michel ragon- arte pela anarquia

7

Click here to load reader

Upload: victor-daniel

Post on 07-Aug-2015

15 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Michel Ragon- Arte Pela Anarquia

277

verve

A arte pela (an)ar(q)

a arte pela (an) ar(q)

michel ragon*

Rémy de Gourmont dizia do simbolismo, em 1892, queele “se traduz literalmente pela palavra liberdade, e paraos violentos, pela palavra anarquia.”

Existia, de fato, um estranho cruzamento das teoriaspolíticas mais extremas e da literatura mais etérea nofim do século XIX.

Os poetas simbolistas tinham um verdadeiro culto porLouise Michel, à qual Verlaine dedicou uma balada pu-blicada em Le Décadent, revista que reunia Mallarmé,Rimbaud (fascinado pela Comuna de Paris) e LaurentTailhade. Convidada pelos “decadentes” a dar uma con-ferência na sala do Ermitage, em 20 de outubro de 1886,Louise Michel declarou: “Os ‘decadentes’ criam a anar-quia do estilo... Os anarquistas, como os ‘decadentes’,querem o aniquilamento do velho mundo.”

* Romancista, crítico, historiador da arte e da arquitetura, Michel Ragon éautor de La Voie libertaire. Paris, Ed. Plon, 1991, e Jean Dubuffet. Paris, Ed. deFallois, 1995. Recentemente, publicou a primeira grande biografia de Courbet,Gustave Courbet, peintre da la liberté. Paris, Ed. Fayard, 2004.

verve, 9: 277-283, 2006

Page 2: Michel Ragon- Arte Pela Anarquia

278

92006

Com exceção de Félix Fénéon, diretor da La RevueBlanche de 1885 a 1903, que foi aprisionado em Mazas, porocasião do processo dito dos Trinta, e de Richard Wagner,que se associou a Bakunin no momento da insurreiçãode Dresden, a afiliação dos poetas e dos pintores simbolis-tas ao movimento anarquista foi na realidade mais teóri-ca que ativa.

Apesar disso, a fascinação desses movimentos artísti-cos de vanguarda coincide com o período mais extremo doanarquismo, ou seja, o ilegalismo e o terrorismo dos anos1886 a 1912. E muitos textos literários são verdadeirosapelos à insurreição.

A violência das afirmações publicadas nesse período éhoje inimaginável. A propósito da bomba de Vaillant naCâmara dos deputados, Laurent Tailhade (1854-1919), umdos fundadores do Mercure de France escrevera: “que im-portam as vítimas se o gesto for belo!” E ele reclamava porum regicida contra o czar, em visita a Paris em 1902: “será[ele escreve em Le Libertaire] que entre esses soldadosilegalmente retidos na estrada, onde acampa a covardiaimperial, entre esses guarda-barreiras, que ganham novefrancos por mês, entre os pedintes, os mendigos, os vaga-bundos, os fora-da-lei, os que morrem de frio sob as pon-tes, no inverno, não há nenhum que pegue seu fuzil, seuatiçador, para arrancar dos freixos dos bosques o bastãopré-histórico e, subindo no estribo das carruagens, gol-peie até a morte, golpeie no rosto e golpeie no coração acorja triunfante, czar, presidente, ministros, oficiais e osclérigos infames... O sublime Louvel, Caserio, não temmais herdeiros? Os matadores de reis também estão mor-tos?”

Quanto a Octave Mirbeau (1848-1917), ele escreve emL´En-dehors, em 1º de maio de 1892: “a sociedade não podese queixar. Foi ela mesma que gerou Ravachol. Ela se-meou a miséria, ela recolhe a tempestade.”

Page 3: Michel Ragon- Arte Pela Anarquia

279

verve

A arte pela (an)ar(q)

Pintores engajados

E embora em 1903 o doce romancista dos humil-des, Charles-Louis Philippe (1874-1917), pronuncian-do-se sobre o assassinato de McKinley, presidente dosEstados Unidos, levante algumas dúvidas sobre a eficá-cia política dessa prática, ele não deixa de esclarecer,em uma de suas Chroniques du Canard Sauvage: “Nãoquero absolutamente condenar a filosofia anarquista,clara e bela, impregnada de amor e de fraternidade, eensinada por santos, desde o sapateiro Jean Grave atéo príncipe Kropotkin. Isso seria uma má ação, pois elacontém um pouco da grande esperança humana.”

Entre os pintores neo-impressionistas, Pissarro erasem dúvida o que possuía a mais sólida formação políti-ca. Paul Signac dizia, no entanto, ter sido formado porKropotkin, Élisée Reclus e Jean Grave. Ambos, assimcomo Seurat e Maximilien Luce, eram colaboradores dosjornais anarquistas. Classificado como suspeito após oassassinato do Presidente Carnot, Pissarro teve até quese refugiar na Suíça.

Oscar Wilde e Alfred Jarry também reclamavam aanarquia, tanto por suas atitudes e provocações quantopor suas obras.

