a mão para

Nick, que a estreitou.

— É um orgulho para nós que um homem como você tenha sido

professor de nosso filho - manifestou com genuíno agradecimento. —

Ele nos falou muito de você.

Nick olhou imediatamente a Tomas, que morria de vergonha

pelo que lhe parecia uma pisada de bola de seu pai. Claro que não

tinha ideia da dimensão que essas palavras tinham cobrado para seu

professor.

Nick ficou calado, estudando os olhos de Tomas. Não sabia até

esse instante, mas sem dúvida a vida de Tomas tampouco tinha sido

fácil. Fazia-se evidente que provinha de uma família que tinha feito

muito sacrifício para que ele estudasse, e isso o desarmou.

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Esse menino o admirava, soube em seguida, e se perguntou

como lhe tinham passado por cima tantos olhares iguais que tinha

recebido ao longo de sua carreira.

"Porque eu o escuto... presto-lhe atenção", recordou que lhe

havia dito Tomas. Um estranho em representação de muitos outros

que lhe tinham expressado pensamentos similares. Outros alunos, os

entregadores de pizzas do Jun, os membros do governo quando

apresentou seu projeto da ponte, colegas, clientes.

Pareceu-lhe a glória. Tinha esperado escutar essas palavras da

boca de seu pai trinta e quatro anos, sem dar-se conta de que a falta

de um admirador, tinha centenas. Esse tipo de adulações tinham o

mesmo ou maior valor se partiam da honestidade que levava a um

desconhecido a manifestar semelhantes sentimentos para outro

estranho que se partiam da boca de alguém que nunca o tinha

valorizado. Possivelmente ele jamais tinha formado sequer parte dos

desejos de seu pai.

E com a única razão do olhar e as palavras daquele aluno, Nick

perdoou.

"Não viva pedindo explicações à vida. Não guarde rancor em

seu coração, porque isso amargurará seus dias", recordou. Como em

tudo, sua mãe tinha tido razão. Podia perdoar a Octávio por não ter

sabido comunicar-se, por não havê-lo desejado. Podia fazê-lo ele.

Que exemplo dava a seus alunos, que eram como seus filhos

postiços? Que exemplo lhes daria a partir de agora?

— O orgulho é meu - replicou ao pai de Tomas, e deu ao

menino uma palmada no ombro, como teria feito com um filho dele.

— Estou seguro de que será um arquiteto brilhante porque foi um

aluno excelente.

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Ouvir que seu professor mais admirado dizia isso dele e o fato

de que o peito de seu pai se enchesse de orgulho, emocionou a

Tomas, que nesse momento não pôde evitar sorrir, ainda um pouco

avermelhado.

— Meu filho é arquiteto... - comentou o pai do menino com

orgulho. — E eu sou um operário.

Nick lhe sorriu.

— E que arquiteto! – exclamou. — E mais, tenho uma oferta de

trabalho para ele - soltou, agora muito sério. Já tinha pensado antes

nessa ideia, mas lhe ocorreu que esse era o momento indicado para

fazer. Tomas não cabia em seu assombro e tampouco seu pai. —

Claro que tudo dependerá de seu interesse em trabalhar comigo.

Nick dizia "trabalhar comigo", nunca "trabalhar para mim".

Além disso, pensava que podia ajudar a outros, como alguma vez

tinham feito Fi e Pablo com ele.

— Sim... - respondeu Tomas com a voz apanhada em um

sonho. Nick soube que o menino não podia falar, não porque não

tivesse nada que dizer, mas sim porque estava tão emocionado que

tinha esquecido o vocabulário.

— Nesse caso, ligue para meu escritório amanhã - indicou lhe

entregando um cartão. — Ou quando estiver disponível. Minha

secretária lhe atribuirá uma entrevista.

— Obrigado - disse o pai.

— Oh, sim, obrigado, senhor Hagen - replicara a mãe e Tomas

quase em uníssono.

— Não têm que me dizer obrigado - respondeu Nick. — Seu

filho soube ganhar.

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Depois de dizer isso, afastou-se. Embora logo fosse incluído em

outra roda de conversação, não pôde deixar de abstrair-se daquela

realidade, ainda preso da outra.

Tomas e seu pai olhavam o cartão que ele acabava de lhes

entregar e liam seus dados com a boca um pouco aberta, com os

olhos ainda redondos e molhados.

— Tenho trabalho, papai - soube que Tomas dizia. O pai, cheio

de orgulho, deu-lhe um abraço.

A satisfação que experimentou Nick ante essa cena o deixou

perplexo, acovardado. Fazia tempo que não se sentia desse modo.

Nick descobriu que nem todos os pais eram como o seu, que ele

não tinha que ser como Octávio, que podia ser feliz se levava essa

felicidade a outros pais e a outros filhos cuja relação fosse distinta da

que ele tinha tido com seu pai. Este jamais o tinha abraçado nem se

havia sentido orgulhoso dele. Nunca lhe havia dito uma só palavra de

fôlego ou de admiração, entretanto, já não lhe faziam falta. Nem

todos os moços sofriam o mesmo que ele, e isso lhe bastava. Seus

filhos não sofreriam o mesmo que ele, e isso o agradava.

Como não abraçar a uma criatura com os olhos verdes de

Lavínia, ou a uma menina com seu cabelo loiro? Como não imaginar-

se a levando sobre os ombros a percorrer a casa linda e grande que

lhes compraria? Como não imaginar-se dando uma reprimenda a um

adolescente que em lugar de estudar matemática a passasse jogando

bola?

Como não querer filhos com Lavínia, se lhe enchia a alma dessa

felicidade que jamais pensou que lhe estava destinada? Ele, que não

podia ou não sabia ser feliz, agora se sentia ditoso só observando o

abraço de um filho e um pai enquanto em sua mente tecia a fantasia

de dar um abraço próprio. Não como filho, mas sim como pai.

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— Pensa aceitar a cadeira na pós-graduação, senhor Hagen? -

perguntou-lhe uma das jovens que o rodeavam.

— Sim, suponho que sim - respondeu Nick abandonando seus

pensamentos. — Só porque se trata de superestruturas, porque bem

sabem que jamais poderia ter ensinado algo relacionado com

segurança e higiene.

Os meninos riram com a brincadeira tão típica de seu professor;

todos sabiam dos resultados desastrosos que arrojavam as inspeções

que faziam a suas obras. Por mais esforço que ele pusesse em fazê-lo

bem, havia algo que o atava a essa desgraça eterna que era a

segurança no trabalho, embora jamais nenhum empregado seu

tivesse sofrido um arranhão.

Possivelmente não o fazia tão mal, depois de tudo.

Possivelmente os inspetores às vezes a agarravam como seu ponto

fraco.

— Nesse caso, nos vamos voltar a ver - expressou um dos

meninos que o rodeavam. — Não pensávamos cursar essa matéria se

você não tomasse essa cadeira.

Nick ficou olhando. Não podia acreditar que tanto

reconhecimento sempre tivesse estado aí e ele tivesse passado por

cima. Atrever-se a aceitá-lo o enchia de orgulho, o fazia sentir-se

vivo. Ele transmitia saberes, mas sentia que estava em dívida com

seus alunos, porque estes lhe tinham dado muito mais. Davam-lhe

paz, energia, felicidade. Quando estava frente à classe, era fiel a si

mesmo.

Fazia-se evidente que não só era bom para construir, mas

também para ensinar, sempre o tinha sido. De menino aprendia algo

na escola e já queria explicar a sua mãe, que sempre o escutava

atenta e amorosa.

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"Quando for grande, te vou levar a dar uma volta em um

destes", tinha-lhe prometido Nick assinalando um lindo navio que

tinha pegado na pasta de Ciências Naturais. Tinha que explicar como

flutuava na água. Tinha-lhe revolto o cabelo e lhe tinha sorrido.

Ele sempre a levava a dar uma volta em seu navio. Levava-a na

alma.

Na cozinha de Cristina, Lavínia batia ovos em uma tigela

enquanto sua mãe lubrificava uma assadeira.

— Vai me contar o que aconteceu com esse engenheiro com o

que saía nas revistas? - perguntou a mulher.

— Já não saio com ele, disse-lhe isso - respondeu Lavínia

depois de duvidar.

— Foi pelo Josué? - interrogou Cristina a seguir. — Se foi pelo

Josué, Lavínia, não deveria...

— Não - apressou-se a responder ela. Sua mãe parecia disposta

a enfrentar outra vez a esse mau homem para que ela voltasse com o

Nick, isso a surpreendeu. - Não foi pelo Josué – explicou. — O que

passou com ele me fez tomar a decisão mais rápido, mas a verdade é

que eu já sabia que ia ter que deixar Nick. Já está bem de vitamina?

- pretendeu trocar de conversação inclinando a tigela para sua mãe.

— Falta um pouco mais - disse a mulher. — Enganou-te?

— Não.

— Queira ou não, foi melhor que o deixasse.

Lavínia deixou quieta a colher e a olhou.

— Por que o diz? - interessou-se. Cristina se encolheu de

ombros.

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— Os homens como esses têm uma só intenção com as

mulheres como nós - assegurou Cristina enquanto fazia a manteiga a

uma inclinação e assentava a fonte sobre a massa. — Os ricos se

burlam das moças pobres.

Lavínia alcançou a vislumbrar a raiz de muitos prejuízos

injustos que tinha sustentado por volta de Nick e pensou que

possivelmente esses mesmos pensamentos eram os que não lhe

tinham permitido compreendê-lo apesar de quão veladas sempre

resultavam suas confissões. De todos os modos, não podia culpar

disso a sua mãe. Desde pequena se criou em um bairro no qual os

ricos se viam como seres de outro planeta.

— Não - respondeu com segurança, fazendo alarde de uma

invejável convicção. Sentia-se tranquila, segura. — Burlava-se de

muitas mulheres, mas de mim não. Nick escolhia muito bem com

quem dormir, eu fui um acidente em seus cálculos, algo que escapou

de seu controle, mas por sorte para ele, já terminou. Não falemos

mais, por favor. Tombo a massa no molde?

Cristina a respeitou.

— Não - respondeu. Falava da massa. — O segredo de que

meus biscoitos saiam tão altos é que sempre os bato um pouco mais.

Ensinou-me isso sua avó.

Na segunda-feira, Nick entrou no escritório cedo e saudou Fi

com um sorriso radiante.

A mulher o notou imediatamente. Não era para menos, nunca o

tinha visto assim desde que era um menino.

— Mas o que tem de tão bom humor esta manhã? - perguntou.

Fazia-se evidente que Nick apresentava um bom humor sincero, não

como o que mostrava fazia tanto tempo.

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— Muitas coisas - generalizou ele. — Entre elas, que estou a um

ponto de cumprir um pequeno sonho a uma das pessoas mais

importantes de minha vida.

Se algo privou Fi de resmungar um insulto pensando em que a

pessoa a que se referia Nick era Patrícia, foi o fato de que, se fosse

assim, pressentia que ele não estaria tão radiante. Notava-se no ar

que Nick se sentia satisfeito.

Fi tragou com força, o que arrancou outro sorriso a seu chefe

que, a diferença dela, falava como o homem mais tranquilo do

mundo.

— Refiro-me a você - esclareceu parecendo lhe haver lido a

mente.

— Oh! - surpreendeu-se Fi com uma mão no peito, tanto pela

abertura com que Nick lhe manifestava um sentimento como pela

intriga. Qual podia ser esse sonho dela que ele ansiava cumprir, se já

a tinha mandado dezenas de vezes ao cruzeiro e outras viagens?

Nick não a fez esperar para dizer-lhe, extraiu do bolso um papel

e o assentou sobre a mesa.

— Bloqueie estes números, por favor. Serão os últimos que

bloqueará em minha vida - afastou-se antes que Fi pudesse ler o

papel que lhe tinha entregado. — Que o desfrute.

Ao encontrar-se com os telefones de Patrícia, Fi se sentiu tão

feliz que gritou entre risadas. De verdade acabava de cumprir um

sonho.

Desde esse momento em diante, a manhã se apresentou

agitada. Com Pablo recém-chegado de sua segunda lua de mel e a

promessa de que tinha tomado em conta o pedido de Nick a respeito

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de um afilhado, as coisas poderiam ter-se aliviado um pouco, mas

isso não aconteceu.

Em primeira instância, porque Uyardo voltou a chamar Nick

para lhe passar parte de certos avanços em seu projeto. Embora

continuasse trabalhando, e notava desanimado. Sabia que se o

projeto cancelava, perdia-se um grande trabalho, mas não servia

para mentir, e menos a Nick, que sempre tinha sido tão bom

empregador.

— Não entendo para que seguimos com isto se Lowenstein já

deve estar planejando a apresentação oficial de nossa ideia, mas com

sua marca - disse a modo de lamento.

— Não vou me retirar - respondeu-lhe Nick. — Jamais o fiz em

nada que me tenha proposto na vida, e tampouco o penso fazer

agora. Chegaremos até o final, custe o que custar.

Uyardo não se sentia tão entusiasmado como ele.

— Sei que nos enviam tudo o que podem, mas sem o dinheiro

dos japoneses a coisa se faz muito cara - replicou.

— Não importa quanto tempo nos leve - recordou-lhe Nick. — E

se Lowenstein sair do mercado com o que tinha sido nossa ideia, já

me ocorrerá algo mais que nos diferencie, algo que nos faça

melhores. Não quero que pense nessas coisas, siga adiante como

vínhamos que eu me ocupo do resto.

Uyardo não soou tão convencido nem otimista como Nick, mas

assentiu.

— Está bem, sim. Farei o que diga. É o chefe, não? - Nick

semicerrou os olhos. Perguntava-se se convinha remover algo já

enterrado no passado, mas lhe pareceu que se desejava fechar um

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círculo, tinha que fazê-lo por completo, sem deixar gretas. De modo

que decidiu colaborar suas suspeitas.

— Diga-me uma coisa – pediu. — Quando os japoneses se

comunicaram com você para te anunciar que se retiravam do projeto,

não lhe disseram nada mais?

— Algo que não lhe hajam dito quando chamaram a você? -

quis esclarecer o homem, confundido.

— Sim, algo mais, o que seja.

— N... não - duvidou Uyardo. Nick quase podia ver como se

encolhia de ombros do outro lado da linha.

— Algo a respeito de como pôde haver-se vazado nossa

informação - explicou Nick para limitar as possibilidades. — Tenho

uma suspeita e...

— Ah, sim, isso sim! - interrompeu-o o outro. — Disseram-me

que lhes pareceu muito desonesto de sua parte não lhes haver

advertido que a mulher com a que conversavam tinha algo que ver

com Lowenstein.

— A mulher com a que... conversavam - repetiu Nick, sacudido

pela confirmação de sua suspeita, mas não assombrado. Não

entendia como não se interessou por essa informação antes.

— Sim, "a que vestia sempre de vermelho" - Uyardo repetiu a

informação que lhe haviam dito os japoneses e logo guardou silêncio.

Nick tampouco falou. Sempre soube em seu interior: Lavínia

possivelmente não falasse inglês e para comunicar-se com os

japoneses era necessário fazê-lo. Por isso do primeiro momento tinha

suspeitado de Patrícia. Era ela quem mais perto estava de Lowenstein

e quem podia gozar arruinando um negócio alheio; se arruinava

vidas, quanto mais um negócio! Arruinaria só por sentir-se poderosa,

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só por diversão. Mas que os estúpidos dos japoneses não tivessem

sabido guardar um segredo corporativo o fazia impossível. Exceto,

claro, que Patrícia... deitou-se com algum deles.

Nick riu. Que puta! Pensou depois. E essa foi a última vez que

Patrícia Cólon se cruzou por sua mente fora de sua vontade.

Uma hora mais tarde, recebeu outro chamado que lhe anunciou

Fi. Era de Ernesto Echegaray, o responsável por uma marca de roupa

que pisava em forte no mercado local.

— Perguntava-me se poderia me contatar com sua namorada, a

desenhista - explicou o homem. — Nós gostamos do modelo que

usou na festa em que nos vimos e queremos ver mais material dela.

Um sorriso luminoso embelezou o rosto juvenil de Nick.

Assentiu em silêncio antes de responder.

— Neste momento se encontra em uma viagem de negócios –

mentiu pela metade - mas nos vamos reencontrar logo. Assim que a

veja, dou-lhe seu número.

— Agradecemos.

Depois de tomar nota do número do sujeito, Nick se respaldou

no assento, pôs os braços detrás da nuca e com um sorriso vago nos

lábios soube que era tempo de dar o seguinte passo. O que estava

esperando? Teria que acostumar-se a uma esposa muito solicitada no

ambiente da moda e que deixasse dispersado pela casa retalhos de

tecido, tesouras, alfinetes. Arte. Arte pura em uma vida rígida e

racional como a de um engenheiro.

