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Ministrio da JustiaComisso de AnistiaMarcas da Memria

MEMRIAS DA RESISTNCIA E DA SOLIDARIEDADE: O Movimento de Justia e Direitos Humanos contra as ditaduras do

Cone Sul e sua Conexo Repressiva

Enrique Serra PadrsJorge Eduardo Enrquez Vivar

Porto AlegreASF-Brasil

2013

Realizao:

PaRceRia:

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

MEMRIAS DA RESISTNCIA E DA SOLIDARIEDADE: O Movimento de Justia e Direitos Humanos Contra as Ditaduras do Cone Sul e sua Conexo Repressiva

Realizao ARQUIVISTAS SEM FRONTEIRAS BRASIL

Coordenao Geral ENRIQUE SERRA PADRS

JORGE EDUARDO ENRIQUEZ VIVAR Equipe de Pesquisa

SILVIA SIMES (Assistncia e Coordenao) FRANCISCO ALCIDES COUGO JNIOR

RAQUEL SILVA DA FONSECAPAULA BLUME

LIANA SEVERO RIBERO Parceria

MOVIMENTO DE JUSTIA E DIREITOS HUMANOSJAIR KRISCHKE Colaborao

GRACIELA KARABABIKIAN - Transcries Espanhol Gravao, Imagem e Fotografia

MARCELO REST (Argentina)MILTON COUGO (Brasil)

VICTOR BURGOS BARREIRO (Uruguai)Edio Audiovisual e Legendas de vdeo

MARCELO RESTCapa

PAULO H. LANGE - CAXIOLA - FABICO UFRGSEditorao e Projeto Grfico

PRISCILA EVANGELISTAwww.formadiagramacao.com.br

DISTRIBUO GRATUITA Impresso 2013

200 exemplares

O presente projeto foi apresentado no ano de 2011 II Chamada Pblica do Projeto Marcas da Memria, da Comisso de Anistia do Ministrio da Justia, e selecionado por Comit independente para fomento. A realizao do projeto objetiva atender as misses legais da Comisso de Anistia de promover o direito reparao, memria e verdade, permitindo que a sociedade civil e os anistiados polticos concretizem seus projetos de memria. Por essa razo, as opinies e dados contidos na publicao so de responsabilidade de seus organizadores e autores, e no traduzem opinies do Governo Federal, exceto quando expresso em contrrio.

Bibliotecria responsvel: Andra Fontoura da Silva - CRB 10/1416

Presidenta da RepblicaDILMA VANA ROUSSEFF

Ministro da Justia

JOS EDUARDO CARDOZO

Secretria ExecutivaMRCIA PELEGRINI

Presidente da Comisso de Anistia

PAULO ABRO

Vice-presidentes da Comisso de AnistiaEGMAR JOS DE OLIVEIRASUELI APARECIDA BELLATO

Secretrio-Executivo da Comisso de AnistiaMULLER LUIZ BORGES

Coordenador Geral de Memria Histrica da Comisso de AnistiaMARCELO D. TORELLY

Secretria Executiva SubstitutaAMARLIS BUSCH TAVARES

Coordenadora de Polticas de Justia de Transio e Memria HistricaROSANE CAVALHEIRO CRUZ

Coordenao de Polticas de Justia de Transio e Memria HistricaALINE AGNES VIEIRA MACABEUDANIEL FERNANDES DA ROCHA

DEBORAH NUNES LYRAEDUARDO HENRIQUE FALCO PIRES

ERIK DE CARVALHO LOBO VIANNA (Estagirio)JENY KIM BATISTA

JULIANA DE OLIVEIRA CARLOS COSTA (Consultora MJ/PNUD)MARIA JOS VICENTE DA SILVA (Apoio)

PAULA REGINA M. G. DE ANDRADESNIA MARIA ALVES DA COSTA (Consultora MJ/PNUD)

A COMISSO DE ANISTIA

A Comisso de Anistia um rgo do Estado brasileiro ligado ao Ministrio da Justia e com-posto por 24 conselheiros, em sua maioria agentes da sociedade civil ou professores universitrios, sendo um deles indicado pelas vtimas e outro pelo Ministrio da Defesa. Criada em 2001, h doze anos, com o objetivo de reparar moral e economicamente as vtimas de atos de exceo, arbtrio e violaes aos direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988, a Comisso hoje conta com mais de 70 mil pedidos de anistia protocolados. At o ano de 2011 havia declarado mais de 35 mil pessoas anis-tiadas polticas, promovendo o pedido oficial de desculpas do Estado pelas violaes praticadas. Em aproximadamente 15 mil destes casos, a Comisso igualmente reconheceu o direito reparao econmica. O acervo da Comisso de Anistia o mais completo fundo documental sobre a ditadu-ra brasileira (1964-1985), conjugando documentos oficiais com inmeros depoimentos e acervos agregados pelas vtimas. Esse acervo ser disponibilizado ao pblico por meio do Memorial da Anis-tia Poltica do Brasil, stio de memria e homenagem s vtimas em construo na cidade de Belo Horizonte. Desde 2007 a Comisso passou a promover diversos projetos de educao, cidadania e memria, levando as sesses de apreciao dos pedidos aos locais onde ocorreram s violaes por meio das Caravanas da Anistia, que j superaram 60 edies; promovendo chamadas pblicas para financiamento a iniciativas sociais de memria, como a que presentemente contempla este projeto; e fomentando a cooperao internacional para o intercmbio de prticas e conhecimentos, com nfase nos pases do Hemisfrio Sul.

MARCAS DA MEMRIA Um projeto de memria e reparao coletiva

para o Brasil

Criada h dez anos, em 2001, por meio de medida provisria, a Comisso de Anistia do Minis-trio da Justia passou a integrar em definitivo a estrutura do Estado brasileiro no ano de 2002, com a aprovao de Lei n. 10.559, que regulamentou o artigo 8 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias.

Tendo por objetivo promover a reparao de violaes a direitos fundamentais praticadas entre 1946 e 1988, a Comisso configura-se em espao de reencontro do Brasil com seu passado, subvertendo o senso comum da anistia enquanto esquecimento. A Anistia no Brasil significa, ao contrrio senso, memria. Em seus 10 anos de atuao, o rgo reuniu milhares de pginas de do-cumentao oficial sobre a represso no Brasil e, ainda, centenas de depoimentos, escritos e orais, das vtimas de tal represso. E deste grande reencontro com a histria que surgem no apenas os fundamentos para a reparao s violaes como, tambm, a necessria reflexo sobre a importn-cia da no repetio destes atos de arbtrio.

Se a reparao individual meio de buscar reconciliar cidados violados, que tem ento a oportunidade de verem o Estado reconhecer que errou para com eles, devolvendo-lhes a cidadania e o patrimnio roubados, por sua vez, as reparaes coletivas, os projetos de memria e as aes para a no repetio tm o claro objetivo de permitir a toda a sociedade conhecer, compreender e, ento, repudiar tais erros. A afronta aos direitos fundamentais de qualquer cidado singular igual-mente ofende a toda a humanidade que temos em comum, e por isso que tais violaes jamais podem ser esquecidas. Esquecer a barbrie equivaleria a nos desumanizarmos.

Partindo destes pressupostos e, ainda, buscando valorizar a luta daqueles que resistiram por todos os meios que entenderam cabveis a Comisso de Anistia passou, a partir de 2008, a realizar sesses de apreciao pblica em todo o territrio dos pedidos de anistia que recebe, de modo a tornar o passado recente acessvel a todos. So as chamadas Caravanas da Anistia. Ao faz-lo, transferiu seu trabalho cotidiano das quatro paredes de mrmore do Palcio da Justia para a pra-a pblica, para escolas e universidades, associaes profissionais e sindicatos, bem como a todo e qualquer local onde perseguies ocorreram. Assim, passou a ativamente conscientizar as novas geraes, nascidas na democracia, da importncia de hoje vivermos em um regime livre, que deve e precisa seguir sempre sendo aprimorado.

Com a ampliao do acesso pblico aos trabalhos da Comisso, cresceram exponencialmente o nmero de relatos de arbitrariedades, prises, torturas... mas tambm, pode-se romper o silncio para ouvir centenas de depoimentos sobre resistncia, coragem, bravura e luta. neste contexto que surge o projeto Marcas da Memria, que expande ainda mais a reparao individual em um processo de reflexo e aprendizado coletivo, fomentando iniciativas locais, regionais e nacionais que permitam queles que viveram um passado sombrio, ou que a seu estudo se dedicaram, dividir leitu-ras de mundo que permitam a reflexo crtica sobre um tempo que precisa ser lembrado e abordado sob auspcios democrticos.

Para atender estes amplos e inovadores propsitos, as aes do Marcas da Memria esto di-vididas em quatro campos:

a) Audincias Pblicas: atos e eventos para promover processos de escuta pblica dos perse-guidos polticos sobre o passado e suas relaes com o presente.

b) Histria oral: entrevistas com perseguidos polticos baseada em critrios terico-metodo-lgicos prprios da Histria Oral. Todos os produtos ficam disponveis no Memorial da Anistia e podero ser disponibilizadas nas bibliotecas e centros de pesquisa das universidades participantes do projeto para acesso da juventude, sociedade e pesquisadores em geral;

c) Chamadas Pblicas de fomento iniciativas da Sociedade Civil: por meio de Chamadas Pblicas a Comisso seleciona projetos de preservao, de memria, de divulgao e difuso advin-dos de Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico (OSCIP) e Entidades Privadas Sem Fins Lucrativos. Os projetos desenvolvidos evolvem documentrios, publicaes, exposies artsticas e fotogrficas, palestras, musicais, restaurao de filmes, preservao de acervos, locais de memria, produes teatrais e materiais didticos.

d) Publicaes: com o propsito de publicar uma coleo de livros de memrias dos perse-guidos polticos; dissertaes e teses de doutorado sobre o perodo da ditadura e a anistia no Brasil alm de reimprimir ou republicar outras obras e textos histricos e relevantes e registrar anais de di-ferentes eventos sobre anistia poltica e justia de transio. Sem fins comerciais ou lucrativos, todas as publicaes so distribudas gratuitamente, especialmente para escolas e universidades.

O projeto Marcas da Memria rene depoimentos, sistematiza informaes e fomenta inicia-tivas culturais que permitam a toda sociedade conhecer o passado e dele extrair lies para o futuro. Reitera, portanto, a premissa que apenas conhecendo o passado podemos evitar sua repetio no futuro, fazendo da Anistia um caminho para a reflexo crtica e o aprimoramento das instituies democrticas. Mais ainda: o projeto investe em olhares plurais, selecionando iniciativas por meio de edital pblico, garantindo igual possibilidade de acesso a todos e evitando que uma nica viso de mundo imponha-se como hegemnica ante as demais.

