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MERCADOS E AGRICULTURA FAMILIAR: INTERFACES, CONEXÕES E CONFLITOS Marcelo Antonio Conterato Paulo André Niederle Rozane Marcia Triches Flávia Charão Marques Glauco Schultz (Organizadores)

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MERCADOS E AGRICULTURA FAMILIAR:

INTERFACES, CONEXÕES E CONFLITOS

Marcelo Antonio Conterato

Paulo André Niederle

Rozane Marcia Triches

Flávia Charão Marques

Glauco Schultz

(Organizadores)

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MERCADOS E AGRICULTURA FAMILIAR:

INTERFACES, CONEXÕES E CONFLITOS

Série Difusão IEPE/UFRGS

Ed. Via Sapiens, Porto Alegre, 2013

ISBN

9788561941086

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© Série Difusão do IEPE/UFRGS

A Série Difusão do IEPE tem como objetivo publicar obras resultantes de ações e projetos de

extensão e de cooperação, de caráter multidisciplinar, pautadas no desenvolvimento rural

sustentável, para um público amplo. Esta série é um desdobramento da Série Estudos e

Pesquisas do IEPE que abriga produções técnicas e culturais, relatos de experiências e ações

de cooperação produzidas no âmbito de Instituições de Ensino Superior.

Editoração de texto e revisão das provas: Marcelo Antonio Conterato

Normalização e Ficha Catalográfica: Bibliotecária Lílian Maciel (FCE/UFRGS)

Assessoria de Editoração: Alessandra Matte

IEPE – Centro de Estudos e Pesquisas Econômicas/UFRGS

Diretor – Carlos Guilherme Adalberto Mielitz Netto

Vice-Diretor – Leonardo Xavier da Silva

Série Difusão do IEPE

Conselho Editorial

Carlos Guilherme Adalberto Mielitz Netto

Gabriela Coelho-de-Souza

Leonardo Xavier da Silva

Lovois de Andrade Miguel

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Mercados e agricultura familiar : interfaces, conexões e conflitos / Marcelo Antonio

Conterato... [et al.] (Org.). – Porto Alegre : Via Sapiens, 2013.

358 p. : il. (Difusão IEPE/UFRGS)

ISBN 9788561941086

1. Agricultura familiar. 2. Mercados agrícolas. 3. Desenvolvimento rural.

4. Interação social. I. Conterato, Marcelo Antonio. II. Niederle, Paulo André. III. Triches,

Rozane Marcia. IV. Marques, Flávia Charão. V. Schultz, Glauco. VI. Grupo de Pesquisa

em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural. VII. Título. VIII. Série.

CDU 631.115

338.433

Responsável: Biblioteca Gládis Wiebbelling do Amaral, Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS

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Marcelo Antonio Conterato

Paulo André Niederle

Rozane Marcia Triches

Flávia Charão Marques

Glauco Schultz

(Organizadores)

MERCADOS E AGRICULTURA FAMILIAR:

INTERFACES, CONEXÕES E CONFLITOS

Porto Alegre – RS

2013

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SUMÁRIO

__________________________________________________________________________________

PREFÁCIO............................................................................................................................. 08

APRESENTAÇÃO................................................................................................................. 12

___________________________________________________________________________

PRIMEIRA PARTE: OS IMPÉRIOS ALIMENTARES E OS MERCADOS – QUAL

ESPAÇO DE MANOBRA?................................................................................................ 19

La agricultura familiar en los mercados globales: Articulación horizontal y vertical en la

citricultura del Noreste Argentino………………………………………………………… 19

Clara Craviotti

A evolução institucional do sistema de cooperativas de leite da agricultura familiar com

interação solidária (SISCLAF): atores sociais, mercados e ação coletiva no SUDOESTE

DO PARANÁ.......................................................................................................................... 36

Fabiano Escher

A importância do cooperativismo na inserção de pequenos produtores nos mercados: o

caso da produção de maçã na serra catarinense................................................................. 61

Armando Fornazier e Paulo Dabdab Waquil

“O pessoal aqui não se interessa por este tipo de coisa, só na integração em suínos e aves”:

construção histórica da Feira Livre dos Produtores rurais e de agroindústrias familiares

em Teutônia-RS (1985-2011)................................................................................................. 78

Juliano Luís Palm

Comportamentos do consumidor de alimentos e suas maneiras de pensar a

alimentação............................................................................................................................ 99

Thelma Lucchese-Cheung; Mário Otávio Batalha e Jean Louis Lambert

___________________________________________________________________________

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SEGUNDA PARTE: MERCADOS LOCAIS E CADEIAS CURTAS:

RECONECTANDO PRODUTORES E CONSUMIDORES........................................... 114

Plantando ideias inovadoras, colhendo transformações na agricultura familiar: a

produção de base ecológica e a construção social de mercados no sul do Rio Grande do

Sul.......................................................................................................................................... 114

Monique Medeiros e Flávia Charão Marques

Qualidade partilhada e relações de sociabilidade entre produtores familiares e

consumidores no processo de comercialização direta no noroeste paulista.................. 133

Antonio Lázaro Sant’Ana; Flaviana Cavalcanti da Silva; Valéria da Silva Modenese;

Divanir Zaffani Sant´Ana e Gabriela dos Santos Souza

Construcción de mercados desde la perspectiva de los espacios protegidos. El caso de la

cuenca lechera caprina em Santiago del Estero, Argentina ………….………………... 155

Raúl Paz

Adquirindo alimentos da reforma agrária: o programa de aquisição de alimentos (PAA)

como política de segurança alimentar nos assentamentos do RIO GRANDE DO

SUL........................................................................................................................................ 167

Priscila Gualberto de Lima e Gilson César Pianta Corrêa

___________________________________________________________________________

TERCEIRA PARTE: MERCADOS, INSTITUIÇÕES E A QUESTÃO DA

QUALIDADE...................................................................................................................... 190

Os mecanismos de qualificação e certificação como interfaces entre reciprocidade e

troca mercantil..................................................................................................................... 190

Eric Sabourin

Circuito carioca de feiras orgânicas: a expansão da venda direta de alimentos orgânicos,

o controle social, a regulamentação da agricultura orgânica e os princípios do comércio

justo e solidário..................................................................................................................... 211

Maria Fernanda de Albuquerque C. Fonseca; Cristina de Brito Ribeiro;

Ana Paula Pegorer de Siqueira; Anny Paula Machado; Gisele Ribeiro R. da Silva;

Renato Linhares de Assis

A teia da qualidade, do embeddedness e do local para construção de cadeias

agroalimentares curtas: o caso dos agricultores familiares em Santa Catarina............ 225

Dilvan Luiz Ferrari.

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Estudo da agroindustrialização no campo percorrido por três microempresas rurais que

processam leite de cabra localizadas no Estado De São Paulo................................. 254

Luís Fernando Soares Zuin; Poliana Bruno Zuin; Heloísa V. Battagin;

Miguel A. Díaz Manrique e Suzanne Ferte

___________________________________________________________________________

QUARTA PARTE: INOVAÇÕES, REDES SOCIOTÉCNICAS E CONSTRUÇÃO DE

MERCADOS........................................................................................................................ 268

Agregação de valores a espécies do Cerrado como oportunidade de inserção da

agricultura familiar em mercados diferenciados.............................................................. 268

Janaína Deane de Abreu Sá Diniz; Denise Barbosa-Silva; Cláudia Souza;

Adelaide dos Santos Figueiredo; Magda Eva Soares de Faria Wehrmann

Flávio Murilo Pereira da Costa

O protagonismo da agricultura familiar em foco: rede de referência e sua interface com

os mercados no sul gaúcho.................................................................................................. 290

Shirley G. Nascimento Altemburg; Cláudio Becker; Fernanda Novo da Silva

Nádia Velleda Caldas

Os mercados das agroindústrias familiares: produção de novidades e transição

sociotécnicas no regime agroalimentar.............................................................................. 311

Marcio Gazolla

Inovação e construção de conhecimento: o caso dos sistemas agroflorestais manejados

por citricultores ecológicos no Vale do Caí, RS................................................................. 335

Flávia Muradas Bulhões; Fábio Kessler Dal Soglio

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PREFÁCIO

___________________________________________________________________________

O estudo sobre os mercados e os processos de inserção dos agricultores em relações

mercantis ganhou inaudito interesse e proeminência nos anos recentes. As pesquisas sobre a

construção de mercados, os processos de mercantilização e a inserção dos produtores em

cadeias mercantis estão entre as mais inovadoras e que atraem maior interesse e afluência.

Obviamente, estes trabalhos não estão retomando a velha discussão sobre o desenvolvimento

do capitalismo na agricultura com o aparecimento de formas de inserção mercantil.

As pesquisas atualmente em curso sobre os mercados estão mostrando que há um

processo sociológico que está na sua formação. Mercados não são apenas espaços de

interação entre demanda e oferta, circunscritos às leis de formação da riqueza econômica, sua

alocação e distribuição nas sociedades. Os mercados passam a ser percebidos e entendidos

como espaços de interação social, formados através de sinais e relações que não são apenas

materiais e tangíveis, mas fundamentalmente ativados mediante interações sociais, culturais e

cognitivas.

Mas há ainda entendimentos difusos que ora percebem os mercados como expressão

que remete a uma entidade abstrata, com valores e motivações próprios, capazes inclusive de

predizer o comportamento social. Neste caso, “o mercado” aparece como um ente exterior

que precisa ser ouvido, respeitado e, por vezes, acalmado; subentendida aqui a necessidade

recorrente de reestabilizar as relações entre os agentes que transacionam mercadorias e ações

em circuitos globais. Em outras ocasiões, a noção de “mercado” adquire um sentido mais

concreto, revelando-se um espaço de interação onde ocorrem trocas, diálogos, negociação,

conflito, compra e venda. Este é o caso das feiras, das mercearias, dos supermercados e das

casas comerciais, etc. Seja qual for o entendimento, os mercados possuem importância crucial

na vida das pessoas, contribuindo para definir amplas esferas da organização social, política e

cultural das sociedades.

Malgrado sua relevância, o estudo dos mercados ainda não alcançou densidade teórica

e a pluralidade de abordagens analíticas que um fenômeno desta natureza e importância social

requer. No âmbito dos estudos rurais, particularmente no que se refere à agricultura familiar,

até pouco tempo o estudo do papel dos mercados se restringia à compreensão dos mecanismos

de comercialização da produção e acesso/compra aos insumos. Somente mais recentemente é

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que os cientistas sociais passaram a estudar os processos de mercantilização na perspectiva da

interação social, simbólica e cultural.

A partir destes esforços prévios e iniciais, embora ainda não sistemáticos, surgiu uma

preocupação em analisar a diversidade e os obstáculos à integração mercantil, os efeitos dos

mercados sobre os processos produtivos, a reorganização dos mercados a partir da demanda e

do consumo, a expansão das formas não tangíveis, entre outros. Apesar de ainda pouco

estudados como dispositivos de interação mercantil, os mercados e suas distintas formas de

ser e existir são de importância fundamental para a compreensão da internacionalização do

sistema agroalimentar, das relações do rural com o urbano, das políticas públicas para o

desenvolvimento rural, entre outros temas.

Em face destas questões e mesmo lacunas no estado da arte sobre o tema dos

mercados é que o Grupo de Pesquisa em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

(GEPAD) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) passou a se interessar

pelo tema. Numa avaliação geral, é possível afirmar que estamos em um estágio em que

consideramos os mercados como estruturas que, juntamente a outros dispositivos sociais,

ordenam aspectos e dimensões das relações sociais e econômicas dos atores rurais. Chegamos

a um ponto em que simplesmente não é possível conceber a existência de uma agricultura

(mesmo que seja familiar e praticada em pequena escala) e de estratégias de desenvolvimento

rural sem levar em consideração os papéis dos mercados. As transformações que afetam a

vida e as atividades econômicas dos agricultores, assim como de outros atores do espaço

rural, estão permeadas por formas de interação, trocas e construção de circuitos de comércio.

Estudos sobre diferentes contextos da agricultura mundial são muito claros e insistem

na necessidade dos agricultores construírem uma base de recursos que possa ser

autocontrolada, de forma que eles próprios possam exercer um papel ativo nos processos de

desenvolvimento rural. Por isto, muitos estudiosos ressaltam que uma das estratégias de

acesso e manutenção do autocontrole é a construção de mercados nos quais os agricultores

tenham elevado grau de autonomia sobre as suas decisões, menos dependência em relação aos

agentes tradicionais e que possam viabilizar experiências capazes de sustentabilidade social e

econômica, assim como resiliência ambiental.

Um olhar sobre a realidade atual mostra que os mercados convencionais,

exemplificados pelo comércio de commodities agrícolas, possuem grande destaque e até

mesmo vêm ganhando num novo impulso com a expansão da demanda internacional por

alimentos, matérias-primas e biocombustíveis. Entretanto, em outro sentido e, de certo modo,

como resposta à própria incapacidade destes mercados em constituir uma opção viável para

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 10

grande parte das famílias rurais, algumas regiões assistem a emergência de experiências que

apontam para a constituição de novas dinâmicas de mercado. Estas se consolidam a partir da

disseminação de uma série de “mercados alternativos” que passam a coexistir com os

circuitos comerciais já existentes. São os casos, por exemplo, dos mercados institucionais

(PAA e PNAE), dos mercados para produtos agroecológicos, para produtos com

especificidades (locais, étnicas, de processos produtivos, ligados a uma região), da venda de

alimentos tradicionais casada com o turismo rural, da alimentação comercializada pelas

agroindústrias familiares, entre outras iniciativas que estão surgindo em toda parte no Brasil.

O reconhecimento da dinâmica e das caracterísitcas diferenciadas destes novos

mercados têm aguçado debates e discussões recorrentes tanto no âmbito acadêmico como

político-institucional sobre suas potencialidades na construção de um novo padrão de

desenvolvimento rural. As perspectivas mais otimistas sugerem que, mais do que evidências

de crise do modelo herdado dos anos de modernização da agricultura e edificação dos

complexos agroindustriais integrados ao capital industrial e financeiro, algumas regiões já

estariam diante de uma espécie de pós-produtivismo, revelado por processos de

desenvolvimento endógenos e territorializados agenciados pelos atores locais. Outras análises,

no entanto, assumem uma postura mais crítica sobre a expressão atual e vitalidade deste

modelo, insistindo que o meio rural continua sob os desígnios de atores econômicos que

controlam as principais cadeias globais de valor.

No Brasil, a perspectiva que focaliza pesquisas sobre os mercados em estudos sobre

agricultura familiar e desenvolvimento rural amadureceu nos últimos anos e um conjunto de

trabalhos tem sido publicado em diferentes fóruns e periódicos científicos. Disseminam-se

estudos sobre cadeias curtas de comercialização e certificação de produtos (RADOMSKY,

2010), mercados para produtos de qualidade (NIEDERLE, 2011), formação de laços sociais

entre produtores e consumidores (TRICHES; SCHNEIDER, 2010), efeitos econômicos

positivos para o desenvolvimento territorial rural (CONTERATO, 2008), reconfiguração de

identidades socioprofissionais no meio rural (SCHULTZ, 2008); além de distintas abordagens

acerca do papel das políticas públicas para aquisição de produtos da agricultura familiar

(GRISA, 2010) e das transformações sociotécnicas necessárias à agricultura para atender

circuitos diferenciados de mercadorias e de outros bens e serviços (MARQUES, 2009;

MARQUES; MELLO, 2009).

A intenção principal deste livro foi reunir estas contribuições porque esta parece ser

uma tarefa fundamental e urgente para que se possa analisar com maior precisão a magnitude

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 11

dos processos de mudança que estão em curso no meio rural brasileiro. Acreditamos que, em

grande medida, este processo está ancorado na emergência de novos mercados, embora a

capacidade e vitalidade para constituir um novo paradigma de desenvolvimento rural ainda

seja um processo sujeito a indagações (SCHNEIDER, 2010).

Os artigos que fazem parte desta obra coletiva foram orginalmente submetidos para

apresentação no III Colóquio Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural, que teve como

tema a “Construção de mercados para a agricultura familiar” e foi realizado em 2011. A

publicação destes capítulos traz aos leitores análises que congregam pesquisadores de

diferentes áreas e regiões do Brasil, que permitem partilhar os conhecimentos já alcançados e

formular uma nova agenda de pesquisas. Mas estes trabalhos são igualmente relevantes no

sentido de disponibilizarem informações que podem auxiliar em ações de organizações

públicas e privadas preocupadas com a construção de uma estratégia de desenvolvimento para

o Brasil rural.

Sergio Schneider

Professor dos Programas de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural e em Sociologia da UFRGS

Presidente da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural (2011-2013)

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APRESENTAÇÃO

A coletânea de textos que compõe esta obra é fruto do esforço do Grupo de Pesquisa em

Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural (GEPAD) através da organização do III

Colóquio Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural realizado em dezembro de 2011 e do

empenho daqueles que submeteram trabalhos para apresentação no evento. O agrupamento em

quatro seções se deu em função da temática do III Colóquio, Construção de mercados para a

agricultura familiar: desafios para o desenvolvimento rural. Portanto, reúne textos que são o

resultado do empenho de pesquisadores que se debruçam sob as mais variadas formas de pensar

os mercados da agricultura familiar.

Os trabalhos que integram a primeira seção deste E-book intitulada Os impérios

alimentares e os mercados: qual espaço de manobra? têm em comum a preocupação de tornar

mais evidentes as contradições explicitadas pelo avanço dos impérios alimentares,

especialmente em relação aos espaços de manobra que os agricultores familiares constroem ou

observam reduzidos atualmente. O estudo de Clara Craviotti torna estas questões explíticas

quando, a partir do estudo da citricultura no noroeste argentino, evidencia o desenvolvimento de

mecanismos de coordenação verticalizados envolvidos nos processos de coordenação da cadeia

de provisão de insumos, processamento e distribuição de frutas, elementos que acabam

coordenando o acesso por parte dos agricultores aos mercados de consumo globalizados. No

entanto, mesmo em face de tais estruturas verticalizadas surgem experiência importantes de

criação de espaços de manobra através de cooperativas ou consórcios de produtores que se

orientam por formas horizontais de organização produtiva e de acesso aos mercados tanto

globais quanto locais, evidenciando as distintas possibilidades de inserção em mercados que

comungam de produtos semelhantes em uma mesma região.

O estudo de Fabiano Escher traz uma contribuição substancial aos estudos da Sociologia

Econômica através da compreensão de como uma estrutura cooperativa no sudoeste do Paraná

(SISCLAF) consegue se estruturar e se inserir em um ambiente econômico marcadamente hostil

e seletivo, como é o do mercado de leite, e instituir uma estratégia coletivamente deliberada de

desenvolvimento rural baseada no fortalecimento da atividade leiteira. Nestes termos, o que o

autor observou foi a efetividade de um dispositivo coletivo de ação econômica com real

capacidade de firmar uma postura “enraizada” em relação ao crescente processo de

mercantilização e diferenciação social a partir da atividade leiteira e desta forma construir e

operar um projeto de desenvolvimento rural que tenha nessa atividade um eixo articulador do

que o autor chama de “contramovimentos da agricultura familiar”.

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A importâncias das ações de cooperação entre os agricultores familiares é o foco do

trabalho de Armando Fornazier e Paulo Dabdab Waquil. Analisando a experiência organizativa

de agricultores familiares produtores de maçã da serra catarinense os autores atestam a

importancia da organização social em uma determinada região na promoção de oportunidades

econômicas aos agricultores bem como melhorias na geração de empregos em outros setores e

no desenvolvimento regional. Ao mesmo tempo em que as novas exigências dos mercados

podem promover ganhos aos consumidores com a produção de um alimento mais seguro,

podem dificultar que alguns produtores tenham condições de comercializar em muitos

mercados. Diante deste cenário, a produção cooperada tem permitido que pequenos produtores

de maçã da serra catarinense adotem os padrões de produção requeridos pelos mercados (tais

como certificação e rastreabilidade), desde que acompanhados de orientação técnica,

confirmando que a organização é essencial para a inserção mercantil de pequenos produtores

em mercados competivivos, como é o da maçã.

Por sua vez, o estudo de Juliano Luís Palm da feira livre dos produtores rurais e de

agroindustrias familiares de Teutônia (RS) se assenta nas ações e percepções de atores sociais

vinculados ao processo de estruturação de alternativas de produção e comercialização paralelas

à integração agroindustrial. O estudo torna evidente que a construção de alternativas de

organização produtiva e de comercialização paralelas à integração enfrentaram uma ampla

gama de tensões em Teutônia e que estas tensões se expressaram de distintas formas nos

diferentes contextos. Diante da realidade investigada o autor identifica duas problemáticas

centrais a serem enfrentadas: a consolidação de um imaginário avesso a estas alternativas, por

parte dos agricultores familiares do municipio (através de intercâmbios de conhecimentos e

práticas com agricultores de outras regiões); e a consolidação de circuitos mercantis locais que

viabilizem o escoamento da produção beneficiada pelos agricultores em suas unidades

produtivas.

O último artigo desta primeira seção do libro, de Thelma Lucchese-Cheung, Mário

Otávio Batalha e Jean Louis Lambert, denominado Comportamentos do consumidor de

alimentos e suas maneiras de pensar a alimentação, contribui para as análises, sob as

perspectivas da sociologia e da antropologia da alimentação, das práticas alimentares de

brasileiros urbanos e dos fatores socioculturais, sociodemográficos e socioeconômicos que

influenciam as escolhas dos consumidores e das suas atribuições de significados simbólicos aos

alimentos consumidos. Para isso foram entrevistados 1.600 consumidores urbanos das cidades

de Porto Alegre, São Paulo, Goiânia e Recife. As conclusões apontam para a relação entre o

fenômeno multidimensional do significado de “comer bem” (saúde, sobreviência, forma física,

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 14

prazer e tradição) e a construção de identidades sociais. Os resultados são, conforme ressaltado

pelos autores, relevantes para que a agentes públicos e privados possam redirecionar,

respectivamente, as suas campanhas de reeducação alimentar e as suas estratégias de

diferenciação dos productos nos mercados.

Os quatro artigos que seguem, conformando a seção denominada Mercados locais e

cadeias curtas: reconectando produtores e consumidores referem-se à temática dos mercados

locais e cadeias curtas de abastecimento alimentar, debruçando-se sobre estudos que abordam a

aproximação tanto teórica, quanto empírica da produção ao consumo. Neste sentido, o trabalho

de Monique Medeiros e Flávia Charão Marques traz a compreensão de relações e processos que

envolvem agricultores familiares e outros atores sociais na construção social de mercados.

Realizada nos municípios de Pelotas e São Lourenço do Sul (RS) apresenta como debate central

as relações entre consumidores e agricultores familiares em mercados locais, abrangendo feiras,

redes de comercialização, assim como suas interfaces de cooperação e conflitos, e o papel e a

influência do Estado e das políticas públicas. O trabalho aponta que esses agricultores

familiares, direcionados pelos ideais da agricultura de base ecológica, e apoiados por projetos

de assistência técnica e políticas públicas, executam “práticas desviantes”, que representam

formas inovadoras nos processos agrícolas, na articulação entre atores, em sua relação com os

mercados e mesmo na criação de novas organizações, o que parece indicar uma alteração nas

trajetórias de desenvolvimento no espaço rural na Região Sul do Rio Grande do Sul.

O estudo de Sant’Ana e colaboradores, demonstra que a comercialização direta ao

consumidor, realizada pelos agricultores familiares do noroeste do Estado de São Paulo, apóia-

se em uma grande diversidade de produtos e de estratégias dos produtores para colocá-los no

mercado e que acaba gerando uma renda muito significativa. Estas relações baseiam-se em uma

qualidade partilhada por produtores e consumidores, que combina valores tradicionais e

preocupações mais recentes (como o menor uso de insumos químicos sintéticos na produção) e,

na visão dos produtores, é uma forma de ter maior autonomia e liberdade para organizar a

produção, negociar os preços e ampliar seus conhecimentos e relações sociais.

Já no estudo de Raul Paz sobre a bacia leiteira caprina na Argentina, o autor busca

aprofundar os aspectos relacionados à governança dos mercados atraves da construção de

espaços protegidos e a emergência de novas redes sociotécnicas implementadas pelos diferentes

agentes. O artigo analisa três exemplos que, a juízo do autor, são experiências que podem

aportar os acertos e erros relacionados à construção de cadeias curtas de comercialização

(produtor-consumidor), à geração de novos e dinâmicos mercados locais e à busca de uma

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 15

ampla competitividade sistêmica que inclua tanto os produtores, como também as

agroindústrias. Compreendendo relações e processos que envolvem agricultores familiares e

outros atores sociais relacionados com a construção social de mercados, mais especificamente, a

operação e o desenvolvimento de cadeias curtas de abastecimento e sua imersão em valores e

práticas sociais específicas, insere-se a pesquisa de Medeiros e Marques. O estudo das autoras

foi realizado nos municípios de Pelotas e São Lourenço do Sul (RS) e apresenta como debate

central as relações entre consumidores e agricultores familiares em mercados locais,

abrangendo feiras, redes de comercialização, assim como suas interfaces de cooperação e

conflitos, e o papel e a influência do Estado e das políticas públicas, com ênfase no PAA na

determinação de modelos agroalimentares localizados.