O casal perfeito, pensou.

Fi deu dois golpes à porta e entrou no escritório de Nick sem

esperar sua permissão. Estava apressada. Aproximou-se do escritório

com duas pastas marrons e um papel amarelo, esses que tomava

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nota das mensagens que deixavam as pessoas cujo chamado não

acessava a seu chefe.

— Este é o contrato dos Emirados - começou a explicar ao

tempo que assentava a primeira pasta sobre a mesa. — Diz Gregório

que o revise e que anote o que adicionar ou modificações que

requerem - Gregório Furtado era o advogado que se ocupava desses

assuntos. Nick só escutou o nome, porque ao resto não lhe

emprestou atenção.

— Fi - disse.

— Esta outra pasta contém... O que? - perguntou.

— Necessito que me ajude.

A serenidade de Nick afligiu à secretária. Brilhavam-lhe os

olhos, não lhe apagava o sorriso da cara. Entretanto, o tema Patrícia

Cólon ainda conseguia atemorizar a mulher. Tinha medo de que seu

chefe se arrependesse de bloquear os números dessa puta e que a

ida e volta entre eles voltasse a começar. Sempre começava.

— Nick... - começou a falar. Ia se desculpar se o assunto se

tratasse de Patrícia, com quem Nick ia e vinha todo o tempo, mas ele

a interrompeu outra vez. Não queria que Fi sofresse incertezas, por

isso soltou as palavras como lhe vieram à mente, com naturalidade,

sem cálculos nem premeditação.

— Quero Lavínia comigo.

O coração do Fi deu um salto. Abriu a boca surpreendida e ao

fim respirou.

— Claro, Nick! - replicou. Arrojou a pasta marrom e o papel

amarelo sobre o escritório sem prestar muita atenção, só podia olhar

Nick, que nesse momento tirava os braços de detrás da nuca e se

incorporava no assento. — Você dirá - continuou. Ele ainda sorria.

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— Quero que consiga um espaço em todos os jornais - indicou

apressado. — Também quero um contrato com as páginas de Internet

mais importantes para que apareça uma mensagem quando

carregarem suas direções. E chame o letrista; quando o localizar, me

passe o chamado.

— Vai pintar as paredes? - ria Fi.

— Algo muito melhor - prometeu ele. — Também necessito que

me contate com rádios e canais de televisão. Todos os que possa

conseguir.

— Nick! - gritou ela. Ele se inquietou.

— O que? - perguntou ainda com esse tom tranquilo, mas

definido; franzia o cenho preocupado. — Acredita que seja muito

exagerado?

— Por que não só compra um lindo buquê de flores e vai até

sua casa?

Nick voltou a relaxar-se e sorrir, esta vez com incredulidade.

Como Fi ia sugerir algo tão insubstancial?

— Porque isso seria muito pouco – argumentou. — Muito

ordinário, não assinalaria diferença alguma com outras pessoas, não

nos definiria.

— E.. - sugeriu Fi com entusiasmo.

— E porque sabe que eu gosto de fazer tudo muito bem. E

porque Lavínia é especial - o olhar de Nick se iluminou, também seu

sorriso. — É importante e eu me portei muito mal com ela. Não posso

começar a ressarcir todo esse dano com apenas um buquê de flores.

— E.. - insistiu Fi com os nervos a flor da pele. Nick soltou a

gargalhada que se aguentava desde que havia dito isso de que

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Lavínia era especial, momento no qual o rosto de Fi se transformou

em uma careta de reclamação.

— Está bem – consentiu. — Suponho que, depois de tudo,

sempre se inteira primeiro de todas minhas coisas - disse recordando

o projeto da ponte. Depois adicionou as palavras esperadas sem

sequer pestanejar, iluminando seu rosto por um sorriso radiante. — E

porque a amo, Fi - disse com um tom juvenil, completamente

renovado. — A amo mais que tudo no mundo.

— Oh, Nick! - exclamou ela com alegria desmedida. Se não lhe

tivessem doído os joelhos pela idade, teria dado um salto. — Esse é

meu moço!

— Nem sequer têm medo de que me expulse - brincou ele. Já

não sentia o temor de esforçar-se para acabar indiferente ante o

triunfo. Pressentia que, se obtivesse Lavínia de volta, sua vida jamais

voltaria a ser a mesma. Era ela, estava seguro. Era ela esse futuro

que lhe tinha sido prometido, a interminável felicidade predestinada.

— Claro que não! - exclamou Fi, segura como nunca antes o

tinha estado de nada. — Lavínia te ama.

— E, além disso, sabe que não me deterei por nada do mundo -

recordou-lhe - que sempre chego até as últimas consequências

embora me sangre no intento, certo? - Fi serenou seu espírito, que

saltava em lugar de suas pernas, e assentiu.

— Suponho que é um lutador depois de tudo – disse. — Só que

tem uma forma muito estranha de lutar - Nick lhe sorriu como gesto

de assentimento. — Eu me encarrego de tudo - assegurou ela, feliz.

— Está bem, a rádio e a televisão contate a você, do resto me

ocuparei pessoalmente quando conseguir me comunicar com seus

encarregados - decidiu para ter tudo sob controle. — Quero que às

onze da noite, todas as noites, apareça no pé da tela de todos os

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canais de televisão que possamos conseguir e que digam na rádio

uma mensagem que eu vou dar. Para os periódicos e as páginas de

Internet, pensei algo melhor. Poderá lhes explicar isso? Diga-lhes que

vou pagar o que for.

— Claro Nick - disse ela. — Sabe que eu também consigo o que

seja.

— Por isso é minha mão direita - recordou-lhe Nick em seu fã

por fazer sentir importante a cada pessoa que o rodeava, porque em

realidade o eram. — Agora diga-me, o que era essa outra coisa que

me trazia?

Fi olhou a pasta e o papel amarelo com indiferença.

— Ah, frente ao que acaba de dizer, não têm importância -

replicou.

— Não importa, diga-me.

— O da pasta é a autorização para o novo trajeto do Paradise,

que por fim chegou para dentro de três semanas.

Era uma grande notícia. Uma notícia que não podia chegar em

melhor momento.

— E o papel amarelo? - interrogou ele. Se se tratava de outra

notícia como a do navio, estava em um de seus dias de sorte.

— Uma mensagem.

— De quem?

— De Horácio Lowenstein.

Nick entrou no cassino, dirigiu-se ao empregado de segurança

que lhe tinha sido indicado e se apresentou, tal como tinham

acordado. Depois que o homem se comunicou por transmissor com

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alguém, um sujeito de traje apareceu para escoltá-lo a sala escondida

no fundo. Um lugar escuro, impregnado de aroma de cigarro,

iluminado pelo foco de um abajur de pé.

Horácio Lowenstein o esperava sentado à mesa octogonal em

que tinha jogado e perdido tudo mais de um homem. Eles também

tinham uma parada que disputar e vários assuntos sobre os que

disputarem.

Lowenstein ficou de pé para recebê-lo. Os contrastes entre

ambos se faziam evidentes, sobre tudo quanto à idade. Nick avançou

até a cadeira que estava frente à que ocupava seu inimigo e apenas o

saudou com um leve movimento da cabeça. Nenhuma expressão

permitia adivinhar um sentimento em seu rosto magnífico. Os olhos

de ferro de Nick permaneciam semicerrados, ocultando seus

pensamentos.

Depois que Lowenstein também respondesse com uma

inclinação de cabeça, tomaram assento.

O dilema de quem diria a primeira palavra demorou para se

resolver. Ambos se estudavam em silêncio, como dois duelistas

medindo-se no perímetro. Um guarda-costas que lhes provia o

cassino vigiava a silenciosa luta, de pé junto à porta fechada.

— É justo que eu inicie esta conversa, dado que o convidei -

decidiu falar Lowenstein. — Foi uma coincidência muito conveniente

que tivéssemos este amigo em comum para que nos emprestasse

este espaço.

Referia-se ao gerente daquele lugar de jogo, que tinha cedido

um lugar neutro para o encontro.

— Sim, foi - assentiu Nick com a voz dura, medindo cada

palavra. Produziu-se outro instante de silêncio, porque Lowenstein

também media as suas.

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— Devemo-nos uma conversa - disse por fim. — E eu lhe devo

uma desculpa.

Nick piscou. Estudou a expressão de seu competidor, tão

sincero como jamais tivesse apostado que podia ser. Acaso pensava

desculpar-se por haver tirado a sua esposa? Nick sempre tinha

pensado que se alguma vez Horácio fizesse isso se sentiria furioso,

mas como Patrícia não importava um caralho, resultou-lhe

indiferente.

— Pode seguir com seu projeto - continuou dizendo Horácio.

Respondia assim a dúvida de Nick sem que este a tivesse

manifestado. Possivelmente tinha cometido o engano de que se

espelhava em seus olhos. — Segue sendo secreto.

— Desculpe? - interveio Nick quando lhe pareceu que o outro se

calaria. Não ia lhe permitir que deixasse uma confissão aberta, logo

que insinuada.

— O que saiu nas revistas não foi mais que uma farsa -

explicou Horácio com sinceridade. Nick não demonstrava, mas não

podia acreditá-lo. — Uma fachada para a imprensa. Merda, Hagen!

Você sim tem todo um mistério, tão bem escondido esse sistema que

jamais pude acessar a um só dado a respeito. Por isso me vali da

ingenuidade de sua esposa - pronunciou com um sotaque de

esperança que não passou despercebido a Nick.

— A sua - repôs ele muito firme, quase parecia que se tentasse

encostar de novo a Patrícia poderia renunciar antes à vida.

Lowenstein arqueou as sobrancelhas escuras, assombrado por essa

falta de interesse de Nick em Patrícia Cólon.

— Eu casei primeiro - reconheceu.

— Nesse caso, eu também lhe devo uma desculpa - soltou Nick

sem pensar se fazia bem ou não em confessar-se como estava

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fazendo o outro. — Eu a tirei sem uma razão válida. Se a amei

alguma vez foi quando tinha meus vinte anos, depois não.

Lowenstein deixou escapar um sorriso indecifrável. Tirou um

cigarro de um pacote importado e ofereceu um a Nick.

— Não, obrigado - respondeu este. Lowenstein se tomou seu

tempo para responder a desculpa de Hagen. Acendeu o cigarro e deu

uma tragada.

— Nós dois sabemos que Patrícia vai e vem sozinha - disse com

ar melancólico. — Mas algo do que há dito é certo: se eu a tirei, foi

porque a amava.

Algo se rompeu em Nick, um mito que o tinha mantido alerta

todos esses anos. Comprovava, como tinha suspeitado fazia pouco

tempo, que Lowenstein não era o que ele tinha acreditado em

princípio, quando o rancor por ter perdido Patrícia nublava a razão.

Esse fragmento rachado se transmitiu em seu olhar; nela se rompia

também uma parte desse gelo que a revestia.

— Ela voltará para você - consolou-o. — Eu já não a quero

mais, e o deixei muito claro.

Lowenstein deixou escapar uma risada muda.

— Já voltou – contou. — Mas do que me serve que retorne só

porque você já não a quer? Para que esteja ao meu lado por

comodidade, eu tampouco a quero, embora a ame - Patrícia passava

de uma boca à outra como ia e vinha das camas, como sempre tinha

sido, como acabava sendo para todos os homens: nada mais que um

objeto. Horácio encolheu os ombros: — Que importância tem? –

disse. — Estou velho e já não tenho que dar voltas em busca de uma

mulher que me queira. Me dedicarei a meus filhos, aos que por ela

tinha descuidado, começarei a pedir um neto...

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Nick já não semicerrava os olhos por desconfiança, mas sim por

empatia. Lowenstein estava passando, graças a Patrícia, por tudo que

ele já tinha superado. O homem que até esse momento tinha

acreditado ser seu pior inimigo acabava de confessar-se, e ele não

sentia satisfação alguma por isso, nem tampouco indiferença. Sentia-

se agradecido. Tanto que, com quanto lhe custava, rachou outra parte

de seu próprio gelo. Inclinou-se levemente para frente como gesto de

confiança.

— Não se dê por vencido, Lowenstein - sugeriu com tom baixo

e pausado. — Sua vida não está acabada. Eu também me acreditei

morto durante muitos anos.

— Mas você é jovem! - exclamou Horácio com honesta

indignação, como se o ser jovem não desse direito a sentir-se morto.

Nenhum dos dois reparou em que o havia falado, como se com isso

fizesse caso da confiança que Nick lhe demonstrava com suas

palavras.

— Às vezes não nos sentimos jovens em nosso interior - repôs

Nick com a certeza de que ele mesmo o tinha padecido. Logo inspirou

fundo e se largou a falar do coração. — A maioria das vezes não

mostramos quem na verdade somos. Ao longo do tempo nos

convertemos em personagens e representamos a peça de teatro de

outra pessoa, acreditando que somos fortes. Mas só estamos vazios e

ansiamos nos encher de nós mesmos. Nada é mais estranho que a

alma quando a deixamos de lado. Não seja estúpido como eu; não

deixe morrer a sua.

Lowenstein arqueou as sobrancelhas, surpreso pelos

sentimentos que as palavras de Hagen despertavam e por quão

profundo lhe parecia. Perguntava-se onde tinha ficado o solteiro

mulherengo e viciado que acreditava que tinha sido. O filho da puta

dos negócios, o idiota presunçoso das festas. Essas ideias sobre Nick

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se esfumaram em sua mente, quase parecia que jamais tinha

existido, o mito se quebrou. Então descobriu que sim havia valido a

pena ter um inimigo como esse.

— Você é inteligente - ia começar um discurso, mas o

interrompeu para contar uma anedota. — Que curioso, Patrícia me

disse que você era muitas coisas, mas ao parecer jamais se precaveu

disso. Que você era atrativo, jovem, forte, poderoso e não sei

quantas coisas mais, mas de sua inteligência, nem notícias. Por algo

será - Nick sufocou uma risada ante a referência a uma Patrícia vazia

e pouco chicoteada, capaz para a matemática, mas inútil para a vida.

Demonstrou que o comentário lhe tinha feito graça curvando seus

lábios. — Voltando ao ponto, sendo você tão preparado, não entendo

por que continua comportando-se como um idiota. Com todo

respeito, tal como você me chamou estúpido - repôs em seguida.

Nick franziu o cenho.

— Acredito que não o compreendo - murmurou. Não se sentia

ofendido nem insultado, alcançava a distinguir uma cota de

recriminação sobre o que Lowenstein lhe dizia, quase parecia que o

arreganhava como um pai.

— Falo-lhe de Lavínia, Hagen - esforçou-se por esclarecer

Horácio. Nick respirou aliviado. — Saiba que essa entrada no hotel

com ela também foi minha mentira.

— Já sei - assentiu Nick, ainda cabisbaixo.

— Que mulher! - refletiu Horácio sem prestar atenção ao que

Nick lhe dizia. — Se uma moça assim se apaixonasse por mim, eu

jamais a deixaria ir.

De só recordar a Lavínia, Nick sorriu. Baixou a cabeça para

ocultar o brilho que tomava seu olhar cada vez que se lembrava dela,

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o vulnerável que se voltava quando imaginava, e replicou: — Não se

preocupe. Eu tampouco a vou deixar ir.

Lowenstein assentiu em silêncio, a ponto de sorrir, careta que

dissimulou muito bem. Nick elevou a cabeça e lhe estendeu uma

mão.

— Foi um bom encontro - concluiu. Lowenstein estreitou a mão

que lhe oferecia com firmeza, apertou-a forte.

— Assim acredito - assentiu.

Horácio pensou que estava estreitando a mão que havia

soqueteado a sua filha e por um instante sentiu o impulso de dar na

cara de Hagen. Entretanto, o desejo se diluiu logo. Hagen não era o

que tinha pensado, e quase podia afirmar que era uma lástima que

sua filha tampouco fosse uma moça muito séria. De havê-lo sido, até

lhe teria gostado que seu genro fosse como o homem do qual se

despedia.

Enquanto durava o aperto de mãos, Nick pensou na filha de

Lowenstein. Catalina, assim se chamava, e lhe tinha feito amor em

duas oportunidades. Pensou em pedir desculpas ao pai por isso, mas

guardou silêncio. Tampouco tinha abusado dela, Catalina não era

nenhuma santa e o tinha passado muito bem. Além disso, ele não

tinha conhecido sua verdadeira identidade até que se beijaram e se

correspondiam para o sexo. Além disso, se pudesse escolher um

sogro, não lhe teria aborrecido que fosse como Lowenstein.

