microfones vintage

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78 www.backstage.com.br REPORTAGEM MICROFONES MICROFONES microfone é o “ouvido” de um sistema de áudio. Se ele for bom e a pessoa que o estiver usando souber traba- lhar, a probabilidade da qualidade da gravação ser boa é grande. Por conta da importância na qualidade do áudio e sua influência no timbre, o microfone acaba causando um certo fascínio em quem gosta de áudio. Há vários que marcaram época desde os primeiros que funcio- navam a carvão, evoluindo para os condensadores - problemá- ticos no seu início – e os de bobina móvel (microfones dinâmi- cos). A partir daí, foram pou- cas as mudanças que ocorre- ram, mas, no decorrer desse tempo, algumas marcas e mo- delos fizeram época, se torna- ram cobiçados e ganharam o rótulo “vintage”. Eles atraem a atenção seja pela importância histórica, qualidade sonora ou timbre diferenciado. É sobre esses microfones que Clement Zular, Flávia Calabi, Maurício Gargel e Roldão nos falam nesta reportagem. FAZENDO HISTÓRIA Por trás da expressão “vintage”, no entanto, podem se es- conder algumas armadilhas. Ela pode tanto ser aplicada a Miguel Sá [email protected] O um equipamento clássico como a outro que é apenas velho. “Aplicar essa terminologia a equipamentos de áudio é peri- goso. Às vezes, ‘velho’ seria a melhor palavra para definir o estado de um equipamento. Não é porque um microfone tem válvulas velhas e está enferrujado que ele é bom”, ex- plica Maurício Gargel, técnico de áudio e professor do Ins- tituto de Áudio e Vídeo (IAV). Entre os vintage que marcaram a história do áudio estão os microfones “garrafa”, como o “Neumann Bottle” CMV3, por exemplo. Projetado em 1927, este microfone marca a transição definitiva dos antigos microfones a carvão e de fita para os condensa- dores, como explica Flávia Calabi. “Dentro dele tem uma válvula enorme e as cápsulas são cambiáveis conforme o diagrama polar desejado. Ou- vi uma gravação (CD “Das Mikrofon” do selo TACET Vol.1) feita em 1996 com esse microfone do museu da Neumann. Ela é tão boa que tira meu fôlego a cada vez que a ouço. A alemã Schoeps também tem seu microfone ‘gar- rafa’ só que fabricado bem depois, em 1949, o CMV 50/2 com 2 válvulas dentro”. Qualidade, personalidade, importância histórica... Por que os microfones antigos provocam tanto fascínio? Clement Zular, Flávia Calabi, Maurício Gargel e Roldão desvendam o que está por trás da mágica dos chamados microfones vintage vintage o fascínio que a qualidade traz

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Page 1: Microfones Vintage

78 www.backstage.com.br

REPORTAGEM

MICROFONESMICROFONES

microfone é o “ouvido” de um sistema de áudio. Se ele

for bom e a pessoa que o estiver usando souber traba-

lhar, a probabilidade da qualidade da gravação ser boa é

grande. Por conta da importância na qualidade do áudio e

sua influência no timbre, o microfone acaba causando um

certo fascínio em quem gosta de áudio.

Há vários que marcaram época desde os primeiros que funcio-

navam a carvão, evoluindo para os condensadores - problemá-

ticos no seu início – e os de bobina móvel (microfones dinâmi-

cos). A partir daí, foram pou-

cas as mudanças que ocorre-

ram, mas, no decorrer desse

tempo, algumas marcas e mo-

delos fizeram época, se torna-

ram cobiçados e ganharam o

rótulo “vintage”. Eles atraem a

atenção seja pela importância

histórica, qualidade sonora ou

timbre diferenciado. É sobre

esses microfones que Clement Zular, Flávia Calabi, Maurício

Gargel e Roldão nos falam nesta reportagem.

FAZENDO HISTÓRIAPor trás da expressão “vintage”, no entanto, podem se es-

conder algumas armadilhas. Ela pode tanto ser aplicada a

Miguel Sá[email protected]

Oum equipamento clássico como a outro que é apenas velho.

“Aplicar essa terminologia a equipamentos de áudio é peri-

goso. Às vezes, ‘velho’ seria a melhor palavra para definir o

estado de um equipamento. Não é porque um microfone

tem válvulas velhas e está enferrujado que ele é bom”, ex-

plica Maurício Gargel, técnico de áudio e professor do Ins-

tituto de Áudio e Vídeo (IAV).