Espera-se, com este projeto, permitir que todos conheam um passado que temos em comum e que os olhares histricos anteriormente reprimidos adquiram espao junto ao pblico para que, assim, o respeito ao livre pensamento e o direito verdade histrica disseminem-se como valores imprescindveis para um Estado plural e respeitador dos direitos humanos.

Comisso de Anistia do Ministrio da Justia

APRESENTAO

Memrias da Resistncia

As memrias do Condor nos trazem a triste lembrana de que uma das mais bem sucedidas experincias de integrao sul americanas teve como fim no o desenvolvimento e a liberdade, mas a represso e a violncia. Esta obra que tenho a honra de apresentar, por outro lado, nos d a lio inversa, apontando que quando o terrorismo de Estado transborda das fronteiras nacionais, a solida-riedade humana se manifesta de modo indelvel.

O trabalho incansvel do Movimento de Justia e Direitos Humanos est aqui retratado em primeira pessoa por muitos daqueles que colocaram em risco suas prprias vidas para salvar as alheias. A riqueza destes depoimentos reside no fato de no apenas retratarem o contexto poltico e social de uma importante quadra da histria brasileira e da regio, mas tambm transparecerem as lutas e utopias daqueles que foram protagonistas da resistncia s ditaduras. A extenso do trabalho de pesquisa, com entrevistas em distintos pases da regio, ilustra a perspectiva internacional que adquiriu o trabalho do MJDH. A presente obra, portanto, est a altura do movimento que entendeu retratar e expressa os valores e propsitos que o projeto Marcas da Memria da Comisso de Anistia procura semear: valorizar a histria da resistncia e a memria construda pela narrativa dos que foram atingidos pelos atos de exceo, valorizando e estimulando os movimentos sociais em defesa dos direitos humanos e da democracia.

Mais do que uma leitura importante para o presente, quando vivemos um momento de ace-lerao da justia de transio brasileira, esta obra constitui uma leitura indispensvel para o futuro. As entrevistas que preenchem estas pginas certamente sero estudas por dcadas por todos aque-les interessados em conhecer como nossas sociedades resistiram a represso.

Se bem verdade que o sucesso da Operao Condor nos entristece profundamente, temos a grande alegria de poder afirmar, hoje, que a democracia venceu o arbtrio. As presentes entrevistas relatam a luta e a dor daqueles que resistiram, sofrendo grandes perdas. Mas, mais importante, con-ta a histria de um movimento vitorioso, capaz de salvar muitas vidas, e transmitir informaes na poca do silncio imposto. Relata, em ltima anlise, a histria de uma luta vitoriosa. A luta daqueles que no deixaram jamais de acreditar na justia social e, com isso, conquistaram a democracia que hoje vivemos em toda a Amrica do Sul.

Braslia, maro de 2013

Paulo AbroSecretrio Nacional de Justia

Presidente da Comisso de Anistia

APRESENTAO

Los compaeros de Archiveros sin Fronteras-Brasil han impulsado la realizacin y publicacin de un proyecto de una ambicin y calidad extraordinaria: un estudio sobre las memorias de resisten-cia y solidaridad concretado en el Movimiento de Justcia y Derechos Humanos contra las dictadu-ras del Cono Sur y su conexin represiva en el perodo transcurrido entre los aos 1964 y 1990. Entre las mltiples aportaciones de este estudio pionero hay un conjunto de reflexiones y valores que me gustara ponderar de manera breve y sinttica.

En primer lugar su carcter integrador y transversal, generando alianzas con el proyecto Mar-cas da Memria, la Comisso de Anistia, el Ministrio de Justia y el Movimento de Justia e Direitos Humanos. Tambin su vocacin transnacional, en la medida que el anlisis de los abusos de las dicta-duras militares se evidencian con mayor claridad en tanto que constituye una operacin que impac-ta especialmente sobre los seis pases que son objetivo prioritario de la tenebrosa operacin Cndor.

La construccin de este relato histrico tiene sus fundamentos en las entrevistas realizadas a protagonistas de este perodo en Brasil, Uruguay y Argentina, de manera que permite reconstruir con fidelidad no exenta de emocin este argumentado relato de solidaridad, resistencia, denuncia, accin y sacrificio. En la presentacin los editores de la publicacin ponen un especial nfasis en el hecho que el estado de Ro Grande do Sul actua como puente de conexin y frecuentemente de salvacin- para los brasileos, argentinos y uruguayos perseguidos por la alianza del terror guberna-mental institucionalizado. Pero, sobre todo, los editores insisten en la voluntad pedaggica de esta publicacin, que adquiere un notable valor testimonial para todas aquellas generaciones que no han conocido de manera directa los temibles efectos de aquellas dictaduras sanguinarias. Una vez ms, se impone la evidencia de la imperiosa necesidad de luchar contra la desmemoria y el olvido con los instrumentos de la investigacin histrica y el uso sensato de las fuentes orales.

En este contexto, los testimonios aportados constituyen una verdadera produccin documen-tal, en un contexto presidido frecuentemente por una escasez de documentos oficiales procedentes de los organismos represivos del estado. Dar voz a la gente sin voz y entroncar estos testimonios y vivencias extraordinarias con las fuentes documentales tradicionales es un desafo que esta publica-cin supera con creces.

Se ha vuelto un lugar comn la expresin bien cierta por otra parte que sin archivos no hay historia. En el caso que nos ocupa aadira que no hay recuperacin de la historia y de la memoria sin los trabajos de historia oral, su generacin, organizacin, preservacin y muy especialmente, su acceso y difusin.

Desde el ao 2006 Archiveros sin Fronteras ha impulsado un proyecto de organizacin y ac-ceso a los documentos y archivos de las dictaduras militares en Iberoamrica que ha contado con la aportacin de diez pases y que ha permitido crear un portal que presenta informacin sobre los archivos que contienen documentos sensibles para la causa de los derechos humanos. En este contexto, esta publicacin que me satisface enormemente presentar, constituye la punta de lanza de esta voluntad de organizar, preservar y tornar accessible una informacin que deviene un factor de memoria, justcia, verdad y ciudadana. Nuestras felicitaciones, pues, a los compaeros brasileos por esta gran aportacin y a sus editores, los amigos y colegas Enrique Serra Padrs y Jorge Eduardo Enrquez Vivar que han sabido dar forma a un proyecto difcil y ambicioso y, a su vez, liderar un excelente equipo de profesionales.

Dr. Ramn Alberch Fugueras Presidente de la Confederacin Internacional Archivistas sin Fronteras.

Profesor de la Universidad de Barcelona

APRESENTAO

A solidariedade como forma de resistncia.

O Movimento de Justia e Direitos Humanos tem preocupao com a integridade dos seus documentos que testemunham histrias por muito tempo clandestinas e ainda pouco conhecidas. Existe o risco de desaparecimento destes registros sobre a proteo a mais de duas mil vidas contra a perseguio poltica do Terrorismo de Estado. So histrias com final triste e tambm muitas com final feliz para quem encontrou refgio durante os anos de chumbo no Cone Sul das Amricas, entre 1964 e 1990, na atuao engajada da rede de solidariedade como forma de resistncia articulada pelo Movimento contra as ditaduras.

Os governos derrubaram suas prprias soberanias para facilitar a perseguio, tortura, morte e desaparecimento de adversrios ideolgicos. Os documentos do Movimento permitem compreen-der claramente a origem da Doutrina da Segurana Nacional que a partir do Brasil criou a Opera-o Condor para praticar crimes de lesa humanidade. Provam que o Brasil fez a primeira vtima da Operao Condor.

preciso preservar tal acervo documental e detalhar a resistncia que se formou. Assim pensa Jair Krischke que nos anos das sombras foi escolhido pelos militantes para ser exposto em nome de todos como o rosto solitrio e emblemtico do Movimento na resistncia aos Estados terroristas. A sua experincia na misso de salvar vidas diz que a melhor forma de proteger estas histrias divulg-las.

Com Arquivistas Sem Fronteiras- Brasil, atravs do projeto do professor Jorge Vivar (UFRGS), o Movimento passa a difundir e socializar os seus documentos. Importante instrumento desta preser-vao a publicao de Memrias da Resistncia e da Solidariedade que tem o apoio da Comisso de Anistia do Ministrio da Justia. A obra junta depoimentos de quem viveu as histrias documen-tadas pelo Movimento. Desdobra casos nos quais os seus militantes ergueram os punhos contra os palcios do poder, desceram a crceres e pores onde havia perseguidos, abriram covas para revelar a verdade dos massacrados, levaram famlias inteiras a atravessar fronteiras, caminharam e cantaram ao lado daqueles que saiam s ruas da Amrica Latina pelo fim das ditaduras.

Assim, de se perguntar sobre o tamanho deste Movimento de Justia e Direitos Humanos do Brasil que, de Porto Alegre, faz multiplicar a tarefa atual e permanente da defesa de vtimas de todo e qualquer tipo de arbtrio e violncia?

O Movimento precisa ter o tamanho da solidariedade que salva vidas nas tempestades da in-tolerncia. Na resposta, evoca O Guardador de Rebanhos, de Fernando Pessoa, que diz que sou do tamanho do que vejo e no, do tamanho da minha altura, considerando que a nossa nica riqueza ver.

Memrias da Resistncia e da Solidariedade um instrumento pela Verdade. um grito por Justia, mesmo que tardia, contra os algozes ainda impunes.

Afonso LicksConselheiro do MJDH

RECONHECIMENTOS

Homenagens

A todos os lutadores sociais que entregaram suas vidas, ou parte delas, luta intransigente dos valores e princpios da justia social e da solidariedade, acreditando, sem claudicar, num outro mundo possvel para seus filhos e as novas geraes

Ao companheiro Universindo Rodrgues Daz. Sua humildade, simplicidade, generosidade e seu enorme afeto ficam como marcas qualitativas deste grande lutador social e historiador uruguaio.

DeDicatoRia

Aqueles que, com seu exemplo e valentia, nos ensinaram a trilhar os caminhos das utopias.

agRaDecimentos

A todos aqueles que acolheram, acreditaram e incentivaram de todas as formas a realizao deste projeto. Agradecemos pela confiana depositada.

A todos os depoentes que, com extrema generosidade e prontido, nos relataram as duras histrias de particular sofrimento na defesa de seus ideais e daqueles que foram: presos, torturados, sequestrados e desaparecidos, perseguidos e mortos pelas brutais ditaduras que semearam terror na nossa regio.

