monografia - o jornalismo literário na revista piaui

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CENTRO UNIVERSITÁRIO DAS FACULDADES ASSOCIADAS DE ENSINO - FAE RODOLFO TIENGO FERNANDES NOVOS RUMOS DA NARRATIVA DE NÃO-FICÇÃO O JORNALISMO LITERÁRIO NA REVISTA PIAUÍ SÃO JOÃO DA BOA VISTA – SP 2007

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Page 1: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

CENTRO UNIVERSITÁRIO DAS FACULDADES

ASSOCIADAS DE ENSINO - FAE

RODOLFO TIENGO FERNANDES

NOVOS RUMOS DA NARRATIVA

DE NÃO-FICÇÃO O JORNALISMO LITERÁRIO NA REVISTA PIAUÍ

SÃO JOÃO DA BOA VISTA – SP

2007

Page 2: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

RODOLFO TIENGO FERNANDES

NOVOS RUMOS DA NARRATIVA DE NÃO-FICÇÃO

O JORNALISMO LITERÁRIO NA REVISTA PIAUÍ

Monografia apresentada como exigência final para a obtenção do título de bacharel em Comunicação Social - Jornalismo do UNIFAE, sob a orientação da professora Ms. Maria do Socorro Furtado Veloso.

SÃO JOÃO DA BOA VISTA – SP

2007

Page 3: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

RODOLFO TIENGO FERNANDES

NOVOS RUMOS DA NARRATIVA DE NÃO-FICÇÃO O JORNALISMO LITERÁRIO NA REVISTA PIAUÍ

Esta monografia foi apresentada como trabalho de conclusão de curso de

Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, do Centro Universitário das Faculdades

Associadas de Ensino (Unifae) e foi avaliada pela banca examinadora integrada pelos

professores abaixo nomeados.

São João da Boa Vista (SP), 23 de outubro de 2007.

Professores que ocuparam a banca examinadora:

___________________________________

Prof. (a) Maria do Socorro Furtado Veloso

Presidente

Centro Universitário das Faculdades Associadas de Ensino – Unifae

___________________________________

Prof. Nilton Queiroz

Examinador

Centro Universitário das Faculdades Associadas de Ensino – Unifae

___________________________________

Prof. Francisco de Assis Carvalho Arten

Examinador

Centro Universitário das Faculdades Associadas de Ensino – Unifae

Page 4: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

AGRADECIMENTOS

Mais uma fase de minha vida é concluída. Foi um período diferente, em que

amadureci, acredito. Nesses quatro anos de faculdade, pude aprimorar meus conhecimentos,

mas, muito além disso, conheci pessoas especiais que levarei comigo para o resto da vida.

Agradeço a Deus pela família que tenho, minha razão de vida. Sem ela, a existência

não teria sentido algum. A dedicação de meu pai e minha mãe nos momentos mais difíceis foi

fundamental. Não há como deixar de ressaltar a importância da professora e orientadora

Maria do Socorro Veloso, jornalista de grande sagacidade, uma pessoa que sempre me

incentivou à pesquisa.

Um agradecimento especial à minha amiga Cris Gonçalves, com quem convivi muito

por conta das atividades acadêmicas. Apesar de preocupados com diferentes trabalhos,

integramos uma verdadeira equipe, ao lado da professora Socorro, cujo objetivo maior foi o

aprimoramento profissional e acadêmico que confluía para a conclusão das monografias.

Um abraço também a todos os meus amigos que de alguma maneira contribuíram com

meu trabalho, levantando dúvidas, suscitando reflexões; aos colegas e amigos do jornal

Democrata, Paulo Flamínio e Luís Trinca Filho, muito obrigado. Agradeço também a Raquel

Zangrandi, da Piauí, pela atenção dada aos meus questionamentos.

Page 5: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

“Há literatura em qualquer forma de vida. Para o jornalismo

então, a única alternativa é a ressurreição. Precisamos arrancá-lo da tumba”.

(Antonio Pastoriza)

Page 6: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

RESUMO

Este trabalho visa estudar a revista Piauí sob a ótica do Jornalismo Literário. O

propósito é analisar a linguagem adotada em quatro textos, levando-se em conta

características básicas da literatura aplicadas ao campo do jornalismo. As análises se baseiam

em características do New Journalism norte-americano da década de 1960, alinhavadas por

Tom Wolfe, e nos conceitos de Edvaldo Pereira Lima. Pretende-se oferecer, com esta

monografia, mais um estudo ao campo das narrativas de não-ficção que despontam no cenário

contemporâneo.

PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo Literário - New Journalism – Revista Piauí

Page 7: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

ABSTRACT

The intention of this work is to study the Literary Journalism through the Piauí

magazine. The target is to analyze the language that was used in four texts, considering the

basic attributes of literature applied in the journalism. The characteristics have source in the

60’s North American New Journalism. In addition, the concepts developed by Edvaldo

Pereira Lima are used too. With this monograph, the idea is to offer one issue to the

knowledge area that studies the non-fiction narrative.

KEY WORDS: Literary Journalism – New Journalism – Piauí Magazine

Page 8: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

SUMÁRIO

Introdução................................................................................................................................09

Métodos utilizados na pesquisa.......................................................................................10

Descrição dos capítulos...................................................................................................11

I. Jornalismo Literário: conceituação...................................................................................13

1.1. Reportagem: o canal do Jornalismo Literário...........................................................16

1.2. Características do Jornalismo Literário....................................................................20

1.3. A questão da ética jornalística..................................................................................23

1.4. Novas vozes no cenário contemporâneo..................................................................27

II. Confluências entre Jornalismo e Literatura....................................................................31

2.1. O desenvolvimento da reportagem no Brasil.........................................................35

2.1.1. Revista Realidade, escola do jornalismo brasileiro.................................38 2.1.2. A ficção como relato da realidade...........................................................40

2.2. O surgimento do New Journalism nos EUA..........................................................43

2.3. Livro-reportagem como extensão do Jornalismo Literário....................................46

III. A O surgimento da Piauí..................................................................................................48

3.1. As seções da revista...........................................................................................51

IV. Análise textual...................................................................................................................58

4.1. “O cheiro de cimento me inebria” (Danuza Leão, outubro de 2006).....................58

4.2. “A São Silvestre do Ziriguidum”, (Vanessa Bárbara, janeiro de 2007).................67

4.3. “Como se jogar na balada”, (Daniela Pinheiro, abril de 2007)..............................72

4.4. “O bagulho é doido, tá ligado?”, (Luiz Maklouf Carvalho, julho de 2007)...........82

Considerações finais................................................................................................................94

Referências...............................................................................................................................97

Page 9: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

Cronograma de atividades...................................................................................................102

Anexos....................................................................................................................................104

Apêndice – “Euclides da Cunha e o Jornalismo Literário: Reflexões sobre a produção de

novas narrativas reais”.........................................................................................................135

Page 10: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

Introdução

Desde os primórdios da imprensa, as diferentes tentativas de manifestação do

pensamento sempre guardaram em si uma angústia produtiva que impulsionou escritores a

propalarem idéias, a denunciar as mazelas do mundo, a fazer crítica e a descrever os fatos

observados. Por mais que o objeto a ser descrito seja quase sempre o mesmo, e o local onde

acontecem os fatos não mude, o modo de retratar os conhecimentos diferencia os produtos da

imprensa.

Neste cenário, a revista Piauí destaca-se por ser um projeto editorial que pretende

propor um padrão literário a seus textos e enfoques diferentes na agenda jornalística. Surgida

em outubro de 2006, por iniciativa do cineasta João Moreira Salles, preza pela densidade

textual e imprime nas reportagens características extraídas da literatura. A publicação

questiona os paradigmas referentes à objetividade jornalística, evidenciando o papel do

repórter, e sua subjetividade, como peça fundamental no processo de produção das matérias.

Segundo Faro (1999, p. 39), “a expressão jornalística é um processo de adaptação da

reflexão interior às possibilidades da própria expressão”. Ou seja, por mais que se tente

circunscrever a realidade a uma série de fatos objetivos, jamais se conseguirá chegar a uma

verdade absoluta. A própria existência carrega o repórter de incertezas, crenças, pontos de

vista e diferentes verdades. Esse quadro visto como caótico, do ponto de vista cultural e

ideológico, provoca diversas interpretações e reflexões. É preponderante para um bom

trabalho jornalístico a capacidade do repórter de apreender e compreender a complexidade do

real. Destacam-se, portanto, aqueles que conseguem fazer isso com sensibilidade.

Dentre os escritores mais contumazes da imprensa, que conseguiram extrair com

destreza e profundidade os diferentes ângulos proporcionados pela realidade, estão os que

fazem Jornalismo Literário. Neste trabalho, a Piauí será estudada sob o ponto de vista da

narrativa jornalística que se aproxima da literatura. O jornalismo e a literatura sempre

guardaram vínculos desde os tempos anteriores à industrialização da imprensa. Esta

correlação deu origem ao que nos dias de hoje se convenciona chamar de Jornalismo

Literário.

Sem dúvida, com o desenvolvimento da imprensa e da reportagem, dezenas de

escritores floresceram no cenário jornalístico. O Jornalismo Literário, impregnado na grande

reportagem, adquiriu expressão sobretudo nos Estados Unidos, na década de 1960, com

escritores como Tom Wolfe, Norman Mailer, Gay Talese, Joseph Mitchell, Truman Capote,

Lillian Ross, entre outros, os quais deram origem ao New Journalism.

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Page 11: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

Em 2006, dentro de uma nova perspectiva do jornalismo contemporâneo, foi às bancas

a revista Piauí, pela editora Alvinegra, do Rio de Janeiro. O cineasta João Moreira Salles,

admirador do New Journalism, coloca em prática uma idéia guardada há anos. A publicação

mensal nasceu tendo como proposta editorial propiciar um espaço para a produção de textos

jornalísticos densos e trabalhados, capazes de valorizar a linguagem de cada repórter e

introduzir novas visões da realidade. Em entrevista ao portal Digestivo Cultural, Salles afirma

que “o bom texto nada mais é do que uma história bem contada. E histórias bem contadas

nunca saem de moda. A Piauí busca isso. Temas interessantes contados com verve, drama,

tensão narrativa, e que empreguem um vocabulário que exceda cem palavras”.1

Fazer um estudo a respeito de tal projeto editorial é uma tentativa de discutir um novo

direcionamento para o jornalismo, somando-se ao conjunto de estudos que têm sido feitos a

respeito das narrativas de não-ficção. Discutir o Jornalismo Literário é discutir a

sobrevivência da imprensa, num cenário influenciado pelas novas mídias audiovisuais.

Métodos utilizados na pesquisa

Para Ander-Egg, pesquisa “é um procedimento reflexivo sistemático, controlado e

crítico, que permite descobrir novos fatos ou dados, relações ou leis, em qualquer campo do

conhecimento” (ANDER-EGG, 1978, p.78 apud MARCONI e LAKATOS, 2002, p.15).

A pesquisa científica precisa ser conduzida de maneira sistemática para que revele ao

pesquisador os preceitos do fato social que pretende comprovar. “A pesquisa, portanto, é um

procedimento formal, com método de pensamento reflexivo, que requer um tratamento

científico e se constitui no caminho para se conhecer a realidade ou para descobrir verdades

parciais” (2002, p.15).

Este trabalho pode ser enquadrado no conceito de “pesquisa básica pura ou

fundamental”, que, segundo Ander-Egg, consiste na procura pelo progresso científico, na

ampliação de conhecimentos teóricos, sem que haja preocupação imediata de aplicação

prática. “É a pesquisa formal, tendo em vista generalizações, princípios, leis” (2002, p.20).

Conceitua-se este trabalho como “monodisciplinar”, ou seja, realizado “apenas em um campo

do conhecimento científico” (MARCONI e LAKATOS, 2002, p.21) — neste caso, dentro dos

estudos das Ciências Humanas, aplicados à Comunicação Social e mais especificamente ao

Jornalismo.

1 Disponível em http://www.digestivocultural.com/entrevistas/entrevista.asp?codigo=8. Acesso em 19 de março de 2007.

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Page 12: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

O primeiro passo para o encaminhamento do estudo foi a realização de pesquisa

bibliográfica ou de fontes secundárias, que compreende:

(...) toda bibliografia já tornada pública em relação ao tema de estudo, desde publicações avulsas, boletins, jornais, revistas, livros, pesquisas, monografias, teses, material cartográfico etc., até meios de comunicação orais: rádio, gravações em fita magnética e audiovisuais: filmes e televisão (MARCONI e LAKATOS, 2002, p.71).

Esta fase do trabalho tem por objetivo “conhecer e analisar as principais contribuições

teóricas existentes sobre um determinado tema ou problema, tornando-se um instrumento

indispensável para qualquer tipo de pesquisa” (KÖCHE, 2004, p.122).

Outra fase importante refere-se às análises feitas em quatro textos publicados pela

Piauí, buscando-se evidenciar características do Jornalismo Literário. Foram selecionadas

matérias com base nos seguintes critérios: (a) Textos de autores brasileiros; (b) Prioridade

para matérias que se enquadram na modalidade reportagem; (c) Seleção de quatro edições

trimestrais, entre outubro de 2006 e julho de 2007.

A entrevista foi outra ferramenta metodológica usada na pesquisa. No caso das

entrevistas realizadas por e-mail, estas se encaixam na modalidade “padronizada ou

estruturada”, na qual, segundo Marconi e Lakatos, “o entrevistador segue um roteiro

previamente estabelecido” e “as perguntas feitas ao indivíduo são predeterminadas” (2002,

p.93).

Foi realizada também uma entrevista classificada por Marconi e Lakatos como “não-

estruturada”, em que “as perguntas são abertas e podem ser respondidas dentro de uma

conversação informal”, porém do tipo “focalizada”, em que “há um roteiro de tópicos

relativos ao problema que se vai estudar” (2002, p.94).

Descrição dos capítulos

O primeiro capítulo traz uma breve conceituação de Jornalismo Literário, colocando

em evidência a importância do Novo Jornalismo para a definição de suas bases estilísticas.

Além disso, faz-se uma explanação sobre a reportagem, modalidade em que o estilo está mais

presente, por permitir maior flexibilidade, dentre outras qualidades, diferenciando-se da

notícia. Em seguida, há um levantamento das principais características da narrativa de não-

ficção, que servem de base para a análise dos textos da revista Piauí.

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Page 13: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

No segundo capítulo, disserta-se sobre as confluências e diferenças existentes entre

Jornalismo e Literatura, tanto do ponto de vista profissional quanto estilístico. Em seguida,

traça-se uma breve linha histórica do Jornalismo Literário, que inclui desde os escritores-

jornalistas brasileiros do início do século 19 até o boom editorial dos livros-reportagem a

partir da década de 1980.

O terceiro capítulo traz uma abordagem sobre o surgimento da revista Piauí, suas

seções e principais características editoriais. No último capítulo, seguem as análises de quatro

reportagens, em que ficam evidentes atributos da narrativa literária.

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Page 14: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

I. Jornalismo Literário: conceituação

O Jornalismo Literário é uma modalidade circunscrita à imprensa que se desenvolve

pela utilização de técnicas da narrativa literária e se propõe a possibilitar angulações

diferentes da realidade. É um subgênero do jornalismo que se vale da transferência dos

recursos lingüísticos da ficção para a não-ficção. Segundo Vilas Boas (1996, p.60), “significa,

grosso modo, narrar com efeito, com beleza e imaginação”, “sem perder de vista os fatos”.

Segundo Pena (2006, p.13), o conceito é bastante amplo:

Significa potencializar os recursos do Jornalismo, ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade, exercer plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lead, evitar os definidores primários e, principalmente, garantir perenidade e profundidade aos relatos.

O autor afirma que esta prática não deve fazer com que o jornalista ignore aquilo que

aprendeu na imprensa diária. Ele apenas deve desenvolver as técnicas da narrativa para

constituir novas estratégias profissionais. Entretanto, “os velhos e bons princípios da redação

continuam extremamente importantes, como, por exemplo, a apuração rigorosa, a observação

atenta, a abordagem ética e a capacidade de se expressar claramente” (PENA, 2006, p.14).

O portal Texto Vivo destaca algumas habilidades do repórter a serem colocadas em

evidência no que tange ao estilo. Tendo como sinônimos mais comuns os termos “literatura

de realidade”, “literatura de não-ficção” e “literatura criativa de não-ficção”, Jornalismo

Literário é uma:

Modalidade de prática da reportagem de profundidade e do ensaio jornalístico utilizando recursos de observação e redação originários da (ou inspirados pela) literatura. Traços básicos: imersão do repórter na realidade, voz autoral, estilo, precisão de dados e informações, uso de símbolos (inclusive metáforas), digressão e humanização. Modalidade conhecida também como Jornalismo Narrativo.2

A maior dificuldade para conceituar o tema é que esta tarefa relaciona-se diretamente

com o desenrolar histórico da imprensa, ou seja, o Jornalismo Literário não teve suas regras

estabelecidas por um único círculo de autores, mas sim por vários, dentro de diversas fases do

segmento. Segundo Herscovitz, “vários escritores produziram uma variedade de estilos de

2 “Conceitos”. Disponível em http://www.textovivo.com.br. Acesso em 11 de março de 2007.

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Page 15: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

jornalismo literário. Portanto, não existe uma receita exata de como fazê-lo nem uma

definição clara do que realmente é”.3

Pena (2006, p.20) afirma ser complicada a tarefa de conceituar o termo, que integra

dois discursos diferentes: o jornalístico e o literário. “Ao longo da História, vários teóricos

tentaram definir essa junção como um gênero específico”, mas, por ser praticamente

impossível chegar a um ponto conclusivo, “a única alternativa é propor uma aproximação

conceitual, identificando subdivisões possíveis de acordo com o momento histórico”.

Segundo Pena (2006, p.20), a designação Jornalismo Literário suscita diferentes

interpretações, a exemplo da Espanha, onde o conceito se subdivide em “(...) dois gêneros

específicos: periodismo de creación e periodismo informativo de creación. O primeiro está

vinculado a textos exclusivamente literários, apenas veiculados em jornais. Já o segundo une a

finalidade informativa com uma estética narrativa apurada”. No Brasil, o termo encontra

outras variações metodológicas.

Para alguns autores, trata-se simplesmente do período da história do Jornalismo em que os escritores assumiram as funções de editores, articulistas, cronistas e autores de folhetins, mais especificamente no século XIX. Para outros, refere-se à crítica de obras literárias veiculada em jornais. Há ainda os que identificam o conceito com o movimento conhecido como New Journalism, iniciado nas redações americanas da década de 1960. E também os que incluem as biografias, os romances-reportagem e a ficção-jornalística (PENA, 2006, p.21).

Nos EUA, a modalidade que mistura literatura com jornalismo tem nomes diferentes.

Suzuki (In HERSEY, 2002, p.170) afirma que “na tradição americana, esse tipo híbrido de

narrativa tem várias denominações: jornalismo literário, literatura de não-ficção, ensaio,

jornalismo de autor, novo jornalismo”.

Apesar de tantas propostas conceituais, Lima (1995, p.142) afirma que “é de fato a

vertente do realismo social o que irá impulsionar sobremaneira o jornalismo literário”, a partir

dos autores ficcionistas que contribuem para a imprensa com peças jornalísticas já no século

19. Para muitos autores, Jornalismo Literário e New Journalism significam a mesma coisa. O

jornalista Bernardo Scartezini é um dos que acreditam nesta idéia.

Esse tal de novo jornalismo - ou jornalismo literário, são sinônimos - surgiu na imprensa norte-americana em algum ponto impreciso dos anos 50, sendo referendado em forma de livro no best-seller A sangue frio (1966). Pode-se definir

3 HERSCOVITZ, Heloiza Golbspan. “O jornalismo mágico de Gabriel Garcia Márquez”. Disponível em

http://reposcom.portcom.intercom.org.br/bitstream/1904/1245/1/R0085-1.pdf. Acesso em 15 de abril de 2007.

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Page 16: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

novo jornalismo como o texto jornalístico que toma emprestado algumas técnicas da literatura. Grosso modo. É o que fazem - ou já fizeram em algum ponto da carreira - Norman Mailer, Saul Bellow, Hunter S. Thompson, entre outros, além dos supracitados, além do próprio Tom Wolfe e além de Philip Roth (...)4

A série Jornalismo Literário, lançada pela editora Companhia das Letras em 2002, é

um exemplo desta aproximação conceitual existente entre Jornalismo Literário e New

Journalism. A edição especial inclui os principais nomes do Novo Jornalismo, entre eles John

Hersey (Hiroshima), Truman Capote (A sangue frio), Gay Talese (Fama e anonimato) e Tom

Wolfe (Radical chique e o novo jornalismo), além de jornalistas brasileiros adeptos ao gênero,

a exemplo de Zuenir Ventura e Joel Silveira – este, falecido em agosto de 2007. A proposta

tem se destacado por reeditar reportagens que são tidas como as mais importantes do século

20.

Esta proximidade entre os dois termos ocorre devido à influência que o New

Journalism exerceu sobre o Jornalismo Literário, especialmente no Brasil. “Capote, Tom

Wolfe (...) e outros repórteres-escritores marcaram os anos 60, quando surgiu o Novo

Jornalismo nos Estados Unidos, movimento que por aqui [Brasil] encontrou muitos e bons

seguidores” (DANTAS, 2004, p.12).

Após a efervescência literária da década de 1960 o Novo Jornalismo se enfraqueceu

nos Estados Unidos, mas deixou referências importantes. Vilas Boas (1996, p.92) afirma que

o movimento norte-americano encontrou certo esvaziamento no final da década de 70, mas

deixou profundas raízes de atualização do Jornalismo Literário.

A literatura de não-ficção, como ferramenta de entendimento da realidade — que se

vale da verdade e não da verossimilhança —, já se fazia presente no Brasil por intermédio de

algumas manifestações antes da década de 1960, o que permite questionar a afirmação de que

Jornalismo Literário e New Journalism são sinônimos.

É um equívoco pensar, por exemplo, que jornalismo literário é sinônimo de new journalism, ou que o jornalismo literário começou com o new journalism, nos anos 1960. Errado. Jornalismo literário existe pelo menos desde o século 19. O Brasil não tem tradição em jornalismo literário, mas teve também suas experiências, como as reportagens de Euclides de Cunha e de João do Rio e algumas matérias de O Cruzeiro, de Realidade e do Jornal da Tarde em seu início.5

4 SCARTEZINI, Bernardo. “Bom de prosa”. Disponível em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=324ASP019. Acesso em 15 de abril de 2007. 5 LIMA, Paulo. “O jornalismo é feito de muitos conteúdos não noticiosos”. Disponível em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=371AZL004. Acesso em 14 de abril de 2007.

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Page 17: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

O New Journalism, segundo o portal Texto Vivo, é um período específico do

Jornalismo Literário, que muito influenciou o que seria produzido futuramente na narrativa

jornalística.

Fase histórica e efervescente de renovação do JL nas décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos, caracterizada pela introdução de novas técnicas narrativas (fluxo de consciência e ponto de vista autobiográfico), grande exposição pública e popularidade, reivindicação de qualidade equivalente à literatura. Abundantemente praticada em revistas de reportagem especializadas em JL, publicações alternativas, livros-reportagem e até mesmo em veículos da grande imprensa (...).6

Para evidenciar a presença do Jornalismo Literário nas páginas da revista Piauí, serão

procurados nas reportagens da revista, sobretudo, quatro recursos lingüísticos básicos

detectados por Tom Wolfe (2005) no New Journalism. São eles: descrição cena a cena,

diálogos, ponto de vista de terceira pessoa e descrição de detalhes.

A metodologia parte do entendimento de que, se Novo Jornalismo e Jornalismo

Literário não são necessariamente o mesmo conceito, é possível afirmar que muito se

aproximam. Parte-se do princípio de que o primeiro, o New Journalism, foi um divisor de

águas no desenvolvimento do segundo, o Jornalismo Literário, por estabelecer as premissas

do que se produziria no segmento posteriormente.

1.1. Reportagem: o canal do Jornalismo Literário

O principal gênero a impulsionar o Jornalismo Literário, tanto no final do século 19,

quanto na atualidade, é a reportagem.

Segundo Marques (2003, p.17, apud FARO, p.64), este gênero jornalístico se

diferencia da notícia por se basear em outras diretrizes na busca da informação. “A notícia é o

relato integral de um fato que já eclodiu no organismo social. A reportagem é o retrato

ampliado de um acontecimento que já repercutiu no organismo social e produziu alterações

que são percebidas pela instituição jornalística”.

Ferrari e Sodré (1986, p.11) também discutem as diferenças existentes entre os dois

tipos de texto jornalístico. Os autores afirmam que a reportagem, “a forma-narrativa do

veículo impresso”, é resultante de um aprofundamento da notícia, tanto no que diz respeito à

apuração de dados quanto à maneira como se conduz a narrativa dos fatos.

6 “Conceitos”. Disponível em http://www.textovivo.com.br. Acesso em 11 de março de 2007.

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Page 18: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

O desdobramento das clássicas perguntas a que a notícia pretende responder (quem, o quê, como, quando, onde, por quê) constituirá de pleno direito uma narrativa, não mais regida pelo imaginário, como na literatura de ficção, mas pela realidade factual do dia-a-dia, pelos pontos rítmicos do cotidiano que, discursivamente trabalhados, tornam-se reportagem (FERRARI e SODRÉ, 1986, p.11).

As diferenças entre reportagem e notícia ficam evidentes na questão da factualidade e

no tipo de abordagem que se quer fazer dos acontecimentos. Segundo Ferrari e Sodré (1986,

p.18), “embora a reportagem não prescinda de atualidade, esta não terá o mesmo caráter

imediato que determina a notícia (...) a reportagem oferece detalhamento e contextualização

àquilo que já foi anunciado (...)”.

Notícia e reportagem seriam, portanto, gêneros distintos. Segundo Lage7 (1993, p.61,

apud KINDERMANN, 2003, p.42), “a notícia cuida da cobertura de um fato (...) enquanto

que a reportagem faz um levantamento de um assunto, conforme ângulo estabelecido”.

Para Kindermann (2003, p.38), a segunda modalidade “pode ser caracterizada em duas

linhas gerais: (a) como uma notícia ampliada e (b) como um gênero autônomo”.8

Lima (1995, p.27) também aponta diferenças: “Portanto, a reportagem, enquanto

gênero, pressupõe o exame do estilo com que o jornalista articula sua mensagem. Significa

também um certo grau de extensão e/ou aprofundamento do relato, quando comparado à

notícia”.

De acordo com Ferrari e Sodré (1986, p.15), as principais características da

reportagem são: (a) predominância da forma narrativa; (b) humanização do relato; (c) texto de

natureza impressionista e (d) objetividade dos fatos narrados. Estas podem predominar no

texto umas mais que as outras.

Por conta dessas qualidades, a reportagem se destaca como o principal canal do

Jornalismo Literário. O jornalista e escritor argentino Tomás Eloy Martinez, contudo,

ressalva: “Uma boa reportagem tampouco é um setor da literatura, ainda que devesse ter a

mesma intensidade de linguagem e a mesma capacidade de sedução dos grandes textos

literários“.9

Segundo Lage (1999, p.47), a reportagem apresenta maior espaço para o

desenvolvimento da criatividade.

7 Consta nas referências a mesma obra reeditada em 1999. 8 KINDERMANN, Conceição Aparecida. “A reportagem jornalística no Jornal do Brasil: desvendando as variantes do gênero”. Disponível em http://busca.unisul.br/pdf/69876_Conceicao.pdf. Acesso em 24 de abril de 2007. 9 MARTINEZ, Tomás Eloy. “Crônica e reportagem: Em busca de um jornalismo para o século XXI”. http://www.ucb.br/comsocial/mba/Textos-Armando.pdf. Acesso em 24 de abril de 2007.

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Page 19: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

O estilo da reportagem é menos rígido do que o da notícia: varia com o veículo, o público, o assunto. Podem-se dispor as informações por ordem decrescente de importância, mas também narrar a história, como um conto ou fragmento de romance (...); em certos casos, admite-se que o repórter conte o que viu na primeira pessoa. A linguagem também é mais livre: os novos jornalistas americanos (Breslin, Mailer, Capote) chegam a adotar técnicas literárias para abordagem mais humana e reveladora da realidade.

Para Vilas Boas (1996, p.103), a reportagem narrativa é a que mais tem proximidade

com a literatura, na qual “algumas técnicas literárias podem ser apropriadas de modo mais

marcante. Trata-se de um texto informativo e, ao mesmo tempo, recheado de ‘figuras’”.

Ferrari e Sodré (1986, p.75) denominam “reportagem-conto” a modalidade que mais

emprega recursos da literatura para a produção jornalística. Segundo os autores, os dois estilos

que se misturam em um único gênero guardam muitas semelhanças. “(...) As duas formas

muito se assemelham: pode-se dizer que a reportagem é o conto jornalístico — um modo

especial de propiciar a personalização da informação ou aquilo que também se indica como

‘interesse humano’”.

A típica reportagem-conto tem uma estrutura mais orgânica. Geralmente particulariza a ação em torno de um único personagem, que atua durante toda a narrativa. Os dados documentais entram dissimuladamente na história e o texto aproxima-se tanto do conto, que incorpora até fluxos de consciência dos personagens (1986, p.86).

Dentro desta avaliação, é possível listar algumas qualidades encontradas tanto na

reportagem quanto no conto (FERRARI e SODRÉ, 1986, p.75-76). São elas:

I) Força: chama a atenção do leitor e faz com que ele chegue ao fim da narrativa;

II) Clareza: relaciona-se com a objetividade da narração, com o objetivo de facilitar a

compreensão imediata.

III) Condensação: é o mesmo que criar uma aproximação entre os elementos em um

segmento narrativo.

IV) Tensão: é saber dosar os elementos do texto, fazendo com que “vá ao ponto de

interesse máximo da história”.

V) Novidade: acontecimento inédito ou abordagem original que cria um texto

imprevisível.

18

Page 20: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

Segundo Lima (2004, p.99), o gênero em questão é o caminho ideal para que o

jornalismo promova ao seu público uma leitura mais abrangente da realidade, permitindo a ele

vislumbrar a complexidade do real. É um projeto inovador em que se deve “abrir os olhos

para a visão mais completa da realidade e propor ao leitor (...) uma leitura abrangente dos

acontecimentos, das situações e dos personagens, imersos num universo complexo onde o real

concreto e o imaginário (...) combinam-se”.

Para Edvaldo Pereira Lima, o Jornalismo Literário deve avançar ao patamar do

aprofundamento e da compreensão da atualidade. Esta tarefa, segundo ele, pode ser cumprida

com mais nitidez na modalidade livro-reportagem10 — assunto abordado no capítulo 2.

Resta acrescentar que o principal legado do new journalism — a de que a melhor reportagem, no sentido de captação de campo e fidelidade para com o real, pode combinar-se muito bem com a melhor técnica literária — encontrou sua mais refinada expressão no livro-reportagem (LIMA, 1995, p.159).

É por absorver os diferentes ângulos da mesma realidade que a reportagem narrativa

— em que predomina o texto literário — destaca-se como um canal de valorização do ser

humano. A busca pela objetividade é questionada durante o processo de elaboração da

reportagem para que novas visões sejam proporcionadas dentro do contexto jornalístico e, ao

mesmo tempo, os textos tenham consistência, perenidade e criatividade. Gay Talese, um dos

mais importantes nomes do New Journalism, questiona as premissas do jornalismo

tradicional, ao valorizar a reportagem de modo que transcenda o plano noticioso.

É jornalismo. Mas não o jornalismo atual, predominante, esse em que o repórter, em nome da imprescindível busca da objetividade, se sente desobrigado de servir ao leitor mais que uma pilha de informações descarnadas — como se fosse isso a realidade. Como se a informação devesse ser, goela abaixo do leitor, uma espécie de pílula para astronauta, que nutre sem a obrigação de ser palatável. Como se, provindos da mesma raiz latina, ‘saber’ e ‘sabor’ não pudessem andar juntos (TALESE, 2004, p.524).

Não obstante, para que o gênero alcance importância dentro das perspectivas humanas,

artísticas e de compreensão múltipla da realidade, exige-se dos jornalistas literários um

pulsante processo de apuração e o primor pela estética textual, além do compromisso 10 Conceito: “Veículo jornalístico impresso não-periódico contendo matéria produzida em formato de reportagem, grande-reportagem ou ensaio. Caracteriza-se pela autoria e pela liberdade de pauta, captação, texto e edição com que os autores podem trabalhar. Entre os tipos de livros-reportagem mais comuns estão a reportagem biográfica, o livro-reportagem-denúncia e o livro-reportagem-história”. Disponível em http://www.textovivo.com.br . Acesso em 9 de maio de 2007.

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Page 21: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

constante com a verdade e a ética. No que se refere à linguagem, a narrativa de não-ficção se

submeteu a diversas experiências ao longo das décadas.

1.2 Características do Jornalismo Literário

As narrativas de não-ficção, tidas como as que mais se aproximam da literatura, sem

perder de vista a realidade dos fatos, surgiram como um contraponto à tradicional fórmula da

pirâmide invertida. Segundo o Manual Geral da Redação da Folha de S.Paulo (1987, p.157),

esse tipo de estrutura hierarquiza as informações do texto jornalístico, deixando os dados

considerados menos relevantes para o final. O sistema de redação em jornalismo mais

disseminado no mundo ocidental foi criado para atender às agências de notícias. Os jornais

podiam, conforme suas necessidades, cortar alguns parágrafos dos textos sem prejudicar os

dados mais importantes.

Até hoje predomina a estratégia do lead, criada no início do século 20 “com o intuito

de conferir objetividade à imprensa” (PENA, 2006, p.14). Foi Walter Lippman que, em 1922,

lançou o livro Public opinion, acreditando que a técnica das seis questões básicas (quem, o

quê, como, onde, quando e por quê) “possibilitaria uma certa cientificidade nas páginas dos

jornais, amenizando a influência da subjetividade por meio de um recurso muito simples”

(PENA, 2006, p.15).

Sempre houve, porém, manifestações dentro da imprensa tentando apontar outros

caminhos para a narrativa jornalística. Sem dúvida, um dos movimentos que mais sinalizaram

essa busca por uma linguagem renovada, que valoriza o conteúdo e a estética do texto, foi o

New Journalism. Surgido nos EUA, ficou conhecido a partir da década de 1960, quando

muitos escritores começaram a publicar matérias carregadas de estilo autoral, principalmente

na revista New Yorker.

Mediante a ascensão desse subgênero do jornalismo, o escritor e PHD em literatura,

Tom Wolfe, formulou as principais características que se observavam naquele momento —

construção cena a cena, descrição de status de vida, diálogos e ponto de vista da terceira

pessoa — e que serviram de referência para o que seria produzido posteriormente. Sua obra

tornou-se base para o entendimento do Novo Jornalismo, repercutido sobremaneira no Brasil.

Segundo Wolfe, as estruturas textuais, que criam maior tensão e apreensão para o

leitor, foram herdadas do realismo social, praticado por romancistas europeus do século 19,

tais como Fielding, Smollett, Balzac, Dickens e Gogol (2005, p.53).

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Page 22: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

O básico era a construção cena a cena, contar a história passando de cena para cena e recorrendo o mínimo possível à mera narrativa histórica. Daí os feitos da reportagem às vezes extraordinários que os novos jornalistas empreendiam: para poder testemunhar de fato as cenas da vida das outras pessoas no momento em que ocorriam — registrando o diálogo completo, o que constituía o recurso número dois.

Além da construção integral das cenas e da reconstituição de diálogos, Wolfe

enxergava duas outras ferramentas de transformação estética do texto jornalístico. “O terceiro

recurso era o chamado ‘ponto de vista da terceira pessoa’, a técnica de apresentar cada cena

ao leitor por intermédio dos olhos de um personagem particular, dando ao leitor a sensação de

estar dentro da cabeça do personagem” (2005, p.54).

Ainda acerca desta característica, Tom Wolfe afirma que ele, assim como outros

autores, reproduzia vários pontos de vista dentro da mesma cena — inclusive o próprio — e

se valia de uma liberdade incomum na imprensa da época, utilizando o “fluxo de

consciência”, técnica narrativa que permite descrever os pensamentos de outras pessoas.

Wolfe (2005, p.57) afirma:

Neste novo Jornalismo não há regras sacerdotais em nenhum caso... Se o jornalista quer mudar o ponto de vista da terceira pessoa para o ponto de vista da primeira pessoa na mesma cena, ou entrar e sair dos pontos de vista de diferentes personagens, ou até da voz onisciente do narrador para o fluxo de consciência de alguma outra pessoa — como ocorre n’O teste do ácido do refresco elétrico [reportagem escrita por Wolfe] —, ele simplesmente faz isso.

Tais estratégias, para o autor de Radical chique e o novo jornalismo, resultaram na

valorização da figura do repórter como um elemento ativo no texto. Até então, o narrador, no

modelo convencional de reportagem, mantinha-se o máximo possível oculto em uma trama

monótona.

A voz do narrador, na verdade, era um dos maiores problemas na escritura de não-ficção. A maioria dos autores de não-ficção escrevia, sem saber, dentro da tradição britânica centenária, na qual fica entendido que o narrador tem de assumir uma voz calma, cultivada e, de fato, polida. (...) O negócio era o ‘understatement’ (discrição) (WOLFE, 2005, p.54).

A última característica, tão importante quanto as outras, está relacionada à descrição

do ambiente em que as personagens reais se inserem, seus objetos pessoais, trejeitos e roupas,

elementos que ajudam o leitor a compreender com mais profundidade a personagem.

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Page 23: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

O quarto recurso sempre foi o menos entendido. Trata-se do registro dos gestos, hábitos, maneiras, costumes, estilos de mobília, roupas, decoração, maneiras de viajar, comer, manter a casa, modo de se comportar com os filhos, com os criados, com os superiores, com os inferiores, com os pares, além dos vários ares, olhares, poses, estilos de andar e outros detalhes simbólicos do dia-a-dia que possam existir dentro de uma cena (WOLFE, 2005, p.55).

Por conta da repercussão que o New Journalism alcançou, as quatro técnicas tornaram-

se basais para a continuidade dos estudos na área. O professor Edvaldo Pereira Lima atualizou

os conceitos de Tom Wolfe e deu-lhes um direcionamento diferenciado. Lima em muito

contribuiu para uma aprofundada terminologia da literatura de não-ficção, dando um caráter

multidisciplinar às suas pesquisas, ao relacionar estruturas de linguagem e conceitos de outras

áreas do conhecimento. Desenvolveu diversas propostas visando equilibrar questões

lingüísticas, históricas e funcionais das narrativas de não-ficção.

O autor reestrutura as características básicas do New Journalism, de acordo com o que

ele observa na aplicabilidade atual do gênero, e faz observações importantes. A narrativa no

Jornalismo Literário, segundo Lima (1995, p.157), utiliza “um leque considerável de técnicas

mais sofisticadas”. São seis as premissas propostas por Edvaldo Pereira Lima (1995, p.158):

I) Sumário ou exposição: “(...) consiste numa síntese de uma ação secundária. Desse

modo, passa-se rapidamente por ela e ao mesmo tempo traz-se contexto à ação principal”.

II) Cena presentificada da ação: “(...) consiste no relato detalhado do acontecimento

à medida que se desenvolve, desdobrando-o, como numa projeção cinematográfica, para o

leitor, não necessariamente empregando o tempo verbal no presente”.

III) Ponto de vista: “O ponto de vista - isto é, a perspectiva sob a qual o leitor verá o

acontecimento - pode ser a do repórter, a do protagonista dos acontecimentos ou a de uma

terceira pessoa. A narrativa pode também se dar em primeira pessoa”.

IV) Metáfora e figuras de retórica: “São aceitas quando se necessita explicar um

tópico complexo”.

V) Citações diretas: “São usadas moderadamente”.

VI) Fontes, dados e documentação: “As fontes são identificadas claramente, a

verificação dos dados tem de ser criteriosa e a documentação deve ser sólida”.

Lima (1995, p.158) observa que o Jornalismo Literário praticado nos anos seguintes à

década de 1970 guarda muitas características do New Journalism, mas foi modificado. “É

possível verificar que o atual jornalismo literário transmutou o legado do new journalism e o

aproveita, parcialmente”. Isto aconteceu enquanto as idéias de ruptura do Novo Jornalismo,

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Page 24: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

principalmente concernentes à objetividade, dialogaram com opiniões mais conservadoras dos

acadêmicos.

O ideal mesmo, viu-se, era adotar a resposta autodeterminativa, aproveitar o que fosse possível da experiência. É por isso que o sacrossanto mito da objetividade tacitamente ferido pelo novo jornalismo, hoje, é encarado tranqüilamente pelo mundo acadêmico, com outros olhos (LIMA, 1995, p.159).

1.3 A questão da ética jornalística

Apesar de ter encontrado aceitação entre muitos profissionais de imprensa e estudiosos

da Comunicação, a proximidade do jornalismo com a literatura sempre foi alvo de críticas. As

principais dizem respeito aos métodos de apuração, à veracidade dos fatos e à falta de

objetividade, o que resultaria na produção distante dos ditames do jornalismo informativo,

prático e ágil.

Desde que o New Journalism repercutiu nos EUA, o estilo que adapta recursos

literários ao jornalismo descontentou uma parcela de profissionais da área. O jornalista

Dwight MacDonald chamou de “parajornalistas” os seguidores do novo modo de se fazer

jornalismo. Segundo Talese (2004, p. 9) MacDonald “tinha lá suas desconfianças em relação

a esse gênero”.

A “velha guarda da imprensa norte-americana”, adepta da técnica do lead, era

severamente contra a modalidade que despontava, haja vista o tom impressionista e as

estratégias textuais utilizadas por Wolfe e Talese, entre outros. “Os críticos pensavam que os

autores deturpavam os fatos para conseguir o efeito dramático desejado” (TALESE, 2004, p.

9). Eram desfavoráveis, por exemplo, ao fluxo de consciência e à descrição que os repórteres

faziam dos pensamentos de outras pessoas.

Mesmo diante da desconfiança, o New Journalism tornou-se referência no jornalismo.

Após a década de 1970, houve um esvaziamento da modalidade, mas muitos escritores

continuaram a experimentar novas alternativas para o texto. Segundo críticos, muitos

aplicaram as técnicas de modo equivocado, vazio e irresponsável. Segundo Goodwin (1993,

p. 203):

Os redatores jovens têm imitado o estilo de Wolfe, Talese e outros Novos jornalistas — e isso, frequentemente, tem trazido para eles aplausos e promoções de editores de jornais e revistas, desejosos de publicar estilos mais interessantes de redação. Mas alguns têm praticado o seu Novo Jornalismo sem cuidar o suficiente da pesquisa e

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Page 25: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

da reportagem — saturação, é como lhe chama Wolfe — necessárias para que os retratos sejam verdadeiros.

Existem alguns casos que se tornaram representativos para a discussão. Um deles, da

década de 1980, foi responsável por uma crise de credibilidade que afetou um dos jornais

mais prestigiados do mundo, o Washington Post. A repórter Janet Cooke, fazendo uso de

técnicas do Novo Jornalismo, publicou uma reportagem sobre um menino de apenas oito anos

que era viciado em heroína. A história de Jimmy repercutiu amplamente nos Estados Unidos.

Quando foi publicada, em 1981, muitas pessoas ficaram chocadas e emocionadas com o

relato. Autoridades públicas queriam saber onde estava o garoto, mas a jornalista sempre

encontrava uma maneira de se esquivar, baseando-se no direito de preservar a identidade da

fonte.

Janet Cooke, 26 anos, foi a vencedora do Prêmio Pulitzer11 naquele ano. Tudo seria

glorioso, não fosse um detalhe: Cooke tinha inventado a personagem. Jimmy não existia.

Como o jornalismo tem como premissa retratar a realidade, Cooke, que confessou a fraude,

teve de devolver a honraria, além de ter sido despedida do Washington Post e estigmatizada

profissionalmente.

Não tendo escapatória, e para evitar uma investigação policial, a repórter confessa aos editores do jornal que o relato de ‘Jimmy’, nome fictício do garoto, havia sido construído por ela a partir de depoimentos coletados com assistentes sociais que testemunharam essa realidade. Conseqüência: o jornal publicou uma justificativa de cinco páginas sobre o caso, tendo sua reputação abalada, e a repórter foi obrigada a devolver o prêmio (VICCHIATI, 2005, p.70).

O episódio, sempre citado quando se fala em ética no Jornalismo, tornou-se

emblemático para a discussão dos princípios que norteiam a profissão. Do mesmo modo,

transformou-se em exemplo negativo, que levou descrédito ao New Journalism, embora tenha

sido um caso isolado entre poucos. Goodwin (1993, p.203) afirma: “Talvez

injustificadamente, o que veio a ser conhecido como o Novo Jornalismo recebeu um bom

bocado da culpa produzida pelas ficções explosivas de Janet Cooke, Michael Daly, Gloria

Ohland e Christopher Jones”.

11 “Concedido pela Universidade Columbia, de Nova York, o Pulitzer é o mais importante e respeitado prêmio do jornalismo dos Estados Unidos. Foi criado em 1917, seis anos após a morte de Joseph Pulitzer, húngaro naturalizado americano, então dono do St. Louis Dispatch e New York World. Ele manifestou em vida a vontade de criar um prêmio que estimulasse o jornalismo e as artes”. Disponível em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/netbanca/arquivo/ed241_250.htm. Acesso em 24 de julho de 2007.

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Page 26: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

Outro caso bastante interessante foi uma década antes, também nos EUA. A jornalista

Gail Sheehy escreveu, em julho e agosto de 1971, dois artigos na revista New York retratando

as vidas de uma prostituta chamada Redpants e de um gigolô chamado Sugarman. Sheehy foi

severamente criticada por ter inventado as personagens com base no recurso literário da

composição; ou seja, construiu Redpants e Sugarman — estes não existiam de fato —

baseando-se em hábitos e situações cotidianas de gigolôs e prostitutas de Nova York.