Entre os vintage que marcaram a história do áudio estão os

microfones “garrafa”, como o “Neumann Bottle” CMV3,

por exemplo. Projetado em

1927, este microfone marca

a transição definitiva dos

antigos microfones a carvão

e de fita para os condensa-

dores, como explica Flávia

Calabi. “Dentro dele tem uma

válvula enorme e as cápsulas

são cambiáveis conforme o

diagrama polar desejado. Ou-

vi uma gravação (CD “Das Mikrofon” do selo TACET

Vol.1) feita em 1996 com esse microfone do museu da

Neumann. Ela é tão boa que tira meu fôlego a cada vez que

a ouço. A alemã Schoeps também tem seu microfone ‘gar-

rafa’ só que fabricado bem depois, em 1949, o CMV 50/2

com 2 válvulas dentro”.

Qualidade, personalidade, importância histórica... Por que os microfonesantigos provocam tanto fascínio? Clement Zular, Flávia Calabi, MaurícioGargel e Roldão desvendam o que está por trás da mágica dos chamadosmicrofones vintage

vintageo fascínio que a qualidade traz

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REPORTAGEM

O CLÁSSICO

O equipamento que ganha o

status de clássico é usado mes-

mo que já tenha saído de linha

ou que haja outros com mais

recursos. “Como o bom vinho,

é o microfone de uma safra es-

pecial”, diz Flávia Calabi. “Sua

qualidade excepcional é subli-

nhada por uma conjunção de

fatores objetivos, técnicos -

como a perfeição de seu projeto

e construção, a fidelidade com

que capta a realidade sonora - e fato-

res subjetivos, como o momento

emocional, a história de bons servi-

ços prestados, a pátina do tempo que

lhe conferiu o título de ‘antigo’, o

design quase sempre volumoso que

denota um passado que já se foi”,

conclui a técnica de som.

Um exemplo de microfone clássico

bastante citado é o Neumann U-47.

Um dos motivos para isto são suas

válvulas. As originais, modelo VF14,

não são mais fabricadas e são, segun-

do Maurício Gargel, fundamentais na

sonoridade do equipamento.

O técnico de som e empresário Rol-

dão se lembra de como ficou fascina-

do ao ouvir, pela primeira vez, no iní-

cio de sua carreira, no final da década

de 60, um destes funcionando. “Na-

quela época ele ainda não era o vin-

tage. Hoje, as pessoas o usam no estú-

dio não por falta de opção, mas por

querer aquele som”, ressalta o técnico

de som e empresário. O U-47 chegou a

ser usado por artistas como os Beatles

e Frank Sinatra. Como outro exem-

plo têm-se os Coles, microfones de

fita feitos originalmente para a BBC,

da Inglaterra.

PERSONALIDADE

A característica sonora do microfone

também pode ser um fator deter-

minante para que ele se torne um clás-

sico. Mais uma vez o Neumann U-47 é

citado como exemplo. “Até hoje ele é

uma referência”, comenta Clement. Já

os microfones de fita – dos quais os

RCA 44BX e 77DX são exemplos –

têm como característica um

agudo mais suave que o de mi-

crofones condensadores. Na

época em que foram mais usa-

dos, na primeira metade do sé-

culo passado, os equipamen-

tos de reprodução sonora ti-

nham um range de freqüênci-

as mais estreito. Enquanto

microfones condensadores

mais atuais podem reproduzir

até 20 kHz, os de fita, depois

de 15 kHz, têm uma resposta

menos intensa, o que daria um agudo

mais “natural” que, de acordo com

Maurício Gargel, pode agradar bas-

tante como overall em uma bateria de

jazz, por exemplo.

Flávia Calabi tem vários microfones

vintage que utiliza em seus trabalhos.

“Uso frequentemente meus Neumann

KM-84 da década de 40 nos violinos,

violas e violoncelos de orquestras sin-

fônicas. Que diferença de qualidade se

comparados aos atuais KM-184! Um

Microfones são os transdutores que con-

vertem a energia acústica em energia

elétrica. Os mais usados hoje são os di-

nâmicos e os condensadores.

Microfones dinâmicos (bobina mó-

vel) – São usados principalmente em

shows por conta de sua robustez e custo

menor. Um exemplo deste tipo de micro-

fone é o SM-58. Neste tipo de microfone,

o diafragma é fixado em uma bobina en-

rolada com um fio condutor de eletrici-

dade. Este conjunto de peças fica em

volta de outra peça magnetizada. Quan-

do a fonte sonora emite o som no micro-

fone, o diafragma se movimenta e faz

com que a bobina deslize pelo campo

magnético. A variação de voltagem

provocada por este movimento é trans-

mitida pelo condutor enrolado na bobi-

Microfones dinâmicos e condensadores

na e corresponde à pressão sonora apli-

cada pela fonte. O microfone de fita fun-

ciona seguindo o mesmo princípio, só

que ao invés da bobina, usa uma fita

metálica bem fina.