Comisso de Anistia, pelo apoio e a oportunidade oferecidos no marco do Projeto Marcas da Memria para desenvolver este Projeto. No teria sido possvel nosso trabalho sem a compresso desta iniciativa.

Ao Movimento de Justia e Direitos Humanos na pessoa de Jair Krischke pela pronta acei-tao nossa proposta de revelar, por meio destes depoimentos, no somente a histria de luta e resistncia s ditaduras do Cone Sul, mas tambm da solidariedade com os perseguidos polticos da regio, agenciando e viabilizando o exlio de forma a preservar suas vidas.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, instituio onde desenvolvem suas atividades de docncia e pesquisa os autores desta obra.

A toda a equipe de pesquisa: Paula, Liana, Chico, que abraaram o projeto com dedicao e competncia. De maneira especial a Slvia e Raquel, por sua entrega solidria at o encerramento deste projeto. Ananda Simes Fernandes por sua contribuio na reviso do texto.

A Marcelo Rest e a Graciela Karababikian que, alm da relao profissional com o projeto, contriburam sempre de forma generosa e permanente.

A Paulo H. Lange e a equipe do Caxiola da FABICO - UFRGS por sua colaborao com o projeto grfico.

A todos queles que, de uma maneira annima, colaboraram nesta caminhada.

SUMRIO

INTRODUO ....................................................................................................................19

CAPITULO I :CONE SUL: Resistncia e solidariedade em tempos de ditaduras de segurana nacional ................................................................................................................................211.1 Um projeto sobre prticas de resistncia e de solidariedade coletiva ...................................... 221.2 O Movimento de Justia e Direitos Humanos e a represso regional ....................................... 241.3 O Rio Grande do (Cone) Sul: experincias, trajetrias, irradiaes e conexes ...................... 261.4 O Cone Sul das Ditaduras de Segurana Nacional e do terrorismo de Estado ......................... 291.5 O Cone Sul da solidariedade regional ........................................................................................ 29

CAPITULO II: DEPOIMENTOS NO BRASIL. ......................................................................33Depoimento 1 Jair Krischke, Primeiro Depoimento. ................................................................... 34Depoimento 2 Jair Krischke - Segundo Depoimento. ................................................................. 49Depoimento 3 Incio Spohr. ........................................................................................................... 65Depoimento 4 Carlos Alberto Koleckza. ........................................................................................ 82Depoimento 5 Viviane Isabel Matzenbacher. ................................................................................ 93Depoimento 6 Mayari Cantoni. .................................................................................................... 110Depoimento 7 Omar Ferri. ........................................................................................................... 117Depoimento 8 Augustino Veit. ...................................................................................................... 135Depoimento 9 Luiz Cludio Cunha. ............................................................................................. 145Depoimento 10 Belisrio dos Santos Junior................................................................................. 160Depoimento 11 Margarida Genevois. .......................................................................................... 171Depoimento 12 Jan Rocha. .......................................................................................................... 182Depoimento 13 Armnia Nercessian de Oliveira. ....................................................................... 198Depoimento 14 Ceclia Pinto Pires. .............................................................................................. 203Depoimento 39 - Miguel Palaoro. .................................................................................................... 214

CAPTULO III : DEPOIMENTOS NO URUGUAI. .............................................................229Depoimento 15 Universindo Rodrgues Daz Primeiro Depoimento. ...................................... 230Depoimento 16 Belela Herrera. .................................................................................................... 250Depoimento 17 Roger Rodrguez. ................................................................................................ 264Depoimento 18 Universindo Rodrgues Daz Segundo Depoimento. ...................................... 279Depoimento 19 Lilin Celiberti Primeiro Depoimento. ............................................................ 290Depoimento 20 Luis Puig. ............................................................................................................. 296Depoimento 21 Camilo Casariego Celiberti. ................................................................................ 309Depoimento 22 Francesca Casariego Celiberti. ........................................................................... 320Depoimento 23 Lilin Celiberti Segundo Depoimento. ........................................................... 325Depoimento 24 Lilin Celiberti Terceiro Depoimento. ............................................................. 335Depoimento 25 Efran Olivera Lerena. ........................................................................................ 344Depoimento 26 scar Lpez Balestra. ......................................................................................... 356Depoimento 27 Sara Youtchak. .................................................................................................... 368Depoimento 28 Graciela Gulla de Benech. .................................................................................. 386

CAPTULO IV: DEPOIMENTOS NA ARGENTINA. ..........................................................399Depoimento 29 Lilian Ruggia. ...................................................................................................... 400Depoimento 30 Roberto Perda. ................................................................................................... 415Depoimento 31 Adelina Dematti de Alaye Primeiro Depoimento. .......................................... 428Depoimento 32 Miguel ngel Osrio. .......................................................................................... 442Depoimento 33 Remo Carlotto..................................................................................................... 451Depoimento 34 Adelina Dematti de Alaye Segundo Depoimento. ......................................... 459Depoimento 35 Carlos Lafforge. ................................................................................................ 475

Depoimento 36 Flora de Castro Habegger. ................................................................................. 488Depoimento 37 Andres Habegger. ............................................................................................... 507Depoimento 38 Claudia Allegrini. ................................................................................................ 522

CAPTULO V: ENTREVISTAS COM PESQUISADORES. .................................................549Depoimento 40 ................................................................................................................................ 550(a) Enrique Serra Padrs. ................................................................................................................ 550(b) Jorge Eduardo Enrquez Vivar. .................................................................................................. 556(c) Slvia Simes. .............................................................................................................................. 559Depoimento 41 ............................................................................................................................... 566(a) Ananda Simes Fernandes. ....................................................................................................... 566(b) Caroline Silveira Bauer. .............................................................................................................. 573(c) Marla Barbosa Assumpo. ........................................................................................................ 579(d) Ramiro Reis. .............................................................................................................................. 584

CAPTULO VI: TESTIMONIOS EN ESPAOL ..................................................................591Depoimento 15 Universindo Rodrgues Daz Primeiro Depoimento. ...................................... 592Depoimento 16 Belela Herrera. .................................................................................................... 612Depoimento 17 Roger Rodriguez. ................................................................................................ 625Depoimento 18 Universindo Rodrgues Daz Segundo Depoimento. ...................................... 640Depoimento 19 Lilin Celiberti Primeiro Depoimento. ............................................................ 651Depoimento 20 Luis Puig. ............................................................................................................. 657Depoimento 21 Camilo Casariego Celiberti. ................................................................................ 670Depoimento 22 Francesca Casariego Celiberti. ........................................................................... 681Depoimento 23 Lilin Celiberti Segundo Depoimento. ........................................................... 689Depoimento 24 Lilin Celiberti Terceiro Depoimento. ............................................................. 700Depoimento 25 Efran Olivera Lerena. ........................................................................................ 700Depoimento 26 scar Lpez Balestra. ......................................................................................... 711Depoimento 27 Sara Youtchak. .................................................................................................... 723Depoimento 28 Graciela Gulla de Benech. .................................................................................. 741Depoimento 29 Lilian Ruggia. ...................................................................................................... 753Depoimento 30 Roberto Perda. ................................................................................................... 768Depoimento 31 Adelina Dematti de Alaye Primeiro Depoimento. .......................................... 781Depoimento 32 Miguel ngel Osrio. .......................................................................................... 794Depoimento 33 Remo Carlotto..................................................................................................... 803Depoimento 34 Adelina Dematti de Alaye Segundo Depoimento. ......................................... 811Depoimento 35 Carlos Lafforgue. ................................................................................................ 826Depoimento 36 Flora de Castro Habegger. ................................................................................. 839Depoimento 37 Andrs Habegger. ............................................................................................... 857Depoimento 38 Claudia Allegrini. ................................................................................................ 872

BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................899

INTRODUO

Os processos de resistncia aos mecanismos e estruturas de represso em regimes autoritrios, a exemplo do que aconteceu na regio sul do continente da Amrica Latina, est estritamente liga-do intensidade do grau de conscincia, educao e de organizao politica que historicamente os povos constroem na consolidao de sociedades democrticas e livres.

Este projeto est focado na histria de resistncia e de solidariedade do Movimento de Justia e Direitos Humanos (MJDH) do Rio Grande do Sul, durante o perodo das ditaduras de Segurana Nacional do Cone Sul (1964-1990). O MJDH teve importante protagonismo na luta contra o terro-rismo de Estado existente na regio, durante esse perodo, atravs de dois tipos de aes vitais para a sobrevivncia de cidados perseguidos no Brasil e nos pases vizinhos, por causa de suas convic-es polticas: a primeira, estabelecendo uma rede de solidariedade que permitiu retirar centenas de pessoas (inclusive famlias inteiras) que, nos seus respectivos pases, estavam sendo ameaadas ou eram reprimidas pelos regimes discricionrios vigentes; a segunda, denunciando e atuando con-cretamente diante de casos inseridos dentro dos marcos da conexo repressiva regional e, de forma mais especfica, da Operao Condor.

importante lembrar que o Rio Grande do Sul foi um cenrio muito singular quanto atu-ao do sistema repressivo brasileiro. O fato de ser um estado fronteirio permitiu que pelo seu territrio transitassem perseguidos polticos brasileiros que procuravam deslocar-se para o exterior, particularmente para se reunir com os crculos de exilados que, logo aps o Golpe de 1964, estavam localizados no Uruguai e que, posteriormente, se deslocaram, em grande parte, para o Chile. A pre-sena dessa comunidade de exilados, nos pases do Cone Sul, tornou o estado gacho uma espcie de ponte de conexo entre a resistncia interna e aquela organizada no exterior. Mas tambm podia ser percebido como um corredor entre dois cenrios sensivelmente diferentes para as vtimas de perseguio: um cenrio interno de muito perigo e insegurana, e outro, externo, onde era possvel retomar um clima de relativa normalidade e segurana. Portanto, a histria do Rio Grande do Sul durante a ditadura esteve muito marcada pelo fato de ser palco para a circulao dos pombos-correios de Leonel Brizola e de militantes de organizaes armadas que entravam ou saiam do pas, as rotas de fuga e os denominados esquemas de fronteira, que viabilizavam a retirada de pessoas com altssimo risco de vida para ambos os lados.

Cabe salientar que, em decorrncia dessa realidade, todos os municpios de fronteira do esta-do com os pases vizinhos da Argentina e do Uruguai foram transformados em rea de Segurana Nacional, com a consequente intensificao da militarizao e da ao repressiva dos rgos de inteligncia e de segurana da ditadura.

