minas indigena cacio silva tese integral
TRANSCRIPT
-
CENTRO EVANGLICO DE MISSES
ESCOLA DE MISSES TRANSCULTURAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MISSIOLOGIA
MINAS INDGENA
Levantamento Sociocultural e Possibilidades de Abordagens
Missionrias nos Grupos Indgenas de Minas Gerais
Por
CCIO EVANGELISTA DA SILVA
VIOSA MG
Outubro de 2002
-
Minas Indgena
MINAS INDGENA
Levantamento Sociocultural e Possibilidades de Abordagens
Missionrias nos Grupos Indgenas de Minas Gerais
Por
CCIO EVANGELISTA DA SILVA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Missiologia da Escola de Misses Transculturais do Centro Evanglico de Misses, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Missiologia.
Orientador: Ronaldo Almeida Lidrio (Ph.D)
VIOSA MG
Outubro de 2002
ii
-
Minas Indgena
PGINA DE APROVAO
A Dissertao MINAS INDGENA Levantamento Sociocultural e
Possibilidades de Abordagens Missionrias nos
Grupos Indgenas de Minas Gerais
De Autoria de CCIO EVANGELISTA DA SILVA
Aprovada por todos os membros da Banca Examinadora, foi aceita pelo Curso de Mestrado em Missiologia como requisito parcial obteno do ttulo de
MESTRE EM MISSIOLOGIA
Viosa, 28 de Outubro de 2002.
Banca Examinadora
Dr. Ronaldo Almeida Lidrio (Ph.D) - RLU
Dr. Sebastio Lcio Guimares (Th.D) CEM
Profa. Antnia Leonora van der Meer (MT) CEM
iii
-
Minas Indgena
DEDICATRIA
Elisngela, minha amada esposa, fiel e doce companheira, minha principal
incentivadora e parceira ministerial.
Aos missionrios Harold e Frances Popovich, Ronaldo e Ktia Lima, Adair e Zilene
Gomes, Marlene Martins, Joo Maria Silva, Agustinho e Nelice Cipriano, e todos os
demais fieis servos do Senhor que no anonimato ministerial dedicaram ou dedicam suas
vidas para que o reino de Deus seja expandido na Minas Indgena.
iv
-
Minas Indgena
AGRADECIMENTOS
Ao Deus trino, Senhor da seara e dos obreiros, criador e redentor das naes.
Elisngela, minha fiel e amada esposa, por sua constante presena, incansvel apoio, encorajamento, participao nas pesquisas de campo e imensa compreenso ao privar-se s vezes da minha companhia.
Ao Rev. Ronaldo Lidrio, pela atenciosa orientao, incentivo, e principalmente pelo exemplo de vida, desafiando-me a um ministrio onde o carter transpe a habilidade, e a piedade precede a erudio.
Ao Rev. Carlos Ribeiro Caldas Filho, por ter me desafiado a escrever sobre indgenas.
Ao Pr. Alcir Almeida, pela reviso e valiosas sugestes.
Ao Pr. Sebastio Lcio Guimares, pelas crticas e sugestes.
A Francisco e Rose, pela amizade, prestatividade e auxlios mecanogrficos.
Oitava Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte, pelo sustento, apoio, encorajamento e incansvel desejo de alcanar os povos com o evangelho.
Comunidade Presbiteriana de Viosa, por ter se tornado nossa famlia, encorajando, em tudo apoiando e nos dando o privilgio de servir.
Ao Centro Evanglico de Misses, por ser um exemplo de paixo pelos povos.
A todos os missionrios e lderes indgenas, que me receberam nas vrias viagens de pesquisa, fornecendo informaes preciosas nas entrevistas, sem as quais este texto no estaria completo.
A Jos e Maria Silva, meus queridos pais, pelo exemplo de vida, formao de carter e constantes oraes.
A Elviro e Maria das Dores de Oliveira, meus queridos sogros, pelo incentivo e tambm constantes oraes.
A todos os nossos intercessores, que tem nos apoiado em orao.
v
-
Minas Indgena
SILVA, Ccio Evangelista da. Minas Indgena Levantamento Sociocultural e Possibilidades de Abordagens Missionrias nos Grupos Indgenas de Minas Gerais. Viosa: Centro Evanglico de Misses, 2002.
RESUMO
Dentro das perspectivas histrica, sociocultural e missiolgica, os oito grupos indgenas de
Minas Gerais so aqui apresentados, numa tentativa de apontar a sua real e atual situao
enquanto grupos sociais etnicamente distintos, as causas que os levaram a esta situao, o
que j foi feito em termos missionrios, e o que pode ser feito a partir desta mesma
realidade. Durante sculos estes grupos sofreram uma forte ao exterminadora por parte
dos conquistadores do territrio mineiro, iniciada com os primeiros bandeirantes paulistas
que vieram para estas regies procura de tesouros minerais, sucedidos pelos militares que
a partir dos quartis praticavam o genocdio exterminando ou militarizando indgenas, e
pelos religiosos catlicos que nos aldeamentos cometiam o etnocdio ao proibirem a lngua
materna e tradies religiosas de cada tribo, bem como, ao fomentarem o casamento de
indgenas com negros. O resultado foi a reduo dos mais de cem grupos indgenas aqui
presentes no sculo XVI a apenas oito grupos que hoje lutam pela reafirmao tnica. Com
uma populao aproximada de nove mil pessoas, que preservaram trs lnguas indgenas,
estes grupos vivem uma realidade cultural de grande descaracterizao; uma realidade
religiosa de forte sincretismo animista-catlico romano; apresentam um quadro tnico de
acentuada miscigenao; e um quadro social de marginalizao. Trs principais
abordagens missionrias com diferentes frentes de atuao foram constatadas em quatro
dos oito grupos lingstica, kerygmtica e scio-assistencial restando assim, ainda
quatro grupos sem qualquer presena evanglica. Entretanto, pelo menos sete destes
grupos carecem com urgncia de um trabalho missionrio relevante.
vi
-
Minas Indgena
SILVA, Ccio Evangelista da. Minas Indgena Levantamiento Sociocultural y Possibilidades de Aproximacines Misioneras en los Grupos Indgenas de Minas Gerais. Centro Evanglico de Misses, 2002.
RESUMEN
Dentro de las perspectivas histrica, socio-cultural y misiolgicas, los ocho grupos
indgenas de Minas Gerais son presentados aqu, en una tentativa de apuntar a su real
situacin en cuanto grupos sociales etnicamente diferentes, las causas que los llevaran a
esta situacin, lo que ya fue echo en trminos misioneros, y lo que se puede hacer a partir
de esta misma realidad. Durante siglos estos grupos sufrieron una fuerte accin
exterminadora por parte de los conquistadores del territorio minero, iniciado con los
primeros conquistadores paulistas que vinieron para estas regiones en busca de tesoros
minerales, seguidos por los militares que de los cuarteles praticaban el genocidio
exterminando o militarizando los indgenas, y tambin por los religiosos catlicos que en
los aldeamentos cometan el etnocidio al prohibirles su lengua materna y tradiciones
religiosas de cada tribu, como tambin, al fomentar el casamiento de indgenas con negros.
El resultado fue la reduccin de los mas de cien grupos indgenas aqu presentes en lo siglo
XVI, a solamente ocho grupos que hoy luchan por la reafirmacin tnica. Con una
populacin aproximadamente de nueve mil personas, que preservaron tres lenguas
indgenas, estos grupos viven una realidad cultural de grande pedida de caractersticas; una
realidad religiosa de fuerte sincretismo animista-catlico romano; presentan un cuadro
tnico de acentuada miscegenacin; y un cuadro social de marginalizacin. Tres
principales aproximaciones misioneras con diferentes frentes de actuaciones fueron
constatadas en cuatro de los ocho grupos lingstica, kerigmtica y socio-asistencial
quedando as, todava cuatro grupos sin presencia evanglica. Sin embargo, por lo menos
siete de estos grupos necesitan con urgencia de un trabajo misionero relevante.
vii
-
Minas Indgena
SILVA, Ccio Evangelista da. Indian Minas Socio-cultural Survey and the Possibilities of Missionary Approximation with the Indigenous Groups of Minas Gerais. Viosa: Centro Evanglico de Misses, 2002.
ABSTRACT
Within historical, social, cultural and missiological perspectives the eight indigenous
groups of the State of Minas Gerais are presented here in an attempt to point out their
actual situation as distinct social groups, the reasons which led them to be in this situation,
what has been done in missionary outreach and what can be done in the face of this reality.
For many centuries these groups have been almost exterminated by those who conquered
these regions, starting with the first explorers from the State of So Paulo who came to this
region in search of precious minerals, followed by the military who from their bases
committed genocide exterminating or militarizing Indians and also by the Catholic priests
who in the villages committed ethnocide by prohibiting the use of their mother tongue and
the religious traditions of each tribe, as for example forcing the marriage of Indians with
the Negroes. The result was a reduction of more than a hundred indigenous groups present
here in the sixteenth century to only eight groups, whose today are struggling for their
ethnic identity. With a population of about nine thousand persons, who preserved three
indigenous languages, these groups live a cultural reality of losing their identity; a religious
reality of a strong Roman Catholic and animist syncretism; they present an ethnic picture
of accentuated miscegenation and a social situation of being marginalized. Three principal
missionary approaches with different fronts of action were discovered in four of the eight
groups linguistic, kerygmatic and social assistance, leaving the other remaining groups
without any evangelical presence. However at least seven of these groups need urgently to
receive a relevant missionary thrust.
