minorias, lugar de fala e direito à comunicação na mídia

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Minorias, lugar de fala e direito à comunicação na mídia: entre o ativismo pela cidadania e a mercadorização de pautas sociais Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 52, e-104996, 2021. DOI: http://dx.doi.org/10.19132/1807-8583202152.104996 1 Minorias, lugar de fala e direito à comunicação na mídia: entre o ativismo pela cidadania e a mercadorização de pautas sociais Chalini Torquato Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Rio de Janeiro, RJ, Brasil ORCID: http://orcid.org/0000-0003-2021-7795 Resumo A diversidade tem se tornado pauta cada vez mais recorrente nos conteúdos apresentados pelas mídias massivas. Na tentativa de avançar numa observação crítica deste debate, busca-se indagar: estariam finalmente as pautas sociais de grupos minoritários encontrando eco na produção televisiva brasileira, ou seria este fenômeno nada mais do que mais uma apropriação desses temas como parte do processo de ‘mercadorização’ já tão conhecido pela literatura da Economia Política da Comunicação e da Cultura? Para responder a essa questão, o artigo parte de uma revisão bibliográfica sobre mídia, diversidade, valores democráticos e as lutas identitárias contemporâneas. Explana-se, em seguida, as lógicas estratégicas do mercado de TV privada para, então, se discutir exemplos práticos contemporâneos de representatividade não-normativa na TV, trazidos por outras pesquisas, que apontam a necessidade de se refletir sobre quem constrói essas narrativas. Constata-se a propensão que a lógica de mercado tem em se apropriar dos movimentos que deveriam ser contra- hegemônicos. Palavras-chave Diversidade. Minorias. Televisão. Mercado de TV. Lugar de fala. 1 Introdução Há muito se fala da necessidade de rever a regulamentação da televisão brasileira na busca de um modelo midiático mais democrático e inclusivo. Décadas de pesquisas na área e de militância dos movimentos em prol democratização da mídia trouxeram grandes

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Minorias, lugar de fala e direito à comunicação na mídia: entre o ativismo pela cidadania e a mercadorização de pautas sociais

Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 52, e-104996, 2021. DOI: http://dx.doi.org/10.19132/1807-8583202152.104996

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Minorias, lugar de fala e direito à comunicação na mídia: entre o ativismo pela cidadania e a mercadorização de pautas sociais

Chalini Torquato Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Rio de Janeiro, RJ, Brasil ORCID: http://orcid.org/0000-0003-2021-7795

Resumo

A diversidade tem se tornado pauta cada vez mais recorrente nos conteúdos apresentados pelas mídias massivas. Na tentativa de avançar numa observação crítica deste debate, busca-se indagar: estariam finalmente as pautas sociais de grupos minoritários encontrando eco na produção televisiva brasileira, ou seria este fenômeno nada mais do que mais uma apropriação desses temas como parte do processo de ‘mercadorização’ já tão conhecido pela literatura da Economia Política da Comunicação e da Cultura? Para responder a essa questão, o artigo parte de uma revisão bibliográfica sobre mídia, diversidade, valores democráticos e as lutas identitárias contemporâneas. Explana-se, em seguida, as lógicas estratégicas do mercado de TV privada para, então, se discutir exemplos práticos contemporâneos de representatividade não-normativa na TV, trazidos por outras pesquisas, que apontam a necessidade de se refletir sobre quem constrói essas narrativas. Constata-se a propensão que a lógica de mercado tem em se apropriar dos movimentos que deveriam ser contra-hegemônicos.

Palavras-chave

Diversidade. Minorias. Televisão. Mercado de TV. Lugar de fala.

1 Introdução Há muito se fala da necessidade de rever a regulamentação da televisão brasileira na

busca de um modelo midiático mais democrático e inclusivo. Décadas de pesquisas na área e

de militância dos movimentos em prol democratização da mídia trouxeram grandes

Minorias, lugar de fala e direito à comunicação na mídia: entre o ativismo pela cidadania e a mercadorização de pautas sociais

Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 52, e-104996, 2021. DOI: http://dx.doi.org/10.19132/1807-8583202152.104996

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contribuições para a percepção sobre a defasagem da estrutura midiática brasileira,

especialmente no que se refere ao setor de TV aberta, majoritariamente controlado pela

iniciativa privada, num modelo concentrado e incapaz de promover o crescimento

sustentável de conteúdos públicos e alternativos. Pelo contrário, historicamente temos visto

a perseguição e o esvaziamento desses modelos diante do público enquanto, paralelamente,

a regulação ineficiente do setor se torna uma condição problemática crônica, refletindo

complexas relações clientelistas, e sendo a reprodutora fundamental de uma mídia que

tradicionalmente privilegia determinados pontos de vista em detrimento de outros

(TORQUATO, 2014).

Grupos sociais excluídos da produção de conteúdo na mídia tradicional, no entanto,

têm fortalecido sua luta por reconhecimento, especialmente apropriando-se de ferramentas

de comunicação online. Os movimentos ativistas, como os feministas, LGBT e negro, por

exemplo, tem construído formas de questionar privilégios hegemônicos sobre

representações normativas de mundo e disputá-las. Embora não se tratem de movimentos

novos, eles se reorganizam, especialmente no ambiente digital, encontrando adeptos e

fortalecendo-se na crítica aos conteúdos midiáticos diante da opinião pública (CARROL;

HACKETT, 2006). Se essa lógica já encontrava adesão em públicos segmentados, atualmente

é relevante notar a incorporação do conteúdo de diversidade também na TV aberta para um

público muito mais amplo e generalista, nos termos de Herreros (2004).