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Capítulo 28

Tamara sentou no sofá, junto a seu marido. Dobrou os joelhos,

elevou os pés e se colocou em seu lado com a cabeça apoiada sobre

seu peito. Sempre viam juntos o jornal das onze, que às vezes

noticiava às onze e quinze. Ainda não terminava o programa de jogos

anterior ao que esperavam quando, debaixo e em letra pequena,

apareceu algo que chamou a atenção da mulher a ponto de fazê-la

baixar os pés do sofá e inclinar-se para frente para ler melhor.

— "Quero que o mundo inteiro saiba que sonho com você de

noite e de dia, dormindo ou acordado. Quero que o mundo saiba que

é minha luz no final do túnel, lembra disso? Quero que o mundo saiba

que não há vida sem você, que vivo para te amar. Senhor H" - leu em

sussurros. Logo olhou a seu marido: — Oh, Por Deus! O que foi isso?

Que romântico! - exclamou com emoção. Suspirou. Levava no rosto a

excitação que as palavras lhe tinham produzido. — Seria capaz de

fazer uma coisa assim por mim?

— Se tivesse o dinheiro que deve estar investindo esse tipo em

publicar essa mensagem, faria o que fosse por você... – respondeu.

— Menos isso.

Tamara o golpeou com suavidade no peito enquanto ria com

sua brincadeira e depois se recostou sobre seu ombro.

Mas ela não foi quão única notou as mensagens. Milhões de

pessoas se fizeram fanáticas pelo misterioso Senhor H com o que

suspiravam, sonhavam, divertiam-se; viciadas em suas mensagens

de amor.

“Sou sua e venho do mar para te levar longe, ao reino onde as

mariposas sussurram e não existe o vento, disposto a derrotar a

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qualquer um que se atreva a te fazer pensar que não nascemos para

estarmos juntos".

"Você dá os pontos e eu as linhas, e com elas vamos riscando a vida

que nos espera ao final da costa, no topo onde o sol nasce para

dissecar os espinhos e sanar tantas feridas que estes possam nos ter

feito. Essas que, em comparação com nossa felicidade, terão que

consolar-se tendo sido nada mais que arranhões".

"Não existem as trevas quando está pura e cheia de luz, a meu lado.

Não existe a solidão quando sua alma me acompanha, porque contigo

estou no paraíso e um só olhar tem o poder de aniquilar a morte".

Circulavam todas essas mensagens por rádios, páginas de

Internet, periódicos, publicidades, e canais de televisão, todos

assinados pelo misterioso Senhor H a quem já até lhe dedicavam

colunas nos programas porque era toda uma curiosidade.

As mulheres o amavam, os homens o admiravam, alguns

maridos o teriam assassinado. Despir assim os sentimentos, para

qualquer um, para todo mundo, só porque uma mulher o fazia sentir

forte! Esses gestos punham às demais mulheres exigentes.

Lavínia, ocupada como estava com a confecção de camisas para

a marca que finalmente tinha contratado sua oficina para o trabalho e

com os desenhos que já tinha começado a fazer para Javier, nem

tempo tinha de ligar o velho televisor que ocupava espaço em sua

sala. Escutava a rádio, mas não prestava muita atenção e sempre de

noite ouvia a programação automática.

Numa dessas largas jornadas de trabalho, cansou-se das

mesmas canções de sempre e decidiu que podia destinar um minuto

de sua ocupada vida para trocar o dia. Ficou de pé, chegou ao rádio e

moveu o botão.

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"Não existem as trevas quando está...", escutou ao passar, mas

seguiu trocando. "O poder de aniquilar a morte", escutou por outro

lado, mas seguia movendo a botão até dar com uma canção que

desejava escutar.

Ao deter-se na emissora que passava música eletrônica, soube

com claridade que nunca lhe tinha atraído esse tipo de música, mas

ficava ouvindo sozinha porque assim sentia Nick um pouco mais

perto.

Tinham passado duas semanas da última vez que o tinha visto.

Perguntou-se o que seria de sua vida, se já estaria planejando suas

segundas bodas com Patrícia, e o coração lhe espremeu um

momento.

"Não existem as trevas..." interrompeu a canção, mas Lavínia

já tinha desligado o rádio em busca de esquecimento.

Do mesmo modo, um desses dias tinha passado debaixo de um

cartaz no qual se lia um simpático: "Espera-te um encontro com a

fortuna, deusa romana. Não resista. Senhor H", mas ela não o tinha

visto. Ia pensando no difícil que lhe estava resultando conseguir a

pintura que procurava para a calça desenhada para Javier.

Às seis da manhã, depois de ter passado a noite sem dormir

por trabalhar nas camisas, soube que jamais daria conta de tudo o

que tinha para terminar essa semana.

— Tami? - chamou a sua amiga.

— Lavínia! - recebeu-a esta, feliz. — Estava para ir à cafeteria.

Quando tinha fechado sonhos, Tamara tinha conseguido

trabalho como garçonete. E Lavínia se envergonhava de lhe oferecer

de novo trabalho para ela, sendo que tinha tanta má sorte e qualquer

desses golpes de fortuna que ao parecer tinha recebido podia durar

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um suspiro. Mas, como se sentia agradecida e em dívida com sua

amiga, queria que esta soubesse que a primeira pessoa em que

pensava quando as coisas fossem melhor, era nela.

— Imaginava, sei que seu turno começa cedo - respondeu

Lavínia antes de tomar ar para dizer o mais difícil. — Dá-me

vergonha, Tamara, e medo, mas queria te perguntar algo.

— Ai, amiga! - exclamou a outra. — Não me ponha nervosa. O

que aconteceu?

— Não é algo mau - sorriu Lavínia. — É muito bom,na

realidade.

— Solta-o rápido então! - reclamou Tamara.

— Lembra-se das amostras que me ajudou a costurar quando

tinha a mão machucada?

— Claro.

— Finalmente me deram o trabalho para esse modelo de

camisa.

— Oh, é genial! - Tamara saltou literalmente de alegria.

— Isso não é tudo.

— Ainda há mais?

— Um representante de uma marca de roupa reconhecida me

pediu amostras de desenhos criados por mim sobre a base do que

quer para sua próxima coleção.

— É brincadeira ou fumou algo?

Lavínia riu com a expressão de assombro de Tamara.

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— Ao parecer algo me sai bem depois de muito tempo –

refletiu. — Não sei se os deuses que me castigavam, ou seja, por que

pecados de meus antepassados ficaram dormindo ou foram

derrotados por... algo um pouco mais forte - seguiu. Tamara não

entendeu nada da referência que Lavínia fez aos pecados de deuses

gregos, e a esse algo um pouco mais forte que era Nick e a outros

conceitos que pouco importava para essa conversação. — Enfim, sei

que o que possa te oferecer não será algo fixo, você sabe, não

sabemos em que momento Poseidon ou Éolo se podem zangar e me

atirar tudo pela amargura, mas queria que soubesse que penso em

você como minha primeira empregada. Como minha sócia para a

oficina - corrigiu-se - ou colaboradora para o desenho.

— Oh, amiga! - enterneceu-se Tamara, que era tão doce como

Lavínia. — Fico muito feliz que comece a ir tão bem, merece isso. E

eu adoraria trabalhar para você. Não posso renunciar tão rápido a

meu novo trabalho...

— Já sei, sei - apressou-se a responder Lavínia.

— ...mas se necessitar minha ajuda, em minhas horas livres

posso ir a sua casa costurar, e cortar, ou o que necessite.

Lavínia sorriu com agradecimento.

— Viria bem uma ajuda esta semana – assentiu.

— Claro, aí estarei - prometeu Tamara. — Tudo para que minha

amiga se converta na Carolina Herrera de Buenos Aires! - brincou.

Lavínia riu e se despediram.

Ao terminar o café da manhã, Tamara soltou a xícara, que se

cambaleou sobre o prato ao ter sido abandonada no ar. Logo recolheu

sua bolsa, beijou a seu marido e se foi.

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Passou uma hora desde que chegou ao trabalho até que

levantou de uma mesa o jornal que sempre tomava o café da manhã

nesse lugar e lia todos os jornais. Recolheu o material, pendurou

cada exemplar no exibidor e ficou com um para folheá-lo enquanto

não a chamasse um cliente.

Passou páginas e páginas até dar sem querer com algo que lhe

arrancou um sorriso.

Outra vez o Senhor H deixava uma mensagem, só que desta

vez, diferente das anteriores, ocupava uma página inteira do jornal,

como uma publicidade de um supermercado.

O fundo negro, as letras brancas e um excelente desenho no

que se apreciava um Super-Homem de olhos azuis e traje escuro,

compunham a página. No peito, um H.

"O tempo se esgota, mas o farei eterno. Nunca me rendo e não

me deterei até que volte para mim, embora a próxima vez tenha que

ocupar todo o jornal ou uma hora inteira de televisão" - leu Tamara.

Soltou um riso.

"Apareceu em minha vida com o sorriso de um anjo depois de

que os demônios me tinham consumido no inferno. Fez-me reviver,

devolveu-me a luz, e ainda tenho o descaramento de te pedir algo

mais: outra oportunidade, a de te fazer a mulher mais feliz do reino,

você é a mais formosa, embora a mitologia diga o contrário, porque

estou seguro de que o lugar ao que pertence é ao meu lado, não

importa onde".

— Oooh! - suspirou Tamara com o cotovelo apoiado no

mostrador e o queixo sobre a mão. Já a tinham chamado com gestos

em duas mesas, mas ela se abstraiu do mundo.

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"Não me alcançará a vida para te compensar tanto, mas se me

perdoa, estarei no porto do Rio de Janeiro no sábado às seis da tarde

para que juntos..."

Os lábios da Tamara se abriram tanto que quase parecia que

nunca iriam se fechar. Tirou o avental que formava parte do

uniforme, sujeitou o jornal contra o peito e anunciou aos gritos: —

Tenho que ir! Cobre-me, Maria! Tenho que sair correndo!

Todos ficaram olhando.

— Lavínia! - gritava Tamara dando golpes à porta. — Abre

rápido!

Lavínia abriu a porta desencaixada. Sua amiga nunca a tinha

insultado, pensou que lhe ocorria algo grave.

— Está bem? - perguntou-lhe quando a teve diante de si, lhe

apertando os braços contra o corpo.

— Têm que ler isto! - Tamara avançou com passos largos e

ágeis até a mesa. Lavínia a seguiu lenta, com os olhos muito abertos,

sem entender nada. — Sugiro que se sente - indicou sua amiga. —

Ou vai cair redonda no chão.

Agora era Lavínia a que tinha a boca entreaberta. Ainda

aturdida pela velocidade que levava sua melhor amiga, sentou-se à

mesa e a outra fez o mesmo frente a ela.

— Sabe quem acredito que é o misterioso Senhor H? -

perguntou Tamara com a voz velada no mistério e o assombro.

Lavínia franziu o cenho.

— Quem? - interrogou com o sobrecenho franzido. Não tinha

ideia do que lhe estava falando sua amiga, mas o pseudônimo lhe

gelou o sangue. Segundo Fi, era o que Nick usava em um super-

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homem que tinha criado quando era adolescente. — Não deveria

estar na cafeteria? Não...?

— Silêncio! - gritou-lhe Tamara. — A sério não viu nem ouviu

nada sobre o Senhor H? Não há mulher neste país que não esteja

falando dele!

Lavínia tragou com força. Ainda não tinha ideia do que lhe

falava Tamara, mas que tivesse repetido o pseudônimo não lhe

deixava dúvidas de que não tinha escutado mal nem se tratava de

uma fantasia: Tamara tinha pronunciado bem claro e duas vezes

"Senhor H".

— Não leste nenhuma de suas mensagens? Não escutou nada?

- seguiu perguntando Tamara. Lavínia negou com a cabeça. — Ai,

eram formosos, tão românticos! Acredito que descobri sua

identidade. E não sei por que me parece que você vai descobrir isso

também...

Estendeu o jornal e o abriu na página trinta e nove. O primeiro

que Lavínia viu foi o desenho, que a deixou paralisada.

— Leia! - insistiu sua amiga.

Lavínia tragou com força, mas lhe tinha formado um nó na

garganta tão fechado que lhe doeu. Não sabia do que ia tudo isso,

mas pressentia algo grande. Muito para o que poderia sequer sonhar.

Elevou, tremente, uma mão e acariciou a figura de capa e

máscara que com os braços no quadril exibia seus poderes ante o

mundo. Depois voltou os olhos para as letras.

— "O tempo se esgota, mas o farei eterno. Nunca me rendo e

não me deterei até que volte para mim, embora a próxima vez tenha

que ocupar todo o jornal ou uma hora inteira de televisão" - leu em

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sussurros. Se o fazia difícil falar, respirar e ler com os olhos nublados

de lágrimas.

— Continua! - insistiu-a Tamara ante o silêncio.

— "Apareceu em minha vida com o sorriso de um anjo depois

de que os demônios me tinham consumido no inferno" - Lavínia

umedeceu os lábios, por sua bochecha rodava uma lágrima.

— "Fez-me reviver, devolveu-me a luz, e ainda tenho o

descaramento de te pedir algo mais: outra oportunidade" - cobriu a

boca com uma mão, de sua garganta estrangulada escapou um

soluço - "a de te fazer a mulher mais feliz do reino, já é a mais

formosa, embora a mitologia diga o contrário" - Lavínia riu entre

lágrimas - "porque estou seguro de que o lugar ao que pertence é ao

meu lado, não importa onde". — Oh, Meu deus... - resmungou. De só

pensar que Nick despia seu interior ao mundo por ela se sentiu

amada, embora ele se esforçasse por negá-lo, ocultá-lo ou o que

fosse que pretendesse fazer com seus sentimentos, e queria sair

correndo para ele sem importar nada.

— Leia, Lavínia, leia! - reclamou Tamara.

— Não posso seguir... - chorou angustiada. — Não posso...

— Continua!

Com a voz transformada pelo pranto e intercalando palavras

com soluços, Lavínia seguiu lendo para sua amiga e para ela mesma.

— "Não me alcançará a vida para te compensar tanto, mas se

me perdoar, estarei no porto do Rio do Janeiro no sábado às seis da

tarde para que juntos..." - elevou o olhar, passou o dorso da mão

pelo nariz molhado, voltou para o papel - "...para que juntos, Minha

Lavínia, não contemplemos, mas sim vamos até as estrelas, prometo

te levar cada vez que eleve o olhar e sejam meus olhos os que lhe

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admirem. Amo-te com o corpo e com a alma, mais do que alguma

vez acreditei que era capaz de amar. Senhor H".

Lavínia voltou a elevar o olhar avermelhado e úmido para sua

amiga, incapaz de acreditar o que acabavam de pronunciar seus

lábios. Tremia de emoção. Duas singelas palavras ressonavam em

sua mente por sobre todas as outras, que também eram

maravilhosas, e não se cansavam de relembrar: "Amo-te". "Amo-te".

Era a primeira vez que se inteirava abertamente de que Nick a

amava, e acontecia por escrito. Não tinha maneira de inteirar-se!

— Para mim? - interrogou levando uma mão ao peito.

— E ainda o pergunta! - replicou sua amiga, fora de si. — Têm

que ir, Lavínia - insistiu tomando as mãos. — Têm que chegar aonde

vai estar te esperando!

— Não posso - respondeu Lavínia com pesar. — Isso é muito

longe, necessitaria uma passagem de avião. E se for pelo que penso,

ele tinha pensado fazer chegar seu cruzeiro até o Caribe. Eu não

tenho vistos, nem sequer um passaporte, e segundo o que diz o

jornal, a partida é em três dias. Três dias! Diga-me como faço para

conseguir todas essas coisas em tão pouco tempo e sem dinheiro.

Necessito dinheiro para o passaporte, vistos, uma passagem de

avião.

— Empenhamos esse televisor velho e feio que têm sempre

desligado e o rádio - Lavínia se sentiu um pouco ofendida pelo pobre

televisor e sabia quanto lhe custaria desfazer-se do rádio, mas

tampouco viu muitos objetos mais que pudesse empenhar nem

outras formas de conseguir dinheiro. — Eu te dou o pouco que ficou

das bodas...

— Oh, não, isso não - replicou Lavínia. — Sentiria-me muito

mal de...

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— Do que? - interrompeu-a a outra. — Se vai me devolver!