Por fim, contribuindo para a discussão dos mercados institucionais, o artigo de Priscila

Gualberto de Lima e Gilson César Pianta Corrêa, aborda o papel do PAA como política de

comercialização para a agricultura familiar, em especial de um grupo específico de agricultores,

os assentados da reforma agrária. De acordo com os autores, essa política pública, embora

apresente dificuldades no que se refere a sua implementação, pode ser considerada como eficaz

quando se trata de propiciar o estabelecimento de novas formas de comercialização para os

produtos oriundos dos assentamentos, permitindo organizar sua matriz de produção, gerando

renda e trabalho para as famílias assentadas, além de apresentar ganhos no que diz respeito ao

consumo alimentar.

Na terceira parte, intitulada Mercados, instituições e a questão da qualidade, o livro

aborda questões relativas ao desenvolvimento de uma nova economia de qualidades no setor

agroalimentar. A análise focaliza a dinâmica das organizações, redes sociais e instituições que

catalisam a construção de novos mercados para produtos que portam qualidades específicas

vinculadas a valores sociais, culturais, ambientais e políticos. Inicialmente, o artigo de Eric

Sabourin discute os mecanismos de qualificação dos produtos da agricultura familiar a partir de

elementos teóricos buscados na teoria da reciprocidade. A partir da comparação entre sistemas

de certificação de produtos agroecológicos no Brasil, o autor demonstra como os processos de

qualificação que garantem a origem, a especificidade e a qualidade dos produtos podem

introduzir uma dimensão de reciprocidade nas relações de troca mercantil. Ao mesmo tempo, o

artigo discute alguns efeitos contraditórios desse processo, como a criação de mecanismos de

exclusão de certos produtores e consumidores em decorrência do aumento dos custos de

produção.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 16

O artigo subsequente analisa a expansão dos circuitos de venda direta de alimentos

orgânicos na cidade do Rio de Janeiro. Maria Fernanda Fonseca e colegas discutem a

regulamentação da produção orgânica, destacando os aspectos institucionais que favorecem a

constituição dos mercados diretos, como as feiras livres e os programas governamentais de

aquisição de alimentos da agricultura familiar. Tomando como exemplo o Circuito Carioca de

Feiras Orgânicas, o artigo discute ainda os desafios à constituição desses mercados, revelando

aspectos relacionados à sazonalidade da oferta e da demanda, à ausência de planejamento

coletivo para produção e comercialização, à precariedade no controle dos fluxos financeiros, às

dificuldades para quantificar os custos de produção e transporte com vistas a melhorar a

logística e à necessidade de pesquisas aplicadas para organização dos sistemas de

comercialização, avaliando, por exemplo, custos de produção e comercialização nos mercados

para produtos orgânicos.

Esta parte é finalizada com o artigo de Dilvan Luiz Ferrari acerca da construção de

cadeias agroalimentares curtas no estado de Santa Catarina. O autor demonstra o protagonismo

dos agricultores familiares que, reagindo ao crescente squeeze imposto pelo processo de

modernização da agricultura, constroem diversos mercados para produtos com forte

enraizamento social e territorial. Esse processo demonstra a capacidade dos circuitos curtos em

reconectar produtores e consumidores, os quais passam a valorizar produtos e práticas

alimentares com apelo ecossocial. A emergência dessas cadeias revela-se intimamente

associada a uma estratégia de agregação de valor aos produtos da agricultura familiar por meio

da produção e comercialização de produtos com qualidades específicas. As implicações desse

processo, que vem redesenhando algumas regiões rurais de Santa Catarina, são as mais diversas,

abarcando diferentes aspectos das formas de produção e organização dos agricultores

familiares.

A quarta parte deste livro, intitulada Inovações, redes sociotécnicas e construção de

mercados reúne trabalhos que têm em comum o foco em processos inovadores considerando,

especialmente, a ressignificação de aspectos econômicos, socioculturais, ambientais e

qualitativos associados à emergência de novos mercados para a agricultura familiar. Tais

mercados, além de trazer demandas diferenciadas, parecem exigir da agricultura familiar, do

Estado, das organizações de pesquisa e desenvolvimento mudanças que configuram processos

inovativos, sejam eles tecnológicos, institucionais ou organizacionais.

Em resposta às várias questões que emergem deste contexto, os cinco trabalhos aqui

apresentados trazem suas contribuições a partir de diferentes perspectivas. O trabalho de Diniz e

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 17

colaboradores traz resultados de pesquisa-ação realizada com comunidades de agricultores

familiares do Distrito Federal e entorno, e ressalta a importância dos produtos da

sociobiodiversidade do Cerrado brasileiro, em função de seu potencial como fonte alternativa de

renda e como elemento estratégico para a exploração sustentável do ecossistema. Altenburg e

colaboradores, ao discutir o papel da Rede de Referência em Agricultura Familiar, constituída

na Região Sul do Rio Grande do Sul, analisam como as ações e relações na rede interferem ou

contribuem para o acesso aos mercados. Os autores consideram que o papel da rede está

principalmente na contribuição aos processos organizacionais e de gestão, facilitando fluxos de

informação e reforçando laços de cooperação entre os membros.

Ao analisar processos de desenvolvimento de produtos (PDP) em empresas que estão

trabalhando com queijos finos de leite de cabra, no estado de São Paulo, Zuin e colaboradores

demonstram o surgimento de importante diversificação de produtos agroindustrializados com

bom potencial de mercado. Por outro lado, identificam que a dificuldade dos produtores em

disponibilizar seus produtos em vários mercados consumidores simultaneamente possui,

frequentemente, origem no atendimento às normas da legislação sanitária, havendo também

necessidade de melhorias em procedimentos gerenciais e produtivos. Também sobre

agroindustrialização, o trabalho de Gazolla, realizado na Região do Médio Alto Uruguai (Rio

Grande do Sul), analisa a diversidade de mercados associada às experiências dos agricultores

familiares. O autor identifica dinâmicas que podem estar provocando transições no regime

sociotécnico alimentar, e destaca que as cadeias curtas de comercialização, que aproximam

produtores de consumidores, e a emergência de redes coletivas de comercialização são parte

deste processo inovador.

No quinto trabalho, Bulhões e Dal Soglio trazem uma discussão sobre a inovação na

agricultura, fazendo uma associação entre processos de construção de conhecimento e a

produção de novidades. Os autores tomam a experiência no manejo de sistemas agroflorestais

entre citricultores ecológicos no Vale do Caí (Rio Grande do Sul), para estudar como diferentes

atores sociais desenvolvem, adaptam e geram conhecimentos que vem permitindo a

consolidação destes agricultores no mercado de produtos ecológicos. Para além dos avanços nos

processos produtivos propriamente ditos, os autores destacam que a ação articulada, no que

tange a geração de conhecimento, também representa um processo inovador.

Por certo, com esta publicação o GEPAD dá continuidade a divulgação de trabalhos de

excelência acadêmica iniciado em 2005 quando da sua criação junto ao Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Reforça o compromisso de divulgar os

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 18

resultados da pesquisa bem como em função dos apoios institucionais e financeiros recebido

para a realização do III Colóquio.

Os organizadores

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PRIMEIRA PARTE

OS IMPÉRIOS ALIMENTARES E OS MERCADOS – QUAL ESPAÇO

DE MANOBRA?

La agricultura familiar en los mercados globales: Articulación horizontal y

vertical en la citricultura del Noreste Argentino

Clara Craviotti

Introducción

Los sistemas agroalimentarios han manifestado marcadas transformaciones en las

últimas décadas, que se profundizaron a partir del desarrollo de una economía crecientemente

globalizada: la transnacionalización y concentración experimentada por eslabones clave

(provisión de insumos, procesamiento y distribución); el cambio en los sistemas de

aprovisionamiento - con centros de distribución, mayoristas especializados y sistemas de

proveedores “preferenciales” -, que a su vez fortalece el desarrollo de mecanismos de

coordinación vertical; el peso creciente de las normativas privadas de calidad, que suponen

mayores exigencias para el acceso a los mercados globales.

En función de su control de ciertos activos críticos y posición en las cadenas, los

distribuidores están en condiciones de promover la incorporación de regiones y productores a

los circuitos mundiales de aprovisionamiento o bien, a través de las condiciones que imponen,

dar lugar a situaciones de exclusión. Así una cuestión “clásica” planteada en el campo de los

estudios agrarios a partir de la conformación de los grandes complejos agroindustriales - la

asimetría en las relaciones - se profundiza y se redefine en esta etapa.

En términos generales, los productores familiares en pequeña escala enfrentan

dificultades para cumplir los requerimientos de cantidad, calidad homogénea, trazabilidad y

oportunidad de entrega establecidos por las grandes compañías distribuidoras, y les plantean a

éstas costos de transacción mayores (MARKELOVA et al., 2009; HAZELL et al., 2010). Su

participación en circuitos globales es acotada, y generalmente se encuentra asociada a la

conformación de asociaciones o cooperativas que les permiten alcanzar economías de escala,

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 20

y/o a su orientación hacia nichos de mercado específicos (PYKE, 1994; BÍENABE;

VERMEULEN, 2008; REARDON et al., 2009).

Estas estrategias de los productores pueden ser vistas como esfuerzos orientados a

resistir o sortear los controles ejercidos por las grandes empresas agroalimentarias (PLOEG,

2010). A través de ellas procuran aprovechar los intersticios de los mercados existentes o bien

construir nuevos mercados. Esta perspectiva no ignora que el poder de los agentes

transnacionales y las políticas implementadas por los Estados nacionales ciertamente

condicionan los márgenes de acción de estos productores; en todo caso reconoce su capacidad

de encarar diferentes cursos de acción dentro de ciertas restricciones. También visualiza a los

mercados como arenas sociales, en donde interactúan actores con diferentes racionalidades,

valores y códigos (SCHNEIDER; NIEDERLE, 2007). Los tipos de canales empleados por los

productores familiares y sus particulares combinaciones son entonces el producto de

elecciones efectuadas en el marco de las oportunidades que disponen y los condicionamientos

que enfrentan, y también como un elemento explicativo de la heterogeneidad encontrada a

nivel agrario.

Partiendo de esta mirada sobre la temática, en este artículo se analizan los aspectos

tenidos en cuenta por los citricultores familiares de la subregión del río Uruguay del Noreste

Argentino para orientar parte de su producción a los mercados globales y los ajustes que ello

conlleva a nivel productivo, conjuntamente con los diferentes mecanismos a través de los

cuales concretan su participación en tales mercados: de manera indirecta - mediante la venta

de su producción a firmas exportadoras - o directa, asociándose en cooperativas y consorcios

de productores. Teniendo en cuenta que la segunda modalidad constituye una forma de

organización horizontal orientada a retener una mayor proporción del excedente generado, el

objetivo es dimensionar el espacio de maniobra de estos emprendimientos en los planos

global y local.

La base del análisis son los resultados alcanzados por un proyecto de investigación

sobre la inserción en los mercados globales de los pequeños y medianos productores de citrus

y arándano de la subregión del río Uruguay del Noreste Argentino, en cuyo marco se

efectuaron 53 entrevistas en profundidad a informantes calificados, entrevistas semi-

estructuradas a una muestra intencional compuesta por 72 productores, y tres estudios de caso

sobre experiencias asociativas.1

1 Proyecto PICT 1320, financiado por la Agencia Nacional de Promoción Científica y Tecnológica de Argentina.

Dirigido por Clara Craviotti e integrado por Paula Palacios, Carlos Cattaneo y Ronald Soleno Wilches.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 21

Aportes previos (DOLAN et al., 1999) destacan que las frutas y hortalizas exportadas

en fresco, a diferencia de otras cadenas globales, están fuertemente direccionadas desde la

demanda. Es decir que los distribuidores detentan la capacidad de asignar funciones y decidir

acerca de la inclusión/exclusión de agentes. Se caracterizan también por los elevados niveles

de coordinación vertical existentes entre los eslabones productores, procesadores y

comercializadores (BOSELIE; VAN DER KOP, 2005). Todos estos aspectos hacen

especialmente pertinente el análisis del surgimiento y evolución de experiencias asociativas

generadas desde la base, así como el conocimiento de los desafíos que enfrentan sus

integrantes para persistir como productores.

La inserción de los pequeños y medianos citricultores del Noreste Argentino en los

mercados globales

La región del Noreste Argentino (NEA) produce la gran mayoría de los cítricos dulces

del país: cerca del 90% de las mandarinas y 2/3 de las naranjas. Dentro de este espacio

productivo la subregión del Río Uruguay –compuesta por los departamentos de Concordia y

Federación en la provincia de Entre Ríos y Monte Caseros en Corrientes- constituye el

epicentro de la actividad. En ella los pequeños productores aportan alrededor del 40% del

valor de la producción citrícola.2

Estos productores disponen de unidades implantadas con diferentes variedades cítricas

y encaran un planteo productivo diversificado con otras producciones (horticultura,

forestación o ganadería), si bien consideran al citrus como su principal ingreso. Presentan

variantes en cuanto a sus formas de organizar la producción: mientras un grupo se caracteriza

por el aporte de trabajo familiar y contrata trabajadores transitorios para tareas puntuales

como la poda o el raleo de las plantas, otro grupo, al que denominamos familiar-empresarial,

combina el trabajo familiar con el empleo de trabajadores permanentes y/o transitorios para

diferentes tareas, incluida la cosecha. Existen también productores empresariales en pequeña

escala, donde los miembros de la familia realizan únicamente tareas de supervisión y gestión.

Una particularidad de este grupo es que cuenta con ingresos extraprediales.

2 Esta estimación tiene en cuenta los principales cultivos cítricos (limón, mandarina y naranja), y fue obtenida a

partir de los datos del estudio sobre los pequeños productores en Argentina efectuado por Obschatko, Foti y

Román (2007). Se apoya en los siguientes criterios para dimensionar las explotaciones que están a cargo de

pequeños productores: 1) el productor trabaja directamente la explotación; 2) no emplea trabajadores no

familiares remunerados permanentes y 3) no tiene como forma jurídica la sociedad anónima o en comandita

por acciones.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 22

En su mayoría los pequeños y medianos citricultores venden su producción en el

mercado interno, aunque algunos de ellos preparan parte de su fruta con destino a la

exportación. La citricultura del área ha venido aumentando su inserción en los mercados

externos a partir del cambio de la política macroeconómica argentina posterior a la crisis del

2001, que significó una fuerte devaluación de la moneda y el reposicionamiento de las

actividades orientadas a la exportación. Otro factor de más largo plazo que incide es la

tendencia declinante del consumo de fruta en el mercado doméstico.3

Actualmente Argentina contribuye con el 12% de las naranjas y el 28% de las

mandarinas exportadas por el hemisferio sur (SCALETTA, 2009) lo que la ubica como un

proveedor relevante de fruta fresca en contraestación. Los destinos principales a los que se

orienta son los países integrantes de la Unión Europea y la Federación Rusa.

Sin embargo, la inserción en la exportación es dependiente de las variaciones de la

política económica, que determina la competitividad relativa del país frente a otros

exportadores -Sudáfrica principalmente. La proporción anual de fruta exportada varía también

de acuerdo con el clima imperante en cada temporada que repercute en la calidad de la fruta a

obtener. La volatilidad de los mercados externos hace que en ocasiones sea más rentable para

los pequeños y medianos productores canalizar hacia el mercado interno la fruta que han

preparado con vistas a la exportación. Además éste es visualizado como una realidad más

cercana, conocida y hasta cierto punto, más manejable.4 La decisión de orientar parte de la

producción para la exportación obedece a la posibilidad de acceder a una mayor cantidad de

opciones de venta y realizar una descarga temprana de las plantas que les permite obtener

mejores rendimientos en el futuro.

Existen, por otra parte, diferencias estructurales y de acceso a tecnología entre los

productores, que se vinculan con los mercados a los que se orientan. Con respecto a quienes

producen exclusivamente para el mercado interno, los productores insertos en la exportación

han aumentado su superficie con cítricos e instalado riego localizado en parte de la superficie.

Presentan una mayor densidad de plantas por hectárea y realizan mayor cantidad de

pulverizaciones (Tabla 1). También disponen de una gestión y seguimiento más precisos;

3 De esta manera si se compara el quinquenio 2003-2007 con el precedente se verifica la duplicación de las

cantidades exportadas de cítricos dulces. En promedio las ventas externas representan no más del 20% de la

producción anual de cítricos dulces. 4 En otro trabajo nos ocupamos del funcionamiento de las redes de comercialización basadas en personas

originarias de la zona y miembros de la familia extensa, que juegan un papel relevante en la comercialización

en el mercado interno (CRAVIOTTI; PALACIOS; SOLENO WILCHES, 2010).

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 23

buena parte de ellos accede a asesoramiento técnico permanente, por lo general de carácter

privado.

Tabla 1 - Pequeños y medianos citricultores según el destino de la producción.

Indicadores seleccionados

Indicadores Productores que exportan

parte de su producción (%)

Producción que venden

exclusivamente en el

mercado interno (%)

Aumentaron la superficie cítrica en

los últimos cinco años

48 24

Tienen una densidad de 400 o más

plantas por hectárea en el lote más

nuevo

94 79

Realizan más de tres pulverizaciones

por año

64 42

Tienen riego por goteo en parte de la

superficie

76 24

Registran pulverizaciones 94 55

Registran ingresos y gastos 73 38

Fuente: Entrevistas a productores (2008-2009), Proyecto PICT 1320

El inicio en la exportación requiere ajustes sucesivos en productores previamente

orientados al mercado interno, implicando un proceso de innovación “incremental” que

demanda varios años, en función del carácter plurianual del cultivo. “Es muy difícil llegar a la

exportación; son pasos, no es que vos lo hacés de un año para otro, hay que comenzar por

una buena fertilización, mejorar la calidad, hasta llegar al tercer año para decir, ‘bueno,

tengo para exportar’” (ENTREVISTA a técnico del sector público, 2008).

Los pequeños y medianos productores que han encarado este camino han renovado

pequeñas superficies, procurando implantar variedades demandadas por los mercados

externos. En los comienzos suelen orientarse a destinos (como la Federación Rusa) que no

requieren la realización de ciertas prácticas solicitadas por la Unión Europea (por ejemplo, el

registro de tareas culturales críticas como las pulverizaciones en un “cuaderno de campo”, o la

inscripción y el monitoreo de lotes por parte del Servicio Nacional de Calidad y Sanidad

Agroalimentaria (SENASA) para certificar la ausencia de enfermedades cuarentenarias).

El grado de acceso al capital circulante constituye una variable clave, dado que permite

afrontar los mayores gastos en tratamientos fitosanitarios del cultivo (ya sea por la frecuencia

de las aplicaciones como por el tipo de productos a emplear). Así nos lo revela el siguiente

cuadro, que sintetiza las opiniones de los productores entrevistados sobre los principales

cambios que efectuaron para poder acceder a la exportación. Su percepción en parte coincide

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 24

con lo que indican estudios técnicos: Entre el 15 y el 20% de los costos de preparar fruta

exportable corresponderían al gasto representado por los tratamientos fitosanitarios.5

Tabla 2 - Principales cambios efectuados para acceder a la exportación de fruta

(en orden de importancia)

Cambios Cantidad de

menciones

Mejorar las pulverizaciones (ajustar el momento de realización, realizar

fumigaciones preventivas –de floración- incrementar la cantidad y

utilizar productos de buena calidad)

19

Implantar cortinas forestales 12

Cambiar variedades 5

Incrementar la poda y el raleo 5

Cumplir con los requerimientos del SENASA 5

Poner riego 4

Incrementar la fertilización 3

Contratar un ingeniero agrónomo 1

Afrontar los gastos de inscripción de lotes en SENASA 1

Certificar Globalgap 1

Fuente: Entrevistas a productores (2008-2009), Proyecto PICT 1320

Base: Casos de productores que exportan. Pregunta con respuestas abiertas, no excluyentes.

La certificación de normas privadas no parece ser un requisito definitorio, ya que sólo

el 10% de los pequeños y medianos productores que exportan ha certificado GlobalGAP6.

Algunos de ellos están iniciando el proceso, mientras que otros lo han abandonado al no

percibir que los precios logrados compensen el incremento de tareas.

Según los entrevistados la inserción en la exportación supone un incremento de entre

el 30% y el 50% de los costos variables; no obstante, incurrir en ellos no garantiza

continuidad en este mercado. Inclusive hay casos que empezaron a preparar parte de sus

unidades para exportación y no lograron vender su fruta con este destino por el reducido

volumen que producen y el comportamiento de las firmas exportadoras. Estas recurren a los

pequeños productores cuando no les alcanza con la producción propia o carecen de

determinadas variedades requeridas por los mercados. “Si al exportador le hace falta fruta, lo

usa al productor chico, si no puede exportar, la vuelca al mercado interno. Nos sacan una

ventaja enorme” (productor de Federación con 60 hectáreas de cítricos).

5 Otro gasto importante es la fertilización, que insume entre el 10 y el 20% del total (MOLINA et al., 2005).

6 Se trata de la norma que reemplazó a la EUREPGAP y que es demandada por las grandes cadenas de

supermercados europeos. A grandes rasgos contempla aspectos higiénicos (para evitar la contaminación y

asegurar la inocuidad de los alimentos); la trazabilidad; las técnicas de producción empleadas (para minimizar

los impactos de los residuos de agroquímicos en los alimentos, el hombre y su entorno); aspectos sociales (un

ambiente de trabajo adecuado a las necesidades laborales y sanitarias de los trabajadores) y la protección del

medio ambiente.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 25

Por lo general los pequeños y medianos citricultores que venden fruta para exportación

lo hacen “en planta”. La cosecha está a cargo de las empresas exportadoras porque implica

afrontar gastos elevados en la contratación de personal transitorio, así como hacerse cargo de

su manejo y supervisión. Por otra parte, las firmas prefieren retener el control de esta

actividad para garantizar la calidad de la fruta a exportar. Usualmente los productores venden

a una única empresa, con la que acuerdan el precio pocos días antes de la cosecha. El

compromiso entre ambas partes es verbal y el cobro suele producirse entre los 40 y los 90 días

de entregada la fruta.

Sólo un reducido grupo de pequeños y medianos citricultores ha logrado articularse a

nivel horizontal, conformando emprendimientos asociativos que les permiten integrar las

etapas poscosecha y participar de manera más directa en la exportación.7 A pesar de ello, es

importante destacar que de los 14 empaques exportadores ubicados en la zona de estudio, 2

pertenecen a consorcios de productores y 2 a cooperativas. En conjunto éstos reúnen unas

9000 hectáreas que representan el 17% de la superficie implantada con citrus, aspecto que los

convierte en actores de suma relevancia a nivel regional.

Estos emprendimientos clasifican y empacan la fruta en un empaque común y se

encargan de las tareas de desverdizado, enfriamiento, comercialización y transporte. Cobran

al asociado un costo promedio por kg de fruta procesada (que puede incluir un componente

destinado a nuevas inversiones) que es descontado de los precios obtenidos por variedad y por

destino. Se estima que el precio logrado por el productor por la fruta cosechada sería entre un

40% y un 100% superior al que obtendría si la vendiera “en planta” a una empresa

empacadora-exportadora.

La conformación y persistencia de este tipo de entidades asociativas implica grandes

desafíos, tanto a nivel interno – en cuanto a su funcionamiento como organizaciones- y

externo -respecto a otros exportadores de la zona con los cuales “compiten” en la oferta de

fruta al exterior, y otros agentes ubicados fuera del territorio con los cuales deben articularse

para colocar su fruta. De estas cuestiones nos ocuparemos en los próximos apartados.

7 Se trataría de unos 70 citricultores de los 2400 censados en el área. Sin embargo existe un número mayor de

familias vinculadas a estos emprendimientos asociativos: “Se sabe que detrás de tal apellido hay cuatro

hermanos productores” (ENTREVISTA a informante clave, 2008).

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 26

Los agentes intervinientes en la exportación de cítricos dulces y la conformación de los

emprendimientos asociativos

A nivel interno las empresas exportadoras constituyen un nodo central de la cadena de

valor citrícola, ya que establecen los contactos con los distribuidores en el exterior y negocian

la compra de fruta a los productores (MOLINA, 2007). Su nivel de concentración es

importante, ya que en el año 2008 seis empresas reunían la mitad de los cítricos dulces

exportados por la Argentina. En el caso de las mandarinas las primeras seis empresas

exportadoras tienen su base en la región del NEA y según la época del año pueden llegar a

reunir la oferta total de mandarinas del país.

Mirado desde el ángulo de los mercados externos, el peso de las empresas

exportadoras argentinas es más relevante en la oferta de contraestación de esta especie, debido

a la posición competitiva del país respecto a otros exportadores del hemisferio sur. Las firmas

se conectan con los distribuidores externos de manera directa o bien mediante intermediarios

o brokers. Por lo general no operan con cadenas de supermercados ya que les resulta

dificultoso cumplir con algunas de las exigencias de este canal en cuanto a escala y fechas de

entrega (CRAVIOTTI; PALACIOS; SOLENO WILCHES, 2010). No obstante la influencia

de este actor es clara, ya que representantes de las grandes cadenas suelen visitarlos

anualmente y en última instancia pautan las condiciones de los acuerdos que los distribuidores

trasladan luego a las empresas exportadoras. “Los supermercados europeos compiten entre

ellos por ver cual les ofrece a los clientes fruta con mejor calidad, libre de residuos de

pesticidas, con la mejor sanidad… la competencia ya no es siquiera el tema del precio, sino

quien le ofrece al cliente lo más sano, lo más esto, lo más lo otro” (ENTREVISTA a

dirigente cooperativo, 2009).