O fortalecimento desses sujeitos autônomos tem trazido para ampla discussão

conceitos como lugar de fala (RIBEIRO, 2017), também podendo dialogar com a noção de

autoridade da experiência trazido por bell hooks (2017), que aqui propomos debate com o

conceito de direito à comunicação (FISCHER, 1984; UNESCO, 1980).

Na tentativa, portanto, de realizar uma aproximação critica desse fenômeno que tem

ganhado notoriedade atualmente, busca-se indagar: estariam finalmente as pautas sociais

de grupos minoritários encontrando eco na produção televisiva brasileira, ou seria este

fenômeno nada mais do que mais uma apropriação desses temas como parte do processo de

“mercadorização” (MOSCO, 2009) já tão conhecido pela literatura da Economia Política da

Comunicação e da Cultura?

Para responder a essa questão, este artigo parte de uma revisão bibliográfica que

contempla mídia, diversidade e valores democráticos e as lutas identitárias

contemporâneas. Em princípio se discute as noções conceituais basilares de minorias, lugar

de fala e direito à comunicação. Mais adiante, discorre-se sobre a lógica e as orientações

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principais do mercado de TV privada, no que tange formação de audiência para, em seguida,

se discutir exemplos contemporâneos de representatividade na TV. Para isso, são trazidas

pesquisas baseadas em exemplos conhecidos na TV aberta brasileira, no sentido de refletir

se eles estão de fato contribuindo para um avanço social na relação com respeito à

diversidade de outras formas de vivência não-normativas.

2 Minorias, Lugar de fala e Direito à comunicação O termo minorias tem sido comumente empregado pelo ativismo de grupos

excluídos, sendo frequentemente questionado pelo seu caráter quantitativo que, em tese,

não se comprovaria numericamente na realidade brasileira em se tratando, por exemplo, de

mulheres ou negros e pardos. De acordo com Debra Merskin (2011), este termo não se

refere a uma designação numérica, mas sim a indivíduos que possuem a minoria do poder

em uma sociedade.

Em última análise, um questionamento mais literal sobre o termo poderia

argumentar que um aspecto quantitativo pode ser sustentado na medida em que se

considere espaços de inclusão e privilégios. Ou seja, estruturalmente, a sociedade entende

com naturalidade que existam espaços como sendo de domínio predominante de

determinados grupos sociais, como esferas institucionais de representação, altos cargos

administrativos de empresas, espaços privilegiados seja no acesso ao consumo, seja no

acesso à conhecimento, como universidades, instituições de pesquisa, galerias, produção de

informações como empresas de mídia, jornalismo e cinema.

De tal maneira, é possível perceber minoria como um termo que se refere a grupos

sociais que estão pouco ou nada presentes em espaços de poder e privilégios, sendo assim

privados não somente de aprimorar seu desenvolvimento individual, como também

excluídos da participação na produção coletiva de recursos e conhecimento, ou até mesmo

do acesso à direitos básicos. Por Muniz Sodré (2005), a minoria é entendida como uma

recusa ao consentimento normativo, “uma voz de dissenso em busca de uma abertura

contra-hegemônica no círculo fechado das determinações societárias” (SODRÉ, 2005, p. 14).

No que diz respeito à Comunicação, isso se reflete também na dificuldade de acesso à

recursos, como educação para a mídia e tecnologias para produção de conteúdo, do mesmo

modo que define quem são os proprietários das empresas midiáticas, os editores-chefe, os

diretores, os autores de novela, os jornalistas, os especialistas em economia, política,

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cultura, os formadores de opinião, etc., ou seja, quem de fato determina o conteúdo e a quem

fica relegado apenas tarefas técnicas operacionais (MERSKIN, 2011; MOSCO, 2009), isso

quando não ficam relegados ao papel passivo de audiência, configurando um silenciamento

estrutural.

No sentido de romper a lógica essa exclusão em lugares de privilégio, reforça-se a

noção conceitual, muito trazida pelo feminismo negro, de lugar de fala:

As experiências desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e não humanizada faz com que as produções intelectuais, saberes e vozes, sejam tratadas de modo igualmente subalternizado, além das condições sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente. Isso, de forma alguma, significa que esses grupos não criam ferramentas para enfrentar esses silêncios institucionais, ao contrário, existem várias formas de organização políticas, culturais e intelectuais. A questão é que essas condições sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produções [...] não poder acessar certos espaços, acarreta em não se ter produções e epistemologias desses grupos nesses espaços; não poder estar de forma justa nas universidades, meios de comunicação, política institucional, por exemplo, impossibilita que as vozes dos indivíduos desses grupos sejam catalogadas, ouvidas, inclusive até de quem tem mais acesso à internet. O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir. Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequentemente da hierarquia social. (RIBEIRO, 2017, p. 64).

De tal modo, ser capaz de produzir conteúdo, reivindicando o protagonismo de suas

narrativas é também uma forma de existir socialmente, rompendo o silenciamento

naturalizado pela normatividade hegemônica.

Quando falamos da questão do protagonismo, sempre vem alguém dizer: ‘Qualquer um pode falar de pressões, não precisa ser negro para apoiar a luta’. Não precisa mesmo, e é dever dos não negros se conscientizar e lutar contra opressões. Mas o que muitos não entendem é que são eles que têm falado sobre nós ao longo do tempo [...] Se pessoas brancas continuarem falando sobre pessoas negras, não vamos mudar a estrutura de opressão que já confere esses privilégios aos brancos. Nós negras e negros, seguiremos apartados dos espaços de poder. E nossa luta existe justamente por causa dessa separação (RIBEIRO, 2017, p. 82-83).

