micropolÍticas de resistÊncia em … · porque ela, pela própria atitude, já é o...
TRANSCRIPT
“QUE QUE É ISSO QUE ESSAS BICHAS TÃO FAZENDO?”
MICROPOLÍTICAS DE RESISTÊNCIA EM ENVIADESCER DA MC LINN DA
QUEBRADA
Samilo Takara
Doutorando e Mestre em Educação/PPE-UEM
“Uma bicha não pode ter requinte. Porque ela, pela própria atitude, já é o anti-
requinte”. Entender a expressão dita por um entrevistado à pesquisadora Carmen Guimarães
(2004, p. 98) quando ela pergunta a diferença entre a bicha e o homossexual é perceber que a
figura feminina em corpos machos – a bicha – é uma forma de contraposição ao que foi
entendido social e culturalmente. Essa figura rompe com as normativas e estruturas das
masculinidades – sejam elas heterossexuais ou homossexuais.
Desse modo, é necessário para a apresentação deste ensaio teórico, elencar elementos
que explicitem os desconfortos das feminilidades em corpos machos e das homossexualidades
a uma estrutura lógica binária que segrega, valora e supõe que o masculino e o feminino
sejam opostos, contraditórios e complementares no contemporâneo. Entrar em conflito com
essa leitura acerca das relações de gênero é retomar um esforço empreendido por Louro
(2013) para problematizar Um corpo estranho, como a autora denominou sua obra que
analisa e problematiza o movimento queer.
Para tal (e)feito, valho-me da explicação de Zago (2013, p. 27) acerca da experiência
para explicar que “[...] não é algo transferível ou comunicável, experiência não é objeto:
experiência talvez seja produção de vida, aquilo que catalisa e provoca a produção de vida,
aquilo que faz produzir vida (que produz dúvida, receio, curiosidade, memória, reflexões) em
mim e nos/as outros/as, em nós todos/as” (ZAGO, 2013, p. 27). Ou seja, a experiência
relatada causa experiências no/a leitor/a.
Assim, o/a leitor/a que se depara com a blasfêmia – aqui lido como movimento
ensinado por Donna Haraway (2009) – não como apostasia, incredulidade, mas passível de
crítica, de análise e de problematização porque existe algo em que se acredita. Esta blasfêmia
é feita com a experiência estética/formativa do clipe e da letra da música Enviadescer feita por
MC Linn da Quebrada, uma artista/ativista terrorista de gênero que se denomina bicha,
transviada, preta e periférica. Este gesto de leitura e interpretação pode ser uma blasfêmia em
muitos sentidos: por trazer um funk para ser lido e problematizado na ciência, por fazer a
ciência – este espaço crédulo, asséptico e sem vida – espaço para a vida, a obra e a
experiência – que aqui é uma blasfêmia – um espaço para ler as possibilidades pedagógicas da
produção de uma ativista/artista.
Entretanto, rendo-me aqui o título de uma bicha que está analisando a obra de outra
bicha acerca das masculinidades afeminadas e das críticas a um sistema engessado para
problematizar outras formas de viver e diferentes experiências. Chamo-me de bicha para
afastar o/a leitor/a curioso do conforto de pensar-me como um colega que redige um texto e
coloco-me como alguém que trabalhando com um material documental, emprega métodos e
técnicas, no intuito de descobrir algo. Perigoso gesto. Posso ser desacreditado no campo
acadêmico por ser subjetivo e relativista, embora, eu tenha fundamentação teórica até para me
aproximar desse pecado de relativizar.
Defendo-me com o que Larrosa (2010, p. 157-158) ensina-me em sua pedagogia
profana:
O relativismo é pecado porque vai contra a fé – e é necessário conservar a fé
na realidade e na verdade porque essa fé é condição indispensável para que
sejam fiéis aos que falam em seu nome, a todos aqueles por cuja boca fala a
realidade e a verdade, bem como para seguir seus mandamentos. E, da
mesma forma que houve um tempo em que se obedecia aos que falavam em
nome de Deus e transmitiam suas ordens, é necessário que se obedeça aos
que falam em nome dos Fatos e transmitem seus imperativos. E é essa fé que
hoje parece estar em crise (LARROSA, 2010, p. 157-158).