viii
-
Minas Indgena
SIGLAS E ABREVIATURAS
ABA Associao Brasileira de Antroplogos
AD Assemblias de Deus
AIS Agente Indgena de Sade
AMTB Associao de Misses Transculturais Brasileiras
APOINME Associao dos Povos Indgenas do Nordeste, Minas Gerais e Esprito Santo
CEDEFES Centro de Documentao Eloy Ferreira da Silva
CESE Coordenao Ecumnica de Servios
CIMI Conselho Indigenista Missionrio
CNBB Confederao Nacional dos Bispos do Brasil
CPT Comisso Pastoral de Terras
FUNAI Fundao Nacional do ndio
FUNASA Fundao Nacional de Sade
GRIN Guarda Rural Indgena
GTME Grupo de Trabalho Missionrio Evanglico
IEF Instituto Estadual de Florestas
IEPHA Instituto Estadual do Patrimnio Histrico e Artstico
ISA Instituto Socioambiental
MEC Ministrio de Educao e Cultura
MNTB Misso Novas Tribos do Brasil
ONG Organizao No-Governamental
PDIA Projeto de Desenvolvimento, Integrao e Assimilao
SEE/MG Secretaria de Estado da Educao de Minas Gerais
SIL Sociedade Internacional de Lingstica
SPI Servio de Proteo ao ndio
UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UHITUP Curso de Formao de Professores Indgenas de Minas Gerais
ix
-
Minas Indgena
CONTEDO
PGINA DE APROVAO............................................................................................. ii
DEDICATRIA................................................................................................................. iii
AGRADECIMENTOS....................................................................................................... iv
RESUMO.............................................................................................................................. v
RESUMEN.......................................................................................................................... vi
ABSTRACT....................................................................................................................... vii
SIGLAS E ABREVIATURAS......................................................................................... viii
CONTEDO....................................................................................................................... ix
INTRODUO................................................................................................................... 1
PRIMEIRA PARTEMinas Indgena: Uma Perspectiva Histrica
1. ORIGEM DOS AMERNDIOS................................................................................... 41.1. O Povoamento das Amricas1.2. O Povoamento do Brasil
2. MINAS INDGENA NO PERODO PRE-COLONIAL........................................... 72.1. Civilizaes dos Abrigos (Cavernas)2.2. Civilizaes das Aldeias2.3. Civilizaes da poca do Contato
3. MINAS INDGENA NO PERODO COLONIAL................................................... 113.1. O Contato Com os Grupos do Norte3.2. O Contato Com os Grupos do Leste
4. MINAS INDGENA NO PERODO IMPERIAL.................................................. 17
x
-
Minas Indgena
4.1. Declarada a Guerra Justa4.2. A Poltica da Boa Vizinhana4.3. As Frentes de Expanso Territorial4.3. O Aldeamento de Itambacuri5. MINAS INDGENA NA REPBLICA................................................................... 235.1. SPI Servio de Proteo ao ndio5.2. GRIN Guarda Rural Indgena5.1. FUNAI Fundao Nacional do ndio5.2. Desfecho Histrico dos Grupos Mineiros5.3. O Processo de Migrao5.4. O Processo de Emergncia
SEGUNDA PARTEMinas Indgena: Uma Perspectiva Sociocultural
1. CONSIDERAES PRELIMINARES...................................................................... 371.1. Troncos Lingsticos1.2. Classificao da Origem tno-Geogrfica1.3. O Mito do ndio Puro1.4. Programas Assistenciais
2. OS XACRIAB............................................................................................................. 452.1. Situao Sociocultural2.2. Possibilidades de Abordagens Missionrias
3. OS MAXAKALI............................................................................................................ 613.1. Situao Sociocultural3.2. Possibilidades de Abordagens Missionrias
4. OS KRENAK................................................................................................................. 774.1. Situao Sociocultural4.2. Possibilidades de Abordagens Missionrias
5. OS PATAX.................................................................................................................. 935.1. Situao Sociocultural5.2. Possibilidades de Abordagens Missionrias
6. OS PANKARARU....................................................................................................... 1086.1. Situao Sociocultural6.2. Possibilidades de Abordagens Missionrias
7. OS XUKURU-KARIRI............................................................................................... 1207.1. Situao Sociocultural7.2. Possibilidades de Abordagens Missionrias
8. OS KAXIX................................................................................................................ 1328.1. Situao Sociocultural8.2. Possibilidades de Abordagens Missionrias
xi
-
Minas Indgena
9. OS ARAN.................................................................................................................. 1479.1. Situao Sociocultural9.2. Possibilidades de Abordagens Missionrias
TERCEIRA PARTEUma Anlise Missiolgica das Abordagens
Missionrias na Minas Indgena
1. ABORDAGENS MISSIONRIAS.......................................................................... 161
2. ABORDAGEM LINGSTICA.............................................................................. 1622.1. reas de Atuao2.2. Efeitos Positivos 2.3. Efeitos Negativos2.4. Algumas Sugestes
3. ABORDAGEM KERYGMTICA............................................................................ 1693.1. reas de Atuao3.3. Efeitos Positivos3.4. Efeitos Negativos3.5. Algumas Sugestes
4. ABORDAGEM SOCIO-ASSISTENCIAL................................................................ 1794.1. Efeitos Positivos5.5. Pontos Negativos5.6. Algumas Sugestes
5. AS TRADIES MISSIONRIAS.......................................................................... 1835.1.Tradio Catlica5.2.Tradio Ecumnica5.3.Tradio Evangelical5.4.Tradio Pentecostal
CONCLUSO................................................................................................................. 185
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.......................................................................... 192
ANEXO 01: Mitos e Lendas da Minas Indgena.......................................................... 201
ANEXO 02: Mapa da Minas Indgena.......................................................................... 209
ANEXO 03: Quadro de Visualizao da Minas Indgena........................................... 210
ANEXO 04: Carta Rgia de 13/05/1808 Declarao de Guerra Justa................ 212
ANEXO 05: lbum da Minas Indgena........................................................................ 215
xii
-
Minas Indgena
INTRODUO
Apenas um dos oito grupos indgenas de Minas tem sido alvo de projetos
missionrios. Trs deles tm sido abordados por igrejas locais de cidades prximas, porm
sem um direcionamento missiolgico, com objetivos e mtodos pouco definidos. Quatro
permanecem no esquecimento sem qualquer trabalho de evangelizao ou plantio de
igrejas. Qual a real situao destes grupos? Quais abordagens missionrias j foram
adotadas entre eles? Quais abordagens seriam mais relevantes? Este trabalho uma
tentativa de dar respostas a estas perguntas, objetivando disponibilizar material de pesquisa
e informaes suficientes para a elaborao de futuras abordagens missionrias
direcionadas a estes grupos.
Para tanto, foi realizada uma criteriosa e extensa pesquisa bibliogrfica1 em
literatura especfica sobre os grupos indgenas de Minas Gerais, em literatura especializada
de antropologia cultural, social e etnologia, bem como, em literatura missiolgica
relacionada ao tema, valendo ressaltar que esta ltima bastante escassa. Foi tambm
realizada pesquisa de campo in locu em todos os oito grupos em foco, envolvendo
observao e entrevistas com lderes indgenas, missionrios que trabalham e j
trabalharam com eles, comunidades vizinhas e entidades relacionadas. Foi ainda realizado
um curso sobre a histria indgena de Minas, oferecido pelo CEDEFES Centro de
Documentao Eloy Ferreira da Silva.
Esta a primeira pesquisa de cunho missiolgico e carter multi-tnico realizada
junto aos indgenas de Minas Gerais, e por isto se reveste de certa relevncia,
principalmente para a crescente pesquisa missiolgica de povos no-alcanados, mas
tambm para a igreja mineira e brasileira na sua prtica missionria, por duas razes
principais: primeiro, devido a inexistncia de dados precisos sobre estes grupos indgenas,
o que contribui para a omisso dos mesmos no movimento de expanso da igreja; e
segundo, por analisar e sugerir abordagens missionrias para grupos indgenas, pois ainda
nfimo o material missiolgico disponvel sobre esta questo.
1 A lista bibliogrfica do final deste relatrio, trata apenas das fontes efetivamente citadas no mesmo.
1
-
Minas Indgena
No primeiro captulo procura-se apresentar uma perspectiva histrica da Minas
Indgena, comeando com algumas consideraes sobre o surgimento dos amerndios e
prosseguindo com os j convencionados perodos da histria geral do Brasil pr-colonial,
colonial, imperial e repblica cobrindo cerca de quinhentos anos de histria, at a
presente data. Assim sendo, fica claro se tratar apenas de um ensaio histrico, visando
apontar as principais causas da situao atual, como base para a pauta do prximo captulo.
Uma perspectiva sociocultural da Minas Indgena apresentada no segundo
captulo, onde so registrados os principais resultados das pesquisas de campo e
bibliogrfica. Aps algumas breves consideraes sobre assuntos bem genricos, mas
importantes, cada grupo descrito com dados precisos como localizao, populao,
etnicidade, religiosidade e problemas sociais, seguidos de algumas sugestes de
abordagens missionrias com base nos dados anteriores.
O terceiro captulo apresenta uma perspectiva missiolgica das diversas abordagens
missionrias que j foram e esto sendo adotadas na Minas Indgena. Aps uma breve
descrio de cada uma com suas respectivas nfases e frentes de atuao, feita uma
anlise da relevncia das mesmas, procurando apontar os principais efeitos positivos e
negativos. Por fim, tecido um rpido comentrio destas abordagens sob a tica das
tradies missionrias, apontando as evidncias das principais tendncias teolgicas aqui
presentes.
2
-
Minas Indgena
PRIMEIRA PARTE
Minas Indgena: Uma Perspectiva Histrica
3
-
Minas Indgena
1. ORIGEM DOS AMERNDIOS
1.1. O POVOAMENTO DAS AMRICAS
Teorias arqueolgicas afirmam que o povoamento das Amricas teria ocorrido h
cerca de 12 mil anos AP2, no final da chamada Era Glacial, atravs de povos oriundos da
sia mongolides que seguindo a caa de grande porte teriam atravessado o Estreito de
Bering, que nessa poca estaria congelado, formando uma passagem terrestre que existiu
entre a Sibria Oriental e o Alasca a Berngia chegando assim ao atual Estado do
Alasca (E.U.A.). Assentaram-se primeiramente nos planaltos norte-americanos, em torno
de 11.500 anos AP, e continuaram em direo ao sul, atravs da Amrica Central at
chegar aos Andes por volta de 10.500 anos AP. A colonizao completa at o extremo da
Amrica do Sul teria se dado por volta de 10 mil anos AP. Devido a questes climticas e
caa excessiva, os animais de grande porte foram diminuindo e forando a migrao destes
povos caadores. Esta a chamada Teoria da Migrao Clovis (Roosevelt, 1999.35).
Tal teoria foi, entretanto, questionada por antroplogos que criam na possibilidade
de caadores-coletores generalizados com instrumentos menos sofisticados e um modo de
subsistncia baseado na coleta de plantas, na caa de animais menores e na pesca
(Roosevelt, 1999.37) terem chegado e se espalhado pelas Amricas antes dos caadores
especializados em animais de grande porte. Esta teoria pr-Clovis foi comprovada por
vrias descobertas arqueolgicas, sendo hoje hiptese altamente aceitvel no meio
arqueolgico a povoao das Amricas em pelo menos 40 mil anos AP. Tal concluso se
reveste de maiores evidncias se considerarmos que geologicamente comprovado um
grande resfriamento no planeta por volta de 50 mil anos AP, no chamado Perodo Glacial,
forando a migrao dos animais e caadores do Velho para o Novo Mundo.
2 AP significa Antes do Presente (ou em ingls BP Before Present) e uma expresso usada para a datao de perodos arqueolgicos, tendo convencionado como data inicial para o incio do Presente o ano de 1950. A indicao a.C. (Antes de Cristo) continua a ser utilizada, porm em dataes de cunho histrico-documental.