Reivindicar esse protagonismo faz parte, portanto, do rompimento com a lógica de

silenciamento do subalterno a quem tem sido negado fala, nos termos de Spivak (2010), ou

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seja, uma potencialização da escuta de outras vozes, colocadas historicamente em

subalternidade.

bell hooks (2017) contribui com esse debate a partir do que chama de “autoridade

da experiência”:

Há anos, fiquei grata ao descobrir a expressão ‘autoridade da experiência’ nos escritos feministas, pois ela me permitiu dar nome a algo que eu introduzia nas aulas feministas, algo que eu sentia falta mas considerava importante. Como aluna de graduação em salas de aula feministas onde a experiência de mulher era universalizada, eu sabia, por causa da minha experiência de mulher negra, que a realidade de mulheres negras estava sendo excluída. Falava a partir desse conhecimento. Não havia corpo teórico que eu pudesse invocar para comprovar essa alegação. Naquela época, ninguém queria ouvir falar de desconstrução da mulher como categoria de análise. A insistência no valor da minha experiência foi crucial para que eu ganhasse ouvintes [...] (HOOKS, 2017, p. 121).

Há, portanto, uma relevância considerável para a experiência na problematização e

percepção de fenômenos sociais, oferecendo uma complexidade a ser equacionada com uma

crítica ao essencialismo, segundo a autora. As vivências sociais podem agregar

conhecimento, mas não devem ser usadas para reforçar o silenciamento de grupos

subalternos que não as experimentaram. Para hooks (2017) a experiência deve ser

entendida como uma informação que deve coexistir de maneira não hierárquica com outros

modos de conhecer, incrementando o aprendizado.

Por esta visão, torna-se relevante perceber o potencial agregador destas

perspectivas conceituais complementares, especialmente no que toca a subversão da lógica

colonialista de produção de informação e de conhecimento. Chimamanda Ngozi Adichie

(2009) nos alerta sobre o perigo da história única, contada pelo mesmo grupo social,

distorcendo as perspectivas coletivas sobre alteridades. Quando o subalterno fala, por

conseguinte, rompe com a voz única tida como universal, calcada numa neutralidade

tecnicista, que se autoriza como especialista de todos os temas. “É necessário escutar por

parte de quem sempre foi autorizado a falar ”. (RIBEIRO, 2017, p. 78).

A fala e a escuta são as necessárias faces da moeda trazidas também pela defesa da

comunicação como um direito humano. O direito à comunicação, assim como as noções

conceituais apresentadas, pressupõe o espaço de escuta para o que é comunicado pela

subalternidade, como parte de seus valores fundamentais do diálogo na troca de

informação.

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Hoje em dia se considera que a comunicação é um aspecto dos direitos humanos. Mas esse direito é cada vez mais concebido como o direito de comunicar, passando-se por cima do direito de receber comunicação ou de ser informado. Acredita-se que a comunicação seja um processo bidirecional, cujos participantes – individuais ou coletivos – mantém um diálogo democrático e equilibrado. Essa ideia de diálogo, contraposta à de monólogo, é a própria base de muitas das ideias atuais que levam ao reconhecimento de novos direitos humanos. (UNESCO, 1980, p. 300).

A noção de direito à comunicação é mencionada em 1969, quando Jean D´Arcy

criticava a insuficiência do artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, relativo

a liberdade de expressão, observando que um novo direito, mais amplo, como o de

comunicar, deveria ser reconhecido como fundamental (FISCHER, 1984). O desdobramento

dessas discussões, entre os anos 60 e 70, repercutiu na publicação pela Organização das

Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 1980), do documento Um

mundo e muitas vozes: comunicação e informação na nossa época, resultado de uma comissão

que problematizou o papel da comunicação para o fortalecimento da democracia.

O relatório MacBride, como passaria a ser chamado, consiste numa crítica ao fluxo

unidirecional da informação, resultado da transnacionalização e da concentração da

indústria de comunicação. Trata-se do primeiro documento da ONU a entender a

necessidade de conferir à comunicação o status de direito humano, incorporando-a a

discussão da Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (NOMIC) e em suas

metas: mais justiça, mais igualdade, mais reciprocidade na troca de informação, menos

dependência das redes de comunicação, mais autoconfiança e identidade cultural (UNESCO,

1980).

Entendendo a sociedade como uma estrutura complexa configurada por relações de

poder, o direito à comunicação oferece um deslocamento analítico fundamental para as

pesquisas da área, passando a entender que a democratização da comunicação só poderia

ser garantida pela presença de políticas regulatórias.

O direito à comunicação se distingue dos tradicionais direitos e liberdades individuais a ele associados – e.g. direito à informação, liberdade de expressão – por possuir uma forte dimensão coletiva e por se caracterizar também como um verdadeiro direito social, cujo reconhecimento implica no dever do Estado de criar os pressupostos materiais para seu efetivo exercício e na faculdade do cidadão de exigir as prestações constitutivas desse direito. (WIMMER, 2008, p. 147, grifo da autora).

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Assim, criticando a liberdade de expressão em seu aspecto individualista, o discurso

do direito à comunicação traria uma proposta percebida como coletiva, propondo-se não a

suprimir esta liberdade, mas a ampliá-la. Ao contrário, então, do que é sustentado pelo

discurso liberal, que entende qualquer tipo de intervenção do Estado como ameaçadora, a

regulação aqui é vista como fundamental, sendo defendida justamente para orientar

medidas capazes de promover uma maior pluralidade de discursos (TORQUATO, 2014).

Essa radicalização da liberdade de expressão para todos, pensando-se numa abertura de

oportunidade mais equitativa para os diversos grupos, trazida pela proposta do direito à

comunicação, é algo que a lógica do mercado por si só, ao menos na experiência latino-

americana, não foi capaz de garantir.