Os artigos detalhavam as vidas e a sorte de uma prostituta chamada ‘Redpants’ e de seu gigolô, ‘Sugarman’. Estes nomes não eram apenas pseudônimos, um recurso que os jornalistas às vezes usam para proteger uma fonte ou um sujeito. Eram nomes que Sheehy criou para duas figuras ‘compostas’, a partir do conhecimento direto de várias prostitutas e gigolôs, entrevistados por ela. Em vez de relatar o que cada uma das suas fontes disse ou fez, ela expressou suas palavras e ações através de ‘Redpants’ e ‘Sugarman’ (GOODWIN, 1993, p. 203).

Diante de situações como essas, os questionamentos sobre os princípios que norteiam

o Jornalismo Literário são inevitáveis. As críticas apontam para o excesso de pretensão dos

repórteres em sua capacidade de narrar. Goodwin (1993, p.205) cita a crítica que o jornalista

norte-americano Haynes Johnson fez ao New Journalism:

Haynes Johnson, repórter e colunista do Washington Post, não liga muito para o dizem ser o Novo Jornalismo. ‘Quando Tom Wolfe e as pessoas que se intitulam a elas próprias de Novos Jornalistas inventam as personagens e nos dizem o que as pessoas pensam porque falaram com muitas delas, bem, eles estão fazendo o papel de Deus’ — diz Johnson. ‘Eu acho isso muita pretensão’. Johnson acredita que existe uma necessidade de polir o texto em jornalismo. ‘Mas ninguém pode inventar citações e personagens e dizer que isso é jornalismo. É uma coisa diferente e devia ser catalogada diferentemente’.

Vicchiati (2005, p. 90-91), ao comentar os abusos cometidos pelos jornalistas nos

últimos anos, observa os cuidados que estes devem tomar, principalmente quando tentam

escrever textos com características literárias.

O jornalista não inventa diálogos, não cria o que é denominado personagem complexo (tirado de várias pessoas), não penetra no pensamento das pessoas (a não ser que esses pensamentos sejam revelados em entrevistas), não reconstitui sentimento de mortos (jamais serão reais, no sentido mais amplo da palavra). Se o fizer, o jornalista e o trabalho por ele produzido perdem a credibilidade.

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Page 27: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

No jornalismo, a verdade é princípio indiscutível. O jornalista não pode abrir mão

dessa premissa ao produzir uma reportagem, tanto na imprensa convencional quanto em suas

formas experimentais.

O jornalista e professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Francisco José

Karam, acredita que os abusos cometidos por alguns repórteres colocam em xeque a atividade

jornalística como um todo: “Isso é deplorável para o jornalismo, porque faz perder a

credibilidade na história. Existem muitas histórias reais nas quais dá para se inspirar e fazer

um bom jornalismo”.12

Karam afirma que é possível fazer Jornalismo Literário com ética, bastando que sejam

seguidos, com persistência, os mesmos princípios básicos que devem ser aplicados ao

jornalismo cotidiano, como apuração, precisão e compromisso com a realidade dos fatos.

As informações devem ser verossímeis, as fontes têm de ser reais, você tem de fazer uma descrição tão precisa quanto possível da realidade, mas criar elementos que possam envolver o leitor (...) Então, do meu ponto de vista, os critérios são muito similares; isto é, deve-se apurar bem, investigar e manter, ao mesmo tempo que um envolvimento, certo distanciamento. Fazer uma narrativa com vocabulário, com elementos da literatura que encantem mais o leitor, que façam com que renda mais a informação (...). É uma reconstituição, quase como um conto, mas real do mundo. Tem de ter precisão, integridade e credibilidade.13

Outra crítica ao Jornalismo Literário é a questão da subjetividade. Com relação a esta

evidência nas narrativas de não-ficção, o professor da UFSC comenta que este valor, se bem

aplicado, eleva a qualidade do texto:

Quando se reconstitui o mundo real por meio da subjetividade, leva-se em conta, por exemplo, valores como o sofrimento. ‘Eu vou aderir a um determinado valor ou ser solidário com algumas questões sociais, vou trabalhar o sofrimento, vou trabalhar o mundo suburbano, sofrido, do desemprego, da miséria, da violência, da prostituição, da dor humana, mas vou trabalhar porque reconheço objetivamente que isso é um valor humano dado pelos humanos’. Mas, subjetivamente, faço as escolhas. Quanto mais qualidade literária eu tiver para transformar isso num bom texto jornalístico, melhor.14

Neste aspecto, Vicchiati (2005, p.68) reconhece, que por mais que se apregoe a

objetividade como princípio do trabalho jornalístico, este apenas serve como um ideal

12 Entrevista concedida ao autor a 1º de junho de 2007. 13 Entrevista concedida ao autor a 1º de junho de 2007. 14 Entrevista concedida ao autor a 1º de junho de 2007.

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dificilmente alcançado. A subjetividade permeia a atividade jornalística, desde os círculos

mais ousados aos mais tradicionais.

(...) é difícil entrar no mérito da questão, mas pode-se avaliar que apesar dessa convicção sobre a existência da objetividade, é possível considerá-la mais como uma utopia do que como uma ação real, pois o ser humano, por mais que tente, nunca conseguirá reproduzir uma notícia como uma ‘máquina sem preconceito’, como afirma Steffens.

Diante da possibilidade de inserir elementos da literatura nos textos jornalísticos,

ancorando-se em princípios éticos, existem evidências de que um novo projeto jornalístico

desponta e pode se tornar viável na atualidade. Construído gradativamente, representa uma

renovada busca pela informação de qualidade, aliando a emotividade humana às exigências

profissionais, o que implica em quebra de paradigmas.

O jornalismo, mesmo com a obrigatoriedade de manter-se fiel aos fatos, vai-se permitindo avanços lentos, mas preciosos, em direção à utilização de elementos da literatura. Dos textos frios, apenas tecnicamente corretos, os profissionais de imprensa partem em busca de maior identificação com o leitor, recheando informações com histórias de vida, trazendo emoção e sentimentos para revelar o colorido dos fatos cotidianos (VICCHIATI, 2005, p.85).

1.4 Novas vozes no cenário contemporâneo

A discussão sobre Jornalismo Literário extrapola as questões lingüísticas. O subgênero

que tanto se destacou há décadas pela capacidade de seus autores em transformar matérias em

peças literárias, enfocando a primazia da narrativa e do estilo pessoal, é visto por alguns

pesquisadores como um veículo propulsor de novas visões dentro das sociedades

contemporâneas. Destacam-se nesse contexto dois pesquisadores: Edvaldo Pereira Lima e

Cremilda Medina, professora livre-docente da USP.

Ambos citam que o Jornalismo Literário obedece a um diálogo dinâmico entre três

sistemas distintos: Jornalismo, Literatura e Ciências Sociais. No que se refere à captação de

informações, o Jornalismo dialoga com as Ciências Sociais, especialmente com a

Antropologia.

Isso acontece pela inserção de entrevistas de compreensão denominadas por Medina

como perfis humanizados, que são baseados nas histórias de vida — técnica bastante utilizada

na Antropologia — para obter novas visões sobre a realidade. Segundo Medina (1988, apud

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LIMA, 1995, p.76), o perfil humanizado “se caracteriza pela abertura e proposta de

compreensão ampla do entrevistado em vários aspectos, do histórico de vida ao

comportamento, dos valores aos conceitos”. Por outro lado, na questão estética, o Jornalismo

é influenciado pela Literatura, conforme já exposto neste trabalho.

A perspectiva de uma produção jornalística transformadora, a ser repercutida nas

reportagens narrativas, segundo Edvaldo Pereira Lima, pode ser caracterizada pelo

aprofundamento e interpretação das realidades retratadas. Este jornalismo interpretativo

“busca não deixar a audiência desprovida de meios para compreender o seu tempo, as causas

e origens dos fenômenos que presencia, suas conseqüências no futuro. Vai fundamentar sua

leitura da realidade na elucidação dos aspectos que em princípio não estão muito claros”

(LIMA, 1995, p.25).

A renovada concepção de Jornalismo Literário, segundo Lima, tem algumas

características básicas como contexto do fato nuclear, seus antecedentes — a fim de resgatar

as origens do problema —, suporte especializado, projeção — ou seja, desdobramentos — e o

perfil, que busca a humanização da reportagem (1995, p.26).

Esta última característica do Jornalismo Literário é bastante discutida por Cremilda

Medina. A professora da USP desenvolve desde 1987, com estudantes de graduação, um

importante trabalho na Escola de Comunicações e Artes, dentro da disciplina “Narrativas da

Contemporaneidade”. O projeto São Paulo de Perfil é o grande laboratório de experimentação

de novas linguagens e visões para o jornalismo. Medina acredita na capacidade da reportagem

narrativa de compreender e valorizar o ser humano, especialmente aquele que se insere em

espaços onde o jornalismo convencional não alcança, não permite que sua voz e sua história

repercutam.

A pedagogia de um novo jornalismo recupera o prazer e o desejo solidário de descobrir pessoas como Dona Arminda, Arnaldo, Lucas. Torna-se então mais sutil a interação ao contexto social em que vivem. Ao mesmo tempo, a expressão jornalística reflete uma marca autoral, inovadora (MEDINA, 2003, p.35).

A pesquisadora reconhece que no jornalismo cotidiano existem situações e heranças

técnicas que obstam o profissional de imprensa de identificar e desenvolver, dentro das

redações, temas que fujam da agenda convencional, das opiniões oficiais, além da fórmula do

lead. Segundo Medina (2003, p.36):

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Page 30: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

As técnicas de trabalho — as que informam o aprendiz do Jornalismo — pecam por esquematismo tanto no que se refere às decisões éticas quanto à inventividade estética. Aplica-se o modelo mental quem, o quê, quando, onde, como e por quê, equaciona-se a notícia por um lead sumário (abertura de matéria jornalística) e narra-se um fragmento da história por meio da pirâmide invertida. Aparentemente esta técnica (e suas variantes próximas), já impregnada na memória profissional, é um sucesso histórico a partir do século XIX. Estão aí as agências de notícias internacionais que consagraram as fórmulas. No entanto, qualquer situação-limite da humanidade provoca nos jornalistas lúcidos e nos analistas uma angustiada reflexão a respeito das insuficiências da herança e da modernização técnica e tecnológica.

Acerca das dificuldades para se produzir um padrão jornalístico mais avançado e

duradouro, Lima (1995, p.58) também faz comentários:

A periodicidade impõe um desses padrões de rotina, ao mesmo tempo aliando-se a dois outros fatores nocivos para um instrumento de comunicação que queira ultrapassar o meramente informativo: a construção da mensagem pela fórmula mais rápida — porém menos criativa — do texto pasteurizado nos elementos do lide (...) e (...) a recorrência apenas a fontes legitimadas — isto é, institucionalizadas como tais.

Esta fuga da cobertura tradicional da imprensa, que busca novas formas de linguagem

pela reportagem, prevê um profundo entendimento daquilo que o ser humano representa na

atualidade, nas esferas comuns muitas vezes excluídas da cobertura da mídia. “De certa forma

a ação coletiva da grande reportagem ganha uma sedução quando quem a protagoniza são

pessoas comuns que vivem a luta do cotidiano” (2003, p.52).

Para que esse trabalho seja cumprido, não basta retratar os acontecimentos por

intermédio de uma visão cientificista, em que a objetividade está em primeiro plano. É

necessário considerar válidas as manifestações individuais do pensamento influenciadas pela

emoção, ligadas ao conjunto de crenças do ser humano, os quais formam a sua realidade

simbólica, ou seja, aquilo em que ele acredita. Medina afirma que “a arte, a religiosidade, o

mito, ao contrário de representarem a negação do real concreto, expressam uma comunhão

profunda e universalizante com a realidade simbólica do humano” (2003, p.77).

O jornalista que se engaje numa senda mais ousada e destinada à humanização deve

considerar relevantes outros símbolos de expressão da personalidade, explica Medina (2003,

p.59):

A literatura e a oratura, sem hierarquias de valor, manifestam o sentir olfativo, o toque quente do corpo e o paladar que desse decorre. Há, na narrativa do cotidiano e no resgate que dele faz a arte e outras linguagens não-científicas, cheiros, gostos e gestos que ampliam a palavra conceitual e bem governada de um discurso científico.

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Page 31: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

Todo esse processo de valorização das diferentes vozes na contemporaneidade não é

vão. A tarefa de se instituir uma cobertura jornalística que respeite e considere as divergentes

opiniões, oriundas desde dirigentes e chefes de Estado a cidadãos comuns, é essencial para a

construção de uma sociedade mais democrática, lembra Medina (2003, p.48):

A contemporaneidade, tal qual as percepções traduzem em narrativas, oferece inúmeros desafios não só ao cidadão nela situado com relativo conforto, como ao que carrega o fardo da marginalização de qualquer origem — social, étnica, cultural ou religiosa. Enunciar um texto que espelhe o dramático presente da história é, a princípio, um exercício doloroso de inserção no tempo da cidadania e da construção de oportunidades democráticas.

Considerando que a sociedade é muito mais complexa do que prevêem os

procedimentos comuns do Jornalismo, Lima (1995, p.67) explica que “(...) a sociedade é, por

excelência, um sistema pluralista, onde continuamente coexistem diferentes tipos e níveis de

interesses, interagindo sob um emaranhado bastante complexo de realidades”.

É adequado, portanto, que além das vozes oficiais, ícones das classes mais

privilegiadas de quaisquer sociedades, também sejam ouvidas outras pessoas, que vindas de

diferentes contextos sociais, econômicos e culturais, possam contradizer relatos limitados e

por vezes equivocados a respeito da realidade.

Detectar esses conflitos, circunscrever seu sentido, antecipá-los no tempo, buscar suas raízes na interação sistêmica estrangulada são tarefas nobres da reportagem que se proponha a ultrapassar a epiderme rasa dos fatos e penetrar no âmago das questões contundentes do nosso tempo, para proporcionar um conhecimento qualitativo da realidade ao homem contemporâneo (LIMA, 1995, p.68).

Conclui-se que o Jornalismo Literário, mais do que uma proposta estética, aparece

como uma perspectiva decisiva para transformar a realidade, democratizando o espaço da

mídia ao proporcionar ao cidadão um meio valioso para sua inserção, por intermédio de suas

falas, histórias de vida, pensamentos e emoções.

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Page 32: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

II. Confluências entre Jornalismo e Literatura

O Jornalismo e a Literatura sempre tiveram profundas relações. Quando ainda não

havia uma formação específica para jornalistas, os escritores integravam o expediente dos

primeiros periódicos. Críticas literárias, ensaios, folhetins e crônicas estavam presentes nas

páginas dos jornais, em meados do século 19.

Para Lima, a relação entre imprensa e literatura é estreita e mutante. “(...) O jornalismo

impresso e a literatura aproximam-se, intersectam-se, afastam-se, particularmente desde a

etapa histórica em que a imprensa ganha sua feição moderna, industrial, a partir da última

metade do século passado [século 19]” (1995, p.135).

Muitos autores aprimoraram o estilo literário atuando nas redações, numa época em

que a imprensa não tinha um padrão definido e as publicações eram de caráter político e

panfletário.

O primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense, de Hipólito José da Costa, de

junho de 1808, já trazia essas características. Também chamado de Armazém Literário, o

jornal impresso em Londres continha textos densos que defendiam o fim da escravidão no

Brasil. No início do século 19, a instalação da Imprensa Régia, no Rio de Janeiro, com a vinda

da família real portuguesa, favoreceu a convivência entre Jornalismo e Literatura. Segundo

Costa (2005, p.14),

(...) as duas atividades começaram juntas no Brasil, em 1808, quando finalmente foi permitida a publicação de impressos, com a vinda da Coroa Portuguesa. E também que a primeira se beneficiou enormemente da segunda para sua difusão, em forma de folhetim, durante todo o século XIX e o início do século XX.

A despeito das produções literárias brasileiras no período pré-republicano, Sodré

também comenta a proximidade entre jornalismo e literatura. “Como literatura e imprensa se

confundiam, então, as repercussões no periodismo eram inevitáveis. Daí a linguagem de baixa

literatice dos jornais, que surpreende os que hoje percorrem as folhas do tempo (...)” (1999,

p.288).

Escritores em início de carreira, que tentavam sobreviver do próprio ofício, estavam

nas principais redações do país, buscando um modo de divulgar sua produção intelectual.

Segundo Lima (1995, p.135), Machado de Assis, que começa como aprendiz de tipógrafo e

revisor, aprimora sua escrita dentro da redação de jornal. “Machado iniciou-se cronista no

31

Page 33: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

Diário do Rio de Janeiro, em 1860, e finalizou sua participação na imprensa na Gazeta de

Notícias, em 1900, já consagrado como escritor” (PAIXÃO, 1994, p.10).

Os homens de letras buscavam encontrar no jornal o que não encontravam no livro: notoriedade, em primeiro lugar; um pouco de dinheiro, se possível. O Jornal do Comércio pagava as colaborações entre 30 e 60 mil réis; o Correio da Manhã, a 50, Bilac e Medeiros e Albuquerque, em 1907, tinham ordenados mensais, pelas crônicas que faziam para a Gazeta de Notícias e O País, respectivamente; em 1906, Adolfo Araújo oferecia 400 mil réis por mês a Alphonsus de Guimaraens para ser redator de A Gazeta, em São Paulo (SODRÉ, 1999, p.292).

Desde o período imperial até o início da industrialização da imprensa, os escritores

colaboravam com vários tipos de texto, na maioria das vezes voltados para o ambiente

literário. Ocupavam as páginas dos periódicos a ficção, em forma de folhetim e fragmentos de

romance, e a crítica literária, que era resultante às vezes de correspondências trocadas entre

intelectuais, além da crônica. Esta, em especial, representa um gênero híbrido e revela

notáveis escritores até hoje. Vinda da tradição literária francesa, foi incorporada ao jornalismo

brasileiro. Segundo Ferraz,

A crônica vem de um modelo francês que começou em 1799, no Journal de Débats parisiense; então, textos comentavam de modo crítico os acontecimentos do dia. Geralmente, as crônicas eram publicadas no rodapé dos jornais e foram assim trazidas para o Brasil do século 19, mas aqui se transformaram, ficaram mais leves no estilo, utilizando recursos expressivos da poesia e da ficção. Machado de Assis brilhou como cronista, sobretudo usando seu humor acidamente crítico. Mas José de Alencar, Lima Barreto, João do Rio e Antonio de Alcântara Machado não ficaram atrás.15

A crônica, segundo Ruy Castro, foi importante para o aprimoramento da linguagem

jornalística. “(...) Devemos aos grandes cronistas brasileiros algo mais do que muitos

momentos de prazer que eles nos deram com suas crônicas. Devemos a eles a língua

portuguesa moderna. Foram os cronistas que (...) ensinaram esses jornais a escrever”

(CASTRO, 1999 apud GALVÃO, 2002, p.18).

Os jornais já nasciam para atender a um público interessado pela literatura e pelas

artes. Podem ser citados o Diário Mercantil, produzido em São Paulo, O País, existente desde

1884, o jornal Novidades, publicado entre 1887 e 1892, o Correio do Povo, surgido em 1891,

e principalmente o Jornal do Comércio (SODRÉ, 1999, p.292). 15 FERRAZ, Geraldo Galvão. ”A escrita de uma crônica”. Disponível em http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11335. Acesso em 25 de setembro de 2007.

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Page 34: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

O jornalismo brasileiro foi também lugar de desavenças entre letrados. Sodré observa

que essa imprensa dependente da literatura — assim como esta é dependente do jornalismo —

estimula a polêmica. “Aparecem na rinha algumas penas famosas: Carlos de Laet contra

Camilo Castelo Branco; Júlio Ribeiro versus padre Sena Freitas, antes” (SODRÉ, 1999,

p.294).

É desse período uma crítica feita ao escritor Machado de Assis. O ríspido comentário,

feito pelo professor Hemetério José dos Santos em carta aberta a Fábio Luz, foi publicado na

Gazeta de Notícias, em 16 de novembro de 1908, e reproduzido no Almanaque Gaunier em

1910:

É uma arte doentia, de uma perversidade fria, não sentida diretamente do meio, mas copiada de leituras, pacientemente ruminadas, de romances franceses e ingleses. (...) O segredo da arte de Machado de Assis é primário e rudimentar: está num vocabulário minguado e pobre, repetido tão amiúde, indo e tornando, passando incessantemente sobre uma mesma tônica que o leitor acaba por adormecer (SODRÉ, 1999, p.295).

Tamanha era a relação entre Jornalismo e Literatura que Paulo Barreto, mais

conhecido pelo pseudônimo de João do Rio, questionaria no seu livro O momento literário,

publicado em 1907: “O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a

arte literária?” (SODRÉ, 1999, p.292). Cristiane Costa fala sobre o resultado do inquérito

literário, antes publicado entre 1904 e 1905 na Gazeta de Notícias.

O resultado é um empate: dos 36 intelectuais que responderam ao questionário, dez afirmaram que o jornalismo prejudica a vocação literária, onze disseram que não, onze responderam que tanto ajuda quanto atrapalha e quatro não quiseram ou não souberam responder” (2005, p.14).

Como se observa na obra de João do Rio, a atividade profissional dos escritores na

imprensa gerava polêmica. De modo geral, acreditava-se que trabalhar em jornal rendia

desprestígio no meio literário, embora gerasse também repercussão junto ao grande público e

fosse um modo de subsistência. Para o escritor Silva Ramos, o jornalismo é mau para a arte

literária, devido a seu aspecto mercantil, e “ótimo” para o literato, porque torna “impossível

para todo o sempre a reprodução do quadro lendário: o poeta morrendo de fome” (RIO, 1994

apud COSTA, 2005, p.20).

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Page 35: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

Esse convívio, do ponto de vista profissional, se modificaria aos poucos. Isso

aconteceria, de acordo com Sodré (1999, p.296), pela evolução das relações capitalistas com

as quais a boemia literária já não era compatível e que antecedia uma série de transformações

na imprensa. O necrológio publicado sobre o escritor B. Lopes, em setembro de 1916 n’O

País, e reproduzido por Sodré (1999, p.297), traduz essa nova ordem: “O poeta boêmio é,

assim, um tipo que aqui não pode mais existir. O último deles foi decerto esse pobre B.

Lopes, ontem colhido pela morte”.

As transformações de âmbito econômico e social remodelaram a imprensa,

modificando o seu conteúdo.

Tais alterações serão introduzidas lentamente, mas acentuam-se sempre: a tendência ao declínio do folhetim, substituído pelo colunismo e, pouco a pouco, pela reportagem; a tendência para a entrevista, substituindo o simples artigo político; a tendência para o predomínio da informação sobre a doutrinação; o aparecimento de temas antes tratados como secundários, avultando agora, e ocupando espaço cada vez maior, os policiais com destaque, mas também os esportivos e até os mundanos (SODRÉ, 1999, p.296).

O conteúdo considerado literário passa agora a ser incluído em cadernos separados,

“(...) constituem matéria à parte, pois o jornal não pretende mais ser, todo ele, literário.

Aparecem seções de crítica em rodapé, e o esboço do que, mais tarde, serão os famigerados

suplementos literários” (SODRÉ, 1999, p.297). Reflexo dessa readaptação é a proliferação de

revistas especializadas. “Nelas é que se irão refugiar os homens de letras, acentuando a

tendência do jornal para caracterizar-se definitivamente como imprensa”. Um destaque entre

as revistas literárias é a Kosmos, pela quantidade de escritores que colaboravam com a

publicação.

Em janeiro de 1904, as artes gráficas no Brasil têm já condições para permitir uma revista como a Kosmos, de excelente apresentação, separando o desenho da fotografia; a crônica de abertura era de Olavo Bilac, que assinava apenas com as iniciais O.B.; de teatro ocupava-se Arthur Azevedo, depois substituído por Paulo Barreto; a crítica literária cabia a José Veríssimo, Gonzaga Duque escrevia sobre arte e deixava memórias; eram outros colaboradores João Ribeiro, Vieira Fazenda, Lima Campos, Raul Pederneiras, Félix Pacheco, Coelho Neto, Capistrano de Abreu, Medeiros e Albuquerque, Euclides da Cunha. Mário Behring era o diretor, e a Kosmos circulou de 1904 a 1906 (SODRÉ, 1999, p.298).

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Page 36: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

A tentativa de ir contra a nova conjuntura culminou na publicação da revista Floreal,

fundada em 1907 por Lima Barreto. A revista não prosperou, apesar dos redatores

contribuírem com dinheiro do próprio bolso para mantê-la (SODRÉ, 1999, p.303).

Nos anos seguintes, o jornalismo brasileiro incorporou os parâmetros da imprensa

norte-americana, marcada pela concisão e objetividade, abandonando o modelo francês,

prolixo e opinativo (COSTA, 2005, p.124). Até o fim dos anos 50, a imprensa do país passou

por uma mudança de perfil. Aderiu ao uso da fotografia, remodelou o processo de

diagramação. “Na linha editorial, alguns reflexos dessa modernização foram o declínio do

gosto pelo ornamental e o superficial, que caracterizava tanto a literatura quanto o jornalismo

do período anterior” (2005, p.98).

Muitos escritores, ainda assim, continuaram a atuar na imprensa, mesmo que isso

demandasse um ardiloso processo de adaptação ou remanejamento para colunas específicas.

Segundo Costa, escritos consagrados como Graciliano Ramos não eram mais incorporados

como cronistas, críticos ou articulistas, “mas como mão-de-obra interna, vestindo em geral o

uniforme do copidesque, cuja função era consertar erros, vícios e defeitos do texto

jornalístico” (2005, p.14).

O cronista Nelson Rodrigues foi um dos que discordaram do novo padrão jornalístico

que se criava, chamando os copidesques de “idiotas da objetividade” (RODRIGUES, 1995

apud COSTA, 2005, p.124):

Nelson reagiu como pôde à superação do jornalismo literário pelo normatizado e até mesmo aos novos códigos de conduta, que exigiam a verdade e nada mais que a verdade. Como na Última Hora ninguém podia fazer literatura, a não ser em artigos assinados, para ele foi reservada uma coluna diária de crônicas, A Vida Como Ela é... (COSTA, 2005, p.128).

2.1. O desenvolvimento da reportagem no Brasil

As confluências existentes entre Jornalismo e Literatura, como se viu anteriormente,

referem-se tanto às questões profissionais — o contato do escritor com as redações — quanto

às estilísticas. A reportagem representa o principal campo de atuação jornalística para a

aplicação e o aprimoramento das habilidades literárias.

Na virada do século 19 para o século 20, segundo Edvaldo Pereira Lima, se iniciou

uma nova era em vários aspectos da vida brasileira, inclusive o Jornalismo. “É então que a

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Page 37: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

narrativa jornalística, em reportagem, ensaia seus primeiros grandes passos de independência

da literatura” (1995, p.160).

Uma das primeiras manifestações brasileiras do Jornalismo Literário, do século

passado, veio com as reportagens do engenheiro fluminense Euclides da Cunha. Em 1902, o

correspondente do Estado de S.Paulo publicou Os Sertões, seu livro vingador, considerado o

principal relato sobre a Guerra de Canudos, na Bahia, e as agruras da seca no Nordeste.

Avighi (1987 In FARO, 1999, p.73) observa que enquanto outros jornais faziam a

cobertura sobre a Guerra de Canudos, Euclides da Cunha inter-relacionou a existência do

arraial de Antonio Conselheiro e a natureza do Sertão da Bahia com o comportamento do

sertanejo e com o que acontecia fora do país, “elementos sobre os quais as matérias

produzidas pelos correspondentes dos outros jornais passaram distante”.

Em certo momento de seu trabalho, Euclides da Cunha ‘entrava pelo sertão conflagrado (...). Conferia fontes e procurava investigar pessoalmente os fatos, a ponto de expor-se a perigos em lances de temeridade nascidos do entusiasmo em desvendar o ‘mistério’ e de conhecer o universo da caatinga (AVIGHI, 1987 In FARO, 1999, p.73).

O caráter multifacetado e a importância da obra de Euclides da Cunha, traduzida para

vários idiomas, ficaram evidentes no artigo escrito pelo respeitado crítico literário José

Veríssimo, no Correio da Manhã a 31 de dezembro de 1902, dias após a publicação d’Os

Sertões.

O livro, por tantos títulos notável, do Sr. Euclides da Cunha, é ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da natureza como ao contato do homem(...).16

Segundo Lima, Os Sertões simboliza o profissional “que fica no meio-termo curioso

da ficção e da realidade para construir um relato de profundidade” (1995, p.160). Esforço tão

representativo como esse, no campo da reportagem, só se concretizaria com o jornalista João

Paulo Alberto Coelho Barreto, o João do Rio.

Se Euclides da Cunha foi desbravador de fronteiras da narrativa, tendo como cenário o sertão agreste inconquistado pelas lentes da mente intelectual, João do Rio foi o

16 VERÍSSIMO, José. “Uma história dos sertões e da Campanha de Canudos”. apud AZEVEDO, Vivianne Milward. “A viagem narrativa de Os Sertões: o desgastar de um corpo”. Disponível em http://www.catjorgedesena.hpg.ig.com.br/html/textos/vivianne_azevedo.pdf. Acesso em 19 de março de 2007.

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Page 38: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

descobridor de horizontes possíveis da reportagem de campo no espaço urbano ainda por reconhecer-se, devido a sua própria evolução rumo a novos níveis de complexidade (LIMA, 1995, p.164).

Lima observa que o trabalho pioneiro de Paulo Barreto “domina o cenário jornalístico

do Rio de Janeiro, no nível da reportagem, entre 1900 e 1920, exatamente o período de

transformação carioca rumo à modernidade” (1995, p.164). Esse trabalho, segundo Edvaldo

Pereira Lima, é inconfundível devido ao seu trabalho de observação detalhada da realidade,

coleta de informações por meio de entrevistas a fontes, descrição sugestiva de ambientes e

pelo ritmo narrativo baseado em situações vivas e superação do tempo jornalístico imediato

(1995, p.165).

Na opinião de Edvaldo Pereira Lima, parece haver “um hiato na evolução da

reportagem brasileira” após João do Rio, principalmente nos anos 1930, quando a produção

literária, embasada na corrente do realismo social, encontra seu momento de apogeu (1995,

p.166).

Depois desse vazio constatado por Lima, na década de 1940 são criadas as condições

para a grande reportagem. Observa-se um conjunto de fatores que contribuíram para essa

nova fase da imprensa: organização empresarial, qualificação profissional decorrente da

abertura de faculdades de Jornalismo e novos padrões de consumo nos grandes centros, em

torno dos quais já operavam os principais meios de comunicação (FARO, 1999, p.74).

Segundo Faro (1999, p.76), “a reportagem amplia seu espaço na imprensa dos anos 50

com a revista O Cruzeiro”. Surgida em 1928, por iniciativa de Assis Chateaubriand, a

publicação semanal ilustrada passou por uma mudança gráfica liderada por Jean Manzon e

David Nasser — que introduziram a dobradinha repórter-fotógrafo —, e passou a ser

identificada como um veículo de comunicação com grandes reportagens. A matéria

“Enfrentando os Chavantes” ocupou 18 páginas e inaugurou o novo estilo em O Cruzeiro

(FARO, 1999, p.76).

Nesse período, alguns repórteres se destacaram devido às matérias que escreviam para

diferentes periódicos. Um dos mais importantes foi Joel Silveira. Segundo Faro (apud

SILVEIRA, 1985), “Joel conquistaria destaque durante a II Guerra com as matérias enviadas

do front de batalha da FEB [Força Expedicionária Brasileira] e se constituiria num dos nomes

mais importantes da grande reportagem que se produzia então (...)”.

Joel Silveira é autor de “A 1.002ª Noite da Avenida Paulista”, texto publicado em

1945 no semanário carioca Diretrizes. A reportagem, que trata do luxo presente das festas da

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Page 39: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

família Matarazzo, é marcada pela valorização de detalhes e relatos, além do ponto de vista do

repórter.

“Moço, será que só a filha do Matarazzo tem o direito de ver o seu casamento noticiado pelos jornais? Gente pobre também não casa?”, perguntou dona Olívia ao repórter. E lá fomos nós para o casamento da filha. Era, afinal, uma compensação, um tanto melancólica, para quem não pode romper a terrível e impraticável parede que separa o mundo dourado do palácio da avenida Paulista e o mundo prosaico da rua, o nosso mundo. E de tais compensações vivem os repórteres otimistas (SILVEIRA In FUSER, 1995, p.127)

Joel Silveira, entre outros, ajudaram a notabilizar a Diretrizes, concorrente de O

Cruzeiro, como uma publicação de grandes reportagens. A revista de Samuel Wainer, que

tinha tiragem inferior à casa dos cinco mil exemplares, “consolidou sua imagem de

publicação de grandes reportagens marcadamente políticas, algumas delas de forte

repercussão entre os leitores, como a antológica ‘Grã-Finos em São Paulo’, feita por Joel

Silveira e que levou a três edições sucessivas em 1943” (FARO, 1999, p.79).

O ano de 1965 é representativo para a história do Jornalismo Literário. É nessa época

que surgem dois veículos impressos que remodelam a estrutura da reportagem: Jornal da

Tarde e a revista Realidade.

Como revista e como jornal, Realidade e Jornal da Tarde romperam com o estilo tradicional dos órgãos da grande imprensa; disseram respeito, com seus novos signos, às alterações que se processavam com profundidade nos centros urbanos e que atingiam em cheio a classe média intelectualizada, já cooptada pelos rumos da modernização (FARO, 1999, p. 40).

2.1.1. Revista Realidade, escola do jornalismo brasileiro

O surgimento da revista Realidade, principal referência do Jornalismo Literário no

Brasil, deu-se em circunstâncias bastante adversas. A partir de 1964, com a Ditadura Militar,

ocorreram vários embargos para o exercício da democracia: perda de direitos civis, censura

aos meios de comunicação, concentração de renda, repressão, clandestinidade de partidos de

oposição. “Pois é exatamente em plena era da ‘redentora’ que o jornalismo impresso

brasileiro atravessa sua mais significativa experiência estilística” (LIMA, 1995, p.167).

Faro acredita que tal conjuntura, em que proliferavam diferentes manifestações

artísticas de crítica ao regime militar — a Bossa Nova, o Tropicalismo, o Cinema Novo, a

MPB, a literatura, o movimento hippie, o teatro de vanguarda —, exigia um padrão

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Page 40: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

jornalístico diferenciado. Foi uma época que “representou um desafio para a linguagem

jornalística” (FARO, 1999, p.64), embora fosse difícil de ser aplicado, por conta do veto à

liberdade de expressão nos principais periódicos do país.

O quadro político brasileiro no pós-guerra só fez aprofundar os rumos dessa forma de jornalismo: a exacerbação do fenômeno populista, as questões nacionalistas, as eleições, o crescimento da participação das massas urbanas na polarização que se intensificava, são elementos que deram aos órgãos de comunicação impressa um papel destacado. E nesse conjunto, a simples objetividade da informação se revelava carente de recursos para que a imprensa pudesse acompanhar o ritmo da vida nacional. (...) São elementos que se acredita suficientes para explicar o surgimento da revista Realidade (FARO, 1999, p.81).

Primeira revista de informação geral da editora Abril, Realidade foi fundada por

Victor Civita. Foi às bancas em abril de 1966, e circulou por dez anos. Mas foi entre 1966 e

1968 o período mais importante, “em que se desenham e se consolidam os traços principais da

produção da revista e com os quais seu projeto se caracterizou historicamente” (FARO, 1999,

p.13).

A primeira edição teve tiragem de 250 mil exemplares, esgotados em três dias. “Em

fevereiro de 1967, quase um ano após seu lançamento, Realidade chegava a uma tiragem de

mais de 500 mil exemplares” (FARO, 1999, p.88).

A revista, de periodicidade mensal, tinha uma proposta editorial que respondia às

expectativas geradas pela conjuntura cultural vigente: “uma proposta marcada, a um só

tempo, pela horizontalidade e pela verticalidade, no sentido de que situava o leitor no âmbito

universal dos problemas de seu tempo” (FARO, 1999, p.89).

Inspirada pelo New Journalism, que tomou forma no mesmo período, Realidade

inovou o texto da reportagem, dando aos jornalistas condições de desenvolver um trabalho de

imersão, que revelava diferentes aspectos da vida brasileira. A revista refutou a objetividade,

com textos aprofundados, de denúncia social. Realidade foi representante das contestações

sociais da época, “fez escola no jornalismo brasileiro” (FARO, 1999, p.20).

Segundo Lima, o sucesso editorial da revista se deve a alguns fatores, tais como

“universalidade temática ampliada”, “transformação da atualidade em contemporaneidade”,

“avanço em documentação”, “captação cálida do real”, “texto literário” e “riqueza ilustrativa”

(1995, p.169-175).

O repórter de Realidade estava sempre “confundindo sua experiência pessoal com a

temática que estava reportando” (FARO, 1999, p.90), aliando emoção, estilo pessoal,

experimentação estética e sensorial à cobertura jornalística.

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Page 41: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

Evidência desse padrão que se fazia presente nas páginas de Realidade é a reportagem

“Eu estive na guerra”, de José Hamilton Ribeiro, publicada em maio de 1968. O repórter que

mais vezes ganhou o prêmio Esso17 é sempre lembrado por sua cobertura na Guerra do

Vietnã, quando perdeu uma perna ao pisar em uma mina. Sua dolorosa experiência foi

relatada nas páginas da revista.

Meu último dia no Vietnã. Um aviãozinho me levará a Cam-Rahm Bay — base aérea de onde saem os aviões de longo percurso e, também, os superbombardeiros que atacam diariamente o vici — e, daí, um outro me transportará para o hospital de Tóquio. Amanhã ou depois um poderoso jato me levará aos Estados Unidos, onde eu terminarei meu tratamento, que incluirá uma boa perna mecânica. Para mim esta guerra acabou. Uma coisa, entretanto, não me sai da cabeça: por que o pequeno Van-Thanh não pode parar de chorar? Por que os americanos que tem medo e os sem medo não podem voltar para casa? Por que os vietcongues não retornam aos arrozais? (RIBEIRO, 2006, p.199-200).

Em 1968, a equipe da revista começa a enfrentar dificuldades institucionais,

represálias governamentais, censura e dificuldades mercadológicas decorrentes da

proliferação de revistas segmentadas e do advento da TV (FARO, 1999, p.92). Isso faz com

que Realidade perca seu impacto na sociedade, embora continue sendo publicada.

2.1.2. A ficção como relato da realidade

Assim como a literatura influenciou o jornalismo, esse processo se deu também na

direção inversa, principalmente no período em que o país enfrentou os desmandos do regime

militar. Enquanto a imprensa estava cada dia menos possibilitada de relatar a verdade dos

acontecimentos, a insatisfação popular, os escritores encontraram na ficção, em forma de

reportagem, a alternativa. “Entre os anos 60 e 80, por ser menos censurada, a literatura passou

a exercer a função de informar, própria do jornalismo” (COSTA, 2005, p.154).

Os escritores eram na maioria das vezes jornalistas:

Os caminhos foram vários. Dos romance-reportagem de Louzeiro e Valério Meinel, aos contos-verdade de João Antonio, passando pela ficção realista de Luiz Vilela, Carlinhos de Oliveira, Antônio Torres, Carlos Heitor Cony, Antonio Callado e Paulo Francis, assim como as memórias da guerrilha de Fernando Gaveira, Sirkis & Cia. e chegando até o limite do explicitamente alegórico, com Roberto Drummond e Ignácio Loyola Brandão. Todos jornalistas — o que parece comprovar a tese de que a literatura da época teria vivido um surto neonaturalista ou neo-realista, legítimo

17 O Prêmio Esso foi criado em 1955 com o intuito de homenagear jornalistas de todo o país que tenham publicado os melhores trabalhos em jornais e revistas. Disponível em http://www.premioesso.com.br/site/o_que_e/index.aspx. Acesso em 1º de outubro de 2007.

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Page 42: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

herdeiro da tradição de Aluísio de Azevedo, no século XIX, e de Jorge Amado, nos anos 30 (COSTA, 2005, p.155).

Esse fenômeno decorrente da relação entre jornalismo e literatura também é observado

por Lima, ao afirmar que “jornalistas periodicamente arriscam a fórmula combinada

ficção/jornalismo. No Brasil, um exemplo é José Louzeiro, que foi repórter policial,

enveredou pelo romance — Pixote inspirou o aclamado filme de mesmo nome” (COSTA,

1995, p.183).

Entre os gêneros mais comuns estava o romance-reportagem. Os jornalistas se

apropriavam de todo tipo de material referente à realidade e produziam histórias que em tese

não tinham acontecido. Na verdade, com essa literatura que emprestava da imprensa várias

técnicas (COSTA, 2005, p.156), eles estavam despistando a censura, relatando por meio de

personagens fictícios enredos que certamente poderiam ter sido reais.

Esse misto de ficção e jornalismo podia resultar numa literatura esteticamente inovadora, como o caso de A festa, de Ivan Ângelo. Ou gerar um faction, acrescentando ao fato um pouco de ficção, caso do romance-reportagem. Em meio à ditadura, esses romances falavam a um público interessado em buscar na literatura uma representação da realidade que não conseguia espaço nos meios de comunicação. Construídos literalmente com retalhos de jornal — apurações, notícias, manchetes do dia, telex de agências internacionais, contavam a história que não podia ser escrita (COSTA, 2005, p.156).

A forma de apuração desse tipo de trabalho literário exigia os procedimentos básicos

de uma reportagem, da apuração à forma. “Cartas, notas, documentos, artigos de jornais,

transcrições de conversas, multiplicidade de vozes narrativas, tudo é válido durante a

apuração do fato, antes que ele seja devidamente expurgado de informações incoerentes e

costurado em forma de reportagem” (COSTA, 2005, p.158).

Fora do Brasil, são registradas várias manifestações do mesmo gênero, em diferentes

períodos em que o jornalismo, e o seu compromisso com o real, exerce influência sobre a

literatura.

A relação, por vezes híbrida, por vezes antagônica, eventualmente parasitária, entre jornalismo e literatura não é privilégio dos ficcionistas e poetas brasileiros. A intimidade entre os dois gêneros está na base da dicotomia new/ novels do romance inglês: uma tradição inaugurada por escritores jornalistas, como Daniel Defoe, que tem em Jack London, Charles Dickens e George Orwell seus mais famosos seguidores. E, na França, Émile Zola como seu principal exemplo. Também a ficção e a poesia latino-americanas devem sua força a muitos escritores jornalistas, como García Márquez e Vargas Llosa (COSTA, 2005, p.351).

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Page 43: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

Na literatura latino-americana existem vários autores que, antes de serem notados por

seus livros, atuaram na imprensa. Segundo Martínez, “não é por acaso que, na América

Latina, todos, absolutamente todos os grandes escritores alguma vez foram jornalistas:

Borges, García Márquez, Fuentes, Onetti, Vargas Llosa, Astúrias, Neruda, Paz, Cortázar,

todos, ainda mesmo aqueles cujos nomes não menciono”.18

Um movimento à parte foi formado a partir desses autores-jornalistas, que

encontraram um caminho diferente para a prosa. O romance latino-americano que estourou a

partir da década de 1960 retrata a realidade de um modo totalmente adverso ao realismo até

então exercido pelos escritores europeus como Balzac e Dickens.

Surge uma nova corrente denominada realismo mágico, uma narrativa que não

distingue o fantástico do real, o mito e a história, e é derivada do movimento surrealista,

segundo Martin (1995 apud Herscovitz19). “Os escritores latino-americanos daquela geração

romperam com o realismo tradicional e abraçaram um mundo no qual a fantasia e a realidade

fundiram-se para formar uma nova esfera chamada realismo mágico”20.

Essa geração compartilhava a preocupação com a linguagem e a forma bem como a

ênfase nos “elementos universais da experiência humana” (MCMURRAY, 1987, p.9 apud

HERSCOVITZ), além de uma “visão marxista e a crença de que a literatura tinha um papel

social na América Latina” (FRANCO, 1994 apud HERSCOVITZ). O realismo mágico tem

como base a idéia de que a realidade experimentada nos países latino-americanos impressiona

muito mais que a ficção, pelas experiências fantásticas observadas no cotidiano das pessoas.

Quem conhece a vida na América Latina sabe que o cotidiano surpreende mais do que a ficção. (...) Quem conhece a América Latina sabe que o realismo mágico não é mera distorção da realidade nem uma simples incursão abstrata a um mundo irracional. Mas anda de braços dados com a crença no sobrenatural herdada dos índios da região e dos escravos africanos, terminando por tornar-se quase uma escolha natural dos povos latino-americanos21.

Foi Gabriel García Márquez o principal expoente desse movimento. Ele pertence a

uma geração de escritores que surgiu na década de 1960. Márquez, Mario Vargas Llosa, Julio

Cortazar, Carlos Fuentes, Augusto Roa Bastos, Guilhermo Cabrera Infante, entre outros, 18 MARTINEZ, Tomás Eloy. “Crônica e reportagem: Em busca de um jornalismo para o século XXI”. http://www.ucb.br/comsocial/mba/Textos-Armando.pdf. Acesso em 24 de abril de 2007. 19 HERSCOVITZ, Heloiza Golbspan. “O jornalismo mágico de Gabriel Garcia Márquez”. Disponível em

http://reposcom.portcom.intercom.org.br/bitstream/1904/1245/1/R0085-1.pdf. Acesso em 15 de abril de 2007. 20 Idem. 21 Ibid..

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Page 44: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

transformaram aquele tempo no boom literário latino-americano. “Seus trabalhos ficaram

conhecidos internacionalmente e se tornaram best sellers na América Latina, Estados Unidos

e Europa”. O auge desse sucesso editorial se evidenciou com a publicação, em 1967, do livro

Cem Anos de Solidão, de García Márquez22.

O autor colombiano recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1982, por Cem Anos de

Solidão, obra baseada em sua cidade-natal Aracataca. Márquez, que sempre dividiu sua

experiência jornalística com a literária, deixa isso evidente em seus trabalhos. Ele considera o

jornalismo uma atividade importante para a escrita, um meio de tornar mais verossímil e

concreta a construção das histórias.

O jornalismo me ensinou recursos para dar validade às minhas histórias. Pôr lençóis (lençóis brancos) em Remédios, a Bela, para fazê-la subir ao céu, ou dar uma xícara de chocolate (de chocolate e não de outra bebida) ao padre Nicanor Reina, antes de se erguer dez centímetros do chão, são recursos ou precisões de jornalista, muito úteis. (apud LIMA, 1995, p.183).