Alguns golpes à porta interromperam a conversação. Como

Lavínia estava imóvel pelo pranto, que só tinha diminuído um pouco

desde que começara, Tamara foi quem abriu a porta. Helena entrou

com as botas vermelhas de salto, a minissaia negra, o espartilho

também vermelho. Levava o cabelo solto e volumoso, os olhos mais

belos que nunca. Não disse nada. Só assentou umas quantas notas

enrugadas sobre a mesa e ficou olhando a sua irmã, que em lugar de

correr, estava detida.

— O que está esperando? - espetou-lhe. Lavínia olhava as

notas, congelada.

— Do que fala? – perguntou.

— Do Nick! - reclamou a outra. — O que está esperando? Quase

parece que não te deu conta até esta manhã de que essas

mensagens do famoso Senhor H eram para você!

— M... mas... - balbuciou Lavínia.

— Aí têm - sua irmã assinalou o dinheiro - estou certa de que o

que te retinha era o dinheiro, mas agora não. Compra uma passagem

para o Rio do Janeiro ou algo que te leve aonde diz que vai estar te

esperando.

— Não posso - respondeu Lavínia. — De onde tirou esse

dinheiro? Como...?

— São minhas economias - replicou Helena. — Não pode

acreditar que dava tudo ao Josué - adicionou orgulhosa. — Mamãe

também contribuiu o pouco que tinha – riu. — E Hector.

— Hector? - Lavínia elevou a cabeça, incapaz de pensar sequer

em aceitar esse dinheiro que sua irmã lhe oferecia. Helena riu.

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— Sim, tinha dez pesos escondidos em um sapato velho, mas

não duvidou em tirá-los quando comentava com mamãe que deixaria

passar a oportunidade porque não têm onde cair morta - disse com

ternura incerta, que Lavínia nunca tinha conhecido desse modo. Ela

também sorriu. Com certeza eram os dez pesos que lhe tinha dado

Nick.

— Não posso aceitá-lo – disse. — Não posso. Melhor o chamar

por telefone e pronto.

Helena apoiou as mãos sobre a mesa. Os braceletes plásticos

que levava se chocaram contra a fórmica; com isso fez ruído de

propósito, pretendia parecer perigosa. Apontou para Lavínia com um

dedo indicador comprido e rodeado por um anel com uma enorme

pedra azul.

— Está louca? – reclamou. — Ele se esforça para fazer da

reconciliação algo especial e você está pensando em arruinar tudo

com uma ordinária chamada telefônica - ofuscou-se. — Além disso,

quero esse cunhado. Se não me trouxer esse cunhado, não penso te

deixar sair com outro.

— Helena... - suplicou Lavínia.

— Tem um cruzeiro! - exclamou a outra elevando as mãos num

gesto impaciente. — Acredita que não te permitirá me devolver os

poucos pesos que agora te estou emprestando?

Lavínia franziu o cenho. Dava-se conta de que sua irmã não

fazia referência ao cruzeiro ou ao dinheiro de Nick por interesse

próprio, a não ser para tranquilizá-la em relação ao empréstimo que

não se atrevia a tomar. Mesmo assim, não tinha ideia de como Helena

tinha chegado a essa informação.

— E você como sabe isso? - indagou preocupada.

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— Todo mundo sabe! - replicou Helena. — Internet é um mundo

de informação, Lavínia, deveria te atualizar um pouco. Nem telefone

celular tem, vive nas cavernas, com essa televisão velha que até

deve ser preto e branco!

Lavínia olhou seu pobre televisor de quatorze polegadas contra

o que todos pareciam implicar nesse dia e até se sentiu culpada de

ter pensado em empenhá-lo. Umedeceu os lábios e voltou a olhar a

sua irmã porque esta seguia falando.

— Invadiu todas as páginas de Internet importantes com essas

mensagens para você - contou. Lavínia abriu a boca surpreendida,

tinha o cenho franzido.

— Também na Internet? - exclamou.

— Em todas partes - contou Helena. Tamara assentia com a

cabeça. Começou a enumerar com os dedos: — Vi suas mensagens

na Internet, na televisão, em jornais, revistas, reclames, pôsteres

publicitários, coletivos... e até escutei que liam algo seu na rádio!

Lavínia não podia acreditar. Agora resultava que todo mundo

estava a par das mensagens do Nick, menos ela.

— E se não for para mim? - temeu.

— Ah, sim, porque em nosso país sobram as Lavínias! - ironizou

Helena.

Lavínia tragou com força. Limpou as bochechas úmidas com as

mãos e tomou ar para serenar seu coração alvoroçado. Logo se

tomou a frente com as mãos.

— Está louco - sussurrou enquanto negava com a cabeça. —

Ficou louco.

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— Louco de amor por você - repôs Tamara com um sorriso.

Lavínia suspirou.

— Está bem – disse. — Tenho que fazê-lo, devo arriscar, não?

Quem não arrisca, não ganha.

Tamara e Helena gritaram e saltaram de alegria.

Esgotado o dinheiro de que dispunha, Patrícia soube que já não

podia viver em um hotel de luxo e decidiu ir para casa de seu irmão,

que tinha mudado ao Neuquén a construtora que alguma vez tinha

liderado seu pai em Buenos Aires. E a Patrícia também pertencia

parte dessa herança, mas nunca se preocupou com ela porque tinha

outros lugares melhores onde conseguir dinheiro: seu marido e seus

amantes.

Tinha visto as mensagens que invadiam os meios de

comunicação, esses que seu ex-marido dedicava à costureira. Cada

vez que aparecia um sentia que podia arrebentar de raiva. Mas não

fazia nada. O único que lhe importava era voltar a sair nas revistas,

de braço dado com alguém importante, resguardada na fantasia de

que Nick ia procurar toda imagem em que ela aparecesse para lhe

seguir os passos. Ainda queria enganar-se pensando que ele sentia

saudades, embora muito dentro de si soubesse que isso não era

verdade.

A noite de sua chegada na casa de seu irmão, um velho amigo

da família apareceu para jantar. A Patricia nem sequer gostava, mas

não queria sentir que vivia da caridade de seu irmão e que habitava

uma casa em que não tinha nenhum poder, onde sua cunhada a

olhava com receio e seus sobrinhos não lhe levavam bem. Uma casa

onde ela era um quadro falso que decorava muito mal na parede.

Queria sair dali e esse homem podia ser sua porta de escape.

Por isso aproveitou uma breve ausência do resto dos integrantes da

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mesa para estirar uma perna e acariciar com o pé a do homem, que a

olhou sem sobressalto.

— Queres que te mostre o jardim? - ofereceu Patrícia, mas o

que na realidade fazia era oferecer-se ela mesma. O homem retirou a

perna e a cadeira um pouco mais para trás, para que ela não o

roçasse.

— Eu gosto das mulheres mais jovens - replicou sem piedade.

— Lamento, mas você já está um pouco velha para estas coisas, não

lhe parece? Alguém tem que fazê-la notar se não se dá conta por si

mesma.

Patrícia abriu desmesuradamente os olhos e a boca, isso era o

pior alguém podia lhe haver dito. Dispunha-se a responder, mas teria

significado ficar em evidência, já que os outros tinham retornado e se

serviam a sobremesa que ela não ia comer. Tinha sido ferida em seu

ego, no mais profundo.

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Capítulo 29

Lavínia tinha três dias para resolver a maior quantidade de

trâmites que pudesse e para terminar o trabalho das camisas, por

isso correu a fazer o passaporte no mesmo dia que tinha decidido

viajar. Para que o tramitassem como expresso, teve que pagar a

metade do que tinham arrecadado entre todos os que a tinham

ajudado a reunir dinheiro para a viagem. Soube que não lhe

alcançaria para a passagem de avião porque tinha que tomar um voo

direto e saía mais caro que os que faziam escala. Assim podia chegar

em três horas, em troca se tomava um com escala, demoraria entre

seis e oito. Se saísse antes, não chegaria a tempo o passaporte. Tudo

era uma complicação, mas confiava em que iria resolvendo pouco a

pouco.

Necessitava mais dinheiro, assim por sorte em uma casa de

penhores. Para isso recolheu todos os objetos que tinha

confeccionado, as que ficavam de quando as tinha exibido em Sonhos

e algumas próprias que já não usava, e as levou a direção

correspondente. Ali lhe disseram de muita má vontade que eles não

aceitavam roupa em troca de lhe dar o empréstimo.

Então retornou a casa e se aproximou do televisor.

— Sinto-o tanto - falava-lhe. — Prometo-te que te vou resgatar

logo.

— Está louca, sabia? - repreendeu-a sua irmã, mascando

chiclete de braços cruzados, com o quadril apoiado na parede. —

Falava com um televisor - Lavínia a olhou por sobre o ombro, sem

ocultar sua chateação. Que sua irmã se atrevesse a lhe impedir de

despedir-se de seu querido aparelho, que tinha comprado em uma

loja de usados quando se mudou, atou-lhe o coração. Estava tão

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nervosa que chorava por tudo. Helena descruzou os braços e avançou

para ela. — Não sente saudades que com uma namorada assim

louca, e meu lindo cunhado também faltem um par de jogadores.

Pelo menos dois deve ter no banco de suplentes.

Ia desfazer-se do televisor, mas Lavínia a deteve, incapaz de rir

com a brincadeira. Tinha os olhos úmidos.

— Quero te agradecer, Helena – disse. — Eu nunca pensei que

você fosse ...

— Te ajudar? - completou a irmã. Lavínia encolheu de ombros

sem atrever-se a dar resposta. Helena riu. — É que eu também quero

viajar no cruzeiro de seu namorado, e para isso tenho que fazer que

se sigam vendo - brincou para não responder com a verdade.

Tampouco era mentira que queria ganhar a viagem, mas não era a

razão que a movia a fazer tudo o que estava fazendo.

Lavínia riu e permitiu que ela a ajudasse a carregar o rádio e o

televisor. Não obtiveram muito com ambos os empenhos, mas isso e

o dinheiro reunido antes alcançariam para a passagem e para que

Lavínia ficasse um resto por via das dúvidas.

Helena a acompanhou também à agência de turismo. Lavínia

explicou que necessitava uma passagem direta para o Rio do Janeiro

e que tinha que ser para sábado, que lhe permitisse chegar ao porto

às três da tarde. Pensava que com três horas entre sua chegada e a

partida do navio seria suficiente para dirigir-se ao porto, completar os

trâmites e abordar.

Necessitava da maior quantidade possível de horas em Buenos

Aires para dar tempo a que lhe chegasse o passaporte. Dos vistos

teria que esquecer-se porque não lhe chegava o dinheiro, o tempo

nem a informação disponível para os conseguir. O que mais lhe

importava era chegar ao Rio do Janeiro.

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Depois de introduzir os dados no computador, a recepcionista

anunciou que dispunha de um voo para sábado ao meio dia e meia,

era o que partia permitindo chegar no horário e lhe poupava a maior

quantidade de tempo para receber o passaporte. Lavínia acessou a

reservar um espaço nesse voo. Para isso disse seu nome e

sobrenome.

— Ah, não - retratou-se a mulher de repente. Elevava suas

sobrancelhas marrons. — Desculpe, não sei por que primeiro me

apareceu uma coisa e agora outra - tocava o monitor. — Esse voo

está completo. Todas as passagens para esse dia estão esgotadas.

A alma de Lavínia estremeceu. E agora o que faria? Se não

estava em casa até o último momento, não receberia o passaporte.

Como viajaria sem ele? Não poderia sair do país, com sorte a

deixariam passar e procurar Nick no navio, porque se chegavam a lhe

solicitar a documentação para lhe permitir abordar, estava perdida.

Teria que chegar ao Rio do Janeiro para nada.

Teria que renunciar, como a tantas coisas na vida, só que esta

era a mais importante que jamais tinha resignado. De repente a

mulher voltou a arquear as sobrancelhas.

— Ah - pronunciou esse som muito rápido - mas você já tem

uma reserva nesse voo.

Lavínia franziu o cenho. De repente o coração lhe pulsou de

novo.

— Impossível – replicou. — Eu não reservei nada. - Helena lhe

pegou na perna para que se calasse. Sua irmã não podia ser mais

boba e tão honesta que era! A empregada da agência riu. Escutou-se

o ruído do globo de chiclete arrebentar nos lábios de Helena.

— Ao que parece estava pensando em viajar muito - disse a

senhora - porque de fato tem uma reserva na primeira classe de cada

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voo com destino ao Rio do Janeiro de todas as linhas há uma semana

até o sábado.

Lavínia quase se escorregou do assento.

— O que? - balbuciou a beira de um desmaio. Helena se

inclinou para frente.

— Pode imprimir a passagem ou um comprovante, ou algo? -

pediu muito rápido, com os olhos chicoteados. Desde não ter sido por

ela, Lavínia teria saído do negócio sem poder articular palavra, não

teria se dado conta de pedir o comprovante de sua passagem.

— Sim, claro - respondeu a vendedora amavelmente.

— Peço que desculpe - disse-lhe Helena. — Minha irmã não tem

nem a menor ideia de quem é seu namorado - sorria enquanto

mascava o chiclete.

Em qualquer outra oportunidade, Lavínia teria ralhado com o

olhar por fazê-la ficar mal frente à alguém, mas não o fez. Não podia

mover-se, ficou com os olhos fixos no bordo do escritório e as mãos

caídas sobre as pernas.

Tudo era para ela. Já não havia dúvidas, Nick estava fazendo o

impossível para recuperá-la, inclusive enfrentar-se aos deuses

inimigos. Isso a fez tremer. Deixou-a muda, quieta, emocionada até

as lágrimas. Um mortal que se acreditava tão onipotente para

desafiar o mesmo destino não podia ser outro louco pago de si

mesmo mais que Nick.

Se não fosse por Helena, não teria levado a passagem nem

teria se levantado do assento da agência. Do mesmo modo silencioso

e abstraído do mundo caminhou até sua casa, escoltada por sua irmã,

que a levava pelo braço.

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— Troque de cara - ordenou-lhe Helena. — Em lugar de que irá

te encontrar com o amor de sua vida parece que morreu alguém.

É que tinha morrido alguém, pensou Lavínia. O Nick que tinha

conhecido. Tinha medo, estava nervosa, tudo tinha sido tão rápido

que lhe parecia uma loucura. Rápido como se movia o antigo e o

novo Nick.

Chamou Javier e se desculpou de novo por não poder cumprir

mais rápido com o programado; pediu-lhe desculpas mais vezes das

que lhe tivesse parecido apropriado pedir em qualquer outra ocasião.

Ele a compreendeu, só que lhe fez a advertência de que não podia

esperar mais de um mês porque queria lançar essa coleção para o

verão seguinte.

Lavínia trabalhou sem descanso para terminar as camisas e até

com ajuda de Tamara não pôde adiantar tudo o que necessitava. Foi

então quando apareceu Cristina e também ficou a trabalhar. Era boa

costurando, descobriu Lavínia. Possivelmente sim tinha algo de sua

mãe, depois de tudo, era essa capacidade. Até pensou em lhe

oferecer trabalho se crescia como escritório de costura.

Helena também colocou mãos à obra. Ela não era nada boa

com a máquina, mas servia para pregar botões.

— Não sei como vou lhes pagar isto - dizia Lavínia enquanto

engomava e acomodava as camisas que levaria a marca ao dia

seguinte.

— Somos nós as que estamos em dívida com você - replicou

Helena. Cristina tinha ficado calada.

Tanto trabalharam que o dia da viagem chegou logo. Lavínia

armou uma bolsa singela, com poucos objetos e elementos de

higiene. Pensava que poderia levar consigo para evitar uma possível

perda.

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Se algo a punha nervosa era que o passaporte não chegava. Às

dez e meia da manhã, decidiu ir por ele.

No escritório lhe disseram que não estava pronto, que tinha

sido processado como uma solicitação normal.

— Senhora - voltou a explicar Lavínia - eu paguei por um

trâmite expresso. Note-se neste papel que vocês mesmos me deram

– mostrava-se a borda do pranto.

— A ver - intrometeu-se Helena - procure, por favor. Só

procure. Possivelmente aí lhe diz que o processaram como um

trâmite normal, mas igual se fez expresso, como devia ser.

— Se aqui disser que se tramitou como normal, deverá esperar

os trinta dias que demora em chegar a sua casa - replicou a mulher,

inflexível.

— Faça o que diz minha irmã - rogou Lavínia. — Por favor.

Helena fez de sua boca um imenso círculo. Tirou os óculos de

sol só porque sem eles poderia ver melhor a sua vítima, que andava

entre os empregados, controlando.

— Iujuuu, Franciscooo! - clamou elevando um braço, com um

tom de voz fingido. Lavínia a olhou com o cenho enrugado igual ao

homem, que correu para ela.

— Por favor, aqui não – suplicou. — Silêncio!