Esta dinmica de fronteira sofreu uma mudana qualitativa a partir do momento em que a deteriorao interna e o crescimento do autoritarismo nos pases vizinhos produziram ditaduras as-semelhadas brasileira, quanto a concepes doutrinrias, vinculaes externas e objetivas gerais. Tal fato implicou em que, desde esse momento, o Rio Grande do Sul, apesar das restries existentes, passou a ser uma alternativa e rota de escape para cidados perseguidos nos pases vizinhos (primei-ro uruguaios, depois, argentinos).

A colaborao repressiva entre os servios de informao e segurana da regio antiga. Co-meou a ser sedimentada aps o golpe de Estado contra o presidente Joo Goulart. Na represso articulao da oposio exilada, o Brasil solicitou a colaborao dos governos dos pases vizinhos, particularmente do uruguaio, para realizar tarefas de seguimento, controle, vigilncia e espionagem de cidados brasileiros que estavam dentro do seu territrio. Seguindo a lgica da Doutrina de Se-gurana Nacional de combater o inimigo interno estivesse ou no dentro do pas , a ditadura brasileira acolheu a diretriz das fronteiras ideolgicas, em detrimento das fronteiras polticas reco-nhecidas e do respeito s soberanias nacionais. Ou seja, as fronteiras de outros pases no poderiam ser barreira para impedir o combate aos inimigos internos organizados do outro lado dos limites territoriais nacionais. Em essncia, surgiu assim a necessidade da colaborao repressiva regional (binacional ou tri nacional), que se aprofundou no transcorrer dos anos 1960 e incio dos 1970. Com o advento das outras ditaduras no Cone Sul, essa conexo se desenvolveu de forma muito mais com-

pleta, complexa e eficiente adquirindo o formato daquilo que veio a ser conhecido como Operao Condor.

Foi neste contexto de represso e medo, disseminado pela sociedade na forma de crculos con-cntricos irradiados a partir da violncia sofrida pelos alvos diretos, que se desenvolveu o trabalho do Movimento de Justia e Direitos Humanos, cuja atuao contribuiu para a retirada de centenas de perseguidos polticos do Cone Sul. Uma das suas principais misses foi a de viabilizar a obteno de asilo s vtimas de perseguio poltica, as quais eram levadas a determinados pases europeus, em estreita colaborao com o Alto Comissariado das Naes Unidas para Refugiados (ACNUR).

Tambm merece meno a constante tarefa de denunciar a represso, priso, e tortura de lideranas dos diferentes setores sociais, vtimas da violncia do terrorismo de Estado vigente na regio. Nesse sentido, apesar do clima generalizado de insegurana, censura e colaborao entre os regimes repressivos da regio, o MDJH contribuiu para informar imprensa e opinio pblica internacional o grave desrespeito dos direitos humanos que se produzia em todo o Cone Sul. Como amostra de tal situao podem ser citadas as gestes realizadas para conseguir que as Madres da Pla-za de Mayo pudessem ser recebidas pelo Papa Joo Paulo II, quando da sua visita a Porto Alegre, em 1980. Da mesma forma, articulou uma audincia pblica para que dezenas de familiares de vtimas da represso uruguaia pudessem depor em Porto Alegre, em outubro de 1980, sobre o desapareci-mento de seus entes queridos.

Considerando este rico histrico do MJDH, e diante da necessidade de possibilitar que as no-vas geraes conheam este passado recente, emoldurado pelo autoritarismo e onde a articulao entre os servios de inteligncia, de segurana e as unidades executoras foi um dos seus rostos mais nefastos, o projeto propus a conformao de um arquivo audiovisual e a publicao da presente obra, nos quais estejam registradas as memrias de sobreviventes da conexo repressiva existente no Cone Sul, entre 1964 e 1990, bem como de militantes que participaram da rede de resistncia e solidariedade nucleada ao redor do MJDH. Pretende-se, com isso, contribuir no resgate de uma das faces menos conhecidas e mais perversas das Ditaduras de Segurana Nacional: a forma articulada como as ditaduras atuaram contra os opositores polticos da regio. Tal temtica ainda muito pou-co estudada no Brasil e, portanto, pouco conhecida do conjunto da populao. Tendo em mente esta preocupao basilar, a proposta tem como objetivo central a produo de fontes orais para a pesquisa e para a divulgao geral, tanto sobre a lgica da coordenao repressiva, quanto sobre a formao e existncia de uma rede de denncia, proteo e solidariedade.

Assim, esta obra apresenta as transcries de quarenta e um depoimentos de vtimas dos processos repressivos na regio e, dos atores sociais solidrios no resgate e apoio s vitimas das ditaduras que, de alguma forma, terminam constituindo as redes solidarias de apoio s vitimas das ditaduras na Amrica Latina.

Antecede aos depoimentos, um capitulo narrativo que apresenta as coordenadas do processo de concepo, produo e execuo do projeto Memrias da resistncia e da solidariedade: o Mo-vimento de Justia e Direitos Humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexo repressiva, realizado durante o ano de 2012 e cujos resultados ora apresentamos. Tal texto constitui uma espcie de guia para a compreenso da caminhada terico-metodolgica que norteou as diversas etapas constitutivas, bem como do suporte emprico-interpretativo que baliza o entendimento dos autores dentro de uma perspectiva de conjunto onde o regional e o local interagem complementando-se, contrapondo-se ou contrastando-se, mas que, em ltima instncia, realam as relaes e fatores que conformam a malha da conexo repressiva regional e as tentativas de resisti-la.

CAPITULO I

CONE SUL: Resistncia e solidariedade em tempos de ditaduras de segurana nacional

CAPITULO I : CONE SUL: Resistncia e solidariedade em tempos de ditaduras de segurana nacional

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1.1 Um PRojeto sobRe PRticas De Resistncia e De soliDaRieDaDe coletiva

Esta obra parte do reconhecimento da histria de resistncia e de solidariedade do Movimen-to de Justia e Direitos Humanos (MJDH) do Rio Grande do Sul, durante o perodo das Ditaduras de Segurana Nacional do Cone Sul (1964-1990). O MJDH teve significativo protagonismo na luta contra o terrorismo de Estado existente na regio, o durante esse perodo, principalmente atravs de dois tipos de aes vitais para a sobrevivncia de cidados que, tanto no Brasil como nos pases vizinhos, foram perseguidos por causa de suas convices polticas: a primeira, contribuindo na conformao de uma rede de solidariedade que permitiu retirar da regio, com ajuda de outras enti-dades, centenas de pessoas ameaadas ou reprimidas pelos regimes discricionrios vigentes (como, por exemplo, a Casa Padre Jorge, o ACNUR o SERPAJ respectivamente entidades de atuao pre-ponderantemente local, nacional ou regional); a segunda, denunciando e atuando concretamente diante de casos inseridos nos marcos da conexo repressiva regional e, de forma mais especfica, da Operao Condor (entre outros, so emblemticos os casos Celiberti-Rodrguez Daz, Ruggia, Vias e Habegger).

Considerando o rico histrico do MJDH, e diante da necessidade de possibilitar que as novas geraes conhecessem esse passado recente, emoldurado por um autoritarismo que teve na arti-culao dos servios de inteligncia, de segurana e das unidades executoras um dos seus rostos mais nefastos, o projeto se props conformar um arquivo udio-visual constitudo pelo registro das memrias de sobreviventes da conexo repressiva existente no Cone Sul entre 1964 e 1990, bem como de militantes que participaram da rede de resistncia e solidariedade nucleada ao redor de entidades como o MJDH. Pretendeu-se, com isso, contribuir no resgate de uma das faces menos conhecidas e mais perversas das Ditaduras de Segurana Nacional: a forma articulada como elas atuaram contra os opositores polticos da regio. Tal temtica ainda pouco estudada e conhecida. Tendo em mente esta preocupao basilar, a proposta sobre o resgate da formao e existncia de uma rede de denncia, proteo e solidariedade, visou produo de fontes orais para a pesquisa e sua disponibilizao para o conjunto da sociedade, dentro das diretrizes e dos postulados do Direito Memria e Verdade.

Durante os anos de 2009 e 2011, fruto de outros projetos, Arquivistas sem Fronteiras/Brasil re-alizou e organizao do acervo documental do MJDH, dando-lhe sentido histrico e constituindo-o como um arquivo estruturado e de acordo com as normas para seu arranjo e descrio arquivstica. A partir dessa tarefa e da anlise e contextualizao documental, realizou-se a avaliao de uma s-rie de fatos que, de certa forma, norteou a escolha dos temas, trajetrias e estratgias de luta e sobre-vivncia que acabaram sendo registrados nos quarenta e um depoimentos transcritos das gravaes em audivisuais que compem o cunjunto desta obra. Atravs dessas escolhas, procurou-se apre-sentar uma amostra e viso panormica que exemplificasse o emaranhado de relatos de histrias, vivncias, memrias e fatos que ajudam a recuperar o cotidiano repressivo e os efeitos produzidos, e a as modalidades de luta, resistncia e sobrevivncia de perseguidos polticos nos pases do Cone Sul (embora muito mais centrado nos casos da Argentina, do Brasil e do Uruguai).

O arquivo de fontes orais produzido aponta para dois resgates fundamentais: de um lado, o de relatos que contribuem para dimensionar a conexo repressiva, o alcance das ameaas binacionais, o medo cotidiano, a sensao de desamparo e a percepo da existncia de fronteiras que, depen-dendo da conjuntura, foram barreiras quase intransponveis para quem tentava fugir, mas muito fluidas para a colaborao repressiva; de outro, o de aes de solidariedade que salvaram muitos perseguidos polticos, ou que tornaram pblico, atravs de denncias em situaes sempre de alto risco, o tratamento desumano sofrido pelos presos polticos da regio. A diversidade nacional dos registros no impede o reconhecimento da existncia de um pano de fundo comum (o Cone Sul das Ditaduras de Segurana Nacional), de uma dinmica policial articulada (a conexo repressiva) e da atuao de redes de solidariedade, entre as quais a nucleada em volta do MJDH.

As memrias coletadas expressam uma diversidade e singularidade de situaes muito pouco conhecidas, pois tanto as aes repressivas quanto aquelas de resistncia e solidariedade tiveram, quase sempre, aspectos clandestinos. Nesse sentido, inegvel a riqueza de relatos que incidem sobre: a) a sobrevivncia diante da conexo repressiva (seja binacional, pr-Condor ou Condor); b) a luta dos que procuraram vencer as barreiras do medo para denunciar o desaparecimento dos seus familiares ou as terrveis condies enfrentadas em situao de deteno; c) as formas veladas e

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cotidianas de resistncia; d) as aes de atuao solidria e a articulao de redes que protegessem os perseguidos polticos e seus familiares.