El poder económico de la gran distribución se basa en su gran volumen de compra, en

sus innovaciones tecnológicas, organizativas (estrategias just-in-time) y logísticas

(plataformas de aprovisionamiento y distribución), así como en su acceso y control de

información estratégica sobre las preferencias y hábitos de compra de los consumidores

(GUTMAN, 2005). Esta situación asimétrica en parte es balanceada por las compañías

exportadoras a través de la diversificación de los mercados y la cartera de clientes.

Las empresas exportadoras conforman un grupo heterogéneo que incluye grandes

empresas integradas verticalmente –con producción propia en la zona que complementan con

la compra de fruta a terceros-; empresas extraregionales que compran fruta empacada o “en

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 27

planta”, procesándola en establecimientos alquilados – y emprendimientos asociativos de

productores – consorcios y cooperativas .

Los dos consorcios de productores se organizaron en la zona entre los años 1985 y

1995, en un contexto internacional de alta demanda de frutas frescas. En un caso el inicio en

la exportación fue facilitado por clientes externos que le otorgaron financiamiento sin interés

para la compra de maquinarias y la construcción de instalaciones a cambio del compromiso de

entrega de fruta. El otro se vio beneficiado por un crédito a largo plazo suministrado por un

banco oficial y gestionado a través del gobierno de la provincia de Entre Ríos. Los dos

emprendimientos poseen actualmente la forma jurídica de sociedades anónimas, si bien su

funcionamiento interno en algunos aspectos se asemeja al de una entidad cooperativa.

Las cooperativas de productores contaron con el apoyo económico del gobierno

nacional y de la provincia de Corrientes, que las impulsó para agregar valor a la producción y

generar efectos dinamizadores sobre el empleo local. Ambas se crearon en el período 2000-

2003, en un contexto de recesión y posterior abandono de la convertibilidad monetaria del

peso argentino con el dólar, lo que posibilitó el reposicionamiento de las actividades

orientadas a la exportación. Desde el punto de vista político emergieron en una coyuntura en

la que empieza a replantearse el rol del Estado, modificando las políticas adoptadas durante

los años 90 – de ajuste fiscal, desregulación y apertura externa – que afectaron a las

explotaciones familiares y condujeron a la crisis de las organizaciones vinculadas al sector.

El hecho de que el financiamiento externo haya sido relevante para la conformación de

estos emprendimientos asociativos corrobora lo señalado por otros estudios, que sugieren que

no hay casos de vínculos entre pequeños productores y mercados “modernos”, en los cuales

no haya habido apoyos de algún tipo. Su importancia no se reduce a una mera cuestión

económica: también es clave la presencia de “facilitadores”, por medio de los cuales este tipo

de iniciativas logra acceder a información estratégica. Así en las cooperativas estudiadas tanto

el responsable contable como los asesores técnicos en áreas clave (vinculadas al

cumplimiento de los criterios de calidad requeridos por los mercados externos) desempeñan o

han desempeñado un rol semejante en otras empresas exportadoras de la zona: “El tema de la

exportación las grandes empresas tienen años allá, entonces vos necesitás gente que conozca

el tema, que no lo conozca en papel, sino que lo conozca en la práctica y que sea una persona

que haya pagado el “derecho de piso” (ENTREVISTA a dirigente cooperativo, 2009). A

veces esta información es aportada por los mismos clientes del exterior: es la confianza que se

va creando […] Cuando el cliente es buen cliente te quiere cuidar” (ENTREVISTA a

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 28

dirigente cooperativo, 2009). Otros aprendizajes también son adquiridos a nivel local a través

de la prestación de servicios de empaque de fruta a empresas exportadoras ya consolidadas,

un rasgo que caracteriza a la etapa inicial de estos emprendimientos asociativos e inclusive se

mantiene posteriormente en tanto ayuda a licuar costos fijos.

Existen entonces aspectos materiales e intangibles involucrados en la inserción en la

exportación de estas formas de articulación horizontal integradas por pequeños y medianos

productores. Entre los primeros cobra un papel destacado la disponibilidad de un volumen de

fruta de calidad exportable, lo que implica la realización de ajustes en las unidades

productivas, así como de inversiones colectivas en instalaciones de poscosecha, maquinaria

de clasificación-empaque y cámaras de frío- en un principio subsanadas a través del alquiler

de empaques-. Sin embargo, los aspectos intangibles son igualmente relevantes: a nivel de los

asociados involucra pasar de la venta de la fruta “en planta” a precio fijo, a venderla ya

cosechada “a resultado” del mercado, asumiendo, por lo tanto, un riesgo mayor. En el plano

de la organización lo “intangible” involucra aprendizajes en varios terrenos: en la

clasificación y preparación de la fruta, en el manejo de la operatoria comercial y el

establecimiento de contactos con los clientes, y en la resolución de las tensiones internas que

conlleva el desarrollo de cualquier emprendimiento asociativo.

Los estudios de caso realizados por Palacios (2012) y Soleno Wilches Wilches (2012)

revelan como características centrales de estos emprendimientos las siguientes:

a) La capacidad de planificación del corto plazo (la temporada de ventas) y a

mediano plazo (nuevas inversiones) que es efectuada de manera directa,

evitando su delegación en personal contratado;

b) La agilidad en la gestión: “vos en este esquema si te quedas quieto vas

desapareciendo.” (Dirigente de cooperativa, 2009);

c) El diseño de una estrategia empresarial que contempla la diversificación de

mercados y clientes, así como el acuerdo de formas de pago que no

impliquen excesivos apremios financieros para los socios;

d) La co-construcción de las pautas internas de funcionamiento, que en la

mayoría de los casos son formalizadas por escrito. Entre ellas cobra

importancia el compromiso de entrega de una determinada cantidad de fruta

por parte de cada asociado al principio de la temporada. Una vez alcanzado,

éste puede vender parte de su producción por otros canales (es decir que no

hay exigencia de exclusividad de venta);

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 29

e) La transparencia en las liquidaciones, según la variedad y calidad de la fruta

entregada y el mercado de destino.

No obstante ello, en los dos emprendimientos estudiados se constató un proceso de

cambio de la base societaria, por el cual algunos productores – generalmente los de menor

escala productiva – dejaron de pertenecer a estas organizaciones. Un elemento decisivo parece

haber sido el aumento de los requerimientos de aportes destinados a realizar nuevas

inversiones. Este proceso de desgranamiento logró asimismo legitimarse internamente, en

tanto una mayor homogeneidad de la base societaria es vista como elemento posibilitador de

una mayor eficiencia y expansión. En este sentido resulto ilustrativa la opinión del dirigente

de una de las entidades cuando relata: “Lo que fue por ahí un sueño inicial, después el tiempo

demostró que ese productor que es chiquitito, que es el 99% de los casos, no aspira a crecer,

ni a mejorar, ni a nada […] Se tuvo que ir la mayoría, la mitad […] yo tenía la ilusión,

digamos, de que ese productor chico iba a mejorar, iba a tratar de sacar bien su fruta, y que

iba a mejorar mucho su ingreso, no se logró. No se logró porque ese productor que es

pequeño con el tiempo uno vio que iba a seguir siendo chiquito y tendiendo a desaparecer”

(ENTREVISTA, 2009). A pesar de que la estrategia comercial de esta entidad apunta a la

colocación de la fruta del conjunto de los asociados que permanecen, el proceso de cambio de

la base societaria sería una consecuencia indirecta de las exigencias que le plantea la

participación en el mercado exportador.

La posición de los emprendimientos asociativos en relación a otras empresas

exportadoras

En el apartado anterior se señaló que los distribuidores internacionales constituyen un

actor de gran preponderancia en la cadena citrícola, en tanto tracciona directa o

indirectamente los cambios en el resto de los agentes. Ahora analizaremos la situación en que

se encuentran los emprendimientos asociativos en relación al resto de las empresas con las

cuales comparten un mismo territorio –la subregión del río Uruguay- en el cual se produce la

fruta que es luego ofertada en los mercados globales.

En términos generales se puede señalar que el contexto internacional ha resultado

favorable en los últimos años para la exportación de cítricos dulces en contraestación. Ello

explicaría la circulación de información y la existencia de acuerdos informales entre las

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 30

empresas que operan en el espacio local, en tanto se consultan mutuamente acerca de la

reputación de los clientes y los precios vigentes en algunos destinos, y en ciertas ocasiones

completan pedidos o contratan servicios de otras empresas cuando ven superada su capacidad

de empaque (CRAVIOTTI et al., 2010). Cabe observar de todos modos que las cooperativas

por lo general no toman la iniciativa en estas interacciones interempresariales, excepto en lo

que respecta a requerir información sobre clientes a las firmas exportadoras más antiguas.

A pesar de estos vínculos informales existe una competencia latente entre las

empresas, que se pone de manifiesto cuando surgen nuevos actores en el negocio exportador y

eventualmente puede expresarse más abiertamente en situaciones de retracción del mercado.

Como nos lo había enseñalado un dirigente de una de las cooperativas estudiadas: “Al

principio encontrás que tratan de que cualquier proyecto que es competencia no surja, es

más, al comienzo hubo muchas otras empresas que le pagaron muchísimo más a socios

nuestros que nosotros teníamos geográficamente para juntar volumen […] hasta hoy lo hacen

[…]Creo que al principio en este esquema, cómo no éramos productores grandes nos costaba

salir, después como vos surgís tratan de cuidarte para que no rompas los códigos…entonces

vos tenés que hacer de todo para tener los códigos del resto […] El problema muchas veces

es el precio afuera, lo que se oferta, que tenemos que competir” (ENTREVISTA, 2009).

En ese contexto las cooperativas presentan debilidades y fortalezas como

organizaciones de pequeños y medianos productores. Entre las primeras se puede mencionar

que la calidad es menos homogénea respecto a las firmas verticalmente integradas, que

disponen de asesores técnicos que recorren el conjunto de sus quintas. Al tener menor

envergadura económica su volumen y radio de aprovisionamiento de la fruta es menor, con lo

cual la oferta de variedades es más limitada. También la logística es más pobre, ya que

carecen de oficinas comerciales en el exterior para lograr un contacto más cercano con los

clientes. Por otra parte, el hecho de que algunas de las grandes empresas exportadoras estén

diversificadas en otras actividades económicas les da un respaldo económico del cual carecen

las cooperativas: “Salen a comprar una “X” variedad que hay poca y esa empresa paga lo

que el mercado no paga, pero lo pagan porque ellos necesitan cumplir un compromiso

contraído afuera y sacan plata de otra actividad para cubrir esa pérdida” (ENTREVISTA,

2009). Esta diversificación también les permite resistir plazos más prolongados de pago.

Sin embargo, las entidades asociativas presentan también fortalezas en relación a las

empresas verticalmente integradas: “El tema de la cosecha y la entrega de la fruta en el

empaque es por cuenta de los socios […] entonces todo el problema de cosecha que es un

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 31

problema costosísimo, mucho más caro que el costo de producción en planta, eso a la

empresa no le cae…la eficiencia es muchísimo mayor” (ENTREVISTA a asesor técnico,

2010). Por operar un volumen menor el trabajo en el empaque puede ser más meticuloso; las

estructuras son más chicas y con menores costos fijos.

Asimismo con los compradores externos las transacciones son más personalizadas;

tratar con vendedores que también son productores genera mayor confianza en sus clientes.

La compra de fruta a cooperativas integradas por pequeños y medianos productores les

permite responder a requerimientos de consumidores que no se guían por el precio en su

elección de compra y posicionarse diferencialmente frente a otros distribuidores: “La ventaja

es que el europeo está con la onda de que quiere ayudar al pequeño, ésa es la ventaja, que en

el imaginario del europeo él está comprando una caja y con esa caja está ayudando al

productor chiquito” (ENTREVISTA a dirigente de una cooperativa, 2009).

En este sentido, el análisis de la evolución de la participación de los emprendimientos

asociativos en la exportación de cítricos dulces (Cuadro 3) revela que los consorcios de

productores han ido consolidándose en el transcurso de los últimos cinco años, - con

excepción del año 2011 para el caso de las naranjas. Si bien la participación de las

cooperativas en el negocio exportador es más limitada y oscilante, se ha ido incrementando en

la exportación de mandarinas, acompañando la expansión de las cantidades exportadas por

Argentina, que se apoya en la posición ventajosa del país respecto a otros exportadores del

hemisferio sur.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 32

Tabla 3 - Entidades asociativas exportadoras de cítricos dulces de la subregión del río Uruguay. Cantidades exportadas y participación en el total, en

porcentajes

Entidades / Exportaciones Naranjas Mandarinas

2007 2008 2009 2010 2011 2007 2008 2009 2010 2011

Cooperativas

Cantidad

exportada 954 890 566 4.008 1,119 870 2.592 5.954 5.600 7.348

% 0,60 0,77 0,62 3,78 1,26 0,99 3,05 6,08 5,39 7,18

Consorcios

Cantidad

exportada 26.213 16.140 14.806 15.448 7.723 21.067 21.217 28.109 29.313 28.601

% 16,38 13,95 16,11 14,57 8,68 23,96 24,89 28,18 28,22 27,96

Total exportado por

Argentina (en pallets)

160.071 116.388 91.860 105.979 88.924 87.917 84.985 97.927 103.881 102.290

Fuente: Elaboración propia en base a datos del SENASA.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 33

Reflexiones finales

En el actual contexto agroalimentario las entidades asociativas de productores pueden

desempeñar un rol económico y también político a nivel global, como actor comprometido

con la defensa de la agricultura familiar. Estas formas de articulación horizontal representan

para el sector una alternativa posible para el acceso a los mercados globales, que le permite

lograr una mayor capacidad de retención del excedente respecto a si vendiera de manera

atomizada a las grandes empresas exportadoras, con las cuales se articula de manera

subordinada y residual. Por otra parte la compra a este tipo de entidades permite a la gran

distribución dar respuesta a nuevas demandas de segmentos de consumidores ubicados en los

países desarrollados.

La creación de estos emprendimientos requiere recursos tangibles e intangibles, para

lo cual los apoyos externos resultan decisivos. Asimismo como organizaciones deben ser

capaces de desarrollar capacidades internas de planificación y gestión de manera a lograr

continuidad y calidad en la oferta de fruta, y de establecer acuerdos tanto con los agentes

ubicados “aguas abajo” en la cadena de valor como con otras empresas exportadoras ya

consolidadas dentro de su mismo territorio. A través de ellos pueden aprovechar intersticios

de los mercados existentes y construir nuevos mercados vinculados a la diferenciación, pero

en tanto éstos no dejan de ser arenas sociales donde interactúan actores con diferentes códigos

y acceso a recursos, deben continuamente renovar sus esfuerzos para ampliar su capacidad de

maniobra en relación a otros agentes respecto a los cuales su poder es desigual.

Los procesos de desgranamiento de pequeños productores experimentados por las

entidades asociativas estudiadas pusieron de manifiesto un costado problemático de las

organizaciones, poniendo en cuestión su posible contribución a la reducción de las

desigualdades que motivaron su surgimiento, así como su rol de referencia simbólica para

productores familiares de pequeña escala. La mejora de las condiciones de inserción de este

tipo de productores en los mercados debe ser entonces cualificada, ya que se restringe a

aquellos que logran adaptarse a las condiciones exigidas, a través de un proceso de

innovación incremental que demanda tiempo e inyección de capital para financiar mejoras.

En consecuencia, un importante desafío radica en el diseño de políticas públicas que

no sólo fortalezcan a este tipo de emprendimientos y a sus integrantes, sino que también

incentiven la puesta en marcha de instrumentos para posibilitar la continuidad y permanencia

de los estratos más débiles. Ello fortalecería no sólo la integración “hacia adelante” de

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 34

productores con limitaciones de escala y acceso a recursos, sino también la esencia

transformadora y el carácter genuinamente alternativo de estas organizaciones respecto al

modelo de articulación asimétrica representado por las grandes empresas agroindustriales.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 36

A evolução institucional do sistema de cooperativas de leite da agricultura

familiar com interação solidária (SISCLAF): atores sociais, mercados e

ação coletiva no sudoeste do Paraná

Fabiano Escher

Introdução

A atividade leiteira vem desempenhando um importante papel socioeconômico para os

agricultores familiares de todo o Brasil e se constituindo como uma estratégia de reprodução

fundamental para esse grupo social. Entre os principais motivos imediatos que vêm

valorizando o crescimento da atividade leiteira na agricultura familiar, destacam-se: a

intensidade do uso da força de trabalho familiar, o aproveitamento de terras não nobres dos

estabelecimentos para pastagem, a integração entre lavoura e pecuária e a diversificação das

atividades, além de representar uma fonte de receita mensal mais ou menos estável.

No caso do estado do Paraná, a produção de leite vem apresentando um expressivo

crescimento, sendo que de acordo com os dados do Censo Agropecuário do Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 1996 e 2006, o Sudoeste Paranaense, em

especial, passou de aproximadamente 164 milhões de litros de leite para mais de 380 milhões,

praticamente 20% da produção do estado então, e fabulosamente chegou em 2009 com uma

produção de mais de 795 milhões de litros de leite, de acordo com os dados da Pesquisa

Pecuária Municipal do IBGE, com 24% da produção do estado, atrás apenas do Oeste

Paranaense, que produziu 910 milhões de litros em 2009, mas cuja produção já vem

crescendo em um ritmo menor. Assim, o Paraná vai assegurando seu lugar como segundo

maior produtor do país, ao lado de Goiás e atrás apenas de Minas Gerais.

Não obstante, a partir de meados da década de 1990 e mais intensamente na década

seguinte, os principais estudos econômicos convencionais sobre essa cadeia produtiva têm

afirmado que, com o avanço da globalização do mercado de lácteos, a concentração industrial

(fusões e aquisições), a captação da matéria-prima por grandes empresas, inclusive

multinacionais, e a inovação tecnológica induzida por esses processos, levariam à crescente

especialização, com ganhos de produtividade e de escala, ocasionando, inexoravelmente, a

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 37

diminuição do número de produtores de leite, a concentração nos grandes e médios produtores

empresariais e a exclusão generalizada dos pequenos produtores da agricultura familiar.

Contudo, o surpreendente crescimento das pequenas cooperativas de leite na Região

Sul do Brasil, como mostrou Magalhães (2007), e particularmente do Sistema de

Cooperativas de Leite da Agricultura Familiar com Interação Solidária (SISCLAF) no

Sudoeste do Paraná, como mostraram David (2009) e Basso (2011), parece em alguma

medida estar desafiando essas tendências macroestruturais. No ano de 2009 o faturamento das

cooperativas de leite associadas ao SISCLAF, que comercializam o produto através da

Cooperativa Central, chegou a quase 30 milhões de reais. As 27 cooperativas municipais de

leite CLAF’s em seu conjunto agregam algo em torno de 22% dos produtores de leite do

Sudoeste Paranaense, mas captam apenas cerca de 6% do total do leite produzido,

notadamente entre os agricultores familiares menos capitalizados e com uma produção média

entre 30 e 60 litros por dia, que seriam provavelmente excluídos da atividade em nível

comercial caso não existissem as cooperativas como uma alternativa de integração econômica

de caráter coletivo. Entretanto, essa forma de atuação do SISCLAF junto aos agricultores, e,

como consequência disso, a sua forma de inserção competitiva em um mercado cuja

rivalidade entre as empresas compradoras da matéria-prima é enorme, têm implicado na

dificuldade em estabelecer rotinas de planejamento e deliberação contínua sobre uma

estratégia econômica e institucional clara e articulada frente ao acirramento concorrencial no

território.

Em seu trabalho, Magalhães (2007) criticou as limitações teóricas dos estudos

econômicos convencionais, sobretudo porque a maior parte deles se concentrava na análise da

concorrência das empresas pelo mercado consumidor, mas não abordava, ou o fazia de

maneira superficial e insuficiente, os problemas do acesso à matéria-prima e da conflituosa

relação com seus fornecedores. Nessas abordagens, a importância dos fatores exógenos e das

tendências macro seriam sobredimensionados, ao mesmo tempo em que subdimensionadas as

estratégias endógenas e as relações específicas que as empresas agroindustriais, os produtores

de leite e as organizações da agricultura familiar mantêm, contribuindo sobremaneira para a

produção de situações particulares e para a atribuição de certas características locais aos

mercados de leite, determinadas por instituições próprias de cada território. Em seguida,

baseado na Sociologia Econômica de Neil Fligstein (1999, 2001), sustentou uma interpretação

teórica alternativa, segundo a qual os mercados e a ação econômica seriam melhor analisados

sob uma perspectiva territorial, a partir dos conceitos bourdieusianos de “campo” e “capitais”.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 38

O autor argumenta que os mercados são mais bem caracterizados pela relação entre as

organizações concorrentes de um mesmo segmento do que pela relação entre produtores e

consumidores e, a partir disso, utiliza a noção de “habilidades sociais” para expressar a

capacidade que as cooperativas de leite da agricultura familiar do Sudoeste do Paraná, Oeste

de Santa Catarina e Noroeste do Rio Grande do Sul (a chamada Mesorregião Grande

Fronteira Sul) tiveram para mobilizar capital social, simbólico e tecnológico, formar uma

nova identidade social em torno da produção familiar de leite, estimular a cooperação entre os

atores e manter estáveis as relações com os seus fornecedores (MAGALHÃES, 2007). Nos

termos de Polanyi (2000) e de Beckert (1999, 2011), o que o autor estaria enfatizando é que

toda uma trajetória histórica comum, enraizada (embeddedness) nas concepções mentais dos

atores, jogou um papel fundamental para a inovação institucional materializada naquilo que

designamos “novo cooperativismo” (ESCHER, 2011), o qual alterou significativamente a

forma organizacional dos agricultores e a dinâmica do mercado territorial de leite.

Seguindo as pistas deixadas por Magalhães (2007), o objetivo desse trabalho é

compreender como o SISCLAF, através de suas ações, práticas e iniciativas, conseguiu

estruturar-se e inserir-se competitivamente em um ambiente econômico tão hostil como é o do

mercado territorial de leite e analisar a sua “habilidade” (ou não) de induzir e articular a

cooperação entre os atores, movimentos sociais e organizações econômicas do território, no

sentido de instituir uma estratégia coletivamente deliberada de desenvolvimento rural baseada

no fortalecimento da atividade leiteira. Nos termos teóricos de Polanyi (2000), o que nos

interessa compreender é se o SISCLAF representa efetivamente um dispositivo coletivo de

ação econômica com real capacidade de firmar uma postura contra-hegemônica “enraizada”

em relação ao crescente processo de mercantilização da atividade leiteira no Sudoeste (o seu

“moinho satânico”) e, assim, construir e operar um projeto de desenvolvimento rural que

tenha nessa atividade um eixo articulador dos “contramovimentos” da agricultura familiar.

Embora não seja possível no espaço desse artigo expor o quadro teórico que nos

orienta de maneira detalhada, faz-se necessário ao menos apresentar as nossas principais

referências conceituais e seus autores. Da Economia Institucional-Evolucionária de Hodgson

(2004, 2007) apropriamo-nos dos conceitos de instituições, organizações, hábitos e rotinas.

Instituições são sistemas de regras sociais estabelecidas e enraizadas [em hábitos de

pensamento e ação compartilhados] que estruturam as interações sociais. [A partir

dessa definição ampla de instituições], as organizações são [definidas como] um

tipo especial de instituição, [um dispositivo coletivo] com aspectos adicionais [...],

que envolvem (a) critérios para estabelecer seus limites e para distinguir seus

membros dos não membros, (b) princípios de soberania em relação a quem possui

certas atribuições, e (c) cadeias de comando delineando responsabilidades para com

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 39

a organização. A organização ou grupo provê um ambiente social e físico

estruturado para cada indivíduo, incluindo regras e normas de comportamento, tanto

explícitas como tácitas. Este ambiente é composto por outros indivíduos, pelas

relações entre eles e pelos artefatos físicos e tecnológicos que eles usam em suas

interações. Hábitos são propensões adquiridas e moldadas pela repetição mediante

as circunstâncias do ambiente [...], repertórios submersos de pensamento ou

comportamento potencial, a serem desencadeados por um estímulo adequado ou

contexto. Assim como os indivíduos têm hábitos, as organizações têm rotinas. Mas

as rotinas não se referem simplesmente aos hábitos compartilhados por muitos

indivíduos em uma organização ou grupo social. Rotinas são como meta-hábitos,

existentes em um substrato de indivíduos habituados dentro de uma organização. A

evolução institucional de uma organização envolve o desenvolvimento e a

reprodução de rotinas organizacionais e de hábitos individuais correspondentes.

(HODGSON, 2007, p.110-111, tradução e grifos nossos).

E da Sociologia Econômica de Beckert (1999, 2011), apropriamo-nos do conceito de

embeddedness, que esse autor toma emprestado de Polanyi (1977, 2000) e desenvolve-o para

analisar três tipos de situações de interação social em que os atores (no caso os agricultores

familiares) e seus dispositivos de ação coletiva, se envolvem: as de conflito, de cooperação e

de inovação. Todas estas formas de interação estão diretamente relacionadas ao

“enraizamento” das ações dos atores e das estratégias organizacionais nas estruturas sociais.