Helena lhe sorriu. Conheciam-se. Não fazia falta saber de onde.

— Eu me calo com gosto, mas poderia nos fazer um favor?

Em menos de meia hora, Lavínia teve seu passaporte na mão.

Tinha estado guardado em um armário errado.

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Embora a coisa ficasse feia, depois se arrumava. Quase parecia

que duas forças se opunham em um plano que ela não podia

controlar, dirimindo se lhe correspondia ou não chegar até Nick.

Leandro, o primo de Tamara, esperava-as fora para leva-las ao

aeroporto, só que seu velho Mustang não queria arrancar.

— Parece mentira! - exclamou dando uma patada na direção. —

Cada vez que temos que fazer algo importante esta sucata deixa de

funcionar! - queixou-se. Tal como tinha acontecido no casamento da

Tamara.

Lavínia sabia: tudo lhe saía mal, e ainda faltava mais. Justo

esse tinha que ser um dia de má sorte.

Nervosa e triste como estava, resignou-se a seu destino.

— Isto não tem nenhum sentido, Helena - disse cabisbaixa. —

Faltam menos de oito horas para a partida do Paradise e eu ainda

estou aqui, turma de trabalhadores em Buenos Aires.

Tamara, que também estava ali, se aproximou.

— Deixa de ser boba e tomemos um coletivo - propôs.

— O aeroporto é longe não chegaríamos a tempo.

— Toma um táxi com o dinheiro da passagem até o Rio -

sugeriu Helena - depois de tudo, não teve que gastá-lo. Nós lhe

acompanhamos e voltamos de trem ou de coletivo.

Claro! Como não lhe tinha ocorrido antes? Ainda havia

esperanças, ainda ficavam armas para lutar. E as coisas voltavam a

resolver em um abrir e fechar de olhos.

Lavínia correu a fazer o que sua irmã lhe tinha sugerido, mas

foi Helena a que conseguiu deter um carro, porque a Lavínia todos

passavam por cima. Quem não ia parar para a atrativa que era sua

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irmã e da forma que se vestia? As três subiram junto com a bolsa e

pediram ao taxista para chegar ao aeroporto de Ezeiza o mais rápido

possível. Leandro as saudou agitando a mão junto a seu Mustang.

Contudo, chegaram às onze e meia. Lavínia correu para

apresentar-se no check-in, onde aprovaram sua passagem, mas não

sua bolsa.

— Isso tem que despachá-lo - disseram-lhe.

— Não! - reclamou ela e abraçou com mais força seu pequeno

tesouro. — A bolsa vem comigo ou nenhum viaja.

— Nesse caso, nenhum sobe ao avião - respondeu o

empregado.

— Dê-lhe, Lavínia, deixe que o levem - sugeriu Tamara.

— Não pode ocorrer a mesma desgraça duas vezes, não? -

demarcou Helena, que já estava ciente do conto da perda da valise e

os vestidos feitos de cortinas.

— A mim sim - respondeu Lavínia.

— Mas esta vez não... - tentou convencê-la Helena. — Tome.

Pegue a carteira. Ponha aqui os papéis, o dinheiro, as coisas básicas,

ora.

Apressada, Helena esvaziou a bolsa, grande mistério feminino,

nas mãos de Tamara, que ia guardando tudo nos bolsos. Dela caiu

um batom vermelho, vários bilhetes enrugados, um pacote de lenços

descartável, lenços higiênicos para bebê - lenços higiênicos para

bebê? Perguntou-se Lavínia com o cenho franzido - o cartão de

identidade, moedas, uma tira de chicletes, um alfinete de gancho,

uma almofada, pastilhas anticoncepcionais e três preservativos que

aterrissaram sobre os pés da Lavínia. As três se agacharam para

recolhê-lo ao mesmo tempo, mas Helena o fez com pressa.

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Com a mesma velocidade, passaram os documentos, o dinheiro

e outras coisas de Lavínia à bolsa de Helena, e com o ânimo de sua

irmã e sua melhor amiga, Lavínia acessou a despachar a bolsa. O fez

com receio, abraçou o objeto o maior tempo possível e o deixou na

esteira como que velando-o.

Uma vez que a mala vermelha desapareceu de sua vista,

dedicou-se a abraçar Helena e a Tamara e a escutar os conselhos de

último momento que lhe saudaram.

— Muito cuidado nessa cidade que quase não conhece disse

Tamara.

— Toma um táxi até ao porto - demarcou Helena.

— Não se preocupe por nada, desfrute da viagem, as tensões, o

reencontro - sonhou sua amiga. Tomava uma mão e Helena a outra.

— Fica com os chicletes - adicionou Helena lhe pondo a tira

verde na mão. — Dizem que nos aviões se tampam os ouvidos e é

bom mastigar e tragar saliva para aliviar. E o mais importante: traga-

me algo lindo de lembrança.

Lavínia só assentia com a cabeça e agora também se aferrava à

tira de chicletes como fazia um momento à bolsa.

— Vamos, ande! - exclamou Tamara. — Tchau!

— Tchau - respondeu Lavínia, ainda aturdida pela velocidade

que levava tudo e pelo pouco que tinha dormido nesses três dias.

— Adeus! - saudou-a Helena, sorridente, vendo-a afastar-se.

Passou pelo controle de segurança. Apanharam-na em

migrações.

— Senhorita Dickinson? - perguntou-lhe um militar. Lavínia

arqueou as sobrancelhas.

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— S... sim... - assentiu com medo.

— Vai ter que nos acompanhar.

Sentaram-na em uma sala e lhe fizeram todo tipo de perguntas.

— Por que tinha reservado todos esses voos?

— Por que insistia em levar a mala com você no avião?

— Por que seu passaporte não tem mais de três dias?

— Não leve a mal, senhorita Dickinson. Fizemos para sua

própria segurança e a dos passageiros.

Ela olhava alternadamente a cada homem, pálida e confundida.

Ali fazia tanto frio que tremia. Possivelmente eram os nervos, não se

dava conta, porque outros pareciam bastante acalorados.

Teria que ter chamado Nick há três dias e deixar de poder. Não

fazer caso a Helena e embora sua reconciliação fosse a mais ordinária

do mundo, não arriscar-se a que jamais existisse. Devia de ter

pensado antes, dado seu amontoado de má sorte.

— Tenho que apanhar esse avião – disse. - Espera-me um

cruzeiro no Rio de Janeiro...

— Vai para um cruzeiro? - intrometeu-se outro, assinalando-a

com o dedo.

Lavínia sabia que estava desalinhada e isso lhe jogava contra

para que lhe acreditassem. Não se tinha posto mais que um jeans e

uma regata, a maquiagem devia haver se deslocado pelo suor e as

lágrimas retidas, e com a agitação do passaporte e o táxi devia ter o

cabelo como uma vassoura, mas tampouco era essa justificativa para

que pensassem que ela era uma espécie de terrorista.

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— Perguntamo-nos com que ganhos pôde você ter reservado

uma passagem na primeira classe de todos os aviões com destino ao

Rio do Janeiro de toda a semana.

— Eu não o fiz - replicou Lavínia, mas não acabou de falar, pois

um sujeito de terno entrou em quarto trazendo sua mala vermelha.

— Encontramos sua bagagem - anunciou.

Lavínia olhou seu relógio de pulso. O voo partia em cinco

minutos.

— Vou perder o avião – disse - e de verdade tenho que estar no

Rio do Janeiro às cinco da tarde.

Um dos tipos de terno cruzou os braços.

— E por que tanta urgência? - perguntou especulativo.

Lavínia não podia acreditar. Queria gritar, queria golpear a

alguém, mas em troca estava calada e pálida na cadeira. Resignação.

Isso era o que sempre tinha tido a respeito de tudo, e teria que

aplicá-lo também nisto. Tinha visto as mensagens do Nick graças a

sua irmã, que tinha feito uma boa recopilação de quase todos. Tinha

chorado e rido com o que Nick lhe tinha escrito, mas por sobre todas

as coisas se deu conta de que sim tinham que estar juntos.

Agora pensava, em troca, que não havia anjo algum que

pudesse contra seu infortúnio, e que possivelmente o destino os

queria separados.

Olhou o relógio: Meio dia. Baixou a cabeça, resignada. Tinha

perdido o voo.

— Aqui não há nada mais que roupa, roupas femininas,

desodorante... - enumerou o que, agora Lavínia notava, tinha

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revistado sua bolsa. E não tinha reparos em despir sua intimidade,

punha-a em evidência em frente de todos.

— Bom, ao parecer vai chegar ao cruzeiro - adicionou o outro.

Lavínia pensou que estava brincado com ela, mas o pior foi descobrir

que o dizia a sério.

Quando a liberaram, eram já meio dia e meia. O próximo voo

saía as duas, com sorte poderia chegar ao Rio de Janeiro às cinco.

Carregaram sua bolsa com as malas do outro avião e a fizeram

esperar até que lhe permitiram abordar.

Lavínia olhava para todas as partes. Só lhe faltava que outra

coisa mais se interpusesse em seu caminho. De todos os modos não

ia entusiasmada, não avançava pelo corredor comprido e fechado

com o coração emocionado, a não ser cansada e taciturna.

Quase não tinha dormido nem comido em três dias, tinha

suspenso outra vez a grande oportunidade de sua vida no terreno

econômico, e tudo por seguir uma ilusão que se diluía com cada

segundo que corria no relógio.

A viagem de avião não apresentou maiores complicações,

exceto os ouvidos lhe tamparam e acabou enfiando na boca três

chicletes dos que lhe tinha dado Helena. Logo chegaram as

turbulências. Por momentos o avião se agitava como uma

coqueteleira e em outros se deslizava pelo céu como água por um

tobogã. Durante os movimentos, Lavínia se agarrava com força aos

apoios de braços e pensava que odiava com toda a alma voar, que

não queria fazê-lo nunca mais. Quase parecia com o bordo de

desmaiar, mas não. Resistia a tudo até que a máquina se suspendia

serena no céu da tarde e então a experiência já não lhe parecia tão

odiosa.

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Levava a bolsa de Helena com o dinheiro e os documentos.

Nem sequer tinha outros misteres pessoais, o que era isso? Sentia-se

estranha, desolada, como se em lugar de ir-se a outro país estivesse

indo fazer um recado ao armazém da esquina.

Por sorte a viagem não se estendeu mais de três horas. No

Aeroporto Internacional do Galeão, Lavínia correu à esteira de

bagagem e esperou. E esperou, e esperou, e esperou, mas, como não

podia ser de outra maneira, sua querida bolsa vermelha jamais

apareceu.

Olhou seu relógio de pulso. Não tinha tempo de entender-se

com uma empregada que falava português para terminar assinando

um formulário de reclamação sem promessa de achar o que

procurava. Não valia a pena perder o tempo com isso quando eram

cinco e meia da tarde.

De modo que, como costumava fazer na vida, resignou-se

sobre a bolsa vermelha em função de não resignar a Nick. Se ela não

se apresentava, ele sentiria que o tinha desprezado, que o negara, e

ela não podia permitir-se isso. Era tão tarde que ele certamente já

pensava que não apareceria.

Passou bem por migrações e pela alfândega, não levava nada

que revisar nem bagagem que declarar, mas teve que completar um

formulário e isso também lhe levou tempo.

— E agora o que? - perguntou-se em voz alta enquanto corria

para a saída, obstinada à carteira como se nela levasse a vida.

Não podia ser que não se passasse mais nada. Esperava o

seguinte, sabia que viria, e em lugar de resignar, começou a

preparar-se para o próximo infortúnio.

A multidão se amontoava com malas, carrinhos, chapéus

estrambóticos e caras de feliz aniversário enquanto Lavínia sabia que

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seu rosto não devia refletir mais que esgotamento físico extremo e

uma desnecessária sensação de leveza.

Fora, os táxis partiam um após o outro levando aos

passageiros. Fez gestos com as mãos e até com uma perna, mas,

como era de esperar, nenhum parava. De repente, de um nada, um

ao que ela nem sequer tinha visto se deteve a seu lado e lhe abriu a

porta. Lavínia sorriu. Um deus que sem dúvidas não era o seu

acabava de lhe colocar um táxi a seu serviço, mas assim que meteu

um pé, outra se interpôs e pretendeu lhe arrebatar o tesouro tão

prezado. Lavínia semicerrou os olhos.

— Nem sonhe - resmungou. E arrancou à loira descarada que já

subia no automóvel.

— Louca! - gritou a mulher em perfeito castelhano quando ficou

parada em meio das pessoas, vendo o carro arrancar. —

Desenquadrada!

Lavínia não lhe emprestou mais atenção. Eram já cinco e

quarenta da tarde e ainda lhe faltava um trajeto de pelo menos trinta

minutos para chegar ao Paradise. Entre transporte e papelada,

atracaria tarde. Muito tarde. Mas não se permitiu pensar nisso.

— Senhor - falou o tripulante as costas de Nick. Ainda com as

mãos no corrimão do balcão, ele se deu a volta.

Tinha posto um traje cor nata e uma camisa branca sem

gravata. Com o rosto iluminado pelo sol de verão e o olhar tão sereno

como o espírito, escutou um pouco abstraído o que o tripulante tinha

para dizer.

— Já é hora de partir – anunciou. — Os passageiros estão

começando a inquietar-se. Zarpamos?

Nick voltou a olhar o mole com os olhos entrecerrados.

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— Não - replicou com extraordinária segurança. — Ela virá,

estou certo. Esperaremos.

O táxi não avançava, estava estagnado em meio de uma

avenida. O taxista lhe deu um par de explicações em português, mas

Lavínia entendeu pouco. Pela patente, deu-se conta de que um

automóvel de turistas argentinos se deteve um pouco mais adiante,

então pediu ao homem que a esperasse e desceu do carro para

aproximar-se do outro.

Assim que cercou diálogo com as pessoas do Fiat cinza, Lavínia

lhes perguntou se sabiam a que se devia a tardança e se o porto se

achava muito longe. Informaram-lhe que estavam reparando a rua,

por isso a demora, e que o porto estava relativamente perto.

Indicaram-lhe como chegar graças a um mapa que levavam no

porta-luvas e ela agradeceu, lhes desejando boas férias.

Retornou ao táxi, pagou sua viagem com os poucos reais que

tinha trocado antes de sair de Buenos Aires e agradeceu ao condutor,

disposta a correr até seu destino. Tantos anos de praticar esportes

deviam servir para algo.

Nada era tão fácil. De repente e sem que o sol desaparecesse,

caíram grandes e pesadas gotas de chuva.

Só isso lhe faltava, ser vítima do clima tropical e molhar-se até

a medula. Mas em lugar de chorar por sua patética situação, Lavínia

riu. Riu com vontade; não tinha roupa para trocar, nem sequer

passagens de volta a Buenos Aires, e se não conseguisse dar com o

Nick, ficaria na turma de trabalhadores em um país desconhecido,

entre estranhos, com gente que falava outro idioma e sem uma só

pessoa que a resgatasse. Entretanto, já não se sentia triste, nem

nervosa, nem tinha medo.

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Que mais dava? Por que tinha que resignar-se sempre? Por que

não podia fazer como Nick e chegar até as últimas consequências, até

onde caísse rendida não pela resignação, mas sim pela morte,

embora sangrasse lentamente no intento? Podia renunciar a tudo,

menos a ele.

Então descobriu que a chuva lavava seus pensamentos, que o

único ao que tinha que resignar-se era a sua má sorte, e a que a

batalha entre deuses se desenvolvesse no céu.

"Não são os eventos, mas sim como toma, o que assinala um

bom ou um mau dia", havia-lhe dito Nick. Eram umas das primeiras

palavras que lhe tinha dedicado e Lavínia alcançava às compreender

logo agora.

Rir de sua má sorte foi o mais formoso que lhe pôde passar

entre tanta injustiça e a impulsionou a seguir adiante.

Chegaria até as últimas consequências. Até o final.

Atracou no porto feito um trapo molhado e, como não podia ser

de outra maneira, nem bem pôs pé debaixo do teto, deixou de

chover. Dentro do recinto, dirigiu-se ao empregado de abordagem e

ali lhe explicou, agitada, sem fôlego, que tinha uma reserva no

Paradise, mas que não dispunha das passagens. Quando lhe disse seu

nome, ele nem sequer introduziu seus dados no computador.

Respondeu com o sorriso amável, característica dos aldeãos que se

dirigisse a migrações com o papel que lhe estendia.

— Alguma bagagem que despachar? - perguntou com o mesmo

sorriso complacente.

Lavínia a devolveu.

— Não trago bagagem - respondeu. Ele assentiu em silêncio e

lhe indicou com a mão a direção de migrações.