2.2. O surgimento do New Journalism nos EUA

O New Journalism é considerado o principal movimento do Jornalismo Literário. Seu

surgimento se deu nos Estados Unidos, em meio a um grupo de jornalistas que fazia de suas

matérias grandes histórias. Os principais veículos de comunicação que aplicaram essa

linguagem foram as revistas New Yorker e Esquire, entre as décadas de 1940 e 1970. Salles

(In MITCHELL, 2003, p.144) afirma que ter um texto aceito pela New Yorker representava

uma tênue mudança de status. Os repórteres que publicavam textos na revista viam-se

chamados de escritores e suas reportagens eram citadas pelos críticos como obras.

Entre os repórteres dessa onda, que modificaram o modo de expor os fatos, estavam

John Hersey, Truman Capote, Gay Talese, Joseph Mitchell, Lillian Ross, Norman Mailler,

Tom Wolfe, James Baldwin, entre outros. Estes se diferenciavam porque deixaram de seguir o

padrão do lead e passaram a valorizar a estética do texto que usualmente só era encontrada na

grande literatura. A jornalista Lillian Ross, que escreveu uma série de reportagens sobre os

bastidores do filme A Glória de um Covarde, dando origem ao livro Filme, afirma:

Quando comecei a fazer a reportagem para ‘Filme’, fiquei muito envolvida com as pessoas sobre as quais estava escrevendo. Eram como personagens de ficção, e a

22 HERSCOVITZ, Heloiza Golbspan. “O jornalismo mágico de Gabriel Garcia Márquez”. Disponível em http://reposcom.portcom.intercom.org.br/bitstream/1904/1245/1/R0085-1.pdf. Acesso em 15 de abril de 2007.

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Page 45: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

ação parecia novelística para mim. Então escrevi uma carta para meu editor, dizendo-lhe que queria escrever a reportagem como se ela fosse um romance.23

Os adeptos do New Journalism, em seus mais diferentes estilos, aplicavam quatro

técnicas básicas — descrição cena a cena, descrição de detalhes, diálogos e valorização do

ponto de vista. Estas foram estudadas e publicadas por Tom Wolfe, jornalista e PHD em

Literatura, no livro Radical Chique e o Novo Jornalismo.

Na mesma medida em que procuravam dar nova formatação para a reportagem, os

autores norte-americanos inovaram pelo modo como captavam informações, muitas vezes

munidos apenas de bloco e caneta — isso quando não levavam nada. Todos tentavam registrar

com riqueza de detalhes as cenas que presenciavam.

O tipo de reportagem que faziam parecia muito mais ambicioso também para eles. (...) Eles tinham desenvolvido o hábito de passar dias, às vezes semanas com as pessoas sobre as quais escreviam.(...) Parecia absolutamente importante estar ali quando ocorressem cenas dramáticas, para captar o diálogo, os gestos, as expressões faciais, os detalhes do ambiente (WOLFE, 2005, p.37).

Todavia, a nova forma de fazer jornalismo, que influenciou a imprensa brasileira —

principalmente a revista Realidade e Jornal da Tarde —, era uma adequação ao estilo que já

era encontrado nos escritores europeus do final do século 19 que seguiam a tendência do

realismo social. Entre eles podem ser citados Balzac, Fielding, Smollett, Gogol, Flaubert e

Dickens (LIMA, 1995, p.150).

A aplicação desses recursos, tanto no que concerne a apuração quanto a redação, gerou

polêmica no jornalismo norte-americano. Críticos da época, entre eles o conservador jornal

Columbia Journalism Review (WOLFE, 2005, p.42), apelidaram o movimento de

“parajornalismo”. Acusavam-se os repórteres do novo jornalismo pelo exagerado intimismo,

além da suposta invenção de informações e diálogos para enriquecer, e falsear, a reportagem.

Em 1966, o lançamento do livro A Sangue Frio, de Truman Capote, redefiniu o

cenário da literatura dos EUA. Até então, repórteres não passavam de renegada subclasse das

letras, formada por pessoas que um dia sonhavam ser grandes escritores — só seriam

devidamente respeitados dentro dos círculos letrados se viessem algum dia a publicar algum

romance de ficção.

Não havia lugar para jornalistas, a menos que ali estivesse no papel de futuro romancista. (...) Não existia algo como um jornalista ‘literário’ trabalhando para revistas ou jornais populares. Se um jornalista aspirava a status literário, o melhor

23 Entrevista concedida a Sylvia Colombo, Folha de S.Paulo, Ilustrada, p. E3, 27 de maio de 2006.

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Page 46: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

era ter o bom senso e a coragem de abandonar a imprensa popular e tentar entrar para a grande liga (WOLFE, 2005, p.18).

Capote, escritor conhecido pela ficção A bonequinha de luxo, mudou os conceitos do

seu tempo, denominando seu trabalho jornalístico — sobre um assassinato de uma família no

Kansas — de “romance de não-ficção” (WOLFE, 2005, p.46). Mal sabia que estava

produzindo a principal obra do New Journalism nos EUA. “Capote comprova que a não-

ficção é tão artística quanto a ficção” (FARO, 1999, p. 69).

O estilo aplicado por ele e outros só prosperou por conta das condições de trabalho —

principalmente o tempo para a elaboração das matérias — que as revistas concediam a seus

colaboradores. Destaca-se também a atuação de editores como Willian Shawn, da New

Yorker.

Shawn era o editor dos sonhos de todo escritor. Não há caso nas letras americanas de alguém que tenha ajudado a afinar tantos textos clássicos. Pela sua mão passaram entre outros, Edmund Wilson (Os manuscritos do Mar Morto), John Hersey (Hiroshima), Mary McCarthy (Memórias de uma menina católica, Venice Observed e The Stones of Florence), S.N. Behrman (Duveen — O Marchand das Vaidades), Lillian Ross (Picture), Hannah Arendt (Eichmann em Jerusalém) e Truman Capote (com quem Shawn trabalhou durante vários anos no manuscrito de A Sangue Frio) (...) Dotado de lucidez e precisão extremas, Shawn substituía palavras quase perfeitas pela palavra perfeita e conseguia imprimir estrutura e forma a textos amorfos. (SALLES In MITCHELL, 2003, p.143)

Os jornalistas tinham um tempo maior que o convencional para entregar suas

reportagens e podiam acompanhar de perto e com freqüência o dia-a-dia de seus perfilados.

Poderia ser um grande astro da música (“Frank Sinatra está resfriado”, por Gay Talese), a

construção de uma ponte (“A Ponte”, por Gay Talese), ou a história de um cidadão nova-

iorquino (“O segredo de Joe Gould”, por Joseph Mitchell).

O aparecimento do novo jornalismo entrou em sintonia com os anseios da década de

1960, marcada pela intensa transformação social. Enquanto os romancistas norte-americanos

se preocupavam com assuntos que fugiam da realidade, os escritores-jornalistas abraçaram as

causas sociais, as manifestações culturais — o feminismo, a liberalidade sexual, o movimento

hippie, o boxe, a violência das ruas e a guerra civil — como o caminho de redenção do

Jornalismo Literário.

A pauta estava escancarada; bastava a liberdade para escrever e pesquisar sobre aquilo

que se pretendia. “(...) Os Estados Unidos dos primeiros anos da década de 60 viviam a

grande efervescência das transformações sociais, comportamentais e culturais da

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Page 47: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

contracultura e correntes paralelas — como a ‘consciência negra’ — mas a literatura não se

alertava para isso” (LIMA, 1995, p.147).

2.3. Livro-reportagem com extensão do Jornalismo Literário

O jornalismo e a literatura têm como espaço ideal de junção o livro-reportagem. É nele

que os recursos literários podem ser aplicados à reportagem. Segundo Lima, esta modalidade

se caracteriza como um meio de veiculação importante do Jornalismo Literário, que

“desempenha um papel específico, de prestar informação ampliada sobre fatos, situações e

idéias de relevância social, abarcando uma variedade temática expressiva” (1995, p.15).

Podem ser citados exemplos como Olga, de Fernando Morais; 1968 O Ano que não

terminou, de Zuenir Ventura; Xingu: uma flecha no coração, de Washington Novaes (1995,

p.15). O gênero é visto como um sistema híbrido, “ligado tanto ao sistema jornalismo quanto

ao sistema editoração” (LIMA, 1995, p.19).

Segundo Lima, o livro é a modalidade que melhor desempenha a proposta de

aprofundar os relatos, de ampliar o entendimento da realidade.

O livro-reportagem cumpre um relevante papel, preenchendo vazios deixados pelo jornal, pela revista, pelas emissoras de rádio, pelos noticiários da televisão. Mais do que isso, avança para o aprofundamento do conhecimento do nosso tempo, eliminando, parcialmente que seja, o aspecto efêmero da mensagem da atualidade praticada pelos canais cotidianos da informação jornalística (1995, p.16).

A obra pode nascer de duas propostas; pode resultar de uma ou mais reportagens sobre

determinado tema ou ser concebida especificamente para se transformar em livro.

Exemplificando o último caso, tem-se a biografia que Fernando Morais escreveu sobre o

jornalista Assis Chateaubriand, Chatô, o rei do Brasil. É possível observar a estética da

literatura aplicada a um tipo de jornalismo não-periódico neste trecho em que Morais relata o

dia em que o menino Chateaubriand decidiu em definitivo largar o emprego de atacadista de

tecidos para tentar trabalhar em jornal:

Chamou o amigo Severino, que entrara junto com ele na Othon Mendes & Cia., e propôs que deixassem juntos o emprego. Severino discordou, argumentando que lá eles poderiam continuar estudando e, além disso, ganhavam relativamente bem. Ambos eram pobres e tinham obrigação de ser prudentes. Mas Chateaubriand já sabia o que queria: — Severino, ser prudente é antes de tudo ser medíocre. Vamos passar o resto da vida com os cotovelos plantados nesse balcão, cortando pano. Se você quer dedicar

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Page 48: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

sua vida a ser o homem da tesourinha, eu não tenho vocação para isso. Vou-me embora amanhã mesmo (MORAIS, 2006, p.49).

Para ser válido do ponto de vista jornalístico, o livro-reportagem deve estar em

sintonia com a verdade, deve “servir a distintas finalidades típicas ao jornalismo, que se

desdobram desde o objetivo fundamental de informar, orientar, explicar” (LIMA, 1995, p.30).

Deve também se dar em um grau de amplitude superior aos outros periódicos. “O

livro-reportagem (...) é muitas vezes fruto da inquietude do jornalismo que tem algo a dizer,

com profundidade, e não encontra espaço para fazê-lo no seu âmbito regular de trabalho”

(LIMA, 1995, p.33).

Diante das dificuldades impostas pela maioria dos jornais e revistas ao

aprofundamento e à intensificação da narrativa, principalmente no Brasil, o livro-reportagem

tem sido a saída para muitos jornalistas que desejam relatar os fenômenos sociais com maior

grau de imersão.

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Page 49: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

III. O surgimento da revista Piauí

A revista Piauí foi pela primeira vez às bancas em outubro de 2006, sob a direção de

João Moreira Salles24, dono da Vídeofilmes, e Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras. A

equipe é formada por Mario Sergio Conti (diretor de Redação), Enio Vergeiro (diretor

comercial), Marcos Sá Corrêa e Dorrit Harazim — como editores —, Xico Vargas (secretário

de redação), Raul Loureiro e Claudia Warrak (arte), Nildon Rerreira (revisor), além dos

repórteres Cassiano Elek Machado, Consuelo Dieguez, Cristina Taráguila, Daniela Pinheiro,

Luiz Maklouf Carvalho, Raquel Zangrandi e Roberto Kaz.

Seu lançamento foi resultado de uma articulação entre grupos de destaque na

comunicação brasileira, tendo pré-lançamento em um dos principais eventos literários do país,

a Festa Literária de Parati, no Rio de Janeiro, em agosto de 2006. Em setembro, João Moreira

Salles assinou um contrato de distribuição e impressão da revista com a Editora Abril. A

revista começou a circular em 9 de outubro em São Paulo e dias depois no Rio de Janeiro e

restante do país. A repercussão na mídia foi grande, já havendo a comparação da Piauí com

veículos associados ao Jornalismo Literário. Na matéria “Jornalismo literário e ficção marcam

estréia da revista Piauí”, publicada pela jornalista Sylvia Colombo na Folha de S.Paulo, isso

fica evidente. Uma nova revista chega às bancas nesta semana. Com um nome que nem seus criadores sabem explicar direito, Piauí tem espírito híbrido. Será uma mistura de reportagens ao estilo "new journalism" (ou jornalismo literário) com crônicas, perfis e diários - de temas preferencialmente nacionais -; além de textos ficcionais. (...) O primeiro número traz colaborações de nomes consagrados da imprensa nacional, como Ivan Lessa, que descreve seu retorno ao Brasil após mais de 28 anos, e Danuza Leão, que faz um perfil do estilista Guilherme Guimarães, além do ilustrador Angeli, que desenha a imagem da capa - um intrigante pingüim de geladeira com boininha de Che Guevara.(...)25

De periodicidade mensal, a revista é distribuída em todo território nacional. Chama

atenção dos leitores por uma série de características, como interatividade, linguagem

24 João Moreira Salles é um documentarista que ficou conhecido principalmente no final da década de 1990, com Notícias de uma guerra particular (1999), documentário que trata sobre a guerra da polícia com o tráfico no Rio de Janeiro, co-dirigido com Kátia Lund. Com o irmão Walter Salles, fundou a produtora VideoFilmes em 1987, que a princípio trabalhava com a realização de documentários para a televisão. Disponível em http://www.filmeb.com.br/quemequem/html/QEQ_profissional.php?get_cd_profissional=PE245. Acesso em 27 de agosto de 2007. 25 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u64970.shtml. Acesso em 7 de agosto de 2007.

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Page 50: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

descontraída e ao mesmo tempo rica, valorização de ilustrações, tipologia e fotos, além de se

diferenciar pelo tamanho e tipo de papel.

A revista é impressa em um papel pólen soft, com gramatura 70 nas páginas internas e

90 na capa. Sua dimensão é de 26,5 x 35 cm. O logo Piauí é impresso com a fonte Trade

gothic bold. Já nos textos usa-se a tipologia Electra old style, em corpo 10. A fonte utilizada

nos títulos é Trade gothic condensed bold, em corpo 20.

Tantas curiosidades, a começar pelo nome, escolhido pela equipe por ser sonoro e

conter muitas vogais. Em entrevista concedida para este trabalho, o editor João Moreira Salles

explica que o nome surgiu “de uma idiossincrasia. Gosto de palavras com muitas vogais, e

Piauí tem várias. O som é bonito. Parece banal, e talvez seja mesmo, mas a razão é essa.

Vogais amolecem as palavras. Elas ficam mais simpáticas. Piauí é uma palavra simpática”.26

As capas da revista, um conteúdo à parte de Piauí, se destacam pela criatividade das

ilustrações. Salles comenta:

A capa é considerada conteúdo editorial. Ou seja, é a primeira informação que o leitor encontra sobre o espírito da revista. Nem sempre (ou quase nunca) tem relação com as matérias que estão lá dentro. A arte propõe alternativas, todo mundo opina e o diretor de redação tem a palavra final.

Piauí, afora tantas peculiaridades, destaca-se principalmente por sua linha editorial. É

uma revista que tem a pretensão de falar sobre diferentes temas, sob um enfoque diferenciado,

privilegiando a voz autoral e a reportagem. Questionado sobre os valores que norteiam o

trabalho jornalístico da revista, João Moreira Salles responde:

Nada de tão sisudo assim. Não sei se temos ‘propostas, conceitos e valores’. É um pouco mais simples. Queremos fazer uma revista boa de ler, divertida, que dê tempo aos repórteres para apurar e escrever. Dizer mais do que isso vira teoria, e não somos bons disso.

Quando do lançamento da revista, no ano passado, muito se falou em uma reedição de

revistas consagradas como Realidade, Senhor e New Yorker, que revolucionaram o jornalismo

na década de 1960, por imprimir a linguagem do New Journalism a grandes reportagens. O

editor de Piauí faz questão de tentar apagar essa imagem criada e nega a intenção de se

produzir Jornalismo Literário. “Acho que existem textos bem ou mal escritos, e só”.

A revista produzida pela Editora Alvinegra e distribuída pela Abril tem como regra

básica o apreço pelo bom texto. Isso se dá tanto no processo de redação, quanto no de

26 Entrevista concedida ao autor, por e-mail, em 25 de junho de 2007.

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Page 51: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

apuração, e se inicia ainda na elaboração das pautas. Fugindo da cobertura do noticiário

comum, Piauí inova a agenda jornalística, oferecendo novos ângulos da realidade.

Questionado sobre esse aspecto, Salles explica:

Porque os temas do noticiário já estão sendo tratados pelo noticiário. Não haveria sentido em criar mais uma revista para cobrir as mesmíssimas histórias. Isso não significa que estejamos despregados do país. Cobrimos assuntos que interessam – mas sem pressa, publicando meses depois, ou de forma diferente. Exemplos: perfil do Luiz César Fernandes, esquina do Roberto Jefferson, matéria da moda, e assim por diante.27

O editor da revista comenta que o processo de levantamento de pautas se dá

“anarquicamente”. Não há pressa para a publicação de determinados assuntos, tampouco

restrições ideológicas:

Cabe tudo, de arqueologia a odontologia. Nenhuma obrigação, nenhuma pauta imprescindível. Não precisamos falar do Renan Calheiros, por exemplo, mas também não temos por que não falar dele. O que importa é que a história seja bem escrita e que o conjunto seja interessante: temas mais sérios ao lado de histórias em quadrinhos, brincadeiras tolas com matérias apuradas ao longo de meses, textos breves ao lado de textos longos. O segredo está nessa combinação de assuntos e tons.

O cotidiano da redação de Piauí é determinado pela ida e vinda de colaboradores para

concluírem seus textos. A rotina é diferente daquela verificada nos grandes jornais e revistas.

Não existe reunião de pauta, as matérias vão surgindo informalmente, da conversa entre os repórteres e o diretor de redação. Somos muito poucos; dez passos e se chega a qualquer mesa. Nosso processo não tem nenhuma liturgia, nenhuma formalização. Também não temos editorias, o que nos desobriga a ter assuntos obrigatórios – política, esporte, economia, etc. No início do mês a redação fica relativamente vazia, e à medida que o mês avança, as pessoas vão ocupando as suas mesas para escrever as matérias.

O cineasta afirma que o mercado publicitário ainda está “cauteloso”. Ele acredita que

isso acontece porque Piauí não possui um segmento específico de leitores.

Não somos uma revista de nicho, ou seja, não falamos com um público específico – adolescentes, fumadores de cachimbo, amantes do cinema asiático. O anunciante tem dificuldade em identificar o leitor da Piauí. Na verdade, nós também temos. Ele está espalhado por todas as faixas etárias e de renda. Com o tempo, esperamos que o mercado publicitário decida que é bacana anunciar na Piauí porque a revista reúne uma fatia da população que lhe interessa. Isso leva tempo para acontecer.

27 Entrevista concedida ao autor, por e-mail, em 25 de junho de 2007.

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Page 52: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

Piauí valoriza a densidade do texto, trazendo em suas páginas reportagens mais

extensas do que as convencionais. João Moreira Salles nega que esse aspecto direcione a

revista para um público mais intelectualizado.

Acho que essa é uma percepção errada do conteúdo da revista. É claro que apostamos na inteligência do leitor, mas isso não é privilégio nosso – toda revista que se preza não pode menosprezar quem a lê. O erro é supor que todos os textos exigem atenção redobrada, como se publicássemos ensaios de filosofia alemã. Alguns textos são mais longos, é verdade, mas muitos não passam de uma página, às vezes de meia-página, às vezes, como no caso das esquinas, não passam de uma coluna. A regra da piauí é: os textos terão sempre o espaço que precisam ter. Histórias que precisam ser contadas em seis páginas não serão contadas em cinco. E histórias que podem ser contadas em três colunas não serão contadas em uma página.28

Quanto ao retorno que Piauí encontra junto ao público, Salles é otimista. Para ele, a

revista tem agradado a seus leitores, por levar um conteúdo descontraído e ao mesmo tempo

enriquecedor. “(...)As pessoas gostam da novidade, se divertem com uma revista que não se

leva tão a sério assim”. Por outro lado, considera como ponto negativo, ironicamente, a falta

de identificação, de utilidade da revista para o leitor. “Adianto logo: não adianta para muita

coisa não. Assim como um filme não adianta para nada, uma escultura não adianta para nada,

um jogo de futebol não adianta para nada”.

3.1 As seções da revista

Piauí é uma publicação mensal com média de 72 páginas por edição. Sua circulação é

de 70 mil exemplares. Conta com uma sólida carteira de anunciantes, entre instituições

financeiras (Itaú e Banco Real), universidades (Univer Cidade), indústrias (Aracruz), empresa

de telefonia celular (Oi), canais de TV paga (Sportv, Canal Brasil e Telecine) e ainda

inserções de eventos e casas de arte e cultura, além de editoras e revistas (Companhia das

Letras, Caros Amigos e Cult). A publicidade em média ocupa 25 páginas por edição. Até

agosto de 2007 a revista possuía 16.200 assinantes e cerca de 20 mil exemplares vendidos

avulsos por mês, em bancas, revistarias e livrarias.

A divisão da revista em seções demonstra o interesse de seus editores em inovar nas

pautas. Há poucas seções fixas. Como a própria linha editorial define, não há um tamanho

específico para os textos. Isso faz com que Piauí seja viva, dinâmica. A cada novo número, o

28 Entrevista concedida ao autor, por e-mail, em 25 de junho de 2007.

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Page 53: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

leitor se surpreende com um título diferente, um assunto curioso. São sugeridas novas

abordagens conforme diferentes visões da realidade sobre as quais os colaboradores se

debruçam.

Piauí diferencia-se por não possuir editorial, nem colunistas fixos. Os redatores têm

mais tempo para concluir seus trabalhos. Como as matérias não são factuais, há um tempo

maior de elaboração até seu fechamento. As seções mais comuns, que estão presentes desde o

primeiro número são: Poesia, Chegada, Esquina, Horóscopo, Despedida e Diário. Também

são freqüentes Portfolio, Ficção, Perfil, Vidas Literárias e Concurso Literário, explicados

adiante:

Poesia: Seção itinerante. Sua inserção ocorre sempre dentro de outra, com vários

estilos de texto.

Chegada: Seção de abertura da revista, traz sempre uma novidade: o lançamento de

algum evento, uma descoberta científica e até o nascimento de uma criança.

Esquina: Uma das seções mais comentadas da revista, traz textos não assinados que

são editados por João Moreira Salles. São matérias que falam sobre assuntos, lugares e

eventos pitorescos — como um “Vale-tudo Gay” em Belém (PA) ou o hábito do poeta

Ferreira Gullar de copiar quadros famosos.

Horóscopo: Não tem nada de semelhante ao que se publica em outros veículos, com

exceção da divisão zodiacal dos signos. No restante, o colunista Chantecler faz comentários

pessoais e provoca os leitores com pensamentos inusitados, curiosos e engraçados.

Despedida: É uma espécie de obituário, mas bem diferente do convencional. São

matérias sobre personalidades, mais conhecidas ou não, que morreram recentemente. Pode ser

um político ou até o criador do macarrão lámen, por exemplo, que muita gente não conhecia,

apesar de consumir o produto.

Diário: Parte interessante da revista em que pessoas falam sobre seu cotidiano no

ambiente de trabalho, em casa etc. Faz-se um relato dia a dia. Apesar de não estar em análise,

se enquadra perfeitamente no chamado Jornalismo Literário. Os relatos são sempre na

primeira pessoa do singular. Pode ser um ascensorista, uma costureira, uma atriz.

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Page 54: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

Portfolio: Geralmente é a exposição de trabalhos de artistas, fotógrafos, pintores,

colecionadores — uma forma de divulgação de produtos diferenciados e curiosos como uma

coleção de livros antigos cujos temas e títulos são engraçados ou então a coleção de capas de

revista, para diferentes segmentos, em que figure o mesmo personagem.

Ficção: Geralmente é um espaço para a inserção de pequenos contos. Raro na

imprensa brasileira contemporânea, muito comum nos jornais do século 19.

Perfil: Uma das seções em que o conceito de Jornalismo Literário mais está presente.

Apresenta detalhes da vida de pessoas conhecidas, cuja notoriedade social muitas vezes oculta

características interessantes. Entretanto, há espaço também para pessoas de outros círculos

sociais. Pode ser Lilly Marinho ou a funcionária de um trio elétrico em Salvador.

Vidas literárias: É inserida, assim como Poesia, no meio de outras seções em formato

de história em quadrinhos. Tenta mostrar aspectos obscuros da vida de diferentes escritores e

pensadores exaltados por sua produção intelectual. Tenta desconstruir a imagem absoluta e

perfeita erguida ao longo dos anos. Humaniza os mitos. Conta a história, por exemplo, de

Marcel Proust, que montou um bordel para espiar os fregueses e Tolstoi Eduard Sorel, que

fica depressivo ao desconfiar que estava milionário.

Concurso Literário: Uma das seções mais pitorescas da revista, Concurso Literário

permite que escritores encaixem frases aparentemente sem sentido em curtas narrativas de

ficção. Exemplo: “O gongo bateu na lateral da locomotiva e nenhum passageiro arriscou um

pio”.

Os outros títulos que aparecem na revista não podem ser caracterizados como seções

por não serem fixos. De qualquer modo, demonstram o caráter multifacetado da cobertura

jornalística da Piauí. Representam a possibilidade de se criar abordagens diferentes para

aspectos da realidade antes enquadrados em editorias convencionais — Cidades, Política,

Geral, Economia, Cultura. A seguir, um resumo das edições publicadas entre setembro de

2006 (experimental) e julho de 2007 — período considerado para esta pesquisa.

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N.º 0 (piloto) - setembro de 2006

Foi lançada para um público restrito, durante a Festa Literária de

Parati, no Rio de Janeiro. Traz reportagens que dão o tom da revista,

desde já prometendo novas perspectivas para o texto jornalístico, a

exemplo de um roteiro gastronômico barato em “Como comer mal

em Brasília”.

N.º 1 – Outubro de 2006

A primeira edição de Piauí foi às bancas no dia 10 de outubro, em

São Paulo. Traz um perfil do estilista Guilherme Guimarães escrito

por Danuza Leão. Em Esquina, João Moreira Salles faz uma

reportagem sobre Roberto Jefferson, envolvido no escândalo do

mensalão. Um ensaio de Roberto Pompeu de Toledo disserta sobre a

importância do papagaio como representação da nacionalidade

brasileira.

N.º 2 – Novembro de 2006

A edição, que traz uma charge de Che Guevara na capa, conta em

Diário o cotidiano do médico capixaba Jório de Barros. Luis

Maklouf Carvalho relata as circunstâncias do nascimento de

Francisca em uma humilde família que vive às margens da rodovia

BR-163 (Cuiabá - Santarém). Aureliano Biancarelli fala de uma

mulher de 75 anos que doou seu corpo para a Universidade de São

Paulo.

N.º 3 – Dezembro de 2006

A revista está ilustrada com desenhos produzidos por Millôr

Fernandes, inclusive a capa. Em Chegada há uma matéria sobre o

nascimento de Juan Manuel, filho de peruanos, no Brasil. Traz

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matéria sobre os mitos acerca de supostos métodos que prometem aumentar o órgão genital

masculino. Há ainda o perfil do professor doutor em ciência política pela USP, Emir Sader.

Fernanda Torres fala sobre as dificuldades de ser atriz no Brasil.

N.º 4 – Janeiro de 2007

A edição traz na capa uma imagem sugestiva para o verão, as ondas

do mar. Em Chegada, o nascimento de Arthur, pesando apenas 385

gramas, que conseguiu sobreviver. Texto em Esquina expõe o hábito

do poeta Ferreira Gullar de copiar quadros famosos. Destaque para a

matéria sobre uma comunidade internacional de lingüistas que

traduz a Bíblia para dialetos ou idiomas quase extintos, com menos

de mil falantes, como o nadëb na Amazônia. Foi publicado também

o perfil de Lily Marinho, por Danuza Leão, e “A São Silvestre do Ziriguidum”, por Vanessa

Barbara. Há ainda uma coleção de livros com temas e nomes peculiares.

N.º 5 – Fevereiro de 2007

A edição apresenta na seção Dossiê Urbanismo e Arquitetura, dentre

outras, uma matéria de George Packer sobre a cidade de Lagos, na

Nigéria, que sofre de problemas decorrentes do superpovoamento

descontrolado e da falta de infra-estrutura para possibilitar o mínimo

de dignidade e oportunidade a todos. Daniela Pinheiro faz o perfil de

Lícia Fábio, que trabalha na organização de camarotes para o

carnaval de Salvador (BA).

N.º 6 – Março de 2007

Ronaldo Pena conta como ciclistas de São Gonçalo (RJ) pedalam

1.200 quilômetros até Porto Seguro. Em Esquina há uma matéria

sobre a escolha das novas sete maravilhas do mundo. Em “Nós que

nem roubávamos tanto”, o jornalista Cadão Volpato conta histórias

do tempo da ditadura militar. Há também uma matéria sobre a

Insônia Familiar Fatal (IFF). Ao final da revista, o texto “Os

presentes de Alice”, de Cláudio Parreira, vencedor do primeiro

Concurso Literário da Piauí. O concurso continuou nas edições seguintes.

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N.º 7 – Abril de 2007

Uma das matérias analisadas neste trabalho, “Como se jogar na

balada”, de Daniela Pinheiro, fala sobre as casas noturnas

paulistanas. A edição inclui um texto sobre a mulher que escreve por

encomenda e não se identifica. Há um perfil de Heber Trinta,

funcionário da Biblioteca Nacional e freqüentador assíduo das

reuniões da Academia Brasileira de Letras, pelo jornalista Roberto

Kaz. Em Portfolio, várias capas produzidas por Peter Paulo Vitor de

Brito, em que ele é o modelo em evidência.

N.º 8 – Maio de 2007

Em Tipos Brasileiros, matéria sobre os homens que costumam usar

sunga preta nas areias de Copacabana. Maria Blasberg e Anita

Blasberg relatam as histórias de vida de duas figuras antagônicas em

Abu Ghraib — o torturador e o torturado. Luis Maklouf Carvalho

apresenta reportagem sobre blitz policial com uma abordagem

diferente. Em Vidas Literárias, a história de Norman Mailler, um dos

adeptos do New Journalism.

N.º 9 – Junho de 2007

Em Chegada, texto sobre o Campeonato Nacional de Ioiô. Em

Esquina, uma matéria sobre o encarregado de dar nome às operações

da Polícia Federal, como Hurricane e Navalha. A costureira Ângela

Tavares da Silva conta como é seu dia-a-dia, consertando calcinhas.

Roberto Kaz fala sobre Adriana Macagi, que vende seus gametas

para outras mulheres engravidarem. Marcos Sá Corrêa descreve

Itaipulândia (PR), onde nove mil habitantes vivem próximo a uma

das principais usinas hidrelétricas do país.

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Page 58: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

N.º 10 – Julho de 2007

O músico Nando Reis relata sua turnê de shows em Diário. Em

Chegada, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) faz o

5º congresso anual, decidindo novas políticas e organizando novos

protestos. Em Portfolio, fotos feitas por Carlos Moskovics retratam

cenas esportivas. Em Turnê Gansta, reportagem de Luis Maklouf

Carvalho — avaliada neste trabalho dentro das perspectivas do

Jornalismo Literário — fala sobre o mundo do rap. Cadão Volpato

conta a história da vida de Renato Russo.

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Page 59: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

IV. Análise textual

Nesta fase do estudo serão feitas análises de textos de Piauí com o propósito de

evidenciar características do Jornalismo Literário na revista. As observações feitas baseiam-se

em apontamentos de pelo menos dois autores. O primeiro deles é Tom Wolfe, autor que

sistematizou as principais características do Novo Jornalismo. São elas: detalhes, ponto de

vista, diálogos e descrição cena a cena.

Outro estudioso importante para esta análise é Edvaldo Pereira Lima, que reformula as

teses de Wolfe, fazendo novas considerações, entre elas a questão da humanização dos relatos

e da imersão do repórter, além de acrescentar outras características às básicas do New

Journalism. Lima considera também: fidelidade às fontes e à documentação; uso de metáforas

e do “sumário” — começa-se o texto por um ângulo secundário ao objeto principal da

matéria.

Tendo como base teórica Wolfe e Lima, decidiu-se escolher como objeto de estudo

quatro reportagens da Piauí escritas por jornalistas brasileiros. A revista possui outros textos

perfeitamente enquadrados no gênero reportagem, porém escritos por personalidades diversas

— como músicos, atores e profissionais autônomos. Será analisada uma matéria a cada

trimestre, considerando-se a primeira edição da revista, datada de outubro de 2006.

4.1. “O cheiro de cimento me inebria”, de Danuza Leão (edição nº 1, outubro de 2006)

A reportagem retrata a vida de Guilherme Guimarães, um estilista que desde a infância

é apaixonado pelo mundo da moda. O texto, que pode se enquadrar perfeitamente no que

Cremilda Medina chama de “perfil humanizado”, tem vários recursos do Jornalismo Literário.

A humanização do relato — dentre um dos aspectos — é notada na valorização que se dá a

tudo que Guilherme diz a respeito de sua vida. Faz-se isso por meio do que Lima define como

“citações diretas”. As falas de Guimarães, em diálogo com as de Danuza Leão, constroem a

trama e revelam até mesmo preconceitos do perfilado.

Um segundo ponto importante é a imersão da repórter Danuza Leão na realidade que

quer retratar, visitando diferentes cômodos da casa do estilista e de seu mundo pessoal. Outra

característica notada é a intervenção constante que a jornalista faz durante o texto,

valorizando o seu próprio ponto de vista na narração.

Ressalte-se ainda que o gênero da reportagem, o perfil, é um dos mais produzidos

pelos adeptos do Jornalismo Literário.

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Page 60: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

A descrição de objetos é um ponto-chave do trabalho. À medida que se conhece o

ambiente da casa, os móveis, as peças decorativas, são desvendados novos aspectos da vida

do estilista Guilherme Guimarães.

A naturalidade da escrita e a recusa à técnica do lead favorecem a construção de uma

história real que tem qualidade estética e se aproxima da literatura, dando vida e perenidade à

reportagem. É um texto que poderá ser lido daqui a muitos anos, sem que perca a capacidade

de impressionar e seduzir o leitor. No primeiro parágrafo, Danuza Leão faz uma apresentação

do perfilado, seguida de uma citação direta que deixa transparecer preconceitos e gostos

pessoais do personagem. Poderia também ter sido um decorador de sucesso extraordinário. Por que não foi? “Porque não agüentaria que um casal viesse me dizer que queria uma sala com hometheatre para ver novela com as crianças”, responde, na lata. “Gente assim, só matando”.

Nota-se o uso de uma metáfora para descrever com exatidão o que Guilherme queria

fazer com sua piscina, comparando-a com um cinzeiro. Com isso a repórter quer demonstrar a

disposição de Guilherme em alterar sua casa, com independência e ousadia.

Um dia, ele juntou uma turma de pedreiros para mudar a posição da piscina. Apenas uma virada, como se faz com um cinzeiro. “Sou louco por uma obra, o cheiro do cimento me inebria”, ele diz. Nas suas infindáveis reformas, jamais recorre a arquitetos e decoradores. Faz tudo sozinho.

Logo no início do segundo parágrafo nota-se a importância da narradora na

reportagem, valorizando seu ponto de vista. Ela interfere sem discrição no andamento do

texto, deixando evidente sua presença e estilo. Conta detalhes da visita ao apartamento do

entrevistado, como sua obsessão pela pontualidade.

É quase impossível descrever seu apartamento no Rio. Há pouco tempo, numa noite de sexta-feira, ele fez um tour pela propriedade, respondendo às perguntas minhas e de um amigo. Havíamos marcado o encontro para as 19 horas. Cometemos a imprudência de chegar com três minutos de antecedência. Tocamos a campainha e ele só apareceu, saltitante, três minutos depois, alegríssimo consigo mesmo e com sua pontualidade.

Aproveita para fazer a descrição de uma cena; a de entrada na residência, para depois

descrever o primeiro ambiente com que se depara: a sala, o hall, e alguns objetos nele

inseridos. Para tanto, utiliza-se também de comparações.

Atravessamos uma porta pesada, viramos à esquerda e caímos numa contradição: uma saleta enorme — quando é sabido que as saletas, por definição, são pequenas. A salinha ficou grande porque há espelhos por todo lado, do chão ao teto, refletindo

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Page 61: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

um lustre de cristal um pouco menor do que a catedral de Chartres, cortinas pesadas como mármore e um deslumbrante busto marroquino, de mármore de verdade.

Segue-se no terceiro parágrafo a descrição de uma sorte de objetos que mostram o

status social, traços da personalidade e da vida do estilista — apreço pelas artes, por peles, por

luxo.

Cada centímetro cúbico está ocupado por bibelôs, peças de antiguidade, objetos artísticos, adereços, cadeiras, almofadas, tapeçarias, biombos, estatuetas, cinzeiros, revistas, tapetes de zebra com rabo e tudo, pufes, poltronas forradas de pele de tigre, porta-retratos com fotos das maiores amigas do proprietário, estantes com livros encadernados em couro, vasos de todos os tamanhos e formatos, troços, coisas, trecos. Orgulhoso, ele nos mostra um pequeno tinteiro recoberto com couro de crocodilo negro do Nilo, e com estabilizador, para o caso de o navio balançar - foi do Titanic.

Um detalhe apontado por Danuza Leão — ela não foi convidada a sentar-se no sofá —

mostra aparentemente o apego e o cuidado exagerado que o estilista tem com os móveis e

outros bens.

Guilherme sabe de onde cada objeto veio, quando o comprou e onde o viu pela primeira vez. Ele aponta tudo, e, estranhamente, não nos convida a sentar. Parece um tanto aflito quando ameaçamos tocar em algo. Esclarece que é proibido sentar nos sofás e cadeiras, para não amassar as almofadas de plumas. Também não se bate a cinza nos cinzeiros, para não sujar. Uma de suas muitas loucuras é ter a casa arrumada, arrumada em excesso, arrumadéssima, repleta de flores e com suas centenas de objetos no lugar certo. Se um deles estiver um centímetro mais para lá ou para cá, ele, enquanto conversa, dá uns passinhos curtos e o põe no ponto exato em que deveria estar.

Danuza prossegue no quarto parágrafo seu tour pela casa de Guilherme e

consequentemente por detalhes do cotidiano do personagem, como a forma de negociar os

trabalhos no escritório. Novos objetos são encontrados e comentados.

À direita da entrada fica um escritório. É nele que Guilherme recebe suas clientes. Ele as escuta com atenção, faz desenhos pequenos com as idéias que trazem, fixa o preço do trabalho—e estamos conversados. “Se a cliente não abre o talão de cheque, não fico feliz”, resume. E se não fica feliz, neca de roupa. O tour prossegue, e caímos num salão. Há estantes e mais estantes de livros encadernados em couro e com apliques dourados. Há um bureau com dezenas de revistas de decoração estrangeiras. Todas têm na capa papeizinhos amarelos, chamando a atenção para determinadas páginas. Nelas estão assinalados objetos de desejo de Guilherme.

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Page 62: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

Em um trecho do quinto parágrafo, Danuza Leão comenta o fascínio de Guilherme

pelo glamour desde pequeno, explicando a razão de ter encontrado tantos objetos de arte,

peles, quadros e revistas pela casa. Faz uma retrospectiva na vida do estilista, contando sobre

sua adolescência, fase em que já sonhava ser um grande estilista. A repórter inicia, deste

modo, um segundo tempo narrativo dentro da reportagem, o qual vai entremear com o tempo

narrativo principal — em que se retratam os detalhes da visita à casa do estilista.

Desde criança, Guilherme sempre foi fascinado pelo glamour social—do Brasil e do mundo—, pelas artistas de cinema, por objetos de decoração e roupas. Alimentava o fascínio comprando as revistas Vogue, Harper’s Bazaar e, no Brasil, Cena Muda, Sombra e Rio Magazine. Anotava tudo o que lia num caderninho e sabia—sabe até hoje—quem casou com quem, como era o vestido, como eram as jóias, como foi a festa, o que foi servido e quem eram os convidados (isso, sem conhecer ninguém). Com essas preocupações, não podia ser um bom aluno. Passava as aulas desenhando vestidos e só se interessava por aprender inglês, francês e geografia. “Eu sonhava com os lugares do mundo onde pretendia ir, e precisava saber as línguas para poder viajar”.

No parágrafo seguinte, a cena em que a mãe vê o filho Guilherme lendo uma matéria

no jornal deixa evidente sua orientação sexual e os preconceitos sofridos por ele. É uma

oportunidade que as formas narrativas do Jornalismo Literário possibilitam para que assuntos

de interesse da sociedade sejam colocados e levem, ainda que por poucos instantes, o leitor à

reflexão, ao mesmo tempo em que uma nova voz, a de Guilherme, pode ser escutada no

cenário contemporâneo.

Um dia, aos 14 anos, lia num jornal sobre um crime que acontecera no Rio e que se tornaria célebre: um homossexual havia sido morto por seu caso com um castiçal na cabeça. Sua mãe o viu e disse apenas uma frase: “Eu preferia ter um filho morto a ter um filho homossexual”. A vida tem suas coincidências cinematográficas: Guilherme estudava num colégio de padres barnabitas e, no dia seguinte, um dos homens de batina o chamou para dar uma notícia triste: Guilherme seria expulso do colégio. Mas por quê? Porque as mães dos outros alunos haviam feito um abaixo-assinado pedindo a expulsão, por ele ser “diferente”.

No sétimo parágrafo, a jornalista continua com um recorte da história de vida do

estilista, descrevendo as circunstâncias em que se deu a primeira experiência sexual de

Guilherme, bem como o uso de um discurso indireto livre — Danuza reproduzindo, sem usar

aspas, um pensamento ou afirmação do entrevistado sobre seu parceiro sexual.

O garoto, que morava em Laranjeiras, passou o dia inteiro zanzando pelo bairro, sem saber o que fazer, como chegar em casa, como contar à mãe. Já de tarde, entrou nas Lojas Americanas para comprar um caderno de desenho e topou na porta com um rapaz que conhecia de vista, nadador do Fluminense. Em desespero, pensou:

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Page 63: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

“Se ele me chamar, eu vou”. Ele chamou, Guilherme foi, e teve sua iniciação sexual. Atenção: o rapaz era lindo.

Aparece logo em seguida o uso de um recurso utilizado no New Journalism, o diálogo

rápido entre Guilherme e sua mãe parecem fazer um prognóstico favorável para o futuro do

jovem. É ao mesmo tempo uma chance de a narradora se demonstrar onisciente.

Quando chegou em casa, a mãe já sabia da expulsão e lhe perguntou: “O que é que você vai ser na vida, sem estudo?”. “Não sei, só sei que vou sair na coluna de Ibrahim todo dia”, respondeu, referindo-se à coluna social mais em evidência. A si mesmo Guilherme jurou, à Vivien Leigh em E o vento levou: “Eu vou ser rico e famoso e nunca mais vou me importar com o que falarem de mim!” Uau.

Voltando aos dias atuais e ao tempo narrativo da visita — o tempo do leitor — Danuza

transita pela casa do estilista. Ao subir a escada, volta ao passado, explicando como

Guilherme a construiu.

Agora é a hora de subir a escada. O costureiro chamou um arquiteto para projetá-la, achando que não saberia fazê-la sozinho. O arquiteto fez um orçamento. Coisa de R$50 mil. Um pedreiro disse que saberia como fazê-la. Guilherme desistiu do arquiteto e fez a escada com o pedreiro.

A descrição do ambiente continua.

No que era o hall do andar de cima, ele vedou a porta do elevador com um espelho. Nesse pequeno ex-hall, instalou o bar. Sobre a mesa, com todas as bebidas que se possa imaginar—além dos copos certos para cada uma delas, de vários abridores de garrafa, saca-rolhas, guardanapinhos —, também se vê o ponteiro que indica em qual andar está o elevador.

Em seguida, a jornalista conta o episódio em que Guilherme destruiu a casa

arquitetada por famoso arquiteto e ao final utiliza uma citação direta do personagem.

Uma vez, Guilherme comprou uma casa projetada pelo arquiteto Zanini Caldas, que construía casas em madeira, chamou um engenheiro e lhe perguntou se ele podia derrubar tudo. Como podia, na manhã seguinte entraram os operários e puseram a casa abaixo. “A cabeça do Zanini estava na Bahia, a minha em Hollywood, e eu queria uma casa só de vidro e espelhos.” Zanini nunca mais falou com ele.

A autora aprofunda o relato da vida de Guilherme Guimarães contando como ele

conheceu importantes personalidades do teatro e como descobriu a paixão por fazer roupas

femininas, sua vocação. Observação: a narradora, subjetivamente, toma como verdadeira a

informação de que o estilista sabe até hoje todas as roupas que as vedetes usavam e as canções

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Page 64: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

que cantavam. Um exagero que, entretanto, se torna válido, se considerarmos a intenção de

Danuza em potencializar a importância dos elementos do passado na vida do estilista.

Sem freqüentar mais o colégio, Guilherme começou a circular em torno da praça Tiradentes, nos tempos em que Walter Pinto e Carlos Machado, como se dizia, arrasavam no teatro rebolado. Só havia um problema: ele não podia entrar, era menor de idade. Vidrado em mulheres bonitas, um dia viu na praia uma das coristas do clube Night and Day que conhecia de fotografias. Arriscou chegar perto e suplicou: “Meu sonho é ver uma peça de teatro. Você não podia me ajudar”?“. A vedete, Marlene Rosário, disse-lhe que chegasse mais cedo e ela o levaria até o lugar onde ficava o iluminador. Guilherme foi e se deslumbrou com as moças, que desciam de um disco cobertas de plumas e paetês, cantando e dançando, quase nuas. Passou a ir todos os dias, e até hoje é capaz de descrever a roupa de cada uma, ou de cantar as músicas que elas cantavam. Viu que seu futuro tinha de seguir por ali: roupas maravilhosas para mulheres maravilhosas. Descobriu assim a sua vocação.