Como me chamei acima de bicha, aprendi o blasfemar supracitado como estratégia. E
vou usar um linguajar acadêmico e problematizar com base em autores, em uma seleção de
método bibliográfico e documental, desenvolvendo um estudo exploratório na perspectiva de
uma pesquisa qualitativa para problematizar o movimento de Enviadescer ensinado por MC
Linn da Quebrada em seu artefato cultural (clipe/música). Este ensaio coloca-se sob suspeita.
Não é necessário esconder esse interesse em fazer incômodo aos cânones acadêmicos.
Estamos em disputa, porque como ensina Wallerstein (2004, p. 8) “[n]ão há
conhecimento desinteressado. Todo conhecimento é uma investida política no mundo. E
enquanto atitude política, não se pode aceitar qualquer coisa”. A autora mostra como os
feminismos criaram diferentes leituras de mundo e ofereceram perspectivas que reconhecem a
necessidade de problematizar, de não aceitar por pronto e dado o conhecimento que vem
disseminado por valores e ideais constituídos e embrutecidos por uma lógica rígida.
Perder a rigidez, claro, sem deixar de lado o rigor, porque como explica Veiga-Neto
(2009, p. 87), “[...] sempre é preciso seguir alguns preceitos, normas ou regras previamente
estabelecidas por uma cultura que nos precedeu e na qual estamos mergulhados [...] quando
aqui chegamos, o mundo já estava aí...”. (VEIGA-NETO, 2009, p. 87). Aceitar o
funcionamento do rigor é colocar-se em disposição a problematizar os sentidos e não
perverter determinadas regras que sustentam o campo para ser um espaço de disputa, de
mudança e de formação de sentidos acerca do mundo. Ser uma bicha pesquisadora não desfaz
nenhum cânone específico do pensamento científico, a não ser que tenhamos por entendido
que bichas são incapazes de pesquisar.
Não creio que seja assim. Desse modo, retomo a leitura de Guimarães (2004) em que a
autora explica que existem lógicas sustentadas que classificam o macho na sociedade com sua
identificação como pertencente ou não a uma cultura homossexual, gay ou homoerótica e que
pode ser lida de diferentes modos. O homossexual pode ser masculino, hipermasculinizado ou
mesmo existem heterossexuais que realizam práticas afetivas e sexuais com outros homens
também heterossexuais ou, ainda, homossexuais e que são chamados de HsH (Homens que
fazem sexo com Homens), como denomina o Ministério da Saúde em suas campanhas de
prevenção de Doenças Sexualmente Transmissíveis.
Mas também existe o anti-requinte. Garcia (2000, p. 12) diz que a bicha “[...] como
indicação sociocultural pejorativa (discriminatória e preconceituosa)” dita no Brasil não
agrada a todos. Há quem prefira o termo homoerótico porque o termo “descarta o
estigmatismo do sujeito, passando a eleger o ato, enquanto atividade, ação homoerótica”
(GARCIA, 2000, p. 13). Entretanto, não há como discordar de Trevisan (2000, p. 21) que
“[...] vivemos numa cultura das aparências”. Ou seja, a bicha é um problema para o
homoerótico, o homossexual, o gay ou qualquer outra nomenclatura que classifique esse
grupo, porque como anti-requinte a bicha é o que é: um macho afeminado.