Embeddedness [que traduzimos como imersão ou enraizamento] refere-se à

estruturação social da significação que é promulgada com base em interpretações

[dos atores], em um processo indeterminado, porém estruturado. Tal conceituação

teórica traz os atos interpretativos dos atores intencionalmente racionais para o

centro. Ela encontra sua justificativa na observação de que a complexidade e a

novidade inerente aos contextos econômicos criam um ambiente de incerteza para

os atores, que exclui decisões ótimas e provoca a questão de como os atores fazem

um ambiente [suficientemente] inteligível para conseguir tomar decisões

intencionalmente racionais. [Portanto,] o significado e as percepções de

racionalidade são estabelecidos intersubjetivamente no próprio processo da ação em

si. (BECKERT, p.1, 1999, tradução e grifos nossos).

Os atores sociais lançam mão tanto de recursos habituais como de recursos reflexivos

para interpretar as situações em que estão inseridos, o que lhes permite empreender ações

dentro de um determinado ambiente institucional. Quando as ações são fortemente informadas

pela intencionalidade dos atores, elas assumem um caráter estratégico. Mas, segundo Beckert

(1999), como a incerteza joga um papel fundamental nas interações humanas, os significados

e percepções da racionalidade são estabelecidos intersubjetivamente entre os atores, no

próprio curso das ações. Assim, tanto os objetivos como os meios utilizados para alcançar

determinados fins, bem como os próprios fins em vista, são reconfigurados na medida em que

o processo avança, alterando as expectativas dos atores. Portanto, a percepção da situação e as

expectativas que a partir daí se formam, encontram-se imersas (embeddedness) nas

experiências (individuais) dos atores e (coletivas) das organizações. Neste processo de

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 40

evolução institucional, que envolve aprendizado e mudanças nos hábitos dos indivíduos e nas

rotinas das organizações, o território – que é o próprio ambiente social e material onde

transcorrem as interações sociais – é continuamente reproduzido e reconfigurado.

Neste sentido, seguindo Polanyi (2000), a mudança social pode ser entendida como

um “duplo movimento”, um processo dinâmico e conflituoso, eminentemente dialético, de

oscilação entre embeddedness, disembeddedness e reembeddedness. De modo que, qualquer

processo que possa ser caracterizado como de desenvolvimento, deve estar ligado à

democratização econômica, realizada por meio da institucionalização de sistemas de regras e

dispositivos de ação coletiva que busquem integrar a atividade econômica de modo

socialmente regulado por valores humanos, como bem demonstra Sabourin (2011). O que não

significa, conforme argumentou-se em Schneider e Escher (2011), que o mecanismo de

mercado precise deixar de existir enquanto forma de alocação de recursos, mas que seja

submetido a outras “formas de integração”, como a reciprocidade e a redistribuição. Mas isso

implica em mudanças nas estruturas econômicas e políticas que estão na base do ordenamento

social e diz respeito aos modos como são organizadas as relações de troca e distribuição, a

divisão do trabalho, as relações de propriedade, a separação entre consumidores e produtores

e a forma de Estado e suas políticas públicas. O que impõe, inescapavelmente, a centralidade

da política para a realização efetiva de processos de desenvolvimento rural no território.

Quanto aos aspectos metodológicos, cabe ainda dizer que a pesquisa que subsidiou

esse texto foi realizada entre agosto e setembro de 2010, conjugando técnicas de observação

participante em reuniões e encontros, entrevistas semiestruturadas com agricultores,

empresários, extensionistas, dirigentes e especialistas, e também análise documental. Os

dados quantitativos e qualitativos foram analisados com base no referencial teórico

brevemente esboçado acima e, a partir disso, realizamos a interpretação que segue.

O texto está estruturado em quatro seções, incluindo essa introdução. Na segunda

seção realizamos uma breve contextualização da emergência das cooperativas de leite e do

Sistema SISCLAF em meio às transformações estruturais e à dinâmica recente do mercado e

da cadeia produtiva do leite. Na terceira seção apresentamos uma análise das três fases da

história institucional do SISCLAF: a primeira, que vai de 1997 a 2005-7; a segunda, que vai

de 2005 a 2009; e a terceira, que consideramos ter iniciado a partir de fevereiro de 2010. Por

fim, na quarta seção sumarizamos as principais conclusões e fazemos as considerações finais.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 41

As transformações estruturais do mercado de leite e a emergência do cooperativismo da

agricultura familiar

Com a crescente elevação da produção brasileira de leite desde a década de 1990, o

país, que tradicionalmente ocupava uma posição de importador líquido, passou a ocupar,

desde 2004, uma posição de exportador líquido do produto, alterando, ainda que de maneira

deveras instável e oscilante, a sua condição no mercado mundial, sobretudo no leite em pó

(ESCHER, 2011). Entretanto, não obstante o notável crescimento da produção de leite ser um

fenômeno nacional, ele tem ocorrido de forma mais substancial e acentuada justamente nos

territórios onde há o predomínio de pequenos estabelecimentos rurais, como o Sudoeste do

Paraná, que atualmente é a sétima maior região produtora do Brasil e que, juntamente com o

Oeste do Paraná, o Oeste de Santa Catarina e o Noroeste do Rio Grande do Sul, produzem 1/5

do leite produzido no Brasil (GNOATTO; VARGAS; NUNES, 2009). De uma atividade

orientada fundamentalmente para a subsistência das famílias e secundariamente para atender a

população urbana local (mercado informal), com uma importância até marginal dentre as

demais atividades econômicas exercidas pelos agricultores – assim como antigamente foram o

milho, os suínos e o feijão e atualmente são a soja, as aves e o milho –, a pecuária leiteira

atravessa uma “grande transformação”, parafraseando Polanyi (2000), ao ser reorientada para

o mercado interno e externo e passar por um processo tardio e ainda parcial, mas

provavelmente irreversível, de alteração da base tecnológica e de incorporação crescente de

insumos externos, provocando um amplo processo de mercantilização da atividade leiteira.

A partir da consulta de alguns trabalhos atuais da literatura especializada, como Jank e

Galan (1998), Chaddad (2007), Magalhães (2007), Carvalho (2008), Gnoatto, Vargas e Nunes

(2009), David (2009), entre vários outros que poderiam ser citados, podemos afirmar que as

causas e consequências das transformações decorrentes da mercantilização da atividade

leiteira podem ser classificadas, grosso modo, em três ordens de fatores estruturais.

Em primeiro lugar, destacam-se um conjunto de mudanças institucionais. Desde 1945

até 1991 o mercado nacional de leite sofria constante intervenção e regulação do Estado,

através de instrumentos de política pública, como o controle das importações e o tabelamento

de preços. A partir de então, ocorreram processos como a abertura comercial, a implantação

do MERCOSUL e a estabilização econômica instituída desde o Plano Real. Os produtores

domésticos sofreram com a baixa dos preços decorrente das importações da Argentina e do

Uruguai e se mobilizam, exigindo proteção. Com a crise econômica da Argentina isso acabou

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 42

se confirmando e a produção passou a crescer aceleradamente. Nesse período, entrou em

vigor a Normativa 51, definindo novos padrões de qualidade, sanidade, transporte e etc., na

prática, ainda pouco efetivos. No caso do Paraná, continuaram a existir programas sociais de

distribuição de leite, como o “Programa Leite das Crianças”, mas em geral, desde o final dos

anos 1990, o Estado tem diminuído a sua demanda em detrimento do aumento da demanda do

setor privado e passou a atuar prioritariamente através da adoção de mecanismos indiretos de

orientação da produção, mediante políticas de crédito, pesquisa e assistência técnica.

Em segundo lugar, em decorrência das mudanças institucionais acima elencadas,

houve um processo acelerado de reestruturação da organização industrial, através de fusões e

aquisições, incorporações e alianças estratégicas empresariais (basicamente joint ventures),

que têm reduzido rapidamente o número de empresas e cooperativas que controlam a

produção e comercialização do leite. Em 2007, considerando apenas as 16 maiores empresas

que atuavam no ramo de lácteos no país, a primeira faturava sozinha 36% das vendas, as

cinco primeiras faturavam juntas 67% das vendas e as cinco últimas faturavam juntas apenas

10% das vendas. Especificamente no Sudoeste Paranaense, em 2010 atuavam 38 firmas

compradoras de leite, entre pequenas agroindústrias familiares, cooperativas empresariais

(como a CAPEG, a CONFEPAR e a CEDRENSE) e de economia solidária (pequenas

cooperativas ligadas ao SISCLAF) e médias e grandes firmas (como a FRIMESA e a

PARMALAT). Por fim, destaca-se que em 2008 havia 14 projetos de instalação de

capacidade produtiva, de 110 mil a 2 milhões de litros/dia, em diversos municípios dos três

estados pertencentes à Mesorregião Grande Fronteira Sul, sendo que dos 5 projetos previstos

para o estado do Paraná, 2 eram na região Sudoeste e 2 na região Oeste.

Em terceiro lugar, apesar de a atividade leiteira no Paraná em geral ainda estar

assentada sobre um paradigma tecnológico maduro, as inovações tecnológicas jogaram um

papel importante. Do lado da indústria, duas inovações foram as mais impactantes: (a) a

rápida ampliação da coleta a granel de leite previamente refrigerado, reduzindo os custos de

captação, possibilitando a eliminação de postos de resfriamento e melhorando a qualidade do

produto que chega às plataformas das indústrias; e (b) a adoção de máquinas e métodos de

esterilização e homogeneização do leite, bem como a utilização massiva de embalagem longa

vida, do tipo Tetra Pak, que a partir de 1998 ultrapassou o leite pasteurizado tipo C em termos

de volume consumido e transformou em definitivo o leite em mais uma commodity,

permitindo a comercialização a longas distâncias e o armazenamento do produto por prazos

longos, sobretudo no varejo. Do lado do produtor rural foram quatro as principais inovações:

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 43

(a) as técnicas de manejo de pastagens e alimentação dos animais, geralmente baseadas no

pastejo permanente (potreiros) ou rotacionado (piquetes) e no fornecimento de milho moído

(quirera) e, nas propriedades mais capitalizadas, de concentrado com base em farelo de soja

(ração); (b) as técnicas de manejo da reprodução e as tecnologias de melhoramento genético

do rebanho, como a inseminação artificial; (c) a utilização de equipamento de ordenha

mecânica, seja no sistema “balde ao pé” ou “canalizado”; e (d) o resfriamento e conservação

do leite, feito através do uso de resfriadores, que podem ser de “imersão” de tarros (não mais

permitido pela legislação vigente), ou então de “expansão” em tanques a granel.

A partir do final da década de 1990, a atividade leiteira começou a ganhar visibilidade

entre os agricultores familiares e as suas organizações em toda a Região Sul do Brasil.

Influenciadas pela experiência do Sistema COORLAC, no Rio Grande do Sul, outras duas

experiências ligadas ao cooperativismo de leite da agricultura familiar foram se constituindo

no início dos anos 2000: o Sistema ASCOOPER, no Oeste de Santa Catarina, e o Sistema

SISCLAF, no Sudoeste do Paraná. Em 2003, estes três sistemas se articularam em torno do

Fórum Sul das Cooperativas de Leite, com os propósitos de: influenciar as políticas públicas

para o fortalecimento da atividade leiteira da agricultura familiar, visando unificar uma

agenda conjunta de ações de representação e fomento dos sistemas cooperativos; e de

incentivar o intercâmbio e a troca de experiências e realizar campanhas e mobilizações

buscando projetar um desenvolvimento articulado do ramo cooperativo do leite no Sul do

Brasil.8 Todos esses sistemas de cooperativas de produção e comercialização de leite fazem

parte da União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária

(UNICAFES), constituída em 2005, que reúne cooperativas de todo o país, vinculadas ao

movimento da agricultura familiar, mas em diferentes ramos, como crédito, produção,

comercialização, trabalho e acompanhamento técnico, habitação e turismo.

No ano de 1998, após a realização de uma série de eventos de capacitação, incluindo

vários intercâmbios e seminários, foram constituídas as primeiras quatro Cooperativas de

Leite da Agricultura Familiar (CLAF’s), nos municípios de Renascença, Dois Vizinhos,

Marmeleiro e Nova Prata do Iguaçu. Em 2003, foi formado o Sistema de Cooperativas de

Leite da Agricultura Familiar com Interação Solidária (SISCLAF). Hoje, são mais de 5.000

associados em cooperativas singulares de 27 municípios, organizadas em quatro núcleos

8 No Paraná também nasceram outros dois sistemas que formam o Fórum Paranaense do Leite e lutam por um

lugar no CONSELEITE Paraná: o Sistema de Cooperativas de Produtores de Leite da Agricultura Familiar

(SISCOOPLAF), na região Oeste e a Central Regional de Cooperativas de Leite da Agricultura Familiar

(COORLAF) na região Centro, além da COOPERLAF na região Norte, onde ainda não se constituiu um

sistema.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 44

operacionais – Fronteira, Vale do Iguaçu, Marrecas e Pinhais –, e uma Cooperativa Central,

sediada no município de Francisco Beltrão. A produção em litros de leite/ano do SISCLAF

evoluiu de menos de 500.000 litros em 1998 para quase 4.000.000 de litros em 2005 e mais de

6.000.000 de litros em 2009. Basso (2011) e David (2009) explicam que as CLAF’s

municipais atuam prioritariamente na organização das famílias produtoras de leite,

orientando-as na organização da produção, na melhoria da qualidade do leite e das condições

de trabalho, na redução dos custos de produção e na adequação tecnológica, na orientação à

utilização do credito e na comercialização conjunta do leite in natura. Já a Central SISCLAF

presta serviços administrativos e contábeis, de assessoria técnica, de industrialização de

lácteos, de comercialização da produção e de formação para as suas cooperativas associadas.

Os debates que deram origem as primeiras quatro CLAF’s tiveram inicio em 1997, no

âmbito do Fórum das Entidades da Agricultura Familiar do Sudoeste, onde criou-se um

“grupo de trabalho”, formado por representantes das organizações participantes: Sindicatos,

cooperativas de crédito da CRESOL-BASER e a ONG ASSESOAR. Mas a origem histórica

desse movimento, que em nossa dissertação chamamos de “novo cooperativismo” (ESCHER,

2011), é muito mais antiga, herança institucional de uma série de movimentos precedentes

que foram enraizando (embeddedness) a identidade da agricultura familiar como um valor no

território do Sudoeste Paranaense. Após a chamada Revolta de 1957 (GOMES, 1987), os

colonos do Sudoeste começaram a se organizar apoiados pelas Comunidades Eclesiais de

Base (CEBs) e formaram as primeiras oposições sindicais, que originaram o movimento

sindical cutista (FERES, 1990), que deu origem a FETRAF. O Movimento dos Trabalhadores

Rurais Sem Terra (MST) na região, apesar de ter tomado outros rumos, também teve sua

origem neste mesmo processo de mobilização e organização política. Posteriormente, os

agricultores passaram a se organizar em associações por grupos de vizinhança, que, apesar de

malogradas em seus propósitos econômicos, deram origem aos Fundos de Crédito Rotativo

(FCR) e, no fim das contas, constituíram a base social de onde nasceram todos os sistemas de

cooperativas de economia solidária, que foram sendo constituídos com base na experiência e

aprendizado do Sistema CRESOL de cooperativas de crédito da agricultura familiar. Todas

essas instituições surgiram em momentos históricos distintos e contribuíram à sua maneira

para tencionar e reconfigurar a correlação de forças do território, sedimentando as bases

organizacionais para que a agricultura familiar fosse capaz de empreender ações coletivas de

maneira mais autônoma e articulada, tanto no plano político como no plano econômico.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 45

A evolução institucional do SISCLAF: estratégias, rotinas e competitividade

Nesta seção, realizamos uma periodização da evolução histórica e institucional do

SISCLAF, com o intuito de descrever e analisar a sua forma de atuação em três diferentes

fases, atentando para os fatores que permitem distinguir cada uma delas, as principais

mudanças que as caracterizam e o papel dos atores nestas mudanças.

A primeira fase pode ser caracterizada como um período de construção social de um

dispositivo coletivo de ação econômica, que vai da organização dos grupos de base à

estruturação de um sistema em rede. Tanto as primeiras quatro cooperativas de leite como as

outras vinte e três formadas posteriormente foram constituídas a partir de um conjunto de

pequenos grupos de agricultores organizados por comunidades rurais de cada município, os

chamados “grupos de base”. A concepção pedagógica e o processo organizativo eram

promovidos por alguns profissionais e técnicos que prestavam assessoria aos agricultores

através desses grupos. A intenção era incentivar a organização autônoma entre os agricultores,

produzindo neles uma mentalidade de que seriam fortes se estivessem unidos, visando

promover o diálogo e principalmente a construção conjunta dos seus rumos, em um processo

de educação cooperativa. Para isso, foram estabelecidos canais de discussão entre os grupos,

envolvendo também atores ligados à assistência técnica e ao Poder Público Municipal, já com

o intuito de organizar a comercialização coletiva e de dar corpo à idéia de uma Central.

Se por um lado a constituição das cooperativas singulares serviu para institucionalizar

o que antes era eminentemente informal, por outro, foi gradualmente transferindo os espaços

de decisão dos grupos de base existentes nas comunidades para grupos mais restritos,

formados pelos membros diretores. A dinâmica dos grupos funcionou nos primeiros três anos,

mas depois esse intenso processo coletivo de deliberação reflexiva foi sendo desarticulado e

os grupos desestruturados. Durante esse período desenvolveu-se uma interessante experiência

de negociação coletiva entre os agricultores e as empresas acerca dos problemas comuns que

eles enfrentavam e cujas soluções eram encaminhadas através da interação e do diálogo entre

ambos, numa experiência que incluiu aprendizado coletivo, resolução conjunta de conflitos e

inovação de processos, em que participaram tanto os agricultores cooperativados na produção

de leite como os empresários ou representantes de vários laticínios atuantes no Sudoeste.

Posteriormente, este processo orgânico de participação dos grupos de base nas

instâncias de decisão foi se perdendo, mas foi dessa interação que se criaram as condições

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 46

cognitivas e a percepção da necessidade de institucionalizar formalmente uma estrutura

organizativa que articulasse as várias cooperativas singulares CLAF’s que vinham surgindo

nos municípios na forma de rede. Foi muito participativo e até espontâneo o processo

deliberativo que deu origem à formação do SISCLAF em torno de uma cooperativa central,

que acabou assumindo dois papeis teoricamente distintos, mas intimamente entranhados na

prática: (a) a representação política das cooperativas de leite e (b) a execução operacional das

suas atividades econômicas conjuntas. Contudo, a estrutura operacional vem assumindo um

papel predominante, que subordina o papel de representação política. Mas isso só se

consolidaria após a criação de uma estrutura centralizada de captação e resfriamento do leite

de todas as CLAF’s pela Central, permitindo-lhe tanto avançar no processo de

industrialização do próprio leite como no processo de comercialização para terceiros,

trabalhando com maior volume e capacidade de negociação com as empresas.

Até 2004, nem as Cooperativas Singulares (CLAF’s) nem a Cooperativa Central

(SISCLAF) possuíam qualquer infraestrutura que lhes permitisse minimamente a organização

dos trabalhos de rotina e o seu funcionamento operacional, o que só seria propiciado com

recursos do governo federal, através do Programa dos Territórios. Naquele ano houve um

espetacular consenso entre os atores e organizações integrantes do Grupo Gestor do

Território, que destinou 80% dos recursos para investimentos na estruturação do SISCLAF.

Além desses recursos, os investimentos para a estruturação produtiva e administrativa do

sistema têm contado com parcerias de algumas prefeituras municipais e, sobretudo, uma série

de emendas parlamentares, conseguidas junto ao deputado federal do PT no Sudoeste.

Não obstante a estruturação do SISCLAF ser deveras dependente de recursos públicos,

por outro lado, esse processo também evidencia a capacidade de agência dos atores sociais

vinculados à agricultura familiar e organizados através do cooperativismo. Justamente por

causa do enraizamento (embeddedness) político das ações desses atores, constituído ao longo

de muitos anos de militância dentro dos movimentos sociais e instâncias partidárias, quando o

Partido dos Trabalhadores (PT) chegou ao poder, estes atores encontraram-se revestidos de

uma reconhecida legitimidade para, além de reivindicar o acesso às políticas públicas,

também acessar recursos e propor os seus projetos de desenvolvimento.

Assim, através de outro projeto financiado pelo MDA e vinculado ao Programa dos

Territórios, em 2005 o SISCLAF conseguiu recursos para ampliar uma unidade industrial e

adquirir equipamentos para realizar a transformação do leite no município de Itapejara

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 47

d’Oeste.9 Mas a grande mudança nas rotinas e na estrutura operacional ocorre em 2007,

quando o SISCLAF adquiriu duas estruturas de recepção e resfriamento da matéria-prima, as

chamadas “plataformas de leite”, nos municípios de Itapejara d’Oeste e de Bela Vista da

Caroba. Ambas as plataformas foram construídas também com recursos provenientes de

emendas parlamentares, somando algo em torno de R$ 1.000.000 de investimento.10

O controle de um grande volume de leite em uma estrutura é o principal instrumento

de centralização operacional da Cooperativa Central. A forma de operação da estrutura de

plataformas representa um ponto polêmico e divide as opiniões dos entrevistados entre

argumentos prós e contra, com várias críticas e ressalvas. As críticas em geral estão ligadas a

dois fatores. Primeiro, aos altos custos de manutenção das plataformas e a perda de qualidade

devido ao transporte de longa distância: a plataforma possui uma considerável importância,

mas para que ela gere benefícios efetivos, não se pode trabalhar com capacidade ociosa, sendo

necessário operar com um grande volume e com leite de boa qualidade, o que a distância

compromete. Segundo, o próprio sentido da utilização das plataformas, que é concentrar o

poder econômico e o controle operacional nas mãos da Central, através da centralização

operacional dos recursos: leite, dinheiro e informação. Ademais, as estruturas de plataformas

só se viabilizam porque foram construídas com recursos públicos a fundo perdido, pois se

houvesse a necessidade de devolver o crédito tomado, o investimento não seria viável.

Por um lado, as plataformas contribuem para que a Central obtenha um considerável

poder de barganha na sua negociação com as empresas, o que na maior parte das vezes lhe

permite conseguir preços melhores do que aqueles conseguidos através da negociação das

Cooperativas Singulares diretamente com os laticínios locais. Por outro lado, a partir do

momento em que todo fluxo de informação e de recursos passa pela Central, ela passa a

possuir um poder sobre as Singulares que não teria apenas por conta do seu papel de

representação política, adquirindo maior capacidade de fazê-las obedecer e assumir as suas

determinações “de cima para baixo”. Assim, a integração entre as Cooperativas Singulares

9 Com as contrapartidas da prefeitura, na forma de cessão de terreno, pavimentação, poço artesiano, lagoas de

tratamento de efluentes, equipe técnica, e do próprio SISCLAF, na forma de área física já construída e de

recursos para capital de giro, esse projeto totalizava mais de R$700.000 (SCHNEIDER et al., 2007, p.110).

Este projeto, cuja liberação do Sistema de Inspeção Federal (SIF) ainda está em andamento, prevê a

transformação de 20.000 litros de leite/dia, com possibilidade de ampliação da capacidade para até 80.000

litros de leite/dia, para a fabricação de queijo muçarela e ricota, leite tipo C, iogurte, bebida láctea, manteiga e

doce de leite. 10

As funções e atividades de rotina realizadas nas plataformas são as seguintes: receber o leite que os caminhões

tanque recolhem nos produtores; realizar as análises laboratoriais de acidez e de álcool, pois ainda não se faz

testes biológicos; classificar o leite recebido por três tipos de qualidade (baixo padrão, padrão e alto padrão);

refrigerar e armazenar o leite recebido em dois grandes resfriadores com capacidade para 50.000 litros cada; e,

por fim, carregar em grandes carretas do tipo “bitrêm”, geralmente em tanques com capacidade para 40.000

litros e encaminhar para as indústrias que compram a matéria prima.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 48

parece ocorrer menos por causa de uma identidade sociopolítica compartilhada e mais por

causa de uma pressão econômica exercida pela Central, por meio da sua estrutura operacional.

A institucionalização de normas e as rotinas internas são assim estabelecidas por meio de uma

racionalidade econômica que se impõem progressivamente, enraizando-se nas suas estruturas.

A segunda fase representa um movimento de reação adaptativa aos limites e

dificuldades decorrentes do relaxamento da estratégia inicial de organização da base em

detrimento da adoção de uma estratégia orientada pelo mercado. Se até os idos de 2005 a sua

estratégia era controlar o fornecimento de matéria-prima, realizando um trabalho voltado

prioritariamente para a dinâmica da base social dos produtores de leite associados às CLAF’s,

depois essa estratégia foi relaxada sobremaneira, e todo o trabalho com os grupos, outrora tão

importante, foi completamente deixado de lado. Sobretudo a partir de 2007, com a instalação

das plataformas, a estratégia do SISCLAF passou a orientar-se pelo movimento do mercado e

pela percepção que os diretores vinham tendo a respeito dos resultados das estratégias

competitivas adotadas pelos laticínios. Mas, via de regra, os gestores e dirigentes dessas

empresas eram muito mais experientes e habituados à dinâmica instável e ao ambiente tão

hostil do mercado de lácteos do que os diretores do SISCLAF, que até há pouco tempo

estavam “pegando na enxada”. Assim, a partir do momento em que o SISCLAF adotou uma

estratégia de negociar no mercado spot e de fazer os chamados “leilões de leite”, a incerteza

do ambiente começou a aumentar e essas empresas passaram a construir expectativas menos

estáveis em relação à sua conduta, desestabilizando o anterior estado de confiança e

reciprocidade existente e passando a vê-lo menos como parceiro e mais como competidor pela

mesma base de produtores na disputa pelo acesso à matéria-prima. A maneira que

encontraram para estabilizar minimamente o acesso à matéria-prima em termos de volume, de

qualidade e de regularidade do fornecimento foi adotar estratégias competitivas que têm

configurado verdadeiras “guerras de preço”, lançando mão de incentivos econômicos para

“fidelizar” os produtores, através de diferenciação de preços até a gradual bonificação para os

fornecedores com maior produção e melhor qualidade. Em contrapartida, na busca por

conseguir manter os seus cooperados entregando leite às cooperativas e assim garantir a sua

competitividade, o SISCLAF também passou a modificar suas rotinas e a criar (a) uma

estrutura de incentivos econômicos e (b) uma estrutura de incentivos não econômicos.