Diante de um problema, o alistamento militar obrigatório, Guilherme Guimarães

procura um amigo para pedir um conselho. A narradora descreve o diálogo com citações

diretas e indiretas.

Uma noite, encontrou um amigo que, como ele, se tornaria costureiro famoso: Denner. Pediu um conselho, e o amigo lhe disse para fazer o que ele havia feito para escapar do Exército: raspar as pernas e, em vez de cuecas, vestir Zazá, uma calcinha famosa naqueles tempos, que existia nas cores rosa, amarelo e azul. “Você vai ter que ter muito peito”, disse-lhe Denner, “porque vai entrar numa sala com vinte machões, e todo mundo vai tirar a roupa e ficar de cuecas”.

No trecho seguinte, mais uma evidência de que a literatura faz parte da narrativa

jornalística em questão. Danuza Leão reconstrói uma cena do passado, a do momento em que

os “vinte machões” vêem a peculiar roupa íntima (“zazá”) que Guilherme usava; em seguida

transporta o leitor para o presente através de uma fala do entrevistado, como se este e o leitor

pudessem imaginar a situação já distante, embora Guilherme descreva o constrangimento com

o mesmo realismo da cena vivenciada, da experiência em si.

Dito e feito. Quando Gui tirou as calças, todos os machões riram e o sargento caminhou firme em sua direção. “Eu só pensava em sumir dali o mais rápido possível, foi preciso ser muito macho para enfrentar a situação”, diz ele, enfatizando militarmente a palavra macho. “Você está isento!”, gritou-lhe o sargento. “Aqui é lugar de homem!” Era tudo que Guilherme queria ouvir.

Em outro trecho, percebe-se a proximidade existente entre a narradora e o

personagem. Danuza irrompe a alma do personagem, falando de suas angústias e até

evidenciando um pensamento muito presente na juventude do estilista, embora não fique clara

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Page 65: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

sua lógica. “Gui não sabia como concretizar sua vocação. Se fosse estudar, só seria alguém

aos 30 anos, e ele tinha pressa. Queria ser famoso logo”.

No exemplo a seguir, percebe-se uma característica que diferencia este texto do

jornalismo convencional. É notada a disposição da autora em contar detalhes que poderiam

passar em branco, como todos os passos de Guilherme até conhecer a poderosa diretora de

uma companhia aérea. Há mais uma vez o uso de citações diretas e indiretas em um pequeno

diálogo.

Um amigo, que encontrou num lotação (um misto de táxi e van que foi extinto com os dinossauros) contou que a Varig estava fazendo um concurso para o uniforme das aeromoças; por que ele não tentava? Contou também que o resultado seria decidido pela poderosa Charlotte Franklin, diretora da companhia em Nova York, que chegaria ao Rio na manhã seguinte. Guilherme perguntou: “Do que ela gosta?”. “De rosas vermelhas”, foi a resposta. Na manhã seguinte, bem cedo, GG estava na porta do Hotel Glória, sobraçando um colossal buquê de rosas. Ficou horas ali, até que Charlotte chegou. Entregou-lhe as flores e os croquis para o concurso, que, aliás, ganhou. Prêmio: uma passagem para Nova York e US$500.

Após se mudar para os EUA e conhecer a diretora de uma revista de moda, Guilherme

recebe um convite de trabalho, o qual aceita. Mais uma vez, Danuza Leão apóia-se em

diálogos curtos com discurso direto e indireto.

Nessa mesma tarde, Loretta sugeriu a GG fazer um desfile na cidade, e perguntou se ele tinha condições. Ele não tinha, mas disse que tinha. “Então vá, faça a coleção e me telefone”, disse Loretta.

Em outro momento, além de contar a ação passo a passo — o que Tom Wolfe chama

de descrição cena a cena — a escritora usa novamente um diálogo entre Guilherme e o dono

de uma fábrica.

Tomou um ônibus, bateu na porta, pediu para falar com o dono e expôs a situação. “O senhor me daria os tecidos?”, perguntou, na maior candura. O empresário disse que sim, bastava que Guilherme dissesse quantos metros precisaria de cada um.

Após dedicar um parágrafo à ascensão profissional de Guilherme Guimarães, capa de

revistas nos EUA e Brasil, a narradora volta os olhos ao ambiente da casa em que se encontra.

Descreve-o fazendo uma comparação. “Avançamos na procissão de salas e objetos. É como

estar num cenário de filme do século XIX, com alguns recuos para o XVIII”.

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Page 66: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

Dentro do closet, Danuza Leão observa que as roupas são idênticas. Mais um traço da

personalidade do perfilado naquilo que Edvaldo Pereira Lima chama de “descrição de status

de vida”.

Entramos no closet e... surpresa! Todas as roupas são imaculadamente iguais. Só há calças jeans, camisas jeans azuis, conjuntos cáqui, desses usados em safáris, sapatos Funaro e blazers azul-marinho. Nosso costureiro não gosta de variar o que usa. Mas, atenção, há um sobretudo forrado de vison.

O tour pela casa continua e a descrição detalhada mostra as preferências do morador.

Atenção para as bebidas finas na geladeira, que não tem comida. O excesso de um e a

ausência do outro apontam traços básicos dos hábitos alimentares de Guilherme.

Chegamos agora ao coração do apartamento. É um cantinho de 12 metros quadrados. Um quarto-e-sala. Um conjugado. Há um sofazinho, uma mesinha, um fogãozinho de quatro bocas (para ferver água para o chá) e uma pequena geladeira vazia. Ou melhor: vazia de comidas. Há garrafas de champanhe, vodca, vinho branco e água mineral.

Após fazer um comentário pessoal sobre o banheiro — “um luxo” —, Danuza Leão se

refere ao tempo em que ficou conversando com Guilherme. Neste trecho é valorizado seu

ponto de vista, bem como o local da entrevista.

Ficamos ali um tempão, papeando. Tomamos champanhe, de boa marca e boa safra, enquanto Guilherme traçava seus uísques. Ele bebe bem. Mas não parece. Aos 66 anos, está bem conservado, e é com imenso divertimento que relata seu início de carreira.

A jornalista faz uma viagem no tempo e volta a relatar episódios da carreira de

Guilherme Guimarães, seqüência que havia interrompido.

Logo o ateliê ficou pequeno. GG alugou um apartamento maior e contratou mais costureiras. Corria o ano de 1968. Foi quando a rainha da Inglaterra veio ao Brasil. Boa parte das elegantes do Rio encomendou vestidos a Guilherme. Mais glórias, mais reportagens na imprensa. Aos 25 anos, ele era rico e famoso, exatamente como havia jurado.

A narrativa permite inserir lembranças e momentos nostálgicos do estilista Guilherme

Guimarães:

“Era tudo muito chique”, suspira Guilherme. “No verão as mulheres só usavam jóias de turquesa, coral, marfim e jade; esmeraldas, safiras, rubis e diamantes, só no inverno. Havia também as bolsas de ouro, que se chamavam Farah Diba. Quem não

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tinha uma não era ninguém.” Suspira de novo e arremata, com um meneio dramático: “Que tristeza, as mulheres de hoje só querem saber de musculação”.

Danuza está livre para descrever sutilezas que provavelmente seriam excluídas da

cobertura jornalística cotidiana. Expõe manias do personagem e se expressa de modo a

estabelecer proximidade com o leitor.

(Por falar em musculação, há alguns anos Guilherme resolveu fazer cooper no calçadão de Copacabana. O seu carro, com o motorista uniformizado, ia ao lado, na mesma velocidade. Quando ele se cansava, o automóvel parava, ele entrava e voltava para casa. Pode?)

A narradora transmuta o tempo da narração mais uma vez, saindo do relato

cronológico a respeito da carreira profissional de Guilherme para falar sobre os fatos, ínfimos,

que se sucedem no decorrer da entrevista com o estilista.

Ufa, é bom tomar fôlego. Seguimos para um restaurante das imediações. Vamos a pé. Ele janta costeletas de cordeiro, duas taças de vinho e café. Guilherme fala sem parar.

Por meio do detalhamento, a escritora consegue revelar um traço importante da

mentalidade do estilista, por meio de um hábito peculiar.

Alugou uma town house na rua 82, entre Madison e Park, e, como não tinha dinheiro para decorá-la do jeito que queria, colava pedacinhos de papel nas paredes e no chão. Num escrevia “quadro de Picasso”, noutro “escrivaninha francesa”, em mais outro “sofá de plumas”, e assim ia. “Quando eu olhava em volta, achava minha casa a mais linda do mundo, porque via o quadro de Picasso, a escrivaninha francesa e o sofá de plumas. Eu vejo o que quero ver e acredito no que quero acreditar”.

Em novo diálogo estabelecido entre Guilherme e sua mãe, ratifica-se a personalidade e

o cotidiano do estilista, feliz com a vida que levava em Nova York.

Todo domingo a mãe telefonava de manhã, chorando, preocupada com a solidão dele. Guilherme respondia: “Mamãe, estou tomando um Bloody Mary, lendo o New York Times, estou felicíssimo”. “Mas meu filho, bebendo a essa hora?”, ela perguntava. E Guilherme, nem aí.

A autora adentra os pensamentos de Guilherme: “Como recomeçar, se ninguém mais

sabe quem eu sou? O que vai ser da minha vida?”. Em alguns momentos, Danuza Leão insere,

junto com as falas do personagem, seus trejeitos e gestos espontâneos: “ ‘É dura a vida da

bailarina, meu bem’, diz ele, rindo muito”.

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A narração é feita em terceira pessoa, mas o ponto de vista da repórter não é neutro,

não obedece ao understatement; pelo contrário, interfere no desenvolvimento da história. A

descrição das posses do estilista também consiste naquilo que ele não possui: “Ele não tem

celular, nem secretária eletrônica, nem televisão, nem computador; não usa tênis, nem boné,

nem camiseta; de tempos em tempos manda trocar os números de seus telefones — e liga para

dar os novos (exclusivamente) a quem quer”.

No jantar, em que estavam Danuza e seu entrevistado, os movimentos são captados. A

repórter repara em tudo.

Guilherme se levanta. Não diz, mas foi ao maître e pagou a conta, para não haver discussão na mesa. Volta e prossegue o seu credo. (...) Terminado o jantar, acha melhor pegar um táxi, apesar de estar a cem metros de casa. Seguimos juntos no táxi, que faz uma volta imensa, pois o prédio dele fica na contramão. A última surpresa: Guilherme manda o carro parar na frente do Hotel Glória. E nos informa, como se fosse a coisa mais natural do mundo, que nunca, nunca mesmo, dorme no apartamento. Ele tem uma suíte permanente no Glória, e sempre dorme nela quando está no Rio. “Faço como Mlle. Chanel, que morava na rua Cambon, mas dormia no Ritz.”

Danuza Leão conclui o texto com uma pequena frase que demonstra a liberdade de

estilo, arriscando um palpite sobre o motivo pelo qual Guilherme Guimarães não dorme em

casa: “Meu palpite: dorme fora para não desarrumar a cama”.

4.2. “A São Silvestre do Ziriguidum”, de Vanessa Barbara (edição nº 4, janeiro de 2007)

O texto reporta tudo o que acontece na I Maratona de Samba da cidade de São Paulo,

ocorrida no final de 2006. É um evento em que os participantes fazem um verdadeiro teste de

resistência, dançando por várias horas consecutivas. Pode ser enquadrado perfeitamente no

estilo Jornalismo Literário, se aproximando muito das características do conto descritas por

Ferrari e Sodré (1986). Tem “força” e “tensão” para manter o leitor interessado na narrativa

até a sua conclusão, sem deixar de ter “clareza”, tratando com objetividade e detalhadamente

o evento. Além disso, retrata o acontecimento por meio de uma abordagem original.

A reportagem apresenta, no começo, uma das características do Jornalismo Literário

apontadas por Edvaldo Pereira Lima (1995/2004): o “sumário” ou “exposição”, em que se

transfere o foco das atenções rapidamente para uma situação secundária, para em seguida

voltar ao objeto central da reportagem. No caso desta matéria, em que se descreve uma

competição de dança — e de resistência para tanto —, a autora primeiro especula de um modo

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bastante liberto como estavam as condições do tempo, se acontecia algo de anormal do lado

de fora, se era feriado ou não. Em seguida, retorna ao objeto central — a competição de

dança. Com isso, conseguiu demonstrar a idéia de que não importava o que estava do lado de

fora, enfatizando a importância do evento e o grande envolvimento de seus integrantes. É um

modo também de criar certa expectativa no leitor, que vai se interessar por aquele ambiente e

saber o que se passa nele.

Não se sabe se, lá fora, chovia ou ventava, se era dia ou noite, Páscoa ou Carnaval, se os Quatro Cavaleiros tinham descido à Terra para trazer a peste ou a fome. Lá dentro, no salão de dança, a única certeza compartilhada por treze casais era a de que quando acabasse a 30ª música – e, com fé, isso iria acontecer – viria outra, e depois do pé esquerdo o direito, e depois do direito mais um rodopio e um passo para trás.

Na última frase do parágrafo, Vanessa utiliza a estrutura que Edvaldo Pereira Lima

denomina de “cena presentificada da ação”. Atenção para o uso dos verbos no tempo presente

do indicativo (“são”, “se olham”, “parecem”), que criam uma tensão narrativa ao dar ao leitor

a sensação de estar assistindo ao acontecimento enquanto se desenrola. Na mesma frase é

possível reparar que há certa ousadia por parte da repórter que, fazendo-se momentaneamente

onisciente, supõe o que os bailarinos pensam naquele momento, ao mesmo tempo em que faz

uso de uma metáfora, comparando-os a robôs: “Os giros já são automáticos, os casais se

olham pensando em sofás, os pares parecem robôs”.

Observe-se como somente no segundo parágrafo Vanessa registra qual realmente é seu

objeto central, bem como alguns elementos básicos do lead. Além do quê (“1ª Maratona de

Samba da Cidade de São Paulo”), quando (“num domingo abafado de dezembro, às duas da

tarde”) e onde (“o Consulado Music, casa de shows na Zona Norte”).

A 1ª Maratona de Samba da Cidade de São Paulo teve início num domingo abafado de dezembro, às duas da tarde. Estava prevista para terminar dez horas depois, com o recolhimento dos corpos e o anúncio dos vencedores. Era pouco mais de meio-dia quando os primeiros concorrentes chegaram ao local – o Consulado Music, casa de shows na Zona Norte – para fazer exames de pressão arterial e assinar termos de compromisso.

A partir do terceiro parágrafo, a repórter inicia uma narrativa com estética literária.

Contando os fatos que se sucedem, sempre no tempo presente, faz com que o texto represente

com fidelidade todos os momentos, tenha dramaticidade e remonte às emoções do ambiente.

Uma seqüência bem estruturada que passa como um filme pela mente do leitor. Entremeados,

aparecem os relatos dos participantes e da equipe organizadora da maratona.

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Na concentração, os participantes não parecem nervosos. Discutem o que fazer com as camisetas oficiais, que deveriam ser usadas durante a maratona. Eram muito vermelhas e excessivamente quentes. Um dos dançarinos decide rasgar as mangas com uma faca, e o organizador anuncia: “Está chegando a tesoura!”. Prontamente, as meninas confeccionam miniblusas e inventam nós para amarrar a camiseta acima do umbigo. Enquanto recorta a roupa, Juliana Marques, de 22 anos, confessa que havia almoçado dois pratos grandes de macarrão e um pão com bife, notícia que abala o moral de seu parceiro, Osíris da Silva, 19 anos. Alguém afirma que comeu um pastel e recebe olhares de reprovação. A mais empolgada das dançarinas, Claudia Chaves, 24 anos, professora da escola Algazarra’s, aparece para dizer que “bombou” no teste da pressão arterial. “Estão tentando me derrubar”, desconfia. Depois de um lanche leve e uns passinhos de samba, a pressão de Claudia voltaria ao normal. Às 13h30 chega o capitão da PM Silvio Sciacca, dançarino de fôlego e de longas distâncias, e faz uma aposta: se a sua pressão não der 11 por 7 ou 12 por 8 irá trocar de nome. O resultado é 12 por 7. Ele protesta. Diz que não é reprovado “nem em exame de fezes”.

É possível localizar momentos na narrativa em que Vanessa Barbara desloca

momentaneamente seu foco para o relato de vida de um dançarino. As características do

Jornalismo Literário não param por aí. As citações diretas do personagem (Sciacca, o capitão

da PM) revelam lembranças, entre elas um momento marcante para o entrevistado — as duas

horas finais de um outro campeonato de dança do qual ele participara.

Dos concorrentes, muitos são professores de dança, como Claudia Chaves, e alguns já participaram de maratonas de salsa e samba-rock. Sciacca, o capitão da PM, com seus 40 anos e 1,95m de altura, foi um dos finalistas da histórica competição de tango de 2003 no Avenida Club. A maratona durou 24 horas e apenas dois casais chegaram ao fim. “Nunca mais”, garante o capitão. “As duas últimas horas foram as mais difíceis, só continuei por questão de foro íntimo.” Ele chegou disposto a enfrentar o desafio de samba, embora preferisse ritmos mais condizentes com as tradições da dança de salão, como a valsa inglesa, a valsa vienense, o slow fox e o quick step, além do tango. Há três anos, ele fez par com a própria professora. “Tive a aula particular mais extensa do mundo”, diz.

Nos três próximos parágrafos a autora empenha-se em criar expectativas. Descrevendo

cena a cena os preparativos finais antes do início do campeonato — com os verbos sempre no

presente do indicativo —, fixa o interesse do leitor pela história.

Às 14h05, os treze casais são reunidos pelo organizador do concurso, Clovis Pereira Jurado, que (até pelo sobrenome) fará parte do júri. Jurado é diretor da Cia. La Luna, uma das escolas responsáveis pela maratona, em parceria com a rival Algazarra’s e com a Consulado Music. A despeito de ser organizada por academias locais, a prova consta no calendário oficial de eventos da Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação. Clovis anuncia as regras: os casais devem dançar, ininterruptamente, até a meia-noite, com pausas de cinco minutos a cada duas horas para ir ao banheiro, e uma parada de quinze minutos na quinta hora para uma refeição. Não serão permitidas trocas de roupas ou de calçados. As duplas podem se servir à vontade das frutas e biscoitos dispostos nas mesas, contanto que não parem de dançar. A partir

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das 23h, a equipe de jurados avaliará a técnica, a simpatia e a harmonia dos sobreviventes, a fim de eleger um vencedor. Na última hora, houve competidor que reclamou: “Ih, só agora eu lembrei que precisava ir ao banheiro”. Ainda antes da primeira música, durante o alongamento, o capitão Sciacca conta que não dançará até o fim porque terá de trabalhar. Mesmo assim, ele espera que as primeiras duas horas sejam bem pesadas, para eliminar metade dos concorrentes: “Toca só Paulo Moura”, ele pede, olhando para a cabine da DJ Drica. Ao seu lado, com o número 12 colado nas costas, Pheliphe Britto diz que não se importa, pois já começou na pegada: dançou com Danielle Marques até as 3h30 do dia anterior, deu aula das 9h ao meio-dia e foi direto para a competição. “E amanhã eu volto para a Segunda Absoluta do Netinho!”, completa. O cantor é sócio do Consulado Music, e bate ponto na casa às segundas.

Uma observação: no fim do trecho, há o relato do que Pheliphe tinha feito no dia

anterior, por meio de suas falas (citações diretas).

No parágrafo em que se anuncia o exato horário do início da “São Silvestre do

Ziriguidum”, às 14h13, Vanessa Barbara mostra-se bastante observadora ao fazer a descrição

dos passos dos dançarinos (“Os casais começam com os passos básicos: um pra frente, um pra

trás, um pra frente, um pra trás”), além dos acessórios que os acompanham (“toalhinha no

bolso de trás”) e até o que comem (“Pheliphe está mascando chicletes”). Ao trabalhar deste

modo, citando os vários personagens, consegue transmitir ao leitor o dinamismo que carrega

naturalmente as cenas do campeonato de dança.

Às 14h13 tem início a maratona, com “Meu samba pede passagem”, da música de Claudio Jorge “O Samba Melhor do Brasil”. Os casais começam com os passos básicos: um pra frente, um pra trás, um pra frente, um pra trás – bem juntinhos, porque ninguém é pingüim, ensina Rafael Martins, 21 anos, parceiro de Claudia. Pheliphe está mascando chicletes e Lacyle Emerson Terezinha, 29 anos, traz uma toalhinha no bolso de trás, que se mostraria muito útil no decorrer da maratona. Sua parceira, Elis, usa uma sandália de salto alto, assim como Elizangela Alves Gomes, 20 anos, e Aline Batista Cleto, 18. Das mulheres, apenas elas usam salto, e só Aline dança de saia. Três dos homens vestem calças brancas. Um dos organizadores aponta para Lacyle e para Claudinho Ferreira, 29 anos, e observa: “Aqueles dois são nêgo véio, é tudo malandro”.

A última frase desse trecho exemplifica o que Cremilda Medina (2003) denomina de

“oratura”, ou seja, a capacidade de deixar o texto jornalístico tão próximo da realidade que as

expressões coloquiais, gírias e gestos possam ser utilizados. “Aqueles dois são ‘nêgo véio’, é

tudo malandro”). Tal informação enriquece o texto, por ser um recorte cultural contido em

uma fala espontânea.

A seqüência que vem a seguir representa um aspecto interessante na reportagem, em

que Vanessa Barbara lança mão da criatividade para informar, registrar com detalhes quase

tudo que aconteceu dentro do salão de dança. A cada linha a repórter registra pequenos fatos,

novidades e falas curiosas da maratona, dados que são antecedidos pela hora em que

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Page 72: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

acontecem. A estrutura é utilizada de modo que a descrição seja feita das 14h13 — início da

maratona — até as 0h08, quando os participantes “se jogam no chão” e a competição acaba

(“14h19 – Pheliphe anuncia: ‘Troca de damas!’, mas ninguém dá bola”); (“0h08 – A maratona

termina com ‘Brasileirinho’ e ‘Tá a Fim de Sambar’, do grupo Os Morenos. Os participantes

se jogam no chão e ficam por lá, paralisados. Alguns colocam gelo nos pés e pedem água”).

Na proposta de fazer uma narrativa detalhada, a repórter recorre a trechos de músicas

que estavam tocando durante a maratona de samba. Tal alternativa é um elemento importante

na descrição do ambiente, uma das características do Jornalismo Literário.

16h15 – “Te segura/ que a vida está dura”, diz a letra do samba. [...] 16h21 – “Crioula/ eu quero é mocotó”. [...] 17h32 – “Deixa o meu cabelo em paz/ Deixa o meu cabelo em paz”. [...] 18h42 – “Provei do famoso feijão da Vicentina/ Só quem é da Portela sabe que a coisa é divina”. [...] 17h58 – “É um lugar especial/ Para quem é sentimental/ E aprecia um gostoso bacalhau”. [...] 21h15 – “Estrela, ilumina meu céu/ Me tira desse fel/ Adoça o meu vi-veer”.

No meio da competição, uma pausa para ir ao banheiro. É possível detectar como uma

situação tão simples pode representar uma oportunidade para aplicar os recursos do

Jornalismo Literário. Vanessa mistura várias frases ditas por diferentes pessoas em um curto

período de tempo. As citações diretas dão dinamismo à reportagem.

18h10 – Outra pausa para o banheiro. A organizadora avisa: “Nada de número dois, hein?”. Uma das participantes se desespera: “Gente, a calça não sobe”. Elis continua a reclamar: “Nada-nada, já levei cinco pisões”. Alguém diz que ela devia conversar com o parceiro, porque assim não vai dar. “Não foi o meu parceiro, não, eu levo pisão dos outros!”.

Após dar o resultado final da cansativa maratona de samba, a repórter fecha sua

matéria com mini-perfis dos dois dançarinos vencedores. As entrevistas evidenciam o

significado da dança na vida dessas pessoas. A cada citação direta dos personagens são

descritos também trejeitos pessoais, gestos e movimentos corporais.

Elis tem 22 anos de idade, 1,68m de altura e é babá. Ela joga a cabeça pra trás e dá uma risada gostosa quando lhe perguntam se é dançarina profissional. “Não sou, não! Eu danço por esporte”, responde. Mas acrescenta que está se profissionalizando, e para isso freqüenta as aulas do CPD, o Centro Profissional de Dança, ao lado da estação Carandiru do Metrô, também na Zona Norte. Seus ritmos preferidos são o black e o samba-rock. Foi ela quem insistiu junto ao professor, Lacyle, para se inscreverem na competição. Lacyle tem 29 anos e é professor de dança de salão e técnicas de samba-rock. Começou a dançar aos 16 anos com “um ritmo que ninguém acredita: o hip-hop”. Da dança de rua passou para o samba, e hoje dá aulas em escolas de Santana, Guarulhos, ABC paulista e Alto da Lapa. Seu sonho é abrir uma academia só de

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Page 73: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

samba, para valorizar os ritmos locais, divulgar a cultura negra e dar ao samba o mesmo valor das danças consideradas, como diz, “mais clássicas”, caso do balé.

O texto de Vanessa Barbara é um exemplo de como é possível transformar pautas

aparentemente diversionais, frias, sem grande impacto, em narrativas interessantes e criativas.

A repórter aproveita pequenos detalhes, que poderiam passar despercebidos, para aplicar as

técnicas do Jornalismo Literário. Com isso, abre novos ângulos da realidade e promove a

valorização do ser humano como objeto primordial da cobertura jornalística.

4.3. “Como se jogar na balada”, de Daniela Pinheiro (edição nº 7, abril de 2007)

A reportagem descreve duas festas noturnas em São Paulo, um mundo onde

prevalecem o uso liberado de drogas, a ostentação de luxo e riqueza e a institucionalização de

uma hierarquia social paralela - onde os “VIPs” possuem certos privilégios que outras pessoas

não têm.

Daniela Pinheiro consegue traçar este cenário de modo bastante descontraído e ao

mesmo tempo irônico, quando, por exemplo, traz para seu vocabulário gírias e expressões

usadas pelos freqüentadores das baladas. São expressões que denotam certos preconceitos em

relação às classes menos favorecidas, como a restrição à cerveja, por ser um produto popular.

No primeiro parágrafo Daniela Pinheiro apresenta o tema de sua reportagem de

maneira bastante atraente, que desperta a curiosidade. Logo na primeira frase, a repórter

provoca o leitor citando a expressão da moda: “se jogar na balada”.

Quem ainda fala que vai causar na noite está tão semana passada que na certa ainda escuta Caetano Veloso. A expressão do momento é se jogar na balada. Se ela, a balada, é boa, qualifique-a de bombada. Se é ruim, diga micada. Ela fica bombada quando está lotada de jet setters. E promete quando o chill in é feito num restaurante fusion. Se quer se animar, indague: do you smell like Chanel? Mas o que garante mesmo a bombada da balada é quando se cata alguém masterplus. Entendeu, minha santa?

A partir de determinado momento a autora estabelece diálogo com o leitor, fazendo

um convite a ele, de maneira irônica. Convida-o a fazer tudo aquilo que os chamados

baladeiros fazem. Ao mesmo tempo dá um quadro geral da personalidade dos freqüentadores

— que, segundo a repórter, usam drogas, ouvem música em alto volume, principalmente

internacional, não têm hora para acordar e nem preocupação com dinheiro, pois são de

famílias abastadas. Ou seja, é um grupo que não sente o peso de certas responsabilidades.

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Então vamos nos jogar na balada de São Paulo e conhecer gente rica, jovem, animada e de vocabulário caviloso, os vips. Vamos dançar por horas, beber além da conta, provar a droga do momento, ouvir música alta e repetitiva, torrar o dinheiro de papai, dormir sem hora para acordar e, se der sorte, sair de lá com o telefone de alguém descolado.

No segundo parágrafo, Daniela descreve o cenário que encontra nos arredores da boate

Pacha, na Vila Leopoldina. Ela quer deixar clara a ostentação de bens materiais nesse

ambiente, como forma de descrever com mais clareza os personagens nele inseridos. Dá

ênfase, por exemplo, à quantidade de carros importados, bem como à sua limpeza. A repórter

também lembra que a entrada na casa noturna é bastante disputada.

À meia-noite e meia de uma sexta-feira recente, uma área baldia da Vila Leopoldina estava apinhada de carros importados. Havia sete Audi, três Porsche, cinco BMW, dois Jaguar, dezenas de Toyota e de utilitários importados. Todos pretos e recém-lavados. Umas 200 pessoas se acotovelavam ao longo de duas grades e esperavam, em vão, para entrar na boate Pacha (pronuncia-se Pachá), uma das mais concorridas da noite paulistana.

Adiante, um relato de como funcionam as coisas na balada, onde há um aparato

montado para dar segurança aos presentes no ambiente privilegiado. A expressão

“pessoinhas”, pejorativa e talvez usada por freqüentadores do recinto, foi um modo de

diminuir o status daqueles que tentam entrar no local pelo portão da frente — já que esta

entrada é destinada somente aos escolhidos, os VIPs. As pessoas que não pertencem ao

mailing da boate são descartadas. Os selecionados seriam, metaforicamente, a nobreza

adentrando um castelo, enquanto o populacho espera do lado de fora.

As grades, de 1 metro de altura, formavam um corredor polonês. Com as mãos estendidas, e aos gritos, as pessoinhas tentavam, novamente em vão, chamar a atenção de uma recepcionista, que usava uma maquiagem dramática, e de seguranças de terno preto com mais de 1 metro e 90 de altura. Elas não queriam entrar de graça. Estavam dispostas a gastar, em média, 300 reais pela noitada. Tinham tomado banho e estavam bem vestidas. Mas, mal-intencionadas, queriam apenas entrar pela porta da frente da boate. Ocorre que esse privilégio está restrito aos vips. E ser vip, nos códigos sociais da balada, faz toda diferença.

A repórter brinca com as palavras e ironiza mais uma vez o status social dos que

esperam do lado de fora por uma chance para entrar na Pacha: “Mas a malta dos anônimos

gritões lhes atrapalhava o acesso”.

Os detalhes necessários ao entendimento daquele mundo elitizado se estendem aos

personagens que o compõem. “André Athiê é magro, tem nariz fino e um topetinho jeitoso

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mantido com quilos de gel. Ele tem gestos pontiagudos e fuma o tempo todo. Usava uma

camiseta azul escura justa, com um zíper que não chegava à altura do umbigo, calça jeans e

tênis de mais de mil reais”.

O próximo trecho demonstra principalmente duas características do Jornalismo

Literário. A descrição completa da cena em que André é o protagonista, além dos detalhes que

entremeiam a narrativa; no caso, as vestimentas do vigilante e seu hábito de mascar chicletes

sem parar.

À 1 e meia da manhã, ele desceu pela quarta vez do camarote, passou em revista a guarda pretoriana de seguranças e foi para a porta buscar seus amigos. Com um copo de vodca na mão direita, o cigarro na outra, dirigiu-se imperiosamente ao chefe da porta, José Roberto dos Santos, um negro de 1,95 metro de altura, 45 anos, dez de noite, impecável num terno escuro com gravata vermelha, que mascava chiclete o tempo todo.

Há um pequeno diálogo entre o guarda e André Athiê, um VIP, demonstrando as

relações hierárquicas no local. Quem é privilegiado tem o poder de dar o privilégio a alguns

felizardos.

- Zé, meu, os caras estão aí há horas, pô! Deixa aquela ali de listrado passar, comandou o garoto. Ao que Zé, localizando a listrada no meio do sururu, fez um sinal para um lugar-tenente, que a resgatou da cambada. - Tá vindo, Andrézinho, tá vindo, disse o armário ao vip, que se acalmou.

Destaque para a palavra “cambada”, desmerecendo o público que estava fora. Daniela

Pinheiro traduz o preconceito que supostamente os VIPs alimentam em relação à massa que

tenta freqüentar a Pacha; essa classe não consegue chegar aos lugares mais reservados da

casa. A repórter incorpora as expressões em sua narrativa, como se fossem suas. Ao falar

sobre a boate e seu espaço físico, utiliza-se da comparação para facilitar o entendimento: “Um

espaço pouco maior do que o gramado do Maracanã”.

Em outro trecho ela mostra o grande distanciamento existente entre os dois tipos de

público que freqüentam a casa — “como ecstasy e cocaína, não se misturam”. O ideário

comum dos baladeiros nutre o texto da jornalista.

Nela, há dois tipos distintos de público, que, como ecstasy e cocaína, não se misturam. A galera, que paga ingresso direitinho (40 reais mulher e 80 homem), entra pelos fundos e o direito de circular se restringe ao térreo. São estudantes, secretárias, gerentes, advogadas, estagiários, aspones, psicólogas, administradores, redatores de publicidade, divulgadores, aspirantes a estilista. É uma galera

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disciplinada, que faz filas nos banheiros, no balcão das bebidas e se mantém em pé pela escassez de lugares para sentar.

A repórter faz uma explanação a respeito dos VIPs, seus hábitos e a forma de convívio

social. As expressões estrangeiras são habituais.

E há os vips. Eles fazem parte do mailing list (expressão que quer dizer muito para quem freqüenta a noite) dos promoters: são dândis, modelos, filhos de milionários, cocotes, desocupados, grã-finos e celebridades. Nunca se viu um vip sozinho. Como os turistas japoneses, os vips sempre andam em bando. Geralmente é um ricão, ao qual se agrega uma corriola.

Daniela Pinheiro demonstra que há uma espécie de sistema de castas na balada.

Sutilezas, como o acesso a espaços restritos, bem como o número de seguranças que

acompanham um herdeiro de família tradicional, denotam mais uma vez o distanciamento das

elites. O Jornalismo Literário possibilitou essa abordagem, fornecendo liberdade autoral para

a repórter explorar seu objeto.

Outra observação perspicaz da jornalista: o hábito das mulheres de olharem primeiro

para a pulseira e depois para os sapatos, umas das outras. A pulseira ali, no mundo paralelo,

representa mais. “Os vips são identificados pelo uso de pulseirinhas de cores diferentes – o

que faz com que na hora de pegá-las no caixa, as mulheres olhem antes para o pulso do que

para os sapatos umas das outras”.

Observa-se a descrição da cena em que o príncipe do Qatar se recusa a colocar a

pulseira. Inclui-se também o uso de uma citação direta em inglês, para dar mais realismo à

narração. “A princípio, o príncipe petrolífero se recusou a usá-la. Passou mais de uma hora

gritando para o funcionário que tentava empulseirá-lo: Don´t touch me! Don´t touch me!”.

Há uma analogia para explicar a lógica hierárquica da casa noturna exposta na cor das

pulseiras. Comparam-se os diferentes degraus do status a signos da ideologia cristã: o inferno,

o purgatório e o céu.

A amarela permitia ficar em pé, perto do camarote, o que seria o purgatório do pachá, entre o paraíso vip e o inferno do anonimato. A azul era a do povoléu. Existe ainda uma outra, a mais invejada, a branca coberta por cerejinhas – ela é a dos sócios, dos funcionários e dos André Athiê, um jet setter.

No próximo parágrafo, nova descrição de detalhes, evidenciando o status social e a

condição financeira dos freqüentadores. Luxo e alienação diante do que está do lado de fora

da Pacha. Anestesiados, todos têm o mesmo modo de dançar, de se olhar e de agir.

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Homens e mulheres estavam vestidos com uniformidade. Eles, de calça jeans surrada (rasgos milimetricamente estudados no joelho), camiseta colorida, um colar grosso de prata (daqueles usados por bicheiros), sapatos pontudos ou tênis, e o tal topetinho, armado com habilidade. Elas, de short branco (a cor da estação), sandálias de salto alto, bolsas de marca. A maioria de franja. Não há cabelos encaracolados na Pacha. Todo mundo dança igual (de maneira dessincronizada), olha igual (com condescendência) e ri igual (exageradamente), seja galera ou vip.

A repórter transporta o leitor, por alguns instantes, para fora da Pacha e o leva a um

restaurante. Ela apresenta um novo personagem, Benjamin Ramalho, que administra a lista de

convidados. A descrição minuciosa é uma maneira de esboçar em que mundo vivem essas

pessoas e como encaram a realidade. A elite, aparentemente, não se importa com o que

acontece dentro de círculos sociais cujo poder aquisitivo é inferior.

O restaurante Ritz, no bairro do Itaim-Bibi, é freqüentado pelo povo da moda, executivos jovens, jornalistas e publicitários e adeptos do menu salada & destilados. É uma tarde de sol e Benjamin Ramalho toma um suco de uva numa mesa de centro do Ritz. Ele está na casa dos 30 e cultiva costeletas finas. Veste camisa social branca para fora da calça da mesma cor, tal qual os dos personagens do anúncio do cigarro que ele fuma, Parliament. Ben, como é conhecido, atendia o celular a cada dez minutos. É muito solicitado por ser o relações-públicas da Pacha. É ele que administra o mailing, a lista dos vips a serem convidados, ou não, para uma noite na boate. Diz ele: “O mailing é vivo. Uns se casam, outros se separam, outros ficam pobres, outros enriquecem. Quem faz o mailing tem que ter sensibilidade, saber quem importa, quem deve estar no lugar. Esse é o segredo da noite. Tenho 6,5 mil e-mails. Mas meu mailing seleto tem 800 nomes. Tem gente que gasta 50 reais. Outros, 300. Esse é um critério de seleção. As pessoas estão dispostas a pagar para serem diferentes. E elas têm razão”. Cavalheiro, Ben pagou a conta.

Para dar as características de um mailing list de sucesso vale até o uso de expressões

populares. O lugar comum “arroz de festa” se refere a uma pessoa que está em todo tipo de

evento. Usar essa expressão é uma possibilidade prevista no Jornalismo Literário, visando

trazer ao leitor um recorte mais fidedigno da realidade.

O desafio é levar famosos que não sejam arroz de festa, nomes batidos como Reynaldo Gianecchini, Carolina Dieckmann, Ronaldo Fenômeno ou Juliana Paes. E também os ricaços de sempre, como Rico Mansur, Álvaro Garnero e João Paulo Diniz. Os vips recebem seus convites em casa, entregues por motoboy. “Se mandar por e-mail ou por carta, esquece”, explicou-me a promoter Helô Ricci, uma moça magra, alta e de tom de voz enternecedor, que há quinze anos trabalha na noite paulistana.

A descrição do ambiente é detalhada. As várias comparações ajudam o leitor a

compreender com mais facilidade como é o lugar da festa.

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A Pacha é toda branca. A idéia, conforme Sanchez, é “dar um clima Ibiza” à casa. A entrada principal tem paredes com relevos disformes, supostamente imitando as casinhas da ilha de Santorini, na Grécia. Um enorme lustre, feito de pano branco, lembra o candelabro do musical O Fantasma da Ópera. Sofás brancos se espalham pelos ambientes pintados de azul-turquesa. Há um balcão que vende sushis e outro para pizzas. Respira-se fumaça. Um dos espaços tem a forma de um circo. Os anônimos só têm acesso ao picadeiro, que é a pista de dança. Os vips assistem a tudo a 1,40 metro de altura do chão, nas arquibancadas, onde ficam os camarotes. Nunca descem.

Narra-se o que acontece no camarote de André Athiê: como dançam, como bebem e o

que bebem. “Eram três da manhã, e o camarote de André Athiê estava bombando. Ele e os

amigos subiam nos sofás brancos, bebendo vodca de canudinho”. O uso de uma citação direta

demonstra a visão do mundo de André — e conseqüentemente da classe social que representa.

Observe-se a expressão “bombar”, uma gíria que significa festa lotada.

Para Athiê, não há no momento lugar como a Pacha na noite paulistana. Ele já provou quase tudo: foi ao Royal, ao Museum, ao Vegas, à Disco, ao Café de la Musique. “Aqui é como Nova York ou Europa”, disse, numa pausa. “Não parece que você está no Brasil. É ambiente doideira. É para ficar feliz e ver mulher bonita. Isso é que faz uma balada bombar”, diz.

É proposital a exposição dos lugares que André já freqüentou, bem como o valor de

uma garrafa de champanhe. Tudo define o jeito de viver dos personagens. “Com o pai, o

arquiteto Sérgio Athiê, freqüentou a La Cave, em Courchevel, a estação de esqui francesa,

onde havia uma garrafa de champanhe por 27 mil euros. Outra vez, foi com um amigo no

Club Z, em Genebra. Em outra, com um primo, na Marquee, em Nova York”.

A descrição cena a cena é notada no parágrafo em que é narrada a chegada de Julia

Petit.

À 1 da manhã de uma quinta-feira, Julia Petit chegou à Pacha com sete amigos. Ela também é vip. À tarde, a boate havia mandado para sua casa uma camiseta e uma garrafa de champanhe. Ela atravessou rapidamente o corredor polonês. Um segurança fez sinal para uma recepcionista vestida de preto, que a deixou passar e lhe deu um sorriso tão simpático quanto o de uma aeromoça em início de carreira. Ela rumou ao caixa para pegar sua pulseirinha vermelha e um cartão de consumo (que teve o valor de 0 real porque tudo o que ela quis foi de graça).

Logo em seguida, Julia se encontra com o outro personagem da história, André Athiê.

Nota-se no próximo trecho a presença da estética literária, principalmente um recurso típico

do New Journalism, o diálogo. A repórter repara propositadamente na marca da camiseta de

André, para mais uma vez caracterizar os símbolos da ideologia da elite.

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No caminho para o camarote, teve um encontro inesperado. Topou com André Athiê, vestido com uma camiseta preta de propaganda da Armani. Nunca tinham se visto antes. Segundo Ben Ramalho, Julia Petit é a figura mais popular na Pacha, e Athiê o cliente mais fiel.

– Ah, você é o que vem toda semana?, Julia perguntou. – É, tô aqui direto. – Mas você vem no camarote? – Claro, respondeu Athiê. – Mas você paga a bebida? – Pago, mas eles fazem um preço ótimo para mim. Eles riram um para o outro. Despediram-se com um beijinho no rosto. Ela

seguiu para o camarote. Benjamin a abraçou por trás. – O que você quer, amor? Champanhe, vodca? – Champanhe, né? Amanhã tenho que trabalhar às 9, respondeu a jovem. Pouco depois, Athiê me perguntou, apontando para um rapaz ao lado de

Julia Petit: “Me disseram que ela gosta de moleque, é verdade? Ela está com aquele cara?”. Expliquei que ela era a chefe do cara. “Pô, vou lá. Se ela estiver com o cara, foda-se. Aqui sou intocável”, gargalhou.

Todo o trabalho de descrição feito anteriormente não foi em vão. Serviu para

contextualizar a conversa que aconteceria entre as duas personagens e revelar o mundo em

que a repórter está. O Jornalismo Literário não se limita ao embelezamento vazio do texto

jornalístico. As descrições, o detalhamento, as observações carregam o propósito de retratar a

realidade como ela é e dar ao leitor a possibilidade de tirar suas conclusões.

Daniela Pinheiro, em sua narrativa, mostra um lado obscuro das noites paulistanas: o

consumo de drogas que, em ambientes elitizados, é visto com condescendência pelas

autoridades. A repórter deixa que seus entrevistados naturalmente falem dos efeitos dos

entorpecentes.

Assíduos das baladas notaram algo de novo na noite nos últimos tempos: a volta da cocaína. O ecstasy reinou absoluto nas pistas de dança durante cinco anos, explica um veterano baladeiro. Por três motivos, completa um consumidor ocasional: dá energia para dançar durante horas, incrementa a libido e é relativamente barata – o comprimido custa cerca de 35 reais. Mas o ecstasy, com o tempo, diminui os efeitos. É preciso tomar mais comprimidos para obter a mesma excitação. Já a cocaína, que está há anos com o preço estável, não precisa ser cheirada em quantidades crescentes.

Os traços culturais e os costumes enriquecem a trama. Daniela conceitua, por meio de

citações diretas, como os baladeiros se referem às drogas. ”Entre os ricos, a sugestão de

cheirar vem em inglês: Do you smell like Chanel? Entre os gays, o pó é ‘padê’. Os modernos

dizem: ‘Ah, quero magia’”.

Com o uso da descrição cena a cena, a repórter mostra o comportamento da

personagem Julia Petit, descontente com a Pacha. Um homem se aproxima para conversar.

Parece o trecho de um conto, com suspense e tensão narrativa.

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A pista de dança lotou. Julia Petit parecia entediada. Conversou alguma coisa com os amigos que brindavam com champanhe, dançou um pouco, mas logo pegou o celular. Começou a escrever torpedos. Até o fim da noite, checou o telefone com ansiosa freqüência. No camarote atrás do seu, um sujeito de uns 40 anos, em companhia de quatro mulheres e dois homens fortes, estava elétrico. Pulava no mesmo lugar como estivesse secando do banho sem toalha. Do nada, apresentou-se: “Anota aí, eu sou cirurgião vascular. Essa balada aqui é boa demais. Eu amo balada, só que o povo acha que médico não pode beber, se divertir”, falou, um tanto histérico. “Eu dou festa para mil pessoas na minha casa no Morumbi. É open bar. Não é pobreza não”, insistiu, sem que ninguém lhe houvesse perguntado nada. E mais ainda do nada, virou-se e retornou ao seu grupo.

Ao final do parágrafo um trecho está entre parêntesis: “(Ainda bem que não é o meu

médico)”. Daniela Pinheiro, por um instante, muda o foco narrativo para a primeira pessoa do

singular, a de Julia Petit, para caracterizar com mais realismo o que a personagem pensava a

respeito do suposto médico que tinha acabado de abordá-la. É o fluxo de consciência que Tom

Wolfe conceituou em Radical chique (2005).

Um pouco adiante, vê-se novamente um trecho característico do Jornalismo Literário.

A descrição do ambiente, nos sentidos visual (“luzes estroboscópicas”) e auditivo (“gritos

vindos da pista de dança”) dão uma noção exata da cena. A narrativa é leve e de fácil

entendimento. Faz-se ainda o uso de citações diretas para exprimir a opinião da personagem

Julia Petit.