Incômodo nítido para a análise de Trevisan (2000, p. 399) percebo que existe um
machismo arraigado que incomoda porque os papeis são binários e estipulam que existam
feminilidades e masculinidades estáticas. Desse modo, a homossexualidade passa a ser lida
socialmente e culturalmente de forma heteronormativa e compulsória em que é necessário
existir alguém que ocupe o local do feminino heterossexual: a bicha. Assim, “[...] as bichas
desmunhecadas (objeto de escárnio social) e, no outro polo, aqueles bofes que comem bichas
(sem que seja diminuída sua virilidade social). Mas, em se tratando da cultura brasileira
carnavalizada, nem tudo que reluz é ouro”.
Gosto de como Paulo Augusto entende a bicha, apesar de ser mais que isso, é
interessante ver como rompemos com uma lógica fixa, rígida ou sem vida. “Ser bicha é um
estado de espírito,/ de choque, de sítio/ de graça./ É ter parte com o demônio,/ aprendiz de
feiticeiro./ É estar entre, no meio, ser meta-de/outros homens” (AUGUSTO, Paulo apud
TREVISAN, 2000, p. 266-267). É nisso que me interessa a análise do clipe/música da
artista/ativista Linn da Quebrada. Ela propõe em um trecho de sua letra que “se quiser ficar
comigo boy, vai ter que enviadescer”. Linn, leva a música por outro caminho, diferente de
levar em conta apenas a prática sexual.
[...] ser homossexual reduz-se, lamentavelmente, a fazer sexo. Ora, o
consumo de sexo passa pela garganta estreita dos padrões “vendáveis” no
mercado da carne, em clima de competição baseada no exibicionismo.
Criou-se para tanto um estereótipo, cada vez mais implantado, de
superbichas, quer dizer, homens vendendo fantasias exacerbadas, com base
no tripé virilidade, beleza e juventude. [...] Os mesmos corpos, os mesmos
músculos, as mesmas poses. E o antigo anseio por uma identidade, tão cioso
do direito à diferença, resultou na obsessão generalizada de buscar no outro
o mais igual possível a si mesmo. A padronização virou culto à igualdade.
Ou seja, instaurou-se uma uniformização do desejo. (TREVISAN, 2000, p.
472).
Se esses são os valorizados por uma sociedade de consumo e espetáculo, os alvos
devem ser exilados, em um primeiro momento, e, quem sabe, exterminados na primeira
oportunidade. As representações hegemônicas de masculinidade povoam o desejo
homossexual e delegam aos corpos machos afeminados, junto aos idosos e os que não estão
encaixados no padrão de beleza como sujeitos desinteressantes, ou como Zago (2013)
denomina, os anticorpos. “Quem são eles? Os efeminados, os feios e os velhos, que são
punidos com a execração e a estigmatização excludente. Assim, os valores homofóbicos
voltaram reforçados, agora exercidos entre os próprios homossexuais” (TREVISAN, 2000, p.
472).
Linn da Quebrada, essa bicha transviada, preta e periférica em sua letra/clipe chama
esse ideal de masculinidade vestido socialmente de macho discreto para dizer que não está
interessada na representação fálica, na virilidade vendida por essa iconografia e que tem
interesse afetivo e/ou sexual pelas bichas, gosta “das afeminadas, das que mostram muita
pele, rebolam, saem maquiada”. Essa atitude investe outro lugar para os corpos desejados e os
que são ignorados. Linn, no seu lugar, no investimento social e cultural que apresenta sobre
si, tem interesse no abjeto, naquelas que estão segregadas do sistema, das indesejadas.
Digo, ancorado em Garcia (2000, p. 13) que o ato queer de Linn é “[...] um
posicionamento político pela ressignificação simbólica do desejo”. Entretanto, o queer é um
ato de questionamento e desconstrução. “Problematizar a matéria dos corpos acarreta, em
primeiro lugar, uma perda de certeza epistemológica, mas essa perda de certeza não tem por
resultado necessário o niilismo político” (BUTLER, 1998, p. 38). Acompanhar essa
explicação da autora nos auxilia a entender que o queer não é um pensamento final, mas
profano como nos coloca Agamben (2007).