O empoderamento e a inclusão do cidadão são também elementos primordiais do

direito à comunicação. De acordo com Philip Lee (1995):

O direito à comunicação é um ideal que visa capacitar as pessoas a participar ativamente na busca de soluções para os problemas de desenvolvimento, como percebido e definido por eles. Significa tornar disponíveis para as pessoas os meios necessários que lhes permitam estabelecer um diálogo em pé de igualdade. (LEE, 1995, p. 6, tradução nossa).1

Assim, a defesa do direito humano à comunicação pressupõe o acesso à mídia

expandido a todos os grupos sociais, a participação social na produção de conhecimento e

informação, e o desenvolvimento do indivíduo e da humanidade.

Neste sentido, entende-se que as noções de direito à comunicação, autoridade da

experiência e lugar de fala tem muito a acrescentar um ao outro no avanço da pesquisa

sobre mídia e sobre os processos estruturais de silenciamento de minorias. Dando

seguimento a esse debate, é necessário entender a televisão em sua perspectiva

mercadológica, especialmente quando é fortemente concentrada na iniciativa privada, como

é o caso do Brasil.

1 No original: The right to communicate is an ideal that seeks to empower people to participate actively in the search for

solutions to problems of development as perceived and defined by them. It means making available to the people the necessary facilities that will enable them to engage in dialogue on an equal footing.

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3 Mercado de TV

Para entender a lógica orientadora do mercado de TV, é importante resgatar o

quanto a valorização comercial no setor televisivo consolidou-se ao redor do mundo

impulsionada por uma correlação de interesses: a necessidade de financiamento dos

veículos, o crescimento do setor industrial e do mercado publicitário, buscando alcançar

consumidores em audiências massivas. De tal modo, esses índices tornam-se cada vez mais

determinantes de estratégias de rentabilidade das indústrias de televisão.

A renda dessas redes depende da venda de espaço publicitário. [...] As empresas de televisão utilizam estatísticas colhidas regularmente (índices de audiência) que indicam quantas pessoas assistem a programas específicos para determinar o valor das taxas publicitarias. Esses índices, é claro, também exercem forte influência nas decisões que envolvem a escolha dos programas que devem continuar a ser exibidos. (GIDDENS, 2004, p. 368).

São oriundas da intensidade desses movimentos de capitais em direção à televisão,

transformações como a descentralização e internacionalização da produção, a multiplicação

de canais, a privatização ou desregulação da exploração de redes, a rentabilização das

emissões multimídia etc. (ZALLO, 1988). A fábrica televisiva orientada para o lucro se impõe

à produção criativa colocando-a submissa a resultados práticos (BOLAÑO, 2004).

Prevalecem critérios de planejamento e gestão sobre a criação artística, com a fragmentação

lógica das fases produtivas (pré-produção, produção e pós-produção), de modo a exercer

controle sobre o aparato de cada uma delas, mediante cálculos de investimento ou de

audiência almejados. Tais cálculos de custo tornam-se cada vez mais precisos, evitando-se

riscos e, com isso, tende-se a resultados de criatividade medíocre, que em sua maioria

repercutem em padrões técnicos já conhecidos de outros programas (BOLAÑO, 2004;

ZALLO, 1988). Características dessa indústria são:

O planejamento empresarial da produção contínua (a programação) e de cada produto, mediante escritórios especializados para a formulação de padrões técnicos e de custos, cobrindo o dobro do objetivo de planejar condições para a produção e de assegurar uma audiência, o assalariamento global tanto do trabalho de base como de especializações funcionais e de tarefas; a desapropriação crescente do fazer criativo, particularmente de

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diretores e/ou realizadores e informadores. (ZALLO, 1988, p. 141, tradução nossa).2

Koop (1990), por sua vez, explica que no setor televisivo os produtos carregam uma

característica incomum para mercadorias em geral: sua produção é cara, mas ao mesmo

tempo deve ser rentável o suficiente para tornar-se disponível gratuitamente aos

consumidores. Esse é o caso da TV aberta, na qual o serviço audiovisual não é financiado

pelos espectadores em proporção ao seu nível de consumo, ou seja, trata-se de uma

anomalia se comparado às regras tradicionais de mercado. Tais firmas de TV comerciais

constituem, assim, um caso raro de empresas privadas, impulsionadas pelo lucro, que

distribuem seus produtos gratuitamente.

Os aspectos colocados descrevem um meio cuja apropriação pela lógica de mercado

tenta a todo custo domar suas especificidades e suas volatilidades na tentativa de conformar

seus produtos em mercadorias rentáveis. Dado o elevado nível de seus investimentos, os

operadores do setor estão constantemente buscando novas possibilidades, redução de

riscos e garantias de retorno financeiro numa estabilidade suficientemente capaz de

preencher as horas contínuas de programação de custo oneroso e caráter perecível.

Essa característica sequencial é percebida na indústria de difusão contínua:

A difusão em fluxo contínuo supõe uma produção complexa e variada, com processos de trabalho plenamente industriais – simultâneos por produção e sequenciais por emissão, ordenador por uma programação que assegura a continuidade e cotidianidade das emissões – e integra o trabalho criativo e técnico em um mesmo processo. A programação se dirige tradicionalmente a uma audiência heterogênea, massiva e arquetípica. Mas também se dirige crescentemente a audiências segmentadas por rações de idade, etnia, cultura, gostos ou renda, aproximando-se, em parte, do autosserviço editorial. (ZALLO, 1988, p. 129, tradução nossa)3.