Às 2 e meia, a Pacha chegou ao auge. As luzes estroboscópicas, a música alta que parecia reverberar na caixa torácica, os gritos vindos da pista de dança, tudo bombava. As pessoas tiravam fotos umas das outras com o celular. Havia pouca gente se beijando. Cada um dançava sozinho. Julia Petit parecia continuar à margem. Falou-se sobre outras boates. Ela gosta da Royal, “onde mandam buscar sanduíche de pernil especialmente para os amigos”, disse. Enquanto conversava, mexia no cabelo, olhava para o nada. “Sabe, eu venho nesses lugares porque não tenho que pegar fila, gastar tempo, explicar nada. Se tivesse que passar por tudo isso, te juro, não saía de casa. Não tenho o mínimo saco”.

A repórter insere outra personagem na história, a estilista Chris Mello, para

contextualizar o leitor, dando-lhe novas informações e opiniões sobre o mundo dos VIPs.

Além de usar suas declarações, repara minuciosamente nas roupas, no que e onde comia, tudo

para deixar bem claro o posicionamento social da personagem. “Comendo mexilhões em um

restaurante paulistano, ela vestia calça e blusa pretas, usava um rabo de cavalo e sapatilhas

Chanel. Os olhos são muito azuis e seu cabelo muito preto”.

Saindo da Pacha, Daniela se desloca para a Consolação para conhecer outra balada em

São Paulo, a Royal. Com o mesmo cuidado de antes, dá as características do lugar (menor que

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a Pacha) — e consequentemente o comportamento das pessoas lá dentro (“paqueram mais”),

preços de camarotes e freqüentadores.

A Royal tem o pé direito baixo, mesas escuras e rasgos das paredes de onde é possível avistar o centro de São Paulo. O público é diferente da Pacha, onde todo mundo se parece. Mistura o colunista Arnaldo Jabor ao cantor Seu Jorge, de Junior, o irmão de Sandy, à modelo Alessandra Ambrósio, e a terceira geração de milionários das famílias Setúbal, Simonsen e Moraes. Na área dos sofás, estão os camarotes, vendidos por 1,5 mil reais. Em alguns, sente-se o cheiro de maconha. Por ser menor (lotação 400 pessoas), paquera-se mais.

No próximo trecho, nota-se a importância da intervenção da narradora na história. A

repórter interage com o ambiente em que está e consequentemente com quem está inserido

nele. Numa seqüência narrativa parecida com a um de conto, Daniela Pinheiro conversa com

DJs. Um deles a segura pelo braço e lhe diz algo. Na seqüência vale até inserir a letra da

música que está tocando, detalhe que enriquece o texto.

Às duas e meia da manhã de uma sexta-feira, o DJ Felipe Venâncio e Marcus Buaiz, com um copo de marguerita na mão, conversavam sobre a oportunidade de abrir um restaurante japonês. O camarote de Buaiz é o único com uma cortina preta de voil, que é fechada quando se quer privacidade. “Boate depende do dono. São nossas amizades que enchem o lugar de gente bacana. É como uma festa. As pessoas se sentem em casa”, disse. Ele me segurou pelo braço levemente e levantou o dedo indicador da mão direita: “Olha essa música. Isso é o hit hoje. Olha o que vai acontecer”. De repente, todas as pessoas, que sacolejavam apenas com ombros da direita para esquerda na música anterior, começaram a cantar com as mãos para cima:

Get up, get out, get away from these liars 'Cause they don't get your soul or your fire Take my hand, knot your fingers through mine And we'll walk from this dark room for the last time

Ao longo da reportagem, Daniela valoriza os relatos feitos pelos entrevistados,

reparando sempre nos gestos simultâneos, roupas e modo de falar — vale até simular a

pronúncia de certas palavras como “djelada”. É o caso do empresário Marcus Buaiz.

De calça jeans, camiseta, tênis e um boné com aba virada para trás, Buaiz tem uma leve dislexia, que o faz pronunciar palavras começadas em “d”, “g” ou “t” de maneira incomum. Gelada é “djelada”. Num sábado à tarde, quando a boate ainda cheirava a cigarro da noite anterior, e três faxineiras limpavam o salão, Buaiz chegou com sono. Pediu um energético para acordar. Sua visão sobre o negócio é clara: “A noite pode ser muito rentável, tanto que a Royal se pagou em seis meses. Mas tem que encarar a coisa como business, não sair um milímetro fora das suas contas”. Olhando pela janela, apontou a calçada, que reformou para valorizar o ponto, e continuou: “a noite é como casamento. De tempos em tempos, você tem que mudar para agradar sua mulher. Tem que dar uma malhada, ficar bem, ter umas novidades, para não cair no tédio. É a mesma coisa. Tem que mudar a decoração, o

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Page 82: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

som, as bebidas, as garçonetes. Não pode deixar enjoar”, diz ele, que se casa em maio com a cantora Wanessa Camargo, filha do sertanejo Zezé di Camargo.

A valorização dos relatos propicia momentos de nostalgia e permite identificar ícones

que fazem parte do pensamento e da memória das pessoas. Entrevistado, o empresário José

Victor Oliva, sócio do extinto Gallery, volta no tempo. Para deixar a declaração um pouco

mais próxima do real inclui-se um som emitido pelo personagem (“hummm”) que dá a idéia

de reprovação a certas coisas.

Aos 53 anos, de camiseta branca, um relógio imenso no pulso, ele expõe nas paredes de seu escritório as lembranças mais trepidantes do The Gallery: o dia em que Tony Bennett cantou, quando Matilde Mastrangi leiloou sua calcinha, o então metalúrgico Lula com camiseta da boate, fotos com B. B. King, Dulce Figueiredo, Pelé, Tom Jobim. “Parece que as pessoas hoje, hummm (esfrega o polegar com o indicador e o dedo médio), ao ir para boates, hummm, não sei, é como se fossem fazer um programa no shopping center”, disse.

Com a proposta de valorizar os relatos, Daniela Pinheiro não edita nem substitui certas

expressões indigestas ou repetitivas do texto. A estratégia mais uma vez serve para mostrar

traços da personalidade do entrevistado, bem como para dar mais realismo ao texto. “Olha, a

Daniela Cicarelli é uma arquigostosa, supersimpática, mas isso não pode fazer de uma pessoa

uma vip, porra. Vip é um puta de um pensador, um puta de um político, um puta de um

escritor, ou o Pelé”.

Às vezes em uma pequena cena descrita descobre-se o humor do personagem. Foi

assim que Beto Lee se comportou na Pacha, segundo a maneira observada pela repórter. “O

rapaz não cumprimentou ninguém e se acomodou no canto do sofá. Acendeu um cigarro e

observou, sem entusiasmo, o movimento”.

O texto de Daniela Pinheiro pode ser caracterizado como uma reportagem em que se

inserem técnicas do Jornalismo Literário. Não é possível afirmar que o tempo todo se aplica a

estética literária, mas há muitos momentos em que isso acontece de modo bastante evidente.

Foram ouvidas várias pessoas e registrados pontos de vista que constroem uma linha de

entendimento sobre como vivem e o que pensam os personagens que freqüentam as casas

noturnas mais sofisticadas de São Paulo.

O uso de expressões pejorativas e preconceituosas, as citações utilizadas sem cortes,

dão margem a uma série de interpretações. Percebem-se, por exemplo, certas idéias

preconcebidas da elite a respeito do mundo que o cerca.

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4.4. “O bagulho é doido, tá ligado?”, de Luiz Maklouf Carvalho (edição nº 10, julho de

2007)

A reportagem retrata o dia-a-dia de músicos adeptos do movimento rap — ritmo e

poesia —, especialmente o grupo Facção Central, de São Paulo. São contados os bastidores

dos shows, roteiros de viagens, o que os rappers pensam sobre a vida e sobre a sociedade que

discrimina o subúrbio — que representam.

Saídos da periferia paulistana, dividem-se entre dois mundos — o da exclusão e o da

indústria cultural —, já que possuem um poder aquisitivo superior ao dos demais. Mesmo

bem-sucedidos, eles não ignoram suas raízes e trazem consigo um conjunto de valores e

preconceitos com relação a alguns setores da sociedade, como a polícia e a alta burguesia. Ao

mesmo tempo, adquirem novos hábitos de consumo, principalmente influenciados pelo rap

norte-americano.

O texto de Luiz Maklouf Carvalho é uma reportagem completa; predomina a

variedade de fontes consultadas, o aprofundamento e a preocupação em descobrir como um

fenômeno cultural — o rap — repercute no organismo social. Ao mesmo tempo, o repórter

transforma seu trabalho num espaço para a experimentação de recursos da literatura,

intensificando a narrativa no tempo presente em alguns trechos, além de adotar uma postura

narrativa ousada, com uso de gírias e ricas descrições de lugares, roupas e pessoas.

Maklouf inicia o texto falando sobre os cachorros que vigiam a garagem do rapper

Taddeo. Podem ser notadas duas características do Jornalismo Literário: a descrição de

detalhes, quando são observadas as características do lugar, e o sumário ou exposição, quando

se apresenta um assunto secundário — no caso os cachorros — para iniciar a narrativa sobre a

vida dos rappers.

Carlos Eduardo Taddeo cria dois cachorros bravos, o mastim napolitano Lothar e o rotweiller Luthor, para dissuadir quem cogite bisbilhotar a garagem da sua casa, onde estaciona sua Blazer preta, modelo 1999. É uma casa pequena, em nada diferente das dezenas de outras que a cercam no Jardim Castro Alves, no bairro do Grajaú, na periferia paulistana.

A valorização do ser humano como objeto central da narrativa é exemplificada pelo

olhar atento do repórter aos pequenos gestos do cotidiano de Taddeo. O rapper não deixa que

suas filhas falem palavrão.

As meninas, que são boas alunas de uma escola pública das imediações, são criadas com afeto e severidade. Elas são proibidas de tomar refrigerante e não freqüentam

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McDonald’s e similares. Foram poucas vezes, mas quando as meninas dizem palavrões, o pai lhes dá palmadas. “Não deixo nem que elas falem ‘bunda’”, diz Taddeo (...).

Se fosse uma reportagem nos moldes convencionais, provavelmente essas informações

seriam descartadas. O sentido da inclusão de certos detalhes está na possibilidade de se

desvendar o pré-julgamento do personagem a respeito do mundo e, por conseguinte, do grupo

social em que se insere.

A seguir, Maklouf faz uma descrição física do personagem que expressa o estereótipo

dos rappers. “(..) Taddeo, que tem a cabeça raspada, bigode pêra e cavanhaque ralos, calça

tênis cano alto, impecavelmente alvos, veste calças jeans bem largas e uma camisa de manga

comprida azul-marinho, com listras brancas e vermelhas”.

O jornalista valoriza seu ponto de vista incluindo no texto uma pergunta que fez à

fonte, e que naturalmente seria uma dúvida do leitor. É um modo simples de fazer o leitor

participar da história, descobrindo aos poucos o personagem. A estrutura aqui observada é um

diálogo curto em que figuram o repórter, perguntando, Taddeo, respondendo, e a esposa

Maria de Fátima, complementando.

“Como elas fazem, então, para cantar as letras que o pai compõe? “Na hora dos palavrões elas pulam”, ele responde, sério, quase casmurro. “O Eduardo é chato mesmo”, opina Maria de Fátima”.

A cena presentificada da ação passa a sensação de que o acontecimento é simultâneo

ao relato do repórter.

“É uma sexta-feira fria, e o casal se prepara para ir ao Aeroporto de Congonhas, pegar um avião para Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, e de lá seguir de carro para Dourados, local do show”.

Maklouf inclui na narrativa novos detalhes sobre o rapper e sua música. Para dar mais

vivacidade à história, vale até incluir o trecho de uma música de composição de Taddeo.

Taddeo, de 31 anos, é o letrista único e líder do grupo de rap Facção Central, o mais enfezado da cena brasileira do hip-hop, autor de versos como: INFELIZMENTE O LIVRO NÃO RESOLVE O BRASIL SÓ ME RESPEITA COM UM REVÓLVER Ou

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DEITA, PORRA, QUERO DÓLAR, BRILHANTE, GARGANTILHA TÔ SEGUINDO OS CAPÍTULOS DA SUA CARTILHA O refrão “deita, porra” é da música “Cartilha do Ódio”, que também fala de uma granada explodindo “as coberturas de 5 milhões do Itaim Bibi”. Ela está no álbum O Espetáculo do Circo dos Horrores, o mais recente do Facção, lançado há um ano, que vendeu 35 mil cópias. É o sexto de uma carreira que começou há doze anos.

Após passar informações relevantes sobre a carreira do grupo Facção Central, Maklouf

entrevista Taddeo no tempo presente. Aproveita para expor mais um trecho de música. É o

ritmo, o tom da narração, que situa o leitor.

Enquanto aguarda a chegada da cunhada, que cuidará das filhas durante o fim de semana de show em Dourados, Eduardo Taddeo explica que o “circo dos horrores”, do título do álbum, é a situação produzida pela miséria brasileira. Suas letras, diz ele, descrevem e apontam responsáveis pela exploração social. É o caso do trecho que lamenta: QUE PENA QUE NESSA CHURRASQUEIRA TAMBÉM NÃO VIREM CINZAS VEREADORES, DEPUTADOS, SENADORES, MINISTROS E PRESIDENTE

Maklouf demonstra que é possível associar saber e sabor — como diria Gay Talese —,

informação com estética literária. Distribui de uma maneira própria as informações mais

objetivas — anos de carreira, número de discos vendidos — enquanto narra cenas, diálogos e

valoriza as falas. O repórter contextualiza, explica conceitos como o rap — rhytim and poetry

—, tudo para que o interesse do público não se esvaia pela falta de repertório cultural ou de

dados. Dedicam-se dois parágrafos sobre a história do rap e suas características.

A música sempre faz parte do cotidiano dos rappers. O autor da matéria deixa isso

bem claro, sempre inserindo versos. As letras das músicas carregam a ideologia de uma classe

social marginalizada.

Taddeo escreveu cerca de 100 letras de rap. Os palavrões são usados com abundância (“filho-da-puta” aparece 27 vezes). A intenção deles não é fazer gracinha. É nomear os inimigos, que são ameaçados e agredidos. Como ocorre em “Assalto a banco”: FILHO-DA-PUTA SE JOGA NO CHÃO QUE O CHEIRO DE SANGUE TÁ NO AR 380, GLOCK, 45, É HORA DE REZAR (...) Quando a conversa baixa de tom, se ouve Eduardo cantar na TV: DEVIA TER UM CONTROLE INTERATIVO NA TELEVISÃO

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PRA BOTAR FOGO NO PROJAC, NA XUXA, NO FAUSTÃO SE EU SEQÜESTRO O SILVIO SANTOS, PEÇO DE RESGATE O RATINHO, O GUGU, NUM FOGUETE PRA MARTE

Em conversa com Taddeo, Maklouf observa os móveis da casa do entrevistado, sem

deixar de passar novas informações sobre o grupo Facção Central.

“Eu pesquiso muito para não cometer erro de informação”, explica Taddeo, no quarto do casal, algo desarrumado devido à reforma da casa, herdada do sogro. Como ainda não há guarda-roupa, eles usam um armário improvisado. Os seis álbuns estão arrumados na cabeceira da cama. O rapper estima que tenha vendido, tudo somado, uns 80 000 discos.

A liberdade autoral está presente na construção do texto, possibilitando adjetivações

pouco usuais. Para se referir às letras, em vez de extensas e ácidas, Maklouf escreve

“quilométricas e sulfúricas”. Considera-se aí o uso de uma figura de linguagem, a hipérbole,

para intensificar as características dos raps. “As letras, quilométricas e sulfúricas, se estendem

por dezenas de páginas”.

Utilizar as letras de música foi uma alternativa para Maklouf evidenciar signos da

realidade dos rappers e da periferia. Sabe-se da relativa repulsa, por parte deles, com relação

aos policiais e aos jovens ricos. As expressões fortes são mantidas. Muitos escritores recorrem

ao palavreado chulo como maneira de intensificar a narração. Maklouf valoriza esse aspecto

de modo equilibrado, sem ser vulgar nem cansativo. Seus alvos principais são a Polícia Militar SE NÃO EXISTE A PENA DE MORTE NO BRASIL, POR QUE A PM MATA TANTO PRINCIPALMENTE A ROTA, PUTA QUE O PARIU? e jovens ricos, chamados de playboys: AÍ, PLAYBOY, CONSTRÓI SEU BUNKER COM VIDRO BLINDADO, PORTA DE AÇO BALÍSTICO COM FECHADURA DE NOVE DENTES PÕE NO SEU JARDIM SENSORES DE MOVIMENTO CÂMERAS, CÃO DE GUARDA E UM VIGIA NA GUARITA QUE O SHOW JÁ COMEÇOU

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Nos próximos três parágrafos Luiz Maklouf Carvalho constrói uma seqüência

narrativa com estética literária, parecida com a de um conto. São notadas as cenas que se

seguem antes da viagem para Dourados (MS), na chegada dos integrantes do grupo ao

aeroporto, todas no tempo presente (efeito de presentificação). No meio destas, incluem-se

novas informações, histórias de vida e detalhes interessantes, como o fato de Dum-Dum e

Taddeo não se cumprimentarem.

O vôo da Gol saía de Congonhas às 23:30 horas. Já eram quase 9 horas, e nada de Dum-Dum. O primeiro a chegar foi Marcos Antônio Marinho, o Marquinhos, dj assalariado do Facção Central. Ele ganhará 300 reais pelos quase três dias da viagem. Tem 29 anos. Ex-contínuo, ex-chocolateiro de fundo de quintal, está no grupo há quatro anos. Também se apresenta em baladas no Capão Redondo, onde mora. (...) O ambiente ficou mais agitado com a chegada de Edson Oliveira Santos, o Smith. “Ele é o que mais zoa”, apresenta Taddeo. De óculos pequenos e cabelo de trancinhas rastafári, Smith, de 26 anos, é um dos dois vocalistas de apoio. Branco, alto, tem uma sombra de barba e bigode finamente escanhoada. É confeiteiro de profissão, mas está desempregado. Canta desde 1999. Já integrou os grupos Realidade Urbana e Detentos do Rap. Ganhará 250 reais pelo show no Mato Grosso do Sul. (...) Dum-Dum chegou num Mazda 98. Cumprimentou a todos, menos Fátima e o marido, para os quais nem sequer olhou. O casal também o ignorou. Dum-Dum estava com o outro vocalista de apoio, José de Oliveira Arias. Aparentemente mudo — a não ser no palco, quando solta a voz e o corpo —, Arias é de família classe média baixa. Seu último emprego, nos anos 1990, foi o de ajudante de cozinha do Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi, durante a gestão de Mario Covas. Começou na música tocando cavaquinho, com uma turma do pagode. Em 1999 aderiu ao rap. Arias vai faturar 250 reais na viagem a Dourados.

Subentende-se que o repórter está no carro conduzido por Taddeo, a caminho de

Congonhas, momentos antes de chegar no aeroporto. A narrativa não é linear, visto que

Maklouf, em parágrafo anterior, já havia relatado cenas em Congonhas, quando o rapper

Taddeo já estava ali. Um efeito de flash back.

No volante da Blazer, a caminho de Congonhas, Taddeo estima que o carro valha uns 35 000 reais.

São inseridas pequenas histórias de vida de novos personagens que aparecem, como é

o caso de Carlos Alberto, responsável pelo som do grupo. Valoriza-se seu relato e sua visão

de mundo.

O mais quieto da trupe é Carlos Alberto Bibiano, o Carlinhos, responsável pelo som. É a primeira vez que ele se mete com a turma do rap, numa substituição de última hora. Mas já cansou de fazer shows com duplas caipiras. Avesso às drogas, ficou

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traumatizado com artistas que usaram maconha dentro de vans em que ele também estava. “Banda que não fuma perto de mim já ganhou a minha simpatia”, diz, ainda sem saber qual será o comportamento do Facção Central.

Maklouf continua utilizando uma estrutura narrativa intensa e presentificada para

construir sua reportagem. Ele repara em detalhes como a freqüência com que Taddeo é parado

por fãs assim como o jeito de andar de Dum-Dum. Descreve minuciosamente a cena em que

Smith é parado na esteira do aeroporto.

No aeroporto, Eduardo Taddeo foi parado quatro vezes por fãs. A trupe dos oito chama a atenção. Pelo conjunto, mas, principalmente, pelo andar gingadíssimo do estiloso Dum-Dum, e pelas trancinhas e roupas folgadas de Arias e Smith. Na passagem pela esteira da Polícia Federal, Smith deu azar com o alarme. Era o cinto — e ele teve de tirá-lo. Mais sem jeito do que irritado, deixou que as calças caíssem, não teve pressa em recompor-se, e desconcertou uma desconhecida que o olhava, pasma, ao perguntar, rindo, o que é que ela estava achando.

O texto de Maklouf alterna descrições com cenas. O repórter continua a reparar na

falta de comunicação entre Taddeo e Dum-Dum.

Faz duas horas que Taddeo e Dum-Dum se encontraram e estão próximos. Mas não trocaram frases nem olhares. No salão de embarque, cada um fica no seu canto. O resto do grupo se divide entre um e outro. Arias e Smith são os mais chegados a Dum-Dum. Mas não deixam de dar atenção ao casal. Fátima é quem cuida dos negócios, da agenda de shows ao pagamento dos cachês. Taddeo nem sequer atende os telefones.

Embora tenha sido citado anteriormente, só agora Dum-Dum, um dos integrantes do

grupo, é descrito. O texto é dinâmico. São três parágrafos dedicados à história da vida e às

características do personagem. Valorizam-se os relatos, ao mesmo tempo em que são

explicadas as circunstâncias que levaram o rapaz a entrar para o mundo do rap.

Dum-Dum é Washington Roberto Santana. Tem 38 anos e 1,80 metro de altura num corpo musculoso e esguio. “Todo mundo acha que o meu apelido é por causa da bala, mas não tem nada a ver”, explica. “Foi a minha avó que colocou, por causa de um negrinho personagem de um gibi.” Filho de doméstica com pai que praticamente não conheceu, foi criado no bairro do Cambuci. Morou em cortiços, estudou até a quinta série e cedo pegou no pesado. Com 11 anos já tinha feito carreto, entregado jornal e trabalhado numa fábrica caseira de martelos, colocando os cabos. Passou a trabalhar em feira livre, limpando peixe. Pegou gosto e foi peixeiro, até os 17, sempre em feiras. Depois, se tornou ajudante numa empresa que produzia fotolitos, e faliu. “A única opção que vi foi vender drogas, entrar para o tráfico”, conta. (...) Dum-Dum virou traficante. Fumou e cheirou toda maconha e cocaína que pôde. “Crack, nunca”, diz. Foi preso em 1996, passou três meses na cadeia pública de Pinheiros, período em que nasceu sua filha, sobrinha de Eduardo Taddeo. “Saí da

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cana com outra cabeça, voltado só para fazer o certo”, afirma. A Justiça o absolveu, por falta de provas. Parou de usar cocaína. (...) Ele caiu no rap de vez ao ver um show dos Racionais MC’s. “É isso que eu quero pra mim”, decidiu, na frente do palco. A primeira formação do Facção Central nasceu com ele, mas sem o cunhado, que entrou depois. “Se não fosse o rap eu não estaria vivo”, diz Dum-Dum. “É a minha vida e o meu sustento.” Ao contrário de Taddeo, sua cultura musical extrapola o mundo do rap. Ele gosta de Billie Holiday, Nina Simone e Aretha Franklin. Dum-Dum tem uma Nossa Senhora Aparecida e uma escrava Anastácia tatuadas no braço direito, a palavra Facção no esquerdo, e o focinho de um pit bull na perna direita.

Por vezes, as cenas narradas — ainda no presente — servem para mostrar o

comportamento apresentado pelos integrantes do Facção Central, como é o caso de Smith,

dentro do avião, ou no bar pedindo uma cerveja. A cobertura dos bastidores revela traços da

personalidade dos integrantes do grupo, suas preferências e privilégios.

No avião, Smith chama um passageiro que entra de chapéu de Crocodilo Dundee. O próprio não percebe, mas outros riem. Pouco depois, Smith pede um isqueiro para a aeromoça, explicando, na maior naturalidade, que quer fumar. Ela e os que ouvem o pedido se assustam um pouco. Smith diz para não se preocuparem, porque vai fumar no banheiro, sem incomodar ninguém. Mais risadas, até que uma senhora se irrita e pede que ele fale mais baixo. O vocalista a ignora. Meia hora depois da decolagem, Smith sossega. (...) Em Campo Grande, na madrugada, a van que os espera no aeroporto leva todos para jantar numa feira em fim de expediente. Carlinhos Bibiano registra, satisfeito, que, até então, ninguém fumara nada. O cansaço é evidente, mas, no restaurante simples, ainda há ânimo para protestar contra uma batata frita de 15 reais, afinal descartada, e para Smith pedir ao garçom, com fingida seriedade, uma cerveja de 4 litros. Dum-Dum e Taddeo estão em lados opostos da mesa. Continuam evitando se olhar. E assim seguem dentro da van, por mais três horas, até Dourados, onde chegam quase de manhã. O casal Taddeo hospeda-se num apartamento maior, de frente para a rua. Os outros seis se dividem em dois apartamentos de fundos.

Com a descrição de cenas que acontecem simultaneamente em locais diferentes,

Maklouf conta os bastidores e os preparativos de uma apresentação do grupo Facção Central.

Enquanto algumas pessoas correm atrás dos últimos detalhes, Taddeo está no quarto

memorizando a letra de mais uma música.

Enquanto Fátima, Marquinhos, Carlinhos e Chagas estavam no palco, cuidando cada um da sua área — projeção de vídeo, equipamento do dj, som e luz —, os quatro vocalistas continuam no hotel, descansando. Não saíram nem para almoçar. Fátima trouxe as quentinhas do restaurante a quilo mais próximo, o Máximo’s, e eles comeram nos apartamentos. (...) Sozinho no quarto amplo, o líder do Facção faz exercícios de memorização das letras caudalosas. “Mesmo que o meu cérebro pare, eu quero que a boca continue a cantar”, ele diz. E canta:

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513 DEPUTADOS, ESTOCADOS COM VERGALHÃO ESSE É O PLENÁRIO QUE EU SONHO EM PRESIDIR A SESSÃO

O jornalista caracteriza o personagem Taddeo minuciosamente. Descreve as tatuagens

que o rapper fez nos ombros. Uma delas representa uma música do Facção, cujo trecho

também é citado na matéria. O ritmo, o clima da narrativa, está determinado pelo tom ácido

das letras (raps), que tratam de diferentes problemas (aborto, drogas).

No ombro direito, Taddeo tem tatuagens com o rosto da mulher e das filhas. No esquerdo, vê-se um feto cercado por todas as misérias imagináveis. É o retrato de uma das suas letras mais escabrosas, a de “Cortando o Mal pela Raiz”: É BOM DAR NEGATIVO O TESTE DA FARMÁCIA, SENÃO ARRANCO O EMBRIÃO DO SEU ÚTERO NA NAVALHA

A história de vida é uma estrutura que ambienta o leitor, revelando os fatos que mais

marcaram a vida do personagem, para que assim seja possível desvendar sua personalidade,

entender seu modo de encarar as coisas. Taddeo foi criado no meio do crime, das drogas.

Tudo o levava para um caminho sem volta, até que um dia ouviu uma música que mudou sua

maneira de pensar. Maklouf, nesse contexto, utiliza citações diretas do perfilado, com

revelações interessantes. O repórter valoriza o próprio ponto de vista quando se inclui na

narrativa (“Ele me mostrou meia dúzia de fotos da festa de seu primeiro aniversário”). O autor

descreve até as imagens mais marcantes nas fotografias — um complemento às memórias do

rapper.

Eduardo Taddeo é filho de uma faxineira que teve quatro filhos em dois casamentos. Seu pai, descendente de italianos e empresário da noite, era casado com outra mulher oficial, mas dava assistência. Ele me mostrou meia dúzia de fotos da festa de seu primeiro aniversário. Houve bolo, mesa de doces e refrigerantes, servidos para pessoas alegres, que vestiam roupas de festa. O pai, de terno branco, o carrega no colo, ao lado da mãe. A casa alugada da foto era no Glicério, bairro antigo e popular do centro de São Paulo, conhecido pelos cortiços e pela pobreza. O rapper conta que as dificuldades se agravaram com o afastamento gradativo do pai. A mãe e os quatro filhos moraram em pensões, com banheiros coletivos. Aposentada por invalidez, com o mal de Chagas, conta o filho, “às vezes ela pedia esmola ou cesta básica na igreja”. (...) O líder do Facção estudou em escola pública até a quinta série do ensino fundamental. Era tímido e, míope, tinha vergonha de usar óculos. Usava tênis velhos e roupas surradas. Em casa, a comida era sempre menos do que ele queria. “Às vezes, só tinha arroz e o feijão era aquela água”, lembra. Ajudava a mãe pegando frutas e legumes nos fins de feira. Ganhava um troco tomando conta de carros. Na rua, assistia a cenas do crime: tráfico, furtos, roubos, prisões, violência. “Eu via os

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caras com tênis novos e queria ser criminoso”, conta. Começou aos 7, furtando um toca-fitas e roubando dólares de um japonês. Uma vez, foi parar na delegacia para averiguação de furto em um supermercado. Saiu sem maiores conseqüências. Com 9 anos, diz, já “andava com os caras”, levando e trazendo armas. Odiava álcool. Ia de benzina, maconha e cocaína. Experimentou crack. Com 16 anos, fez assaltos à mão armada. (...) “Foi um furto do Equipado que me salvou”, relembra Taddeo. Equipado vinha a ser um namorado de sua irmã, um pouco mais velho. Ganhou o apelido porque ia para a escola cheio das tralhas. O furto era um gravador com uma fita k-7 que trazia a música “Corpo Fechado”, dos rappers Thaíde e DJ Hum, que Taddeo escutou. “Aquilo me pegou”, ele conta. “Era uma coisa de falar rimando, que eu achei que podia fazer. Escrevi uma letra, mostrei para o Equipado, e ele disse que eu mandava bem. Daí não parei mais.” O primeiro grupo que ele formou, no fim dos anos 1980, chamava-se Esquadrão Menor. Era integrado por moleques de rua. Dum-Dum era um deles.

Aqui, a evidência de que textos jornalísticos com elementos da literatura podem ser

informativos e podem também discutir questões sociais relevantes, sem cair no descrédito.

Maklouf enriquece a reportagem com a opinião de uma antropóloga contrária ao rap. O

repórter cumpre aqui uma das premissas do jornalismo, a de ouvir diferentes opiniões sobre o

mesmo fato.

No mês passado, a antropóloga Alba Zaluar, especialista em violência e segurança pública, assistiu o videoclipe Isso Aqui é uma Guerra, que está disponível na internet. “Fiquei horrorizada, paralisada”, comentou. “Não dá para construir uma saída para os destituídos com o ódio e a destruição daqueles que não podem ser responsabilizados pela destituição.” (...) Alba Zaluar, autora de Integração Perversa, livro sobre violência e tráfico de drogas, é professora no Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Faz tempo que ela implica com o rap. Mais precisamente desde os anos 1990 quando ouvia, em rádios de ônibus que a levavam para o campus de Stanford, na Califórnia, os ofensivos palavrões do rap americano.

Não bastando a descrição minuciosa do cotidiano do rapper, Luiz Maklouf Carvalho

analisa também o teor das composições do Facção Central, bem como no que Taddeo pensou

para fazê-las.

As letras do Facção Central e de outros grupos de rap tratam as mulheres com hostilidade. Afora as mães sofredoras de filhos criminosos, que são quase santificadas, sobra para as outras a acusação de serem “vadias”, “putas” ou “madames” ricas, que merecem sofrer: VOU DERRETER COM COCAÍNA O FILHO DA MADAME MORTE PRA PUTA OSTENTANDO NA CARA SUA GARGANTILHA SEU SORRISO CLAREADO A LASER PELO DENTISTA PRA VACA ESTRESSADA

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É SEMANA NO SPA Taddeo explica que não é ele quem fala na música, mas os personagens que cria, com cenários e narrativas ficcionais. Se o narrador é um assaltante de banco, falará como um. Se é uma vítima de seqüestro, fará esse discurso. Se é um bandido arrependido pedindo perdão à mãe, o melodrama cresce.

Ao falar sobre a postura do rapper Dum-Dum, Maklouf incorpora em seu discurso

termos do mundo do rap, gírias comuns a quem costuma ouvir o estilo musical ou a quem

vive na periferia.

Ele é daqueles manos sossegados, sangue bom, de várias fitas e firmas, que cultiva a idéia de que a maconha não é exatamente uma droga do mal, como a cocaína e o crack.

Para demonstrar uma de suas observações — a de que Dum-Dum e Taddeo não se

falam —, Maklouf utiliza o recurso da cena presentificada da ação, ou seja, coloca o

acontecimento no tempo presente, como se ocorresse no momento em que é narrado. A

narrativa é esteticamente parecida com a de uma ficção. Mas é real.

São quase duas horas da madrugada de domingo. Está mais do que claro que Taddeo e Dum-Dum, a dupla que dá forma ao Facção Central, têm uma relação pessoal de aversão controlada. Eles nem sequer se aproximam.

Após inserir declarações de um ex-integrante do grupo, o DJ Erick Cohen, e de um

pesquisador de música, Frederico Oliveira Coelho, Maklouf fala um pouco sobre o rapper de

um outro grupo, Gas-PA, do Movimento Hip Hop Luta Armada. Durante a entrevista, o

repórter observa as roupas do artista, um modo de identificar os símbolos que fazem parte de

seu ideário.

(...) Sua camiseta tem a imagem de um fuzil com mira a laser, e traz uma mensagem contra as armas. O boné, vermelho, combinando com os tênis, tem as letras L e A à testa. “São as iniciais de luta armada”, brinca. Na verdade, o boné é do time de beisebol americano Los Angeles Dodgers. (...) O rapper traz, no ombro direito, uma tatuagem de Carlos Lamarca, com o lema do capitão: “Ousar lutar, ousar vencer”. No braço esquerdo, tem a imagem de Angela Davis, militante dos Panteras Negras americanos, nos anos 1960.

Na seguinte frase “Gas-PA, que é negro e tem 1,90 metro de altura, trabalha numa ong

educacional, e mora em Costa Barros, na Zona Norte do Rio”, pode-se questionar a relevância

da descrição racial do rapper. A descrição torna-se importante a partir do momento em que a

cor da pele é uma característica estereotipada dos rappers.

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Logo em seguida Maklouf fala de outro rapper, Mandrake. Esse é, como descreve o

repórter, branco e tem olhos claros.

Branco, olhos verdes, forte e careca, Mandrake se veste com o figurino do movimento: tênis bem conservados, bermudas-balão, tatuagem (“rap nacional”) no braço direito, camiseta larga.

A descrição vem para demonstrar que o hip hop extrapola as etnias. Citar a cor da pele

de seus adeptos é uma forma, vê-se, de quebrar os preconceitos, não de acentuá-los. As

roupas, entretanto, parecem ser as mesmas.

Para reportar um show do Facção Central, no Distrito Federal, Maklouf utiliza-se de

gírias e conta o fato no tempo presente. A letra da música, que o público canta, mais uma vez

dá sonoridade à narração.

Um coro de uns 2 000 manos e minas, parte careta e parte movida à maconha e/ou cocaína e/ou álcool, esquenta a madrugada fria num ginásio de Samambaia, no Distrito Federal: A ARMA É UM ENGENHO MECÂNICO, DEPENDE DA AÇÃO HUMANA SÓ NO BRASIL TEM DISPARO ACIDENTAL TODA SEMANA. A VIDA É RINHA DE PIT BULL, ONDE POODLE NÃO SAI VIVO FOCO DE INCÊNDIO ONDE NÃO CHEGA A ESCADA MAGIRUS No palco, com um telão central e dois laterais, Eduardo Taddeo, Dum-Dum, Smith e Arias cantam, dançam, movimentam-se a toda. Na hora do refrão iracundo de “Cartilha do Ódio” — “Deita, porra, quero dólar brilhante gargantilha...” —, o coro sobe de tom. Nas caras e bocas das centenas de fãs que se aglomeram perto do palco — onde seis seguranças de terno estão postados, atentos — a poesia de Taddeo adquire poderes catárticos. Alguns e algumas, em esgares, ritos e olhares bandidos parecem, realmente, estar assaltando e matando o milionário que as rimas execram.

Maklouf analisa o repertório, as reações e os movimentos das pessoas que foram ao

show, bem como dos rappers. Destaca-se a maneira como sintetiza os gestos de Dum-Dum

O Facção toca doze músicas no maior pique, sem parada e sem bis. Nunca há aplausos, como num show comum. Apenas gritos, e, às vezes, urros. Meninas se esticam para tentar tocar nos quatro. Smith é quem provoca mais gritinhos. Dum-Dum, de longe, é o que dança com maior expressividade, traduzindo as letras num gestual felino. Seus braços e mãos viram armas, tiros, drogas. Suas pernas simulam chutes de policiais e de bandidos. Eduardo Taddeo canaliza toda a sua energia para a emissão dos versos que ele escreveu.

Para a conclusão, o repórter guarda mais um gesto de liberdade autoral, possibilitada

pela abertura editorial da revista Piauí às narrativas reais. Maklouf usa expressões dos rappers

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e da periferia, parece familiarizar-se com o mundo em que imergiu, parece estar em harmonia

com ele. Além disso, quebra as normas e insere uma interjeição (“iiisshhh”) que não forma

nenhum vocábulo, mas expressa empolgação.

As minas e os manos deliram: idéia de mil grau, o bagulho é maluco, várias fita, firmeza no proceder, iiisshhh, tá pampa!

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Considerações finais

Foram analisadas quatro reportagens distintas da revista Piauí. Cada uma possui um

estilo, uma estratégia narrativa própria. Ao mesmo tempo, todas revelam traços do Jornalismo

Literário. Danuza Leão explora o perfil humanizado e estabelece proximidade pessoal com o

entrevistado. Vanessa Barbara constrói um texto muito semelhante ao conto, considerando-se

a originalidade na utilização da cronologia para descrever as cenas. Daniela Pinheiro traz uma

reportagem irônica e destaca-se pelo contato que estabelece com o leitor. Luiz Maklouf

Carvalho investe na contextualização e produz uma mistura bem sucedida de informação e

estética.

Além disso, são retratadas diferentes esferas da sociedade e uma variedade de visões e

preconceitos sobre a realidade. Apesar da limitação geográfica — já que os quatro textos

dizem respeito ao eixo Rio de Janeiro/ São Paulo —, se lidas em conjunto as reportagens

tornam-se uma amostra da identidade nacional, caracterizada pela desigualdade social e pela

grande influência estrangeira na cultura.

Nas reportagens predomina a valorização do ser humano como objeto central da

narrativa, por meio de histórias de vida e relatos dos personagens. Vê-se também a busca por

um novo padrão jornalístico e a fuga ao texto convencional materializado no lead. São

matérias em que o repórter se aprofunda no assunto para reportar os fatos sociais. O jornalista

testemunha o acontecimento sem abrir mão de ouvir várias fontes.

Ao final deste trabalho, é possível chegar a algumas considerações sobre a importância

do Jornalismo Literário no cenário contemporâneo. As evidências levam ao entendimento de

que inserir recursos da literatura no jornalismo pode contribuir para a sobrevivência da mídia

impressa. Diante da profusão de novas mídias digitais, que tornam a notícia cada vez mais

ágil, os veículos impressos terão de repensar sua função informativa. Essa tarefa se dará

possivelmente pela implementação das narrativas de não-ficção, com aprofundamento e

contextualização dos fatos.

Oferecer a notícia no formato em que foi concebida no início do século passado já não

é suficiente para que o jornalismo traduza seu tempo. A internet, a TV e o rádio informam

com uma rapidez insuperável. Mas isso não é o bastante. Falta um padrão jornalístico

diferenciado que organize a grande quantidade de informações recebidas pelo leitor todos os

dias e que coloque o ser humano em primeiro plano.

Dentro desse contexto, ao longo dos últimos anos muitos jornais e revistas têm

experimentado caminhos alternativos para relatar os acontecimentos. São exemplos mais

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recentes dessa tendência a revista Piauí, objeto de estudo desta monografia, e a Brasileiros —

que é administrada e editada por Hélio Campos Mello, Nirlando Beirão e Ricardo Kotscho.

Observa-se com este trabalho que o Jornalismo Literário, muito mais do que uma

proposta estética, tem um papel ideológico e social relevante. Calcadas em premissas do

jornalismo (ética, verdade, fidelidade das fontes) e influenciadas por recursos da literatura

(figuras de linguagem, valorização de relatos, cenas), as novas narrativas de não-ficção podem

ajudar a identificar o modo como as pessoas se vêem no cenário globalizado.

A narrativa tem encontrado espaço no meio jornalístico, editorial e acadêmico. Uma

série de iniciativas demonstra que o Jornalismo Literário está se consolidando como um

caminho possível de ser adotado.

Uma evidência é a coleção Jornalismo Literário, editada pela Companhia das Letras.

Reportagens consagradas há décadas, como A Sangue Frio, de Truman Capote, Hiroshima, de

John Hersey, A Luta, de Norman Mailer, O segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell entre

outros, foram reeditadas. Uma prova de que sua substância histórico-social não se perdeu no

tempo.

No ambiente acadêmico, a temática também ganha vulto. Os editores do portal Texto

Vivo — Edvaldo Pereira Lima, Sergio Vilas Boas, Celso Falaschi e Rodrigo Stucchi —

também são fundadores da Academia Brasileira de Jornalismo Literário. Os jornalistas-

professores da ABJL ministram, por meio de parcerias com instituições de Ensino Superior, o

primeiro curso de pós-graduação na área.

Recentemente foi realizado, também pela ABJL/Texto Vivo, o 1º Seminário Brasileiro

de Jornalismo Literário, entre os dias 22 e 23 de outubro de 2007, em São Paulo, com a

participação de destacados estudiosos da Comunicação. Durante o evento foi lançado o livro

Jornalistas Literários: Narrativas da Vida Real por Novos Autores Brasileiros, pela editora

Summus. A coletânea foi organizada por Sergio Vilas Boas, que compilou 16 textos

produzidos por alunos pós-graduados do curso da ABJL, em 2005 e 2006. Tantas

contribuições constroem uma problemática.

Ainda é corrente a idéia de que o Jornalismo Literário só pode ser aplicado a editorias

de fim de semana, como comportamento e cultura. Esse é mais um paradigma a ser quebrado.

Qualquer acontecimento pode ser relatado por uma perspectiva única, seja ele um grave

acidente aéreo, um assalto a banco ou um corriqueiro congestionamento no trânsito. Tudo

depende da postura do repórter, da sua ligação com o fato, do seu envolvimento com o

ambiente.

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É necessária ao Jornalismo uma motivação especial para que se converta, de fato, em

instrumento da democracia, em campo que sirva à existência humana como palco de suas

incertezas e conflitos, e, acima de tudo, de sua formação e emancipação.

É preciso renovar uma prática a cada dia mais abandonada pelos jornalistas: a de sair

às ruas, a de sentir o “cheiro” dos acontecimentos, ou, como diria Humberto Werneck sobre

Gay Talese, de “sujar os sapatos”.

Como já se discutiu neste trabalho, a emoção é peça fundamental na construção do

texto jornalístico. O jornalista Ricardo Kotscho afirma que um bom repórter sempre deve

voltar à redação com uma boa história para contar, não importa o assunto. Afinal, contar

histórias é uma necessidade inerente ao ser humano, desde sempre. A diferença é que agora

podemos guardá-las por mais tempo. Mas a essência não mudou.

A tecnologia, felizmente, não conseguiu fazer com que deixássemos de sentir dor e

prazer, não nos tirou o gosto de chorar ou rir, de pensar de modo liberto, de imaginar. O ser

humano ainda não foi transformado em máquina. Por que o jornalismo seria?

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Page 98: Monografia - O Jornalismo Literário na Revista Piaui

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CRONOGRAMA DE ATIVIDADES

Dezembro/ 2006

- Definição do objeto de estudo;

- Levantamento bibliográfico;

- Leitura de artigos e notícias relacionados ao objeto de estudo.

Janeiro/ 2007

- Leitura de bibliografia e registro documental;

- Fichamento de leituras realizadas;

Fevereiro/ 2007

- Leitura e fichamento de bibliografia;

- Início da revisão teórica;

- Definição da estrutura da monografia.

Março/ 2007

- Definição da estrutura da monografia;

- Revisão teórica;

- Contato com colaboradores da revista Piauí;

- Delineamento de objetivos e justificativas do trabalho.

Abril/ 2007

- Revisão teórica;

- Escolha dos textos a serem analisados;

- Leituras relacionadas ao tema.

Maio/ 2007

- Conclusão da revisão teórica;

- Leituras relacionadas ao tema.

Junho / 2007

- Entrevista com Francisco Karam;

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- Entrevista com João Moreira Salles;

- Conclusão da revisão teórica (1º capitulo);

- Contato com colaboradores da Piauí.

Julho / 2007

- Análise de textos (capítulo IV);

- Descrição da revista Piauí (capítulo III).

Agosto / 2007

- Conclusão do capítulo III;

- Conclusão de três análises de reportagens;

- Revisão geral do trabalho;

- Entrega do trabalho para pré-banca

Setembro/ 2007

- Considerações finais

- Leitura de bibliografia

- Elaboração do capítulo II

- Entrega para a revisão

Outubro/ 2007

- Conclusão do capítulo II

- Revisão final do trabalho

- Impressão

- Apresentação para a banca

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ANEXOS

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ANEXO A

O cheiro de cimento me inebria Guilherme Guimarães, o estilista das noivas, gira sem parar num carrossel de extravagâncias. Outubro de 2006 DANUZA LEÃO

Em meados dos anos 60, Guilherme Guimarães era considerado o maior costureiro do Brasil.