O ato de profanar é o de restituir ao uso humano. Ou seja, retirar do sacrifício que
torna algo transcendente e metafísico para ser mundano, possível, comum. Ao dar outros
contornos do desejo, ao provocar um masculino hegemônico para dizer que ele é preterido
diante da bicha é uma forma de localizar a afeminada como objeto de desejo. O macho que
regula e centraliza as normas e o poder interessa menos que “as afeminadas que rebolam e
saem maquiadas”. Na voz de Linn: “Se quiser ficar comigo, boy, vai ter que enviadescer!”.
Assim, artista terrorista de gênero devolve à humanidade a possibilidade de estar ou localizar-
se ante ao binômio masculino/feminino.
Humana, possível e plural, a bicha Linn provoca por registrar que o desejo dela não é
como o que está massivamente disseminado no social. Ela nos ensina, assim como explica
Louro (2003, p. 10) a “[...] abandonar qualquer pretensão de retorno a um tempo idílico em
que as coisas e as pessoas pareciam estar todas em seus devidos lugares. (E esse tempo terá
existido?)” (LOURO, 2003, p. 10). A potencialidade da bicha está na exigência declarada.
Linn não quer ficar, se envolver, ter prazer com o que esse macho discreto chamado para o
“papo reto” e o que ele acha importante, ou seja, o “seu grande pau ereto”. Zamboni (2013, p.
3-4) representa brilhantemente esse potencial ao explicar que a bicha faz do que dela se diz
uma “composição estética, dos afectos e perceptos pelos quais se inventa a bicha”
(ZAMBONI, 2013, p. 3-4).
Ao entender que “[...] a bicha funciona como devir, mutação constante, processo
inventivo. Não existe o ser bicha, pode-se apenas devir bicha, uma existência paradoxal que
corrói as formações do ser” (ZAMBONI, 2016, p. 6), também me aproximo do movimento
que a terrorista de gênero Linn coloca em sua expressão. “Ai, meu deus, que que é isso que
essas bichas estão fazendo, pra todo lado que olho estão todxs enviadescendo”. Usando o x
como elemento da linguagem não-binária, abrindo possibilidades para pensar que o gênero
masculino/feminino é um binarismo significado na cultura, Linn me leva a pensar na
identidade que Hall (2000) explica como um conceito que não resolve, mas que é usado por
falta de outro para se pensar e diz que o termo identidade está sob rasura. Hall (2000) também
usa o x como signo de rasura para explicar que o “[...] sinal de “rasura” (X) indica que eles
não servem mais – não são mais “bons para pensar” – em sua forma original, não-
reconstruída” (apud HALL, 2000, p. 104).
A bicha, transviada, preta e favelada, do gueto e da quebrada também quebra, rasura,
coloca sob o signo da confusão. Linn não se engana e também não mente aos seus/suas
leitores/as, ouvintes, espectadores/as ao mostrar que o macho discreto precisa enviadescer
para chamar sua atenção.
A Linn amplia o gueto, chama as bichas para dançar e lembra: “Mas não tem nada a
ver com gostar de rola ou não, pode vir, cola junto as transviada, sapatão, bora enviadescer até
arrastar a bunda no chão”. Linn convida. Ela mostra que o espaço dela está aberto para a
diversão, porque além de enviadescer tem “que bater a bunda na nuca”. O convite para
compor essa gangue terrorista não tem a ver com o gosto pela genitália, ou apenas por uma
expressão de masculinidade. Filógina, Linn convida para dançar, confundir e causar
desconfortos ao que está estabelecido. “Paquerando constantemente a finitude e o fracasso, a
bicha afirma-se minoritária e segue inventando meios de prosseguir sua existência insidiosa”
(ZAMBONI, 2016, p. 41).