Destaca-se também a característica da TV ser uma múltipla indústria em si. A sua

cadeia de valor aglutina, sinteticamente, produção, programação e distribuição e por isso é

2 No original: La planificación empresarial de la producción en continuum (la programación) y de cada producto, mediante

gabinetes especializados para la formulación de estándares técnicos y de costes, cubriendo el doble objetivo de plantear condiciones a la producción y de asegurar una audiencia; la asalarización global tanto del trabajo en base a especializaciones funcionales y de tareas; la deposesión creciente del saber hacer creativo, particularmente de directores y/o realizadores e informadores.

3 No original: La difusión en flujo continuo supone una producción compleja y variada, con procesos de trabajo plenamente industriales – simultáneos por producción y secuenciales por emisión, ordenados por una programación que asegura la continuidad y cotidianeidad de las emisiones – e integra el trabajo creativo y técnico en un mismo proceso. La programación se ha dirigido tradicionalmente a una audiencia heterogénea, masiva y arquetípica. Pero también se dirige crecientemente a audiencias segmentadas por razones de edad, etnia, cultura, gustos o renta, aproximándose en parte al autoservicio editorial.

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geradora também de concorrências internas, quando os operadores dos ramos que a

abastecem competem por espaço (BRITTOS; SIMÕES, 2011). Agregando desde produção

televisiva, filmes até produção videográfica, videoclipes, spots publicitários, informações

com imagens etc., é possível constatar o caráter centrípeto da televisão como meio

audiovisual, uma posição vantajosa na distribuição de excedentes e benefícios.

A televisão classificada como “generalista” enquadra-se no modelo tradicional de

televisão aberta voltada para o público massivo (HERREROS, 2004). Este modelo mais

tradicional de TV, mesmo perdendo audiência gradativamente, em virtude da diversificação

de opções de informação e entretenimento, e pulverização da audiência, fenômeno

identificado por Valério Brittos (2004) como fase da “multiplicidade da oferta”, ainda possui

relevância social significativa.

Mariano Herreros (2004) afirma que, por contar com uma audiência de milhões de

espectadores, é o modelo generalista que atua como mantenedor dos referenciais que os

elementos do público possuem em comum, reforçando cotidianamente sentimentos de

identidade, ao mesmo tempo que alimenta os elementos simbólicos compartilhados

coletivamente, os gostos gerais e a sustentação da agenda das conversas cotidianas.

Existe aí, também, uma centralização em determinados gêneros e fórmulas

populares e de entretenimento amplamente aceitos pelo grande público (concursos,

programas musicais e de auditório, ficções de grande apelo emocional, notícias impactantes

etc.). O modelo generalista, segundo Herreros (2004) alcança sua plenitude em dias de

notícias de grande impacto ou apelo visual, como por coberturas de competições esportivas,

cataclismos naturais ou acidentes, atentados, falecimentos notórios, datas comemorativas

ou celebrações eleitorais. Nesses momentos se mantém como meio informativo de

referência, de consagração de grandes acontecimentos, ainda que divida cada vez mais a

atenção com outros instrumentos informacionais.

É dentro desta lógica competitiva econômica que podemos observar o que Vincent

Mosco (2009) chama de mercadorização4, ou seja, o processo de transformação do valor de

uso pelo valor de troca como produtos de mercado. No caso da TV aberta, como dito, o

produto da troca por rentabilidade será essencialmente a audiência, o que afeta a

mercadorização dos processos produtivos de conteúdos midiáticos enquanto,

paralelamente, eles acabam por reforçar também valores simbólicos de consumo,

contribuindo para a reprodução do sistema. Voltadas para a busca de um maior número de

4 Tradução livre para “Commodification” (MOSCO, 2009).

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audiência, portanto, as mensagens midiáticas buscam se tornar sedutoras ao olhar do

público, dialogando com valores e desejos que os atraem para seus anunciantes ou para o

consumo de mais conteúdo.

Para uma melhor aproximação do objeto a partir da contribuição de Mosco (2009), é

fundamental recorrer também ao processo de estruturação, trazido por ele. Tal noção se

dedica a compreender processos de criação de relações de valor referentes à classe, gênero

e raça (como exclusão e desigualdade), referindo-se especialmente as ações sociais oriundas

das dinâmicas anteriores que criam as circunstâncias em jogo. Assim, a estruturação parte

da noção marxista de que as pessoas fazem a história, mas não sobre condições de sua

própria criação, ou seja, busca assimilar a complexidade processual não se limitando ao

estudo estático das estruturas. Essas dinâmicas ocorrem através dos conflitos e resistências

especialmente, pela análise de Mosco (2009), entre classe social, gênero e raça,

considerando a constituição de classes de forma processual, dando ênfase aos impactos das

ações de movimentos sociais.

Assim, a inclusão dos elementos de minorias, como gênero e raça, dentro de áreas

amplamente dominadas por análises de classe, segundo Mosco (2009), seria um esforço

poderoso e multifacetado de complexificação e ampliação da pesquisa em Comunicação e

resulta em um prospecto de renovação da Economia Política da Comunicação (EPC),

englobando dimensões mais amplas e profundas de experiências sociais do que

tradicionalmente é feito nesta área. De tal modo, apesar de a EPC utilizar-se

primordialmente da categoria classe, é fundamental reconhecer o valor de outras

construções de categorias para ampliar a percepção da pesquisa em Comunicação (MOSCO,

2009).