4
-
Minas Indgena
Foi questionado tambm o Estreito de Bering como nico canal de migrao destes
povos pr-coloniais, pois evidncias apontam a migrao de grupos menores atravs das
ilhas do Pacfico. Apesar desta hiptese no ser to bem comprovada como a teoria pr-
Clovis, hoje tambm aceitvel, pois a mesma no lana por terra a teoria de migrao
pelo Estreito de Bering, ou seja, possvel que o povoamento das Amricas tenha se dado
por mais de um canal.
A teoria das primeiras levas migratrias terem sido de mongolides raas da sia
tambm foi questionada. Abundantes descobertas arqueolgicas evidenciaram a presena
de negrides raas da frica e Pacfico Sul em perodos bem remotos aqui nas
Amricas. Uma das principais descobertas foi nas escavaes de Lagoa Santa, nas
proximidades de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Nas dcadas de 1950 e 70, mais de
cinqenta esqueletos foram escavados nesta regio, revelando a existncia da raa de
Lagoa Santa, sobre a qual, o pesquisador Andr Prous3 (1999.102), da UFMG, que
inclusive participou de algumas destas escavaes, d as seguintes informaes:
Trata-se de uma populao muito homognea, com feies bastantes peculiares, e que se parecia muito menos com os asiticos do que com os ndios americanos atuais ou com os grupos pr-histricos documentados arqueologicamente nos ltimos oito milnios. Segundo a teoria recente de alguns antroplogos, seriam aparentados aos ancestrais das populaes australianas, que teriam habitado a sia continental e migrado tanto para o norte (Berngia e Amrica) quanto para o sul (Austrlia), antes de serem substitudos na sia pelas atuais raas amarelas.
Tal descoberta se reveste de maior importncia, quando considerado o fato desta
raa de Lagoa Santa ser tipicamente de pintores, deixando uma quantidade enorme de
pinturas rupestres espalhadas pela regio, e os aborgenes da Austrlia so at hoje
conhecidos como pintores das paredes. A pesquisadora Roosevelt (1999.42), comenta:
As importantes colees de esqueletos da Lagoa Santa, em Minas Gerais, foram datadas pelo carbono 14 e tambm analisadas por antroplogos fsicos. Os resultados revelam que h 10 mil anos AP teria existido na regio uma populao de asiticos no mongolides generalizados (...) diferentes dos amerndios mongolides posteriores.
A esta raa pertence o crnio encontrado em Lagoa Santa em 1998, pelo
antroplogo Walter Neves. Datado de pelo menos 12 mil anos AP, se tornou famoso em
todo o mundo e recebeu o nome de Luzia, pois se trata do crnio de uma mulher. Nele foi 3 O cientista Andr Prous, participou, em 1971, da Emperaire - Misso Arqueolgica chefiada por A. Lamaing encarregada de reconstruir o paleoambiente de Lagoa Santa, obtendo dataes muito antigas e descobrindo grandes animais extintos. Em 1976, foi convidado para montar a primeira equipe profissional do Estado e logo iniciou pesquisas na Serra do Cip e no norte de Minas. Foi responsvel pelo Setor de Arqueologia da UFMG e pela Mission Archologique de Minas Gerais. Certamente uma das maiores autoridades na arqueologia mineira.
5
-
Minas Indgena
realizado um srio trabalho de reconstituio fisionmica na Alemanha, concluindo
terminantemente que o mesmo pertencia famlia dos negrides (Prezia4, 2000.24).
1.2. O POVOAMENTO DO BRASIL
As pesquisas interdisciplinares realizadas em vrias regies do Brasil,
especialmente no campo da arqueologia, paleontologia, antropologia e espeleologia, tm
revelado a existncia de variadas civilizaes, bem como diversificadas culturas, em
perodos bastante remotos no territrio do nosso pas. Interessante que as civilizaes que
habitaram o solo brasileiro, assim como de basicamente toda Amrica do Sul, deixaram
evidentes indcios de no serem descendentes das civilizaes norte-americanas. Na
floresta amaznica, por exemplo, isto claro, pois as pinturas, as pontas de lana bifaciais
triangulares e as ferramentas unifaciais, encontradas nos stios, indicam uma cultura
distinta das culturas norte-americanas (Roosevelt, 1999.47). Enquanto os paleondios
norte-americanos eram tipicamente caadores de grande porte, os do Brasil eram caadores
de pequenos animais, pescadores e coletores. Na Amaznia, nozes, frutas e pequenos
peixes eram os alimentos mais comuns, de acordo com o estudo dos restos alimentcios
encontrados.
No Brasil esto os stios que oferecem os dados mais abundantes sobre os
paleondios sul-americanos, e segundo Roosevelt (1999.41), vrios destes, com arte
rupestre e a cu aberto, apresentando pedras lascadas, paredes de pintura rupestre foges,
tm numerosas e consistentes dataes radiocarbnicas pr-Clovis que remontam a 50 mil
anos AP. Como estas informaes so da paleontologia5, a presena humana em datas to
recuadas assim tem sido questionada, mas fato praticamente indiscutvel a presena
humana no Brasil h pelo menos 20 mil anos AP.
4 Mineiro de Poos de Caldas, Benedito Prezia trabalhou como enfermeiro junto a populaes pobres de So Paulo e em 1983 tornou-se funcionrio do CIMI em Braslia, no setor de publicaes. Foi editor do Suplemento Cultural do jornal indigenista Porantim, para o qual escreve at hoje. Em 1977 terminou seu mestrado em semitica e lingustica geral na USP, com dissertao sobre as populaes indgenas do planalto paulista nos sculos XVI e XVII. Publicou vrios livros paradidticos, sendo o mais recente, e certamente mais importante, Brasil Indgena 500 Anos de Resistencia. 5 A Paleontologia concentra seus estudos em fsseis de animais, espcies desaparecidas, lidando assim com milhes de anos, enquanto a Arqueologia, trabalha com fsseis humanos, antigas civilizaes, lidando assim com milhares de anos.
6
-
Minas Indgena
2. MINAS INDGENA NO PERODO PR-COLONIAL6
2.1. CIVILIZAES DOS ABRIGOS (CAVERNAS)
Os estudos arqueolgicos em Minas Gerais se concentram em duas regies
principais, onde foram encontrados stios com grande quantidade de informaes das
civilizaes que habitavam as cavernas: Lagoa Santa e Serra do Cip, nas proximidades de
Belo Horizonte, e os vales dos rios Peruau e Coch, afluentes do mdio curso do Rio So
Francisco, ao norte do Estado, na regio da cidade de Januria. Na primeira, h importantes
informaes sobre as caractersticas biolgicas e ritualsticas das populaes que aqui
habitaram, j na segunda, predominam informaes sobre a tecnologia das mesmas.
Os mais de cinqenta esqueletos da raa de Lagoa Santa foram encontrados na
regio de Lagoa Santa, e sobre eles o pesquisador Prous (1991.214), acrescenta:
(...) uma populao muito homognea fisicamente era endogmica, ou seja, os membros do grupo local casavam-se essencialmente entre si (...) eram pessoas relativamente pouco robustas, que sofriam de cries dentrias fato raro entre os homens pr-histricos e de inflamaes sseas. Sepultavam os mortos em covas, embrulhando-os numa rede revestida de entrecasca, por vezes adornados com colares de sementes; despejavam p vermelho de xido de ferro na cova, que era fechada com pequenos blocos de pedra amontoadas;
H indcios de populaes habitando o territrio mineiro de at 20 mil anos AP,
mas a presena humana em Minas Gerais (e no Brasil) s claramente atestada a partir de
um perodo datado entre 11 mil e 12 mil anos atrs (Prous, 1999.102). Apesar da grande
quantidade de informaes existentes sobre esta raa, difcil sugerir de onde a mesma
teria migrado para Minas Gerais. H indcios da presena humana no Piau em datas
anteriores a 30 mil anos AP. Assim, a populao de Minas pode ter migrado do Nordeste,
mas de qualquer forma, isto difcil de ser comprovado.
6 A maioria dos livros de histria e afins se referem a este perodo como pr-histrico. Neste relatrio, entretanto, ser usado pr-colonial por entender que a expresso pr-histrico carregada de pr-conceito, pois sugere que a histria teve incio com a chegada dos colonizadores, o que um grande engano.
7
-
Minas Indgena
A menina dos olhos da arqueologia mineira a pintura rupestre, que por demais
abundante. Na regio do centro mineiro Lagoa Santa e Serra do Cip predomina a
chamada Tradio Planalto, caracterizada por grandes representaes de animais e
peixes. Esta tradio se estendeu desde o Paran at parte da Bahia.
Na regio norte do Estado, da mesma forma, h indcios de ocupao entre 11 e 12
mil anos AP, embora no tenham sido encontrados sepultamentos to antigos. As
informaes mais precisas vem das regies de Montalvnia e Januria/Itacarambi. A
despeito dos poucos fsseis humanos, uma enorme quantidade de objetos, principalmente
de caa, foi encontrada nesta regio. Pontas de flechas, instrumentos de pedra lascada, na
sua maioria robustos e espessos, e lascas compridas e delgadas. Esptulas de osso de veado
e vrias bolas de pigmento vermelho foram encontrados, alm de grandes fogueiras cheias
de coquinhos queimados e de valvas de moluscos de gua doce. Encontraram ainda, blocos
de calcrio usados como bigornas para quebrar os coquinhos (Prous, 1999.110). Tudo isto
nos d algumas dicas da tecnologia, principalmente de caa, destas antigas civilizaes.
Neste perodo mais remoto h algumas evidncias da presena do homem de
Lagoa Santa no sul da Bahia regio de Jacobina nas proximidades do norte de Minas.
Entretanto, por volta de 7 mil anos AP, h evidncias de uma populao bem diferente
daquela de Lagoa Santa, com feies bem mais semelhantes aos indgenas modernos, o
que indica uma circulao de civilizaes nesta regio. Quanto s pinturas rupestres,
predomina a chamada Tradio So Francisco, caracterizada por representaes
geomtricas e de instrumentos, que se estendeu at o Piau, Gois e Mato Grosso.
2.2. CIVILIZAES DAS ALDEIAS
Por volta de 3 a 2 mil anos AP, os abrigos (cavernas) comeam lentamente a serem
substitudos por acampamentos a cu aberto. Ao contrrio do que se pensa, as informaes
tornam-se menos abundantes, pois os fsseis de stios a cu aberto so mais vulnerveis.
No ltimo milnio, duas tradies de aldeias se tornam bem evidentes e distintas uma da
outra. A primeira chamada de Tradio Sapuca, sobre a qual Prous (1991.216) tece o
seguinte comentrio:
(..) multiplicam-se, em todo o Estado, as aldeias de uma cultura que raramente utiliza os abrigos (...) as aldeias eram formadas por grandes habitaes coletivas dispostas em crculo ao redor de uma praa central (...) a cermica no era decorada, mas os vasos menores recebiam, s vezes, um banho (engobo) de tinta vermelha (...) o lascamento da pedra, em compensao, era praticado e sem maiores
8
-
Minas Indgena
requintes: estes grupos deviam utilizar muito mais a madeira como matria para instrumentos. Algumas destas aldeias contavam at com dezoito casas, agregando possivelmente,
centenas de pessoas. A partir de vestgios como estes, pode-se atribuir este grupo aos
ancestrais dos indgenas J, que at hoje mantm padres de aldeamento parecidos.