Maginal, a bicha não compactua com uma lógica de hierarquia estabelecida. O macho
discreto com seu grande pau ereto é a representação do que está todo momento oprimindo as
formas femininas em corpos machos, as diferentes masculinidades possíveis dos corpos
fêmeas, as pluralidades e fragmentações daquelas/es que não cabem neste estreito binômio
masculino/feminino. “A bicha não pode se engrenar na máquina estatal. Ela permanece às
bordas, no contato constante com a máquina, atacando-a. [...] Ela se instala, cínica, à beira da
ágora moderna, ladrando as contradições do Estado democrático burguês e racista”
(ZAMBONI, 2016, p. 47). Ao mostrar as limitações de entendimento e pluralidade e a
necessidade de enviadescer, de abrir espaços para o plural, Linn corporifica um gesto. Ou
gestualiza um corpo bicha que apresenta o quão a misoginia e o machismo estão impregnados
nas significações sociais.
Destruidora, Linn inicia o clipe com o cabelo rosa, roupas femininas e um colar feito
com partes de um boneco de plástico. Entre verde e rosa, entre as masculinidades e
feminilidades, entre o possível e o imaginado, a terrorista gargalha. A bicha ri. É com essa
efervescência que ela aparece ao meio de um grupo de pessoas que apresentam diferentes
características e não estão fixadas em masculinidades e feminilidades hegemônicas.
O clipe continua e Linn canta e convoca o macho discreto para um diálogo. Neste
momento, ela está deitada no chão, usando a cabeça e as pernas de apoio, Linn sugere estar de
ponta-cabeça, ela olha para a câmera e em um colam que lembra um rosto, ela corporifica
outra representação. Ela declara-se interessada nas bichas. Ou seja, “[...] Ela é um incômodo,
um grito, um anjo proscrito, um signo na pele, subterrânea e arredia, pela qual se compõe um
‘quadro vivo e autônomo’. Pura sensação a partir da qual pode-se infundir algum sentido para
a vida, que nunca tem de antemão” (ZAMBONI, 2016, p. 61).
Essa interrogação delgada, brilhante e colorida que se faz cantora, artista, terrorista de
gênero incita a enviadescer. “A bicha é constantemente confrontada com a morte pela
violência cultural, circunscrita da espontaneidade cotidiana que é preciso enfrentar para que a
bicha crie passagem, inventando suas próprias armas pela poesia” (ZAMBONI, 2016, p. 62).
Linn está acompanhada. Estou à espreita mediado pelo vídeo, mas não me sinto solitário.
Sinto-me representado em todas as cenas e a MC me coloca para dançar, para repetir o refrão.
Linn me contagia.
As cenas continuam com lésbicas, gays, drag queens e oferece uma percepção de
enfrentamento e problematização. É nesse momento que me lembro de Foucault (2014, p.
257) explicando que “[...] se não houvesse resistência, não haveria relações de poder. Porque
tudo seria simplesmente uma questão de obediência. Do instante em que o indivíduo está em
situação de não fazer o que ele quer, ele deve utilizar relações de poder”. O autor ainda
explica que esse potencial de resistir implica nas relações de poder para que elas se alterem.
E, desse modo, ele considera “[...] o termo “resistência” é a palavra mais importante, a
palavra-chave dessa dinâmica” (FOUCAULT, 2014, p. 257, grifo do autor).
Essa afirmação oferece outros sentidos históricos que perpassam a bicha até o
enfrentamento de Linn e seu convite para o enviadescer. Green (2000) analisou as
representações da homossexualidade na história brasileira do século XX e explicou que a
bicha aparece como o efeminado e passivo na história da homossexualidade masculina. Ou
seja, a bicha é homossexual, entretanto, ao ser passiva com um macho discreto “[...] o papel
sexual atribuído ao homem ‘verdadeiro’” não coloca esse masculino em risco porque “[...] ele
pode ter relações sexuais com outros homens sem perder seu status social de homem”
(GREEN, 2000, p. 28). É isso que a terrorista Linn está desdenhando, menosprezando e
mostrando seu desinteresse.