Os depoimentos coletados, alm de resgatar histrias que integram as experincias de cida-dos argentinos, brasileiros e uruguaios, reafirmam dois entrecruzamentos temporais significativos e ainda vigentes. O primeiro, em um passado comum, no qual trajetrias individuais ou coletivas se reconheceram por semelhana e se aproximaram at encontrar um ponto de interseco na rede de solidariedade que lhes deu acolhida. O outro, na atualidade, na luta comum, em toda a regio, pelo resgate da histria recente, pelos debates sobre responsabilidades dos crimes estatais e pela abertura dos arquivos, repressivos entre outras tantas questes que assinalam um presente de exploso da memria sobre esse passado que no passa enquanto as sociedades no olharem de frente para ele.

Como foi dito, o objetivo norteador do projeto foi o de coletar, organizar e registrar em su-porte audiovisual, traduzir e transcrever depoimentos relacionados com a dinmica de resistncia e solidariedade de organizaes fundamentadas na luta pelos direitos humanos na regio, durante o contexto das Ditaduras de Segurana Nacional do Cone Sul. A pesar de o foco principal ser esse, acrescido da formao e atuao de uma rede de solidariedade para ajudar na fuga de perseguidos polticos, denunciar a violao de direitos humanos e as condies carcerrias em vigor na regio, outros objetivos acabaram sendo incorporados ao conjunto do trabalho que so: 1) o resgate da luta do MJDH e das redes de solidariedade como resistncia concreta contra os regimes repressivos e seus mecanismos desestruturadores e destrutivos; 2) o registro de depoimentos de protagonistas brasileiros, argentinos e uruguaios relacionados com a atuao do MJDH no contexto das Ditaduras e focados no mbito da perseguio promovida pela conexo repressiva regional ou nas aes de solidariedade com aqueles; 3) a produo de material para a pesquisa, transformando memrias esparsas em fontes audiovisuais estruturadas como um todo organizado, com coerncia interna e contextualizado; 4) trazer ao pblico informaes sobre a articulao das Ditaduras de Segurana Nacional do Cone Sul, sua dinmica de atuao, e o cotidiano de medo gerado e disseminado de forma transfronteiria; 5) o resgate das formas de resistncia e colaborao solidria visando prote-ger os perseguidos polticos da regio e os mecanismos utilizados para burlar as fronteiras repressivas (os rigorosos controles migratrios, a burocracia, as alfndegas e os controles de fronteira), obteno de salvo-condutos, retirada de pessoas da regio, etc.; 6) a confluncia do voluntarismo poltico e dos esforos de determinados setores sociais e polticos que apontam para a consecuo de obje-tivos expressos nas consignas da trade Verdade-Memria-Justia e do Para que no se esquea, para que nunca mais acontea.

Finalmente, cabe mencionar as justificativas para este empreendimento. Elas se aglutinam em trs dimenses especficas: histrica, poltica e pedaggica. Em primeiro lugar, a dimenso his-trica est implcita no resgate de memrias de dois tipos de protagonistas que, em um cenrio de interdio da democracia e dos mecanismos de salvaguarda constitucionais, sofreram diretamente a aplicao de polticas estatais repressivas, mas que se organizaram para constituir um instrumento de resistncia, ajuda e solidariedade aos anteriores fica subentendido aqui que a ao consciente, individual ou coletiva, de tentar ajudar algum perseguido pela violncia estatal, j uma forma concreta de resistncia. A transformao dessas memrias esparsas em uma unidade coerente me-diante a organizao e estruturao de um arquivo sobre a conexo repressiva e a resistncia a ela est revestido de um valioso objetivo cientfico: a produo de fontes para a pesquisa histrica. Des-ta forma, tais memrias se constituem em matria-prima essencial para a recuperao da histria do passado recente do Brasil e dos pases vizinhos, integrando-se ao patrimnio histrico de cada um desses pases e, simultaneamente, ao patrimnio histrico e poltico comum de toda a regio.

Em segundo lugar se manifesta a dimenso poltica, contemplada pelo tipo de informao coletada. A partir do conjunto de relatos obtidos possvel compreender o cotidiano das ditaduras, as diversas formas de perseguio aplicadas, a ausncia de proteo estatal, a articulao dos go-vernos de segurana nacional, as responsabilidades de funcionrios pblicos e de estruturas estatais que, em vez de proteger seus cidados, os perseguiram por motivaes polticas. Tais depoimentos, pensados no seu conjunto, estimulam reflexes sobre o sentido de conceitos e categorias como de-mocracia, autoritarismo, direitos humanos, justia, cidadania, crimes de Lesa humanidade, etc.. Ou seja, a dimenso poltica deste arquivo de importncia fundamental para aprofundar uma percep-o cidad sobre o papel das instituies, dos protagonistas sociais e da (in)tolerncia poltica; quer

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dizer, a possibilidade concreta de qualificar e aprofundar a conscincia cidad atualmente existente, e reafirmar os valores essenciais da democracia, da tica e da participao poltica da sociedade na realidade em que est inserida.

Finalmente, em terceiro lugar, est a dimenso pedaggica, a qual verificvel atravs de uma tarefa essencial que faz parte das polticas de memria das sociedades que querem recuperar suas experincias traumticas e que, muitas vezes, como no caso brasileiro, sofreram prolongado silncio institucional e conseqente efeito anestsico projetado sobre o conjunto da populao. Sendo assim, a criao e publicizao de arquivos de fontes orais que registram a memria e vivncia dos coet-neos ao passado interditado, conflui com outros esforos que, desde diversos setores da sociedade ou do Estado, apontam para uma ao concreta de contraposio a um dos objetivos estratgicos mais desejados pelos responsveis e apoiadores das Ditaduras de Segurana Nacional: a desconexo entre as geraes que viveram e sofreram os regimes autoritrios e as que vieram depois. Tal desco-nexo tem-se expressado, muitas vezes, no desconhecimento generalizado das novas geraes sobre esse passado recente ou na precria utilizao de uma informao que no ultrapassa um senso comum que atesta um grau perturbador de desconhecimento ou banalizao dos eventos. Pode-se afirmar, sem temor a parecer exagerado, que tal situao o resultado da aplicao de polticas de desmemoria ou daquilo que chamamos esquecimento induzido. Esse foi alimentado por todo um conjunto de iniciativas e medidas, como a difuso de informaes ambguas, o tergiversamento so-bre os fatos acontecidos, a impreciso no uso de conceitos apropriados, a relativizao da violncia irradiada contra a populao em geral, o apagamento das responsabilidades pelos crimes estatais cometidos, a insistncia com a premissa de que houve uma guerra no pas (teoria dos dois de-mnios), ou de que a ditadura brasileira foi incomparavelmente menos opressiva que a dos pases vizinhos (tese da ditabranda). Diante dessas constataes, os esforos pela reconstituio da ponte generacional se mostram de suma importncia para que cada sociedade nacional, e a sociedade do Cone Sul como um todo (remarcando o carter regional da integrao repressiva do perodo), incorpore nos seus traos identitrios de nao, as experincias dessas geraes anteriores, seus va-lores, trajetrias, diversidades polticas, contradies, desafios, horizonte de expectativas, etc. Recu-perar as experincias daqueles que tiveram sua histria e sua trajetria apagada , assim, de funda-mental valia para que as geraes mais novas se apropriem coletivamente das mesmas, e para que o aprendizado resultante seja incorporado ao conjunto de instrumentos que uma sociedade deve ter para proteger-se ou fazer opes, de forma consciente e autnoma, em perodos conturbados.

1.2 o movimento De jUstia e DiReitos HUmanos e a RePResso Regional

A dinmica de atuao do MJDH a expresso da superposio de dois conjuntos de aes que, de forma geral, englobam os casos dos que participou. Efetivamente, dessa diversidade e sin-gularidade de situaes pouco conhecidas, inclusive pelo perfil clandestino e sigiloso das mesmas, resultam lgicas de atuao dentro da dimenso maior da resistncia e da solidariedade. Por ser parte de uma rede de trnsito clandestino de informao proibida (tanto do interior para o exterior da regio, quanto no fluxo inverso), colaborou estrategicamente ao garantir a ligao das resistn-cias internas com as oposies organizadas nos exlios; o mesmo se pode dizer quando, em situaes mais duras, serviu como canal de denncia extra-regional.

O MJDH ganhou notoriedade, sobretudo, a partir dos desdobramentos do sequestro no for-mato condor ocorrido em Porto Alegre (1978), do qual foram vtimas Llin Celiberti, seus filhos Camilo e Francesca, e Universindo Rodrguez Daz. Esse fato, seminal na histria da organizao, tambm propiciou destacado protagonismo ao jornalista Luiz Cludio Cunha e ao advogado Omar Ferri. O seqestro de Porto Alegre acabou intensificando os laos de solidariedade com a socie-dade uruguaia reprimida - a realidade uruguaia foi objeto de constante denncia do MJDH e da sua discreta e corajosa rede de contatos nos meios de informao locais, nacionais e internacionais. Cabe mencionar que, nesse momento, a imprensa brasileira vivia um momento diferente em com-parao com seus similares platinos no que se refere censura e outras formas de controle; por isso, parte dela ecoou, com certa cautela, tais denncias, propiciando a distribuio de informao para fora da regio.

Outro tipo de contribuio que organizaes como o MJDH ou o Clamor ofereceram, foi dar voz a queles inmeros familiares que, vencendo as barreiras do medo, buscavam informaes so-bre seus familiares detidos ou desaparecidos, ou que tratavam de denunciar as durssimas condies

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do sistema carcerrio uruguaio. Dentro desta modalidade de atuao, deve registrar-se a denncia internacional apresentada por mais de uma dezena de cidados orientais em Porto Alegre, em ou-tubro de 1980, em um ato pblico articulado pelo MJDH diante de representantes do SIJAU e da OAB. Desse ato participaram, entre outros familiares, as emblemticas Mara Ester Islas de Gatti e Tota Quinteros. Conectada com o Movimento, embora no exclusivamente, a resistncia uruguaia tinha em Porto Alegre um forte canal de difuso. O mesmo destino, quando de comum acordo, tinham as cartas escritas pelos prprios denunciantes que, muitas vezes, sem outra pista que um telefone ou um endereo passados por algum companheiro, chegavam ao MJDH com um simples pedido de ajuda.