Os grupos da outra tradio, chamada de Tupi-Guarani, no tiveram tempo de se
tornarem numerosos no Estado de Minas, e por isto deixaram pouqussimos stios
arqueolgicos. Estes vieram da regio litornea, atravs dos principais rios navegveis
Rio Doce e Rio Jequitinhonha subiram seus principais afluentes e adentraram assim o
territrio mineiro. Ao menos em parte so ancestrais dos Tupi histricos e sobre eles,
novamente Prous (1991.217) quem comenta:
Grupos canoeiros e cultivadores de mandioca ocupavam essencialmente ambientes de mata ciliar onde podiam praticar a agricultura de coivara e a pesca, suas principais atividade de subsistncia. As aldeias tupi-guarani eram tambm a cu aberto e compostas por vrias grandes malocas (habitaes coletivas de forma oval) cuja ocupao poderia ser por vrios anos. diferena dos Sapucas, decoravam suas cermicas com relevos feitos na pasta fresca (corrugaes feitas pinando o barro, impresso de unhas) ou com desenhos geomtricos muito delicados pintados em preto e vermelho sobre um fundo branco.
2.3. CIVILIZAES DA POCA DO CONTATO
Quando os colonizadores europeus aqui chegaram no incio do sculo XVI, o
territrio que hoje forma o Estado de Minas Gerais era habitado por um nmero superior a
cem grupos indgenas. Oiliam Jos (1965), conseguiu listar setenta e uma tribos que aqui
viviam na segunda metade do sculo XVI:
1. Abaet
2. Ababas
3. Abatinguara
4. Abatira
5. Aimors
6. Aiurs
7. Akro
8. Aran
9. Arari
25. Guanh
26. Guarachus
27. Imbur
28. Ins
29. Kaet
30. Kamak
31. Kapox
32. Kaxins
33. Korop
49. Monox
50. Moxots
51. Mutuns
52. Nachenuques
53. Nacknenuck
54. Naminiquins
55. Panane
56. Parutuns
57. Pojichs
9
-
Minas Indgena
10. Arax
11. Borros
12. Caiaps
13. Caramonas
14. Cariris
15. Catagus
16. Catiguus
17. Coroados
18. Coroxops
19. Crops
20. Cururus
21. Formigas
22. Giropoques
23. Goians
24. Guanas
34. Korot
35. Kotox
36. Krakat
37. Krakmun
38. Krenaques
39. Kumanox
40. Maconis
41. Malalis
42. Mandimboias
43. Mapox
44. Mariquits
45. Maxakalis
46. Menin
47. Miritis
48. Mongoy
58. Ponhames
59. Pot
60. Puriass
61. Purimirins
62. Puris
63. Purupi
64. Samixums
65. Teminin
66. Tocois
67. Tongar
68. Tupinikin
69. Xonin
70. Xopot
71. Zamplans
Sendo todos grafos, no possvel fazer um levantamento preciso, mas bvio
que os acima listados so apenas alguns dos muitos povos que aqui viviam. Em textos
sobre a presena indgena na poca da colonizao, outros nomes vo surgindo, como no
trabalho de Ribeiro (s.d.180-197), do indgena Domingos Pac (s.d.198-211) e outros:
72. Bacun
73. Baen
74. Cnmri
75. Comox
76. Cumanox
77. Cujn
78. Cutax
79. Hn
80. Jeruhim
81. Jukjt
82. Kroato
83. Mocuri
84. Nerinhin
85. Nhnhn
86. Patax
87. Pmcjiru
88. Remr
Ao contrrio do que se pensa, estes povos no viviam aqui em perfeita paz e
harmonia, como que num paraso. Alm das dificuldades naturais como a ameaa de
doenas e animais ferozes, eles viviam em clima de tenso e conflitos intertribais, inclusive
formando confederaes de guerra, como o caso dos famosos e temidos Botocudos.
10
-
Minas Indgena
3. PERODO COLONIAL
No possvel generalizar o contato dos vrios grupos indgenas de Minas com os
colonizadores europeus, pois enquanto alguns foram contactados j no sculo XVI, para
outros o contato s veio a acontecer no sculo XIX. Podemos porm estabelecer a partir de
quando eles comearam a ser contactados.
J nos dias da chegada ao Brasil, os europeus ouviam histrias dos indgenas do
litoral sobre os grandes tesouros minerais que haviam no interior. Uma destas histrias era
sobre Sabarabussu7 (Serra Resplandecente) que seria riqussima em prata e ouro. A partir
de 1553, expedies so enviadas em busca dos tesouros do interior incluindo
Sabarabussu formando assim as famosas bandeiras, compostas por grupos de at mil
pessoas (CEDEFES, 1987.22). Entretanto, a colonizao de Minas comeou efetivamente
s no final do sculo XVII, com os paulistas que penetraram o serto dos Cataguases
(Moreno, 2001.19), dentre os quais o mais conhecido Ferno Dias Paes Leme, que foi
nomeado pelo Rei de Portugal para apossar-se do famoso tesouro de Sabarabussu, sendo
atribudo sua bandeira o povoamento de Minas Gerais em 1674.
Ciente da forte presena indgena nesta regio, Ferno Dias leva consigo os
melhores matadores de indgenas, como seu filho Matias Cardoso e o seu genro Manuel
Borba Gato que guerrearam com os Xacriab. Inicia-se assim efetivamente o sanguinolento
contato dos indgenas de Minas com homens que nos livros de histria do Brasil so
chamados de heris, desbravadores do serto, fundadores de cidades, hoje homenageados,
dando a ruas, bairros e cidades8 os seus nomes, mas que para os indgenas do sculo XVII
foram, na verdade, cruis assassinos e invasores das suas terras.
medida que iam adentrando o interior, algumas tribos fugiam do contato, outras
resistiam aos exploradores. As que fugiam, se uniam a outras tribos ou acabavam se
envolvendo em conflitos intertribais devido a questo de territrio, principalmente com os
7 Expresso indgena que viria posteriormente dar nome a atual cidade de Sabar, da grande Belo Horizonte.8 Inclusive, uma pequena cidade do norte de Minas, nas proximidades da reserva Xacriab, at hoje se chama Matias Cardoso, em homenagem quele que lutou com os Xacriab.
11
-
Minas Indgena
Botocudos do leste que j vinham recuando do litoral tambm devido ao contato. As tribos
que resistiam eram, muitas vezes, massacradas ou escravizadas. Um grande contingente de
indgenas foi empregado como mo-de-obra escrava pelos conquistadores.
Faltam-nos informaes histricas sobre a maioria dos grupos que foram extintos,
principalmente dos que habitavam o oeste do Estado. Infelizmente, podemos dizer que
neste caso, a histria no necessariamente dos indgenas de Minas, mas sim dos
sobreviventes indgenas de Minas.
3.1. O CONTATO COM OS GRUPOS DO NORTE
O principal interesse dos bandeirantes em Minas era exatamente a sua riqueza
mineral e assim a explorao seguiu a rota sul-norte, com algumas ramificaes para o
oeste. J em 1554, sai uma expedio de Porto Seguro, que aps percorrer os rios
Jequitinhonha e Pardo em busca da Sabarabussu, seguem por terra at alcanarem o Rio
So Francisco, quando tambm optam pela rota norte, subindo este rio at a regio dos
ndios Xacriab. No foram bem sucedidos, mas abriram caminho para uma sucesso de
exploradores, tanto caadores de ouro e prata, como caadores de indgenas e criadores de
gado (Paraso9, 1987.16).
O norte do atual Estado de Minas, bem como o norte de Tocantins e sul da Bahia,
era habitado por vrios grupos indgenas alm do Xacriab. Dado aos constantes
enfrentamentos com os bandeirantes, os mais referidos so os Kayap, mas, segundo
Paraso (1987.16), outras referncias falam dos Xerente, Xavante, Akwn, Bororo, Pareci,
Karaj, Akroa, Kiriri, Kururu, Guariba, Amoipira, Rodela e Java. A presena dos
exploradores intensificou os conflitos intertribais, e assim comearam a surgir alianas
entre os grupos indgenas, bem como, alianas com os bandeirantes como mecanismo de
sobrevivncia, que foi o caso dos Xacriab.
A figura que mais se destacou nesta regio foi Matias Cardoso, filho de Ferno
Dias, que concentra seus esforos na criao de gado nas margens do So Francisco. Em
1690, cada um dos dezenove companheiros de Matias Cardoso recebem 80 lguas10 de
sesmaria na regio, e a ocupao destas sesmarias marcada por violentos combates entre 9 A Dr Maria Hilda Baqueiro Paraso uma profunda conhecedora da histria indgena da Bahia, Esprito Santo e leste de Minas, pois sua pesquisa de mestrado foi sobre os grupos que habitavam esta regio. Professora da Universidade Federal da Bahia, mestra em cincias sociais, doutora em histria social e etnohistria indgena, com dezessete trabalhos publicados e responsvel pela elaborao de cinco laudos periciais antropolgicos.10 Uma lgua eqivale a 6 km.
12
-
Minas Indgena
indgenas e exploradores. O primeiro grande embate aconteceu no mesmo ano, ou um ano
depois, quando uma aldeia inteira foi destruda e apesar de no haver referncia etnia,
pela localizao provvel que se tratava ou dos Xacriab ou dos Kayap. Paraso
(1987.19) informa que Matias Cardoso atacou e escravizou os Anay, Kiriri, Pimenteira,
Piac, Jandui e Ic.
Os Kayap eram resistentes e arredios, atacando tanto as fazendas de gado como as
aldeias Xacriab, sua tribo rival. Como mecanismo de sobrevivncia, os Xacriab fizeram
aliana com Janurio Cardoso de Almeida Brando11, filho e sucessor de Matias Cardoso,
na campanha deste ltimo contra os Kayap. Como resultado desta aliana, Janurio
Cardoso concedeu, em 1728, liberdade e terras aos Xacriab:
Dei terra com sobra para no andarem nas fasenda alheia do Riaxo do Itacaramby acima at as cabiceiras e vertentes e descanso extremado na Cerra Geral para a parte do perua extremado na Boa Vista onde desagua para l e para c e por isso deilhe Terra com Ordi da nossa Magestade (...) j assim no podem andarem pelas fasendas alheias incomodando os a fazendeiros misses para morada o brejo para trabalharem Fora os gerais para a suas cassadas e meladas. Arraial de Morrinhos 10 de fevereiro de 1728. Adiministrador Januario Cardoso de Almeida Brando (Schettino, 1999.27).