Embora o simbolismo e o neo-impressionismo tenhamsido estreitamente ligados às teorias anarquistas, a te-oria libertária encontra-se de modo mais evidente noromancista popular Michel Zevaco, que se dizia discípu-lo de Louise Michel e de Jules Vallès, e que foi preso em1892 por seu elogio da ação direta. Colaborador do jornalLe Libertaire, de 1893 a 1918, ele fará passar em suasérie de Pardaillan a idéia do herói sem mestre. A filo-sofia anarquista, veiculada por romances de capa e espa-da, irá assim marcar muitos leitores populares e mesmoinfantis, como Jean-Paul Sartre, que dirá, em As Pala-

Page 4: Michel Ragon- Arte Pela Anarquia

280

92006

vras, que Pardaillan tinha sido o herói preferido de seussete anos.

Entre 1930 e 1940, a literatura proletária animada porHenry Poulaille (1896-1980) em oposição política ao mar-xismo e em oposição literária aos escritores ditos burgue-ses, mostrava adequação muito maior com a anarquia doque a literatura simbolista. O vocabulário realista, a des-crição da vida dos operários e camponeses, o pacifismo, ainsubordinação... Pode-se dizer que Henry Poulaille e seusamigos ao mesmo tempo aderiram à doutrina libertária ea ilustraram com suas obras.

A adesão inesperada do surrealismo

A conjunção anarquia e movimento artístico de van-guarda, como no episódio simbolista, concretizou-se, no-vamente, no início dos anos 1950, com a súbita adesãoinesperada dos surrealistas ao movimento libertário.

Inesperada, quando lembramos das conclusões baru-lhentas do surrealismo e do marxismo. É verdade que aideologia surrealista combinava infinitamente melhorcom o anarquismo do que com o partido comunista. E opensamento libertário nunca deixou de entusiasmarBuñuel, Artaud, Desnos e Benjamin Péret, que chegará ase engajar nas milícias anarquistas em 1936, indo com-bater na linha de frente de Teruel.

Em 1952, em seus Entretiens com André Parinaud,André Breton se perguntava por que o surrealismo emseus inícios havia tomado o caminho da colaboraçãocom o marxismo e não com o anarquismo; “por que”,ele dizia, “uma fusão orgânica não pôde ser realizadanesse momento entre elementos anarquistas propria-mente ditos e elementos surrealistas? É o que aindame pergunto vinte e cinco anos depois.”

Page 5: Michel Ragon- Arte Pela Anarquia

281

verve

A arte pela (an)ar(q)

Brigados por O homem revoltado

De outubro de 1951 a agosto de 1952, os escritoressurrealistas colaborarão regularmente no jornal anar-quista Le Libertaire. Trinta e um artigos serão assimpublicados, dentre os quais apenas um assinado porAndré Breton, em dois de janeiro de 1952, intitulado AClara Torre: “onde o surrealismo pela primeira vez sereconheceu [ele escrevia], bem antes de definir a simesmo e quando era apenas associação livre entre in-divíduos que rejeitavam espontaneamente e em blocoas restrições sociais e morais de seu tempo, foi no es-pelho negro do anarquismo.”

Embora os artigos dos colaboradores surrealistas doLibertaire nunca se refiram à filosofia anarquista e nun-ca citem seus pais fundadores, André Breton partici-pará de todas as lutas da Federação Anarquista: solida-riedade com os militantes da CNT, defesa dos insub-missos...

A briga entre surrealistas e anarquistas se dará arespeito da publicação de O homem revoltado, de AlbertCamus. Atacar Camus em Le Libertaire, como faziam ossurrealistas, pareceu intolerável aos militantes anar-quistas, embora Camus nunca tenha declarado com tan-to alarde sua adesão à anarquia quanto Breton.

Apesar da briga, André Breton continuará a colabo-rar episodicamente no Monde Libertaire (sucessor do jor-nal Le Libertaire). É nessa publicação que irá aparecer,em 23 de dezembro de 1956, o manifesto surrealista,Hungria, sol levante, onde os insurgidos de Budapesteeram comparados aos partidários da Comuna deParis.Em novembro de 1966, por ocasião da morte deAndré Breton, Le Monde Libertaire publicou na primei-ra página o seguinte anúncio fúnebre:

Page 6: Michel Ragon- Arte Pela Anarquia

282

92006

“André Breton morreu

Aragon está vivo...

Uma infelicidade dupla para o pensamento honesto...”

Mas, sem dúvida, desde Fénéon, desde Tailhade, desdeMirbeau, o autor que se situa mais violentamente na es-fera de influência anarquista é um pintor: Jean Dubuffet(1901-1985). Embora nunca tenha tido relações com a Fe-deração anarquista, ele escreveu em primeiro de novem-bro de 1970 a Henry Poulaille: “Meus próprios impulsossempre foram, acredito, os que constituem a posição doanarquismo.”

Seu livro Asfixiante cultura (1968) é uma fogueira, quepode ser considerada uma espécie de manual libertário.

Tradução do francês por Martha Gambini.

Page 7: Michel Ragon- Arte Pela Anarquia

283

verve

A arte pela (an)ar(q)

RESUMO

Relações entre arte e anarquismo na França, problematizando oterrorismo e o surrealismo. Do simbolismo ao surrealismo, a anar-quia não se limita a movimentos, mas transborda-os.

Palavras-chave: Arte, anarquia, terrorismo.

ABSTRACT

Relations between art and anarchism in France, problematizingterrorism and surrealism. From symbolism to surrealism, anarchydoes not restrict itself to movements, but overflows them.

Keywords: revolutionary movements, art, anarchy.

Indicado para publicação em 25 de junho de 2005.