Os incentivos econômicos são de três tipos. O primeiro, e principal de acordo com

David (2009), são as diferentes estratégias de comercialização e formação do preço pago ao

produtor que as cooperativas singulares vinculadas ao SISCLAF rotineiramente adotam. A

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 49

primeira, atualmente empregada por três cooperativas singulares, consiste em negociar o leite

sem passar pela central, diretamente com as indústrias de seus municípios, por conta de

relações de confiança que permitem o estabelecimento de critérios preferenciais em função da

regularidade, do volume e da qualidade e possuem contratos flexíveis e negociáveis em caso

de oscilações bruscas no mercado, mas que garantem a exclusividade de fornecimento,

conseguindo bons preços para os agricultores e conflitos com a direção central. A segunda

estratégia, adotada pela maioria das cooperativas singulares, consiste em entregar o leite nas

plataformas para que a Central se responsabilize pela comercialização no mercado spot,

através dos “leilões do leite”, em negociações mensais com as empresas compradoras,

conseguindo preços competitivos na maior parte do ano. A terceira estratégia é eventualmente

adotada por algumas cooperativas singulares, que comercializam o leite através da Central,

mas entregam o produto diretamente nas indústrias do seu município, contribuindo para

reduzir o custo de transporte e melhorar a qualidade do leite em função da rapidez na entrega.

O problema desse tipo de estratégia de comercialização baseada nos preços é que,

além de concentrar o poder econômico nas mãos da Central, a centralização operacional levou

a uma crescente hierarquização das estruturas de comando e das instâncias de tomada de

decisão. Mesmo as Cooperativas Singulares começaram a ser guiadas menos pelos interesses

imediatos dos agricultores associados e mais pela rotinização das práticas organizacionais que

os diretores foram habitualmente adquirindo, assentadas em valores estritamente mercantis e

duvidosas concepções de racionalidade técnico-econômica. A habituação dos diretores às

regras de cunho técnico e mercantil que regem o “mundo dos negócios” em que eles passam a

operar quando assumem seus cargos nas cooperativas, assumindo responsabilidades

gerenciais e vendo-se na obrigação de alcançar resultados econômicos imediatos, tem mudado

as suas concepções mentais e a lógica de relacionamento com os cooperados. Assim, os

produtores que conseguem aumentar a produção e melhorar a qualidade do leite, logo acabam

saindo das cooperativas, seduzidos pelas propostas de melhor preço realizadas pelas empresas

concorrentes. Esse é um grande dilema: manter a “fidelidade” desses produtores demanda

investimentos em formação e educação cooperativista, pois estes processos servem para

enraizar valores e crenças nas concepções mentais dos agricultores. Entretanto, a sua

importância não é claramente reconhecida. Então, a convergência da pressão concorrencial

das empresas privadas e do relaxamento da estratégia de organização da base, transformou a

relação central-singular-cooperado em uma relação quase que estritamente mercantil e

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comercial, favorecendo a manifestação de comportamentos individualistas, oportunistas e

aventureiros e gerando uma “crise de fidelidade” dos produtores em relação às cooperativas.

Um segundo incentivo econômico criado pelas cooperativas foi à abertura de lojas de

produtos veterinários, insumos e equipamentos para a atividade leiteira, em anexo às sedes de

algumas CLAF’s nos municípios. O sentido original da criação das lojas era que o cooperado

pudesse comprar os produtos veterinários, insumos, sal mineral, materiais consumíveis de

ordenha e resfriamento, etc., por um preço inferior ao usualmente praticado no comércio

local, por conta da menor margem de lucro inserida nos produtos, suficiente apenas para

cobrir os custos e os impostos e que fosse capaz de gerar uma pequena receita. Inicialmente

parecia que esse serviço traria benefícios e poderia configurar-se como uma interessante

estratégia de fidelização dos produtores cooperados. Mas logo depois, devido a uma série de

mal entendidos e de desvirtuamentos da proposta original, acabou se tornando um grande

problema. Em alguns casos a experiência foi positiva, pois trouxe um bom resultado

financeiro, tanto para a cooperativa como para os cooperados. Mas, na maior parte dos casos,

as atividades rotineiras foram desviando os diretores e funcionários da sua função precípua e

afastando-os do trabalho de campo. Em razão do seu caráter essencialmente comercial, da

duvidosa qualidade de alguns produtos ali vendidos e das características do próprio serviço

prestado por essas lojas, elas acabaram sendo jocosamente batizadas com o irônico apelido de

“bodegas da CLAF”, lembrando as antigas casas comerciais existentes nas comunidades

rurais na época da colonização (décadas de 1940 a 1960), geralmente associada a práticas

usuárias, que foram se desestruturando a partir da “modernização da agricultura”.

E finalmente o terceiro incentivo econômico, certamente o mais significativo e com

resultados mais objetivos, mas também mais difíceis de avaliar em toda a sua complexidade

(certamente só isso já renderia uma interessante pesquisa), é o fornecimento de crédito para

que os produtores cooperados possam custear suas atividades de curto prazo e, sobretudo no

caso do leite, possam realizar investimentos estruturantes na sua atividade, como compra de

vacas e de equipamentos em geral, reformas das pastagens e das salas de ordenha, etc. No

caso dos produtores do SISCLAF, o grande financiador dos seus projetos são

indubitavelmente as cooperativas do Sistema CRESOL, que operando PRONAF atuam em

todos os mesmos municípios em que existem as CLAF’s. Segundo o presidente da CRESOL-

BASER, até 2007, algo em torno de 60% do volume de crédito destinado aos agricultores

familiares pelas cooperativas do Sistema, tanto em projetos de custeio como de investimento,

eram direcionados à atividade leiteira; em 2008, algo em torno de 45%; e em 2009, algo em

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torno de 33% dos recursos: 85 milhões de reais em todo o Paraná, sendo que só no Sudoeste

seria algo em torno de 35 milhões de reais (mais de 40% do total dos recursos do estado).

Já os incentivos não econômicos mobilizados pelas cooperativas, são constituídos

essencialmente por elementos simbólicos enraizados em regras morais e em hábitos, com base

na identidade cultural que os agricultores familiares produtores de leite têm com os vínculos

comunitários e na identidade política historicamente construída. Incentivos dessa ordem

influenciam o comportamento dos indivíduos quando conseguem vincular o objetivo das

ações através das quais eles se expressam – obter a cooperação dos agricultores – com os

princípios elementares da identidade dos mesmos, quais sejam, as crenças e os valores que

informam o sentido da ação dos indivíduos e que orientam os seus comportamentos.

O primeiro está ligado à forma de organização da coleta e transporte do leite das

propriedades rurais até o seu destino. Destaca-se a enorme importância do “freteiro” – o

caminhoneiro que faz a coleta e o transporte –, que desempenha um papel de intermediação

entre o produtor, a cooperativa e a indústria. A relação entre os agricultores e os freteiros vai

muito além de uma simples prestação de serviço. O contato frequente e por longos períodos e

a proximidade, permitem a criação de laços de confiança, sobrepondo às relações de

intercâmbio mercantil vínculos políticos, de vizinhança, parentesco e relações de

reciprocidade, ou mesmo de amizade. Mas para as cooperativas essa relação tão próxima entre

os freteiros e os produtores de leite tem representado um grande problema. Acontece que os

freteiros historicamente têm se comportado e agido como se as linhas de leite fossem sua

propriedade e como se os produtores para os quais eles prestam serviços de coleta fossem

seus clientes, sobre os quais eles possuem direitos de exclusividade em relação à captação do

seu produto. Ademais, o problema com os freteiros também está intimamente relacionado à

questão da qualidade do leite, pois o controle da qualidade não diz respeito apenas aos

cuidados no manejo do gado, na realização da ordenha ou no processo de resfriamento, mas

também ao processo de transporte, a higiene do caminhão, do tanque, dos canos, etc.

Então, a primeira medida tomada para tentar resolver esse problema, foi recorrer à

compra de tanques de armazenagem utilizados para o transporte do leite dos produtores até as

plataformas ou até uma indústria. Contudo, isso não eliminou definitivamente o problema,

porque os caminhões continuaram a ser de propriedade dos freteiros. Então, inicialmente,

buscou-se substituir os velhos freteiros terceirizados, que vinham causando problemas, por

funcionários contratados, normalmente pessoas da própria comunidade, com conhecimento a

respeito dos valores cooperativistas e com um histórico de boa relação com as CLAF’s locais.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 52

Mas, atualmente, o SISCLAF conseguiu aprovar mais uma emenda parlamentar, no valor de

R$ 945.000, para a aquisição de sete novos caminhões, além dos quatro que algumas

singulares já possuíam. Aqui temos mais um exemplo claro de como os “contramovimentos”

se dão no ambiente institucional, no campo das políticas públicas e da representação social. A

segunda medida tem sido buscar reformular as “linhas de leite” e implantar o que eles têm

chamado de um sistema de “rotas de leite”, buscando racionalizar a coleta e o transporte e

reduzir o seu custo (em torno de 10% a 15% do preço do litro). Com essas medidas, além de

buscar reduzir os problemas com os freteiros, o SISCLAF pretende agregar um valor maior ao

preço do leite repassado aos produtores cooperados (em torno de 3 centavos a mais por litro).

O segundo tipo de incentivo não econômico adotado diz respeito à retomada da

prestação de serviços de ATER, que foi enfraquecida com o relativo abandono da estratégia

de organização da base. De acordo com Gnoatto, Vargas e Nunes (2009), quando indagados

sobre quais as mudanças ou melhorias que a cooperativa deveria adotar a fim de atender as

expectativas de seus associados, a assistência técnica apareceu em primeiro lugar: 55% dos

agricultores entrevistados. O trabalho de acompanhamento técnico e extensão rural na

verdade vai além do que simplesmente repassar informações técnicas sobre manejo de

pastagens e de rebanho ou outras quaisquer. A ida frequente de profissionais ao campo, nas

comunidades e nas propriedades, cria a oportunidade para que os dirigentes também se

aproximem da base social e realizem um trabalho para reforçar os valores e promover a

credibilidade da instituição. Quando se alia uma atividade técnica com uma atividade de

cunho político e organizativo, torna-se mais fácil gerar um maior envolvimento e maior

compreensão dos cooperados acerca do sentido e do funcionamento das Cooperativas

Singulares e do próprio Sistema. Neste sentido, está em fase de negociação entre o SISCLAF

e o CENATER-PR o desenvolvimento de um projeto de ATER com uma proposta inovadora,

inicialmente para os produtores associados às CLAF’s de dez municípios, mas que

posteriormente deve avançar para os demais, com uma metodologia promissora, que pretende

trabalhar desde questões de curto prazo até questões mais de longo prazo.

Por fim, a terceira fase representa um período de incertezas na definição da uma nova

estratégia, desde que o SISCLAF passou por uma truncada entrada como produtor na

competição agroindustrial. O relaxamento da estratégia de organização dos grupos de base

jogou contra as próprias cooperativas vinculadas ao SISCLAF e, associado à pressão

concorrencial exercida pelas empresas, logo os limites da estratégia orientada pelo mercado

também começaram a ficar evidentes. Esses limites foram escancarados e a situação do

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 53

SISCLAF assumiu um caráter mais dramático, quando, a partir de fevereiro de 2010, o

Sistema foi surpreendido por um “calote” de mais de 1 milhão de reais da empresa LETÍCIA.

Os diretores do SISCLAF trataram de manter a situação em sigilo e trabalharam

durante quase dois meses com a expectativa de conseguir receber o dinheiro. Mas como isso

não ocorreu, a expectativa passou ser a de conseguir adquirir algum bem da empresa para

saldar a dívida. Verificou-se junto ao registro de imóveis que praticamente todos os bens da

empresa encontravam-se sob penhor, hipotecas ou ações trabalhistas e não existia mais

nenhum bem no nome do seu proprietário. A única alternativa para conseguir receber foi

adquirir uma unidade industrial localizada no município de São João, único bem da empresa

que ainda encontrava-se em situação regular, por um valor pouco maior do que o da dívida.

Tão grave quanto a situação do SISCLAF diante da empresa, enfrentando o risco de

perder um valor tão expressivo, foi o risco de os próprios agricultores familiares cooperados

ficarem sem receber o dinheiro referente ao leite que entregaram durante mais de um mês para

as CLAF’s de seus respectivos municípios. Além das dificuldades econômicas que viriam a

enfrentar, isso possivelmente ocasionaria uma crise de credibilidade entre os cooperados, com

consequências negativas sobre a reputação de todo o cooperativismo da agricultura familiar e

economia solidária. Então, como as cooperativas do SISCLAF não possuem uma política

organizada de capitalização, através da constituição de um fundo de reservas para ocasiões de

emergência ou mesmo para investimentos contingentes, antes mesmo de providenciar o

recebimento da dívida, a preocupação da Central foi sobre como pagar os seus cooperados. A

primeira alternativa foi recorrer ao Sistema CRESOL-BASER em busca de apoio, que acabou

emprestando os recursos necessários sob uma série de condições.

Assim que o SISCLAF percebeu que o problema havia ganhado uma dimensão maior

do que era capaz de suportar e que não conseguiria resolvê-lo sozinho, o Sistema obrigou-se a

abrir o sigilo acerca da situação, primeiro para a própria CRESOL e depois para todos os

Sistemas de Cooperativas da Agricultura Familiar ligados a UNICAFES-PR e ao movimento

sindical, para que fosse possível buscar uma solução coletiva e realizar uma mobilização

social para mostrar à sociedade que não eram as cooperativas da CLAF que não estavam

pagando os seus cooperados, mas sim o Laticínio LETÍCIA que não estava pagando as

cooperativas dos agricultores. Então, organizada pela UNICAFES, deflagrou-se uma grande

mobilização com forte apelo popular em meio à sociedade local contra a atitude desonesta e

predatória da empresa para com os agricultores e suas cooperativas.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 54

Podemos afirmar que todo esse processo representa um verdadeiro marco na história

do cooperativismo da agricultura familiar no Sudoeste Paranaense. O evento abalou o estado

de confiança que os agricultores depositavam nas cooperativas, colocando-as sob o risco de

perder a sua credibilidade, de terem os seus valores contestados perante a sociedade e os

próprios agricultores cooperados. Por um lado, isso reascendeu uma certa disposição

emancipatória entre os agricultores para lutarem por autonomia, pois eles perceberam a

ameaça que um abalo na confiança e na estrutura do SISCLAF representaria para a

reprodução da sua própria condição. Por outro lado, demonstrou a importância da UNICAFES

na representação política dos sistemas de cooperativas e, mais do que isso, a premência de

uma maior e mais orgânica integração entre os diversos ramos cooperativos.

Enfim, todos esses eventos demonstram que o SISCLAF, enquanto um dispositivo de

ação coletiva, é capaz de agregar os atores sociais em torno de uma mesma identidade e

evidenciam as suas “habilidades sociais”, para usar o conceito de Fligstein (2001), em

conseguir a cooperação dos diversos movimentos sociais rurais e organizações da agricultura

familiar em prol dos valores enraizados e socialmente partilhados pelo grupo e aceitos pela

sociedade. Contudo, isso foi ocorrer apenas em uma situação de grave ameaça à sua condição

de existência. Não tratou-se de uma ação deliberadamente planejada na execução de uma

estratégia territorial em torno de um projeto claramente definido de desenvolvimento rural,

assentado no fortalecimento da atividade leiteira da agricultura familiar, através do seu

principal dispositivo coletivo de ação econômica, mas de uma reação imediata. Mas, por outro

lado, isso não descaracteriza os vínculos de reciprocidade existentes entre os atores e as

organizações da agricultura familiar e o elemento de embeddedness presente no significado de

suas ações, formado por meio da interpretação daquele determinado contexto hostil.

Como resultado, quando realizamos nosso trabalho de campo, o SISCLAF já havia

assumido a indústria, realizado uma grande manutenção, contratado recursos humanos e, há

dois meses, começado a produzir em escala industrial um produto de boa qualidade. Houve

diversas mudanças nas rotinas desde que o SISCLAF assumiu a indústria, como na

tecnologia, nos processos operacionais internos e na organização do trabalho e da produção.

Segundo a gerente geral, as principais rotinas modificadas foram na política de gestão dos

recursos humanos e no relacionamento com a equipe de trabalhadores. A remuneração dos

cooperados é feita sobre o valor do leite entregue, sendo que a venda do produto transformado

já vem conseguindo agregar valor. Inicialmente este valor vinha sendo destinado, sobretudo,

para pagar as prestações da própria indústria e já estava gerando sobras (nome que as

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 55

cooperativas dão ao lucro). A maior parte do volume de vendas da indústria é destinada para

fora do Paraná, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo: pouca mercadoria é comercializada

dentro do estado. Por enquanto, a produção continua a ser vendida com a marca LETÍCIA

(sob o pagamento de royalties), para os mesmos compradores que compravam da empresa

antes de o SISCLAF assumir. Em geral, os clientes são grandes supermercados e atacados e

os pagamentos são realizados à vista ou no máximo em 7 dias.

O que toda essa narrativa tem a nos mostrar é que agora os agricultores familiares

produtores de leite associados às cooperativas singulares organizadas em rede através do

SISCLAF, estão expostos a um ambiente altamente mercantilizado e envoltos por toda uma

estrutura comercial e industrial cooperativada que até pouco tempo lhes pareceria

inimaginável. Não que todos eles compreendam ou reconheçam o seu lugar no Sistema e a

sua condição através da institucionalidade que se expressa por meio desse dispositivo coletivo

de ação econômica, mas estão irreversivelmente inseridos na competição intercapitalista.

Como disse um entrevistado, “agora eles entram no mercado não mais como organizadores de

agricultores, mas como industriais. Eles entraram numa briga de titãs. Vão brigar com grandes

empresas que tem e não querem perder sua fatia de mercado.” (ENTREVISTA 14).

Conclusões

O SISCLAF certamente representa um dispositivo coletivo de ação econômica de

importância fundamental para a construção e a operacionalização de um projeto de

desenvolvimento rural que tenha no fortalecimento da atividade leiteira um eixo articulador

dos “contramovimentos” da agricultura familiar, desde que seja capaz de firmar uma postura

contra-hegemônica enraizada em relação aos assaltos do “moinho satânico” no Sudoeste do

Paraná. Entretanto, o fator decisivo para que isso possa emergir é a construção de um projeto

de desenvolvimento e a institucionalização de uma prática diferente e inovadora. O

desenvolvimento rural no Sudoeste do Paraná, como em qualquer território, é um processo

instituído de mudança social, que precisa ser projetado e constantemente avaliado, refletido e

renovado pelos atores sociais ativos. Em nossa opinião, isso deve passar necessariamente por

uma retomada urgente do trabalho com a base, que veio sendo gradualmente abandonado.

Aceitamos e corroboramos a crítica delineada por Magalhães (2007) às teorias

convencionais e também concordamos com a sua opinião sobre o resultado das ações das

cooperativas de leite da agricultura familiar. Obviamente, isso não significa aceitar que os

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 56

processos de caráter macroestruturais não representam uma importante dimensão da realidade,

mas sim que as teorias convencionais não são as mais adequadas para representar essa

realidade e que estes processos sozinhos não explicam toda a complexidade existente em

alguns dos principais territórios produtores de leite do país. Por exemplo, no caso do Sudoeste

Paranaense, a atuação (ainda que pouco articulada) de uma diversidade de atores sociais e

instituições locais vêm alterando a correlação de forças entre os grupos e classes sociais que

atuam no território e, consequentemente, atribuindo características diferenciadas à estrutura e

à dinâmica do mercado de leite, contribuindo para a construção coletiva de estratégias de

desenvolvimento rural assentadas na organização social dos agricultores em torno da

atividade leiteira. Contudo, há um sério risco de que o aprofundamento e a sustentabilidade

desses processos estejam sendo comprometidos, talvez já no médio prazo. Há um dilema, que

nasce da necessidade de ao mesmo tempo atender os interesses imediatos de uma base social

frágil e heterogênea e de viabilizar a estrutura e a competitividade do Sistema como empresa.

Também há outro dilema, ligado ao tensionamento dos valores partilhados pelos atores

pertencentes ao SISCLAF e ao novo cooperativismo em geral e por aqueles ligados aos outros

movimentos e organizações da agricultura familiar. O depoimento abaixo expressa a habitual

opinião dos atores sociais sobre o assunto, segundo a qual o SISCLAF estaria correndo o risco

de deformar seus valores solidários, de democratização econômica e inclusão social, em

detrimento de uma estratégia industrial e comercial guiada por valores puramente mercantis e

empresariais, o que poderia vir a comprometer o seu próprio sentido enquanto instituição.

E o grande desafio do SISCLAF hoje é fazer com que os agricultores lá da base

compreendam que a indústria é mais um processo econômico de consolidação e

agregação de valor, entre outros. Se o Sistema não trabalhar essa transformação

dos seus valores e essa reconversão da base, que no inicio era forte e depois foi

decaindo, num prazo de 10 anos, no máximo, a tendência é ou nos transformarmos

em cooperativas tradicionais ou falirmos. Sendo curto e grosso. Esse processo é um

grande desafio que tem que ser enfrentado. Mas é um desafio que não é totalmente

consciente dentro da própria direção. (ENTREVISTA 19).

Este novo cooperativismo constituiu-se através de uma identidade enraizada, a partir

de episódios históricos compartilhados e de toda uma trajetória comum, pois a sua base social,

formada essencialmente por agricultores familiares, representa um valor que o distingue do

cooperativismo tradicional, constituído de forma empresarial, historicamente hierarquizada e

autoritária, ainda sob a tutela do regime militar. As suas características – cooperativas locais e

descentralizadas articuladas em rede por uma central – têm contribuído para tornar os atores

sociais integrantes desse cooperativismo mais dispostos a interagir de maneira diferente do

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 57

que rotineiramente é praticado dentro dos movimentos e organizações sociais rurais forjados

em tempos idos, favorecendo, inclusive, a formação de um contexto institucional muito mais

propício à inovação. As interpretações que os atores inseridos neste contexto produzem sobre

a sua realidade tendem a ser menos apegadas às visões construídas em situações passadas, que

já não condizem mais com a realidade do presente.

Com o fim do socialismo real e da ditadura militar e com todas as mudanças

redundantes da redemocratização, da globalização econômica e das políticas neoliberais,

adotadas desde os anos 1990, impôs-se no horizonte político a necessidade de os movimentos

sociais rurais e as organizações dos agricultores deixarem relativamente de lado certas

posturas ideológicas “esquerdistas” e atitudes simplesmente contestatórias e reivindicativas –

que no passado conseguiam unificar atores com valores e concepções muito diversas – e

assumirem uma postura mais pragmática, propositiva e proativa. As novas circunstâncias

modelam as instituições mediante um processo seletivo e coercitivo, atuando na habitual

opinião dos atores inseridos em determinadas organizações sobre os mercados e a ação

econômica, tornando-os mais dispostos a alterar pontos de vista adquiridos e a substituir

atitudes mentais e práticas herdadas do passado. O que é um “sinal dos tempos”, pois como

bem notou Veblen (1988, p. 88), “[…] as instituições devem mudar com a mudança das

circunstâncias, uma vez que é da natureza do seu método habitual corresponder aos estímulos

que essas circunstâncias variáveis lhes proporcionam.”

Claro que, com isso, há toda uma grande crise política e ideológica instalada, inclusive

por causa de uma maior necessidade de profissionalismo e eficiência econômica na gestão das

organizações, o que gera tensões e dilemas enormes entre os atores integrantes das

cooperativas e aqueles que integram instituições ainda apegadas a visões do passado. Este

ímpeto profissionalizante também acaba contribuindo para relegar a questão ideológica a um

segundo plano, ainda que dentro das cooperativas haja um trabalho eminentemente político,

extremamente entranhado e aliado à organização econômica, que impõe-se e legitima-se

justamente através dela. A própria forma organizativa das cooperativas, enquanto dispositivos

coletivos de ação econômica, representa o rompimento de velhos tabus e a formação de novos

hábitos de pensamento, que parecem adaptar-se melhor às novas circunstâncias do hostil

ambiente institucional cambiante, seletivo e competitivo instaurado pelo “projeto neoliberal”.