A bicha aparece na história brasileira na década de 1930 e tornou-se uma forma
pejorativa de se referir aos homossexuais como a palavra viado. Green (2000, p. 145) explica
que “Um estudo de 1939 sobre as atividades sociais, costumes, hábitos, apelidos e gírias para
homossexuais na cidade de São Paulo, dirigido pelo Dr. Edmur de Aguiar Whitaker, incluiu
uma lista de expressões vernaculares empregadas por homens jovens” Assim, bicha é a
definição de “pederasta passivo”.
As bichas não poderiam se envolver. Desse modo, “[q]uando dois homens
reconheciam que ambos eram homossexuais e queriam ter relações um com o outro, isso era
incompreensível para muitas bonecas [termo de referência a homossexuais afeminados e/ou
travestis]” (GREEN, 2000, p. 302). Ou seja, a ideia de Linn é abjeta na história da
homossexualidade brasileira. Por apresentar-se e desejar o macho afeminado, a bicha que
deseja afeminadas, esta possibilidade de ser é contrastante historicamente com as formas de
pensar binárias e complementares que estão presente em uma heterossexualidade
compulsória. Assim, “[a] masculinidade era a essência de ser um bofe. A feminilidade era a
essência de ser um bicha. O termo ‘homossexual’, na forma como era usado por essa rede
social, referia-se aos bichas e as bonecas e não aos bofes” (GREEN, 2000, p. 303).
Historicamente, se alterou essas formas de pensar e ser. Um exemplo é a disseminação
do gosto por “semelhantes” como discute Gregori (2016) ao analisar a pornografia gay norte-
americana e brasileira e constatar a existência de perfis de homens parecidos envolvidos
sexualmente. Em 1970, esses “clones” como explica a autora, tornaram-se uma possibilidade
na representatividade social em diferentes contextos. Acusados de narcisismo, os corpos
semelhantes nessa estética clone também registravam que era uma busca por homens
masculinizados e de corpos atléticos e torneados que fossem parecidos em trejeitos e aspectos
físicos para o envolvimento afetivo/sexual. Ao mesmo tempo, esses homossexuais também
“[...] levam à reflexão sobre certos aspectos subjacentes às teorias de gênero. O
relacionamento entre idênticos desafia o sentido do dimorfismo sexual, sobretudo o princípio
da incomensurabilidade e da busca pela complementaridade, no modo de conceber a diferença
entre os corpos [...]” (GREGORI, 2016, p. 58).
Escapando da noção binária de opostos, os clones também produziram outros sentidos
para estética e a constituição cultural da homossexualidade. Entretanto, também disseminaram
uma lógica objetificante e alienadora interessada em corpos torneados, gestuais masculinos e
estruturas aceitas socialmente. Nos estudos de Gregori (2016) ela fala de um entendimento da
morte desses perfis no período de disseminação do vírus HIV e o desaparecimento dessa
estética. Em minha leitura, acompanhada por Linn, percebo que essa masculinidade é o tal do
macho discreto que perpetua e propõe um tipo de visibilidade dominante que menospreza,
inferioriza e marginaliza a bicha.
Entretanto, volto a Foucault (2012, p. 83) porque concordo que ainda encontram-se os
que pensam que os sujeitos desviantes “insultam ‘a verdade’: um homem ‘passivo’, uma
mulher ‘viril’, pessoas do mesmo sexo que se amam”. Assim, o machismo e a misoginia
sustentam um sexismo que impele contra os corpos machos afeminados e as fêmeas
masculinizadas. Somos um problema por não nos encaixarmos nesses padrões. E Linn deixa
nítida essa querela. Incomodamos e somos muitos/as enviadescendo.