Pouco a pouco, o MJDH incorporou, no seu cotidiano de denncia contra os regimes autori-trios e de colaborao com as vtimas de perseguio poltica, a preocupao em como retirar pessoas da regio. Esta foi uma demanda tambm enfrentada em carter de urgncia por entidades como Clamor, Critas ou a Comisso Justia e Paz. Nesse contexto de represso e medo e retroces-sos repressivos no Brasil, se desenvolveu um trabalho que permitiu a sada, em poucos anos, de cen-tenas de perseguidos polticos e suas famlias, do Cone Sul. O ACNUR desempenhou papel central, contando com a parceria de entidades como as citadas. A urgncia da luta pela sobrevivncia imps uma rdua e delicada misso de viabilizar a obteno de asilo para as vtimas da perseguio pol-tica. Um dos exemplos mais emblemticos e complexos, nesse sentido, foi o operativo armado para a fuga do biofsico uruguaio Claudio Benech, preso no seu pas. Junto com a sua esposa e os filhos mais velhos fugiu do Uruguai em 1 de janeiro de 1981. Uma infra-estrutura solidria permitiu-lhe viver no Brasil durante muitos meses, at sair definitivamente da regio.

Uma dimenso mais conhecida sobre a atuao do MJDH a concernente a vrios casos que possuem relao direta ou indireta com a Operao Condor. Alm do citado caso Celiberti-Rodrguez Daz, houve o caso da espionagem ao lder da oposio uruguaia, o ex-senador uruguaio Wilson Ferreira Aldunate - quando este, ainda exilado, participou de um evento poltico organizado pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, aproveitando para fazer contatos polticos com dezenas de militantes provenientes de todos os pontos cardeais do Uruguai -, e os esforos para tornar pblico e dar inteligibilidade aos casos de cidados argentinos desaparecidos em territrio brasileiro.

Em tempos democrticos, o Movimento continua acompanhando casos relacionados com a ao do Condor e nos ltimos anos tem-se envolvido nos debates sobre as hipotticas causas da morte do ex-presidente Joo Goulart. Da mesma forma, denunciou a presena do repressor uru-guaio Manuel Cordero em territrio brasileiro, depois que este fosse considerado fugitivo pela justia uruguaia. O Movimento fez um permanente monitoramento da estadia do repressor em Santana do Livramento, cidade geminada uruguaia Rivera, e participou ativamente, divulgando informao junto populao e s autoridades competentes sobre os crimes de que era acusado Cordero, tanto no Uruguai quanto na Argentina, onde atuara como um dos principais oficiais do esquema condor. Na atualidade, mesmo com Cordero extraditado Argentina, o MJDH acompanha os passos do processo em andamento, contribuindo com informao sempre que solicitado.

Como j foi referido anteriormente, o acontecimento que melhor ilustrou a histria do MJDH com a luta de resistncia e denncia ante as ditaduras de segurana nacional e de solidariedade com suas vtimas, foi o concernente quele que ficou conhecido como seqestro dos uruguaios em Porto Alegre, ou caso Celiberti-Rodrguez Daz, o caso Condor mais evidente no Brasil, e que virou um marco na luta interna do pas pela recuperao das liberdades e da democracia. Uma vez tornado pblico o fato, o Movimento se integrou exigncia de esclarecimentos sobre o ocorrido, somando foras com o intuito de investigar e cobrar responsabilidades. Na pessoa de Jair Krischke e principal-mente do advogado Omar Ferri, representou uma pea fundamental no emaranhado de situaes que se desenvolveu a seguir; da mesma forma, a acolhida que deram a Lilia Terron Rosas Celiberti, me de Llin Celiberti, que, conhecedora da lgica repressiva que se havia desatado contra o Par-tido por la Victoria del Pueblo na Argentina (a organizao poltica dos sequestrados), abalou Porto Alegre com o clamor desgarrador de Entreguem meus netos, pelo menos!1.

A complexidade deste caso desvelou, na prtica, o funcionamento da colaborao entre os governos, a metodologia de atuao dos comandos Condor, a porosidade das fronteiras ante a atuao repressiva, a compreenso do que significava combater o inimigo interno e defender as 1 FERRI, Omar. Sequestro no Cone Sul: o caso Lilin e Universindo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981. p. 45.

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fronteiras ideolgicas. O MJDH teve papel relevante nos desdobramentos posteriores vinculados a esse acontecimento (o desmonte da farsa de Bag, a denncia realizada pelo ex-agente repressor Hugo Garca Rivas, etc.). E quando Lilin e Universindo recuperaram sua liberdade, foi o Movimen-to quem os representou em ao publicamente contra o Estado gacho.

1.3 o Rio gRanDe Do (cone) sUl: exPeRincias, tRajetRias, iRRaDiaes e conexes

A atuao do MJDH teve como epicentro geogrfico o territrio do Estado do Rio Grande do Sul. A compreenso do significado dessa atuao est diretamente vinculada localizao desse es-pao a partir de uma perspectiva que no pode ser nacionalmente limitada, mas que precisa ampliar a uma dimenso regional (Cone Sul).

O Rio Grande do Sul se constituiu, desde o incio da sua existncia, como ponta de lana do imprio brasileiro e os Estados platinos. O fato de possuir simultaneamente fronteira com Argentina e Uruguai deu a esse estado uma configurao e um protagonismo poltico-estratgico muito parti-cular, especialmente diante de processos e contextos de tenso ou de aproximao entre o Brasil e os pases citados.

Caractersticas fsicas, humanas e culturais comuns ou aproximadas - o pampa interminvel, uma natureza razoavelmente assemelhada e diversos aspectos scios-culturais que se entrecruzam ao longo da histria , estimularam a confluncia de inmeras interaes individuais e coletivas ambientadas nos longos anos de chumbo que assolaram a regio. Sendo assim, no nenhum exa-gero considerar a existncia de um Rio Grande do (Cone) Sul. Nem a lngua, fator razoavelmente restritivo, foi barreira intransponvel para a constituio de santurios para a proteo, recuperao e re-estruturao das organizaes perseguidas, ou simplesmente para servir de base, ponto de pas-sagem ou trampolim para sair da regio rumo a latitudes mais distantes e seguras.

O fato de ser um estado fronteirio permitiu que pelo seu territrio transitassem, desde 1964, perseguidos polticos brasileiros que procuravam deslocar-se para o exterior, particularmente para reunir-se com os crculos de exilados que, logo aps o Golpe de Estado, se localizaram no Uruguai (e posteriormente se deslocaram, em grande parte, para o Chile). A presena dessa comunidade de exilados nos pases do Cone Sul, tornou o espao gacho uma espcie de ponte de conexo entre a resistncia interna e aquela organizada no exterior (pombos-correios, esquema de fronteira, etc.). Mas tambm foi percebido como um corredor entre dois cenrios sensivelmente diferentes para as vtimas de perseguio: um cenrio interno de muito perigo e insegurana; e outro, externo, onde era possvel retomar um clima de relativa normalidade e segurana.

A partir de meados da dcada de sessenta a situao se tornou mais complexa, com a radicali-zao da dinmica poltica nos pases vizinhos, consequncia da deteriorao interna e o crescimen-to do autoritarismo que levaram a golpes de Estado, imposio de regimes ditatoriais e terrorismo de Estado. Foi nesse contexto que ativistas polticos de outros pases da regio (Bolvia, Chile, Paraguai e Uruguai) tambm passaram a usar o territrio do Rio Grande do Sul como santurio ou local de entrada/sada dos seus respectivos pases. Com a imposio da ditadura das Juntas Militares na Ar-gentina, em 1976, se fechou o cerco na regio, tornando-a um oceano inspito e hostil marcado pela aplicao das diretrizes da Doutrina e Segurana Nacional contra todas as organizaes revo-lucionrias, reformistas ou questionadoras do sistema vigente. A expanso da espiral da violncia estatal pelo Cone Sul fez com que o Brasil - e o Rio Grande do Sul como territrio mais prximo -, apesar das restries concretas ainda existentes, passasse a ser, nos anos setenta, para muitos cida-dos chilenos, paraguaios e, sobretudo, uruguaios e argentinos, um porto seguro ou rota de escape dos cenrios de devastao vividos nos seus pases.

Foi nesse contexto de maior fechamento poltico regional que, apesar das dificuldades en-frentadas, muitos perseguidos polticos receberam ajuda concreta de grupos e organizaes que, dentro de limites muito restritos de atuao, tentaram colaborar e proteger queles que procuravam solidariedade. Mas enquanto isso ocorria, os servios de inteligncia e de segurana dos aparatos repressivos regionais tambm agiam sobre esse cenrio, desencadeando aes de controle, vigiln-cia, perseguio interna e colaborando ostensivamente entre si, agindo articuladamente em aes operativas contra todas aquelas pessoas identificadas como subversivas, independente da nacio-nalidade das mesmas. Cabe salientar que no Rio Grande do Sul, em funo dessa lgica securitista, todos os municpios de fronteira com a Argentina e o Uruguai foram transformados em reas de

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Segurana Nacional, com a conseqente intensificao e redobramento da militarizao e da ao repressiva dos rgos de inteligncia e segurana da ditadura brasileira.

1.4 o cone sUl Das DitaDURas De segURana nacional e Do teRRoRismo De estaDo2

No final dos anos cinquenta, no cenrio da Guerra Fria, a Amrica Latina sofreu dois proces-sos que a abalaram profundamente. Em primeiro lugar, a crise estrutural resultante do esgotamento de modelos econmicos, do fim dos saldos comerciais acumulados durante a Segunda Guerra, dos custos da terceira revoluo industrial e da drenagem de riquezas realizada por grupos estrangeiros. Em segundo lugar, a Revoluo Cubana e a construo de um poder popular e socialista no conti-nente, exemplo para a luta antiimperialista na regio. Assim, a imposio dos efeitos da deteriorao econmica sobre os setores populares, bem como a agitao decorrente de mobilizaes internas, demandas de mudana, radicalizao poltica, endurecimento dos setores conservadores e eferves-cncia estudantil, foram expresses de deteriorao democrtica acompanhada por uma presena estatal cada vez mais coercitiva diante da necessidade de conter a crescente insatisfao social.

A combinao dos efeitos desses dois processos levaram os Estados Unidos (EUA) a reavaliar a nova situao e os aliados necessrios para conter tamanho perigo, alm de lanar uma feroz ofen-siva de encontro a qualquer ameaa contra seus interesses e dos setores dominantes locais, atravs de mecanismos tanto legais, nos marcos do capitalismo, quanto de violncia organizada. Na prtica, os EUA passaram a implementar a Doutrina de Segurana Nacional (DSN)3, ancorados no entendi-mento de que qualquer intimidao comunista na Amrica Latina atingia-os; ou seja, a segurana interna dos diversos pases da regio passava a ser, tambm, preocupao estadunidense. Nesse sentido, a compreenso da proposio da coordenao repressiva entre regimes semelhantes como os das Ditaduras de Segurana Nacional deve estar alicerada no emaranhado de trs eixos pontu-ais: a vinculao histrica entre os setores dominantes locais e os pases centrais; os interesses dos EUA na regio e sua ascendncia doutrinria sobre os exrcitos nacionais; a multiplicao de focos de contestao e a irrupo de governos de esquerda e centro-esquerda e o conseqente temor de uma cubanizao da Amrica Latina.