Neste sentido, a organização econômica da agricultura familiar, através de sistemas de

cooperativas, sedimentou certas bases materiais, simbólicas e institucionais que atribuem aos

agricultores e aos outros atores aliados dessa categoria social, uma maior capacidade de

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 58

intervir diretamente na dinâmica do território e nos rumos do seu desenvolvimento,

especialmente no espaço rural. Na medida em que os agricultores familiares organizados

através do cooperativismo começaram a construir poder econômico, eles também passaram a

adquirir legitimidade social, status e uma maior força política no território. Entretanto, isso

significa que o desafio do cooperativismo da agricultura familiar, muito mais do que

simplesmente adaptar-se ao “ambiente hostil” (PLOEG, 2008) instaurado, é interpretar o seu

lugar na estrutura social e a utilizar a sua capacidade de contrabalançar a correlação de forças

do território, a fim de conseguir abrir janelas de oportunidade para processos de mudança

social, desenvolvendo conhecimentos, aptidões, competências, habilidades e estratégias

coletivamente articuladas entre os diversos atores e instituições envolvidos, permitindo-lhes

empreender ações que avancem de maneira deliberada na construção de processos

caracterizáveis como de desenvolvimento rural no território.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 61

A importância do cooperativismo na inserção de pequenos produtores nos

mercados: o caso da produção de maçã na serra catarinense

Armando Fornazier

Paulo Dabdab Waquil

Introdução

A produção agrícola cada vez mais tem que atender às exigências dos mercados em

busca de melhores resultados na comercialização. Dessa forma, produtores e agroindústrias

necessitam mudar padrões de produção que em outros períodos eram toleráveis, mas, passam

a não ser mais aceitos.

Se antes os agricultores tinham apenas a preocupação de produzir e colocar o seu

produto no mercado, torna-se mais frequente o mercado demandar os produtos com os vários

padrões, tanto de características mensuráveis como a cor, tamanho, bem como foi produzido,

se respeita convenções sociais, normas ambientais, entre outras.

Porém, seguir uma série de padrões possui custos, desde mudanças nas técnicas de

produção, até a contratação de auditorias por terceiros. Conforme as escalas de produção,

alguns custos como os de auditoria podem tornar o uso desse procedimento inviável, o que

requer uma maior organização da produção, por exemplo, em estruturas organizacionais como

associações e cooperativas.

A produção de maçã é relatada como uma das cadeias produtivas da fruticultura mais

organizada, grandes empresas coordenam a produção para o mercado nacional e para a

exportação com excelentes padrões de qualidade e aceitação internacional, porém, é nessa

cadeia também que pequenos produtores conseguem obter padrões de processo de produção e

produtos semelhantes às grandes empresas. Um dos fatores para alcançarem esse modelo de

negócio é que existe uma maior organização colaborativa, especialmente com o auxílio de

associações de produtores e cooperativas que permitem a divulgação e acompanhamento das

mudanças requeridas pelos exigentes mercados.

Uma especificidade da cultura da maçã é que pelas exigências climáticas de frio, sua

produção concentra-se em algumas regiões bem delimitadas, o que pode permitir um maior

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 62

efeito de aglomeração entre os produtores, de forma a permitir um melhor aprendizado pela

maior relação com vizinhos.

A produção de maçã concentra-se em três polos, sendo um no Estado do Rio Grande

do Sul, na região de Vacaria, e outros dois no estado de Santa Catarina, nas regiões de

Fraiburgo e São Joaquim. A região de São Joaquim, SC, é caracterizada pela produção em

pequenas propriedades e produtores cooperados que adotam padrões de produção compatíveis

com os mercados mais exigentes. Ou seja, mesmo pequenos produtores familiares conseguem

produzir de forma semelhante às grandes empresas, com um acompanhamento técnico

difundido principalmente pelas cooperativas e também com auditorias externas que atestam

os padrões de produção e produtos.

Esse trabalho analisa a produção de maçã certificada na região de São Joaquim, SC, e

busca, especialmente, verificar qual a importância do sistema cooperativista para atender às

exigências dos mercados.

A organização social de uma região pode proporcionar muitas oportunidades aos

produtores como, por exemplo, melhores níveis de renda aos produtores e melhorias na

geração de empregos e no desenvolvimento regional. Dessa forma, é importante conhecer os

exemplos de produção de alguns locais, pois alguns arranjos organizacionais podem servir de

exemplo para serem adotados em outras regiões, desde que respeitando características

específicas de determinadas regiões.

A importância dos processos de certificação e rastreabilidade

Segurança do alimento ou alimento seguro (food safety) é uma das maiores

preocupações por parte de muitos países importadores de alimentos, por exemplo, na União

Europeia (UE), devido a muitos acontecimentos envolvendo a presença de contaminações nos

alimentos. De acordo com o Livro Branco, que é um documento da UE, a segurança do

alimento deve se basear em uma abordagem global e integrada, ou seja, ao longo de toda a

cadeia alimentar (da exploração agrícola até a mesa), em todos os setores alimentares, entre os

Estados-Membros, nas fronteiras externas da UE e dentro dessa, em instâncias de decisões

internacionais e comunitárias e em todas as etapas do ciclo de elaboração de políticas públicas

(COMUNIDADE EUROPEIA - UE, 2000).

Além das exigências por parte de países ou blocos econômicos, os compradores, como

as cadeias de supermercados, exigem os mecanismos de certificação e rastreabilidade. Dessa

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 63

forma, os supermercados têm incentivado e definido normas privadas de segurança dos

alimentos, pelo menos para produtos “arriscados” como frutas, legumes, carnes e produtos

lácteos no que se refere aos resíduos de pesticidas e contaminação bacteriana que causam

problemas de saúde aos seus clientes.

Os processos de certificação e rastreabilidade, além de serem exigências dos

mercados, podem facilitar a coordenação das cadeias produtivas, permitindo um melhor

monitoramento das atividades e compartilhamento de responsabilidades com os diversos

atores sociais. Farina (2003) aponta que a adoção de padrões de referência no mercado final

facilita a coordenação entre o consumidor e o ofertante, pois reduz os custos de aquisição de

informação e limita situações sujeitas ao risco moral (moral hazard), criadas pela falta de

informação dos compradores e pela possibilidade que os vendedores dissimulem problemas

de qualidade. Assim, a adoção de padrões por uma coletividade permite que a produção seja

realizada em pequenas explorações e as eficiências decorrentes da comercialização em grande

escala podem ser obtidas pela ação cooperativada, ou seja, mesmo a produção sendo realizada

por diversos agentes, no mercado global os produtos são semelhantes.

Porém, é preciso que os produtores percebam os incentivos em adotar, ou não,

determinada certificação, para que essa não seja apenas um mecanismo de gerar mais custos

no processo produtivo, não sendo reconhecida e valorizada pelos mercados, ou seja, é preciso

que seu uso alcance algum diferencial em relação a quem não usa. Nassar (2003) descreve

que o sucesso da certificação está associado:

a) à eficiência e aos custos de seu monitoramento e

b) ao poder de exclusão exercido pelo aparato institucional. O monitoramento é

o sistema de controles criado para garantir e verificar se os agentes

certificados seguem as regras e procedimentos. Ao aparato institucional, que

estabelece as regras da certificação, permite que se exerça o poder de

exclusão, impedindo a entrada de “caronas” no processo que poderiam

usufruir dos benefícios sem arcar com os seus custos.

No Brasil, há adoção de vários sistemas de certificação e rastreabilidade na

agropecuária, mas um dos primeiros a ser adotado, segundo Sanhueza (2005), foi a Produção

Integrada de Frutas (PIF) que se inicia com a Produção Integrada de Maçã (PIM). A PIF é um

Programa de avaliação da conformidade do sistema de produção com a participação do

Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (INMETRO) em

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 64

conjunto com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), Empresa

Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), outras empresas de Pesquisa

Agropecuária Estaduais, Universidades, Certificadoras Privadas e o Setor Produtivo. O

Programa tem o objetivo de produzir frutas de qualidade, priorizando a sustentabilidade, a

aplicação de recursos naturais, a substituição dos insumos poluentes, o monitoramento dos

procedimentos e a rastreabilidade de todo o processo produtivo, tornando-o economicamente

viável, ambientalmente correto e socialmente justo.

A PIF teve início entre 1998 e 1999, já que o Brasil necessitava de um instrumento

que pudesse orientar e institucionalizar um sistema de produção que atendesse às exigências

dos mercados compradores e fosse factível à realidade brasileira, levando em consideração a

credibilidade e confiabilidade do sistema e dos trabalhos que seriam desenvolvidos no país

(ANDRIGUETO et al., 2008).

Avaliando as exigências dos consumidores europeus quanto à maçã produzida no

estado do Rio Grande do Sul, na visão desses exportadores, Dörr e Marques (2006) relatam

que existe uma preocupação com a segurança do alimento e as certificações têm sido o

instrumento mais usado e exigido pelos consumidores europeus, porém, há também

exigências de outros padrões de qualidade nesses produtos ofertados no mercado externo,

como o tamanho do fruto (calibre), coloração, aspectos ambientais e sociais, entre outros.

A PIF é um dos protocolos de certificação, mas existem outros protocolos específicos

como o EUREPGAP (atual GLOBALGAP), o British Retail Consortium (BRC) e o Tesco

Nature’s Choice (TNC), este último específico da rede de supermercados britânica Tesco®.

Entre os vários protocolos há algumas diferenciações, mas todos eles prezam o controle da

produção do campo à mesa, sendo que isso se dá por mecanismos de rastreabilidade e com

auditorias de uma organização independente da produção, mais conhecida como certificadora

ou Organismo de Avaliação da Conformidade (OAC). Como relatam Jaffee e Henson (2005),

a segurança do alimento e as normas sanitárias agrícolas vieram para ficar e não ocorrerão

mudanças ou aplicação de tratamento diferenciado a quem não cumprir. Assim, os requisitos

de rastreabilidade e adoção de produtos que não agridam a saúde e que não causem problemas

ao setor produtivo como a disseminação de pragas, são condições básicas que não são

barreiras ao comércio, mas, sim, uma necessidade. Porém, outros padrões que estão sendo

adotados, como a preocupação com o meio ambiente e outras normas, caem na dificuldade de

avaliar os riscos causados pelo seu não cumprimento e, nesse caso, adota-se, geralmente, o

princípio da precaução.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 65

Na cultura da maçã, a introdução da PI provocou mudanças importantes nesse setor,

contribuindo para profissionalizar ainda mais a produção. De acordo com Sanhueza (2005) os

principais impactos são:

a) organização da propriedade agrícola: a adoção de um sistema de registros

permanente e unificado de todas as atividades e características das

propriedades contribuíram para a melhor administração dos recursos e para

explicitar a responsabilidade dos técnicos responsáveis pelos pomares;

b) capacitação e exercício da responsabilidade dos técnicos: o treinamento

obrigatório e atualização permanente desses, habilitaram-nos para conduzir

de forma eficaz os pomares. Esses decidem quanto à adequação das práticas

de campo às Normas Técnicas e, dessa forma, serão os responsáveis ante os

auditores no processo de avaliação da conformidade;

c) implementação do controle externo de avaliação da conformidade: o

respaldo oficial do governo brasileiro ao sistema PIF em todo o país, através

de um marco legal, diferencia este sistema dos de muitos países. O sistema

de avaliação da conformidade por uma terceira parte lhe confere maior

confiabilidade;

d) início de uso da rastreabilidade na agricultura: no início da PIM algumas

empresas tinham parte do processo de rastreabilidade estabelecido, mas a

maioria dos produtores não possuía o sistema estabelecido por completo.

Desta forma, a partir de 2001, a rastreabilidade foi estabelecida em todas as

áreas de produção e pós-colheita, constituindo-se o primeiro exemplo de uso

da rastreabilidade em cadeias agrícolas. Na atualidade, os produtores da

PIM apresentam os dados da cadeia completa da geração e manipulação de

maçãs partindo da parcela no campo e terminando na caixa de maçãs;

e) redução do uso de pesticidas de maior risco: nos princípios gerais da PIF se

estabelece que os agrotóxicos devam ser usados somente quando

demonstrada a sua necessidade e na quantidade mínima para a sua eficácia.

Os agrotóxicos que afetam gravemente a sobrevivência dos organismos

benéficos também devem ser substituídos, mesmo que sejam recomendados

para a cultura;

f) organização da cadeia produtiva: a PIM foi iniciada em áreas experimentais

de no mínimo 5 ha, o que fez necessário o seu estabelecimento em áreas de

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 66

grandes empresas e uma delas em uma área de pequeno produtor. Esta

experiência fez com que a adoção do sistema fosse incentivada pelas

cooperativas especializadas na produção de maçãs. A seguir, em regiões

onde os produtores não estavam organizados, iniciou-se a formação de

grupos de PIM com o objetivo de viabilizar a disponibilidade de assistência

técnica e, posteriormente, a comercialização e até exportação da fruta da

PIM obtida pelos grupos. A Associação Brasileira de Produtores de Maçã

(ABPM) e a Associação Gaúcha dos Produtores de Maçã (AGAPOMI)

incentivaram essa experiência;

g) aumento da competitividade e divisa de exportações da maçã: os

importadores de maçã brasileira são de pelo menos 20 países localizados em

quatro continentes, porém, a maior parte é encaminhada para a Europa.

Esses compradores estabelecem como requisitos a rastreabilidade, respeito

às normas de uso racional dos pesticidas, cuidados com a segurança do

alimento, a saúde do trabalhador e o respeito ao ambiente. Todos estes

conceitos fazem parte das normas da PIM, fato que tem facilitado à

exportação desta fruta. Desta forma, a adoção do sistema PIM vem sendo

um fator de preferência para a maçã e, em 2003-2004, a maçã gerou 50% do

total de divisas recebidas pelo Brasil pela exportação de fruta fresca.

A organização da produção via cooperativas

A produção agropecuária muitas vezes se caracteriza por diversos produtores dispersos

em regiões diferentes com uma heterogeneidade de formas de produzir, o que dificulta o

acesso aos mercados, pois não se consegue manter escalas na comercialização de produtos

mais homogêneos.

Os pequenos produtores podem ter dificuldade de inserir-se nos mercados, pois pela

quantidade produzida, podem ter dificuldades de acessar serviços de assistência técnica,

crédito, bem como o pagamento de auditorias para acompanhar os processos de certificação e

rastreabilidade. Kherallah e Kirsten (2002) relatam que algumas estruturas podem auxiliar no

processo de transferência de tecnologias e informações na cadeia produtiva para alcançar um

maior êxito nas mudanças ocorridas nessa, destacando-se dentre essas estruturas, as

cooperativas e associações. Essas estruturas, que são organizações e arranjos institucionais,

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 67

ganharam importância e reemergiram com a liberalização dos mercados agrícolas nos países

em desenvolvimento, para organizar os pequenos produtores, de forma que esses possam

atender a algumas demandas do mercado. Pode-se destacar como parte deste processo a escala

de produção em busca de melhorar as negociações com as grandes redes, os padrões de

produtos e sistemas de produção e diminuir custos de transação, uma vez que produtores

atomizados necessitam de maiores relações e, portanto, mais transações, assim, diminuem-se

os custos de operações na entrada e saída nos mercados.

No Brasil, a prática do cooperativismo está muito ligada à área agrícola desde o início,

há muitas cooperativas que agregam diversos produtores auxiliando as atividades de

produção. Segundo Pinho (1996), a prática cooperativista brasileira inicia-se a partir de 1932,

motivada pelo estímulo do Poder Público ao cooperativismo como um instrumento de

reestruturação das atividades agrícolas, bem como pela promulgação da lei básica do

cooperativismo brasileiro ocorrida naquele mesmo ano, o que passou a definir melhor a

estrutura dessa forma diante de outras formas de associação.

O cooperativismo hoje no Brasil é orientado pela Organização das Cooperativas

Brasileiras (OCB) em nível federal e pelas organizações estaduais, que seguem as

delimitações da OCB. Assim, é um movimento que é regido por leis, sendo que as

organizações que são denominadas por essa razão social necessitam seguir as orientações e

regras de conduta. Segundo Bialoskorski (1997), as cooperativas são sociedades de pessoas,

onde cada cooperado ou cooperativa singular (caso de cooperativas de cooperativas ou

centrais) tem direito a apenas um voto, diferenciando-se das sociedades de capital onde o voto

é proporcional ao capital. Além disso, não visam lucro como uma empresa, mas a partição

entre os cooperados.

O sistema cooperativista brasileiro pode ser uma grande alavanca para a popularização

das boas práticas que resultam em alimentos seguros, levando-se em conta que o sucesso do

processo está condicionado à mudança de comportamento de todos os elos da cadeia

produtiva. Para essas organizações é delegado o dever de promover, fomentar e orientar os

seus associados e, ao mesmo tempo, negociar com os outros elos da cadeia (fornecedores de

insumos, agroindústrias, redes de distribuição), garantindo a justa remuneração aos produtores

pelo processo de qualidade levado a cabo nas propriedades rurais, garantindo que as matérias-

primas sejam processadas de forma a assegurar a continuidade do processo de certificação e

que nos pontos de venda os produtos sejam cuidados da mesma forma (PORTOCARRERO,

2006).

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 68

A organização dos grupos de produtores em sistemas de cooperativas ou associações

possui muitas vantagens. Porém, a adoção desses sistemas varia muito de região para região,

sendo que no sul do Brasil, como no exemplo da cadeia produtiva da maçã, esse sistema está

presente e demonstra ter uma grande importância para o êxito da PIM, mas em muitas regiões

ainda é uma grande dificuldade agregar os produtores nessas formas associativas.

No caso da cultura da maçã, além de cooperativas, há a presença de associações como

a Associação Brasileira de Produtores de Maçã (ABPM) que atua na organização do setor a

nível nacional e associações estaduais, como a Associação Gaúcha dos Produtores de Maçã

(AGAPOMI) e a Associação de Produtores de Maçã e Pera de Santa Catarina (AMAPI), já

que esses dois estados produzem mais de 90% da maçã brasileira (IBGE, 2008).

Metodologia

Para a realização do estudo, inicialmente foi realizada uma pesquisa exploratória com

o objetivo de conhecer o que já se tem de conhecimento acumulado sobre o tema.

Após essa etapa, buscou-se junto ao Centro Nacional de Pesquisa de Uva e Vinho

(CNPUV) da EMBRAPA, em Bento Gonçalves, RS, através da Coordenação da PIM,

informações sobre as cooperativas envolvidas na produção de maçã.

A etapa seguinte foi uma pesquisa descritiva qualitativa e explicativa por meio da

aplicação de questionários estruturados junto às cooperativas produtoras de maçã. O período

de realização dessa etapa foi de julho a agosto de 2009. Também se buscou algumas

informações nos websites das cooperativas e da certificadora que certifica a PIM das

cooperativas. A etapa final consistiu em uma entrevista semiestruturada junto à Coordenação

Técnica dos Sistemas Agropecuários de Produção Integrada (SAPIs) do MAPA.

A pesquisa explicativa tem o objetivo de tornar determinado fenômeno compreensível,

podendo ser usada para explicar por quê determinado fenômeno ocorre. Busca esclarecer a

razão das coisas. Vergara (2000, p. 47) afirma que esse tipo de pesquisa "[…] tem como

principal objetivo tornar algo inteligível, justificar os motivos. Visa, portanto, esclarecer quais

fatores contribuem, de alguma forma, para a ocorrência de determinado fenômeno".

A pesquisa in loco ocorreu na serra catarinense, na localidade de São Joaquim, que se

caracteriza pela produção em áreas menores e produtores cooperados. Para responder às

questões, os indivíduos escolhidos nas cooperativas tinham a função de Engenheiros

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 69

Agrônomos da assistência técnica, já que esses, além do terem conhecimento sobre a

organização (cooperativa), também vivenciam os trabalhos dos produtores.

Resultados e discussões

A produção de maçã na região de São Joaquim, SC, é composta principalmente por

produtores cooperados em duas cooperativas, mas também há presença de algumas outras

empresas na região.

Uma grande diferença da produção de São Joaquim para outros polos produtores como

Fraiburgo, SC, e Vacaria, RS, é que nessas outras regiões a produção se dá principalmente em

grandes extensões de áreas próprias das empresas, algumas com mais de 2.000 hectares. Em

São Joaquim, as duas principais cooperativas que atuam na cadeia produtiva da maçã são a

Sanjo e a Cooperserra.

A Cooperativa Agrícola de São Joaquim11

(Sanjo) foi fundada em 1993 por um

conjunto de 34 fruticultores, a maioria descendente de imigrantes japoneses. A Sanjo possui

76 cooperados que produzem em torno de 33 mil toneladas de maçã e tem uma capacidade de

frigorificação de mais de 28 mil toneladas de frutas. A área média dos cooperados é de 16

hectares. A Sanjo utiliza a certificação da PIM nos pomares dos cooperados e no packing

house ou empacotadora. A adoção da PIM começou em 2003.

A Cooperserra12

é uma cooperativa que se caracteriza por produtores com áreas

menores. A cooperativa regional agropecuária serrana (Cooperserra) foi fundada em 1977.

Sua estrutura de armazenamento é de 13 mil toneladas de maçã e conta com 183 associados

com uma área média de 5 hectares por produtor. A Cooperserra adota a PIM desde 2001.

Além da unidade de São Joaquim, SC, também possui uma unidade de recepção e

armazenagem de maçãs em Urupema, SC. Fazem parte também da estrutura da cooperativa as

lojas de produtos agropecuários onde os sócios realizam as compras de insumos, obtendo

melhores condições de financiamento, entre outras.

A figura 1 descreve como é organizada a cadeia produtiva da maçã abordando as

organizações e instituições presentes. As organizações são compreendidas na figura como o

conjunto de jogadores, como, por exemplo, empresas, cooperativas, etc., enquanto as

instituições são as regras do jogo (NORTH, 1990).

11

Maiores informações sobre e Sanjo em: http://www.sanjo.com.br/. Acesso em: 14 ago. 2011. 12

Maiores informações sobre a Cooperserra em: http://www.cooperserra.com.br/. Acesso em: 14 ago. 2011.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 70

Figura 1 - Ambiente produtivo da Produção Integrada de Maçã (PIM) com o fluxo de produtos

Fonte: Adaptado pelos autores a partir de Zylbersztajn (1995).

A produção agrícola está inserida em um ambiente composto por uma série de regras

formais, normas informais e mecanismos responsáveis pela eficácia, principalmente das

regras formais. As organizações auxiliam o setor produtivo para que as regras sejam

cumpridas. As organizações que participam da PIM podem ser públicas ou privadas. Os

Organismos de Avaliação da Conformidade (OAC) são as denominadas certificadoras que

atuam na certificação da produção agrícola em si e na empacotadora (packing house) que está

localizada nas cooperativas. As certificadoras são credenciadas junto ao INMETRO, ou seja,

possuem a chancela do Poder Público para a realização de suas atribuições.

A figura 2 mostra o selo que é adotado na PIM, destacando a presença do INMETRO

como organização que acredita a OAC (certificadora) para que as regras, principalmente as

formais, sejam cumpridas. Também está presente no selo a marca do MAPA, pois a PIF é um

AMBIENTE INSTITUCIONAL: Regras Formais: Marco Legal, Normas Técnicas Específicas, etc.

Normas Informais: Costumes, Tradições, Hábitos, etc.

Mecanismos responsáveis pela eficácia: Treinamentos, Fiscalização (Vistorias), Punições, etc.

Agricultura Packing

house

Varejo

Co

nsu

mid

or

Fin

al Insumos

Fabricantes:

Agrotóxicos,

Fertilizantes, ...

Revendas (Casas

Agropecuárias,

Autônomos e

Cooperativas).

Área de produção

das Empresas.

Produtores

Integrados às

Empresas.

Produtores

Cooperados.

Estrutura de

seleção,

classificação,

embalagem e

armazenamento

das Empresas ou

Cooperativas.

Atacadistas:

Brasil e Exterior.

* Dispensado em

alguns momentos

(venda direta ao

varejo).

Varejistas no

Brasil e no

Exterior.

(Hiper e

supermercados,

Feirantes, etc.).

Atacado*

AMBIENTE ORGANIZACIONAL: Organizações Públicas e Privadas.

MAPA, EMBRAPA, INMETRO, OAC (Certificadoras), ABPM, cooperativas, empresas, assistência

técnica, serviços financeiros, etc.

OAC OAC

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 71

sistema oficial de rastreabilidade e certificação do governo brasileiro. O número de série e a

safra são os mecanismos que permitem consultar o histórico do produto.

Figura 2 - Selo adotado na Produção Integrada de Maçã (PIM) - Safra 2002/3

Fonte: Brasil (2009).

Cada produtor cooperado tem sua área certificada, o que facilita a adoção dos padrões

requeridos pelos mercados. As cooperativas buscam uma certificadora para todos os

cooperados e conseguem diminuir os custos de certificação por área, pois aumenta o poder de

negociação (na soma total dos cooperados faz-se um contrato com maior valor e menores

transações e custos operacionais), ou seja, ganha-se com economias de escala, nas quais se

diminuem os custos com o aumento da área certificada. O sistema de cooperativas permite

que mesmo produtores de 1,0 ha tenha sua área certificada. Sendo assim, o produto final

comercializado pelas cooperativas, mesmo originado de diversas propriedades, assemelha-se

muito a um produto único, com determinado padrão que dá respaldo à marca. A adoção de

determinado procedimento com o respaldo de órgãos oficiais torna-se uma segurança para

questionamentos futuros, pois, em caso de problemas, há alguém que pode responder por

essas questões. Desta forma, para os produtores que seguem os padrões, há alguém que os

represente e que possa contribuir com as correções e assumir parte das responsabilidades.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 72

Assim, a certificação por parte dos cooperados permite que a cooperativa possa adotar

esse mecanismo para controlar a qualidade da produção, de forma que esse controle se dá por

meio das auditorias por uma organização independente da produção, a certificadora (OAC).