Desse modo, a bicha traz outras experiências. Entendo que o modo de vida gay que
Foucault (2014) tratava dialoga com a necessidade de resistência ao empreendimento
consumista que vem tomando a cultura LGBT e seus múltiplos modos de ser. Estamos à todo
momento sendo avaliados, colocados sob medida, centímetro por centímetro e sendo
valorados como ruins, inferiores e desprezíveis seres ao não sermos coniventes com o “macho
discreto de grande pau ereto”.
Linn enviadesce, chama as transviadas, sapatões, causa furor entre diferentes formas
de ser. A terrorista de gênero esfrega em nossa cara com sua “bunda na nuca” como estamos
acostumados a aceitar migalhas e pequenos milímetros no processo de enfrentamento diário a
homofobia, ao machismo, ao sexismo e as diferentes formas de opressão. A artista, bicha,
transviada, preta e favelada, da quebrada, explode em gargalhadas. Ela nos quer sentindo a
vergonha de estarmos coniventes com sistemas de opressão. Ela aponta o dedo para os nossos
privilégios. A masculinidade hegemônica que pregamos, o centrismo branco que sustentamos,
a lógica heteronormativa que alimentamos.
[...] é preciso ser intransigente, não se pode estabelecer um compromisso
entre a tolerância e a intolerância, só se pode estar do lado da tolerância. Não
se deve procurar um equilíbrio entre os que perseguem e os que são
perseguidos. Não se pode estabelecer como objetivo ganhar milímetro por
milímetro. Sobre esse ponto da relação entre a polícia e o prazer sexual, é
preciso ir longe e assumir posições de princípios (FOUCAULT, 2014, p.
176).
Enviadescer é uma música que retoma princípios, lá no gueto e na quebrada e que
provoca em nós diferentes experiências com a visualidade do corpo bicha, com a sonoridade
da voz da bicha, com a acidez bem humorada da bicha em nos contar, em denunciar um
sistema de privilégios que oprime, mata, ofende, silencia. Linn ecoa em meus ouvidos, suas
cores me colocam em movimento. A bicha é uma experiência estética e ética, ela nos exige
posicionamento. Enviadescer, para ficar com a Linn, parece ser a resposta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Encontrar-se com Linn na frente de uma porta de loja entre o rosa e o verde é
chocante. As cores, as imagens, as expressões, as maquiagens, o rebolado, a força que a
terrorista, artista, bicha, transviada, preta e favelada, da quebrada oferece é a de quem está
usando do corpo como plataforma política, como prática de resistência. Linn emprega com
sua gestualidade, letra, voz e presença outra possibilidade de corpo/experiência e nos
desacomoda diante da potencialidade pedagógica de seus atos.
Em entrevistas e em diferentes momentos a terrorista de gênero coloca-se sob um
aspecto de exemplo que é pedagógico e explicita como a bicha é potencialmente uma
personagem possível para a aprendizagem acerca das questões referentes à gênero e
sexualidade. Linn da Quebrada conjura elementos da prática discursiva acerca das
masculinidades e feminilidades por meio do termo enviadescer para problematizar as noções
hegemônicas de corpo, gênero e sexualidade.
Nessa proposição, percebe-se por pedagogias culturais de gênero e sexualidade que os
discursos que perpassam este artefato oferecem outras leituras acerca da vivência social, das
práticas sexuais e das performances de gênero que não estão localizadas no binário
masculino/feminino e, entretanto, sugerem outras formas de entender as práticas corporais, as
leituras de mundo e os enfrentamentos aos discursos homofóbicos ao inserir elementos desse
discurso e ressignificar como desejantes os padrões entendidos por depreciativos na sociedade
contemporânea.
As imagens mercadológicas sustentam a imagética e a discursividade que localizam o
macho masculino em uma performance de gênero viril como sujeito alvo e centro do desejo.