O golpe de 1964, no Brasil, de certa forma inicia, qualitativamente, a imposio dos regimes securitistas na regio. Alm de reverter o processo de reformas em andamento durante a gesto Goulart, o Brasil teve significativo protagonismo na expanso da onda contra-insurgente por todo o continente, particularmente no Cone Sul - inclusive tornando-se laboratrio de prticas repressivas e foco disseminador das mesmas. Depois dele (e do Paraguai de Stroessner), foi a vez da Argentina (1966), Bolvia (1966 e 1971), Uruguai e Chile (1973) e novamente Argentina (1976). Em todos os ca-sos se instalaram ditaduras baseadas na Doutrina de Segurana Nacional que estabeleceram como principais eixos um anticomunismo militante, a identificao de um flexvel conceito de inimigo interno, a execuo da guerra interna (contra-insurreio), a imposio do papel poltico das Foras Armadas e a definio de fronteiras ideolgicas. Evidentemente que cada caso teve as suas especifi-cidades na definio do inimigo prioritrio e na organizao das estratgias de represso, porm, o marco geral de tais experincias, as diretrizes globais e a lgica de desenvolvimento foram comuns.

A DSN assumiu um papel destacado (mas no exclusivo) na estruturao desses regimes. As Foras Armadas funcionaram como ordenadoras do sistema social diante da falncia das instituies da democracia representativa e do sistema poltico em geral, alm de serem a garantia suprema da unidade nacional ameaada pelos efeitos desagregadores do perigo comunista. A DSN, ao ser in-corporada como fundamento terico da proteo da sociedade nacional a partir de um Estado que precisava esconder sua essncia antidemocrtica, configurou um estado de guerra permanente contra o suposto e difuso inimigo interno. Embora os defensores da doutrina proclamassem agir em defesa da democracia, consideravam, no fundo, que tais regimes eram fonte geradora de desor-dens, por permitir manifestaes dos setores desconformes com a ordem vigente, a qual devia ser protegida atravs de todos os meios disponveis. Assim, a liquidao dos projetos de mudana social existentes antes dos golpes de Estado, e o disciplinamento da fora de trabalho, em particular, e da 2 O texto de este item foi organizado a partir dos seguintes artigos de autoria de Enrique Serra Padrs: Elementos do Terror de Estado implementado pelas Ditaduras de Segurana Nacional. In: PADRS, Enrique Serra (org.). As Ditaduras de Segurana Nacional: Brasil e Cone Sul. Porto Alegre: CORAG, 2006. p. 15-22; Terrorismo de Estado e luta de classes: represso e poder na Amrica Latina sob a doutrina de segurana nacional. Histria e Luta de Classes, n 4, julho 2007. p. 43-49.3 A ameaa comunista no interior de cada pas apontava para a existncia de um inimigo interno que devia ser eliminado atravs dos mtodos da guerra suja, como j haviam sido experimentados pela Frana, na Arglia, e pelos EUA, no Vietn (Operao Fnix).

CAPITULO I : CONE SUL: Resistncia e solidariedade em tempos de ditaduras de segurana nacional

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sociedade, em geral, fatores de atrao de capital internacional, foram escamoteados no discurso da defesa da ordem, da estabilidade poltico-social, da nao ameaada pelo comunismo, das liberdades e da civilizao ocidental. A responsabilizao do setor poltico pela crise existente servia de argumento a favor do novo papel que deviam assumir as Foras Armadas para a realizao dos objetivos nacionais que estavam, em tese, acima de interesses particulares de qualquer tipo (de clas-se, partidrios, religiosos, etc.). A proteo da propriedade privada e dos interesses capitalistas foi associada como inerente ao modo de vida das sociedades latino-americanas, devidamente inseridas no campo da denominada civilizao ocidental, democrtica e crist.

A aplicao das premissas da DSN destruiu as bases da democracia representativa com res-tries totais ou parciais sobre os outros poderes, a interdio dos partidos polticos, a imposio generalizada da censura, a violao sistemtica dos direitos humanos e uma represso brutal contra toda oposio. O cenrio da guerra interna anunciada pelos setores golpistas extrapolou as ruas, as fbricas ou as universidades. Assim, a violncia estatal se projetou duramente contra um inimigo hipottico, mutvel, infiltrado no conjunto da sociedade, utilizado permanentemente como justifica-tiva para uma atitude de alerta constante por parte do Estado, que escondeu, na prtica, um clima de ameaa contnua sobre toda a sociedade.

Os regimes resultantes dessa brutal interveno antidemocrtica defenderam, de forma geral - cada um segundo seus interesses pontuais e com algumas diferenas que os estudos de caso preci-sam distinguir-, a desmobilizao e despolitizao da sociedade, bem como impuseram programas de desnacionalizao econmica, privatizaes e concentrao da riqueza. Sua consolidao im-plicou na criao de um novo modelo social construdo a partir de uma poltica de terror exercida desde o Estado e de uma cultura de medo projetada sobre o conjunto da sociedade, procurando atingir at os comportamentos mais cotidianos de convivncia. As estratgias para tanto fizeram parte de um plano sistemtico e bem organizado de violao poltica, fsica, psicolgica, massiva e sistemtica dos direitos humanos.

Para enfrentar a subverso, as ditaduras desencadearam aes repressivas inditas; seu maior refinamento foi a aplicao da metodologia da seqncia seqestro-deteno ilegal-tortura-extermnio-desaparecimento. As prticas repressivas utilizadas impediam a aplicao de dispositivos legais de defesa, e estavam aliceradas na certeza da impunidade e do esquecimento futuro. Com tal metodologia, a represso garantia mxima eficincia com um mnimo de responsabilidade. No sendo reconhecida a deteno do prisioneiro, este ficava totalmente merc dos seqestradores; depois, era s uma questo de apagar os vestgios da deteno, do assassinato e dos restos mortais da vtima.

Independente das nuanas de cada caso nacional, a lgica violenta dessa mquina repressiva ecoa nas palavras proferidas por ilustres responsveis desses regimes discricionrios. o caso do ge-neral Videla, que sentenciara, antes do golpe na Argentina, em uma reunio de militares da regio que: Se for preciso, na Argentina vo morrer tantas pessoas quantas forem necessrias para que se alcance a paz no pas.4 J o brasileiro Geisel afirmou: [...] esse troo de matar uma barbarida-de, mas eu acho que tem que ser.5 Ou ento, nas palavras do eminente Secretrio de Estado dos EUA, Henry Kissinger, ao sugerir aos militares argentinos: [...] Si van a matar, maten, pero hganlo rpido.6

Por detrs dessa lgica e com a justificativa de ganhar tempo e informao, a tortura virou marca registrada. Para destruir a subverso (trabalhadores, estudantes, jornalistas, guerrilheiros, enfim, qualquer um que discordasse da ordem autoritria), impingiu-se o silncio, a delao, a ocul-tao, a cumplicidade, a cooperao, a denncia e o adesismo. Ao desempenhar a sua funo pedaggica, o terrorismo de Estado semeou insegurana, imobilismo e desesperana, esperando colher a cultura do medo. Finalmente, como se tudo isso no bastasse, as ditaduras desenvolveram esquemas de colaborao efetiva dos quais o mais sofisticado e destrutivo foi o pacto clandestino que assumiu a terrvel figura do vo do Condor.

A marca mais explcita e extremada das Ditaduras de Segurana Nacional foi o terrorismo de Estado (TDE), sistema de dominao e disciplinamento aplicado de acordo s necessidades dos promotores dos golpes de Estado do perodo. Uma administrao implementa o TDE quando poten-

4 DINGES, John. Os Anos do Condor: uma dcada de terrorismo internacional no Cone Sul. So Paulo: Companhia das Letras, 2005.5 GASPARI, Elio. A ditadura derrotada. So Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 324.6 SOANE, Mara; MULEIRO, Vicente. El Dictador. La historia secreta y pblica de Jorge Rafael Videla. Buenos Aires: Sudamericana, 2001. p. 244.

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cializa todos os mecanismos, mbitos e recursos que esto sua disposio, a partir de uma lgica de uso ostensivo, extensivo e intensivo de medidas repressivas, atropelando os limites constitucionais democraticamente estabelecidos sem sofrer controle ou restrio de nenhuma instituio que ainda responda, de alguma forma, sociedade civil. No caso das ditaduras latino-americanas, o TDE foi o atalho repressivo que permitiu acelerar a superao dos seguintes desafios: primeiro, a eliminao dos focos considerados mais ameaadores, os inimigos internos associados com a sedio ou a subverso; segundo, o enquadramento geral da populao, inclusive o setor considerado mais re-fratrio ao novo padro de comportamento poltico desejado e obedincia s diretrizes dos setores que assumiram o controle do poder; terceiro, a moldagem das instituies a fim de obter, mediante cooptao, obedincia voluntria e adesista a partir de uma refundao nacional segundo os prin-cpios norteadores da DSN.

Enquanto sistema de dominao mais amplo, o TDE se expressou na forma de interveno, re-converso ou proibio das instituies que constituam os aparatos estatais anteriores aos golpes de Estado que instalaram as ditaduras. A poltica de reestruturao da administrao pblica se combi-nou com um sistema sofisticado de depurao que mesclou antigas frmulas com outras inovadoras, criativas e originais. Por exemplo, a interveno da ditadura no campo da cultura acarretou a perda da criatividade vital e a imposio de um clima pesaroso que contrastou com um clima anterior de efervescncia cultural. O oportunismo, o adesismo e o oficialismo, marcas dos novos tempos, foram formas de ascenso e de reconhecimento institucional, sintomas de uma decomposio cultural que se aprofundou sob o impulso da contra-insurgncia e do disciplinamento do comportamento social. Censura e autocensura foram registros dessa sociedade, e a combinao de medidas essencialmente repressivas com outras de asfixia econmica se mostraram sensivelmente eficientes no fechamento de empresas jornalsticas e editoriais de perfil opositor. J na rea do ensino, ocorreu a combina-o de represso, disciplina e controle, atingindo, nos diversos estabelecimentos, todos os aspectos das atividades inerentes aos mesmos (destituies massivas, expurgos, aposentadorias compulsrias, abandonos de cargo e prises de professores e de alunos).