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Lavínia se perguntava o que seguiria. Possivelmente algum

terrorista famoso levava seu nome e a detinham por isso. Ou talvez a

vissem tão desalinhada que acreditassem que ia tomar um cruzeiro

para um assalto. Nada disso aconteceu. Por milagre, tudo parecia

haver-se detido, como se seu deus vingativo se tomasse um

descanso ou um anjo o tivesse amordaçado. Sentia-se como quando

cobriam a boca a alguém para que não pudesse falar.

O trâmite foi muito rápido, mas mesmo assim como tinha medo

de que o navio se afastasse sem ela, correu. Com tanta má sorte que

pisou de mau jeito e torceu um tornozelo, caiu de boca no piso e lhe

doeu até a alma. A remadora branca, da cor que para ela e para o

Nick resultaria significativo, dando o toque final de

desproporcionalidade de sua imagem.

Golpeou o piso com a mão, sentia bronca e vontade de

destroçar algo, mas para não romper um osso, o qual era bastante

provável dada a rajada que trazia, seguiu caminhando.

Como ascensão ao navio, só ficava a plataforma que não

conduzia ao interior do casco do navio, a não ser mais acima, por isso

era larga e levantada. Lavínia se sentiu aliviada de vê-la e apurou o

passo até que se deteve paralisada. Reencontrava-se com o formoso

e imenso cruzeiro, mas só com suas características físicas, porque

esse não era o Paradise.

A alma caiu aos pés. Como podiam existir dois navios gêmeos?

Como podia um navio idêntico ao Paradise chamar-se...?

Abriu a boca, os olhos se encheram de lágrimas.

Lavínia. O cruzeiro se chamava Lavínia. Diziam-no as letras

negras que manchavam sua imaculada brancura.

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Largou-se a chorar. Tremia e se cobria a boca com as mãos

para não gritar. Isso não era certo, não podia ser real. Tantos

sentimentos ao descoberto a deixaram indefesa.

Avançou até o pé da plataforma ascendente, onde voltou a ficar

paralisada. Conduzia a um topo que era um balcão terraço decorado

com grinaldas e flores brancas. De pé, com as mãos no corrimão e

um sorriso preguiçoso nos lábios, estava Nick. Tão arrumado que a

deixou sem fôlego, tão sereno que parecia nunca ter duvidado de que

ela iria a seu encontro.

O céu, de um vivido azul, abatia-se sobre ele e o fazia parte de

uma pintura, a de um herói mitológico. De fato Nick não tinha

chegado de avião até Rio do Janeiro, a não ser nesse mesmo navio,

tudo para cumprir sua promessa de ser o N que resgatasse a Lavínia.

A guerra da que N provinha, já a tinha brigado, e tinha durado muitos

anos.

Parecia que jamais tinha chovido. O sol o iluminava por

completo, brilhava como uma imensa bola de fogo suspenso sobre

sua cabeça e não se cobriu porque ele se movesse para um lado,

onde o corrimão estava aberto para permitir o acesso ao balcão, com

intenção de esperá-la.

Não podia sentir-se mais satisfeito, mais amado. Depois de

lutar e sangrar-se, ali estava o topo, uma que jamais poderia lhe

resultar indiferente. Sentia que a alma se elevava, voava longe do

passado e se abria ao futuro. O coração lhe pulsava como nunca

antes o tinha percebido. Havia muito mais que ambicionar, mas o

lucro que tinha ante seus olhos encheria sua vida para sempre. Só

faltava que Lavínia também subisse ao céu.

Lavínia sentia que o peito lhe ia estalar. Não podia ser mais

feliz. Não podia sentir-se mais afortunada. Avançou um passo e para

dar o outro se cambaleou por causa da dor em seu tornozelo. Ao vê-

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la, uma ternura inusitada invadiu o interior de Nick, que sorriu ante a

imagem.

Lavínia estava empapada, com a roupa branca suja, o cabelo

emaranhado e, além disso, mancava. A imaginação do homem não

alcançava a precisar as vicissitudes pelas que ela teria passado

sozinha para reencontrar-se com ele no navio.

Não podia ser mais feliz. Não podia amar mais.

Queria protegê-la, cuidá-la, lhe fazer esquecer todo o mal e

jamais permitir que algo a fizesse chorar de novo, nem sequer ele.

Por isso abriu os braços para recebê-la sem poder apagar o sorriso de

seu rosto e o olhar iludido.

Em meio da levantada plataforma, Lavínia acreditou que cairia

redonda no chão. Não lhe subtraíam forças, entretanto escalava, não

perdia de vista seu objetivo banhado de sol e avançava embora lhe

tremessem as pernas e o pé lhe impedisse de caminhar com soltura.

Cada vez faltava menos, o caminho se cortava e finalmente,

depois de ter alargado os últimos passos, chegou ao topo.

Nick a apanhou entre os braços, pegou-a a seu peito e a

apertou com força, Lavínia se pôs a chorar, incapaz de reter as

lágrimas, que eram a amostra da explosão de emoções que

experimentava. Entre esses braços não se sentia esgotada, nem

temerosa, nem sozinha. Todo cansaço tinha desaparecido dando

passo a uma energia desconhecida.

Nick fechou os olhos, detento da intensidade do amor que

sentia, da mescla de sentimentos que se agitavam em seu interior

como vaga-lumes e lhe umedeciam o olhar.

— Sabia que viria - disse-lhe com alívio.

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— Perdão por chegar tarde - desculpou-se ela, ainda contra seu

peito. Meus fatos não me permitiam o avanço.

Nick abriu os olhos e deixou escapar a risada.

— Não se preocupe - consolou-a. — Minha deusa é muito mais

forte e pode contra todos.

Lavínia entendeu que Nick se referia a sua mãe e se deixou

vencer outra vez pelo pranto que não era por escutar que a passarela

se movia. Separou-se de Nick com urgência. Elevou os olhos úmidos

para ele, que não lhe liberava a cintura.

— Não posso abandonar o porto - anunciou com pesar. No olhar

de Nick havia tanto amor e tanta ternura que Lavínia se sentiu capaz

de tornar-se a chorar de novo.

— Por que não? - perguntou ele, sem preocupação alguma.

— Não tenho visto, não me deu tempo para isso - respondeu

Lavínia com a voz afogada. — Logo que tenho isto...

Elevou a mão tremendo e mostrou ao Nick o passaporte, o

documento de identidade e outros registros que correspondiam a

migrações e à mala que tinham perdido no aeroporto. Todos esses

papéis estavam enrugados, e a palma da mão raspada pela queda

quando lhe tinha torcido o tornozelo.

Nick baixou o olhar, estudou rapidamente o que Lavínia lhe

mostrava e voltou para ela com serenidade.

— Perdão - desculpou-se. — Não podia te ajudar com isso -

referia-se ao visto; trâmites que deviam realizar-se pessoalmente e

que, se pudesse, também teria arrumado por ela, só para lhe facilitar

a chegada. — De todos os modos, não têm que preocupar-se –

continuou - nem todos os lugares que vamos pedem que apresente

um visto.

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— Ah... - replicou Lavínia, surpreendida. Olhou seus papéis na

mão ainda estendida e logo voltou a olhá-lo. — E você sim têm todas

as permissões como deve ser? - indagou. Parecia assombrada,

incapaz de acreditar que Nick a sustentava ainda entre seus braços.

— Sim - respondeu ele com sinceridade. - Mas isso não importa

- adicionou em seguida. — Chegaremos tão longe como pudermos,

mas sempre juntos. Ficarei com você no último porto ao que

possamos acessar sem um visto.

— E depois? - perguntou ela. Nick sorriu.

— E depois voltamos a começar. Conseguimos o visto que

necessite para a próxima vez, porque haverá uma próxima, e nessa

oportunidade, chegaremos ainda mais longe. Assim até que voltemos

a começar muitas vezes, cada uma nos impulsionando com mais

força, até que alcancemos as estrelas.

Lavínia sorriu encantada, incapaz de acreditar o que vivia.

Parecia-lhe um sonho e tinha medo de que não fosse real. Nick

notou, por isso baixou um pouco a cabeça e se aproximou do rosto de

Lavínia para respirá-la. Não podia deixar de olhá-la, não podia ficar

calado.

— Sabe que não sou bom para falar do que sinto - disse.

— Não importa - interrompeu ela. — Escreveu tudo e, além

disso, é bom com os atos. Olhe tudo o que fez - indicou separando os

braços do corpo. — Isso é o que importa.

— Agora que quero falar, não me deixa. - brincou ele. Lavínia

soltou uma risada entre lágrimas. — É que com você não posso ficar

calado - seguiu dizendo. Logo seu olhar, que já era por si profundo,

transformou-se, dando passo a mais entristecedora das carícias sem

tato que ela jamais tinha experimentado. — Lavínia... és o futuro

grandioso que me prometeu minha mãe - Lavínia voltou a chorar. Ele

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beijou suas lágrimas. — Não quero que chore, nem sequer de

felicidade. Quero que me perdoe, quero que me escute. Para mim é a

pessoa mais especial e formosa do mundo. Não imagina como senti

saudades, o que me custou esperar até hoje para que este dia, o

primeiro do resto de sua vida, seja completamente distinto ao de

qualquer outro mortal - ela sorriu entre lágrimas. Nick tomou o rosto

entre as mãos sem deixar de olhá-la com esses olhos cinzas que

devoravam o universo. — Quero que saiba que eu adoro seus olhos,

sua maturidade, sua dignidade. Que quero passar o resto de meus

dias com você, que não imagino filhos meus que não sejam os teus.

Mas tudo isso não me basta. E tampouco é suficiente para mim.

— É tudo, Nick... - falou ela, afogada de emoção.

— Não, não é - respondeu ele. — Não é nada sem que a tudo

isso adicione que te amo. Amo-te, Lavínia, como jamais acreditei que

seria capaz de amar.

Lavínia tremeu. Pensou que tendo lido resultava suficiente, mas

assim que escutou Nick pronunciar essas palavras, soube que isso

não era certo. Ouvir de seus lábios se sentia como música, como um

encantamento. Saber que ele se entregava a ela em corpo e alma,

que lhe confiava seu interior e seus fundos sentimentos, deixou-a

débil e afligida.

— Oh, Nick... - balbuciou. Agora era ela a que não sabia

pronunciar palavra. — Diga-me outra vez, por favor – pediu. — Uma

vez mais.

— Muitas vezes mais - repôs ele. — Penso lhe dizer isso a toda

hora, todos os dias. Ligarei-te do escritório para dizer isso. Deixarei

escrito isso em mensagens por toda a casa, direi-lhe isso ao

despertar, ao dormir, ao morrer.

— Diga-me agora... - pediu ela. — De novo.

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Lavínia tinha fechado os olhos. Como Nick lhe apertou

ligeiramente a cara, ela os voltou a abrir. Ele queria que seus olhares

se encontrassem para pronunciar essas palavras.

— Amo-te – repetiu - amo-te, amo-te, amo-te...

Disse-o tantas vezes que Lavínia lhe deu um beijo para calá-lo.

Depois ele a elevou ao colo e a carregou até o quarto para que não

caminhasse dolorida. Um tripulante se aproximava do balcão para

fechar a porta: Lavínia zarpava da costa.

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Capítulo 30

Nick deixou Lavínia sobre a cama. Embora quisesse chamar o

médico por telefone para que visse seu pé ferido, não pôde afastar-se

de seu lado. Ela tremia de emoção cada vez que ele a olhava, porque

a observava com tanta intensidade que a fazia sentir grande e

pequena de uma vez, fazia tremer a alma.

— Perdão - desculpou-se tocando o belo traje claro de Nick. —

Sujei-o.

Nick jogou um olhar fugaz ao traje sujo e úmido, e logo voltou

para Lavínia sorridente.

— Não tem importância – assegurou. — Com uma esposa

desenhista pouco me importa perder um traje - Lavínia sorriu. Ele,

em troca, ficou muito sério. — Sei que a primeira vez que te disse

que convidaria para nossas bodas não me acreditas-te. Espero que o

faça agora. Não quis ser prescritivo e sei que você não gosta de fazer

as coisas às pressas, mas já sabe... não posso com meu gênio.

Possivelmente não possa trocar isso e espero que me perdoe se não

puder.

Lavínia se deu conta de que Nick estava a ponto de dizer algo

importante.

— Eu não quero que mude - recordou-lhe. — Amo-te assim

como é.

Nick sorriu, a curiosidade matava Lavínia, mas ela se manteve

em silêncio, com os olhos muito abertos, tratando de respirar.

— Era uma surpresa, mas a estou arruinando - lamentou-se ele

cabisbaixo. — Pensava perguntar primeiro. Não agora, a não ser em

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um mês, mais ou menos, tendo preparado algo que não te faça

duvidar da resposta. - Lavínia tragou com força. Esqueceu-se o

vocabulário.

— Eu nunca poderia duvidar dessa resposta - comentou como

ao passar.

— Argh! - rugiu Nick. — Mas por que sou tão estúpido?

— Não é estúpido - repôs ela lhe acariciando a cara. Ele voltou

a olhá-la.

— Tinha pensado em te levar a uma manhã de campo, a um

lugar onde estivéssemos sozinhos - contou com emoção. — Ia

escrever com flores que te amo, e ia fazer que um avião passasse

imprimindo minha pergunta no céu.

Lavínia tremeu. Sim, Nick falava a sério. Era capaz de fazer isso

e muito mais. Umedeceu os lábios ressecados, espremeu uma mão

com a outra. Nick franziu o cenho.

— É muito clichê, não? – interrogou. — Devia ter pensado algo

mais original. Algo digno de você.

— É perfeito - replicou Lavínia com voz afogada. — Assim, tal

como o está fazendo agora - sorriu emocionada. Nick lhe devolveu o

sorriso.

— Já nos reservei casamento para dentro de seis semanas -

anunciou ele vendo o acolchoado branco sob suas mãos. — Se

também quiser que o façamos na igreja, tome você a decisão. Me

basta com o símbolo.

Lavínia franziu o cenho e suspirou. O corpo lhe encheu de

cócegas.

— Nick... - balbuciou.

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— Ah, sim,a pergunta - reagiu Nick. — É que ainda não tinha

pensado algo lindo para dizer, e se a faço só agora vou dizer o

primeiro o que me venha à mente. Não importa?

Lavínia não tinha murmurado seu nome para ouvir a pergunta,

o que podia lhe importar a estúpida pergunta, se ele já o estava

dizendo tudo com suas palavras? Mas sim porque lhe escapava pelo

amor que a invadia. Igual escutou em silêncio quando os olhos de

Nick voltaram a afligi-la.

— Lavínia... - começou ele - quero um apartamento - o discurso

parecia toda uma incoerência, mas tinha sua lógica. Lavínia o

descobriu quando Nick continuou falando. — Mas não quero fazê-lo

sozinho, quero que o escolhamos e o decoremos juntos. Quero que

juntos escolhamos muitas coisas. E que quando comprarmos outro

carro ajude-me a lavá-lo. Assim como está agora, com uma roupa

branca posta, toda molhada, pega a sua pele enquanto eu morro por

mandar o automóvel à merda e fazer amor entre o barro. Oh, sim,

isso eu gostaria! - Lavínia não pôde evitar rir com os olhos cheios de

lágrimas. — Que um cão corra entre suas pernas e você salpique isso

a cara - sorriu ele com emoção e se deitou sobre ela. As pernas de

Lavínia ficaram entre as do homem, que estavam abertas. — Esse dia

faremos nosso primeiro menino. Não volte a chorar - pediu ao ver

que Lavínia lacrimejava. — Não chore, se não estou dizendo mais que

incoerências.

— Não quero que calcule nada - disse-lhe ela. — Continue,

continue falando com o primeiro que te saia.

Ele sorriu. Assentiu e continuo dizendo tudo o que lhe cruzava

pela mente.

— Quero te dar tudo, que nunca te falte nada, muito menos

amor e sonhos. Quero que tenhamos filhos que se pareçam com os

dois, e que a gente nos pergunte sempre "para quando será o irmão"

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- Lavínia riu encantada. — Quero chegar velho e despertar vendo-a a

meu lado enquanto penso: "Lavínia, minha esposa de nome

estranho... quanto a amo!”.

Lavínia entreabriu os lábios para poder respirar. Como que ele a

tivesse escutado! Nick sabia que ela o tinha visitado no hospital. Isso

a fez chorar.

— Oh, Nick... - murmurou.

— Necessito-te, Lavínia. Amo-te e não quero que seus fados te

separem de mim nunca, por isso tenho que te manter muito perto -

continuou ele. Ela riu. — Quer ser a mãe de meus filhos, a desenhista

de todos meus trajes, a vítima de meus abraços, a tumba junto a

minha tumba? Lavínia... quer ser minha esposa?