Linn abre brechas nessas representações por apresentar experiências e vivências diferentes em
suas peças. O clipe/letra Enviadescer é um convite ao movimento de tornar-se bicha. Não
existe um lugar seguro e nem uma forma única pronta no fim do processo. Talvez, só exista o
processo. Esse constante devir que evoca as feminilidades em corpos machos, que convida as
diferentes subjetividades para dançar, rebolar e abrir mão de modelos pré-estabelecidos em
busca de um prazer e de um desejo que irrompem com as formas prontas.
Linn é artesanal em sua prática de experimentação da vida, ela tece, de fio em fio
outras formas de entender e compreender as possibilidades que o corpo nos oferece como
suporte das práticas de significação de gênero e sexuais. A artista terrorista de gênero arma
sua bomba de prazeres e representações. Os anseios e medos da masculinidade hegemônica
são expostos. Ela desdenha esse macho discreto de grande pau ereto para se deleitar com a
bicha, a afeminada, as peles expostas, a maquiagem. Linn artista emociona e coloca em
movimento outras formas de ser. Nessa hora, ouve-se a bomba da terrorista explodir. Está
instalado o desconforto de enviadescer.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo,
2007.
BUTLER, Judith. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”.
In: Cadernos Pagu. n. 11. 1998 (11-42).
BUTLER, Judith. Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade. Trad.
Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IX: genealogia da ética, subjetividade e sexualidade.
trad. Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos V – ética. sexualidade. política. Trad. Elisa Monteiro,
Inês Autran Dourado Barbosa. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
GARCIA, Wilton. A forma estranha: ensaios sobre cultura e homoerotismo. São Paulo:
Edições Pulsar, 2000. (Coleção outras palavras, outras linguagens).
GREEN, James Naylor. Além do Carnaval. A homossexualidade masculina no Brasil do
século XX. Trad. Cristina Fino e Cássio Arantes Leite. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
GREGORI, Maria Filomena. Prazeres perigosos: erotismo, gênero e limites da sexualidade.
São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
GUIMARÃES, Carmen Dora. O homossexual visto por entendidos. Rio de Janeiro:
Garamond, 2004.
HARAWAY, Donna. Um manifesto para os Cybogs: Ciência, Tecnologia e Feminismo
socialista na década de 80. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Antropologia do Ciborgue: as
vertigens do pós-humano. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. (33-118).
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu (org. e
trad.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes,
2000. (p. 103-133).
LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Trad. Alfredo Veiga-Neto. 5.
ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
LOURO, Guacira Lopes. Corpos que escapam. In: Labrys - estudos feministas. n. 4, 2003.
Disponível em: http://www.tanianavarroswain.com.br/labrys/labrys4/textos/guacira1.htm.
Acesso em 24 de abril de 2012.
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho – ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2.
ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
SWAIN, Tania Navarro. O que é lesbianismo. 1. reimp. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: (a homossexualidade no Brasil, da colônia
à atualidade). 3. ed. revisada e ampliada. Rio de Janeiro: Record, 2000.
VEIGA-NETO, Alfredo. Teoria e Método em Michel Foucault (im) possibilidades. In:
Cadernos de Educação. n. 34, Pelotas: FaE/PPGE/UFPel, 2009.
WALLERSTEIN, Valeska. Feminismo como pensamento da diferença. In: Labrys – estudos
feministas. n. 5, 2004. Disponível em:
http://www.tanianavarroswain.com.br/labrys/labrys5/textos/valeskafeminismo.htm. Acesso
em 24 de abril de 2012.
ZAGO, Luis Felipe. Os meninos: corpo, gênero e sexualidade em e através de sites de
relacionamento. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. UFRGS, 2013.
ZAMBONI, Jésio. Cartografias bicha. Anais do Fazendo Gênero 10 – Desafios atuais dos
feminismos (setembro/2013). Florianópolis: UFSC, 2013. (1-11).
ZAMBONI, Jésio. Educação Bicha: uma a(na[l])rqueologia da diversidade sexual. Tese
(Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Espírito Santo. UFES, Vitória, 2016.