Microfones condensadores – Eles

têm um funcionamento mais complexo.

Ele não é tão resistente quanto os micro-

fones dinâmicos. Um exemplo deste tipo

de microfone é o Neumann U-47.

O difragma deste tipo de microfone é

ligado a um capacitor variável que pre-

cisa ser carregado por phantom power

ou bateria para funcionar. A fonte sono-

ra age no diafragma que provoca a cir-

culação de corrente no capacitor. Esta

circulação de corrente é correspon-

dente à energia acústica que age sobre

o diafragma.

Flávia Calabi na câmara anecóica da Neumann em Berlim

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REPORTAGEM

outro microfone que gosto de usar é o

Neumann SM-69. Trata-se de um mi-

crofone à válvula, estéreo, excelente

para captar o geral de orquestra em

grandes ambientes”.

Há também microfones bem específi-

cos como os Shot Gun Sennheiser da

década de 60 (modelos MKH 805/

815/816). Clement já os havia usado

e procurava um “shot gun” que soasse

musical como eles. Depois de testar

inúmeros modelos atuais e não achar

a sonoridade que queria, ele comprou

três destes modelos

da Sennheiser.

Há ainda vários ou-

tros modelos cobiça-

dos, mais ou menos

raros, fabricados até

hoje ou não, como os

Telefunken Ela M 250

e 251, os Neumann KM

83 e KM84, os AKG C-

12 , os Bruel & Kjaer 4003

e o Schoeps CMC5 MK2.

O SOM DO VINTAGE

Antes das válvulas, o uso dos con-

densadores era praticamente im-

possível em função de sua alta im-

pedância e baixo volume de saída.

“O uso de válvulas para amplificar

o sinal resolveu esse tipo de limita-

ção”, explica Gargel. Mas, desde a

década de 60, a válvula vem sendo

substituída pelos transistores, que

são componentes bem menores,

menos frágeis e mais estáveis. No

entanto, as válvulas têm caracte-

rísticas sonoras específicas que po-

dem ser interessantes em diversos

trabalhos. Flávia Calabi gosta de-

les e explica algumas das caracte-

rísticas dos microfones valvulados.

“Alguns microfones à válvula têm

realmente uma sonoridade fiel à

realidade. Não é só a resposta de

freqüência, completa de 20Hz a

20KHz plana, sem distorções, sem

variações. O que é chocante é a ve-

locidade da resposta”.

Flávia conta que, uma vez, pergun-

tou ao técnico em eletrônica Mil-

ton Lange, especialista em eletrô-

nica para áudio, o porquê desta ca-

racterística nos microfones mais

antigos, que não têm circuito hí-

brido. Ele explicou a ela as diferen-

ças entre eles – que usam apenas

válvula - e alguns microfones val-

vulados mais recentes, com circui-

tos híbridos. “Os que são puramen-

te à válvula não possuem nenhum

outro elemento ativo além da vál-

vula. São mecânicos, de construção

muito simples e por estes motivos

permitem alta dinâmica, isto é,

muita velocidade sem distorção.

Não existe componente mais rápi-

Dependendo do que o usuário quer

captar, ele vai precisar de uma capta-

ção mais aberta ou fechada. A grosso

modo, estas são as duas principais for-

mas de captação.

Omnidirecional – Para captar o

ambiente o ideal é usar um padrão de

captação omnidirecional. Ou seja, o mi-

crofone vai captar todo o som à sua vol-

ta, em todas as direções.

Unidirecional – Neste formato, o

microfone capta um campo acústico

mais restrito em apenas uma direção.

Há quatro padrões de captação unidi-

recional: cardióide, cardióide aberto,

Tipos de captação

supercardióide, hipercardióide e

hipercardióide de longo alcance, apeli-

dado de shot gun. Este último é o que

capta o som em uma direção mais res-

trita e distante, sendo usado para cap-

tar diálogos em som direto de cinema,

por exemplo.

Bidirecional

Alguns microfones permitem uma

captação “figura 8”. Para gravar um

backing vocal com duas pessoas, por

exemplo, ou para entrevistas, a capta-

ção se dá em uma área que parece um

8. A cápsula do microfone está no meio

deste 8.

Maurício Gargel

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REPORTAGEM

do que a válvula, o que permite a

melhor ‘slew rate’, ou seja, a me-

lhor taxa de velocidade x tensão. Já

os microfones à válvula mais re-

centes são mais complexos em sua

construção, usam circuitos híbri-

dos com FETs e outros componen-

tes ativos além da válvula. Os FETs

produzem uma compressão inicial

que modifica o envelope do som,

indefine o ataque do sinal, fazendo

com que o microfone perca a defi-

nição dos diversos timbres, além

Flávia Calabi e Maurício Gargel indi-

caram alguns sites em que é possível

conseguir mais informações sobre mi-

crofones vintage:

http://www.coutant.org/12mics/index.html

Neste site, uma seleção de 12 microfo-

nes que marcaram a história do áudio.