No caso da discussão que aqui é proposta, é essencial entendermos os impactos

sociais dos efeitos da orientação mercadológica da comunicação, uma vez que a mídia

televisiva ainda interfere na visão de mundo compartilhada pelo público. Debra Merskin

(2011) contribui para este debate, discorrendo sobre como a mídia massiva acaba

delineando o inconsciente coletivo quando se coloca como uma contadora de histórias da

contemporaneidade. Como intermediadora de percepções de mundo, a mídia massiva,

muitas vezes, lança mão de estereótipos, super-generalizações construídas socialmente e

que são colocadas como arquétipos de determinados grupos sociais, limitando seu

significado e a interpretação social sobre o Outro.

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Essas representações podem ser usadas, segundo Merskin (2011), para oprimir, na

medida em que reforçam visões limitadas sobre gênero, raça, classe, sexualidade e religião,

transformando estereótipos (signos unidimensionais e concretizados sobre a Alteridade)

em arquétipos (visões multidimensionais, símbolos fluidos de personalidade). Isso serve,

por exemplo, para justificar o ódio coletivo a determinados grupos, sua perseguição e

atrocidades políticas contra eles.

Esses valores distorcidos podem permanecer ao longo do tempo, sendo sustentados,

refinados e distribuídos por discursos religiosos e da cultura popular (MERSKIN, 2011). No

entanto, podem também ser questionados e reconfigurados por movimentos sociais,

reprogramando a sociedade para a não-aceitação de injustiças trazidas por eles.

4 Uma mídia mais inclusiva? Fazendo frente ao conteúdo normativo da mídia tradicional, é possível notar

também como fenômeno comunicacional o fortalecimento do ativismo identitário a partir

da apropriação de tecnologias da informação, como as redes sociais. Se na produção cultural

alternativa isso já acontece há algum tempo, e de maneira geograficamente espalhada, nos

meios massivos de comunicação brasileiros esse impacto vem sendo sentido

gradativamente apenas nos últimos anos.

Para avançar nessa discussão com exemplos práticos, foram selecionadas três

pesquisas relativas à representatividade de minorias na produção televisiva brasileira: uma

primeira referente a mulheres negras empoderadas, trazidas por campanhas publicitárias

veiculadas na TV; uma segunda dedicada ao estudo da visibilidade da mulher gorda numa

telenovela de 2017; e uma terceira, sobre a representação da comunidade LGBT em

telenovelas da Rede Globo entre 1970 e 2013.

Em sua pesquisa sobre mulheres negras empoderadas nas publicidades É o poder! e

O que te define da Avon, estreladas pelas artistas e rappers negras LAY, Karol Conka e Mc

Carol, em 2016, Jéssica Carneiro e Aluísio de Lima (2018) falam de uma nova narrativa

representativa da mulher negra na publicidade. Haveria ali:

[...] uma figura empoderada, autoconfiante e completamente dona de seu destino. Nas campanhas, o conteúdo trazido pelas artistas discursa sobre uma autopercepção enquanto sujeito possibilitador de mudança atrelada a uma autoestima e autoconfiança inabaláveis, elementos os quais se

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mostram imprescindíveis para a efetivação do ‘empoderar-se.’ (CARNEIRO; LIMA, 2018, p. 182).

No entanto, os autores preocupam-se com a apropriação desse discurso pelo

mercado, quando de maneira distorcida, tiram o foco do sofrimento causado pelos

processos racistas cotidianos em nome de uma superficial autoimagem positiva.

O ativismo da mulher negra, ao se dar pela via do consumo, legitima uma forma de combate à opressão que se dá pela lógica da mercadoria, em que até para se posicionar politicamente, o consumo se faz presente. [...] A questão aqui problematizada é de que forma o reconhecimento atravessado pelo consumo (visto como ’representatividade’) se constitui como uma tentativa de inclusão no e pelo próprio consumo, condição esta que foi negada historicamente à população negra. A disputa identitária [...]da mulher negra nos marcos do consumo ensaia antes uma tentativa de reposição tardia de um grupo excluído por duas condições que lhe são intrínsecas: ser mulher e ser negra. Busca-se, assim, um ‘igualitarismo’ pelo consumo. [...] O que muitas vezes não se percebe é que o consumo dos produtos não produz necessariamente o empoderamento que levaria a uma guinada emancipatória; pela via do consumo desses produtos, elas podem justamente reduzir o empoderamento à possibilidade de compra de mercadorias. (CARNEIRO; LIMA, 2018, p. 184-185).

De tal maneira, ainda que se reconheça a importância de pensar sobre um poder de

consumo até então dificultado para esse segmento populacional, alijado da padronização

tradicional da indústria de beleza embranquecedora, Carneiro e Lima (2018) demonstram

preocupação num movimento de reconhecimento que não passe pelo político, pelo coletivo,

mas pelo individual, privado, valorizado pelo processo de consumo. Isso traria uma

distorção da crítica social pelo viés estrutural político-econômico, de processos mais

complexos centrados pela identidade feminina negra, que indica o esvaziamento do

processo de transformação social e diminuição da opressão coletiva deste segmento.

Relativamente ao conteúdo de ficção, as telenovelas também têm apresentado

recentemente maior abertura para as pautas da diversidade. No que se refere à imagem, a

distorção sobre a visibilidade da mulher gorda tem sido colocada como notável nas

produções de mídia pelo ativismo feminista, especialmente em redes digitais. À mulher

gorda, as tramas dedicam um viés cômico, periférico à linha narrativa central, algumas vezes

problematizando gordofobia ou padrões estéticos femininos, mas de forma fragmentada,

superficial, reduzindo a proposta da diversidade a um debate secundário, e quase nunca

essas personagens alcançam a situação de protagonismo. São algumas das ponderações de

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Ethiene Fonseca e Mayara Silva (2018), que estudaram a construção da personagem Abgail

na novela global Força do Querer, exibida em 2017.