— Com todo meu coração! - respondeu ela sem medo, sem

mais que sentimentos que deixou entrever em seu olhar e no abraço

que deu ao Nick nem bem terminou de falar.

A habitação se iluminou com a luz que só o sorriso de Lavínia e

sua felicidade podiam outorgar, e Nick resplandeceu entre essas

emoções.

Depois de revisar o pé da Lavínia, o médico lhe sugeriu que

tomasse um banho - como se ela não houvesse se dado conta de que

necessitava um - colocasse gelo e fizesse repouso por umas horas

para baixar o inchaço do tornozelo. Deixou-lhe uns analgésicos e se

foi.

Nick não lhe permitiu levantar-se da cama até que teve a

banheira cheia e mesmo assim a levou em seus braços até o banho.

— Têm fome? - perguntou-lhe. Havia tantas questões urgentes

que atender a respeito de Lavínia que não sabia por qual começar

primeiro.

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— Sim - respondeu Lavínia com sinceridade. Ele já a deixava

sobre a tampa da privada para que tirasse a roupa. — Estes três dias

fiz tudo tão rápido que até parecia que tinha um clone - brincou. Nick

riu.

— Enquanto te despe e te mete na banheira, eu vou pedir algo

rico para comer – anunciou. — Parece-te bem que peça que o tragam

em meia hora?

— Sim, está bem.

Até estando separados, Nick e Lavínia tinham os mesmos

pensamentos. Tudo era novo e excitante para eles, mas não deixava

de resultar estranho. Esses eram os primeiros passos que davam em

uma vida juntos, a partir de então descobririam mais aspectos do

outro, mais segredos. Poderiam ser eles mesmos.

Quando Nick retornou ao banho, o fez descalço e sem camisa.

Lavínia se sentiu um pouco envergonhada porque estava nua na

banheira e Nick era tão lindo que ficou vermelha. Sentia-se como a

primeira vez que o tinha visto. Riu cobrindo os seios com um braço

enquanto encolhia as pernas. Ao Nick pareceu um ato tão inocente e

ela tão maravilhosa que acabou na água antes do esperado, sem

calça e também sem cueca.

Sobre Lavínia, sorriu, beijou-a lentamente na boca e

murmurou: — Por sorte me ocorreu lhes dizer que trouxessem a

comida em uma hora.

Lavínia riu. Recebeu as carícias dos lábios de Nick sobre os

seus, rodeou-o com os braços e depois ficou quieta.

— Me prometa que isto é real - pediu séria e temerosa. — Me

prometa que...

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— Que este é um sonho do qual nunca vamos despertar -

interrompeu-a ele, lendo seus pensamentos, escravo da mesma

preocupação. — Prometo-lhe isso. Agora você me prometa que nunca

me faltará.

Lavínia se apertou contra Nick vendo-o os olhos. Podia sentir

seu desejo pugnando por unir-se a seu corpo e não se atreveu a

retroceder. Necessitava-o tanto como ele a ela.

— Prometo-lhe isso - disse com um nó na garganta, o mesmo

que se desarmou quando Nick entrou nela, fechou os olhos e deixou

cair uma lágrima. Lavínia a secou com o dedo.

Primeira investida dentro de seu corpo.

— Eu nunca te vou faltar - disse-lhe ela, também com os olhos

úmidos. — Porque te amo.

Segunda investida dentro de seu corpo.

— Me perdoe, Lavínia. Eu sei que te fiz muito dano.

Terceira investida dentro de seu corpo.

— Eu sei que é uma pessoa complexa, mas têm que saber que

também é maravilhoso - tomou o rosto entre as mãos e o obrigou a

olhá-la. — Entendeu-me? Tem que te valorizar porque é formoso, não

me ocorre os adjetivos para te descrever, qualquer outro ficaria curto,

te amo. Com todos esses contrastes, é a pessoa mais fascinante que

jamais tenha conhecido.

Quarta...

— Estou quebrado, louco, destruído. Mas você... - olhava-a

como a ninguém mais no mundo, e com os olhos ainda úmidos sorriu.

— Você é minha salvação. Com você sou feliz e sei que não é algo

passageiro. Por fim me sinto eu mesmo de novo e não sei se sou

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capaz, mas tudo o que quero é te fazer sentir tão completa como me

sinto estando com você.

Quinta...

— Se você ama isso, se os dois nos amarmos como somos, não

há dificuldades que valham. Eu também sou feliz ao teu lado. Você é

minha felicidade.

Sexta.

— Amo-te - sussurrou ele.

— Amo-te – replicou ela.

— Lavínia... Formosa... - Continuou dizendo Nick. E levou uma

mão, a cara para olhá-la nos olhos e tremeu. — Te vou fazer amor.

O anúncio a fez estremecer. Sabia a diferença abismal que

existia para Nick entre ter sexo e fazer amor, e soube que nesse ato

lhe entregaria sua alma. E ela estava disposta a lhe dar também a

sua, como sempre tinha desejado fazer.

O primeiro que fez Nick foi sair de seu interior e deslizar-se

para o outro lado da banheira. Ao parecer seu conceito de fazer amor

ia muito além de uma penetração porque estirou uma perna e

impediu a ela mover-se para ir com ele. Respaldou-se na parede de

louça, Lavínia fez o mesmo, e logo compreendeu que o que

experimentariam estava além da razão.

Em princípio, o olhar. Nick enterrou seus olhos de céu escuro

nos seus e inspirou profundo. Parecia-se com a primeira vez que

tinham tido sexo, mas agora a observava com muita mais

intensidade. Já não admirava seu corpo nu, a não ser seu interior, e

tão insistente era no que fazia que a Lavínia lhe agitou a respiração e

lhe pareceu que ele se internava dentro como ela se introduzia nele.

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Nick semicerrou os olhos, de tanto desejo, mas não deixou de

olhá-la. Tragou com força e se tencionou. Os dois foram respirando

cada vez com maior agitação. Sentiam o desejo pulsar em suas

vísceras e se perguntavam até quando poderiam aguentar, se

convinha lhe pôr fim.

Ele não quis fazê-lo. Encolheu uma perna e logo voltou a

deslizar pelo fundo da banheira até dar com as dobras vaginais de

Lavínia, onde um pé começou a investigar a zona até fazê-la gemer.

Ela fechou os olhos e jogou a cabeça para trás, mas como Nick

continuava olhando-a, não quis romper com esse outro meio de

excitação que tão bem o fazia e se endireitou em seguida.

O dedo gordo se misturou por sua cavidade um momento, logo

saiu e desenhou círculos ao redor de seus clitóris. Ela tremeu de

ansiedade e fechou os olhos um momento, mas os abriu de novo para

não acabar com o contato visual. Umedeceu os lábios, mordeu o

inferior. No silêncio só se escutava o som de sua respiração e a de

seu amante, que gozava com só vê-la em estado de êxtase.

O segredo radicava não só no físico, a não ser no jogo mental.

O olhar de Nick era tão intenso, se fazia evidente que ele desfrutava

tanto de vê-la a borda do abismo, que Lavínia o imaginava sobre ela,

dentro dela, beijando-a compulsivamente, e isso a desatou.

Esqueceu-se de olhar e jogou a cabeça atrás com os olhos fechados.

Apertou os lábios, foi presa das sensações, chicotadas que lhe

sulcavam o corpo, e se levou uma mão ao mamilo. Estimular-se e ser

estimulada lhe arrebatou um grito de prazer que sucumbiu ante o

poder do orgasmo.

Não teve tempo de reagir. Até antes de trazer a cabeça para

frente Nick a cobriu com seu corpo e lhe abriu mais as pernas.

Lavínia pôde sentir o membro erguido lhe roçando a intimidade, mas

ele não se impulsionou dentro dela. Sorriu.

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— Agora vamos fazer amor - anunciou com voz gutural,

esforçando-se por não soar tão agitado como se encontrava.

Esticou um braço sem deixar de olhá-la e recolheu um sabão

líquido que descansava no bordo da banheira. Os olhos de Lavínia se

irritaram e não se atrevia a dizer uma palavra, salvo a dar suaves

gemidos de excitação, marcados pela intriga do que vinha depois.

Queria tocá-lo, era uma sensação tão irresistível que a deleitava.

Passou os dedos pelo ombro de Nick e logo os levou para trás, onde

os músculos de suas costas se tencionaram e distendiam porque ele

se enchia a palma de sabão.

Nick esfregou uma mão com a outra e logo assentou ambas

sobre os seios de Lavínia, os quais embalou deleitando-se com sua

suavidade. O frio elemento contrastou com o calor da água e o corpo

da mulher, fazendo-o estremecer. O olhar de Nick se dirigiu, como

antes tinha feito suas mãos, para os seios femininos. Os dedos

escorregavam pelos mamilos graças ao sabão, e Lavínia gozava das

cócegas eletrizantes que isso lhe produzia. Então também quis

apoderar-se do peito masculino e trouxe as mãos para frente.

Rodeou o quadril de Nick com as pernas para apertar o sexo.

Embora ele não resistisse, tampouco se uniu a Lavínia ainda.

Enquanto suas mãos continuavam estimulando os mamilos, os lábios

se assentaram sobre a tensa pele da bochecha feminina,

avermelhada pelo calor da água e do prazer. Do mesmo modo fizeram

seu caminho para a boca, onde os recebeu a úmida língua de Lavínia.

Ela o empurrou dentro. O entrou sozinho um pouco.

— Não, ainda não - resmungou, incapaz de resistir mais, mas

ainda o fazia.

Então a segurou pelo quadril e girou com ela nos braços até

ficar respaldado na banheira e Lavínia sobre seu corpo. Deu-lhe as

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costas e se sentou sobre suas pernas. A água se balançava pelo veloz

movimento dos corpos emitindo um som que evocava as ondas do

mar balançadas pelo vento.

Lavínia esperava que Nick a sentasse sobre seu membro, mas

ele não o fez. Apanhou-lhe o cabelo em um punho à altura da nuca e

deslizou os dedos da outra mão desde sua cabeça para as pontas.

Abriu o punho para deixar acontecer os dedos que se escorreram

muito rápido entre o cabelo empapado.

— Eu gosto de te pentear – sussurrou. — Eu gosto de seu

cabelo.

Logo depois de falar, beijou-a detrás da orelha, fez-lhe cócegas

com a respiração. Lavínia tragou com força e, incapaz de resistir

mais, elevou-se colocando ambas as mãos no bordo da banheira e a

penetrou, com tanta ansiedade que não teve tempo para pensar em

algo mais.

Ela se movia para frente e para trás, acima e abaixo, com

lentidão, gozando do espaço que ficava entre uma e outra ação.

Pouco a pouco, foi cobrando velocidade e ganhando prazer. Um

antebraço de Nick lhe cobriu os peitos, dois dedos lhe apanharam um

mamilo, e os da outra mão lhe estimularam o clitóris. Ela entreabriu

os lábios, presa do frenesi, e entre a água, o sabão e a banheira e

acabaram gritando juntos que tinham alcançado o clímax.

— Amo-te - sussurrou-lhe Nick ao ouvido agitado, enquanto lhe

acariciava o ventre.

— E eu amo você - respondeu ela sem fôlego, com os olhos

fechados e a cabeça arremessada levemente para trás. O cabelo que

ele lubrificou caía como chuva sobre o ombro masculino e se perdia

em suas costas.

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Permaneceram quietos um momento, tratando de recuperar o

ar. Depois Lavínia se recostou em seu peito e lhe deu um braço por

sobre os ombros. Sentia-se tão em paz, tão protegida, que inclusive

lhe pareceu que se estava ficando adormecida. As carícias que os

lábios de Nick lhe proferiam na frente lhe provocavam o sonho.

Abriu os olhos logo quando escutou que golpeavam a porta.

Sem dúvidas se tratava do serviço de quarto.

— Pode sair da banheira sozinha? - perguntou ele antes de

afastar-se dela, preocupado por seu tornozelo. Lavínia lhe sorriu e

deu um beijo rápido na bochecha como gesto afirmativo.

Nick se envolveu em uma saída de banho branca e foi procurar

a comida. Agradeceu a seu empregado e quando voltou com a

bandeja, quase lhe caiu de entre as mãos. Tragou com força.

— Sinto-me um pouco vestido - brincou.

Lavínia tinha ficado de pé na entrada do banho, com um ombro

apoiado no marco da porta e de braços cruzados. Completamente

nua.

— Te ponha a tom - seguiu ela com a brincadeira. Arqueou as

sobrancelhas, com seu rosto sempre tão expressivo.

— Em onde ficou minha garota vergonhosa, essa que encolhia

as pernas na banheira? - mofou-se. Lavínia riu.

— Foi-se - respondeu avançando para a mesa. Sentou-se assim

como estava. — O que está esperando? Morro de fome!

Se assim ia ser sua vida a partir desse momento, de tão bom

humor, tão cheia de sexo e de liberdade, Nick se sentia no paraíso.

Demonstrou-o com um sorriso de menino travesso e o brilho peculiar

que cobrava seu olhar quando se iludia com algo.

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Lavínia o notou imediatamente. Dava-se conta de que o

conhecia tão bem, era uma das poucas e afortunadas pessoas que

realmente o conheciam no mundo, se não a única que o conhecia

tanto, que pressentia um matrimônio excelente: com um sujeito

complicado, difícil de conter, mas o mais lindo do mundo, em todos os

sentidos que uma pessoa podia sê-lo.

Deixou a bandeja sobre a mesa e se desprendeu do roupão.

— Dá-me vergonha - brincou com tom falsamente lastimoso

antes de deixá-lo cair ao chão. Lavínia riu. Depois viu aterrissar o

robe aos pés de seu dono e a este sentar-se frente a ela. O suspirou.

Não lhe apagava o sorriso da cara, e até abriu os braços antes de

falar. — Isto sim que é vida! - exclamou vendo-se nus e vendo a

comida: gula e luxúria, duas de suas paixões mais profundas.

Lavínia atacou sua perna de frango. Nick, em troca, ficou

imóvel. Quando ela elevou a vista, encontrou-o com outro olhar e

outro aspecto. Parecia desiludido, olhava a bandeja de comida como a

um berço vazio.

— O que? - Pergunto-lhe ela com a boca cheia.

— Minha torta.

— O que aconteceu com a torta?

— Não me trouxeram - Lavínia arqueou as sobrancelhas. Não

era de que o mataria por uma porção de torta fosse certo e ela

estivesse a ponto de vê-lo. De Nick podia esperar algo, sempre séria

imprevisível, pressentia que com isso ia se divertir muitíssimo. — Eu

encomendei torta de chocolate para a sobremesa, mas não está aqui.

Deveria despedir esse empregado!

Lavínia se pôs a rir com tanta ternura que se esqueceu da fome

que até o momento lhe tinha feito ranger a barriga. Ficou de pé,

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sentou-se escarranchada sobre as pernas de Nick e apoiou uma mão

em cada um de seus ombros.

— Não se preocupe - disse-lhe beijando o nariz que ela tanto

gostava. — Eu sou sua sobremesa.

O semblante de Nick mudou, tornou-se ingênuo e divertido; os

olhos muito abertos.

— Que lindo! – exclamou. — Assim é muito fácil esquecer-se de

qualquer problema.

Lavínia o beijou na boca para que se calasse.

— Está-me calando? - perguntou-lhe ele, lendo suas intenções.

— Fala muito - disse-lhe ela em brincadeira, lhe roçando os

lábios com os seus. A carícia os estava pondo pontos a ambos.

— Mas se tiver problemas para me comunicar!

Lavínia não pôde conter a risada, nem ele o desejo. Voltou a

beijá-la, os lábios de ambos se encontraram em uma carícia

irrefletida, e as mãos do homem se deslizaram pelo torso nu que o

aprisionava contra a cadeira.

— Quero te beijar toda - disse-lhe.

— E eu quero seus beijos - replicou ela. Já lhe ocupava a boca

com a sua.

Nick a fez levantar-se a tomando pelo quadril e a que se

deixasse cair de novo sobre ele, esta vez onde seus corpos podiam

fazer-se um. As mãos de Lavínia se moveram imprecisas pelas costas

masculina, por seu peito e ventre nus, até chegar aonde os dois se

encontravam unidos. Tocar essa fusão fez gemer a Lavínia, e o

acendeu seu gemido. Elevou-a lhe cobrindo as nádegas com as mãos

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e a levou até a cama, onde a depositou procurando não afastar-se

muito de seu corpo.