Nele estão presentes do RCA 44 ao

ELAM 250 e 251

http://www.neumann.com/

?lang=en&id=about_us_overview

A partir desta página, o internauta

tem acesso a toda a história da empresa

http://www.neumann.com/

?id=hist_microphones&lang=en

Na webpage da Neumann, vários

modelos clássicos da marca. Clássicos

da Neumann, aliás, é o que não falta

Para saber mais

http://www.coutant.org/u47/index.html

Para saber mais sobre o Neumann U-

47, é só acessar esta webpage

http://www.schoepsclassics.de/1948.htm

Nesta página, o primeiro protótipo de micro-

fone shoeps. Esta é a primeira página de

clássicos da marca

http://mixguides.com/microphones/

vintage_products/ Nesta página da

Mix Magazine, o internauta encontra

material escrito original de vários mode-

los vintage, inclusive com informações

técnicas

http://www.coutant.org/ku2a/index.html

Aqui é possível conhecer mais sobre o

modelo vintage RCA-Ku2A

http://www.coutant.org/ku3a/index.html

Nesta página, o modelo RCA-Ku3A

de perder a veloci-

dade de resposta aos

estímulos da dinâ-

mica musical. Por

outro lado os cir-

cuitos híbridos per-

mitem projetar vo-

luntariamente modi-

ficações na resposta de

freqüência, de maneira

a privilegiar agudos ou

graves”, comenta.

SIMULAÇÕES E REEDIÇÕESToda essa procura por sons clássicos

gerou dois fenômenos no mercado:

as reedições de microfones e os si-

muladores digitais de mics vintage.

Quanto aos últimos, Maurício Gar-

gel não tem meias palavras: “isso é

piada”. Já Clement acha que eles

podem ter o seu lugar. “Eles são in-

teressantes, mas é como o nome diz,

são simuladores. Em gravação de

música erudita, no qual é importan-

te ter o timbre específico daquele

instrumento e da sala onde aconte-

ce a gravação, não dá para usar. Já

em música pop dá para conseguir

efeitos bem legais usando-os como

uma ferramenta dentro do processo

criativo”, explica.

Na procura pelo som clássico, tanto

as reedições quanto os microfones

que substituem os modelos vintage

tradicionais podem ser muito bons.

Clement considera o AKG D-112,

baseado no antigo AKG D-12, um

ótimo microfone. Para Gargel, os

substitutos de modelos tradicio-

nais que as fábricas fazem também

podem ser ótimos. “Um M49 – mo-

delo clássico da Neumann – possui

uma magia.

Mas o seu substituto, o M149, é novo

e sinceramente um dos melhores

microfones que eu já usei. É impres-

sionante! Um outro exemplo de

produto novo muito interessante é

o Josephnson C42. Muitos recla-

mam que a Neumann nunca mais

Os microfones à válvula mais recentes são maiscomplexos em sua construção, usam circuitos

híbridos com FETs e outros componentes ativos alémda válvula. Os FETs produzem uma compressão inicial

que modifica o envelope do som

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REPORTAGEM

conseguiu fazer um microfone parecido com o KM84 ape-

sar de seu substituto KM184. Pequenas alterações na aber-

tura lateral da cápsula proporcionam um leve aumento en-

tre 8 e 10KHz e o fato de os novos serem transformerless lhes

confere uma resposta neutra de graves. De certa forma isso

explica o “som magro” dos novos KM184. O C42, mesmo

sendo um microfone novo, é, para mim, um microfone

com sonoridade mais agradável do que o Km184. Não é

exatamente uma reedição mas uma ótima opção”, comen-

ta o técnico.

MICROFONE: UMA PARTE DA GRAVAÇÃODepois dos microfones, ainda há outros fatores impor-

tantes, como a qualidade dos cabos, do pré-amplifica-

dor e, principalmente, em tempos de digital, da con-

versão A/D.

“Acho que importante é, antes de gravar, já saber o timbre

que se quer. Se quiser o timbre específico de um microfone

valvulado, use um. O som da gravação não é só o microfo-

ne, é como você o usa. E há outros equipamentos também.

Você pode testar outro modelo de cabo, um pré diferente,

usar um microfone a mais diferente para ter opção. Não há

regras”, expõe Clement.

Nunca é demais lembrar que um bomáudio depende de mais coisas que

apenas um microfone. Para começar, éimportante que a fonte sonora tenha

boa qualidade