Seus vestidos de gala e de noiva eram, como se dizia na época, a coqueluche das grã-finas. Poderia também ter sido um decorador de sucesso extraordinário. Por que não foi? “Porque não agüentaria que um casal viesse me dizer que queria uma sala com hometheatre para ver novela com as crianças”, responde, na lata. “Gente assim, só matando.” Suas casas foram muitas. Pelo andar da carruagem, ainda serão muitas mais. No momento, ele tem um apartamento na avenida São Luís, no Centro de São Paulo, com um Miró na parede, e outro no Rio, no Flamengo. “Gosto de andar na contramão. Fui morar na Barra quando a Barra era um mato, e agora que todo mundo foi para lá, eu vim para o Flamengo.” Na casa da Barra havia uma piscina retangular. Um dia, ele juntou uma turma de pedreiros para mudar a posição da piscina. Apenas uma virada, como se faz com um cinzeiro. “Sou louco por uma obra, o cheiro do cimento me inebria”, ele diz. Nas suas infindáveis reformas, jamais recorre a arquitetos e decoradores. Faz tudo sozinho.

É quase impossível descrever seu apartamento no Rio. Há pouco tempo, numa noite de sexta-feira, ele fez um tour pela propriedade, respondendo às perguntas minhas e de um amigo. Havíamos marcado o encontro para as 19 horas. Cometemos a imprudência de chegar com três minutos de antecedência. Tocamos a campainha e ele só apareceu, saltitante, três minutos depois, alegríssimo consigo mesmo e com sua pontualidade. O apartamento fica no térreo de um edifício antigo (no Brasil, antigo quer dizer anos 50). Atravessamos uma porta pesada, viramos à esquerda e caímos numa contradição: uma saleta enorme—quando é sabido que as saletas, por definição, são pequenas. A salinha ficou grande porque há espelhos por todo lado, do chão ao teto, refletindo um lustre de cristal um pouco menor do que a catedral de Chartres, cortinas pesadas como mármore e um deslumbrante busto marroquino, de mármore de verdade.

O andar de baixo tem 150 metros quadrados. Guilherme achou pouco e comprou o de cima, com 180 metros quadrados. Cada centímetro cúbico está ocupado por bibelôs, peças de antiguidade, objetos artísticos, adereços, cadeiras, almofadas, tapeçarias, biombos, estatuetas, cinzeiros, revistas, tapetes de zebra com rabo e tudo, pufes, poltronas forradas de pele de tigre, porta-retratos com fotos das maiores amigas do proprietário, estantes com livros encadernados em couro, vasos de todos os tamanhos e formatos, troços, coisas, trecos. Orgulhoso, ele nos mostra um pequeno tinteiro recoberto com couro de crocodilo negro do Nilo, e com estabilizador, para o caso de o navio balançar—foi do Titanic. Guilherme sabe de onde cada objeto veio, quando o comprou e onde o viu pela primeira vez. Ele aponta tudo, e, estranhamente, não nos convida a sentar. Parece um tanto aflito quando ameaçamos tocar em algo. Esclarece que é proibido sentar nos sofás e cadeiras, para não amassar as almofadas de plumas. Também não se bate a cinza nos cinzeiros, para não sujar. Uma de suas muitas loucuras é ter a casa arrumada, arrumada em excesso, arrumadéssima, repleta de flores e com suas centenas de objetos no lugar certo. Se um deles estiver um centímetro mais para lá ou para cá, ele, enquanto conversa, dá uns passinhos curtos e o põe no ponto exato em que deveria estar.

À direita da entrada fica um escritório. É nele que Guilherme recebe suas clientes. Ele as escuta com atenção, faz desenhos pequenos com as idéias que trazem, fixa o preço do trabalho—e estamos conversados. “Se a cliente não abre o talão de cheque, não fico feliz”, resume. E se não fica feliz, neca de roupa. O tour prossegue, e caímos num salão. Há estantes e mais estantes de livros encadernados em couro e com apliques dourados. Há um bureau com dezenas de revistas de decoração estrangeiras. Todas têm na capa papeizinhos amarelos, chamando a atenção para determinadas páginas. Nelas estão assinalados objetos de desejo de Guilherme. Desde criança, Guilherme sempre foi fascinado pelo glamour social—do Brasil e do mundo—, pelas artistas de cinema, por objetos de decoração e roupas. Alimentava o fascínio comprando as revistas

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Vogue, Harper’s Bazaar e, no Brasil, Cena Muda, Sombra e Rio Magazine. Anotava tudo o que lia num caderninho e sabia—sabe até hoje—quem casou com quem, como era o vestido, como eram as jóias, como foi a festa, o que foi servido e quem eram os convidados (isso, sem conhecer ninguém). Com essas preocupações, não podia ser um bom aluno. Passava as aulas desenhando vestidos e só se interessava por aprender inglês, francês e geografia. “Eu sonhava com os lugares do mundo onde pretendia ir, e precisava saber as línguas para poder viajar.”

Um dia, aos 14 anos, lia num jornal sobre um crime que acontecera no Rio e que se tornaria célebre: um homossexual havia sido morto por seu caso com um castiçal na cabeça. Sua mãe o viu e disse apenas uma frase: “Eu preferia ter um filho morto a ter um filho homossexual”. A vida tem suas coincidências cinematográficas: Guilherme estudava num colégio de padres barnabitas e, no dia seguinte, um dos homens de batina o chamou para dar uma notícia triste: Guilherme seria expulso do colégio. Mas por quê? Porque as mães dos outros alunos haviam feito um abaixo-assinado pedindo a expulsão, por ele ser “diferente”.

O garoto, que morava em Laranjeiras, passou o dia inteiro zanzando pelo bairro, sem saber o que fazer, como chegar em casa, como contar à mãe. Já de tarde, entrou nas Lojas Americanas para comprar um caderno de desenho e topou na porta com um rapaz que conhecia de vista, nadador do Fluminense. Em desespero, pensou: “Se ele me chamar, eu vou”. Ele chamou, Guilherme foi, e teve sua iniciação sexual. Atenção: o rapaz era lindo. Quando chegou em casa, a mãe já sabia da expulsão e lhe perguntou: “O que é que você vai ser na vida, sem estudo?”. “Não sei, só sei que vou sair na coluna de Ibrahim todo dia”, respondeu, eferindose à coluna social mais em evidência. A si mesmo Guilherme jurou, à Vivien Leigh em E o vento levou: “Eu vou ser rico e famoso e nunca mais vou me importar com o que falarem de mim!” Uau.

Agora é a hora de subir a escada. O costureiro chamou um arquiteto para projetá-la, achando que não saberia fazê-la sozinho. O arquiteto fez um orçamento. Coisa de R$50 mil. Um pedreiro disse que saberia como fazê-la. Guilherme desistiu do arquiteto e fez a escada com o pedreiro. No que era o hall do andar de cima, ele vedou a porta do elevador com um espelho. Nesse pequeno ex-hall, instalou o bar. Sobre a mesa, com todas as bebidas que se possa imaginar—além dos copos certos para cada uma delas, de vários abridores de garrafa, saca-rolhas, guardanapinhos —, também se vê o ponteiro que indica em qual andar está o elevador. Uma vez, Guilherme comprou uma casa projetada pelo arquiteto Zanini Caldas, que construía casas em madeira, chamou um engenheiro e lhe perguntou se ele podia derrubar tudo. Como podia, na manhã seguinte entraram os operários e puseram a casa abaixo. “A cabeça do Zanini estava na Bahia, a minha em Hollywood, e eu queria uma casa só de vidro e espelhos.” Zanini nunca mais falou com ele.

Sem freqüentar mais o colégio, Guilherme começou a circular em torno da praça Tiradentes, nos tempos em que Walter Pinto e Carlos Machado, como se dizia, arrasavam no teatro rebolado. Só havia um problema: ele não podia entrar, era menor de idade. Vidrado em mulheres bonitas, um dia viu na praia uma das coristas do clube Night and Day que conhecia de fotografias. Arriscou chegar perto e suplicou: “Meu sonho é ver uma peça de teatro. Você não podia me ajudar”?“. A vedete, Marlene Rosário, disse-lhe que chegasse mais cedo e ela o levaria até o lugar onde ficava o iluminador. Guilherme foi e se deslumbrou com as moças, que desciam de um disco cobertas de plumas e paetês, cantando e dançando, quase nuas. Passou a ir todos os dias, e até hoje é capaz de descrever a roupa de cada uma, ou de cantar as músicas que elas cantavam. Viu que seu futuro tinha de seguir por ali: roupas maravilhosas para mulheres maravilhosas. Descobriu assim a sua vocação.

Antes de poder realizá-la foi convocado a prestar o serviço militar. Ele pediu a seu padrasto, general do Exército, que desse um jeito de conseguir a sua dispensa. “Você vai prestar serviço militar para aprender a ser macho”, disse-lhe o oficial, enfatizando ao máximo a palavra macho. Guilherme só não se desesperou porque não sabe o que é isso. Uma noite, encontrou um amigo que, como ele, se tornaria costureiro famoso: Denner. Pediu um conselho, e o amigo lhe disse para fazer o que ele havia feito para escapar do Exército: raspar as pernas e, em vez de cuecas, vestir Zazá, uma calcinha famosa naqueles tempos, que existia nas cores rosa, amarelo e azul. “Você vai ter que ter muito peito”, disse-lhe Denner, “porque vai entrar numa sala com vinte machões, e todo mundo vai tirar a roupa e ficar de cuecas”. Dito e feito. Quando Gui tirou as calças, todos os machões riram e o sargento caminhou firme em sua direção. “Eu só pensava em sumir dali o mais rápido possível, foi preciso ser muito macho para enfrentar a situação”, diz ele, enfatizando militarmente a palavra macho. “Você está isento!”, gritou-lhe o sargento. “Aqui é lugar de homem!” Era tudo que Guilherme queria ouvir.

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Gui não sabia como concretizar sua vocação. Se fosse estudar, só seria alguém aos 30 anos, e ele tinha pressa. Queria ser famoso logo. Um amigo, que encontrou num lotação (um misto de táxi e van que foi extinto com os dinossauros) contou que a Varig estava fazendo um concurso para o uniforme das aeromoças; por que ele não tentava? Contou também que o resultado seria decidido pela poderosa Charlotte Franklin, diretora da companhia em Nova York, que chegaria ao Rio na manhã seguinte. Guilherme perguntou: “Do que ela gosta?”. “De rosas vermelhas”, foi a resposta. Na manhã seguinte, bem cedo, GG estava na porta do Hotel Glória, sobraçando um colossal buquê de rosas. Ficou horas ali, até que Charlotte chegou. Entregou-lhe as flores e os croquis para o concurso, que, aliás, ganhou. Prêmio: uma passagem para Nova York e US$500. Apaixonou-se pela cidade e foi ficando, ficando Charlotte, por sua vez, se afeiçoou a Guilherme e encomendou-lhe alguns vestidos, que ela provaria quando viesse ao Rio. Ele a convenceu a fazer o contrário: iria ele a Nova York para as provas dos vestidos. Para variar, o atilado carioca levou a melhor, ganhou uma ponte aérea Rio–ny e uma casinha alugada, por coincidência na Gay Street, no Village. Passava as tardes andando pela Sétima Avenida, o lugar dos atacadistas de moda, mostrando seus croquis. Às vezes, vendia algum por US$10, e assim ia vivendo. Conheceu pessoas, fez amizades e, através do amigo de um amigo de um amigo, chegou à poderosa Loretta Scanell, diretora da revista Town & Country. Marcou hora, levou os desenhos e teve como resposta um vago “Eu te ligo”.

Demorou, mas um dia ela ligou, convidando Gui para um chá no hotel onde um costureiro italiano estaria apresentando sua primeira coleção. Seu nome: Valentino. Nessa mesma tarde, Loretta sugeriu a GG fazer um desfile na cidade, e perguntou se ele tinha condições. Ele não tinha, mas disse que tinha. “Então vá, faça a coleção e me telefone”, disse Loretta. Guilherme voltou ao Brasil sem saber o que fazer: como comprar tecidos, como pagar as costureiras? Soube então que havia uma grande fábrica em Petrópolis, com todos os tecidos de que precisaria. Tomou um ônibus, bateu na porta, pediu para falar com o dono e expôs a situação. “O senhor me daria os tecidos?”, perguntou, na maior candura. O empresário disse que sim, bastava que Guilherme dissesse quantos metros precisaria de cada um. Em três dias os croquis estavam prontos, e os cálculos das metragens, feitos. Telefonou a Loretta e marcaram a data do desfile. Havia um pequeno senão: ele deveria levar cinco manequins

Cinco manequins quer dizer cinco passagens, fora hotel, cachês etc. A Varig, que patrocinou o desfile, ofereceu as passagens, mas só três. O cachê ficaria para a volta, quando ele vendesse a coleção. Como manequins, quando estão começando, topam qualquer coisa, inclusive dormir no chão de um quarto de hotel, tudo se resolveu lindamente. O desfile foi um sucesso e deu página inteira no New York Journal American, com foto de Guilherme, chamado de “Guillaume from Brazil”. A reportagem foi reproduzida na revista Manchete, e Gui chegou ao Rio já consagrado. Rapidinho, o grand monde começou a aparecer no seu pequeno ateliê, já com três costureiras contratadas. Recebeu um telefonema de Tonia Carrero, dizendo que ia a Londres para a estréia do filme The V.I.Ps e que precisava de vestidos para a viagem. Guilherme não só fez os vestidos, como foi levá-la ao aeroporto, com direito a foto na primeira página de O Globo. A estrela subia, e rápido.

Avançamos na procissão de salas e objetos. É como estar num cenário de filme do século XIX, com alguns recuos para o XVIII. Entramos no closet e... surpresa! Todas as roupas são imaculadamente iguais. Só há calças jeans, camisas jeans azuis, conjuntos cáqui, desses usados em safáris, sapatos Funaro e blazers azul-marinho. Nosso costureiro não gosta de variar o que usa. Mas, atenção, há um sobretudo forrado de vison.

Chegamos agora ao coração do apartamento. É um cantinho de 12 metros quadrados. Um quarto-e-sala. Um conjugado. Há um sofazinho, uma mesinha, um fogãozinho de quatro bocas (para ferver água para o chá) e uma pequena geladeira vazia. Ou melhor: vazia de comidas. Há garrafas de champanhe, vodca, vinho branco e água mineral. A salinha dá para o que Guilherme chama de “alcova”. É um miniquarto, com uma cama imaculada. “Para dormir, nada melhor do que uma alcova”, explica ele, “um quartinho com o leito praticamente colado às paredes.” Por fim, num canto, há o banheiro, um luxo. Sobre a mesa há dezenas de tesourinhas, uma para cada modalidade de corte. Ficamos ali um tempão, papeando. Tomamos champanhe, de boa marca e boa safra, enquanto Guilherme traçava seus uísques. Ele bebe bem. Mas não parece. Aos 66 anos, está bem conservado, e é com imenso divertimento que relata seu início de carreira.

Logo o ateliê ficou pequeno. GG alugou um apartamento maior e contratou mais costureiras. Corria o ano de 1968. Foi quando a rainha da Inglaterra veio ao Brasil. Boa parte das elegantes do Rio encomendou vestidos a Guilherme. Mais glórias, mais reportagens na imprensa. Aos 25 anos, ele era

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rico e famoso, exatamente como havia jurado. Mas a consagração mesmo veio quando um dia telefonou Carmem Mayrink Veiga, que ele não conhecia, mas idolatrava furiosamente. Carmen queria vários vestidos para o verão, entre eles um de baile, vermelho, para usar com seus rubis. “Quero coisas sensacionais”, disse. Foram os primeiros de centenas, e até hoje Carmem continua fiel ao costureiro, além de ser uma de suas maiores amigas. “Era tudo muito chique”, suspira Guilherme. “No verão as mulheres só usavam jóias de turquesa, coral, marfim e jade; esmeraldas, safiras, rubis e diamantes, só no inverno. Havia também as bolsas de ouro, que se chamavam Farah Diba. Quem não tinha uma não era ninguém.” Suspira de novo e arremata, com um meneio dramático: “Que tristeza, as mulheres de hoje só querem saber de musculação”. (Por falar em musculação, há alguns anos Guilherme resolveu fazer cooper no calçadão de Copacabana. O seu carro, com o motorista uniformizado, ia ao lado, na mesma velocidade. Quando ele se cansava, o automóvel parava, ele entrava e voltava para casa. Pode?)

A vida de Guilherme virou um carrossel de extravagâncias. Suas roupas foram notadas no Swan Ball, em Nashville, ele fez um desfile no Waldorf-Astoria, em Nova York, e outro para a marca Neiman Marcus, no Texas, vestiu a rainha da Suécia, conheceu Elke Maravilha e a levou para desfilar suas roupas na Suíça. Desenhou os uniformes, chiquérrimos, para o corpo feminino da Marinha. Foi chamado por Glauber Rocha para fazer os figurinos de Terra em transe—de graça, pois a produção não tinha dinheiro. Só ouviu do diretor uma recomendação: que as roupas fossem deslumbrantes.

Ufa, é bom tomar fôlego. Seguimos para um restaurante das imediações. Vamos a pé. Ele janta costeletas de cordeiro, duas taças de vinho e café. Guilherme fala sem parar. Conta que o empresário André Brett pediu que ele fizesse uma coleção de prêt-à-porter e jeans. O salário seria de US$ 8 mil mensais. GG pensou, pensou e aceitou. Foi morar em Nova York. Viajava para o Brasil duas vezes por ano, para trabalhar nas coleções. Alugou uma town house na rua 82, entre Madison e Park, e, como não tinha dinheiro para decorá-la do jeito que queria, colava pedacinhos de papel nas paredes e no chão. Num escrevia “quadro de Picasso”, noutro “escrivaninha francesa”, em mais outro “sofá de plumas”, e assim ia. “Quando eu olhava em volta, achava minha casa a mais linda do mundo, porque via o quadro de Picasso, a escrivaninha francesa e o sofá de plumas. Eu vejo o que quero ver e acredito no que quero acreditar.”

Todo domingo a mãe telefonava de manhã, chorando, preocupada com a solidão dele. Guilherme respondia: “Mamãe, estou tomando um Bloody Mary, lendo o New York Times, estou felicíssimo”. “Mas meu filho, bebendo a essa hora?”, ela perguntava. E Guilherme, nem aí. O contrato com André Brett acabou, e GG resolveu abrir uma boutique na avenida Madison. Tudo ia muito bem, até que a boutique foi assaltada e ele perdeu tudo o que tinha. Terminaram os belos dias e começaram os duros tempos em que comia pedaços de pizza, bebia Coca-Cola. Se tivesse acreditado mais em sua cartomante, Zazá (Guilherme não fazia nada sem perguntar a ela), não teria aberto a boutique. Zazá havia dito que a aventura nova-iorquina não daria certo. Mas profetizou também que, depois, ele trabalharia numa grande maison de costura francesa. Pela primeira vez, Guigui não acreditou em Zazá.

Foram meses de penúria. Depois de sete anos em Nova York, GG voltou ao Brasil, em agosto de 1985, sem nada, a não ser um apartamento vazio em São Paulo; sem dinheiro para comprar uma cama, dormia num colchão no chão. Mas aí toca o telefone. Era uma proposta: ele não gostaria de fazer um teste para trabalhar com Christian Dior? Para tanto, deveria ir a Paris ser entrevistado. Dior pagou a passagem e lá se foi Guilherme, que passou em todos os testes e assinou um contrato para ficar em Paris por um mês, para “diorizar” a cabeça antes de começar a trabalhar. Zazá tinha razão!

Durante seis anos, Guilherme fez a ponte aérea Rio — Paris. Ficava num hotel perto da Maison Dior, na avenida Montaigne. Trabalhava das sete às sete e, segundo ele, foi a época mais feliz de sua vida. Até que, depois de seis anos na Dior, teve problemas. Ele se sentiu injustiçado, e processou a casa por quebra de contrato. Processou, ganhou, voltou para São Paulo em 1991 e, com o dinheiro, comprou um apartamento. Os anos haviam passado e ninguém mais lembrava dele. “Como recomeçar, se ninguém mais sabe quem eu sou? O que vai ser da minha vida?” Pois ele recomeçou e recuperou suas clientes, uma a uma. E passou a costurar também para suas filhas e netas. Ele veste Carmem Mayrink Veiga, a filha Antonia e a neta Maria; Lourdes Catão, a filha Bebel e a neta Amanda; Evinha Monteiro de Carvalho, a filha Lilibeth e a neta etc. etc.

Guilherme continua firme no seu trabalho, agora fazendo a ponte aérea Rio–SP duas ou três vezes por semana. “Não quero mais meu nome nos jornais, não tomo conhecimento das fashion weeks da vida, nem pensar em desfilar meus modelos. Tudo isso eu já fiz, muito. Demais. Agora chega”,

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proclama. Cada vez mais, GG fica no Rio. Segundo ele, em São Paulo “quem tem dinheiro está preso”. Sua vida é organizadíssima e cheiíssima. Ele costuma tomar um vôo até São Paulo com um vestido debaixo do braço, para que a contramestre faça um retoque porque a cliente engordou ou emagreceu um quilo, e volta no mesmo dia, trazendo o vestido pronto, para que ela possa usá-lo na mesma noite. Porque ele não delega.

E é capaz também de sair de casa para comer uma paella no restaurante do aeroporto Santos-Dumont, que acha a melhor do mundo. Isso depois de tomar dois ou três dry martínis no bar do mesmo aeroporto, melhores, segundo ele, do que qualquer dry martíni do melhor bar de Nova York. Quando fala da moda atual — assunto que pouco interessa —, não perdoa: “Hoje alguns costureiros franceses são tão jovens que não sabem que houve um dia uma doença chamada paralisia infantil, pois calçam seus manequins com verdadeiros sapatos ortopédicos”. Não poupa nem Karl Lagerfeld: diz que é um assassino, por ter transformado as roupas de Chanel em uniformes nazistas

Segundo Guilherme, um ateliê de costura é, na verdade, um ateliê de tortura. Às seis da manhã, ele já está se preparando para sair e procurar o forro de um vestido, e se não encontra o tecido no tom exato, vai para o tintureiro e manda tingir. Depois, cruza São Paulo, da avenida São Luís, onde mora num soberbo e imenso apartamento bem tradicional, com o Miró na entrada, e vai para a Vila Mariana encontrar a bordadeira e orientá-la a fazer o bordado exatamente como ele imaginou. São três ou quatro idas até que o bordado fique exatamente como ele quer — isso depois de ter os croquis e as amostras de tecido aprovados. “É dura a vida da bailarina, meu bem”, diz ele, rindo muito. A partir daí, o vestido começa a ser feito e será provado várias vezes num manequim com as medidas exatas da cliente, até a primeira das várias provas no corpo da própria. “Quando faço um vestido de noiva, dez dias antes do casamento está tudo absolutamente pronto”, informa. “E, no dia, quatro horas antes da hora marcada, eu vou, com a contramestra, vestir a noiva dos pés à cabeça, e ainda oriento o maquiador e o cabeleireiro, e só saio quando a noiva entra no carro para ir para a igreja.”

O preço de tudo isso? “Não digo nem sob tortura”, resiste Guilherme. “Isso é um assunto entre mim e as minhas clientes”. Algumas de suas clientes, indiscretas, contam que um vestido de noiva feito por Guilherme pode custar mais de R$ 5 mil. Em 40 anos de trabalho, só teve três contramestras.

Segundo ele, bons empregados gostam de patrões exigentes. Quem trabalha para ele deve se preparar para varar a noite e os fins de semana, se for preciso — e com um sorriso nos lábios. Dorme às nove e meia, dez da noite, jamais vai a festas. Acha que o chique é cozinheira da casa fazer o jantar.

Guilherme tem várias agendas: uma das clientes para as quais está trabalhando no momento, outra dos compromissos marcados, outra das ligações que deve fazer naquele dia, uma de Paris, outra de Nova York e mais uma de Buenos Aires, não só com o endereço dos amigos e dos restaurantes, mas com a descrição dos pratos de que gostou e pode querer repetir, outra com os telefones para onde deve ligar se perder os cartões de crédito (com os respectivos números), uma de São Paulo, mais uma do Rio. Todas elas—dos últimos 20 anos—estão guardadas. Algumas clientes de GG são loucas por roupas. Se ele ligar para Carmem Mayrink Veiga, Lourdes Catão ou Lucia Flecha de Lima, às 11 da noite, dizendo que acabou de desenhar um vestido que é a cara dela, no dia seguinte, às oito da manhã qualquer das três estará lá, rente que nem pão quente, para ver o desenho — e encomendar a roupa correndo.

Sentado no restaurante, à espera do café, ele se entusiasma e recita o seu credo: “Não saio com quem não fuma e não bebe, não entro em fila, não vou a restaurantes da moda. Quando vou, é às cinco da tarde, quando o almoço já acabou e o jantar ainda não começou. Tenho horror a futebol, e nunca liguei, nem jamais ligarei, para nenhum número 0800, e não entro em clubes. Odeio. Para mim, quem pretende ser sócio e leva bola preta, merece. Quem mandou querer entrar? Clube é para gente de mentalidade estreita, que escolhe viver num mundo pequeno, de pessoas geralmente decadentes, que não encaram a vida e só lá dentro se sentem protegidas do mundo. Eles se casam entre eles, se traem entre eles. Tenho verdadeiro horror a quem freqüenta clubes. Em matéria de comidas, prefiro aquelas de baixíssimo calão, tipo fígado, rognon, dobradinha, boudin, essas coisas”. Quando lhe perguntam “Mas você não tem nem um aparelho de som, Guilherme? E se quiser ouvir uma música?”“, vem a resposta: “Ora, eu canto”.

GG gosta de bebidas que não sejam doces, mas prefere, a qualquer outra, o uísque Old Eight com club soda (e em Buenos Aires, toma o local, Los Criadores, que está marcado na sua agenda portenha). Aos amigos, serve Black Label, que ele faz o sacrifício de tomar, às vezes. Champanhe, nem pensar. Se vir um pote de margarina na sua microcozinha, é capaz de ter um troço. Comida, em

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sua casa, sob nenhuma hipótese — e empregada também não. Luiz, o faxineiro, vai uma vez por semana fazer a limpeza, e é proibido de emitir qualquer som enquanto trabalha. Ele não tem celular, nem secretária eletrônica, nem televisão, nem computador; não usa tênis, nem boné, nem camiseta; de tempos em tempos manda trocar os números de seus telefones — e liga para dar os novos (exclusivamente) a quem quer.

Para Guilherme, o luxo da vida é pegar um avião na hora que quiser, para onde quiser, sem ter que dar satisfação a ninguém, comprar objetos de arte—tem uma tapeçaria de Lurçat e um biombo Coromandel, além do Miró. Aliás, a compra do Coromandel foi em duas etapas: como estava sem dinheiro, comprou meio biombo e combinou com o vendedor que compraria a outra metade assim que as coisas melhorassem. Um dia, chegou lá com o cheque na mão e levou a outra metade.

Apesar de ter dois apartamentos luxuosos, GG lê os anúncios imobiliários todo domingo. Se acha que há algum interessante, vai vê-lo. Se gostar muito, mas muito mesmo, compra-o e parte para uma nova obra, e uma nova decoração. Não tem o menor apego às coisas que possui, e, quando vende uma casa, costuma ser de porteira fechada, com tudo dentro. Alguém lhe pergunta se ele às vezes não acorda de madrugada, sem sono. Ele diz que sim. E o que faz quando isso acontece? “Acendo todas as luzes da casa, corto uns pedacinhos de queijo, como canapés, preparo um uísque e imagino que estou numa festa maravilhosa, com todas as pessoas que adoro, de Marilyn Monroe a Balenciaga, passando por Greta Garbo e pela viscondessa de Ribes. Aí, durmo como um anjo.”

Guilherme se levanta. Não diz, mas foi ao maître e pagou a conta, para não haver discussão na mesa. Volta e prossegue o seu credo: “Tenho horror a Madonna, aos Beatles, a gente que se veste de branco e vai desfilar pedindo o fim da violência, ao povo da moda, que se veste de preto e não tira os óculos escuros, me recuso a ler qualquer coisa sobre Yoko Ono, que odeio, detesto velho careca de rabo-de-cavalo, bermuda, tênis e mochila, e quase vomitei ao ler sobre o casamento gay de Elton John”. Conhece pelo menos 5 mil gays, mas próximos mesmo, só dois. “Não tenho paciência para papo de gay”, diz. Jamais passou perto de uma passeata gay. Tem poucos amigos — “uns dez” — e não quer conhecer mais ninguém.

Adora sua cachorra, Maria, uma miniatura de galgo italiano. Nunca foi à Bahia, nem pretende. Não tem nenhum interesse pela política. Conta sobre o dia em que viu Zélia Cardoso de Mello na televisão, garantindo que não mexeria na poupança; na hora, lembrou que dias antes, numa festa em Brasília, Zélia tinha usado uma estola de pele, e aí ele pensou: “Não é possível acreditar em quem usa uma estola de pele no calor de Brasília” — e tirou todo o dinheiro da poupança. GG aprendeu: quando ligam dizendo que o dólar vai baixar, ele compra, e quando dizem que vai subir, ele vende, sempre na contramão. Tem se dado muito bem assim.

A conversa adquire um rumo, digamos, íntimo-filosófico. “Só quem já viveu a solidão a dois sabe dar valor a uma boa solidão a um”, é o que ele diz. Guigui jamais deitou num divã de analista. “Acho que passar a vida botando a culpa na mãe e no pai é coisa de quem não tem coragem para enfrentar a vida. Eu não ponho a culpa de nada em ninguém, e, por outro lado, não sei o que é culpa.”

Guilherme diz, sem pestanejar, que sua melhor cliente é Lucia Flecha de Lima. Ele a vestia antes, durante o tempo em que ela foi embaixatriz em Londres, Roma e Washington, e ainda agora. Mandava os croquis, ela aprovava e os vestidos iam prontos e perfeitos. Em 1991, hospedado na embaixada em Londres, Lucia ligou para o quarto dele e disse que queria apresentá-lo a uma amiga. GG desceu, muito à vontade, e deu de cara com uma moça loura, altíssima e linda, vestida de jeans e uma jaqueta vermelha. Era Diana, a princesa de Gales. Disse que gostava muito das roupas que ele fazia para Lucia e que adoraria ter vestidos dele, mas o protocolo a impedia: ela só podia usar roupas de costureiros ingleses. Guilherme aproveita para alfinetar Ruth Cardoso, que no dia da posse de Fernando Henrique usou um vestido de Issey Miyake, “e, ainda por cima, preto”.

O jantar chega ao fim. Guilherme faz as suas derradeira considerações: “Todas as loucuras já foram feitas, na hora certa, e meus prazeres hoje são comprar todas as revistas de decoração e percorrer os antiquários. Meus luxos diminuem a cada dia. Ainda amo passar o réveillon em Paris e ir várias vezes a Buenos Aires, mas cada dia perco mais a vontade de viajar. A Nova York, não pretendo voltar jamais, com aquela doença de não poder carregar mala de mão e ter que ir para a calçada se quiser fumar. Estou fora.”

No Rio, adora ver revistas na Letras e Expressões do Leblon, mas quando a livraria começa a encher com os habitantes do bairro, “me irrito e pego o primeiro táxi para casa”. Ele odeia o Leblon, “o bairro mais cafona do Rio. Só no Leblon se vê pai passear com filho com brincos maiores do que os

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da Carmen Miranda e a mulher andando atrás, olhando as vitrines. Essas aberrações não acontecem no Flamengo nem na Urca, o bairro mais chique do Rio, meu bairro querido, onde às vezes eu vou passear, mas onde não posso morar, porque é o mais caro da cidade”.

Terminado o jantar, acha melhor pegar um táxi, apesar de estar a cem metros de casa. Seguimos juntos no táxi, que faz uma volta imensa, pois o prédio dele fica na contramão. A última surpresa: Guilherme manda o carro parar na frente do Hotel Glória. E nos informa, como se fosse a coisa mais natural do mundo, que nunca, nunca mesmo, dorme no apartamento. Ele tem uma suíte permanente no Glória, e sempre dorme nela quando está no Rio. “Faço como Mlle. Chanel, que morava na rue Cambon, mas dormia no Ritz.” Meu palpite: dorme fora para não desarrumar a cama.

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ANEXO B A São Silvestre do Ziriguidum Em São Paulo, dez horas seguidas de samba e pisões no pé para ganhar mil reais. Janeiro de 2007 VANESSA BARBARA

Não se sabe se, lá fora, chovia ou ventava, se era dia ou noite, Páscoa ou Carnaval, se os

Quatro Cavaleiros tinham descido à Terra para trazer a peste ou a fome. Lá dentro, no salão de dança, a única certeza compartilhada por treze casais era a de que quando acabasse a 30ª música – e, com fé, isso iria acontecer – viria outra, e depois do pé esquerdo o direito, e depois do direito mais um rodopio e um passo para trás. Os giros já são automáticos, os casais se olham pensando em sofás, os pares parecem robôs.

A 1ª Maratona de Samba da Cidade de São Paulo teve início num domingo abafado de dezembro, às duas da tarde. Estava prevista para terminar dez horas depois, com o recolhimento dos corpos e o anúncio dos vencedores. Era pouco mais de meio-dia quando os primeiros concorrentes chegaram ao local – o Consulado Music, casa de shows na Zona Norte – para fazer exames de pressão arterial e assinar termos de compromisso. Dois bombeiros, William e Ricardo, foram chamados para medir os batimentos cardíacos e a respiração dos casais antes da largada. Eles também ficariam de plantão para agir em caso de síncope: “Há dez anos, as maratonas de lambada derrubavam bastante gente”, relembra Ricardo. “Quando você ia ver, o pessoal estava caindo no salão.”

Na concentração, os participantes não parecem nervosos. Discutem o que fazer com as camisetas oficiais, que deveriam ser usadas durante a maratona. Eram muito vermelhas e excessivamente quentes. Um dos dançarinos decide rasgar as mangas com uma faca, e o organizador anuncia: “Está chegando a tesoura!”. Prontamente, as meninas confeccionam miniblusas e inventam nós para amarrar a camiseta acima do umbigo.

Enquanto recorta a roupa, Juliana Marques, de 22 anos, confessa que havia almoçado dois pratos grandes de macarrão e um pão com bife, notícia que abala o moral de seu parceiro, Osíris da Silva, 19 anos. Alguém afirma que comeu um pastel e recebe olhares de reprovação. A mais empolgada das dançarinas, Claudia Chaves, 24 anos, professora da escola Algazarra’s, aparece para dizer que “bombou” no teste da pressão arterial. “Estão tentando me derrubar”, desconfia. Depois de um lanche leve e uns passinhos de samba, a pressão de Claudia voltaria ao normal. Às 13h30 chega o capitão da PM Silvio Sciacca, dançarino de fôlego e de longas distâncias, e faz uma aposta: se a sua pressão não der 11 por 7 ou 12 por 8 irá trocar de nome. O resultado é 12 por 7. Ele protesta. Diz que não é reprovado “nem em exame de fezes”.

Dos concorrentes, muitos são professores de dança, como Claudia Chaves, e alguns já participaram de maratonas de salsa e samba-rock. Sciacca, o capitão da PM, com seus 40 anos e 1,95m de altura, foi um dos finalistas da histórica competição de tango de 2003 no Avenida Club. A maratona durou 24 horas e apenas dois casais chegaram ao fim. “Nunca mais”, garante o capitão. “As duas últimas horas foram as mais difíceis, só continuei por questão de foro íntimo.” Ele chegou disposto a enfrentar o desafio de samba, embora preferisse ritmos mais condizentes com as tradições da dança de salão, como a valsa inglesa, a valsa vienense, o slow fox e o quick step, além do tango. Há três anos, ele fez par com a própria professora. “Tive a aula particular mais extensa do mundo”, diz.

Os casais são mandados ao vestiário. As mulheres vestem calças confortáveis e tênis de dança. Os homens escolhem sapatos com bico de camurça e solado de borracha. Pheliphe Britto, de 22 anos, entra no quartinho cheio e pergunta o que houve com o camarim particular que prometeram para ele: “Com licença, onde fica o camarim do Netinho?”. Ele é professor de dança na Algazarra’s e seu par é uma aluna, a jornalista Danielle Marques, de 27 anos.

Às 14h05, os treze casais são reunidos pelo organizador do concurso, Clovis Pereira Jurado, que (até pelo sobrenome) fará parte do júri. Jurado é diretor da Cia. La Luna, uma das escolas responsáveis pela maratona, em parceria com a rival Algazarra’s e com a Consulado Music. A

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despeito de ser organizada por academias locais, a prova consta no calendário oficial de eventos da Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação. Clovis anuncia as regras: os casais devem dançar, ininterruptamente, até a meia-noite, com pausas de cinco minutos a cada duas horas para ir ao banheiro, e uma parada de quinze minutos na quinta hora para uma refeição. Não serão permitidas trocas de roupas ou de calçados. As duplas podem se servir à vontade das frutas e biscoitos dispostos nas mesas, contanto que não parem de dançar. A partir das 23h, a equipe de jurados avaliará a técnica, a simpatia e a harmonia dos sobreviventes, a fim de eleger um vencedor. Na última hora, houve competidor que reclamou: “Ih, só agora eu lembrei que precisava ir ao banheiro”.

Ainda antes da primeira música, durante o alongamento, o capitão Sciacca conta que não dançará até o fim porque terá de trabalhar. Mesmo assim, ele espera que as primeiras duas horas sejam bem pesadas, para eliminar metade dos concorrentes: “Toca só Paulo Moura”, ele pede, olhando para a cabine da DJ Drica. Ao seu lado, com o número 12 colado nas costas, Pheliphe Britto diz que não se importa, pois já começou na pegada: dançou com Danielle Marques até as 3h30 do dia anterior, deu aula das 9h ao meio-dia e foi direto para a competição. “E amanhã eu volto para a Segunda Absoluta do Netinho!”, completa. O cantor é sócio do Consulado Music, e bate ponto na casa às segundas.

Às 14h13 tem início a maratona, com “Meu samba pede passagem”, da música de Claudio Jorge “O Samba Melhor do Brasil”. Os casais começam com os passos básicos: um pra frente, um pra trás, um pra frente, um pra trás – bem juntinhos, porque ninguém é pingüim, ensina Rafael Martins, 21 anos, parceiro de Claudia. Pheliphe está mascando chicletes e Lacyle Emerson Terezinha, 29 anos, traz uma toalhinha no bolso de trás, que se mostraria muito útil no decorrer da maratona. Sua parceira, Elis, usa uma sandália de salto alto, assim como Elizangela Alves Gomes, 20 anos, e Aline Batista Cleto, 18. Das mulheres, apenas elas usam salto, e só Aline dança de saia. Três dos homens vestem calças brancas. Um dos organizadores aponta para Lacyle e para Claudinho Ferreira, 29 anos, e observa: “Aqueles dois são nêgo véio, é tudo malandro”.

14h19 – Pheliphe anuncia: “Troca de damas!”, mas ninguém dá bola. 14h26 – Claudia e Rafael, o casal no 1, não poupa energias. “Ela é assim: sai na escola de

samba e dança a avenida inteira, depois ainda vai para a bagunça”, informa o bombeiro Ricardo, que também é dançarino.

14h32 – Sem parar de sambar, Pheliphe diz para uma garçonete: “Me vê uma Brahma!”. 14h44 – Elizangela diz que dança é diversão e Claudinho, seu parceiro, completa: “Estamos só

aquecendo”. 14h52 – Rafael amarra na cabeça o que sobrou da manga da camisa. 15h10 – O capitão Silvio Sciacca abandona a prova para ir trabalhar. Agora são doze casais na

pista. 15h25 – Chega um repórter de TV e um cinegrafista, que se põem a filmar os pés das pessoas. 15h38 – Pheliphe, com a voz séria: “Bem, amigos da Rede Globo, estamos aqui em mais uma

maratona...”. 15h57 – O repórter de TV se mata de comer bananas. 16h10 – Pausa para ir ao banheiro. As mulheres saem correndo e uma funcionária é enviada

para controlar o tempo. “E se o xixi for comprido?”, pergunta uma das concorrentes. “Três minutos!”, responde a moça do cronômetro. De dentro da cabine, alguém protesta: “Mas número dois é cinco minutos! Número dois é cinco!”. A dançarina Elis Cristina de Souza, 22 anos, reclama que levou um pisão no pé que quase arrancou a sua unha fora. “O esmalte já foi”, ela mostra. O tempo se esgota e as dançarinas lamentam: “Aqui os minutos passam tão rápido”.

16h15 – “Te segura/ que a vida está dura”, diz a letra do samba. 16h17 – Danielle dança com um pedaço de melancia na mão. Pheliphe continua a mascar

chicletes. 16h21 – “Crioula/ eu quero é mocotó”. 16h26 – Um dos organizadores grampeia de volta o número 20 nas costas de Hércules Silva. 16h37 – Osíris faz uma pausa para amarrar o cadarço, sob supervisão. 16h52 – O casal no 2 pergunta as horas. 17h14 – Clovis Jurado avisa que alguns participantes estão dançando fora do ritmo. 17h32 – “Deixa o meu cabelo em paz/ Deixa o meu cabelo em paz”. 17h42 – Os dançarinos estão dispersos, sambando de qualquer jeito e conversando entre si. 17h48 – O no 4 arruma as calças.

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17h58 – “É um lugar especial/ Para quem é sentimental/ E aprecia um gostoso bacalhau”. 18h10 – Outra pausa para o banheiro. A organizadora avisa: “Nada de número dois, hein?”.

Uma das participantes se desespera: “Gente, a calça não sobe”. Elis continua a reclamar: “Nada-nada, já levei cinco pisões”. Alguém diz que ela devia conversar com o parceiro, porque assim não vai dar. “Não foi o meu parceiro, não, eu levo pisão dos outros!”.

18h21 – Pheliphe dedura um casal que estava quase parado. 18h26 – Mariana Anduta, 16 anos, dança segurando o rabo-de-cavalo para o alto, incomodada

com o calor. 18h32 – Fora da pista, bombeiro tira uma moça para dançar. 18h36 – Os jurados se reúnem para deliberar sobre os números que se esfarelam nas costas,

principalmente das mulheres, já que os homens dançam com as mãos nas costas de suas parceiras. 18h38 – Elizangela e Claudinho, casal no 14, dão uma demonstração de extrema habilidade no

samba-rock, que envolve giros consecutivos. 18h42 – “Provei do famoso feijão da Vicentina/ Só quem é da Portela sabe que a coisa é

divina”. 19h02 – Alguns casais dançam coladinho. 19h04 – Substituição dos sucos de laranja. 19h12 – Osíris grita: “Vamos lá! Faltam só cinco!”. 19h15 – Brito comanda alguns casais na dança: “Cinco, seis, sete, oito, gira”. 19h20 – Pausa de quinze minutos para comer macarrão ao alho e óleo. Sentados, Pheliphe e

Danielle continuam dançando. A maioria tirou os sapatos e reclama dos calos. Brito declara: “Nunca quinze minutos foram tão importantes na minha vida”. Danielle estima que aproximadamente três casais estão “só a alma”. Alguns fazem alongamento, e antes de retornar ela se levanta e diz: “Agora é só o espírito!”.

19h35 – “Olha nós outra vez no ar/ O show tem que continuar”. 19h43 – Casal no 5 quase colide com a mesa de frutas. 19h47 – Pheliphe faz esforço para abrir mais um chiclete enquanto dança. Com a mão

esquerda, Danielle tenta ajudar. 20h32 – Casal no 11 desiste. “Sei que estou quase morrendo”, afirma Vitor Albani, de 15

anos. 20h35 – Casal no 13 é tirado da pista por estar fora do ritmo. Marinês Capanema, de 46 anos,

reclama e diz que não está cansada: “Eu me canso de lavar roupa, de limpar a casa. De dançar eu não canso”. 20h42 – Claudinho esnoba os outros competidores: “Mais dez horinhas? Tranqüilo, tranqüilo”.

20h55 – Mariana olha feio para a música animada que a DJ colocou. 21h02 – Casal no 8 desiste. 21h04 – Começa o show de uma banda de pagode, ao vivo. A casa enche. 21h15 – “Estrela, ilumina meu céu/ Me tira desse fel/ Adoça o meu vi-veer”. 21h22 – O vocalista articula as palavras felicidade, liberdade e sofrer na mesma estrofe. 21h32 – Adolescentes se enfileiram em frente à pista e gritam os refrões das músicas,

sobretudo os finais: a-mô-or, fe-e-li-i-z. 21h37 – O mau humor atinge índices jamais auferidos. 21h42 – Avós, tios e primos acenam para o casal no 1. 21h47 – Começa a carnificina: casais no 4 (Mariana e Gerson) e no 1 (Claudia e Rafael) são

tirados da pista. Na seqüência, no 2 (Osíris e Juliana) e no 12 (Pheliphe Britto e Danielle) também recebem o bilhete-azul dos jurados: “Você está muito cansado, sai daí”. A revolta é geral. Danielle afirma que o organizador encostou em seu ombro e disse apenas: “Tocou o seu celular”.

21h52 – Justificativa de Clovis Jurado: “Eles não estavam na pegada, estavam só enrolando”. 22h01 – Pheliphe Britto, já fora da pista, continua a dançar. Uma das eliminadas chora. 22h10 – Casal no 5 recebe o aviso: “Chegou a hora de vocês”, e entende que era hora de ir ao

banheiro. Eles fazem uma pausa e ficam esperando o momento de retornar, mas descobrem que haviam sido eliminados.

22h36 – Um dos organizadores confessa: “O pessoal ainda está bravo comigo”. 22h56 – “Blablablablá/ Eu nasci pra te amar”.

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23h05 – Uma repórter é convidada para ser jurada da competição. Ela argumenta que entende tanto de dança quanto de jardinagem.

23h12 – Jurados saem com as fichas de avaliação. 23h18 – O vocalista da banda faz uma piada e ninguém dá bola. 23h20 – A maioria dos eliminados vai embora, bem como parte do público. A casa está quase

vazia. 23h26 – A música pára por alguns segundos e os quatro casais finalistas continuam dançando,

sem perceber. 23h27 – “Vamos continuar com o pagode!”, diz o vocalista. Silêncio na platéia. 23h38 – Comentário de um espectador: “Está todo mundo triste”. 23h42 – Claudinho corta o pé e continua dançando. 23h46 – “Eu quero voar bem mais alto que o condor/ Lê leleô/ Chega de tanto sofrer e de tanta

dor”. 23h54 – Ivan Carlos Gonçalves, no 6 nas costas, começa a bater na perna direita. Diz que está

com cãibra há horas, mas continua a dançar. 0h08 – A maratona termina com “Brasileirinho” e “Tá a Fim de Sambar”, do grupo Os

Morenos. Os participantes se jogam no chão e ficam por lá, paralisados. Alguns colocam gelo nos pés e pedem água.