As cooperativas têm como principal função promover ganhos de escala para permitir

que os pequenos produtores cooperados possam direcionar seus produtos para mercados mais

distantes. A importância maior delas, no entanto, é permitir que, com sua estrutura de seleção,

embalagem e frigoríficos, façam o armazenamento do produto por um maior período de

tempo, o que permite a comercialização da fruta o ano todo. A colheita da maçã se concentra

em determinado período do ano, sendo que, nesse período, pela maior oferta, o valor pago

pelo produto é mais baixo do que no período de entressafra. Assim, as cooperativas são

fundamentais para a adoção do sistema da PIM e de outras certificações, permitindo que as

utilize em pequenas propriedades, rompendo com uma ideologia de que certificação e

rastreabilidade apenas são viáveis em grandes propriedades. O importante nesse aspecto é a

organização e o controle do processo produtivo para permitir que os cooperados possam

beneficiar-se dos ganhos de escala que podem diminuir custos de adoção dos sistemas e

facilitar a inserção em novos mercados, devido ao maior volume de produção.

Tanto os técnicos das cooperativas quanto os profissionais do MAPA e da

certificadora destacam que produtores ligados a cooperativas é um fator importante, já que

permite adotar a rastreabilidade e a certificação em pequenas áreas. O agrupamento de

produtores permite ganhos de economia de escala, ou seja, com um maior número de

produtores em uma região que adotam a certificação, diminuem-se os custos operacionais de

deslocamento, pagamentos de profissional e outros serviços por parte da certificadora. Com

uma maior concentração de produtores em uma região, os custos por produtor ou

especialmente por área tornam-se mais baixos, o que deixa mais acessível o uso da

certificação. Nas cooperativas, esse maior número de produtores, além da diminuição dos

custos operacionais, também permite um maior poder de negociação entre as partes, pois se

faz um contrato direto com a cooperativa, o que diminui as transações e permite um contrato

de maior valor.

O sistema cooperativo também é visto como vantajoso para a inserção em novos

mercados, pois, além das contribuições de economia de escala, também há possibilidade de

uma marca única ou o marketing de um produto com determinadas características, o que

permite uma maior difusão desse produto e da marca da organização. Na PI e nos processos

de rastreabilidade como um todo, a visão de cadeia produtiva é muito importante, pois as

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 73

características iniciais vão sendo incorporadas com outras ao longo dessa. Assim, há a

necessidade que estruturas intermediárias entre a produção e o consumidor, como as de

classificação e embalagem (packing houses) também sejam aderidas e certificadas ao sistema,

pois isso dificulta que agentes intermediários se aproveitem em fraudar o sistema. As

cooperativas constituem mecanismos importantes, já que fornecem essa estrutura

intermediária de packing houses que, além das tarefas de limpeza, classificação e embalagem,

é onde se inserem normalmente as marcas e códigos que o consumidor final terá à disposição

(Figura 2) para consultar como foi produzido esse produto e as etapas que percorreu desde o

campo.

O uso da rastreabilidade e certificação como um mecanismo de gestão é relatado pela

certificadora como o principal incentivo atual de as cooperativas ainda estarem adotando a

PIM, já que muitas outras empresas deixaram de certificar a PIM e passaram a adotar outras

certificações, de acordo com as exigências dos seus compradores. Além disso, a diluição de

custos pelos vários cooperados permite que o valor por tonelada também se reduza. O

incentivo a essas formas cooperativas ou associativas é visto como de grande utilidade para a

difusão desses mecanismos para os pequenos produtores.

A produção de maçã das cooperativas Sanjo e Cooperserra é destinada em sua maioria

para o mercado interno, especialmente para distribuidores da região sudeste do Brasil. Mas

toda a produção segue as normas da PIF, pois segundo os técnicos, não se separa uma forma

de produzir de um mercado para outro. Mas os maiores requisitos de qualidade se dão pelo

mercado externo. Porém, no mercado nacional também surge uma maior preocupação e

controle quanto a esse aspecto, fazendo com que o setor produtivo promova mudanças.

Órgãos como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) coletam amostras de

produtos no mercado nacional para verificar a conformidade e se não causa danos à saúde dos

consumidores. O MAPA também atua através do Programa Nacional de Monitoramento e

Controle de Resíduos Químicos e Biológicos em Produtos Vegetais (PNCRV) para que o

setor produtivo apresente um produto que ofereça menos riscos aos consumidores. Assim, a

possibilidade de exportação contribui muito para a melhoria da qualidade no mercado interno.

Além disso, muitas exigências da PIM estão presentes em outros protocolos de

certificação, assim, se a cooperativa observar boas oportunidades em comercializar para

determinado mercado, por exemplo, para uma rede de supermercados específica, já tem muito

dos requisitos de outros protocolos.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 74

Mesmo no sistema cooperativo, a adoção da certificação e rastreabilidade aumenta os

custos (valor desembolsável), uma estratégia adotada pelos agentes é fazer de seu uso um

instrumento de apoio para diminuir os custos totais de produção. Nesse sentido,

principalmente os técnicos das cooperativas relatam que a diminuição do uso dos insumos é

um mecanismo de grande importância para incentivar o uso da rastreabilidade, pois o

conjunto de informações geradas pode ser usado para gerenciar a produção. No entanto,

muitos produtores, principalmente os com áreas menores, pouco utilizam esses dados na

gestão da atividade. Os técnicos das cooperativas apontam como um dos grandes entraves do

uso das informações para o gerenciamento o baixo grau de escolaridade dos produtores e

alguns fatores culturais como o maior tempo na atividade. Isso implica, dentre outros

aspectos, na dificuldade de mudança e na ideia de que se começar a calcular tudo verá que

está no prejuízo e se desestimulará em atuar nessa atividade, ou seja, da forma que vem sendo

conduzida nos vários anos e obtendo um retorno desejado, os produtores não veem tantos

incentivos para adotar os procedimentos de gerenciamento da atividade.

A produção orientada via cooperativas também permite uma maior interação com

outras organizações, como as universidades e empresas produtoras de insumos. A interação

dos pesquisadores com as cooperativas e também com algumas empresas foi considerada

como um ponto positivo de estímulo de adoção do sistema. A implantação de experimentos

(áreas demonstrativas) nas empresas e propriedades dos cooperados contribuiu para que os

padrões fossem construídos dentro de um nível mais prático, para que sua adoção posterior

fosse mais próxima da realidade do setor produtivo.

Mesmo a PI sendo voluntária, quando o produtor se propõe a certificá-la, há

necessidade de seguir normas formais, dentre essas a obrigatoriedade de treinamentos aos

profissionais envolvidos na produção. As cooperativas possuem equipes técnicas responsáveis

pela assistência técnica e oferecimento de treinamentos aos seus cooperados (produtores),

uma das exigências da PIM, já que seria difícil cada produtor ter que contratar um responsável

técnico. Assim como relata a coordenação inicial da PIM, esse sistema incentivou a

capacitação e o exercício da responsabilidade dos técnicos, pois o treinamento obrigatório e a

atualização permanente desses os habilitaram para conduzir de forma eficaz os pomares. No

caso dos pequenos produtores, os técnicos das cooperativas são também responsáveis por

acompanhamento das áreas dos cooperados, auxiliando para que os mesmos possam seguir os

padrões exigidos pelos protocolos de certificação adotados.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 75

Tanto a coordenação atual quanto a anterior destacam que o conhecimento acumulado

na cultura da maçã e a presença de organizações, como as cooperativas e representantes dos

produtores, contribuem para que o sistema obtenha êxito em ser adotado e, mesmo não sendo

adotado formalmente por muitos produtores, foi a base de outros sistemas privados de

rastreabilidade e certificação. No entanto, em cadeias produtivas com menor organização não

significa que dê certo. Foi relatado como de grande importância que o processo seja

gradativo, assim pode-se não iniciar o processo diretamente com a PI, mas com outros

sistemas, como as Boas Práticas Agrícolas (BPA) e assim, com o conhecimento acumulado,

vão ocorrendo incentivo, facilitando-se a adoção de outros sistemas.

Considerações Finais

O sistema cooperativista na produção de maçã auxiliou para que mesmo os pequenos

produtores pudessem adotar os mecanismos de certificação e rastreabilidade. A busca por

ganhos de escala e redução de custos operacionais são de grande importância para se adotar as

certificações e a rastreabilidade.

As novas exigências dos mercados podem promover ganhos aos consumidores com a

produção de um alimento mais seguro, mas também pode dificultar que alguns produtores

tenham condições de comercializar em muitos mercados. Dessa forma, a produção cooperada

permite que mesmo pequenos produtores possam adotar os padrões de produção requeridos

pelos mercados e, principalmente, com uma orientação técnica que é oferecida por parte dos

profissionais das cooperativas, já que o Estado em muitas situações acompanha pouco os

produtores na assistência técnica e extensão rural.

Na cadeia produtiva da maçã, mostrou-se que a organização foi essencial para inserir

os pequenos produtores nos mercados, mas é preciso também levar em consideração

características da atividade como a concentração em algumas áreas.

Para as cooperativas, as certificações facilitam o controle da produção na medida em

que os produtores têm que seguir determinados padrões e são fiscalizados por uma

organização externa que é a certificadora. Outros benefícios é a adoção dos mecanismos de

certificação e rastreabilidade, o que permitiu a diminuição no uso de alguns insumos, ainda

que espera-se que os dados gerados possam ser mais usados como mecanismo de gestão da

atividade.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 76

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 78

“O pessoal aqui não se interessa por este tipo de coisa, só na integração em

suínos e aves”: construção histórica da Feira Livre dos Produtores rurais e

de agroindústrias familiares em Teutônia-RS (1985-2011)

Juliano Luís Palm

Introdução

No decorrer da década de 1990, percebe-se o aprofundamento das críticas quanto aos

limites do processo de modernização na agricultura, aprofundado na segunda metade do

século XX, com a disseminação da chamada Revolução Verde13

aos países de Terceiro

Mundo14

. Os limites do processo produtivo agrícola pautado em combustíveis fósseis, seus

efeitos socioambientais negativos, como também seus limites em garantir a segurança

alimentar do planeta (HEINBERG, 2010; GALLAR; CALLE COLLADO, 2010; BUTTEL,

1995; GUEVARA, 2006). Com isto, ganham maior visibilidade discussões acerca de

organizações produtivas, formas de escoamento da produção agrícola e suas possibilidades de

atendimento da demanda (BADGLEY et al., 2006), alternativas para a realidade colocada até

então.

Nas regiões com predominância de agricultores familiares, além de salientar-se os

aspectos excludentes de sua integração a grandes agroindústrias, passou-se a dar maior

atenção a outras formas de organização produtiva e de escoamento da produção. Questões que

mantêm-se em pauta ao longo da década de 2000, em que a ênfase sobre os problemas

ambientais e de segurança alimentar também vão ganhando maior espaço (MALUF, 2004).

Neste debate, autores salientam que duas seriam as principais tendências de articulação

econômico-produtiva na agricultura familiar.

Articuladas as perspectivas de desenvolvimento rural estruturadas no processo de

modernização da agricultura, autores destacam a tendência da integração de agricultores

13

Nos termos propostos por Goodman, Sorj e Wilkinson (1990), a Revolução Verde representou um dos

principais esforços para internalizar os processos de apropriacionismo e substitucionismo, ou seja, transformar

as atividades rurais em industriais, reduzindo os limites impostos pela natureza à reprodução do capital. Para

estes autores, com a Revolução Verde, progressivamente, as indústrias a jusante e a montante da agricultura

estariam formatando as estruturas dos sistemas agroalimentares, apropriando e substituindo fases da produção

de alimentos antes relegados à agricultura. Juntamente a este processo, Godmann e Redclift (1991), destacam o

aprofundamento da homogeneização dos padrões de consumo alimentar. 14

Sobretudo para países da Ásia e da América Latina.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 79

familiares a empresas agroindustriais, vinculadas aos mercados de alimentos nacionais e

internacionais, com o processo de padronização dos hábitos alimentares em nível global.

Nesta tendência, autores referenciais na temática, salientam que este sistema tem se tornado:

Cada vez mais excludente, com as exigências de maiores escalas de produção, maior

capacidade financeira por parte dos integrados e maior especialização nas suas

atividades agrícolas. Assim, a integração agroindustrial não se coloca mais como

opção realista a ser almejada pela grande maioria dos produtores familiares

(WILKINSON, 2008, p. 80).

Outra tendência, vinculada à dinamização das criticas ao processo de modernização

agrícola, seria a diversificação produtiva visando abastecer a demanda, principalmente, de

mercados locais ou regionais, com produtos de atributos diferenciados (coloniais, orgânicos,

artesanais). Neste sentido, autores destacam a possibilidade de relações complementares entre

a atuação em circuitos locais e regionais e a integração a empresas agroindustriais. Entretanto,

a manutenção destas relações complementares e o perfil diversificado das unidades familiares

rurais, com seus múltiplos vínculos mercantis, tenderia a se ver comprometida pelas pressões

competitivas na direção da elevação da escala de produção e, consequentemente, de um maior

grau de especialização produtiva via integração. Nesse movimento, sob os rótulos da

capitalização ou da modernização, teria ocorrido o desaparecimento de grande contingente de

pequenos estabelecimentos rurais que não dispunham dos recursos necessários para se

“acompanhar essa corrida” ou que simplesmente se tornaram supérfluos em face da elevação

da escala produtiva das demais unidades (MALUF, 2004).

Para que se dinamizem perspectivas de desenvolvimento rural mais equitativas e

menos excludentes, e assim sustentável em seus âmbitos social, econômico, cultural,

ambiental e político institucional, em espaços de predominância de agricultores familiares,

estes autores destacam que seria de crucial importância estimular estratégias de

processamento de alimentos em unidades produtivas familiares de pequeno e médio porte de

tipo artesanal ou em agroindústrias de pequena e média escala. A vantagem mais evidente

para os agricultores familiares, nestas perspectivas de desenvolvimento, é a apropriação, pelas

famílias rurais, de maior parcela do valor do produto final através de uma produção

diversificada. Como forma de dinamização destas iniciativas, autores destacam a importância

de estruturação/consolidação dos mercados locais. Nos circuitos curtos de mercado, como

lembra Wilkinson (2002), vizinhança, conhecimentos pessoais, transações repetidas por

mesmos atores sociais, consolidam e fortalecem as relações mercantis, frente a pressões

‘externas’, sejam elas mercadológicas ou reguladoras. Para a comunidade local em geral,

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 80

autores destacam a vantagem em ampliar-se a oferta de alimentos de qualidade de um modo

que favoreça a expressão da diversidade de hábitos de consumo no país, aspectos essenciais à

segurança alimentar15

.

Para que se pense e formule ações que visem a dinamização de perspectivas de

desenvolvimento nos moldes acima apontados, autores destacam a necessidade de se analisar

como estas diferentes tendências da agricultura familiar, ou seja, a diversificação/inserção em

circuitos locais e regionais e especialização/vinculação às grandes empresas agroindustriais,

interagiram ao longo do tempo em dado território, conformando determinadas percepções e

ações acerca destas perspectivas (MALUF, 2004; WILKINSON, 2008). Pois é somente a

partir deste tipo de análise que se torna possível delinear planos de ações com vistas à

dinamização de perspectivas paralelas à modernização da agricultura.

Neste sentido, o presente trabalho visa contribuir ao conjunto de debates, analisando as

ações e percepções de atores sociais vinculados ao processo histórico de estruturação de

alternativas de produção e comercialização paralelas à integração agroindustrial, em um

território16

em que a integração de agricultores familiares às agroindústrias consolidou-se,

historicamente, tanto do ponto de vista simbólico, como pelos resultados econômicos

alcançados por um segmento específico de produtores, como uma trajetória de ‘sucesso’ e de

15

Neste processo, Maluf (2004) salienta as necessidades de revisão dos marcos regulatórios, da fiscalização

tributária para facilitar a legalização destas pequenas iniciativas e atualização dos serviços de vigilância

sanitária relevantes frente às qualidades necessárias aos produtos. 16

Compreende-se que o processo de consolidação de certa perspectiva de desenvolvimento rural em Teutônia,

possa ser compreendido como expressivo da construção de determinado território e territorialização, nos

termos do geógrafo Rogério Haesbaert (2004, 2007). Na compreensão deste autor, o território deve ser

compreendido enquanto imerso em relações de dominação e/ou de apropriação sociedade-espaço,

desdobrando-se “ao longo de um continuum que vai da dominação político-econômica mais 'concreta' e

'funcional' à apropriação mais subjetiva e/ou 'cultural-simbólica'" (HAESBAERT, 2004, p. 95-96). Assim,

Haesbaert chama atenção para o fato de que o território e as dinâmicas de territorialização devem ser

distinguidos “de acordo com aqueles que os constroem, sejam eles indivíduos, grupos sociais/culturais, o

Estado, empresas, instituições como a Igreja, etc.” (HAESBAERT, 2007, p. 22). Neste sentido, Haesbaert

chama a atenção de que ao controlar-se uma ‘área geográfica’, ou seja, criar-se um território, visa-se "atingir

afetar, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relacionamentos" (SACK apud HAESBAERT, 2007, p.

22). No caso especifico do presente estudo, interessa-se pelas relações de dominação e/ou de apropriação,

sociedade-espaço, de certa dinâmica de desenvolvimento rural, em que torna-se de crucial importância

observar que a dinâmica de desenvolvimento rural que se tornou predominante, ao longo do processo histórico

analisado, de integração de agricultores familiares a empresas agroindustriais, foi de fundamental importância

na delimitação deste recorte espacial político-institucionalmente. Para além da dominação/apropriação político-

econômica mais concreta, destaca-se o fato de ao longo do processo em análise esta dinâmica de

desenvolvimento rural ter sido construída simbólico-materialmente como a ‘melhor’ alternativa de articulação

econômico-produtiva para a agricultura familiar neste território, conforme será observado ao longo deste

trabalho. Assim, é de grande importância nas delimitações subjetivas do campo de possibilidades imagináveis

ao desenvolvimento rural no mesmo.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 81

permanência na agricultura e no espaço rural17

. A partir disso, busca-se delinear focos de

ação para a dinamização destas alternativas em Teutônia.

Ações e percepções dos atores sociais envolvidos no processo histórico de estruturação

da Feira Livre de Produtores rurais e de agroindústrias familiares em Teutônia

Em trinta de agosto de 1985 foi realizada a primeira Feira Livre do Produtor rural em

Teutônia. A partir desta data, a Feira passou a ser realizada em três dias da semana, um dia em

cada centro urbano do município18

. Nas entrevistas com os agricultores fundadores da Feira

os mesmos destacaram as ações do então presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de

Teutônia, Décio Schneider, e do engenheiro agrônomo da EMATER municipal, André Kich,

como sendo extremamente relevantes no processo de estruturação inicial desta iniciativa.

Segundo estes agricultores, em meados da década de 1980 Décio e André instigaram e

organizaram visitas de agricultores de Teutônia a feiras realizadas em outros municípios. Da

mesma forma, Schneider e Kich organizaram diversas reuniões entre agricultores teutonienses

interessados em estruturar a Feira.

Além das instituições em que trabalhavam André (EMATER) e Décio (STR),

participaram do processo de estruturação da Feira a Prefeitura Municipal e a Cooperativa

Languiru. Cada uma destas instituições delegou um representante de seu quadro social para

participar da Comissão que determinaria “as normas de organização, funcionamento e

fiscalização da mesma (Feira)”. Para integrar esta Comissão, os agricultores feirantes também

elegeram um representante a partir de seu quadro social19

.

17

Compreende-se por agricultor familiar integrado aqueles que, a partir de suas diferentes capacidades de

resistência e adaptação a transformações sociais mais amplas, colocaram como estratégia o desenvolvimento

de atividades produtivas articuladas a determinadas empresas agroindustriais em um ou mais setores.

Atualmente, em Teutônia, as principais atividades em integração se dão nos setores de produção de leite,

suínos e aves, com destaque para a integração à Cooperativa Languiru, estruturada no município em 1955. Na

conceituação dos agricultores de Teutônia, observa-se que são compreendidos como integrados apenas os

agricultores em integração vertical, nos setores de aves e suínos de corte. Pois, a organização produtiva

praticada pelos agricultores, nestes setores, é incisivamente condicionada pelas orientações técnicas das

empresas agroindustriais. Todavia, no setor leiteiro, concebe-se que, mesmo em menor grau, a organização

produtiva dos agricultores também foi paulatinamente condicionada às orientações técnicas, essencialmente

frente aos padrões sanitários a serem seguidos, onde a adequação à Normativa 51 é um caso bastante explícito.

Desta forma, conceitua-se como integrados todos os agricultores que desenvolvem atividades produtivas

articuladas a determinadas empresas agroindustriais em um ou mais setores, mas ressaltando-se a diversidade

que este conceito comporta. 18

O município de Teutônia subdivide-se em três centros citadinos: bairro Teutônia, Canabarro e Languiru. 19

Conforme se pode observar nas atas das reuniões realizadas com agricultores que queriam participar da Feira,

em 1985, como também pelo Decreto Municipal de fundação da Feira (Decreto nº102), de vinte e seis de

setembro de 1985. Documentação particular, cedida pelo agricultor Sírio Lorenz, que foi o primeiro presidente

da Associação de Feirantes de Teutônia.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 82

A Prefeitura Municipal de Teutônia ficou encarregada de fiscalizar a Feira, frente ao

cumprimento das normas do Estatuto, condições de higiene dos produtores e da produção (a

ser realizada por fiscal municipal); garantir a coleta dos dejetos restantes da Feira; e não

permitir que vendedores ambulantes comercializassem nos bairros de realização da Feira, no

dia de funcionamento da mesma, como no dia anterior.

O Sindicato dos Trabalhadores Rurais ficou encarregado de realizar o cadastro dos

produtores, concedendo-lhes carteiras de identificação, com validade de um ano.20

A

EMATER municipal ficou incumbida de prestar assistência técnica aos agricultores feirantes,

essencialmente frente à produção e comercialização da produção dos mesmos na Feira. Além

disto, a EMATER ficou encarregada de fornecer atestado de produtor e calendários de

produção de diferentes cultivares de hortigranjeiros aos agricultores feirantes. O representante

dos feirantes ficou encarregado de prestar informações aos companheiros de Feira sobre as

decisões da Comissão, que deveriam ser acatadas; e de informar a Comissão sobre o que

ocorria na realização das feiras.

Nos primeiros anos, oito agricultores teutonienses participaram da Feira, conforme

consta nos relatórios dos técnicos da EMATER Teutônia21

. Nas entrevistas com agricultores

que participaram da Feira, em seus anos iniciais, os mesmos relataram que, neste período,

cada agricultor disponibilizava no mínimo quatro produtos diferenciados. A cada feirante

estavam atrelados mais quatro agricultores, os quais também estavam cadastrados no quadro

social da Feira. Para controlar os produtos fornecidos pelos agricultores e valores praticados

na venda dos mesmos na Feira, cada produtor preenchia uma ficha mensal22

. Neste período,

houve grande êxito de vendas na Feira, segundo feirantes entrevistados23

.

Conforme relataram os agricultores feirantes entrevistados, ainda no primeiro ano de

funcionamento da Feira, apenas o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Teutônia e EMATER

municipal (através do agrônomo André Kich) mantiveram seu apoio a esta iniciativa.

Segundo estes agricultores, as demais instituições mantiveram-se quase inoperantes na

Comissão. Por vezes, os representantes destas instituições ainda causaram danos ao

funcionamento da Feira, com suas ações na Comissão. Como exemplo disto, o agricultor Sírio

20

Estas carteiras de identificação foram concedidas ao agricultor feirante, que necessariamente deveria ser

produtor rural, e para o seu ajudante, que também deveria ser cadastrado. 21

Dois agricultores que participaram da Feira em seus anos iniciais, ao serem entrevistados, relataram que nestes

anos a Feira era composta por cerca de doze agricultores feirantes. 22

Estas fichas foram encontradas no arquivo particular do agricultor Sírio Lorenz. 23

O que também pode ser observado nos relatórios dos técnicos da EMATER, acima examinados.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 83

Lorenz24

relatou a ação de um membro da Comissão que era parente do dono de um

supermercado no município25

.

Já o apoio da Prefeitura de Teutônia, na percepção dos feirantes entrevistados,

restringiu-se à manutenção da fiscalização. A mesma, muitas vezes, segundo estes

agricultores, tornou-se um entrave pelas tentativas de apreensão de produtos e

constrangimento ao acesso de consumidores aos estandes dos feirantes. Sírio Lorenz relatou

uma das ações do agente fiscalizador municipal que seria emblemática:

Nós tava bastante tempo, que a luta tava feia, né? Principalmente na fiscalização.

Eu até um dia xinguei um fiscal aqui em cima,26

uma vez. Eu nem sabia que ele era

fiscal da prefeitura. Ele veio assim lá e (disse): ‘- Escuta vocês tão vendendo

lingüiça aí na Feira?’ Eu disse: ‘- Tô sim senhor, por que? Quer comprar?’ ‘–

Não.’ Diz ele. ‘- Eu sou o fiscal da prefeitura, vocês tem que recolher isto e levar

pra casa e não pode vender mais na Feira.’ Eu disse: ‘- O que? O que o senhor

acha que é na vida?’ ‘ – Pois eu sou o fiscal da prefeitura.’ Ele me gritou assim, né?