H notcias de outros grupos Xacriab em Gois nesta poca, mas o destino destes
desconhecido. O grupo que recebeu terras de Janurio Cardoso passou a viver em clima
mais pacfico em suas terras, mas sofreu um forte processo de miscigenao tnica com
escravos fugitivos e campesinos vindos da Bahia a procura de terras para cultivar. Desta
forma, a ateno dos historiadores passou a ser concentrada na regio leste, onde
habitavam os grupos mais resistentes, os famosos Botocudos.
3.2. O CONTATO COM OS GRUPOS DO LESTE
3.2.1. OS BOTOCUDOS
Por volta de 1760, a minerao comeou a entrar em decadncia, levando a
metrpole a voltar sua ateno para a lavoura, propondo para isto a colonizao dos sertes
do leste mineiro, que tinham como limites a Mata Atlntica habitada pelos Botocudos.
Os Botocudos no eram um povo, mas sim uma confederao de povos que
habitavam a Mata Atlntica concentrados principalmente na Zona da Mata e Vale do Rio
Doce em Minas Gerais, Esprito Santo e Bahia. Cada povo tinha seu nome prprio, mas
todos falavam a mesma lngua do Tronco Macro-J com pequenas variaes, 11 Uma das mais influentes cidades do norte de Minas, recebeu o nome de Januria, em sua homenagem.
13
-
Minas Indgena
compartilhando a mesma cultura. Ao que parece, a maioria destes grupos eram distintos
etnicamente, mas se uniram para somar foras na defesa e expanso do seu territrio.
As primeiras notcias dos Botocudos datam de 1505, quando uma grande expedio
chefiada por Francisco Espinoza, tendo como companheiro o padre Azpilcueta Navarro,
subiu os rios Buranhm, Jequitinhonha e So Mateus, encontrando um povo numeroso
entre os rios Pardo e Jequitinhonha, (...) que se enfeita com grandes rodelas de madeira nas
orelhas e no lbio inferior (Soares12, 1992.23), e os primeiros contatos belicosos se deram
ainda no sculo XVI, quando da instalao das capitanias de Ilhus e Porto Seguro, onde
por fim, grupos Botocudos acabaram sendo aldeados, em 1602, com o trabalho do Padre
Domingues Rodrigues (Paraso, 1998.414).
Nos registros histricos, vrios nomes so dados aos Botocudos. Durante boa parte
do perodo colonial, eles so chamados de Aimor nome dado pelos Tupi aos povos que
no viviam no litoral e no eram do seu grupo. Parece que inicialmente eram chamados de
Tapuias os povos que moravam no interior. Aparecem ainda outros nomes menos
freqentes, como Aim-Pore habitante das brenhas; Aim-Bor malfeitor; Aim-Bur
os que usam botoques de embar; Aim-Bir nome do chefe indgena que se aliou aos
franceses e que citado por Padre Anchieta no poema Confederao dos Tamoios; e Guai-
Mur gente de nao diferente. Em documentos do sculo XVII, aparecem os nomes
Guerm e Gren-Kren. No sculo XVIII, passam a ser chamados de Botocudos, sendo
esta a forma mais usada para se referir a eles at hoje. Entretanto, Botocudos um termo
pejorativo, inventado pelos portugueses, dado ao fato deles usarem botoques como enfeites
labiais e auriculares. Botoque para os portugueses a rolha com que se fecha o barril de
cachaa. No sculo XIX, os grupos do Vale do Rio Doce, se autodenominavam
Engrekum, que significa andarilho (Soares, 1992.40-41). Parece que esta confederao
no dava um nome a si prpria, ou se dava, este no foi registrado. Cada grupo tinha a sua
autodenominao que em geral seguia o nome do lder que o fundara, atravs de ciso
com o originrio, ou de uma caracterstica geogrfica que identificava o territrio de caa
exclusivo dos agrupamentos (Mattos13, 1996.65). Os nicos remanescentes Botocudos, 12 Desde 1979 diretamente envolvida com a questo indgena de Minas Gerais, Geralda Chaves Soares se tornou uma das principais indigenistas do Estado. Profunda conhecedora da histria indgena de Minas, e em particular dos Botocudos, bem como da histria e cultura Maxakali, pois morou com eles durante oito anos. Fez parte ativa da comisso organizadora da Campanha Internacional pela Regularizao do Territrio Maxakali. Liderou o processo de obteno de terras para os Pankararu e agora lidera a luta pelo reconhecimento tnico dos Aran. Autora de vrios trabalhos na rea, entre eles, Os Boruns do Watu Os ndios do Rio Doce.13 Izabel Missagia Mattos uma grande conhecedora da histria indgena de Minas, em particular dos Botocudos, pois sobre eles fez sua pesquisa de mestrado. Atualmente est pesquisando novamente sobre a histria indgena de Minas para a sua tese de doutorado em antropologia social na UNICAMP. J escreveu
14
-
Minas Indgena
por exemplo, se autodenominam Krenak, que o nome do antigo lder deste grupo, e se
identificam como Borun os ndios, em contraste com Kra homem branco.
Paraso (1998.419) lista nomes de alguns subgrupos Botocudos, como os
Naknenuk, Krakmun, Pejaerum, Jiporok, Pojix, Nakreh, Etwet, Takruk-Krak, Nep-Nep,
Gutkrak, Nak-Nhapm e Miajirum.
Os Botocudos foram os povos mais bem documentados de todos os perodos da
histria indgena de Minas, dada a sua forte resistncia aos exploradores. Enquanto muitos
grupos desapareceram rapidamente, frente a invaso colonial, os Botocudos se mantiveram
firmes no seu territrio at tempos bem mais recentes. Eram temidos no apenas pelos
colonizadores, mas tambm pelos grupos menores que pleiteavam um territrio nesta
regio da Mata Atlntica. Os colonizadores aproveitaram com muita astcia este clima de
tenso intertribal que j existia, incentivando os conflitos entre os demais grupos com os
Botocudos, para no se exporem na guerra.
3.2.2. OS MAXAKALI
J os Maxakali, refugiados nas florestas dos vales do Jequitinhonha e Mucuri
foram contactados bem posteriormente. Em 1719, eles se encontravam aldeados em Lorena
dos Tocois atualmente municpio de Coronel Murta no Vale do Jequitinhonha
(Soares, 1995.38). O primeiro contato com os colonizadores ocorreu em 1734
(Nimuendaj14, 1958.54), quando o mestre de campo Joo da Silva Guimares, ao
organizar uma bandeira para conquistar as cabeceiras do So Mateus, lutou com esse povo
na regio dos afluentes do Mucuri, na margem norte provavelmente nas proximidades do
rio Todos os Santos perdendo seu irmo e muitos membros da bandeira (Paraso,
1992.5). Ao notar a resistncia desses indgenas desistiu de seu intento e foi para as
cabeceiras do Rio Doce (Rubinger15, 1963.243).
Na segunda metade deste sculo os Botocudos que habitavam o Vale do Rio Doce,
tradicionalmente inimigos dos Maxakali, ao sofrerem a ao dos colonizadores na regio
comearam a se deslocar rumo ao nordeste de Minas Gerais. Fugindo da guerra com esses
mais de cinco textos relacionados ao assunto.14 Conhecido etnlogo alemo, por vrios anos atuando aqui no Brasil entre grupos indgenas, falecido em 1945, Nimuendaj esteve entre muitas tribos brasileiras, dentre as quais os Maxakali e Krenak, coletando dados que foram encaminhados ao Servio de Proteo ao ndio. Suas observaes se tornaram o primeiro documento de cunho antropolgico escrito sobre os Maxakali.15 Professor da UFMG, Marcos Rubinger visitou os Maxakali em julho de 1962 e janeiro de 1963, envolvido com o Projeto de Pesquisa Maxakali. Desta forma, foi o segundo a pr em papel um texto antropolgico sobre os mesmos. Na segunda visita, se fez acompanhar de uma estagiria do Museu Nacional, professora Maria Stella Alves de Faria, que veio tambm a escrever um documento sobre os Maxakali.
15
-
Minas Indgena
povos, parte dos Maxakali recuou para a beira-mar e foz do Mucuri. Outros grupos
menores se dispersaram por outras regies e alguns se uniram novamente. Algum tempo
depois, retornaram da costa para o interior, reaparecendo em Lorena dos Tocois em
1801, onde permaneceram at 1804. Ali a situao de misria era tanta que praticavam a
geofagia e a taxa de mortalidade era altssima. A cmara de Minas Novas decidiu distribui-
los entre os colonos e lavradores para servirem de mo-de-obra gratuita.
Em 1804, o alferes Julio Fernandes Taborna Leo criou a 7 Diviso Militar,
sediando suas tropas em So Miguel atual Jequitinhonha e transferiu os Maxakali de
Lorena dos Tocois para aquele quartel, para que compusessem suas tropas na guerra
contra os Botocudos. Ali foram tambm aproveitados como canoeiros, transportadores de
sal entre Calhau Araua e o Quartel do Salto Salto da Divisa e fornecedores de
objetos utilitrios de cermica para os colonos. Em todo perodo imperial os Maxakali
peregrinaram, geralmente em grupos pequenos, na tradicional regio do Jequitinhonha e
Mucuri, do leste de Minas ao litoral, numa tentativa desesperada de sobrevivncia.
16
-
Minas Indgena
4. MINAS INDGENA NO PERODO IMPERIAL
4.1. DECLARADA A GUERRA JUSTA
Com a chegada de D. Joo VI ao Brasil em 1808, fugindo dos franceses, houve
necessidade de mais terras para a Corte Imperial e a expanso se intensificou nas regies
dos rios Mucuri, Doce, Jequitinhonha e So Mateus, onde se concentravam os grupos
Botocudos. Chegam a D. Joo VI informaes da impossibilidade de conquistar estas reas
dada a resistncia dos belicosos Botocudos. Documentos da poca se referem a eles
dizendo que so brbaros, traioeiros, vingativos, antropfagos, sem alma, sanguinrios,
preguiosos, bestiais, quase animais, no falam o portugus, no so nem cristos! E no se
submetem aos brancos! (Soares, 1987.26). Em resposta, D. Joo VI declara oficialmente
guerra justa aos antropfagos Botocudos, autorizando a formao de milcias armadas
para atacar os ndios, a diviso entre os oficias das terras indgenas conquistadas, o
aprisionamento e escravizao de ndios subjugados, maior salrio para quem matasse mais
indgenas, iseno de tributos para quem invadisse mais terras, e vrias outras regalias16.
Esta guerra no se limitou aos grupos Botocudos, mas se estendeu a todos os grupos
indgenas do pas, mesmo porque, na prtica ela j existia, sendo aqui apenas oficializada.