Depois de dez horas ininterruptas de samba, os jurados chegaram ao veredicto: em terceiro lugar, o casal Hércules e Andréia Silva, professores da Algazarra’s, que levaram como prêmio uma coletânea de CDs para dança de salão. Em segundo lugar, com apenas dois pontos de diferença, Elizangela Gomes, 20, e Luiz Cláudio Ferreira Silva, 29, o Claudinho, também da Algazarra’s. Eles ganharam um kit de roupas e sapatos, além da coletânea de CDs. Ao casal número 7, Elis Cristina de Souza e Lacyle Emerson Terezinha, coube a glória do primeiro lugar, e um prêmio de mil reais. “É, mas eu vou aparecer na TV e eles, não”, pondera Pheliphe Britto, eliminado após sete horas de maratona.

Elis tem 22 anos de idade, 1,68m de altura e é babá. Ela joga a cabeça pra trás e dá uma risada gostosa quando lhe perguntam se é dançarina profissional. “Não sou, não! Eu danço por esporte”, responde. Mas acrescenta que está se profissionalizando, e para isso freqüenta as aulas do CPD, o Centro Profissional de Dança, ao lado da estação Carandiru do Metrô, também na Zona Norte. Seus ritmos preferidos são o black e o samba-rock. Foi ela quem insistiu junto ao professor, Lacyle, para se inscreverem na competição.

Lacyle tem 29 anos e é professor de dança de salão e técnicas de samba-rock. Começou a dançar aos 16 anos com “um ritmo que ninguém acredita: o hip-hop”. Da dança de rua passou para o samba, e hoje dá aulas em escolas de Santana, Guarulhos, ABC paulista e Alto da Lapa. Seu sonho é abrir uma academia só de samba, para valorizar os ritmos locais, divulgar a cultura negra e dar ao samba o mesmo valor das danças consideradas, como diz, “mais clássicas”, caso do balé.

Lacyle confessa que passou mal de ansiedade na noite de sábado, e no domingo de manhã tomou apenas “sucos e sucos”. Só foi comer na hora do macarrão ao alho e óleo, quando ganhou novo ânimo. Após dez horas de samba, com o fim da maratona, foi para casa tomar um banho e comer. Logo seu corpo começou a apresentar cãibras sucessivas: nas pernas, nos braços, no abdômen. Sua irmã virou a noite cuidando das dores de Lacyle e fazendo curativos, até que o pacote de Salonpas acabou e tiveram que sair para comprar mais. Como foi a segunda-feira? “Passei o dia todo com Salonpas, e dei aulas de dança à noite.”

Quando lhe perguntam o que mais ele gosta de fazer, além de sambar, Lacyle faz uma pausa, dá risada e responde: “Olha... eu não consigo ver outra atividade que me agrada: se vou assistir alguma coisa, é sobre dança, se vou ler uma coisa, é sobre dança. Eu gosto de conversar sobre dança, discutir sobre dança... na verdade, para mim tudo é dança”.

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ANEXO C Como se jogar na balada O que rola nas bombadas e micadas nas boates da jeunesse dorée da burguesia paulistana.

Abril de 2007 DANIELA PINHEIRO

Quem ainda fala que vai causar na noite está tão semana passada que na certa ainda escuta

Caetano Veloso. A expressão do momento é se jogar na balada. Se ela, a balada, é boa, qualifique-a de bombada. Se é ruim, diga micada. Ela fica bombada quando está lotada de jet setters. E promete quando o chill in é feito num restaurante fusion. Se quer se animar, indague: do you smell like Chanel? Mas o que garante mesmo a bombada da balada é quando se cata alguém masterplus. Entendeu, minha santa? Então vamos nos jogar na balada de São Paulo e conhecer gente rica, jovem, animada e de vocabulário caviloso, os vips. Vamos dançar por horas, beber além da conta, provar a droga do momento, ouvir música alta e repetitiva, torrar o dinheiro de papai, dormir sem hora para acordar e, se der sorte, sair de lá com o telefone de alguém descolado.

À meia-noite e meia de uma sexta-feira recente, uma área baldia da Vila Leopoldina estava apinhada de carros importados. Havia sete Audi, três Porsche, cinco BMW, dois Jaguar, dezenas de Toyota e de utilitários importados. Todos pretos e recém-lavados. Umas 200 pessoas se acotovelavam ao longo de duas grades e esperavam, em vão, para entrar na boate Pacha (pronuncia-se Pachá), uma das mais concorridas da noite paulistana. As grades, de 1 metro de altura, formavam um corredor polonês. Com as mãos estendidas, e aos gritos, as pessoinhas tentavam, novamente em vão, chamar a atenção de uma recepcionista, que usava uma maquiagem dramática, e de seguranças de terno preto com mais de 1 metro e 90 de altura. Elas não queriam entrar de graça. Estavam dispostas a gastar, em média, 300 reais pela noitada. Tinham tomado banho e estavam bem vestidas. Mas, mal-intencionadas, queriam apenas entrar pela porta da frente da boate. Ocorre que esse privilégio está restrito aos vips. E ser vip, nos códigos sociais da balada, faz toda diferença.

Vip, como se sabe desde que balada era um tipo de canção dos Beatles, quer dizer very important people. A expressão designava pessoas muito importantes. Um rapaz paulista chamado André Athiê não tem importância na Lapa, em São Paulo, no Brasil, na Terra e na ordem geral do universo. Mas como, desde que a Pacha foi aberta, há cinco meses, ele esteve cerca de cinqüenta noites na casa, ele pertence a uma categoria especial. Athiê comemorava seu aniversário de 20 anos naquela sexta-feira. Por 4 mil reais, ele comprou dois camarotes, e ganhou outro de graça por ser um habitué. Seus 40 convidados não deveriam pegar filas nem pagar nada. Mas a malta dos anônimos gritões lhes atrapalhava o acesso.

André Athiê é magro, tem nariz fino e um topetinho jeitoso mantido com quilos de gel. Ele tem gestos pontiagudos e fuma o tempo todo. Usava uma camiseta azul escura justa, com um zíper que não chegava à altura do umbigo, calça jeans e tênis de mais de mil reais. À 1 e meia da manhã, ele desceu pela quarta vez do camarote, passou em revista a guarda pretoriana de seguranças e foi para a porta buscar seus amigos. Com um copo de vodca na mão direita, o cigarro na outra, dirigiu-se imperiosamente ao chefe da porta, José Roberto dos Santos, um negro de 1,95 metro de altura, 45 anos, dez de noite, impecável num terno escuro com gravata vermelha, que mascava chiclete o tempo todo.

- Zé, meu, os caras estão aí há horas, pô! Deixa aquela ali de listrado passar, comandou o garoto.

Ao que Zé, localizando a listrada no meio do sururu, fez um sinal para um lugar-tenente, que a resgatou da cambada.

- Tá vindo, Andrézinho, tá vindo, disse o armário ao vip, que se acalmou. A Pacha faz parte de uma franquia espalhada por 23 países. Comporta 3 mil pessoas em 10 mil

metros quadrados, um espaço pouco maior do que o gramado do Maracanã. Um outro salão será inaugurado, em setembro, com capacidade para mais 5 mil pessoas. Nela, há dois tipos distintos de público, que, como ecstasy e cocaína, não se misturam. A galera, que paga ingresso direitinho (40

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reais mulher e 80 homem), entra pelos fundos e o direito de circular se restringe ao térreo. São estudantes, secretárias, gerentes, advogadas, estagiários, aspones, psicólogas, administradores, redatores de publicidade, divulgadores, aspirantes a estilista. É uma galera disciplinada, que faz filas nos banheiros, no balcão das bebidas e se mantém em pé pela escassez de lugares para sentar.

E há os vips. Eles fazem parte do mailing list (expressão que quer dizer muito para quem freqüenta a noite) dos promoters: são dândis, modelos, filhos de milionários, cocotes, desocupados, grã-finos e celebridades. Nunca se viu um vip sozinho. Como os turistas japoneses, os vips sempre andam em bando. Geralmente é um ricão, ao qual se agrega uma corriola.

Há vips que aparecem sem avisar. Recentemente, esteve lá um príncipe do Qatar. Rebentos da família Safra costumam se jogar na balada em companhia de sete seguranças (que deixam as armas em um armário trancado). Eles têm entrada e estacionamento separados da galera. Orbitam no primeiro andar, onde contam com banheiro, bar e serviços, conforme eles dizem, “diferenciados”. São atendidos por garçonetes maquiadas e penteadas por cabeleireiros contratados pela boate. Os vips são identificados pelo uso de pulseirinhas de cores diferentes – o que faz com que na hora de pegá-las no caixa, as mulheres olhem antes para o pulso do que para os sapatos umas das outras. Na semana em que o príncipe do Qatar deu o ar da sua graça, a pulseira vermelha dava acesso ao camarote. A princípio, o príncipe petrolífero se recusou a usá-la. Passou mais de uma hora gritando para o funcionário que tentava empulseirá-lo: Don´t touch me! Don´t touch me! Não o comoveu e, amuado, terminou por botar a vermelhinha. A amarela permitia ficar em pé, perto do camarote, o que seria o purgatório do pachá, entre o paraíso vip e o inferno do anonimato. A azul era a do povoléu. Existe ainda uma outra, a mais invejada, a branca coberta por cerejinhas – ela é a dos sócios, dos funcionários e dos André Athiê, um jet setter.

Homens e mulheres estavam vestidos com uniformidade. Eles, de calça jeans surrada (rasgos milimetricamente estudados no joelho), camiseta colorida, um colar grosso de prata (daqueles usados por bicheiros), sapatos pontudos ou tênis, e o tal topetinho, armado com habilidade. Elas, de short branco (a cor da estação), sandálias de salto alto, bolsas de marca. A maioria de franja. Não há cabelos encaracolados na Pacha. Todo mundo dança igual (de maneira dessincronizada), olha igual (com condescendência) e ri igual (exageradamente), seja galera ou vip.

O restaurante Ritz, no bairro do Itaim-Bibi, é freqüentado pelo povo da moda, executivos jovens, jornalistas e publicitários e adeptos do menu salada & destilados. É uma tarde de sol e Benjamin Ramalho toma um suco de uva numa mesa de centro do Ritz. Ele está na casa dos 30 e cultiva costeletas finas. Veste camisa social branca para fora da calça da mesma cor, tal qual os dos personagens do anúncio do cigarro que ele fuma, Parliament. Ben, como é conhecido, atendia o celular a cada dez minutos. É muito solicitado por ser o relações-públicas da Pacha. É ele que administra o mailing, a lista dos vips a serem convidados, ou não, para uma noite na boate. Diz ele: “O mailing é vivo. Uns se casam, outros se separam, outros ficam pobres, outros enriquecem. Quem faz o mailing tem que ter sensibilidade, saber quem importa, quem deve estar no lugar. Esse é o segredo da noite. Tenho 6,5 mil e-mails. Mas meu mailing seleto tem 800 nomes. Tem gente que gasta 50 reais. Outros, 300. Esse é um critério de seleção. As pessoas estão dispostas a pagar para serem diferentes. E elas têm razão”. Cavalheiro, Ben pagou a conta.

Um mailing bom costuma ter 50% de celebridades (atores, cantores, apresentadores) e a outra metade é dividida entre estilistas, playboys, manequins e atletas. O desafio é levar famosos que não sejam arroz de festa, nomes batidos como Reynaldo Gianecchini, Carolina Dieckmann, Ronaldo Fenômeno ou Juliana Paes. E também os ricaços de sempre, como Rico Mansur, Álvaro Garnero e João Paulo Diniz. Os vips recebem seus convites em casa, entregues por motoboy. “Se mandar por e-mail ou por carta, esquece”, explicou-me a promoter Helô Ricci, uma moça magra, alta e de tom de voz enternecedor, que há quinze anos trabalha na noite paulistana.

“Boate, não. É nightclub”, explicou um dos donos da Pacha, o argentino Leo Sanchez. Ele estava no escritório nos fundos da Pacha, enfeitado com um enorme pôster do Capitão América. Apesar de morar no Brasil há cinco anos, ele só fala espanhol: “Boate é uma coisa toda preta, claustrofóbica. Aqui é diferente. É como um club onde se faz esportes: tem os sócios, os cartões, as pessoas te conhecem, os privilégios, os amigos se encontram e se sentem diferenciados do resto”. Aos 41 anos, careca, tatuado, Sanchez poderia ser confundido com um astro de luta-livre. Ele e outros doze sócios desembolsaram 6 milhões de reais para construir a boate – perdão, o club. Pagarão 100 mil

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dólares por ano enquanto usarem a marca no Brasil. O grosso da receita do empreendimento, diz ele, vem do ingresso dos anônimos, e não dos vips.

A Pacha é toda branca. A idéia, conforme Sanchez, é “dar um clima Ibiza” à casa. A entrada principal tem paredes com relevos disformes, supostamente imitando as casinhas da ilha de Santorini, na Grécia. Um enorme lustre, feito de pano branco, lembra o candelabro do musical O Fantasma da Ópera. Sofás brancos se espalham pelos ambientes pintados de azul-turquesa. Há um balcão que vende sushis e outro para pizzas. Respira-se fumaça. Um dos espaços tem a forma de um circo. Os anônimos só têm acesso ao picadeiro, que é a pista de dança. Os vips assistem a tudo a 1,40 metro de altura do chão, nas arquibancadas, onde ficam os camarotes. Nunca descem.

Eram três da manhã, e o camarote de André Athiê estava bombando. Ele e os amigos subiam nos sofás brancos, bebendo vodca de canudinho. Para vencer a alta octanagem de decibéis, com os gestos de quem cochicha gritavam nos ouvidos uns dos outros. Para Athiê, não há no momento lugar como a Pacha na noite paulistana. Ele já provou quase tudo: foi ao Royal, ao Museum, ao Vegas, à Disco, ao Café de la Musique. “Aqui é como Nova York ou Europa”, disse, numa pausa. “Não parece que você está no Brasil. É ambiente doideira. É para ficar feliz e ver mulher bonita. Isso é que faz uma balada bombar”, diz. Com o pai, o arquiteto Sérgio Athiê, freqüentou a La Cave, em Courchevel, a estação de esqui francesa, onde havia uma garrafa de champanhe por 27 mil euros. Outra vez, foi com um amigo no Club Z, em Genebra. Em outra, com um primo, na Marquee, em Nova York. Eram 9 da manhã quando ele deixou a Pacha. Ele e seus convidados derrubaram catorze garrafas de vodca. “Aquilo é que foi aniversário”, comentou, dias depois.

Leo Sanchez acha que a balada brasileira tem peculiaridades estranhas. “Trabalhei vinte anos em toda a América do Sul e fui a quase todos os melhores clubs do mundo, mas só no Brasil se vê algumas coisas”, disse. “Aqui, é imprescindível haver mais mulheres do que homens. Você pode ter o melhor DJ do mundo tocando, mas se tiver mais homem, vão falar que a noite estava péssima. Deve ser o único lugar no planeta onde a música não está em primeiro lugar.” Outra particularidade diz respeito ao consumo extraordinário de álcool. Na Pacha, há três enfermeiros (sempre atarefados), uma UTI móvel (ainda não usada) e quatro bombeiros de plantão para acolher os alcoolizados. E há, por fim, o raio da mailing list. “As pessoas querem vir e ver um famoso, um rico”, disse Sanchez. “Brasileiro se sente valorizado quando está no meio de gente que ele viu na tevê. Mas tem que ter variedade. Gays, que são animados, por exemplo, devem ser cultivados. Estamos com promoters tentando aprimorar isso aí.”

À 1 da manhã de uma quinta-feira, Julia Petit chegou à Pacha com sete amigos. Ela também é vip. À tarde, a boate havia mandado para sua casa uma camiseta e uma garrafa de champanhe. Ela atravessou rapidamente o corredor polonês. Um segurança fez sinal para uma recepcionista vestida de preto, que a deixou passar e lhe deu um sorriso tão simpático quanto o de uma aeromoça em início de carreira. Ela rumou ao caixa para pegar sua pulseirinha vermelha e um cartão de consumo (que teve o valor de 0 real porque tudo o que ela quis foi de graça).

Julia tem 34 anos, tem uma produtora de trilhas sonoras para publicidade e pesa 47 quilos. É filha de Francesc Petit, um dos donos da agência de propaganda DPZ. Vestia jeans, blusa preta de decote abissal, faixa colorida no cabelo ruivo-eletrizante e colar com pingente em forma de âncora. Suas costas nuas deixavam tatuagens à vista. A cintura é da largura da palma da mão do Zé, o segurança. A pele é tão fina que parece de bebê. Os olhos são ligeiramente mais separados um do outro do que o normal. “Vir aqui para mim é trabalho”, ela informou, displicente. “Venho conhecer um DJ novo, ouvir uma música diferente, mas também, claro, dar umas risadas.” No caminho para o camarote, teve um encontro inesperado. Topou com André Athiê, vestido com uma camiseta preta de propaganda da Armani. Nunca tinham se visto antes. Segundo Ben Ramalho, Julia Petit é a figura mais popular na Pacha, e Athiê o cliente mais fiel.

– Ah, você é o que vem toda semana?, Julia perguntou. – É, tô aqui direto. – Mas você vem no camarote? – Claro, respondeu Athiê. – Mas você paga a bebida? – Pago, mas eles fazem um preço ótimo para mim. Eles riram um para o outro. Despediram-se com um beijinho no rosto. Ela seguiu para o

camarote. Benjamin a abraçou por trás.

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– O que você quer, amor? Champanhe, vodca? – Champanhe, né? Amanhã tenho que trabalhar às 9, respondeu a jovem. Pouco depois, Athiê me perguntou, apontando para um rapaz ao lado de Julia Petit: “Me

disseram que ela gosta de moleque, é verdade? Ela está com aquele cara?”. Expliquei que ela era a chefe do cara. “Pô, vou lá. Se ela estiver com o cara, foda-se. Aqui sou intocável”, gargalhou.

Assíduos das baladas notaram algo de novo na noite nos últimos tempos: a volta da cocaína. O ecstasy reinou absoluto nas pistas de dança durante cinco anos, explica um veterano baladeiro. Por três motivos, completa um consumidor ocasional: dá energia para dançar durante horas, incrementa a libido e é relativamente barata – o comprimido custa cerca de 35 reais. Mas o ecstasy, com o tempo, diminui os efeitos. É preciso tomar mais comprimidos para obter a mesma excitação. Já a cocaína, que está há anos com o preço estável, não precisa ser cheirada em quantidades crescentes. A impressão é confirmada pelos números das vendas de bebidas em boa parte das boates paulistanas. “As pessoas estão consumindo menos energético e vodca, que são considerados os parceiros ideais do ecstasy”, diz Ben que, por exigência profissional, circula continuamente pela noite. “Ao mesmo tempo, houve uma subida na venda de uísque, tido como companhia ideal da cocaína”, explicou.

Entre os ricos, a sugestão de cheirar vem em inglês: Do you smell like Chanel? Entre os gays, o pó é “padê”. Os modernos dizem: “Ah, quero magia”. No mercado vip, o papelote de cocaína é vendido por 80 reais. Dentro das boates, é difícil identificar o movimento. Os seguranças são orientados a botar para fora quem for pego cheirando. E se for um vip? “Há sempre policiais civis à paisana misturados com o público. Ninguém vai fazer essa merda em cima da mesa. Até por medo de ser preso”, explicou André Athiê, numa tarde de quarta-feira tomando chope numa lanchonete do Itaim-Bibi. O que acontece nos banheiros ninguém controla.

A pista de dança lotou. Julia Petit parecia entediada. Conversou alguma coisa com os amigos que brindavam com champanhe, dançou um pouco, mas logo pegou o celular. Começou a escrever torpedos. Até o fim da noite, checou o telefone com ansiosa freqüência. No camarote atrás do seu, um sujeito de uns 40 anos, em companhia de quatro mulheres e dois homens fortes, estava elétrico. Pulava no mesmo lugar como estivesse secando do banho sem toalha. Do nada, apresentou-se: “Anota aí, eu sou cirurgião vascular. Essa balada aqui é boa demais. Eu amo balada, só que o povo acha que médico não pode beber, se divertir”, falou, um tanto histérico. “Eu dou festa para mil pessoas na minha casa no Morumbi. É open bar. Não é pobreza não”, insistiu, sem que ninguém lhe houvesse perguntado nada. E mais ainda do nada, virou-se e retornou ao seu grupo. (Ainda bem que não é o meu médico.)

André Athiê disse nunca ter saído da Pacha sem beijar uma menina. O mais comum é beijar várias. Pára por aí? “Claro! Você acha que a menina que não é cachorra vai dar para você no primeiro dia?”, perguntou. Seu alvo costuma ser as patricinhas da FAAP, que formam boa parte do público jovem da Pacha. FAAP vem a ser Fundação Armando Alvares Penteado, uma universidade, no bairro de Higienópolis, cujos alunos, na maioria, têm origem burguesa.

Quando se tem mais de 30 anos, é diferente. O empresário Mário Castilho, de 33, que estava na festa de Athiê, explicou: “Boate não é lugar de conversar. Quem quer conversar, vai no barzinho. Você vai à boate para, vamos falar claro, ir à caça. Mas é difícil sair com alguém. Às 7 da manhã, você já bebeu pra caramba, no outro dia tem que resolver coisas, fazer esporte. É um perrengue. O lance é sair da boate com um telefone interessante. Se tiver interação boa, chamo para jantar”. A isso se chama “catar um masterplus”.

O empresário Arnaldo Waligora acompanhou de perto a noite paulistana nos últimos vinte anos. Aos 52 anos, ex-proprietário da Creações Wali, badalada no final dos anos 80, ele definiu assim o impulso coletivo que move a balada: “As pessoas saem de casa para colocar para fora seus demoniozinhos internos. Vão beber, paquerar, se divertir, fuder, beijar, dançar, incomodar os outros e, os infantilóides, se drogar”. A balada não se restringe à boate. Em geral, começa na casa de alguém, ou em um bar (o tal chill in) para drinks (cerveja nem pensar, que é coisa de pobre e de bregas). Três, quatro doses depois, lá pela uma da manhã, é hora de chegar na boate. Quando a maioria delas está quase fechando, ao amanhecer, os mais animados ainda esticam na Love Story, reduto de prostitutas, boêmios e notívagos.

Às 2 e meia, a Pacha chegou ao auge. As luzes estroboscópicas, a música alta que parecia reverberar na caixa torácica, os gritos vindos da pista de dança, tudo bombava. As pessoas tiravam fotos umas das outras com o celular. Havia pouca gente se beijando. Cada um dançava sozinho. Julia Petit parecia continuar à margem. Falou-se sobre outras boates. Ela gosta da Royal, “onde mandam

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buscar sanduíche de pernil especialmente para os amigos”, disse. Enquanto conversava, mexia no cabelo, olhava para o nada. “Sabe, eu venho nesses lugares porque não tenho que pegar fila, gastar tempo, explicar nada. Se tivesse que passar por tudo isso, te juro, não saía de casa. Não tenho o mínimo saco.”

“Vip? Que vip? Não tem vip no Brasil. Quem é vip mesmo não sai, recebe em casa. Hoje o que existe é uma mailing society”, disse a colunista da revista Vogue RG e do jornal O Estado de S. Paulo, Chris Mello. “Existem 1 milhão de sites, revistas de fofocas, colunas sociais, blogs. É impossível encher tudo isso com gente famosa. Então, apareceu na televisão, já virou vip, é deprimente”, diz. Aos 33 anos, Chris Mello acha que a noite de São Paulo morreu. Ela contou que esteve recentemente em Paris, na festa do fotógrafo Mario Testino, onde diz ter trocado idéias com o estilista Karl Lagerfeld sobre Flor da Índia, a nova droga de emagrecimento usada pelos endinheirados. Comendo mexilhões em um restaurante paulistano, ela vestia calça e blusa pretas, usava um rabo de cavalo e sapatilhas Chanel. Os olhos são muito azuis e seu cabelo muito preto. “Em São Paulo, há pelo menos quatro festas PJ (pessoa jurídica) por semana. Vai todo mundo, é tudo de graça e é garantido que você vai sair em jornal no dia seguinte. Quem vai se meter em ir para boate?”, disse, tomando mais um gole da sua Coca light. Gente normal acha que o centro de São Paulo é perigoso e ermo. Mas é no cruzamento da rua da Consolação com a avenida São Luiz que os vips se esbaldam. Fica ali a boate Royal. Numa sexta-feira, o camarote do empresário Marcus Buaiz, um dos donos da boate, recebia o filho do ministro Walfrido Mares Guia, o herdeiro da Elma Chips e um sobrinho de Abilio Diniz, o dono do Pão de Açúcar. Três modelos da agência Elite dançavam, enfiando os saltos agulha no couro do sofá marrom capitonê.

A Royal tem o pé direito baixo, mesas escuras e rasgos das paredes de onde é possível avistar o centro de São Paulo. O público é diferente da Pacha, onde todo mundo se parece. Mistura o colunista Arnaldo Jabor ao cantor Seu Jorge, de Junior, o irmão de Sandy, à modelo Alessandra Ambrósio, e a terceira geração de milionários das famílias Setúbal, Simonsen e Moraes. Na área dos sofás, estão os camarotes, vendidos por 1,5 mil reais. Em alguns, sente-se o cheiro de maconha. Por ser menor (lotação 400 pessoas), paquera-se mais. O contato físico é inevitável. Aliás, na balada não existem as expressões “por favor”, “com licença”, ou “desculpe”. Para atravessar a multidão, os vips e a galera se valem de cotoveladas e empurrões. De vez em quando, um palavrão.

Às duas e meia da manhã de uma sexta-feira, o DJ Felipe Venâncio e Marcus Buaiz, com um copo de marguerita na mão, conversavam sobre a oportunidade de abrir um restaurante japonês. O camarote de Buaiz é o único com uma cortina preta de voil, que é fechada quando se quer privacidade. “Boate depende do dono. São nossas amizades que enchem o lugar de gente bacana. É como uma festa. As pessoas se sentem em casa”, disse. Ele me segurou pelo braço levemente e levantou o dedo indicador da mão direita: “Olha essa música. Isso é o hit hoje. Olha o que vai acontecer”. De repente, todas as pessoas, que sacolejavam apenas com ombros da direita para esquerda na música anterior, começaram a cantar com as mãos para cima:

Get up, get out, get away from these liars 'Cause they don't get your soul or your fire Take my hand, knot your fingers through mine And we'll walk from this dark room for the last time A música é “Open your eyes”, da banda Snow Patrol. Foi mixada em uma versão dance. “É a

música de abertura do seriado E.R. , sabe?”, disse Buaiz, que batia palmas no ritmo e ria para os convidados. Seus amigos se abraçavam, pulavam e cantavam em coro. A modelo Loiane, uma loira de 1,80 metro de altura, vestido verde, franja e a sexta taça de champanhe na mão, e que antes bebera tequila, cerveja e vodca, tomava seu primeiro tombo. Ao longo da noite, caiu outras duas vezes. No balcão em frente à janela, um sujeito de camiseta e calça pretas e um enorme relógio Bulgari parecia, finalmente, se dar bem. Ele havia chegado meia hora antes, sozinho. Seu contato visual com uma morena de rabo de cavalo tinha sido infrutífero. Até pousar na frente dela uma garrafa de champanhe Cristal, estalando de gelada. No Royal, ela custa 2,2 mil reais (são vendidas cerca de três por noite). Em menos de cinco minutos, a morena conversava com ele – e bebia, é claro, que ela não é boba.

Aos 29 anos, Marcus Buaiz é um empresário de sucesso. Seus negócios, sempre na área de entretenimento, estima-se, somam 25 milhões de reais. Os de sua família, no ramo de café, shoppings e comunicação, no Espírito Santo, se aproximam da casa do bilhão. A idéia da Royal nasceu, segundo

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diz, para “ter um lugar legal para sair com os amigos”. O projeto custou 1,5 milhão de reais. Foi inaugurada há oito meses. Suas freqüentes viagens ao exterior para boates como Les Caves du Roy, em St.Tropez; a Billionaire, na Sardenha; a Vip Room de Cannes; e a Pink Elephant, em Nova York, serviram de inspiração para criar a atmosfera do lugar.

De calça jeans, camiseta, tênis e um boné com aba virada para trás, Buaiz tem uma leve dislexia, que o faz pronunciar palavras começadas em “d”, “g” ou “t” de maneira incomum. Gelada é “djelada”. Num sábado à tarde, quando a boate ainda cheirava a cigarro da noite anterior, e três faxineiras limpavam o salão, Buaiz chegou com sono. Pediu um energético para acordar. Sua visão sobre o negócio é clara: “A noite pode ser muito rentável, tanto que a Royal se pagou em seis meses. Mas tem que encarar a coisa como business, não sair um milímetro fora das suas contas”. Olhando pela janela, apontou a calçada, que reformou para valorizar o ponto, e continuou: “a noite é como casamento. De tempos em tempos, você tem que mudar para agradar sua mulher. Tem que dar uma malhada, ficar bem, ter umas novidades, para não cair no tédio. É a mesma coisa. Tem que mudar a decoração, o som, as bebidas, as garçonetes. Não pode deixar enjoar”, diz ele, que se casa em maio com a cantora Wanessa Camargo, filha do sertanejo Zezé di Camargo.

No século passado, poucas boates paulistas se igualaram ao The Gallery, nos Jardins. Por quase quinze anos, ela atraía artistas, estrangeiros de passagem, modelos (então conhecidas como “manequins”), milionários, escritores, músicos, gays, políticos, boêmios. Bebia-se champanhe a rodo no Gallery, comia-se caviar até enjoar e dançava-se ao som de uma orquestra ao vivo. Para entrar, só sócios que desembolsavam mil dólares por ano. Os clientes diziam que iria durar para sempre. Que era bom demais para acabar. “Mas acabou”, disse um dos sócios, José Victor Oliva. “Acho que uma das razões do sucesso é porque naquela época, começo dos anos 80, havia um entendimento de que tudo era permitido e não havia motivos para competir um com o outro. A Aids mudou a noção de sexualidade, a de sensualidade. E não tinha essa coisa vip, de gente que vive de vipice. Morte aos vips”, conclamou, passando a mão na cabeça raspada, que ressalta a cicatriz que lhe cruza a parte esquerda da fronte.

Aos 53 anos, de camiseta branca, um relógio imenso no pulso, ele expõe nas paredes de seu escritório as lembranças mais trepidantes do The Gallery: o dia em que Tony Bennett cantou, quando Matilde Mastrangi leiloou sua calcinha, o então metalúrgico Lula com camiseta da boate, fotos com B. B. King, Dulce Figueiredo, Pelé, Tom Jobim. “Parece que as pessoas hoje, hummm (esfrega o polegar com o indicador e o dedo médio), ao ir para boates, hummm, não sei, é como se fossem fazer um programa no shopping center”, disse. “Antes, havia privacidade. Quem quisesse ter amante, ser bicha e passar incólume, fazia ali. Não tinha colunismo social fofoqueiro. Ninguém se preocupava com violência. Ostentar era o máximo. As mulheres usavam as melhores jóias e vestidos”, lembrou. Ele voltou para a mesa, apertou o botão por debaixo do tampo, que é o sinal para que a secretária lhe traga um café. “Não era fútil, sabe?” E acendeu uma cigarrilha Café Creme. “Conversava-se muito. Mas o bom é que tinha muita putaria também.”

Passa um tempo e José Victor volta a se irritar com a vipice contemporânea: “Antigamente, vip era vip pra cacete. Era entrar no Gallery e dar de cara com a mesa do Walter Clark, na outra o Tom Jobim, em outra a Eleonora Mendes Caldeira. E todo mundo pagava. Não tinha essa baixaria de ganhar de graça. Hoje, é você que tem que pagar 30 mil reais para o sujeito aparecer meia hora”. Ele fez uma longa pausa, e continuou: “Olha, a Daniela Cicarelli é uma arquigostosa, supersimpática, mas isso não pode fazer de uma pessoa uma vip, porra. Vip é um puta de um pensador, um puta de um político, um puta de um escritor, ou o Pelé”.

Na Royal, a entrada custa 80 reais para homens e a metade para mulheres. Há uma moça na porta que decide quem entra ou não, com base nas roupas e na lotação do lugar. A moça deve ser especialista em semiótica, pois é a partir da roupa que descobre o saldo da conta bancária do candidato a entrar. Ali, uma garrafa de vodca sai por 360 reais. Nos últimos meses, histórias folclóricas sobre despesas inebriantes correram a cidade. Como a do jovem, filho de um alto executivo do setor de seguros de saúde, que gastou 20 mil reais numa noite, pagos num cartão de crédito de cor preta, o sinal mais evidente de quem é rico.

No dia seguinte à Pacha, à uma da manhã, Julia Petit apareceu na Royal. Estava com o ex-marido, Beto Lee, filho da cantora Rita Lee. “Olha só, não falei que bato ponto aqui também?”, perguntou. O rapaz não cumprimentou ninguém e se acomodou no canto do sofá. Acendeu um cigarro e observou, sem entusiasmo, o movimento. Os destaques eram a modelo Giane Albertoni e a primeira-

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dama Wanessa Camargo, que dançava, fumava e tomava Veuve Clicquot com um grupo de quatro amigas. A casa começava a bombar.

O sócio de Buaiz, o promoter Cacá Ribeiro, responsável pelas festas PJ mais concorridas da cidade, um calvo de óculos de armação retangular preta e pesada, administrava a chegada da galera e dos vips. Uma modelo se queixou de que o camarote dos sócios estava muito cheio. O gerente da boate fez tantos salamaleques, falou tanto que a modelo, depois de revirar os olhos azuis, resolveu ficar. “Olha, descolado é uma merda. A gente tem que ficar aqui, acalmando egos, lidando com desejos e carências”, disse Ribeiro, bem-humorado.

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ANEXO D “O bagulho é doido, tá ligado?” Entre o crime e a indústria cultura, a viagem dos rappers do Facção Central ao coração do Brasil. Julho de 2007 LUIZ MAKLOUF CARVALHO

Carlos Eduardo Taddeo cria dois cachorros bravos, o mastim napolitano Lothar e o rotweiller Luthor, para dissuadir quem cogite bisbilhotar a garagem da sua casa, onde estaciona sua Blazer preta, modelo 1999. É uma casa pequena, em nada diferente das dezenas de outras que a cercam no Jardim Castro Alves, no bairro do Grajaú, na periferia paulistana. Taddeo mora com a mulher, Maria de Fátima, e as duas filhas, Gabriela e Maria Eduarda, de 9 e 11 anos. As meninas, que são boas alunas de uma escola pública das imediações, são criadas com afeto e severidade. Elas são proibidas de tomar refrigerante e não freqüentam McDonald’s e similares. Foram poucas vezes, mas quando as meninas dizem palavrões, o pai lhes dá palmadas.

“Não deixo nem que elas falem ‘bunda’”, diz Taddeo, que tem a cabeça raspada, bigode, pêra e cavanhaque ralos, calça tênis cano alto, impecavelmente alvos, veste calças jeans bem largas e uma camisa de manga comprida azul-marinho, com listras brancas e vermelhas. Como elas fazem, então, para cantar as letras que o pai compõe? “Na hora dos palavrões elas pulam”, ele responde, sério, quase casmurro. “O Eduardo é chato mesmo”, opina Maria de Fátima.

É uma sexta-feira fria, e o casal se prepara para ir ao Aeroporto de Congonhas, pegar um avião para Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, e de lá seguir de carro para Dourados, local do show. Taddeo, de 31 anos, é o letrista único e líder do grupo de rap Facção Central, o mais enfezado da cena brasileira do hip-hop, autor de versos como: INFELIZMENTE O LIVRO NÃO RESOLVE O BRASIL SÓ ME RESPEITA COM UM REVÓLVER Ou DEITA, PORRA, QUERO DÓLAR, BRILHANTE, GARGANTILHA TÔ SEGUINDO OS CAPÍTULOS DA SUA CARTILHA

O refrão “deita, porra” é da música “Cartilha do Ódio”, que também fala de uma granada explodindo “as coberturas de 5 milhões do Itaim Bibi”. Ela está no álbum O Espetáculo do Circo dos Horrores, o mais recente do Facção, lançado há um ano, que vendeu 35 mil cópias. É o sexto de uma carreira que começou há doze anos.

Enquanto aguarda a chegada da cunhada, que cuidará das filhas durante o fim de semana de show em Dourados, Eduardo Taddeo explica que o “circo dos horrores”, do título do álbum, é a situação produzida pela miséria brasileira. Suas letras, diz ele, descrevem e apontam responsáveis pela exploração social. É o caso do trecho que lamenta: QUE PENA QUE NESSA CHURRASQUEIRA TAMBÉM NÃO VIREM CINZAS VEREADORES, DEPUTADOS, SENADORES, MINISTROS E PRESIDENTE

Taddeo escreveu cerca de 100 letras de rap. Os palavrões são usados com abundância (“filho-da-puta” aparece 27 vezes). A intenção deles não é fazer gracinha. É nomear os inimigos, que são ameaçados e agredidos. Como ocorre em “Assalto a banco”:

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FILHO-DA-PUTA SE JOGA NO CHÃO QUE O CHEIRO DE SANGUE TÁ NO AR 380, GLOCK, 45, É HORA DE REZAR

O rap — abreviatura de rhythm and poetry — nasceu na Jamaica, nos anos 1960, de onde migrou para bairros negros das metrópoles dos Estados Unidos. É um canto falado, marcado por batidas rítmicas, mais ou menos uniformes, produzidas por equipamentos digitais, os samplers. Ele é um dos quatro elementos do hip-hop, a cultura de rua metropolitana que se espalhou pelo planeta a partir dos anos 1980. Os outros três são os grafites, a dança break e o dj (de disc-jockey). Em sua expansão, o hip-hop se radicalizou e foi cooptado pela indústria cultural. Ao pregar o assassinato de policiais, ou ao tratar as mulheres como prostitutas, alguns rappers faturam dezenas de milhões de dólares em gravações, clipes e shows.

O gênero chegou ao Brasil no final dos anos 1980, com grupos de periferia que se reuniam na estação São Bento do metrô de São Paulo. O seu primeiro marco foi a apresentação do Public Enemy, na capital paulista, em 1991, aberta pelo grupo Racionais MC’s, um dos primeiros a fazer sucesso, e até hoje no topo do rap nacional.

“Mais do que a voz que canta, o rap tira a sua força da voz que fala”, explica o compositor e cantor Luiz Tatit, professor de lingüística na Universidade de São Paulo. Autor de vários livros sobre a música brasileira, Tatit diz que “o rap assumiu o lugar da canção de protesto e é, hoje, a única música de contestação. É um gênero que tem fôlego para crescer. Sua importância não está em revelar a realidade da periferia — já que toda música revela uma realidade —, mas em ser uma forma de expressão, de convencimento e de persuasão para os seus ouvintes”. Tatit diz que a agressividade do gênero é um recurso retórico: “A narrativa do rap tem um aspecto de fábula porque coloca o bem contra o mal, um contra o outro, o que tende a acirrar os ânimos num país desigual como o Brasil. Mas aí o problema é mais social do que musical”.

Há rap e rappers para todos os gostos. Os mais conhecidos são os Racionais MC’s , MV Bill, do Rio de Janeiro, e GOG (iniciais de Genival Oliveira Gonçalves), de Brasília. Facção Central faz parte da vertente mais violenta, às vezes classificada de gangsta rap. Ela inclui grupos como Consciência Humana, Sistema Negro, Face da Morte, Realidade Cruel e Cirurgia Moral. Mesmo que à margem da televisão e das rádios (com exceções como MV Bill), o hip-hop nacional movimenta um mercado que tem grifes de confecção, empresas de distribuição e gente de todo o tipo organizando shows de fins de semana nas periferias.

É para um desses — em Dourados, no Mato Grosso do Sul — que Taddeo, Fátima e outros seis integrantes do Facção Central se preparavam, naquela sexta-feira, para viajar. A televisão exibe vídeos de shows do grupo. Eles se apresentam quase todos os fins de semana, para platéias de 1 000 a 4 000 pessoas.

Quando a conversa baixa de tom, se ouve Eduardo cantar na TV: DEVIA TER UM CONTROLE INTERATIVO NA TELEVISÃO PRA BOTAR FOGO NO PROJAC, NA XUXA, NO FAUSTÃO SE EU SEQÜESTRO O SILVIO SANTOS, PEÇO DE RESGATE O RATINHO, O GUGU, NUM FOGUETE PRA MARTE

São versos de “A Bactéria FC” (ou seja: Facção Central), do último álbum. “Eu pesquiso muito para não cometer erro de informação”, explica Taddeo, no quarto do casal, algo desarrumado devido à reforma da casa, herdada do sogro. Como ainda não há guarda-roupa, eles usam um armário improvisado. Os seis álbuns estão arrumados na cabeceira da cama. O rapper estima que tenha vendido, tudo somado, uns 80 000 discos.

“O Facção não é mais meu, nem do Dum-Dum. É de quem admira e acredita em nós”, ele diz, referindo-se ao seu parceiro e cunhado, que mora na vizinhança e ainda não chegou.

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As letras, quilométricas e sulfúricas, se estendem por dezenas de páginas. Seus alvos principais são a Polícia Militar SE NÃO EXISTE A PENA DE MORTE NO BRASIL, POR QUE A PM MATA TANTO PRINCIPALMENTE A ROTA, PUTA QUE O PARIU? e jovens ricos, chamados de playboys: AÍ, PLAYBOY, CONSTRÓI SEU BUNKER COM VIDRO BLINDADO, PORTA DE AÇO BALÍSTICO COM FECHADURA DE NOVE DENTES PÕE NO SEU JARDIM SENSORES DE MOVIMENTO CÂMERAS, CÃO DE GUARDA E UM VIGIA NA GUARITA QUE O SHOW JÁ COMEÇOU

“As letras são violentas por traduzirem o dia-a-dia, as mazelas, as torturas da periferia, da favela”, diz Taddeo. “Os palavrões se tornam necessários em determinados trechos, para demonstrar o grau de revolta. Colocados de forma adequada, eles dão a dimensão da gravidade, e da seriedade do tema que está sendo abordado.”

O vôo da Gol saía de Congonhas às 23:30 horas. Já eram quase 9 horas, e nada de Dum-Dum. O primeiro a chegar foi Marcos Antônio Marinho, o Marquinhos, dj assalariado do Facção Central. Ele ganhará 300 reais pelos quase três dias da viagem. Tem 29 anos. Ex-contínuo, ex-chocolateiro de fundo de quintal, está no grupo há quatro anos. Também se apresenta em baladas no Capão Redondo, onde mora.

O ambiente ficou mais agitado com a chegada de Edson Oliveira Santos, o Smith. “Ele é o que mais zoa”, apresenta Taddeo. De óculos pequenos e cabelo de trancinhas rastafári, Smith, de 26 anos, é um dos dois vocalistas de apoio. Branco, alto, tem uma sombra de barba e bigode finamente escanhoada. É confeiteiro de profissão, mas está desempregado. Canta desde 1999. Já integrou os grupos Realidade Urbana e Detentos do Rap. Ganhará 250 reais pelo show no Mato Grosso do Sul.

Dum-Dum chegou num Mazda 98. Cumprimentou a todos, menos Fátima e o marido, para os quais nem sequer olhou. O casal também o ignorou. Dum-Dum estava com o outro vocalista de apoio, José de Oliveira Arias. Aparentemente mudo — a não ser no palco, quando solta a voz e o corpo —, Arias é de família classe média baixa. Seu último emprego, nos anos 1990, foi o de ajudante de cozinha do Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi, durante a gestão de Mario Covas. Começou na música tocando cavaquinho, com uma turma do pagode. Em 1999 aderiu ao rap. Arias vai faturar 250 reais na viagem a Dourados.

No volante da Blazer, a caminho de Congonhas, Taddeo estima que o carro valha uns 35 000 reais. Comprou-o com os direitos autorais dos cinco primeiros cds. O carro, a casa, os equipamentos musicais do grupo e algum dinheiro no banco são todo o patrimônio que tem, diz. O mais quieto da trupe é Carlos Alberto Bibiano, o Carlinhos, responsável pelo som. É a primeira vez que ele se mete com a turma do rap, numa substituição de última hora. Mas já cansou de fazer shows com duplas caipiras. Avesso às drogas, ficou traumatizado com artistas que usaram maconha dentro de vans em que ele também estava. “Banda que não fuma perto de mim já ganhou a minha simpatia”, diz, ainda sem saber qual será o comportamento do Facção Central.

O despacho das bagagens e das cases de som e de luz ficou a cargo de Fátima e de Edson Chagas dos Reis, o iluminador e faz-tudo do Facção Central. No aeroporto, Eduardo Taddeo foi parado quatro vezes por fãs. A trupe dos oito chama a atenção. Pelo conjunto, mas, principalmente, pelo andar gingadíssimo do estiloso Dum-Dum, e pelas trancinhas e roupas folgadas de Arias e Smith.

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Na passagem pela esteira da Polícia Federal, Smith deu azar com o alarme. Era o cinto — e ele teve de tirá-lo. Mais sem jeito do que irritado, deixou que as calças caíssem, não teve pressa em recompor-se, e desconcertou uma desconhecida que o olhava, pasma, ao perguntar, rindo, o que é que ela estava achando.

Faz duas horas que Taddeo e Dum-Dum se encontraram e estão próximos. Mas não trocaram frases nem olhares. No salão de embarque, cada um fica no seu canto. O resto do grupo se divide entre um e outro. Arias e Smith são os mais chegados a Dum-Dum. Mas não deixam de dar atenção ao casal. Fátima é quem cuida dos negócios, da agenda de shows ao pagamento dos cachês. Taddeo nem sequer atende os telefones.