Dentre as constatações dos autores está o reforço do fato de ela ser uma

representante “plus size bem resolvida”, vinculando o corpo gordo a um fator negativo, com

o qual é necessário resolver-se. Além disso, a personagem não possui uma trama própria ou

uma busca pessoal, tendo sua história atrelada ao enredo de outras figuras, o que

enfraquece sua importância, bem como a da temática acerca da valorização do corpo gordo

que representa. Ela está inserida no enredo de personagens secundários, o que a torna ainda

mais periférica para o contexto da narrativa, de modo que:

A supressão da personagem na obra não faria diferença alguma para o desenvolvimento da história. Dado ao seu interesse por cosméticos, Abigail decide se tornar revendedora de produtos da marca Natura, figurando em cenas de merchandising em que ela fala sobre as vantagens de trabalhar para a marca. Em uma iniciativa transmídia, a personagem passa a veicular dicas de moda e beleza em um perfil no Instagram e em um blog criados para a personagem, iniciativas atreladas à parceria estabelecida entre a Natura e a Rede Globo. (FONSECA; SILVA, 2018, p. 404, grifo dos autores).

De tal maneira, a personagem parece ter sido deslocada mais uma vez para seu apelo

mercadológico de ponte com as consumidoras que se identifiquem com o seu perfil e que,

por sentirem-se desconfortáveis com a fuga do padrão estético, são induzidas a embelezar-

se cada vez mais, ou seja, se tornarem consumidoras potenciais das indústrias da beleza,

moda e estética. A personagem dedica-se, portanto, a construção de sua identidade como

mulher considerando que, do ponto de vista corporal, ela não atende às expectativas de

gênero e desse modo, ela se mostra bastante vaidosa. Fonseca e Silva (2018) concluem que:

[...] ao afastar o tema da trama principal faz com que Abigail, considerada pela própria emissora como representante da mulher gorda empoderada, esteja à margem do enredo, o que alude à posição da mulher gorda na sociedade, sempre à margem nas esferas sociais, descolada do status quo. [...] Considerando haver a necessidade de simplificar determinados assuntos para que eles sejam aplicáveis à narrativa, pode-se concluir que a obra em análise reuniu elementos temáticos que contribuíram para a produção de representações que além de não entrarem em atrito com as normativas sociais, serviram como uma espécie de reforço àquilo que supostamente se pretendia questionar. Assim, vê-se que a utilização da noção de diversidade ocorre de forma rasa e mercadológica para atrair a atenção do público-alvo. (FONSECA; SILVA, 2018, p. 408-409, grifo dos autores).

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De tal maneira, embora tenha sido uma trama dedicada a tratar das temáticas da

diversidade e de gênero, a tentativa de não ir de encontro ao que é usualmente aceito pela

audiência condicionou a simplificação e a superficialização excessiva de algumas pautas o

que, para os autores, dificultou a abordagem aprofundada de temas sociais múltiplos e

distintos e acabou contribuindo para reforço de preconceitos (FONSECA; SILVA, 2018).

Assim, a abordagem da emissora sobre o tema do corpo gordo e dos padrões estéticos

femininos acabou resultando numa perspectiva conservadora, até porque atrela no enredo a

ideia de felicidade da mulher à valorização do corpo, à estética e aos relacionamentos

amorosos, algo que, claro, acabou sendo o final feliz da personagem.

Ainda sobre o debate de gênero nas telenovelas, a pesquisa apresentada por

Fernanda Nascimento (2018) se debruça sobre um levantamento panorâmico de

representação LGBT entre os anos de 1970 e 2013 que identificou 126 personagens em 62

novelas.

Entre as décadas de 1970 e 1980, a maioria desses personagens integrava núcleos

cômicos e posições subalternas e, por algumas vezes, traziam tematizações de preconceito

ou discriminação. As lésbicas começam a aparecer mais na década de 1980, mas ainda com

sua sexualidade regulada ou enquadradas num padrão heteronormativo, e as vivências

trans começam a ser vistas, só que em tom cômico em Um Sonho a Mais (1985) e com uma

discussão sobre discriminação em Tieta (1989).

A partir da década de 1990, a tendência de maior visibilidade de LGBT se mantém

com o primeiro casal inter-racial de homossexuais, discutindo opressões de sexualidade e

raça. Mas o destaque é a exclusão de um casal lésbico em Torre de Babel (1998) por conta da

rejeição do público. É possível ver também uma personagem que não definiu seu gênero e

sexualidade em Explode Coração (1995) e a tematização da bissexualidade em Por Amor

(1998) (NASCIMENTO, 2018).

Na década de 2000 podem ser vistas 22 narrativas com participação LGBTs e

Fernanda Nascimento (2018) vê uma mudança do comportamento majoritariamente bicha

para os padrões heteronormativos, como os casais brancos, em relações monogâmicas e de

classe média, como em Páginas da Vida (2006) e Paraíso Tropical (2006). Essa tendência é

também vista na representatividade lésbica como em Mulheres Apaixonadas (2003) e

Senhora do Destino (2004).

Entre 2010 e 2013 são 12 as narrativas com LGBTs, sendo duas com núcleos

especificamente pautados com essa temática, Ti-Ti-Ti (2010) e Insensato Coração (2011). A

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autora destaca as tramas que fogem da norma, como em Viver a Vida (2010), que apresenta

uma relação entre homens bissexuais não monogâmicos e em grupo, e Fina Estampa (2011),

com um relacionamento intergeracional. A transexualidade também é um destaque em Salve

Jorge (2012).