4.2. A POLTICA DA BOA VIZINHANA
Quase paralelo a esta sangrenta e brbara guerra, comea surgir um novo mtodo de
pacificao dos indgenas e posse de suas terras. Um militar francs chamado Guido
Marlire, percebe que o massacre no seria o caminho ideal para conquistar estas terras,
pois mesmo frente a tamanha opresso e terrveis ataques, os indgenas resistiam, ainda
que o preo desta resistncia fosse suas prprias vidas. Marlire comea ento a usar a
poltica da boa vizinhana, ganhando a amizade dos indgenas com presentes.
16 Ver Anexo 04: Carta Rgia de 13/05/1808 Declarao de Guerra Justa.
17
-
Minas Indgena
Em 1813, ele enviado pelo Governo aos Vales dos Rios Pomba e Peixe, onde a
violncia contra indgenas estava tomando propores gigantescas. Bem sucedido nesta
regio com seu novo mtodo de pacificao, Marlire enviado aos Vales dos Rios Doce e
So Mateus, em 1819, com a misso de obter a rendio dos Botocudos. Novamente bem
sucedido, e assim, em 1824 nomeado Diretor dos ndios de Minas. Sua estratgia era
oferecer amizade e proteo aos indgenas, com a sua poderosa organizao militar,
espalhada por toda parte. Intensifica assim o surgimento de quartis e aldeamentos.
4.2.1. OS QUARTIS
Os quartis eram bases militares que ofereciam proteo aos colonos e indgenas
subjugados. Os caciques passaram a ser chamados de capites. Marlire dizia que o modo
mais fcil de pacificar uma tribo era entregar um uniforme a seu cacique, nomeando-o
Capito (Ribeiro, s.d.187). Geralmente ficavam na borda da mata e assim recebiam as
tribos que perdiam a guerra para outras, sendo expulsas pela fome e pelos inimigos.
O treinamento dos soldados indgenas era mnimo. Durante as guerras ofensivas,
que se davam geralmente no perodo das secas, eles serviam como soldados contra seus
prprios irmos. Nas outras pocas, sua misso era plantar lavouras.
4.2.2. OS ALDEAMENTOS
J os aldeamentos, eram locais construdos pelos padres ou por funcionrios do
Governo, para onde eram levados os indgenas atrados pelos presentes, promessas ou pela
falta de condies de permanecer na mata (CEDEFES, 1998.36). Nestes aldeamentos, os
padres e freiras levavam os indgenas a se converterem ao catolicismo, inclusive
batizando-os, ensinavam o portugus e promoviam casamentos com negros, visando
deliberadamente destruir suas culturas pags. Somente no perodo compreendido entre
1800 e 1850, na rea entre os rios Pardo e Doce, estabeleceram-se 73 aldeamentos e 87
quartis (Paraso, 1998.418), em torno dos quais iam juntando-se famlias de soldados,
indgenas mansos e artesos, surgindo assim vilas e povoados, que na sua maioria se
tornaram cidades hoje conhecidas e algumas at prsperas. s margens dos rios Doce,
Suassu e Jequitinhonha, somente Marlire organizou aos menos treze aldeamentos.
A poltica da boa vizinhana, entretanto, perdurou apenas durante o trabalho de
Marlire, pois depois da sua aposentadoria e reforma, a violncia contra os indgenas
voltou a mesma barbrie de antes. Inclusive, o Vale do Rio Doce se tornou novamente
palco de invases e massacres.
18
-
Minas Indgena
4.3. AS FRENTES DE EXPANSO TERRITORIAL
A dominao do Estado de Minas se deu a partir de trs principais frentes de
expanso, que seguiam respectivamente o curso dos rios Doce, Jequitinhonha e Mucuri, os
quais ligavam o territrio mineiro ao litoral. s margens e proximidades destes rios e seus
afluentes se deram os principais massacres de indgenas.
4.3.1. VALE DO RIO DOCE
Ainda no ano de 1808, foi criada a Junta Militar de Civilizao dos ndios,
Conquista e Comrcio do Rio Doce, estabelecendo seis quartis ao longo deste rio com
fins de servir como ponto de apoio guerra de extermnio dos indgenas. Os Botocudos,
profundos conhecedores da selva, resistiram e venceram os soldados desta Companhia,
mas ainda assim, aldeias inteiras foram contaminadas com vrus de varola e sarampo
(CEDEFES, 1987.32). Apesar desta tamanha resistncia inicial, a regio do Rio Doce e
seus afluentes mineiros, foi a segunda a ser considerada sob controle, atravs do trabalho
de Guido Marlire (Paraso, 1998.418). Desta regio, os nicos sobreviventes de guerra
hoje so os Krenak, descendentes dos Botocudos, que mesmo perdendo sua lngua e
grande parte dos seus costumes culturais, no perderam a conscincia da sua indianidade.
4.3.2. VALE DO RIO JEQUITINHONHA
Esta frente de expanso foi comandada por Julio Taborda Fernandes Leo, chefe
da 7 Diviso Militar, que fundou quatro quartis militares os quais acabaram se tornando
cidades ainda hoje existentes Jequitinhonha, Almenara, Joama e Salto da Divisa.
Aventureiros, assassinos, traficantes e bbados so alistados nos destacamentos
militares, e desta forma, os aliados na captura dos indgenas foram os piores elementos da
regio. O territrio diminua e por isto os temidos Botocudos se voltavam contra os grupos
indgenas menores, levando grupos como os Malali, Maxakali e Makuni a buscarem
proteo nos brancos. Julio Taborda usa-os na guerra contra os Botocudos, como j fazia
com os demais ndios aprisionados (CEDEFES, 1987.33). O Vale do Jequitinhonha foi a
primeira rea a ser considerada pelo Governo como pacificada, apesar de alguns grupos
desta regio continuarem arredios, evitando o contato, e para isto, se deslocando
constantemente pelas matas (Paraso, 1998.418). Desta regio, os nicos sobreviventes de
guerra hoje so os Maxakali, que quase extintos, se reestruturaram novamente conseguindo
preservar sua lngua e cultura, atravs de um esforo quase sobre-humano.
19
-
Minas Indgena
4.3.3. VALE DO MUCURI
O Vale do Mucuri o ltimo a ser dominado pelos exploradores e isto se d
somente a partir da segunda metade do sculo XIX. A partir de 1847, chega no Vale a
Companhia do Mucuri, chefiada por Tefilo Otoni que pretende ligar Minas Gerais ao
litoral, pois este territrio ainda era isolado do mar por uma enorme cadeia de montanhas.
Seu sonho conseguir exportar produtos mineiros para o exterior.
Tefilo Otoni possua uma filosofia de conquista semelhante a de Guido Marlire.
Seu mtodo no inclua massacres aos indgenas, mas posse de suas terras pela amizade.
Sua primeira tentativa de ligar Minas ao mar, foi atravs da navegao no Rio Mucuri e
para isto construiu dois navios, mas descobriu por fim que o rio no era navegvel. Decidiu
ento construir uma estrada, o que fez atravs de braos de mestios, indgenas e negros,
mas a mesma se tornou invivel devido a doenas, como a malria, que eram muito
comuns na regio, bem como, ataques indgenas. No alcanando seus objetivos, Tefilo
Otoni se retirou do Vale no final da dcada de 1950, mas deixou para trs colonos,
catadores de poaia, e uma guerra brutal contra os indgenas marcada por invases de terras,
matana indiscriminada, epidemias de sarampo, varola e gripe, provocadas de propsito
atravs de roupas contaminadas e comidas envenenadas (CEDEFES, 1987.42).
4.4. O ALDEAMENTO DE ITAMBACURI
Em 1841, os padres Capuchinhos so contratados pelo Imperador do Brasil para
civilizarem os indgenas (Soares, 1992.73), que tanto resistiam aos colonizadores. Em
1873, Frei Serafim de Gorzia e Frei ngelo de Sassoferrado chegam ao Vale do Mucuri e
fundam o aldeamento de Nossa Senhora da Imaculada Conceio, onde hoje a cidade de
Itambacuri. Eles so chamados de Ink-Jak de Tupan irmos de Deus. Este aldeamento
visava catequizar principalmente os ndios Botocudos na verdade, o grupo Pojix do
Vale do So Mateus que eram os mais belicosos e resistentes. De todos os aldeamentos
de Minas, este foi o mais influente e consequentemente o mais bem documentado.
O mais detalhado e fiel relato sobre este aldeamento foi deixado pelo indgena
Domingos Ramos Pac, filho do lngua (tradutor) Flix Ramos da Cruz, que foi
catequizado por estes padres, se tornou professor neste aldeamento e em 1918 escreveu um
dos mais raros documentos escrito por um indgena brasileiro do sculo XIX17.
17 Hmbric Anhamprn ti Malt Nhichopn? 1918. In: RIBEIRO, Eduardo Magalhes (org). Lembranas da Terra Histrias do Mucuri e Jequitinhonha. Contagem: CEDEFES, s.d.
20
-
Minas Indgena
Segundo Pac (s.d.198), as tribos Nocuri e Nhnhn, que somavam oitocentos
homens, sem contar mulheres e crianas, chefiadas pelo Capito (cacique) Pohc, seu av
materno, habitavam o local quando da chegada dos Freis Serafim e ngelo, que realizam
ali a primeira missa no dia 13 de abril de 1873. Auxiliados principalmente pelo lngua
Flix Ramos, Frei Serafim e ngelo, contactaram vrias tribos do Vale e foram
conduzindo-as ao aldeamento, como os Kraccat, Cujn, Jeruhim, Nerinhin, Hn, Jukjt,
Remr, Krermum, Nhn-Nhn, Cnmri, Pmcjirum, e outras (Pac, s.d.201).
Os capuchinhos no pararam por a. Continuaram atraindo mais tribos para o
aldeamento. Trouxeram tribos como os Aran e at os temidos Pojixs, mencionados como
o terror e assombro destas zonas (Pac, s.d.202), e que na verdade eram os principais
alvos. Assim, chegaram a ter trs mil indgenas, de aproximadamente quinze tribos
diferentes, aldeados em Itambacuri.
Este aldeamento j foi criado sob a regncia do Regimento das Misses, elaborado
em 1845 para estabelecer como deveria ser o trabalho dos missionrios entre os ndios.
Segundo este, as responsabilidades dos capuchinhos era atrair, aldear, pacificar e
catequizar os ndios (Soares, 1992.74). Assim, o dia-a-dia deste aldeamento foi se
tornando enfadonho para os indgenas aldeados, pois no era nem um pouco semelhante ao
dia-a-dia nas aldeias. O fato de vrios povos estarem ali misturados j no agradava aos
indgenas. Havia leis que os obrigavam a casar-se com negros e brancos, para se
misturarem e se tornarem um s povo. Deveriam tornar-se cristos, abandonando seus
rituais, pois a nica religio do aldeamento era a dos padres. Aos meninos era ensinado a
lngua portuguesa, e com a chegada das Irms Clarissas em 1907, foi criada uma grande
escola, incluindo as meninas que ali eram internadas, junto com brancas, negras e mestias.