— Ainda quer a torta? - provocou-o ela, sorridente, enquanto

encolhia as pernas como lhe expondo um desafio: Nick devia escolher

entre ela ou o doce.

— A torta vai ter que esperar - replicou ele, que a escolheria

por sobre qualquer outra coisa do mundo. — Neste momento estou

ocupado com outro tipo de tentação, embora algum dia poderíamos

fundir ambas - sonhou acordado. — Te passar chocolate - acariciou-

lhe o lado interno do braço - por aqui - acariciou-lhe a perna. — E

aqui - lambeu-lhe o umbigo.

Ela riu e voltou a atrai-lo para si tomando-o pela cabeça. De

repente sentiu que o fogo de uma mão de Nick lhe acariciava a pele

do ventre, avançava para cima, mas nunca chegava aonde ela queria.

Ele ia devagar, como lhe prometendo algo, e foi esse jogo o que

despertou suas fantasias. De imaginar o instante em que esses dedos

lhe roçassem o busto se sentiu possuir.

Mas a mão se apartou sem lhe tocar nada. Em troca subiu de

repente até seu rosto e se assentou sobre seus lábios, os que dois

dedos intrépidos abriram e acariciaram. Abriu as pálpebras. Nick a

estava vendo, e em seus olhos se refletia tanto amor e desejo que

uma eletricidade lhe sulcou o ventre estremecido. Esses dedos a

queimavam como fogo e para apagá-lo deu um beijo. Acabaram em

sua boca, esquentados com sua língua.

Ele baixou a cabeça e percorreu com seus lábios cada parte do

corpo que adorava. Primeiro o pescoço, onde a ponta de sua língua

deu alguns toques entre carícias com os lábios. Lavínia estremeceu,

arqueou-se para ele e seu sexo roçou a perna de Nick, fazendo-os

sonhar a ambos.

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Como o roçar acidental resultou tão estimulante, lhe ofereceu o

joelho para que se esfregasse tudo o que quisesse, e Lavínia assim o

fez. Enquanto isso, os beijos desceram do pescoço ao peito e do peito

passaram por entre seu busto rumo ao ventre, onde se detiveram um

momento. Para poder baixar mais, Nick teve que retirar o joelho, mas

em troca lhe deu de presente uma carícia de sua língua no clitóris.

Lavínia se aferrou ao cabelo que ele levava apenas um pouco

mais comprido que o resto, presa no frenesi. Tremiam-lhe as pernas

de aguentar e o ventre de sentir.

Enredou uma perna na de Nick para atrai-lo para cima. Ele

obedeceu, mas não entrou nela. Com o meio corpo sobre Lavínia e a

outra metade a um lado, acariciou a pele tensa da mulher do ombro

até o quadril, passando pelo braço e a cintura. Voltou a levar a mão

acima para lhe embalar um seio sem tocar o mamilo. Beijou o outro

procurando tampouco roçar esse lugar, esfregou o rosto por ali sem

chegar mais longe. Eram todas insinuações que mantinham Lavínia

úmida e espectadora. Além disso, exigente, porque tomou o braço e o

atirou para seu lado. Queria senti-lo sobre ela e também dentro.

Nick obedeceu sem duvidar, ele tampouco resistia mais.

Estabeleceu-se sobre Lavínia e se internou em seu corpo devagar,

desfrutando de cada milímetro do lugar que o recebia, enquanto

tomava uma mão por sobre o travesseiro. Os dedos se enredaram

igual às pernas, apertaram-se uns com os outros ao tempo que as

bocas se encontravam em um beijo.

Lavínia o amava e ele a amava. Lavínia o fazia sentir vivo e

derramar-se em seu interior era como lhe dar de presente tudo o que

levava dentro. Tinha-o conservado intacto para ela.

— Pensar que vais levar meu anel nesse dedo - murmurou ele

sobre seus lábios lhe acariciando o anular. Lavínia sorriu. Não

deixavam de mover-se, não podiam respirar.

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— E você um meu... - ofegou Lavínia.

Quase ao mesmo tempo lhe cobriu as nádegas com as mãos

para apertá-lo contra seu sexo, tudo que pudessem para sentir-se

um. Juntos decidiram em silêncio que queriam ver o amálgama que

formavam seus corpos, por isso baixaram a cabeça e Nick se separou

um pouco. Assim podiam observar e expressar quanto gostava do

que viam.

— Te amo - deixou escapar ele quase sem fôlego.

— Te amo - replicou Lavínia lhe acariciando uma bochecha. —

Te amo muito.

Nick rompeu a imagem pegando-se de novo ao torso de

Lavínia. Procurou sua boca, deram-se um beijo úmido e logo se

olharam. Seus corpos se agitavam cada vez com mais violência, o

quadril dela se elevava enquanto ele investia e o mundo ao redor se

esfumava.

Sustentaram o olhar. Era formoso, era uma fantasia, e entre a

excitação e o sonho, chegaram finalmente às estrelas, como tantas

vezes se prometeram.

Não apareceram pela recepção de boas-vindas. Lavínia

despertou duas ou três vezes na noite. As duas primeiras, encontrou

Nick dormindo; a terceira o achou contemplando-a.

— Quase pensei que nunca nos encontraríamos - disse ele com

um sorriso e um braço debaixo do pescoço de Lavínia. — Despertei

duas vezes enquanto dormia.

— Eu também - sorriu ela. — E para que queria que

despertasse? - interrogou, brincalhona, pensando que ele queria fazer

amor de novo. Mas Nick tragou com força e voltou a lhe dedicar um

sorriso sereno antes de responder com voz rouca.

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— Para te dizer que te amo.

Passaram o dia seguinte encerrados no quarto. Não podiam

deixar de contemplar-se, não alcançavam os atos para demonstrar-se

quanto se amavam. Tampouco as palavras, que escapavam da boca

de Nick com frequência. Faziam amor desprotegido, sem pensar em

nada mais que em estar unidos.

— Lavínia - disse-lhe ele em uma dessas oportunidades,

enquanto lhe beijava o ventre nu. — Quero ter um filho.

Lavínia sentiu que a alma lhe alagava de sorte. O corpo já não

era capaz de suportar mais dessas sensações.

— E eu um teu - replicou com a voz afogada. — Te amo.

Depois do meio-dia seguinte, chegaram ao primeiro destino,

Salvador, Bahia. Lavínia tinha contado a Nick o acontecido com sua

bolsa, toda a odisseia que tinha atravessado para chegar ao cruzeiro,

e por isso Nick lhe deu como primeiro presente um biquíni branco.

Queria lhe dar de presente muito mais, desejava lhe dar tudo, mas

iria pouco a pouco. Tinham todo o tempo do mundo para estar

juntos.

Lavínia pensou que Nick a fazia provar o biquíni para

acompanhá-lo à piscina do cruzeiro enquanto ele lia um jornal em

uma cadeira, mas quando saiu do banho o encontrou também vestido

para a água. Ela não pensava lhe pedir que fossem à praia porque

sabia que Nick não gostava do mar, nem sequer das piscinas, mas

não fez falta que dissesse nada. Ele a surpreendeu lhe arrojando uma

toalha que Lavínia apanhou no ar.

— Vamos? - perguntou-lhe Nick com ar risonho.

— Aonde?

— Me ensinar a nadar contra corrente.

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Nick nunca se banhou no mar. Não o tinha conhecido enquanto

era menino e quando foi grande, já tinha medo, mas com Lavínia

nem se lembrou de seu temor. Era tão cálida a água, tão serena sua

cor e se sentia tão forte junto a ela, sabendo que era capaz de dar a

vida para protegê-la de tudo, que o desfrutou como fazia muito

tempo não desfrutava de nada que não fosse sua desenhista. Até foi

ele quem terminou tirando Lavínia da água, carregando-a como a

uma namorada.

Pela tarde, ficaram dormindo. Quando Lavínia despertou,

anoitecia. O quarto estava vazio, mas Nick lhe tinha deixado uma

nota sobre a mesa de luz.

"Estou resolvendo um problema em uma obra de Buenos Aires,

mas nos encontramos as dez para o jantar", leu. Sentiu saudades que

Nick não lhe escrevesse um "te amo", mas imaginou que teria escrito

a nota às pressas e com isso seu coração se consolou. Olhou o relógio

despertador que estava junto ao abajur. Eram já nove e meia, tinha

que arrumar-se se quisesse estar pronta a tempo. Tinha dormido

mais de quatro horas, Nick a deixava esgotada.

Foi sentar-se na cama e tornou a rir. Nick não só lhe tinha

deixado um magnífico vestido negro sobre uma poltrona e, debaixo,

um par de sapatos de salto, mas sim, além disso, tinha enchido o

quarto de notas.

Lavínia se levantou de um salto, feliz, e leu uma por uma.

Todas diziam "Te amo": na borda da cama, na parede, na porta do

banheiro, sobre o vestido, sobre os sapatos, nas paredes, na janela...

Nick a encontrou na hora prometida, e Lavínia estava ali para

recebê-lo com um beijo e um abraço.

— Senti tantas saudades! - exclamou ele. — Quase parecia que

esses chamados não me iam deixar em paz - queixou-se elevando-a

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no ar. — Amo-te - sussurrou-lhe sobre os lábios - amo-te, não quero

me afastar de você.

Cada vez que pronunciava essas palavras sentia que sua alma

se liberava, que tudo era possível. E Lavínia voava quando as ouvia.

— Amo-te! - respondeu ela com a mesma ansiedade. — Eu

tampouco quero me afastar de você!

Nick a deixou sobre a cama. Se não fosse porque ela já estava

vestida, e tão formosa, teria feito amor de novo.

— Está preciosa, que lindo vestido! – sussurrou. — Não fica

como seus próprios desenhos, mas é um começo - Lavínia acreditou

que Nick brincava, por isso riu, mas ele falava muito a sério. — Muito

lindo para rasgá-lo, mas primeiro pensei em te convidar para jantar e

ir ao cassino. Mais tarde lhe arranco isso - sussurrou-lhe ao ouvido.

Lavínia estremeceu só de escutá-lo.

— É o que mais quero - respondeu, feliz.

Ele recordava que o passeio que Lavínia tinha pretendido dar no

cassino de seu cruzeiro se interrompeu pela acusação de roubo, por

isso pensava em levá-la ali primeiro. Nick queria cumprir todos seus

desejos sem que ela tivesse que manifestá-los, queria conhecê-los

com um olhar.

Jantaram no restaurante mais fino do cruzeiro. Entretanto, os

dois eram muito singelos. Lavínia tinha terminado de comer, mas Nick

parecia nunca acabar. Tinha que repor energias de tantas que investia

fazendo amor.

— Vai comer isso? - perguntou assinalando com o garfo uma

parte de salmão rosado que Lavínia tinha deixado no prato.

— Não - replicou ela.

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— Dê-me isso.

Nick agachou um pouco a cabeça e só movendo os olhos olhou

para ambos os lados da mesa para comprovar que ninguém visse o

transpasse. Lavínia o imitou.

— Agora - ordenou-lhe ela em um sussurro, como dois

cúmplices de um assalto. Então ele cravou com o garfo e em um

rápido movimento teve a vítima em seu prato. Não lhe deu tempo de

nada, em seguida cortou e voltou a comer.

Lavínia riu. Sentia tanta ternura, tanto amor, que escapava por

seus olhos, sua pele e sua voz. Nick elevou o olhar para ela e lhe

sorriu com certa inocência. Enrugava-lhe a frente. Lavínia lhe

acariciou uma bochecha.

— Amo-te - disse-lhe ainda rindo. Tomou a mão e lhe beijou os

nódulos.

— Eu amo você - respondeu. O garçom os interrompeu.

— Necessita algo mais, senhor? - interrogou. Nick o olhou.

Jogou uma rápida olhada aos objetos da mesa e finalmente replicou:

— Sim. Sirva mais vinho a minha esposa, por favor.

Disse-o com tanta naturalidade que Lavínia estalou o coração.

Depois do jantar, acabaram na roleta. Nick falava com um

homem que o tinha entretido, enquanto Lavínia perdia e perdia

apostando sempre no oito. Tinha que sair em algum momento, a

sorte não podia esquivar-se tanto.

Um par de mãos fortes e cálidas se fecharam sobre sua cintura.

Lavínia se estremeceu com o contato, e o calor que se expandiu por

suas bochechas a obrigou a sorrir.

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— É uma completa perdedora - sussurrou-lhe Nick ao ouvido.

Lavínia riu.

— Mas ganhei o homem mais formoso do mundo, em todos os

sentidos – replicou. — Isso me converte em uma afortunada.

Nick lhe beijou o ombro nu, tirou-lhe duas fichas da mão e as

jogou sobre o limite entre o nove e o seis. Logo beijou a Lavínia na

cabeça enquanto voltava a abraçá-la para que as costas feminina se

recostassem sobre seu torso.

— Não têm que apostar nos plenos até te haver feito de certo

capital - explicou-lhe Nick. Ao parecer sua boa fortuna não dependia

só da sorte, mas também de estratégia. Claro, ele era muito racional

e sensível de uma vez, pensava em tudo. — Primeiro aposta em dois,

às cores, às dezenas...

Antes que o croupier pusesse a correr a bola, Lavínia se

apressou a mover sua aposta. Retirou-a do oito e a compartilhou

entre o trinta e cinco e o trinta e seis.

— Assim? - perguntou. Nick negou com a cabeça.

— Não - respondeu Nick. — Esses números são muito altos, não

sinto que vão sair.

— Apostas encerradass! - clamou a voz. A roleta girou. A sorte

pôs-se a correr. — Vermelho nove!

— Ganhou! - exclamou Lavínia para Nick. Ele sorriu, faltando

pudor.

Retiraram-se as fichas do tabuleiro e se abriram de novo as

apostas. Lavínia se estirou e depositou uma ficha entre o vinte e

cinco e o vinte e seis.

— E aí, oráculo? - perguntou a seguir. — Qual vai sair agora?

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— Não sei qual - respondeu Nick entrecerrando os olhos - mas

pressinto que será um vermelho.

— Eu apostei em um vermelho! - exclamou ela.

— Um vermelho que de maneira nenhuma será esse.

Lavínia fingiu uma manha de criança e ele a beijou na

bochecha.

— Já te disse que te amo? - perguntou-lhe ao ouvido.

— Não - mentiu ela. — Acreditei que jamais o diria.

— Amo-te.

— Vermelho quatorze - cantou o croupier.

Lavínia mordeu o lábio e riu. Era uma perdedora, sim, mas

tinha ganhado a felicidade.

Às oito, o navio tinha abandonado o porto para entrar outra vez

no oceano e percorrer assim a distância que os separava do seguinte

ponto, que era Fortaleza. Já quase amanhecia e no balcão do quarto,

Lavínia contemplava o horizonte onde despontavam umas linhas

amarelas e outras rosadas. Estava sentada em uma cadeira de

madeira, abrigada pelo acolchoado da cama. Não tinha dormido em

toda a noite.

Nick se aproximou vestido somente com as calças e a levantou

do assento para ocupá-lo ele e deixá-la sobre suas pernas, rodeada e

protegida por seus braços. Lavínia se aconchegou contra seu peito,

mas não deixou de olhar o céu.

— Estamos contemplando o amanhecer - sussurrou comovida.

Não só tinha retornado a esse lugar de sonhos, tal como tinha

prometido a si mesmo, mas sim, além disso, já não se sentia sozinha.

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Estava com Nick, estavam completamente apaixonados. Não podia

pedir mais a uma vida que isso, tinha-lhe dado tudo.

Pouco tempo depois, encontrou-se na cama, coberta pelo corpo

e os beijos de seu futuro marido, tão feliz que nem sequer se

precaveu de que a porta do quarto tinha ficado aberta e as cortinas

brancas se balançavam com serena vontade, impulsionadas pela

suave brisa do mar e amendoados pelo brilho do sol.

A única testemunha de tudo aquilo, sempre seria o vento.

Fim

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Sobre a autora

Anabella Franco (às vezes sob o pseudônimo Anna Karine) é

escritora de novela romântica e docente de Literatura nascida no

Quilmes, Buenos Aires, Argentina. Estudou Letras e Correção

Literária, e começou a escrever a tenra idade, o qual se converteu

logo em sua profissão. Leu sua primeira novela romântica aos quinze

anos e isso a apaixonou pelo gênero.

Desempenhou como jurada em diversos concursos literários e

como coordenadora de oficinas em escritura. Ganhou vários

certámenes de conto e publicou seu primeiro relato em 2005. Após

vieram a luz muitas publicações em antologias até que em 2011

publicou seu primeiro livro.

Sua última novela, "Más intenções", foi lançada no mercado em

2012 por Edições B na Argentina.

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