Assim, em sua pesquisa, Fernanda Nascimento (2018) percebe um crescimento

acentuado de personagens LGBT com faixas etárias entre 21 e 30 anos nas décadas

analisadas, e, no que se refere à raça, das 126 personagens analisadas apenas quatro são

negras, sendo que três eram oriundas de classes populares, apontando forte invisibilidade

deste grupo social. A autora finaliza:

No leque das identidades LGBTs, a presença majoritária das narrativas é de

gays. Os dados explicitam ainda a menor visibilidade da sexualidade das

mulheres em relação aos homens, fator apontado como uma das formas de

demarcação de gênero utilizada pela heteronormatividade: o apagamento das

identidades. Menos visíveis, as lésbicas têm também suas sexualidades mais

reguladas, enquadrando-se dentro de um padrão de gênero com características

atribuídas ao feminino, na qual a única diferença é a sexualidade. As análises

apontam para o fato de que, ainda que os LGBTs tenham tido suas vivências

tematizadas de forma mais acentuada nos últimos anos, outras formas de

opressão continuam sendo reproduzidas nestas representações. O silenciamento

de identidades se estende à presença pequena de personagens bissexuais e se

acentua ainda mais com a pouca participação de transexuais. [...]O panorama

aponta a necessidade de ampliação da diversidade destas representações

(NASCIMENTO, 2018, p. 354).

De tal modo, Nascimento (2018) conclui que é notório o crescimento da

representatividade LGBTs em tramas de telenovela, mas aponta para a preocupação de que,

com a tematização muito normatizada, outras formas de opressão sejam reforçadas, como é

o caso das questões raciais, de classe e da regulação da sexualidade feminina. Ainda é

possível ver também o silenciamento de outras identidades de gênero como da

bissexualidade e de transgêneros, sendo, portanto, crucial a problematização de uma

“visibilidade regulada” nos termos de Stuart Hall (2003).

5 Considerações finais

É também Stuart Hall (2003) que chama a atenção para a limitação dos ganhos

conquistados pelas subalternidades marginalizadas quando alcançam o centro,

especialmente tendo em vista o histórico e a tendência a segregação. É possível notar, a

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partir dos exemplos analisados, a propensão que a lógica de mercado hegemônica tem em

assimilar e se apropriar dos movimentos que deveriam ser contra-hegemônicos. Faz parte

de seu processo de negociação simbólica, de readequação de consensos.

Claro que isso não desvaloriza o fato de as pautas da diversidade e da luta por seus

direitos terem ganhado o conhecimento do público, e hoje se fazerem presentes nos

conteúdos mais massivos da mídia, não se restringindo a ambientes privilegiados ou

restritos de acesso a conhecimento e informação. Para enxergar essa popularização como

um avanço, no entanto, é fundamental ter em mente que essa abertura é também parte das

contradições do capitalismo, que apresenta notável capacidade de adaptação às novas

possibilidades de mercadorização, com a assimilação de elementos identificados como

valorizados diante do público. Maior prova disso é o desenvolvimento da nova área

chamada Marketing de causa. Trata-se de uma adaptação estratégica deste mercado e que,

por isso, deve seguir sob o olhar atento da crítica sobre a apropriação de pautas sociais pela

lógica da produtividade, da busca por audiências, anunciantes e lucro.

Nesse contexto, em que a orientação mercadológica do setor televisivo prevalece

fortemente tensionada pela concorrência com novas mídias e com os discursos ativistas

fortalecidos por elas, é possível ainda identificar o quanto valores estereotipados sobre os

diversos grupos sociais ainda permanecem. Como observado nas pesquisas apresentadas, o

aparecimento da representação de grupos não normativos, pode ser identificado como um

avanço ainda muito incipiente, filtrado por um viés conservador, e notoriamente construído

pelas mãos de representantes dos mesmos grupos normativos privilegiados no exercício de

seu direito de fala.

Uma pesquisa que observasse a representação social dos autores e diretores de

novelas, gestores de contas publicitárias, e demais cargos hierarquicamente definidores

deste conteúdo poderia indicar material fundamental para discussão sobre lugar de fala e

sobre direito à comunicação. Se a própria composição das equipes definidoras desses

conteúdos continuarem sendo as mesmas pessoas que historicamente alimentam a mídia,

notoriamente homens, brancos, heterossexuais e de classe média, muito dificilmente outras

visões de mundo serão efetivamente incorporadas ao conteúdo midiático massivo.

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Minorities, speech standpoint and the right to communication in media: activism and commodification of social struggles

Abstract

Diversity has become an increasingly recurrent theme in the content presented by the mass media. In an attempt to advance a critical observation of this debate, we seek to ask: are the social agendas of minority groups finally finding place in Brazilian television production, or is this an appropriation of these themes as part of the process of ‘commodification’ already so well known by the literature of the Political Economy of Communication and Culture? To answer this question, we propose a literature review on media, diversity, democratic values and contemporary identity struggles. Then, the strategic logics of the Private TV Market are explained, and than contemporary practical examples of non-normative

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representativeness on TV are discussed, brought by other studies that point to the need to reflect on who builds these narratives. we find that the market logic has appropriated the movements that should be counter-hegemonic.

Keywords

Diversity. Minorities. Television. TV market. Speech standpoint.

Autor correspondente

Chalini Torquato [email protected]

Como citar

TORQUATO, Charlini. Minorias, lugar de fala e direito à comunicação na mídia: entre o ativismo pela cidadania e a mercadorização de pautas sociais. Intexto, Porto Alegre, n. 52, e-104966, jan./dez. 2021. DOI: http://dx.doi.org/10.19132/1807-8583202152.104996 Recebido em 30/06/2020 Aceito em 08/09/2020