Dum-Dum é Washington Roberto Santana. Tem 38 anos e 1,80 metro de altura num corpo musculoso e esguio. “Todo mundo acha que o meu apelido é por causa da bala, mas não tem nada a ver”, explica. “Foi a minha avó que colocou, por causa de um negrinho personagem de um gibi.” Filho de doméstica com pai que praticamente não conheceu, foi criado no bairro do Cambuci. Morou em cortiços, estudou até a quinta série e cedo pegou no pesado. Com 11 anos já tinha feito carreto, entregado jornal e trabalhado numa fábrica caseira de martelos, colocando os cabos. Passou a trabalhar em feira livre, limpando peixe. Pegou gosto e foi peixeiro, até os 17, sempre em feiras. Depois, se tornou ajudante numa empresa que produzia fotolitos, e faliu. “A única opção que vi foi vender drogas, entrar para o tráfico”, conta.

Dum-Dum virou traficante. Fumou e cheirou toda maconha e cocaína que pôde. “Crack, nunca”, diz. Foi preso em 1996, passou três meses na cadeia pública de Pinheiros, período em que nasceu sua filha, sobrinha de Eduardo Taddeo. “Saí da cana com outra cabeça, voltado só para fazer o certo”, afirma. A Justiça o absolveu, por falta de provas. Parou de usar cocaína.

Ele caiu no rap de vez ao ver um show dos Racionais MC’s. “É isso que eu quero pra mim”, decidiu, na frente do palco. A primeira formação do Facção Central nasceu com ele, mas sem o cunhado, que entrou depois. “Se não fosse o rap eu não estaria vivo”, diz Dum-Dum. “É a minha vida e o meu sustento.” Ao contrário de Taddeo, sua cultura musical extrapola o mundo do rap. Ele gosta de Billie Holiday, Nina Simone e Aretha Franklin. Dum-Dum tem uma Nossa Senhora Aparecida e uma escrava Anastácia tatuadas no braço direito, a palavra Facção no esquerdo, e o focinho de um pit bull na perna direita.

No avião, Smith chama um passageiro que entra de chapéu de Crocodilo Dundee. O próprio não percebe, mas outros riem. Pouco depois, Smith pede um isqueiro para a aeromoça, explicando, na maior naturalidade, que quer fumar. Ela e os que ouvem o pedido se assustam um pouco. Smith diz para não se preocuparem, porque vai fumar no banheiro, sem incomodar ninguém. Mais risadas, até que uma senhora se irrita e pede que ele fale mais baixo. O vocalista a ignora. Meia hora depois da decolagem, Smith sossega.

Em Campo Grande, na madrugada, a van que os espera no aeroporto leva todos para jantar numa feira em fim de expediente. Carlinhos Bibiano registra, satisfeito, que, até então, ninguém fumara nada. O cansaço é evidente, mas, no restaurante simples, ainda há ânimo para protestar contra uma batata frita de 15 reais, afinal descartada, e para Smith pedir ao garçom, com fingida seriedade, uma cerveja de 4 litros. Dum-Dum e Taddeo estão em lados opostos da mesa. Continuam evitando se olhar. E assim seguem dentro da van, por mais três horas, até Dourados, onde chegam quase de manhã. O casal Taddeo hospeda-se num apartamento maior, de frente para a rua. Os outros seis se dividem em dois apartamentos de fundos. Na tarde de sábado, a empresária Kelcilene Klein, uma jovem senhora vistosa, observava a arrumação do palco do ginásio onde o Facção Central irá se apresentar. O convite para o show partiu dela, dona de uma loja que vende, entre outras roupas, a moda hip-hop. Até aquela hora, quatro da tarde, 700 ingressos de 10 reais já estavam vendidos. “O rap é uma forma de protesto consciente contra o descaso do governo com a maioria da população”, diz a Kelcinele Klein. “Convidei o Facção porque a mensagem deles é a mais verdadeira e realista, e porque eles têm um público fiel.” Entre o cachê do grupo, de 5 000 reais, despesas de transporte, hospedagem e alimentação, os gastos chegam a 11 000 reais. “Prejuízo eu não vou ter, e ainda divulgo a loja”, diz a empresária.

Enquanto Fátima, Marquinhos, Carlinhos e Chagas estavam no palco, cuidando cada um da sua área — projeção de vídeo, equipamento do dj, som e luz —, os quatro vocalistas continuam no hotel, descansando. Não saíram nem para almoçar. Fátima trouxe as quentinhas do restaurante a quilo mais próximo, o Máximo’s, e eles comeram nos apartamentos.

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Sozinho no quarto amplo, o líder do Facção faz exercícios de memorização das letras caudalosas. “Mesmo que o meu cérebro pare, eu quero que a boca continue a cantar”, ele diz. E canta: 513 DEPUTADOS, ESTOCADOS COM VERGALHÃO ESSE É O PLENÁRIO QUE EU SONHO EM PRESIDIR A SESSÃO

No ombro direito, Taddeo tem tatuagens com o rosto da mulher e das filhas. No esquerdo, vê-se um feto cercado por todas as misérias imagináveis. É o retrato de uma das suas letras mais escabrosas, a de “Cortando o Mal pela Raiz”: É BOM DAR NEGATIVO O TESTE DA FARMÁCIA, SENÃO ARRANCO O EMBRIÃO DO SEU ÚTERO NA NAVALHA

Eduardo Taddeo é filho de uma faxineira que teve quatro filhos em dois casamentos. Seu pai, descendente de italianos e empresário da noite, era casado com outra mulher oficial, mas dava assistência. Ele me mostrou meia dúzia de fotos da festa de seu primeiro aniversário. Houve bolo, mesa de doces e refrigerantes, servidos para pessoas alegres, que vestiam roupas de festa. O pai, de terno branco, o carrega no colo, ao lado da mãe. A casa alugada da foto era no Glicério, bairro antigo e popular do centro de São Paulo, conhecido pelos cortiços e pela pobreza. O rapper conta que as dificuldades se agravaram com o afastamento gradativo do pai. A mãe e os quatro filhos moraram em pensões, com banheiros coletivos. Aposentada por invalidez, com o mal de Chagas, conta o filho, “às vezes ela pedia esmola ou cesta básica na igreja”.

O líder do Facção estudou em escola pública até a quinta série do ensino fundamental. Era tímido e, míope, tinha vergonha de usar óculos. Usava tênis velhos e roupas surradas. Em casa, a comida era sempre menos do que ele queria. “Às vezes, só tinha arroz e o feijão era aquela água”, lembra. Ajudava a mãe pegando frutas e legumes nos fins de feira. Ganhava um troco tomando conta de carros. Na rua, assistia a cenas do crime: tráfico, furtos, roubos, prisões, violência. “Eu via os caras com tênis novos e queria ser criminoso”, conta. Começou aos 7, furtando um toca-fitas e roubando dólares de um japonês. Uma vez, foi parar na delegacia para averiguação de furto em um supermercado. Saiu sem maiores conseqüências. Com 9 anos, diz, já “andava com os caras”, levando e trazendo armas. Odiava álcool. Ia de benzina, maconha e cocaína. Experimentou crack. Com 16 anos, fez assaltos à mão armada.

“Foi um furto do Equipado que me salvou”, relembra Taddeo. Equipado vinha a ser um namorado de sua irmã, um pouco mais velho. Ganhou o apelido porque ia para a escola cheio das tralhas. O furto era um gravador com uma fita k-7 que trazia a música “Corpo Fechado”, dos rappers Thaíde e DJ Hum, que Taddeo escutou. “Aquilo me pegou”, ele conta. “Era uma coisa de falar rimando, que eu achei que podia fazer. Escrevi uma letra, mostrei para o Equipado, e ele disse que eu mandava bem. Daí não parei mais.” O primeiro grupo que ele formou, no fim dos anos 1980, chamava-se Esquadrão Menor. Era integrado por moleques de rua. Dum-Dum era um deles.

Como seus dois primeiros discos não venderam bem, Eduardo Taddeo aceitou o convite do sogro, maître do Hotel Hilton, na Avenida Ipiranga, hoje desativado, e passou dois anos lá, como ajudante de cozinha. Lavava louça, limpava o chão, carregava gelo. Já morava no Grajaú, e continuava a compor. Os primeiros quinze minutos de fama chegaram no ano 2000, quando a Justiça paulista censurou a exibição do videoclipe Isso Aqui é uma Guerra, na MTV, que acatou a censura. A música está no terceiro CD, Versos Sangrentos, de 1999. É a dos versos: É UMA GUERRA ONDE SÓ SOBREVIVE QUEM ATIRA QUEM ENQUADRA A MANSÃO QUEM TRAFICA INFELIZMENTE O LIVRO NÃO RESOLVE O BRASIL SÓ ME RESPEITA COM UM REVÓLVER

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No clipe, Eduardo Taddeo e Dum-Dum protagonizam dois bandidos que seqüestram e matam — mas ao final se dão mal, com a vitória da polícia. A censura foi registrada pela imprensa, inclusive a da televisão, e Taddeo e Dum-Dum aproveitaram a repercussão para divulgar suas músicas. Houve um inquériro, mas não deu em nada. No cd seguinte, A Marcha Fúnebre Prossegue, de 2001, Taddeo se referiu à censura com refrões de protesto, que até hoje ele repete nos shows, como: PODE CENSURAR, ME PRENDER, ME MATAR NÃO É ASSIM, PROMOTOR, QUE A GUERRA VAI ACABAR

No mês passado, a antropóloga Alba Zaluar, especialista em violência e segurança pública, assistiu o videoclipe Isso Aqui é uma Guerra, que está disponível na internet. “Fiquei horrorizada, paralisada”, comentou. “Não dá para construir uma saída para os destituídos com o ódio e a destruição daqueles que não podem ser responsabilizados pela destituição.”

Alba Zaluar, autora de Integração Perversa, livro sobre violência e tráfico de drogas, é professora no Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Faz tempo que ela implica com o rap. Mais precisamente desde os anos 1990 quando ouvia, em rádios de ônibus que a levavam para o campus de Stanford, na Califórnia, os ofensivos palavrões do rap americano.

“Devido ao poderio americano, o hip-hop é um fenômeno mundial”, ela diz. “Os rappers levam problemas que são de lá, de relações raciais de lá, relações de classe de lá, dos Estados Unidos, para o resto do mundo.” Ela diz que as letras dos rappers estão em franca contradição com o estilo de vida deles: “Eles ganham muita grana, são considerados uns coitadinhos, mas não são. Coitadinhos são os que ouvem, e que querem ter a mesma roupa, os mesmos tênis.” Alba Zaluar considera que, para a formação de uma sociedade democrática, a violência verbal do rap é perniciosa, “porque vai no sentido oposto da civilidade”.

As letras do Facção Central e de outros grupos de rap tratam as mulheres com hostilidade. Afora as mães sofredoras de filhos criminosos, que são quase santificadas, sobra para as outras a acusação de serem “vadias”, “putas” ou “madames” ricas, que merecem sofrer: VOU DERRETER COM COCAÍNA O FILHO DA MADAME MORTE PRA PUTA OSTENTANDO NA CARA SUA GARGANTILHA SEU SORRISO CLAREADO A LASER PELO DENTISTA PRA VACA ESTRESSADA É SEMANA NO SPA

Taddeo explica que não é ele quem fala na música, mas os personagens que cria, com cenários e narrativas ficcionais. Se o narrador é um assaltante de banco, falará como um. Se é uma vítima de seqüestro, fará esse discurso. Se é um bandido arrependido pedindo perdão à mãe, o melodrama cresce.

Dum-Dum e Taddeo continuam distantes entre si, e não trocam uma única palavra mesmo diante dos fãs, a quem recebem, sem nenhuma pressa, nos finais dos shows. “Eu quero que os manos ouçam o Facção e saiam da trilha do crime, que não compensa”, diz Taddeo. “Eu quero que eles se afastem das drogas”, fala Dum-Dum. Ele é daqueles manos sossegados, sangue bom, de várias fitas e firmas, que cultiva a idéia de que a maconha não é exatamente uma droga do mal, como a cocaína e o crack.

Na dissertação de mestrado “As Mensagens sobre Drogas no Rap: Como Sobreviver na Periferia”, defendida na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo,Vinicius Gonçalves Bento da Silva analisou onze letras de nove grupos de rap, entre eles o Facção Central. Ele concluiu que os rappers são mais tolerantes com a maconha, comparativamente ao crack e à cocaína. Dum-Dum pertence a essa categoria.

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São quase duas horas da madrugada de domingo. Está mais do que claro que Taddeo e Dum-Dum, a dupla que dá forma ao Facção Central, têm uma relação pessoal de aversão controlada. Eles nem sequer se aproximam. Foi assim em Dourados, para cerca de 1 000 pessoas, e foi assim na cidade-satélite de Samambaia, no Distrito Federal, uma semana depois. A hostilidade envolve questões familiares, contrariedades de Taddeo e Fátima (que não usam drogas nem bebem álcool) com a turma da maconha, e divergências sobre a partilha do dinheiro. Grosso modo, de 5 000 reais que entram, limpos, por show, 1 500 reais são divididos entre os seis auxiliares. A parte do leão é repartida ao meio entre Taddeo e Dum-Dum. Mas o primeiro acaba ganhando mais, pelos direitos autorais sobre as canções que escreve. Se Dum-Dum reclama disso, o cunhado reclama que sola mais músicas durante os shows, e que, por isso, deveria levar mais algum. A tensão envolve as famílias de ambos. As mulheres de um e outro também não se falam. Dum-Dum não comenta o assunto. Taddeo limita-se a dizer que “o que importa é a convivência profissional, e essa nós levamos a sério”.

“No rap sangrento, o Facção é o melhor grupo do Brasil”, avalia o dj Erick 12. Ele opina na condição de ter integrado a banda, de ser o autor dos samplers da maior parte das letras de Taddeo, e em ser um dos mais ativos produtores do rap paulista. Em seu estúdio, na Vila Mariana, pequeno, mas dotado de um equipamento de som atualizado, Erick Cohen, paulistano da Mooca, 28 anos, branco e de trancinhas rastafári, grava boa parte dos novos grupos de rap, que se multiplicam com velocidade.

Cohen saiu do Facção por questões particulares e por divergir do extremismo das letras de Taddeo. “Sou contra fazer a revolução matando os playboys”, diz. Já Eduardo Taddeo diz que ele se afastou por não ter tempo de se dedicar ao grupo. Cohen continua a ser o produtor musical do Facção Central. Seu nome aparece nas capas menos do que deveria — já que quase todas as bases rítmicas são criadas e recriadas por ele —, mas, no rap, parece ser unânime que todos aceitem que o mais importante é o que se diz. “O Eduardo não arreda pé dessa ideologia sangrenta, porque acha que é ela que faz o diferencial e que traz o sucesso”, analisa. “Se é positivo ou não, vai do ponto de vista de cada um.”

Por ser bem-humorado, e não fazer cara de mau, Cohen é uma raridade quase que absoluta na cena hip-hop de São Paulo. Ele acredita que o movimento só tem sentido se afastar os jovens do crime e da droga. E faz piada com o estereótipo de uma parte dos manos, que descreve assim: “bicão, cenho fechado, cara de mau e gingado no andar”. Não tem essas características, e, por não tê-las, já perdeu um cliente rapper que veio da Bahia. “Você é um tipo muito normal”, reclamou o mano baiano, antes de ir embora.

Frederico Oliveira Coelho, pesquisador de música nacional e dj nas horas vagas, acha que letras como as de Taddeo trazem “excesso de realidade”. Ele diz: “Suas representações são violentas, transgressoras, precárias e confusas porque seu cotidiano é violento, transgressor, precário e confuso”. Estudioso do funk e do hip-hop carioca, Fred, como é mais conhecido, é doutorando em Letras na puc do Rio. Pode ser encontrado, alta madrugada, discotecando em baladas da Lapa. Ou, em casa, navegando nos gigabytes de um acervo colossal de músicas. Ele prossegue: “Esse tipo de proposta musical e cultural — principalmente um rap engajado e pesado como o do Facção Central — redimensiona a forma como a população da periferia trabalha com a sua auto-estima. É o primeiro gênero musical de massa em que os grupos excluídos rompem uma barreira cultural a partir de uma produção própria, e não de uma concessão que vem de fora”.

Essa “produção própria” muitas vezes promove misturas estranhas, como a de guerrilha com beisebol. Às voltas com a gravação independente de seu primeiro álbum — que se chamará Temeremos Mais a Miséria que a Morte, um verso de Bertolt Brecht — o rapper estreante Gas-PA, do Rio, integra o Movimento Hip Hop Luta Armada, “um coletivo com recorte classista”, com estimada dúzia e meia de militantes, que se reúnem numa favela da Zona Norte. Sua camiseta tem a imagem de um fuzil com mira a laser, e traz uma mensagem contra as armas. O boné, vermelho, combinando com os tênis, tem as letras L e A à testa. “São as iniciais de luta armada”, brinca. Na verdade, o boné é do time de beisebol americano Los Angeles Dodgers.

O rapper traz, no ombro direito, uma tatuagem de Carlos Lamarca, com o lema do capitão: “Ousar lutar, ousar vencer”. No braço esquerdo, tem a imagem de Angela Davis, militante dos Panteras Negras americanos, nos anos 1960. Coerentemente com tudo isso, ele não gosta de declinar seu nome verdadeiro, que, diz, estão nas iniciais PA. Passou dificuldades na infância e na adolescência, esteve a um passo do crime, mas conta que foi salvo quando assistiu ao show do Public Enemy, com os Racionais, em 1991. “Mudou completamente a minha cabeça”, diz Gas-PA. O

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primeiro rap que compôs chama-se “Abalando as Estruturas Globais”. O que faz mais sucesso é “Cotidiano do Desemprego”, que, conta, “já fez muito maluco chorar”. Gas-PA, que é negro e tem 1,90 metro de altura, trabalha numa ong educacional, e mora em Costa Barros, na Zona Norte do Rio. Ele diz que o tempo que leva para fazer uma letra “depende da carga de ódio que esteja acumulada no meu coração”. Ele é fã do Facção Central, “porque eles aprofundam a questão da luta de classes e delimitam uma fronteira clara entre oprimidos e opressores”.

Mandrake tem esse apelido porque é mágico amador e coleciona, além de bonés e bolas de bilhar, dados e baralhos. Rapper e editor do site Rap Nacional, ele se chama William Domingues, tem 25 anos e mora na periferia de Osasco, num quarto, sala e cozinha no fundo da casa dos pais. Ele calcula que existam 200 grupos de rap só na cidade de São Paulo. “O que mais tem no rap é pilantra querendo fazer dinheiro e arrancar dinheiro”, diz. Branco, olhos verdes, forte e careca, Mandrake se veste com o figurino do movimento: tênis bem conservados, bermudas-balão, tatuagem (“rap nacional”) no braço direito, camiseta larga. “Eu defino o rap como Revolução Através das Palavras”, diz. “A revolução é afastar os jovens do crime, mostrando que esse caminho leva a um fim trágico.”

Um coro de uns 2 000 manos e minas, parte careta e parte movida à maconha e/ou cocaína e/ou álcool, esquenta a madrugada fria num ginásio de Samambaia, no Distrito Federal: A ARMA É UM ENGENHO MECÂNICO, DEPENDE DA AÇÃO HUMANA SÓ NO BRASIL TEM DISPARO ACIDENTAL TODA SEMANA. A VIDA É RINHA DE PIT BULL, ONDE POODLE NÃO SAI VIVO FOCO DE INCÊNDIO ONDE NÃO CHEGA A ESCADA MAGIRUS

No palco, com um telão central e dois laterais, Eduardo Taddeo, Dum-Dum, Smith e Arias cantam, dançam, movimentam-se a toda. Na hora do refrão iracundo de “Cartilha do Ódio” — “Deita, porra, quero dólar brilhante gargantilha...” —, o coro sobe de tom. Nas caras e bocas das centenas de fãs que se aglomeram perto do palco — onde seis seguranças de terno estão postados, atentos — a poesia de Taddeo adquire poderes catárticos. Alguns e algumas, em esgares, ritos e olhares bandidos parecem, realmente, estar assaltando e matando o milionário que as rimas execram.

O Facção toca doze músicas no maior pique, sem parada e sem bis. Nunca há aplausos, como num show comum. Apenas gritos, e, às vezes, urros. Meninas se esticam para tentar tocar nos quatro. Smith é quem provoca mais gritinhos. Dum-Dum, de longe, é o que dança com maior expressividade, traduzindo as letras num gestual felino. Seus braços e mãos viram armas, tiros, drogas. Suas pernas simulam chutes de policiais e de bandidos. Eduardo Taddeo canaliza toda a sua energia para a emissão dos versos que ele escreveu. A música que fez mais sucesso — cantada com vontade pela grande maioria da platéia — foi “Desculpa, Mãe”, do cd A Marcha Fúnebre Prossegue, de 2001. Sua execução foi antecedida por imagens que Fátima projetou nos telões: as de um filme em que um filho espanca a mãe quando constata que ela encontrou a droga que escondia em casa: TODO NATAL VOCÊ SOZINHA E EU NA BALADA BANCANDO VINHO, FARINHA PRAS MINAS DA QUEBRADA DESCULPA MÃE PELA DOR DE ME VER FUMANDO PEDRA PELA GLOCK NA GAVETA, PELO GAMBÉ PULANDO A JANELA

As minas e os manos deliram: idéia de mil grau, o bagulho é maluco, várias fita, firmeza no proceder, iiisshhh, tá pampa!

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ANEXO E - ENTREVISTAS

Prof. Francisco José Karam, em 1º de junho de 2007 1. É possível fazer Jornalismo Literário com Ética? Eu acho que sim, o jornalismo literário que sofreu um esvaziamento nos últimos anos, ele na verdade é tributário daquilo que se convencionou chamar o novo jornalismo, que são elementos da literatura aplicados ao jornalismo. Quer dizer, os elementos narrativos da literatura aplicados a uma metodologia e a um processo de apuração, a um processo de edição, um processo de narrativas próprias do jornalismo, com a sua técnica. Não está fora aí da aplicação de critérios éticos. Então o que seria esse jornalismo literário. A reconstituição do mundo real, não-ficcional, por meio de convivência com as fontes, uso de diálogos, de testemunhos e convivência com os fatos mais imediatamente, envolvimento por vezes emocional e uma descrição ambiental, emocional dos acontecimentos, uma descrição física dos personagens. Então nesse sentido se conta a história por meio do jornalismo, neste caso do jornalismo literário. Esse certo esvaziamento que ele sofreu em função da questão da otimização do espaço do jornal, do espaço midiático, que está muito ligado à questão da publicidade, questão do texto mais curto, questão da disponibilidade de tempo, a questão do ritmo social que produz muito mais informação, fatos e versões hoje. Então isso faz com que o Jornalismo Literário saísse pro lado da segmentação, quer dizer, alguns veículos, em alguns momentos apresentam um jornalismo com essas características, ou então veículos segmentados, especializados nessa área. Do que se extrai daí do ponto de vista da questão ética: quer dizer, as informações devem ser verossímeis, as fontes tem que ser reais, você tem que fazer uma descrição tão precisa quanto possível da realidade, mas criar elementos que possam envolver o leitor, ou com uma espécie de expectativa emocional, com a visão do ambiente em torno, dos aspectos emocionais. Então, do meu ponto de vista, os critérios são muito similares, isto é, tem que apurar bem, tem que investigar, tem que manter, ao mesmo tempo que um envolvimento, um certo distanciamento, fazer uma narrativa com um vocabulário, com elementos da literatura que encantem mais o leitor, que façam com que renda mais esta informação, que de outra forma, por exemplo, na notícia, seria mais curto. Então é uma reconstituição, quase como um conto, mas real do mundo. Tem que ter os métodos jornalísticos, tem que ter uma certa precisão, tem que ter uma integridade para isso, tem que ter credibilidade, tem que ter isso. 2. E a questão da subjetividade? O jornalismo literário é mais aplicado na questão da reportagem sim...(...) Então a subjetividade só existe se existir objetividade, porque não existe um valor sem bipolaridade, portanto não tem só subjetividade, como não tem só objetividade. Mas a subjetividade é o resultado também de um sujeito que reconhece objetos, portanto, das coisas que circulam no mundo e não qual ele atribui valor. Então quando reconstitui por meio da subjetividade o mundo real e se envolve inclusive emocionalmente se leva em conta também, por exemplo, um fator, um valor como o sofrimento, eu vou aderir a um determinado valor ou ser solidário com algumas questões sociais, vou trabalhar o sofrimento, vou trabalhar o mundo suburbano, sofrido, do desemprego, da miséria, da violência, da prostituição, da dor humana, mas eu vou trabalhar porque eu reconheço objetivamente que isso é um valor humano dado pelos humanos. Mas eu subjetivamente faço as escolhas. Quanto mais qualidade literária eu tiver para transformar isso num bom texto jornalístico melhor. Isso implica vocabulário, isso implica leitura, isso implica muita observação e muita sensibilidade, mas as duas coisas caminhando juntas. É claro que neste tipo de jornalismo a subjetividade dá margem a uma narrativa mais livre que depende muito da criatividade e mas, sobretudo, daquilo que o jornalista vai encontrar à sua frente, o mundo real. 3. No Brasil, há algum caso representativo como o de Janet Cooke? Tem alguns jornalistas que falsificam. Janet Cooke falsificou uma reportagem, quer dizer, ela contou uma história que não existiu, inspirando-se no mundo real. O Jason Blair, do New York Times,

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também. Isso é deplorável para o jornalismo, porque faz perder a credibilidade na história. Existem muitas histórias reais nas quais dá para se inspirar e fazer um bom jornalismo. João Moreira Salles, 25 de junho de 2007 1. De onde surgiu a idéia e o nome da revista? De uma idiossincrasia. Gosto de palavras com muitas vogais, e Piauí tem várias. O som é bonito. Parece banal, e talvez seja mesmo, mas a razão é essa. Vogais amolecem as palavras. Elas ficam mais simpáticas. Piauí é uma palavra simpática. 2. Que propostas, conceitos e valores norteiam a Piauí? Nada de tão sisudo assim. Não sei se temos “propostas, conceitos e valores”. É um pouco mais simples. Queremos fazer uma revista boa de ler, divertida, que dê tempo aos repórteres para apurar e escrever. Dizer mais do que isso vira teoria, e não somos bons disso. 3. Como se definem as pautas? Anarquicamente. Cabe tudo, de arqueologia a odontologia. Nenhuma obrigação, nenhuma pauta imprescindível. Não precisamos falar do Renan Calheiros, por exemplo, mas também não temos por que não falar dele. O que importa é que a história seja bem escrita e que o conjunto seja interessante: temas mais sérios ao lado de histórias em quadrinhos, brincadeiras tolas com matérias apuradas ao longo de meses, textos breves ao lado de textos longos. O segredo está nessa combinação de assuntos e tons. 4. Fale um pouco sobre a rotina de trabalho da redação Não existe reunião de pauta, as matérias vão surgindo informalmente, da conversa entre os repórteres e o diretor de redação. Somos muito poucos, dez passos e se chega a qualquer mesa. Nosso processo não tem nenhuma liturgia, nenhuma formalização. Também não temos editorias, o que nos desobriga a ter assuntos obrigatórios – política, esporte, economia, etc. No início do mês a redação fica relativamente vazia, e à medida que o mês avança, as pessoas vão ocupando as suas mesas para escrever as matérias. 5. Qual o critério da Piauí para assinar matérias? Por que os textos de Esquinas não são assinados? Chegada, despedida e esquinas não são assinadas por que, digamos assim, representam o tom da revista. Como nossos textos são muito autorais, ou seja, como não buscamos a padronização, é bom que a revista comece de forma mais serena, mais homogênea. 6. A Piauí recusa de modo evidente a agenda imposta pelos grandes veículos de imprensa. Por quê? Porque os temas do noticiário já estão sendo tratados pelo noticiário. Não haveria sentido em criar mais uma revista para cobrir as mesmíssimas histórias. Isso não significa que estejamos despregados do país. Cobrimos assuntos que interessam – mas sem pressa, publicando meses depois, ou de forma diferente. Exemplos: perfil do Luiz César Fernandes, esquina do Roberto Jefferson, matéria da moda, e assim por diante. 7. Como se dá o processo de criação das capas de Piauí?

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A capa é considerada conteúdo editorial. Ou seja, é a primeira informação que o leitor encontra sobre o espírito da revista. Nem sempre (ou quase nunca) tem relação com as matérias que estão lá dentro. A arte propõe alternativas, todo mundo opina e o diretor de redação tem a palavra final. 8. De que maneira os textos da revista são influenciados pelo estilo conhecido por Jornalismo Literário? Essa eu pulo, pela simples razão de que não sei o que significa jornalismo literário. Acho que existem textos bem ou mal escritos, e só. 9. Nestes primeiros meses, como tem sido o interesse do mercado publicitário pela revista? Cauteloso, o que é compreensível. Não somos uma revista de nicho, ou seja, não falamos com um público específico – adolescentes, fumadores de cachimbo, amantes do cinema asiático. O anunciante tem dificuldade em identificar o leitor da piauí. Na verdade, nós também temos. Ele está espalhado por todas as faixas etárias e de renda. Com o tempo, esperamos que o mercado publicitário decida que é bacana anunciar na piauí porque a revista reúne uma fatia da população que lhe interessa. Isso leva tempo para acontecer. 10. Que tipo de público pretende-se alcançar com a Piauí, visto que os textos são mais aprofundados, exigem tempo e inteligência de seus leitores? Acho que essa é uma percepção errada do conteúdo da revista. É claro que apostamos na inteligência do leitor, mas isso não é privilégio nosso – toda revista que se preza não pode menosprezar quem a lê. O erro é supor que todos os textos exigem atenção redobrada, como se publicássemos ensaios de filosofia alemã. Alguns textos são mais longos, é verdade, mas muitos não passam de uma página, às vezes de meia-página, às vezes, como no caso das esquinas, não passam de uma coluna. A regra da piauí é: os textos terão sempre o espaço que precisam ter. Histórias que precisam ser contadas em seis páginas não serão contadas em cinco. E histórias que podem ser contadas em três colunas não serão contadas em uma página. 11. Quais as principais críticas — positivas e negativas — que tem recebido com relação à revista? Positivas: as pessoas gostam da novidade, se divertem com uma revista que não se leva tão a sério assim. Negativas: dificuldade de entender para que serve a revista. Adianto logo: não adianta para muita coisa não. Assim como um filme não adianta para nada, uma escultura não adianta para nada, um jogo de futebol não adianta para nada. Raquel Zangrandi, 6 de agosto de 2007 1. Qual é o tipo de papel da revista? O papel é o pólen soft, gramatura 70 no miolo e 90 na capa. 2. A Piauí circula por todo o país? Sim, ela chega às bancas de todo o Brasil, e o sistema de assinaturas também. 3. Pode-se dizer que a Piauí tem seções fixas? Temos as seguintes seções fixas: índice, chegada, colaboradores, esquina, diário, poesia, quadrinhos, ficção (nem sempre vem com esse nome), portfolio, horóscopo, cartas & concurso e despedida.

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Geralmente, mas não sempre, tem um dossiê sobre um tema específico. Isso varia muito, assim como os nomes das seções flutuantes: tipos brasileiros, o que aprendi, vida urbana, teatro. Não há um padrão preestabelecido para nomear as seções avulsas. O mote geralmente (quando o assunto permite) é dar um toque de humor nos nomes das seções, como: turnê gangsta, dossiê tortura & maus-tratos, questões vernáculas, ora, bolas, grandes figuras do mundo animal, conto de fadas, subterrâneos do rock, o pensamento hídrico, questões físico-químicas, cidades & rincões, vultos das finanças, rock & adjacências, pesos e medidas, dialética do pop, metafísica, tribuna livre da luta de classes, criações diabólicas, etc, etc. 4. Qual é o número de assinantes, de exemplares vendidos e quantas páginas são ocupadas por publicidade? O departamento comercial pode dizer que temos 16.200 assinantes, 20.259 exemplares vendidos avulsos (bancas,revistarias e livrarias) e temos 23 páginas de anúncios em média, por edição.

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APÊNDICE

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APÊNDICE A

Euclides da Cunha e o Jornalismo Literário: Reflexões sobre a produção de novas narrativas reais29

Rodolfo Tiengo Fernandes

O Conselheiro continuou sem tropeços na missão pervertedora, avultando na imaginação popular. Apareciam as primeiras lendas. Não as arquivaremos todas. Fundou o arraial do Bom Jesus; e contam as gentes assombradas que em certa ocasião, quando se construía a belíssima igreja que lá está, esforçando-se debalde dez operários por erguerem pesado baldrame, o predestinado trepou sobre o madeiro e ordenou, em seguida, que dous homens apenas o levantem; e o que não haviam conseguido tantos, realizaram os dous, rapidamente, sem esforço algum.... (CUNHA, 1981, p.118-119)30

A nova conjuntura estabelecida no início do século 21, em que a profusão de mídias

eletrônicas facilita a propagação dos fatos quase que instantaneamente, pede um renovado direcionamento para o jornalismo, especialmente nos veículos impressos. Tomando por base Euclides da Cunha e sua obra, faz-se neste trabalho uma breve discussão sobre as novas narrativas de não-ficção, enquadradas no Jornalismo Literário.

Hoje se vive um momento em que as pessoas, de um modo geral, têm a impressão de estarem bem informadas. Somos atingidos diariamente por uma centena de notícias. A televisão e a internet cumprem agora o papel que um dia foi dos jornais no passado — o de contar as novidades. Atualmente, o fato em si é noticiado tão logo aconteça, basta que se acesse um site ou que se assista a um boletim televisivo. Entretanto, vê-se que todo esse arsenal midiático é um verdadeiro mosaico de dados que, a priori, não são interligados; a agenda noticiosa cotidiana não enseja as reflexões maiores da humanidade, apesar de tê-las sempre em mãos, a todo o momento no próprio noticiário (meio ambiente, intolerância religiosa, miséria etc).

Por meio das agências informativas espalhadas pelo mundo, fica-se sabendo diariamente de atrocidades, atentados terroristas e todo tipo de crime contra a condição humana — de um modo frio e assustadoramente natural. Os consumidores desta produção se acostumaram a isso, o impacto inexiste, já que o próprio produto jornalístico provocou esse processo de anestesia. Enquanto isso, o jornalismo impresso convencional, enfraquecido ante a modernidade tecnológica, tenta se adaptar à nova condição. Muitos ainda não se deram conta de que é preciso romper as barreiras do lead — as seis perguntas clássicas do jornalismo — para assegurar a verdadeira função da mídia de papel, que é inserir novas possibilidades narrativas, relatos de histórias de vida inusitadas, contextualizando e sensibilizando os leitores.

Nesse cenário, em que as notícias (pseudo) informam — e o senso comum profissional comumente acha isso o suficiente —, em meio à busca por um padrão jornalístico que enfatiza a objetividade, urge a contextualização dos acontecimentos e a busca por novas vozes, perante as versões oficiais que somente retratam visões limitadas das problemáticas sociais. “O jornalista pós-moderno precisa pensar em sua função de instrumento-leitor da

29 Publicado pelo autor no Jornal Democrata, Suplemento Euclidiano, em 4 de agosto de 2007. 30 CUNHA, Euclides da. Os Sertões: Campanha de Canudos. 30.ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981.

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realidade em bases amplificadas, sintonizadas no ser humano. Para isso, é necessário embasamento social e estético”. (VICCHIATTI, 2005, p.12)31

O Jornalismo Literário aparece como uma alternativa conceitual e prática a tudo isso. Com diversos representantes ao longo dos últimos duzentos anos, sua principal experiência aconteceu nos EUA, entre as décadas de 1940 e 1960, com John Hersey, Ernest Hemingway, Gay Talese, Truman Capote entre tantos outros adeptos do então denominado New Journalism. Surge como uma proposta que procura solucionar o esgotamento das matérias de profundidade e almeja conferir atemporalidade e relevância perene às grandes reportagens.

Há ainda outras conceituações sobre o tema. Muitos consideram o JL uma tarefa editorial do periodismo que consiste em publicar resenhas de livros, contos de ficção e críticas literárias. No entanto, a definição aqui abordada refere-se à aplicação de recursos da literatura nos próprios textos jornalísticos, tendo ainda o compromisso com a verdade dos fatos. Também chamado de literatura de realidade, pode ser considerado, portanto, uma:

Modalidade de prática da reportagem de profundidade e do ensaio jornalístico utilizando recursos de observação e redação originários da (ou inspirados pela) literatura. Traços básicos: imersão do repórter na realidade, voz autoral, estilo, precisão de dados e informações, uso de símbolos (inclusive metáforas), digressão e humanização. Modalidade conhecida também como Jornalismo Narrativo.32

Euclides da Cunha é citado por muitos como o precursor do Jornalismo Literário no Brasil. O professor Edvaldo Pereira Lima, um dos principais estudiosos sobre o assunto, afirma:

Primeiro, é importante frisar que, historicamente, o Jornalismo Literário começou realmente a crescer a partir de narrativas de guerras. Pelo menos no mundo europeu, ou anglo-saxão, as primeiras matérias que apareceram com características próximas ao que se entende hoje como Jornalismo Literário foram de correspondentes de guerra. (...) No caso brasileiro, temos "Os Sertões", de Euclides da Cunha, sobre a Guerra de Canudos, que nasce de reportagens que ele envia para o "Estadão" como correspondente de guerra. É considerado algo assim como o avô do Jornalismo Literário no Brasil.33

Sua obra maior, Os Sertões, reconhecida pelo primor literário e científico, foi

concebida para cumprir um papel noticioso e testemunhal único. O engenheiro, que foi a Canudos (Bahia) como correspondente do jornal Estado de S.Paulo, tinha um compromisso maior com a verdade que iria verificar. Tal posicionamento é ratificado em carta que ele enviou ao respeitado crítico literário, o paranaense José Veríssimo.

Repito: não me preocupo com o destino literário daquele livro que é, afinal, um desgarrão na rota da minha engenharia rude; ele tem o mérito único da sinceridade; é o depoimento de uma testemunha e terá extraordinário valor se conseguir fornecer a

31 VICCHIATTI, Carlos Alberto. Jornalismo: comunicação, literatura e compromisso social. São Paulo: Paulus, 2005. 32 Disponível em http://www.textovivo.com.br. Acesso em 4 de agosto de 2007. 33 KUNSCH, Dimas A. Jornalismo transformativo (um diálogo com Edvaldo Pereira Lima). Disponível em http://www.textovivo.com.br. Acesso em 4 de agosto de 2007.

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futuros historiadores uma página única — mas verídica e clara (CUNHA, 24. dez. 1901)34

O engenheiro natural de Cantagalo (RJ), que por três anos viveu em São José do Rio Pardo, período em que finalizou sua obra-prima, conseguiu converter, em um ensaio de natureza multifacetada, todo seu potencial de pesquisa e apuração, direcionado às tarefas jornalísticas a que se propusera antes de viajar para o sertão. As grandes reportagens de Euclides sobre a Guerra de Canudos, em 1897, — coligidas e readaptadas para seu livro publicado no final de 1902 — tornaram-se referência para as ciências, como a antropologia social, a geografia e a geologia, e para a literatura. Um dos primeiros comentários, quando da publicação d’Os Sertões, foi de José Veríssimo.

O livro, por tantos títulos notável, do Sr. Euclides da Cunha, é ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da natureza como ao contato do homem(...).35

Há os que acreditam, entretanto, que a linguagem euclidiana é incompatível com o jornalismo atual, o qual precisaria ser mais objetivo e simples para atender maior público. O jornalista Paulo Francis critica a aplicação do estilo de Euclides da Cunha.

Infelizmente também, um dos nossos dois grandes escritores, Euclydes da Cunha, é empolado, o que de certa forma ratifica o culto da obscuridade na nossa linguagem, porque pessoas sem o gênio de Euclydes, único na nossa história, tentam copiar-lhe a má forma, porque imaginam assim estar avançando para profundezas do pensamento, quando na verdade escrevem apenas mal. Tem de haver uma linguagem comum. (SILVA, 1991, p.109)36

Todavia, como já foi comentado no início do texto, o nosso tempo exige que o

jornalismo impresso remodele suas formas cristalizadas, que sejam repensados seus procedimentos de apuração e redação, para que não seja jugulado pelas novas mídias audiovisuais. Não basta mais ser simplesmente objetivo. É preciso saber incorporar a subjetividade humana, o imaginário coletivo, o poder de percepção de outras pessoas. A realidade é demasiado complexa para ser retratada por aquilo que somente o lead responde — “quê, “como”, “quando”, “onde”, “por quê” e “quem”. É inerentemente caótica, o que impede que apenas sejam validadas as afirmações de autoridades e representantes das elites, enquanto pessoas de outros círculos sociais são excluídas do espaço dialógico.

Deixar de lado a obra de Euclides da Cunha, como fonte de influência para as novas narrativas, é o mesmo que jogar fora valiosa herança. O livro Os Sertões representa a confluência dos mais importantes procedimentos jornalísticos com a primazia literária. O jornalista construiu sua narrativa e suas aprofundadas descrições tendo a realidade como seu objeto de análise, sem malversar.

De levar-se em consideração que em Euclides, como nos grandes autores, o aspecto final da forma é antes orgânico do que mecânico. Ou em outras palavras: o aspecto

34 Carta de Euclides da Cunha a José Veríssimo. 1º de dezembro de 2002. Caderno Mais!, Folha de S.Paulo, 24 páginas. 35 VERÍSSIMO, José. Uma história dos sertões e da Campanha de Canudos. apud MILWARD, Vivianne Milward Azevedo. A viagem narrativa de Os Sertões: o desgastar de um corpo. p.12. Disponível em http://www.catjorgedesena.hpg.ig.com.br/html/textos/vivianne_azevedo.pdf. Acesso em 19 de março de 2007. 36 SILVA, Carlos Eduardo Lins da. O adiantado da hora: a influência americana sobre o jornalismo brasileiro. São Paulo: Summus, 1991.

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mecânico da forma nada mais seria do que o uso dos recursos expressivos preexistentes ao escritor, com os quais ele manifestaria suas intuições, como se fosse um molde em que depositasse o conteúdo de sua imaginação. Diferentemente, a forma orgânica seria aquela que emergisse do próprio conteúdo, inerente à matéria que se quisesse exprimir. Na primeira hipótese, a forma pode não se adequar perfeitamente ao significado que nela se inscreve; na segunda, opera-se a perfeita interação da forma e das intuições que reveste, gerando uma harmonia plena de modo que nada pudesse ser mudado na forma sem alterar a substância que nela se corporificaria. (LAURIA, 1987, p.26)37

Dentro dessa possibilidade de aliar a estética com a informação, o poético com o referencial, está o novo caminho do Jornalismo Literário. A combinação entre a literatura (com figuras de linguagem, adjetivação, transmutação do tempo narrativo e valorização das personagens) e jornalismo (compromissado com a verdade dos fatos que apura, exatidão e ética) cria um espaço dentro da grande reportagem apto a abrigar um entendimento mais aprofundado do real, através do ser humano colocado no centro das atenções; os fatos não devem, pois, serem mais importantes que seus atores; falas espontâneas, gestos e hábitos muitas vezes dizem por si só o inexplicável — o que jamais uma notícia convencional irá fazer.

É preciso reconhecer que, quando uma pessoa está ocasionalmente diante de um espaço aberto à sua opinião, não se vale somente do conjunto de idéias consideradas reais pela sociedade. Ela se inspira na sua própria visão a respeito das coisas e transforma sua fala em representação oral de sua subjetividade. “O homem comum, diante da instabilidade da vida, vale-se de sua capacidade de imaginar outra história e, por isso, sonha, fabula, cria metáforas em lugar de descrever, com rigor e precisão, os fenômenos conhecidos”. (MEDINA, 2003, p.58)38

Em Os Sertões, por exemplo, para dar consistência à reportagem de imersão, o narrador Euclides vai aos poucos perdendo seus preconceitos. Ele foi a Canudos com idéias equivocadas acerca de sua pauta. Considerava, do âmbito positivista, a população nordestina despreparada para a civilização, e, do ponto de vista republicano, Canudos como um foco de resistência monarquista — como chegou a comparar à Vendéia, na França. Euclides imerge então diretamente na cultura de um povo que desconhece; entra em contato com suas tradições e contradições locais; e com seu ideário simbólico mais representativo, na figura de Antônio Conselheiro.

Segundo Roberto Ventura, Euclides da Cunha “construiu com base nas profecias e nos poemas recolhidos em Canudos um modelo interpretativo para dar conta das relações e conflitos entre a sua cultura, letrada e urbana, e a cultura oral sertaneja, marcada por mitos messiânicos e pela tradição católica”. (VENTURA, 2002) 39.

Uma nova filosofia do Jornalismo, em construção, deve incorporar os métodos de apuração de Euclides da Cunha, seu olhar atento aos detalhes e às cenas transcorridas. São necessários escritores com a mesma disposição nos dias atuais para denunciar a opressão humana, com dramaticidade e mergulho estilístico na medida certa; para contextualizar, desmentir preconceitos — inclusive quando estes são dos próprios jornalistas —, levar o leitor ao estado de espírito em que se sensibilize com a dor humana, de modo que não fique mais reticente ao tomar conhecimento das coisas.

37 LAURIA, Márcio José. Ensaios Euclidianos. Rio de Janeiro: Presença, 1987. 38 MEDINA, Cremilda. A arte de tecer o presente: narrativa e cotidiano. São Paulo: Summus, 2003. 39 VENTURA, Roberto (1º dez. 2002). Euclides Conselheiro da Cunha. Caderno Mais!, Folha de S.Paulo, 24 páginas.

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Euclides fez isso com propriedade um século antes. Fazendo jornalismo, ao seu modo ensaístico, desvelou dos pontos de vista geográfico, étnico, antropológico e literário o crime no sertão da Bahia, no fim do século 19, quando o Estado, em nome de interesses e míopes ideais políticos, provocou um dos piores massacres da história e causou um estigma à dignidade de gente sofrida.

Diante da publicação d’Os Sertões, parte da sociedade escandalizou. Um grande alerta ao menos foi dado para que o erro não se repetisse. A permanência do livro foi garantida por qualidades e idiossincrasias, as quais foram — e são — incansavelmente discutidas por uma sorte sem fim de pesquisadores das mais diversas formas do entendimento científico e artístico, além de ter sido traduzida para dezenas de idiomas. Perenidade maior que essa, objetivada pela utopia da nova narrativa de não-ficção, somente se vê em grandes obras como Os Lusíadas e Ilíada.

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