Este ambiente aliengena e opressor rapidamente gerou revolta por parte dos
indgenas que sempre fugiam embrenhando-se nas matas ou retornando para suas aldeias.
Estes eram caados e alguns retornavam para o aldeamento. Alguns retornavam, devido a
saudade da famlia ou filhos que haviam deixado para trs. Outros desapareciam e nunca
mais eram vistos. Brigas e protestos se tornaram comuns principalmente provocados pelos
Pojixs que eram os mais arredios e tinham uma liderana muito forte. Quando uma
epidemia de sarampo provocou grande mortandade entre os aldeados, os Pojixs acusaram
os padres de feitiaria e se revoltaram, queimando o aldeamento e matando alguns padres
(Paraso, 1998.420). Pac (s.d.208) lista cinco principais revoltas que aconteceram ali, das
quais a mais grave foi quando em 24 de maio de 1893, Querino Grande, cacique dos Potn,
21
-
Minas Indgena
liderou setecentos indgenas numa revolta, na qual, os padres Manuel Pequeno e Valentim,
foram flechados, sobrevivendo por pouco.
Com os bandeirantes, os indgenas mineiros foram vtimas de um terrvel
genocdio, atravs da guerra aberta, armas ou doenas intencionalmente provocadas,
levando tribos inteiras extino. Com os militares e polticos da boa vizinhana, bem
como com os religiosos, eles foram vtimas de um terrvel etnocdio, destruindo tambm
intencionalmente suas culturas e lnguas.
Na tentativa de fazer aqui uma abordagem no apenas factual, mas tambm
ideolgica da histria indgena de Minas, preciso dizer que na sua maioria, estes padres
foram homens que se gastaram e se doaram, a uma causa que criam ardentemente se tratar
da obra de Deus. Entretanto, foram tambm manipulados pelo Estado e poderosos, na
ganncia de adquirirem uma terra que no lhes pertencia.
4.4.1. DOMINGOS RAMOS PAC
Na histria dos indgenas de Minas, e principalmente do Vale do Mucuri,
Domingos Ramos Pac digno de meno especial, pois muitas informaes que
chegaram at ns vm do documento que ele mesmo redigiu em 1918. Como o mesmo
relata (Pac, s.d.201,203), Pac nasceu no aldeamento de Itambacuri em 1869, filho da
ndia Umbelina, com o lngua Flix Ramos da Cruz, neto materno de Pohc, cacique das
tribos Mucuri e Nhnhn. Educado pelos padres capuchinhos, se tornou sacristo e aos
quatorze anos de idade professor das primeiras letras, cargo este que exerceu por dezoito
anos. Trabalhou tambm como secretrio econmico no aldeamento.
No fim do sculo XIX, desentendendo-se com os padres, deixou o aldeamento e
passou a viver peregrinando na mata por alguns anos em busca de sinais de Nossa
Senhora, que indicavam muita riqueza em pedras preciosas. No achou nenhuma fortuna
e ainda perdeu um dos olhos. Retornou s cidades se tornando professor em Igreja Nova,
atual Campanrio. Encorajado pelo historiador Reinaldo Porto, escreveu sua histria em
1918 e por volta de 1930 morreu nesta ltima cidade. Seu texto um dos mais importantes
para a histria indgena de Minas Gerais, pois vem das mos de um indgena do sculo
XIX, sendo o testemunho mais gritante do massacre cultural feito aos indgenas do Vale do
Mucuri, inclusive sua prpria tribo, que desapareceu sem deixar nenhum sobrevivente.
22
-
Minas Indgena
5. MINAS INDGENA NA REPBLICA
Com a constituio de 1891, a questo indgena deixa de ser uma responsabilidade
da Unio, ficando os Estados incumbidos de lidar com esta problemtica, mas as lutas e
massacres continuam em Minas Gerais, principalmente no Vale do Mucuri onde estavam o
mais resistentes.
Logo surge no palco nacional um novo personagem que acabaria se envolvendo
diretamente com a questo indgena: a pessoa do Coronel Cndido Mariano da Silva
Rondon. Em 1892, Rondon assumiu a chefia da Comisso de Linhas Telegrficas,
passando assim a trabalhar nos interiores mais remotos do pas. Nestes trabalhos de
instalao de linhas fez contatos com vrias tribos indgenas, ainda no contactadas, como
os Nambikuara, sempre num clima de paz e dilogo (Gomes, 1991.85). Na sua formao
militar, foi fortemente influenciado pela filosofia positivista de Augusto Comte,
apresentando assim uma nova maneira de lidar com o problema indgena. Seu lema era:
morrer, se preciso for; matar, nunca (Prezia, 2000.197).
5.1. SPI SERVIO DE PROTEO AO NDIO
Quando em 1910, sob presses de intelectuais e personalidades estrangeiras, o
governo criou o SPI Servio de Proteo ao ndio, Rondon foi indicado Diretor do
mesmo. Imbudo de um sentimento paternalista, o SPI assume a proteo e tutela dos
indgenas, considerando estes como menores de idade.
Devido construo das estradas de ferro Bahia-Minas e Vitria-Minas, o sul da
Bahia, o norte do Esprito Santo e a regio do Rio Doce em Minas Gerais, tornaram-se as
principais reas de atuao do recm criado SPI. Os Xacriab do Norte, por serem
considerados ndios aculturados do Nordeste, foram totalmente ignorados.
23
-
Minas Indgena
5.1.1. OS POSTOS DE ATRAO
Os postos de atrao eram uma nova verso dos aldeamentos. Neles, eram
concentrados um determinado nmero de indgenas, para a utilizao do restante de suas
terras. As estradas de ferro penetraram no territrio dos ltimos Botocudos, em Minas, e
para evitar conflitos entre estes, j famosos pela sua belicosidade, e os operrios, o SPI
criou cinco postos de atrao: (1) Posto da Ermida, no trecho baiano do Jequitinhonha;
(2) Posto do Rio Pepinuque, para o grupo dos ndios Jiporok; (3) Posto do Rio Pancas,
no Esprito Santo, para os Miajirum; (4) Outro no Rio Pancas, para os Gutkrak; e o (5)
Posto do Rio Eme, em Minas, para os Krenak (Paraso, 1998.420). Em decorrncia do
contato, uma grande quantidade de doenas infecto-contagiosas dizimaram a populao
indgena destes postos, e aos poucos o SPI foi desativando os mesmos, sob a alegao da
drstica reduo populacional, restando apenas o Posto do Rio Eme, destinado aos Krenak,
para onde foram transferidos os sobreviventes dos demais postos (Soares, 1992.131).
5.1.2. ARRENDAMENTO DE TERRAS INDGENAS
Em 1920, o governador de Minas Gerais, Arthur Bernardes, decide doar terras aos
indgenas do Estado. A esta altura, os mais de cem grupos que aqui viviam no sculo XVI,
estavam reduzidos a trs apenas Xacriab, Maxakali e Krenak. A maioria foi totalmente
extinta e alguns fugiram para outros estados. Os Xacriab permaneciam com suas terras no
norte, sendo crescentemente invadidas por campesinos e fazendeiros. Assim, Arthur
Bernardes entrega aos Maxakali 4 mil ha. e aos Krenak 2 mil ha., ampliando
posteriormente para 4 mil ha. tambm. Entretanto, alegando que os indgenas eram
nmades e sua incipiente agricultura insuficiente para sustent-los, funcionrios do SPI
comearam em 1921 a arrendar terras indgenas Maxakali e Krenak para trabalhadores
nacionais, que deveriam pagar com alimento para os indgenas (Paraso, 1998.421).
Desta forma, tem incio efetivo a intruso de agricultores e fazendeiros nestas
terras, que com o passar do tempo foram se tornando donos das terras cultivadas. Para a
criao de bovinos, estas terras, principalmente a dos Maxakali, so desmatadas
transformando-se em pasto, o que acaba com a caa e coleta. Com o desmatamento, os rios
diminuem, desaparecendo tambm a pesca. Sem suas principais fontes de subsistncia, os
ndios comeam a arrebatar animais dos intrusos de suas terras, bem como, da populao
vizinha. O sentimento de dio e repulsa por parte da populao dominante em relao aos
indgenas aumenta ascendentemente. Este conflito entre os inicialmente arrendatrios, mas
posteriormente declarados intrusos, perdura at o final do sculo XX.
24
-
Minas Indgena
Quando em 1940 decide-se demarcar as terras Maxakali vrias aldeias ficam fora.
Um grande corredor de fazendas separa as duas aldeias e os fazendeiros intrusos no so
removidos, permanecendo nas terras mais de cinqenta anos ainda. Nesta mesma data
aumentado o arrendamento das terras Krenak e o pagamento passa a ser feito ao SPI.
Como se percebe, o SPI se transforma numa mquina oficial, invadida pela
corrupo e violncia (Prezia, 2000.198). O sonho de um rgo oficial de proteo aos
ndios, torna-se num pesadelo real de um rgo oficial de opresso aos indgenas. O
idealismo de Rondon frustrado pela ambio de uma sociedade exploradora, governada
por polticos obcecados pela posse de mais e mais terras.
5.2. GRIN GUARDA RURAL INDGENA
Com o golpe de 1964, quando se instalou o regime militar no pas, o SPI foi
extinto, com a destituio de toda sua diretoria. Dois anos depois, em 1966, foi criada a
GRIN Guarda Rural Indgena, com o objetivo de transformar os indgenas em militares,
sob o comando do Capito Pinheiro.
Indgenas de toda parte do pas foram transportados para Belo Horizonte, onde
receberam treinamento militar, para reprimir seus prprios irmos. Xerente, Pankararu,
Urubu Kaapor, Gavio, Patax, Maxakali (Soares, 1992.138) so apenas alguns dos
muitos povos representados na GRIN. Como j era de se esperar, este treinamento no
levou em considerao questes tnicas e culturais. Acontece ento um grande etnocdio e
acelera o processo de destruio cultural. Muitos ndios revoltados fogem, ou tentam fugir,
e so duramente reprimidos.
5.2.1. COLNIA PENAL INDGENA
No mesmo ano que criada a GRIN, cria-se tambm uma Colnia Penal Indgena,
e o local escolhido para sedi-la o territrio Krenak, do Vale do Rio Doce. Para l so
levados em regime de deteno indgenas acusados de crimes, tachados como rebeldes e
infratores. O Centro de Reeducao Indgena funciona no velho esquema militar: trabalho
forado, solitria, violncia e assassinatos (Soares, 1992.140-141).