A populao foi vtima, de forma geral, da interrupo da vida democrtica e do cancela-mento dos direitos polticos e civis. Na sua dinmica de funcionamento, o TDE atingiu tanto alvos selecionados quanto aleatrios, o que se explica pela flexibilidade do uso da figura do inimigo in-terno, que podia ser tanto algum de perfil bem definido como um alvo indicado por critrios to genricos e imprecisos que qualquer individuo poderia acabar exposto. Diante dessa impreciso, praticamente toda a populao virava alvo potencial, o que aumentava seu desconcerto, situao esta almejada pelo TDE. A amplitude multidimensional dessa incerteza perturbou as situaes mais cotidianas dos cidados, ao alterar pautas de conduta social e tornar rotineiras as formas de contro-le, naturalizando-as e disseminando-as tanto na dimenso pblica do exerccio da cidadania quanto no mbito privado.

A paralisia da oposio pelo medo e pelo silncio gerou, de forma significativa, uma cultura do medo, onde as pessoas introjetaram sentimentos de culpa, procuraram formas de escapismo e abandonaram aes de solidariedade. Em nome da sobrevivncia cotidiana, em tempos de medo e de represso, fomentaram-se a cautela, o silncio e a introspeco. O carter clandestino do sis-tema repressivo, sem dvida, contribuiu para neutralizar respostas imediatas da sociedade poltica e civil, aumentando o efeito psicolgico da violncia estatal ao torn-la annima e onipresente e preservando o governo das denncias que lhe foram imputadas sobre a violao dos direitos hu-manos. A percepo dessa represso gerou, nos atingidos, a sensao de abandono diante de uma situao marcada pela perda de solidariedade e forte presena da impunidade e da injustia, o que multiplicou, ainda mais, a insegurana e a atmosfera de medo geradores de inrcia e de imobilismo. De fato, os cidados que se sentiram indiretamente ameaados foram alvo particular da aplicao da pedagogia do medo, precondio para a incapacidade de ao e o estabelecimento de uma cultura do medo.

1.5 o cone sUl Da soliDaRieDaDe Regional

A rede atravs da qual agiu o MJDH, permitiu romper fronteiras, articulaes estatais restriti-vas e a indiferena de amplos setores populacionais das sociedades atingidas. Entidades de direitos humanos, associaes de familiares de desaparecidos polticos, associaes sindicais, organizaes polticas (legais ou clandestinas), grupos religiosos, determinados organismos internacionais, indiv-

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duos por conta prpria, etc., contriburam nessa luta de base universal. Junto com organizaes e entidades como ACNUR, OAB, SERPAJ, Comisso Justia e Paz, CLAMOR, Anistia Internacional, Casa Padre Jorge, SERPAJ, Madres de Plaza de Mayo, entre tantas outras, o Movimento colaborou na denncia dos crimes perpetrados pelas ditaduras da regio e na retirada de militantes perseguidos. Essas iniciativas de resistncia, solidariedade e denncia acabaram conformando, a partir da prxis concreta em um cenrio to fechado e atemorizador, uma rede informal constituda por organiza-es que, dependendo das circunstncias, agiram tanto publicamente quanto de forma clandestina.

O acesso a fontes de informao precisa, checada, relativamente segura e a possibilidade de rpida capacidade de interveno foram fatores fundamentais na construo das relaes de parce-ria, confiana, solidariedade e reciprocidade que foram se estabelecendo entre as organizaes que comearam a se perceber como vinculadas com o compromisso da defesa dos direitos humanos. Foi assim que essas organizaes tiveram que agir mediante dinmicas e estratgias de atuao e movimentao que no foram homogneas nem padronizadas fato quase impossvel de ocorrer diante da eficincia dos servios de inteligncia da regio; pelo contrrio, ousadia e criatividade, combinadas com doses de sorte, foram fatores essenciais, embora sempre emoldurados em consis-tente base de planejamento. O que entrelaou essas organizaes foi o entendimento de que existia um conjunto de valores, objetivos e projetos comuns que identificavam e definiam as parcerias.7 Simultaneamente, em contraposio, essa compreenso tambm permitiu identificar as foras hostis a essa atuao, e que, direta ou indiretamente, se relacionavam ou faziam parte do estado repressivo e do terrorismo de Estado.

A procura de parcerias foi decorrncia da magnitude do desafio a enfrentar - em um contexto repressivo destacado pela ausncia de regras e instituies estatais s quais recorrer bem como pela percepo de que o trabalho coletivo teria maiores chances de sucesso. Diante disso, a otimi-zao das aes foi prioridade; assim se entende o esforo em reverberar eventos que, de alguma forma, pudessem comover a sociedade, permitindo a consecuo de resultados positivos onde o que estava em jogo, muitas vezes, era a prpria sobrevivncia dos perseguidos.8

Entre as caractersticas da rede informal que foi se estabelecendo na dinmica da luta de re-sistncia e na acolhida aos perseguidos de diferentes latitudes, merece especial destaque a fluidez da mesma, especialmente no que se refere circulao de informao (e suas formas de aferio), mensagens cifradas e cdigos, relao de listas de contato e locais protegidos. Alm disso, mesmo em cojunturas mais restritivas, objetivou-se a necessidade de garantir a manuteno dessa fluidez, mesmo incorrendo na diminuio dos seus fluxos e da sua intensidade e velocidade. O fundamental era deixar o canal aberto, mesmo que, em certas circunstncias, parecesse abandonado.

Concomitantemente, o trabalho das organizaes de direitos humanos que tomaram a ini-ciativa de agir em defesa dos perseguidos polticos desencadeou uma prxis conseqente que, em algumas situaes, extrapolou os limites do risco da sobrevivncia das organizaes e dos ativistas. Isso porque no ficou restrito circulao de informaes, mas se pautou pela ao, cumprindo com a premissa apontada por Milton Santos9. Na prtica, a opo pela ao resultou da combinao da iniciativa dos ativistas com as urgncias geradas pela gravidade da situao dos direitos humanos na regio ante as prticas generalizadas de tortura, encarceramento sem garantias, sequestro, desapa-recimento e execuo de pessoas.

Outro elemento a considerar a dimenso da territorialidade da articulao e conexo da rede constituda. Essa constatao permite avaliar o alcance de uma interao que se manifesta em escala, vinculando protagonistas locais, regionais, nacionais e transnacionais. A potencializao do alcance dessa atuao foi fundamental, como resposta imposio da conexo repressiva regional e especificidades repressivas coordenadas, como no caso da Operao Condor. Consequentemente, o estabelecimento desses fluxos de solidariedade no espao regional aprofundou e amplificou com-plexas relaes essenciais para enfrentar os perversos efeitos da imposio do medo como prtica cotidiana anestesiadora, tanto considerando o interior de cada um dos pases da regio, quanto considerando todos eles em conjunto. Isto coincide com a ideia de que a rede pode ser entendida

7 SCHERER-WARREN, Ilse. Das mobilizaes s redes de movimentos sociais. Sociedade e Estado, Braslia, v. 21, n.1, p. 109-130, jan./abr. 2006. p. 113.8 FRAGA, Guilherme Barboza. A solidariedade no tem fronteiras: o grupo Clamor e a rede de direitos humanos na resistncia s Ditadu-ras do Cone Sul. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012. Trabalho de Concluso de Curso, 86 p.9 SANTOS, Milton. A natureza do espao: tcnica e tempo, razo e emoo. So Paulo: EDUSP, 2002.

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como um espao por onde se transita, emitindo, recebendo informaes ou fazendo-as circular.10 No caso concreto da dinmica do cenrio das Ditaduras de Segurana Nacional deve-se acrescer que, alm do citado trnsito de informao, houve o vital trnsito das prprias pessoas que era ne-cessrio salvar (alvos diretos e de suas famlias, pois estas, atravs da chantagem, eram usadas como iscas ou refns).

O desenho dessa rede protetora permite visualizar os pontos nodais de sustentao das princi-pais organizaes no interior de cada pas, mas tambm aquelas que tiveram uma interfase marca-damente extrafronteiria (exemplificando nos casos do CLAMOR e do MJDH). Da mesma forma, a intensidade dos fluxos de intercmbio possibilita hierarquizar protagonismos primrios ou secund-rios (embora isso dependa de cada contexto pontual). Nesse sentido, por exemplo, a Arquidiocese de So Paulo desempenhou um papel central que no s extrapolou os limites nacionais, como teve na figura maiscula de dom Paulo Evaristo Arns, um grande guarda-chuva ou manto protetor sobre cuja proteo se colocaram tanto organizaes diversas que agiram dentro da lgica solidria como coletivos de exilados (legalizados ou no).

Os setores militares e civis vinculados aos regimes ditatoriais tentaram e conseguiram negociar e incidir nos processos de transio de forma a garantir impunidade quase perptua (fato ainda no revertido em pases como o Brasil). Leis de anistia ou similares contriburam na tentativa de impor um esquecimento institucional da violncia executada dentro da dinmica do TDE. Durante anos persistiram e ainda persistem -, os efeitos desse esquecimento institucional, na forma de impunida-de, corrupo, banalizao da violncia e imobilismo social, todos eles fatores constitutivos de uma amnsia coletiva que ainda possui razes profundas no conjunto das sociedades civis da regio, e que paira como ameaa sobre o futuro das novas geraes. contra esta situao que, finalmente, podem ser compreendidos todos os esforos que se identificam nesta caminhada que aqui conclu-mos, juntando foras com todos os que generosamente deram seus depoimentos, contribuindo para resgatar, esclarecer e informar, desde seus pontos de vista especficos, os fatos por eles vivenciados, carregados de marcas que a represso impingiu, mas tambm, de atos cotidianos de luta, resistncia e generosa solidariedade.

Todas essas experincias e todos esses fatos no pertencem somente aos indivduos e organiza-es que, os vivenciaram, mas pertencem a toda uma gerao silenciada, interditada, que quando tenta resgat-los do limbo da desmemoria, sofre a acusao dos setores reacionrios de revanchista. Mas essas experincias e fatos resgatados e lembrados pertencem, tambm, a todas as geraes que vm depois daquela; elas no podem continuar ignorando que, de uma forma ou de outra, e apesar de todas as contradies que possam existir nas lembranas e nas formas de lembrar, no s fazem parte dessa histria, como, tambm, resultam dela.

10 PRAZERES, Michelle. Desafios da atuao em rede.Ritz, So Paulo, set. 2004. p. 1.

CAPITULO II

DEPOIMENTOS NO BRASIL.

CAPITULO II : DEPOIMENTOS NO BRASIL

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DePoimento 1 jaiR KRiscHKe,11 PRimeiRo DePoimento.

PoRto alegRe, 12 De maRo De 2012

P:12 O nosso tema hoje a histria do Movimento. Ento, Jair, para comear, o