Segundo Paraso (1998.422), o presdio chegou a abrigar entre sessenta e oitenta
indivduos, em mdia, com representantes das tribos Karaj, Kampa, Maw, Xerente,
Kayap, Baen, Kadiwu, Bororo, Kaiw, Kanela e Pankararu. Os principais motivos de
25
-
Minas Indgena
deteno ali registrados, foram roubo, homicdio, embriaguez e vadiagem. Em 1971, este
presdio foi transferido para a Fazenda Guarani, no municpio de Carmsia, e com ele os
seus detentos, juntamente com os anfitries compulsrios Krenak, e l se juntou a eles
um grupo dos Patax da Bahia. Esta colnia penal funcionou apenas at 1972, mas foi
tempo suficiente para provocar a morte, sofrimento, exlio e fuga de vrios indgenas,
principalmente Krenak.
5.3. FUNAI FUNDAO NACIONAL DO NDIO
Em dezembro de 1967 foi criada a FUNAI Fundao Nacional do ndio,
substituindo assim o extinto SPI. Enquanto o SPI tinha como principal objetivo civilizar
os indgenas e torn-los teis sociedade dominante, a FUNAI tem o objetivo de
integrar os indgenas sociedade dominante. Desenvolvendo trabalho em parceria com
entidades religiosas e ONGs, tem em Minas como principais parceiros o CIMI Conselho
Indigenista Missionrio, com forte atuao principalmente entre os Maxakali a partir da
dcada de 1980, e o CEDEFES Centro e Documentao Eloy Ferreira da Silva, que at
hoje lidera a luta pelos direitos indgenas no Estado. Surge assim um movimento de
articulao, sendo um marco deste a Primeira Assemblia Indgena do Leste, realizada em
Itambacuri, em 1979 (Ribeiro, s.d.7). Na dcada de 1980, os indgenas de Minas obtm
apoio de sindicatos de trabalhadores e em 1989 acontece em Governador Valadares, o 1
Encontro de Lideranas Indgenas de Minas Gerais e Esprito Santo (Soares, 1992.15).
5.4. DESFECHO HISTRICO DOS GRUPOS MINEIROS
O sculo XX foi marcado por uma intensa resistncia e luta dos grupos Xacriab,
Maxakali e Krenak pela sobrevivncia e posse de suas terras. Mesmo neste sculo, muito
sangue indgena foi derramado e o leste e norte do Estado foram palco de aes brutais por
parte do governo, fazendeiros e poderosos contra os indgenas.
5.4.1. A LUTA DOS XACRIAB
Devido a sua forte miscigenao tnica e elevado grau de descaracterizao
cultural, os Xacriab permaneceram basicamente sem nenhuma assistncia at bem
recente. No incio do sculo XIX, os Xacriab de So Joo das Misses estavam
abandonados pelo poder da provncia (...) sem missionrio ou diretor (Paraso, 1987.22), e
26
-
Minas Indgena
esta situao se estendeu at a segunda metade do sculo XX. Apesar de no serem mais
vtimas das elites pioneiras, portugueses e paulistas, foram vitimados por outro tipo de
invaso. Levas de baianos pobres, sertanejos, retirantes do serto baiano em funo das
secas, migraram para Minas em busca de terras para cultivo (Schettino, 1999.28).
A primeira gerao de retirantes acolhidos pelos Xacriab em suas terras,
entenderam o princpio de uso da terra no como propriedade privada mas comunitria,
entretanto, os filhos destes retirantes, que na sua maioria nasceram ali, passaram a se sentir
donos das terras. Muitos desses retirantes se casaram com indgenas tornando o
relacionamento intertnico tolervel, mas com o passar do tempo, a situao foi se
tornando conflitiva. Esses casamentos intertnicos provocaram tambm uma forte
miscigenao que hoje bem visvel. A populao Xacriab bem morena e de cabelos
crespos, dada grande quantidade de casamentos com negros forros, ou baianos. Vale
lembrar, que isto se deu principalmente entre a segunda metade do sculo XIX e primeira
do sculo XX, perodo de transio do Imprio Repblica e promulgao da Lei urea,
quando a tendncia dos ndios foi de acolher dentro dos seus limites (...) contingentes
marginalizados da sociedade nacional, retirantes baianos pauperizados e negros forros ou
fugidos que encontraram no territrio indgena condies mnimas de sobrevivncia e
sociabilidade (Schettino, 1999.31).
Mas a invaso se deu no apenas por retirantes. Fazendeiros da regio,
ambicionando aumentar suas propriedades, exerceram tambm forte presso sobre os
Xacriab, expandindo seus limites para dentro da reserva indgena.
Quando o SPI foi criado em 1910, se dedicou apenas aos ndios isolados, ignorando
os aculturados do Nordeste. Somente em dezembro de 1973 foi criado o Posto Indgena
Xacriab e em 1979 seu territrio foi homologado, com 46.414,92 ha. sendo na verdade
uma reduo da rea doada por Janurio Cardoso, que por sua vez constitua-se numa
pequena parcela do territrio original. Um lugarejo chamado Rancharia, considerado por
eles parte do seu territrio ficou fora desta homologao, o que gerou certa insatisfao.
Suas terras, entretanto, permaneceram infestadas de posseiros que os oprimiam e
limitavam seu territrio. A partir da homologao a tenso com estes posseiros se
intensificou, tomando uma dimenso de agressividade. No dia 14 de maio de 1986, o
indgena Jos Pereira Lopes, conhecido como Z de Benvinda, foi assassinado, pela ao
de pistoleiros, ficando feridos os indgenas Manuel Fiuza Filho e o homnimo do morto,
Jos Pereira Lopes, na aldeia de Sumar (Paraso, 1987.25).
27
-
Minas Indgena
Conseqentemente, instaurou-se um clima de revolta e medo na reserva,
aumentando drasticamente a tenso. Por volta das duas horas da madrugada, do dia 12 de
fevereiro de 1987, na aldeia Sap, a casa do vice-cacique Rosalino Gomes de Oliveira foi
cercada por dezesseis pistoleiros que dispararam tiros impiedosamente contra todos que
estavam na residncia. Naquele dia foram mortos os indgenas Rosalino, Jos Teixeira e
Manuel Fiuza da Silva, que ainda se recuperava dos ferimentos do ultimo ataque. Ansia
Nunes, esposa de Rosalino, grvida de dois meses, abraando a filha Rosalina, de apenas
dois anos, tambm foi ferida no brao. Seu filho Jos Nunes, hoje um dos professores
Xacriab, naquela poca apenas com dez anos de idade, foi obrigado a arrastar o corpo
ensangentado do pai at o terreiro, para os pistoleiros verificarem se realmente estava
morto. Seu irmo, Domingos Nunes, conseguiu fugir sob tiros em sua direo, e o
prprio que relata esta drstica e revoltante chacina (Oliveira, 1997.35,36).
Com esta chacina o processo foi levado a srio e assim, ainda em 1987, finalmente
foi processada a expulso dos posseiros da reserva Xacriab. No entanto, dois fatos ainda
os incomodavam. Seu territrio permaneceu ligado ao municpio de Itacarambi, onde o
prefeito no era nem um pouco simpatizante dos indgenas, alis, foi um dos mandantes
desta ltima chacina. Desta forma, continuam lutando at que em 1996 So Joo das
Misses foi emancipado municpio, se desligando assim de Itacarambi, e o cacique
Rodrigo foi eleito e reeleito vice-prefeito (Dutra, 1998.36-38). Outro fato, era o vilarejo
de Rancharia, que com aproximadamente setenta famlias, somando cerca de seiscentas
pessoas, permanecia no homologado como territrio indgena. Em 1996, entraram com
uma reivindicao oficial junto FUNAI solicitando a regularizao de Rancharia com
6.600 ha., o que aconteceu no incio de 2001, ampliando assim o territrio total dos
Xacriab para 53.014,92 ha. Assim, finalmente reina paz na reserva Xacriab.
5.4.2. A LUTA DOS KRENAK
Apesar de receberem terras do governo em 1920, os Krenak no tomaram posse
efetiva das mesmas to cedo. Com a prtica do arrendamento de terras indgenas, os reais
proprietrios foram sendo compulsoriamente expulsos. J em 1923 acontece um terrvel
massacre em Cuparaque, municpio de Resplendor, quando vrios homens, mulheres e
crianas Krenak foram assassinados. Em 1930, o SPI transfere outros povos indgenas para
o Posto Indgena Krenak o que resulta numa bvia miscigenao tnica.
Em 1942 seu territrio foi demarcado com uma rea de 3.983.09 ha., mas em 1956
so exilados para as terras dos seus antigos inimigos Maxakali e o Posto Indgena
28
-
Minas Indgena
declarado extinto. Como j era de se esperar, o contato com os Maxakali resultou em
conflitos, ocasionando o retorno do grupo, p, dois anos depois, para suas antigas terras,
que nesta altura estavam invadidas (Faria, 1992.12). Caminharam noventa e cinco dias.
Os Krenak passam a conviver de forma forada com os fazendeiros que haviam se
apoderado das suas terras, convivncia esta que agravada com a criao da Colnia Penal
em 1966 ao introduzir indgenas de vrias outras etnias no mesmo ambiente.
Em 1972, so novamente exilados, s que desta vez na Fazenda Guarani, municpio
de Carmsia, para onde foi transferida a Colnia Penal. Os que se recusaram a sair da terra
foram algemados e levados pela polcia. Alguns foram para o Posto Indgena de Vanure,
em So Paulo, viver com os Kaygang, enquanto outros se dispersaram e foram viver
clandestinamente em Colatina, no Esprito Santo. Mas ainda na dcada de 1970, comeam
a se organizar na luta pela terra, fazendo contatos com autoridades em Belo Horizonte e
Braslia. Recebem apoio do CIMI, antroplogos e outras entidades.
Em 1979, o Rio Doce enche e transborda, devastando as plantaes dos fazendeiros
que ocupavam as terras. Nesta altura, a articulao dos Krenak pela posse das terras j
estava bem avanada e eles entendem esta enchente como um sinal de que estava na hora
do retorno. Os fazendeiros se mobilizam, mas eles recebem apoio de trabalhadores rurais,
sindicatos, imprensa e vrias outras entidades e retornam novamente s suas terras.
Seguem-se ento duas dcadas de demanda judicial. Mesmo sendo despejados por
vrias vezes, os Krenak persistem sempre retornando novamente. Em 1989 um grupo dos
Krenak que estava vivendo em Vanure retornou, aumentando assim a fora indgena.
Vrios encontros so realizados, no apenas entre os indgenas de Minas, mas tambm com
os do Esprito Santo e Bahia. Destaca-se neste perodo o apoio da Igreja Metodista de
Colatina e Belo Horizonte, atravs do trabalho do GTME - Grupo de Trabalho Missionrio
Evanglico (Soares, 1992.191-193). Houve uma grande mobilizao, at que finalmente
obtiveram a reintegrao do seu territrio, com 3.983,09 ha., sendo os posseiros retirados
pela ao da Polcia Federal, em abril de 1997 (Dutra, 1998.18).
5.4.3. A LUTA DOS MAXAKALI
Somente depois da visita de Curt Nimuendaju aos Maxakali em 1939, quando
registrou a existncia de duas aldeias apenas