(e complementou): ‘- Tu acha que tá falando com quem?’ Eu disse:’ - E tu, acha

que tá falando com quem? Eu sou o Presidente dos feirantes aqui. E nós temos

todos os direitos de fazer isso e tá aqui oh!’ Peguei a pasta, mostrei pra ele. Nós

tinha esta ficha de controle. E aí eu sei, tinha tudo em cima. A fiscalização do ICM

atacava nós na rua, não multava! Tava tudo certo. E aí nós começamos a discutir

com ele. Eu comecei a discutir com ele. Eu disse: ‘- Este produto nós vamos vender

aqui e queira o senhor ou o senhor não queira. Isso nós vamos vender.’ ‘ – É mas eu

vou chamar a polícia.’ Diz ele. Eu disse: ‘- Pode chamar. Pode chamar.’ Aí,

brigamos. Aí, o pessoal tudo parado ali querendo comprar, eu disse: ‘- Olha, a

melhor coisa que o senhor pode fazer é ir pra casa e deixar a gente trabalhar.’ Aí

ele se invocou comigo. Nem disse adeus e foi embora. Aí eu chamei toda a

comissão, né? E fizemos uma reunião. Aí o Silvério era prefeito e não se dava com o

A. L.,27

de jeito nenhum. Os dois até hoje, né? Aí então, fizemos uma reunião, todos

os feirantes e a comissão, né? E acabamos, continuando fazendo, né? Esse cara

tava junto naquele dia, mas ele não abriu a boca, a tarde inteira na reunião. E aí eu

disse: ‘- Olha, podem vir no fim da Feira fiscaliza. Se tiver alguma coisa errada, o

senhor tem todo o direito de fiscalizar.’ Eu disse isso naquele dia também. ‘Mas

vocês sabem muito bem o que nós estamos fazendo pra Feira, né? Vocês muito bem

estavam sabendo. Se não estavam sabendo era porque não estavam a par das

coisas. E nós vamos vender este produto. Se os senhores quiserem que nós não mais

24

Entrevista realizada em 20/01/2011, na unidade produtiva de Lorenz, localizada na Linha Frank. Este

agricultor foi o primeiro representante dos feirantes e assumiu o cargo por longo período. 25

Segundo Lorenz, este membro da Comissão ficou encarregado de repassar aos feirantes os valores cobrados

pelos hortigranjeiros no supermercado de seu parente. A partir destes valores, cobrados neste supermercado, os

agricultores estipulavam os preços a serem cobrados por sua produção na Feira, em que deveriam visar um

valor vinte por cento abaixo dos preços do supermercado, conforme consta na ata de fundação da Feira.

Entretanto, os preços que aquele membro da Comissão repassava aos feirantes eram os que o supermercado

cobrava durante a semana, os quais eram superiores aos valores cobrados nos finais de semana, quando o

supermercado realizava promoções de hortigranjeiros. Assim, segundo Lorenz, muitas pessoas deixaram de

realizar suas compras de hortigranjeiros na Feira, em vista de encontrarem estes produtos por preços muito

menores nos supermercados do município. Sírio destacou que os feirantes só perceberam o que estava

ocorrendo depois de um longo período. Posterior a este fato, os próprios feirantes passaram a consultar os

valores dos hortigranjeiros nos supermercados de Teutônia, e a partir destes tabelaram os preços cobrados na

Feira. 26

Neste momento, Lorenz apontou para o bairro Teutônia, que fica próximo à Linha Frank, onde o mesmo

reside. 27

Outro agricultor que participava da Feira. Em vista de o entrevistado estar relatando uma situação de conflito,

optou-se por identificar este agricultor apenas com as iniciais de seu nome.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 84

fizemos, então avisa com antecedência. Pra nós não fazer o produto, trazer aqui e

querer vender e vocês querem que nós botemos fora, aí a briga tá feita.’

Segundo Lorenz, este foi apenas um dos casos de conflito entre agricultores feirantes e

o órgão fiscalizador municipal no inicio da década de 1990. Na entrevista, Sírio destacou

outra situação ocorrida nestes anos, que seria bastante representativa do descaso da

administração pública para com a Feira naquele contexto. Um produtor rural, do município

vizinho de Paverama, começou a expor seus produtos na entrada da Feira no bairro

Canabarro. Todavia, não era permitido que agricultores não feirantes e comerciantes

ambulantes (desprovidos de Alvará de Licença) comercializassem produtos semelhantes aos

vendidos na Feira, no dia de realização desta e no dia anterior, nos bairros de realização da

mesma (conforme explicitado no Artigo 20 do Decreto Municipal de vinte de agosto de

198528

). Assim, Sírio solicitou ao agricultor de Paverama para que este não comercializasse

sua produção nos dias da Feira. Todavia, a solicitação de Lorenz não foi atendida. Desta

forma, Sírio foi ao gabinete do então prefeito Elton Klepker29

reivindicar que o Poder Público

tomasse alguma medida frente ao que estava ocorrendo. Todavia, na compreensão de Lorenz

o prefeito tratou da questão com completo descaso:

Aí eu fui lá no Klepker, aí eu tava com uma barba como esta tua (do entrevistador)

assim, né? Que eu não tenho nada contra, porque também já fui assim (risos). Aí,

nós, da Feira, fomos lá falar com o prefeito. Aí eu disse pro prefeito: - Olha, o

negócio deste jeito não vai funcionar. Nós estamos ali na Católica (Pavilhão da

Comunidade Católica do bairro Canabarro), lá em baixo dentro do Pavilhão, e o

cara lá de Paverama me chega lá na frente do portão, quando a freguesia entrava

já oferecia o produto, os mesmos que nós tínhamos, né? Verduras, né? Eu disse: -

Isso não fecha. Sabe o que ele me respondeu? – Eu também não posso tirar o pão

da mesa deste pobre coitado. Aí eu disse: - Então quer dizer que o coitado lá de

Paverama que não tem nada a ver com nosso município e o senhor acha que não

pode tirar o pão da mesa, mas ele pode tirar o nosso da nossa mesa isso é possível,

isso pode ser. Ele disse: - Pois é, eu não tenho ninguém pra poder fiscalizar, mas tu

que tá com uma barba aí, de homem brabo; diz ele assim: - Eu vou te dar um talão e

vou te dar um revólver aí tu fiscaliza aqueles caras. Sabe o que eu disse na cara

dele: - Olha prefeito, nós não viemos aqui pra ser debochados, não! Nós queremos,

aqui oh, o que o senhor assinou quando nós fizemos os estatutos. Aí ele disse: - Eu

não assinei nada. Eu disse: - O que? Aí eu cheguei e fui lá pra fora na Kombi,

peguei a minha pasta e levei isto pra ele e disse: - Olha este papel aqui, na última

folha (neste momento mostra documento para entrevistador e aponta para

assinatura dizendo: Isso aqui é a assinatura dele. Aqui, oh, mais a assinatura do

Secretário da Agricultura). Aí eu mostrei isso daqui pra ele, né? Aí eu disse: - Mas

de quem é esta assinatura aqui? Aí diz ele assim: - Ah, isso aqui eu nem sabia o que

28

“Artigo 20 - Não será permitida a comercialização semelhante a praticada no dia da Feira Livre do Produtor,

no bairro, no dia antecedente e precedente à mesma. A Prefeitura indicará um fiscal para controlar esta

comercialização, bem como autuará o comerciante ambulante desprovido de Alvara de Licença e documentos

legais para a venda desses produtos hortigranjeiros.” 29

Este fora uma das principais lideranças na fundação da Cooperativa Languiru. Fazendo parte do quadro

administrativo da mesma até inícios da década de 1980, quando assumiu a prefeitura do município, após sua

emancipação.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 85

era. Aí eu disse: - Ah tá, então nós temos um prefeito que assina qualquer coisa,

assim! Se amanhã eu venho aqui e vou dizer pro senhor me assina este cheque, o

senhor vai me assinar também? Aí chegamos a sair de lá, sem, sem, sem resultado

nenhum.

O não atendimento desta solicitação dos feirantes pela Prefeitura Municipal30

teve um

forte impacto e contribuiu em muito para o refluxo da Feira, segundo os feirantes

entrevistados. Sem esta restrição foi possível que outros fornecedores atendessem as

demandas de hortigranjeiros em detrimento dos feirantes. Estes agricultores relatam que de

meados até fins da década de 1990 havia decaído em muito a procura por hortaliças e frutas

na Feira. Esta demanda passou a ser suprida pelos supermercados e, principalmente,

caminhões de fruteiros e verdureiros vindos da Serra Gaúcha. Estes verdureiros e fruteiros

ambulantes, como lembrou Sírio, não podiam entrar nos bairros, no dia anterior e na data de

realização da Feira, segundo o Decreto Municipal. Todavia, este controle nunca teria

ocorrido. Assim, segundo Lorenz: “todos os dias o caminhão estava na porta das pessoas

oferecendo produtos”.

Com isto, segundo relatos dos agricultores feirantes, durante a década de 1990,

paulatinamente decaiu o número de consumidores na Feira. Especialmente a procura por

hortifrutigranjeiros teria sofrido uma grande queda. Os consumidores, que ainda continuavam

frequentando a Feira, neste período, procuravam produtos como: queijo colonial, linguiça,

carne defumada, morcela e banha. Ou seja, produtos que, em sua grande maioria, exigiam um

processamento agroindustrial.

Todavia, mesmo com o refluxo do número de consumidores na Feira, ao longo da

década de 1990, relatado por aqueles agricultores, observa-se que em 1999 ainda

participavam da Feira sete agricultores, conforme relatórios dos técnicos da EMATER

Teutônia. Na analise dos registros da EMATER pode-se observar que foi ao longo da década

de 2000 que o numero de agricultores feirantes teve uma grande redução. A partir destes

registros observa-se que em 2004 a Feira era composta por cinco produtores. Já em 2011,

apenas três agricultores participavam da mesma.

Dentre estes três agricultores que participam da Feira atualmente, destaca-se que a

família de agricultores com maior produção na Feira, a de Arlindo Lagemann,31

tem uma

agroindústria de embutidos32

e de panificados33

. Arlindo Lagemann participa da Feira desde

30

O que lembra-se configurar no não cumprimento do Artigo 20 do Decreto de fundação da Feira. 31

Entrevistas realizadas em 10/01/2011, na unidade produtiva da família, na Linha Harmonia. 32

Linguiça, carne defumada, morcela. 33

Estes são vendidos na feira, mas visam sua ampliação com venda para Merenda Escolar (através da qual

escoam grande parte de sua produção) e Programa de Aquisição de Alimentos.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 86

meados da década de 1980. Além desta família, mais dois agricultores continuam

participando da Feira Livre do Produtor Rural em Teutônia. Erich Heinemann vende ovos e

hortigranjeiros. Erich também começou a participar da Feira desde meados da década de

1980. Além destes, o agricultor Jacó Bayer comercializa hortaliças produzidas sem adubos

químicos e uso de agrotóxicos. Bayer começou a escoar parte de sua produção de hortaliças

na Feira a partir de meados da década de 2000. Todavia, segundo Jacó, apenas 20% de sua

produção de hortaliças é vendida na Feira, os demais 80% de sua produção são escoados para

Merenda Escolar34

.

Nas entrevistas com estes agricultores os mesmos destacaram que muitos dos feirantes

que abandonaram esta iniciativa ao longo da década de 2000 já estavam aposentados neste

contexto, tornando-se a aposentadoria sua principal fonte de renda, e que com a grande queda

de consumidores na Feira, estes acabaram por abandonar suas atividades. Em conversas

informais com consumidores e ex-consumidores da Feira, recorrentemente, foi salientada a

pouca diversidade de frutas e verduras oferecidas pelos feirantes.

Neste sentido, os agricultores Erich Heinemann e Sírio Lorenz que participaram da

Feira ao longo das décadas de 1980, 1990 e 2000, salientaram a necessidade de assistência

técnica que os auxiliasse na adaptação de manejos de cultivares diversos, como era realizada

na década de 1990 pelo agrônomo da EMATER municipal André Kich. O apoio da EMATER

municipal teria decaído muito com a saída deste agrônomo, segundo estes agricultores. Na

percepção de Sírio e Erich, os sucessores de André na EMATER municipal não

demonstraram o mesmo interesse pela Feira e em muito pouco os auxiliaram. Os agricultores

Erich, Sírio e Arlindo, que participaram da Feira ao longo das décadas de 1980, 1990 e 2000,

destacaram o apoio recebido atualmente através da assistência de Nilo Cortez, da EMATER

Regional, sediada em Lajeado. Nilo Cortez teria auxiliado estes agricultores no planejamento

de suas atividades e trazendo exemplo de experiências de produtores de outros municípios da

região.

Estes três agricultores também salientaram que o descaso da Prefeitura Municipal de

Teutônia com a Feira teria se mantido constante, desde fins da década de 1980 até a

34

Jacó começou a escoar sua produção para as escolas municipais a partir de 2009. Neste sentido, destaca-se a

crescente importância do Estado na dinamização de iniciativas como esta com o Programa Nacional de

Alimentação Escolar (PNAE), e através do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Todavia, apenas o

agricultor Jacó Bayer escoa parte de sua produção para a merenda escolar no município de Teutônia. Na região

também não existe nenhum projeto vinculado ao PAA. Nas entrevistas com agricultores feirantes e que

estruturaram suas agroindústrias familiares observou-se que a grande maioria destes tem um grande interesse

nestes dois programas governamentais, entretanto, nenhum projeto foi estruturado na região, até o presente

momento.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 87

atualidade. Recorrentemente, estes agricultores exemplificaram este descaso pelos locais

concedidos pela Prefeitura para a realização da Feira. Atualmente a Feira é realizada apenas

no bairro Canabarro, no pavilhão da Comunidade Católica e em um estande de

comercialização em frente a uma fábrica de calçados, em terreno emprestado aos feirantes,

passível de ser retirado a qualquer momento. Este estande foi construído com madeiras

restantes de uma festa de aniversário do município. Neste sentido, são recorrentes as

comparações dos feirantes com a realidade das feiras nos municípios vizinhos de Estrela e

Santa Cruz do Sul, em que existem instalações adequadas, construídas pelas prefeituras dos

mesmos.

Já o agricultor Jacó Bayer, que iniciou suas atividades na Feira a partir de meados da

década de 2000, tem percepção um pouco diversa da destes três, frente o apoio da EMATER

de Teutônia e do Poder Público Municipal. Jacó iniciou sua produção de hortaliças sem uso

de agrotóxicos e adubação químico-sintética em 2002, a partir do incentivo de seu genro,

técnico agrícola formado em Santa Rosa. Na entrevista com Bayer,35

o mesmo salientou que a

EMATER Teutônia e a Secretaria da Agricultura Municipal sempre estiveram de prontidão

para lhe auxiliar no que fosse necessário. Este agricultor frisou ainda a disponibilidade da

Cooperativa Languiru em lhe ofertar um balcão de hortigranjeiros ‘orgânicos’ em seus

supermercados, em meados da década de 2000. Todavia, Bayer não aceitou esta oferta, até o

momento, em vista de sua produção atual não ser suficiente para suprir as necessidades de

constância e quantidade que os supermercados necessitariam. Para atender a demanda dos

supermercados da Languiru, Jacó salientou que seria necessário um grupo de agricultores

trabalhando na atividade, para assim manterem a oferta, quantidade e qualidade de produção

durante o ano todo. Todavia, isto ainda não é possível, segundo Bayer, em vista de não

encontrar-se agricultores que se interessassem em produzir hortigranjeiros, ainda mais

‘orgânicos’, em Teutônia. Nas palavras do agricultor: “o pessoal aqui (agricultores) não se

interessa por este tipo de coisa, só na integração em suínos e aves”.

Concebe-se que estas divergências, nas percepções dos agricultores que trabalham na

Feira, frente o apoio da EMATER de Teutônia e do Poder Público Municipal, são expressivas

das redefinições das posições e ações destas instituições a partir de fins da década de 1990. A

partir de 1999, com o governo do Partido dos Trabalhadores no Estado do Rio Grande do Sul,

a EMATER estadual passou a enfatizar trabalhos de assistência a iniciativas de agroindústrias

familiares e o escoamento desta produção nos mercados locais. Da mesma forma, percebe-se

35

Entrevista realizada em 21/08/2011, na unidade produtiva do agricultor, na Linha Major Bandeira.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 88

que, a partir de fins da década de 1990, e principalmente na década de 2000, o Poder Público

Municipal passou a enfatizar seu apoio à estruturação de agroindústrias familiares (DA ROS,

2006).

Neste sentido, destaca-se que esta variação das posições e ações do Poder Público

Municipal são emblemáticas do processo de transformação das políticas publicas nacionais

para a agricultura, ao longo da década de 199036

. As mesmas instigaram a criação e maior

poder à órgãos municipais, a exemplo das Secretarias de Agricultura. Em Teutônia, a

Secretaria de Agricultura e Meio Ambiente foi criada em 1997. O primeiro secretário de

agricultura do município foi o técnico agrícola Silvério Brune, que havia participado da

primeira equipe de técnicos do Departamento Agropecuário de Languiru, conforme destacado

no capitulo anterior. Brune continua trabalhando na Secretaria de Agricultura e Meio

Ambiente de Teutônia até a atualidade. Na entrevista com Silvério o mesmo frisou que no

contexto de criação desta Secretaria foram estruturadas as primeiras agroindústrias familiares

em Teutônia.37

Silvério também destacou que a partir de fins da década de 2000 a prefeitura

municipal passou a enfatizar a necessidade de apoio à estruturação de agroindústrias

familiares no município. Nas palavras de Brune:

Acho que com o tempo isso vai avançar mais (a estruturação de agroindústrias

familiares em Teutônia). Nós temos aqui na prefeitura agora, um veterinário

contratado, que todas as manhãs ele atende, ele trabalha 20 horas, isso de janeiro

(de 2011) pra cá, né? Em vista desta cobrança forte que nós estamos tendo, né? E

não é de agora esta cobrança, mas o forte dela veio agora.38

Nós inclusive, temos

uma lei que incentiva, se você coloca uma pequena agroindústria, hoje, tem o

incentivo da prefeitura de R$ 30,00 por metro quadrado construído, até o limite de

cem metros quadrados, né? Justamente para fomentar as pequenas agroindústrias

familiares.39

Neste sentido, pode-se observar que as ações e percepções do poder publico municipal

também foram redefinidas a partir de fins da década de 1990 e, principalmente, ao longo da

36

O que esteve atrelado ao surgimento de novas demandas sociais que surgiram neste contexto de abertura e

desregulação da economia. Como coloca Mior “[…] embora a ênfase da política agrícola brasileira ainda seja o

apoio ao modelo produtivista ou de desenvolvimento agrícola – através de incentivos ao aumento da

produtividade e da competitividade agrícola – está havendo uma clivagem da mesma” (MIOR, 2005, p. 163),

em que observa-se que as políticas públicas de desenvolvimento rural nacionais começaram a dar os primeiros

sinais de diferenciação. Neste sentido, merece destaque a implementação do Programa Nacional de

Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), a partir de 1996. O mesmo, como salienta Mior, “[…]

propõe uma explicita descentralização, com aumento da influência dos espaços estaduais, regionais e locais na

elaboração e execução de políticas agrícolas” (2005, p. 163). Assim, observa-se que neste contexto começaram

a ser criados os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural (CDMR) e Secretarias de Agricultura

municipais, na maioria dos municípios. 37

Conforme pode-se observar pelo subitem acima. 38

Estas cobranças, segundo Brune, estariam sendo realizadas pelo atual prefeito de Teutônia, Renato Altamann,

conforme citado no subitem acima. 39

Entrevista realizada em 03/06/2011, na Secretaria de Agricultura e Meio Ambiente de Teutônia.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 89

década de 2000. Todavia, mesmo com estas variações, observa-se que os agricultores Erich e

Arlindo já haviam se afastado destas instituições pelas experiências que tiveram em suas

interações com as mesmas no passado.

Já entre os agricultores que passaram a interagir com estas instituições para a

estruturação de suas iniciativas a partir de fins da década de 1990 e ao longo da década de

2000, observa-se que é predominante a percepção de que puderam contar com o apoio do

Poder Público Municipal e a EMATER de Teutônia. Dentre os quatro agricultores

entrevistados que estruturaram/consolidaram40

suas agroindústrias familiares ao longo da

década de 2000 e que não participam da Feira, três salientaram o apoio dado pela EMATER

de Teutônia41

e do Poder Público Municipal na estruturação de suas iniciativas.

Apenas o agricultor Osmar Schneider destacou problemas enfrentados para a

implementação da agroindústria de sua família. 42

Na entrevista com Osmar43

, o mesmo

salientou que os entraves no processo de estruturação da agroindústria familiar foram muitos,

essencialmente por parte da vigilância sanitária municipal. Da EMATER, o agricultor

salientou o apoio recebido do técnico da Regional, Nilo Cortez, cujo auxílio teria sido crucial

na implementação da agroindústria familiar. Segundo Osmar, Cortez teria lhe salientado que

os entraves da vigilância sanitária e da fiscalização tributária seriam complicadores bem

menos relevantes em municípios vizinhos, quando da instalação destas agroindústrias

familiares. Nilo teria comentado com Osmar que nos municípios vizinhos o Poder Público

normalmente facilitava os financiamentos para a implementação de agroindústrias familiares.

40

A maioria destas iniciativas é resultado de atividades em que as famílias de agricultores estiveram envolvidas

ao longo de sua trajetória. Assim, as mesmas foram formalizadas e dinamizadas como agroindústrias familiares

neste contexto, conforme pode-se observar pelo depoimento de Nilo Cortez. Esta questão pode ser observada

na ampla maioria dos processos de estruturação de agroindústrias familiares. A mesma percepção foi

desenvolvida no trabalho de Anjos, Caruso e Caldas (2011), ao examinarem o impacto das políticas públicas

de incentivo à produção agrícola artesanal na microrregião de Pelotas (RS). 41

Observa-se que estes agricultores não distinguiram o apoio dado pela EMATER de Teutônia e pela regional,

em vista de ter sido através da interação com os técnicos do escritório municipal que estes agricultores

acessaram os técnicos da regional. 42

A família de Osmar comercializa queijos em sua propriedade desde a década de 1980. Inicialmente a produção

de queijos era responsável por cerca de vinte por cento da renda da unidade produtiva da família de Osmar. Em

fins da década de 1990 o agricultor resolveu ampliar a produção de queijos, implantando uma agroindústria

familiar junto a sua residência, onde também era comercializada a produção. Com a constante elevação do

número de consumidores, Schneider, a mulher e o filho (que se mantém trabalhando e residindo na unidade)

resolveram construir uma nova agroindústria, em prédio especifico. Para a construção da agroindústria da

família, Osmar destacou que não foram solicitados financiamentos. Atualmente, a porcentagem entre

importância de renda do queijo para a venda de leite para a Cooperativa se inverteu, 80% provém da produção

de quarenta quilos de queijo por dia, e os demais 20% da venda de leite. Em sua totalidade, a produção de

queijo é vendida diretamente aos consumidores na unidade produtiva, que fica bastante próxima ao bairro

Canabarro. 43

Entrevista realizada em 08/07/2011, na unidade produtiva do agricultor, localizada na Linha Ribeiro.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 90

Na percepção de Osmar, estas pressões do poder municipal seriam resultado do

respaldo e poder que as grandes agroindústrias teriam no município de Teutônia. Na

compreensão deste agricultor, as grandes agroindústrias realizam estas pressões por temerem

que exemplos ‘positivos’ das agroindústrias familiares44

poderiam levar a uma diminuição

dos produtores integrados as mesmas45

, com o que poderia ser redefinida a gramática de

negociação entre estas agroindústrias e agricultores integrados46

.

Todavia, conforme apontado, os demais agricultores que estruturaram suas

agroindústrias familiares ao longo da década de 2000 tiveram uma percepção diversa da de

Osmar, ao serem entrevistados. Como observa-se pelas entrevistas realizadas com Ivo Faine,

Mauricio e Vania Schneider.

Em entrevista com o agricultor Ivo Faine,47

que juntamente com sua irmã fundou uma

agroindústria familiar de embutidos de carnes de suínos e bovinos em 2000,48

o mesmo

relatou que com a fundação do Conselho de Agricultura em fins da década de 1990, teria sido

significativo o apoio à estruturação de agroindústrias familiares no município, por parte da

Prefeitura Municipal (através da Secretaria de Agricultura), do Sindicato dos Trabalhadores

Rurais de Teutônia e de EMATER municipal. Segundo Ivo, estas instituições teriam sido

extremamente solícitas quando acessadas, auxiliando com informações sobre fornecedores de

implementos e em assistência técnica. Quanto à EMATER, Ivo salientou a assistência

prestada pelo técnico Nilo Cortez, da EMATER Regional. Neste sentido, Faine salientou que

não diferencia a entidade em nível municipal e regional, visto ter acessado os técnicos do

escritório regional através da EMATER Municipal. Quando questionado frente ao

comparativo da quantidade de agroindústrias existentes em Teutônia e municípios vizinhos,

Ivo considerou que esta desproporção se devia, essencialmente, em vista de a maioria dos

agricultores de Teutônia perceberem a integração a grandes agroindústrias como a ‘melhor’

alternativa de produção e comercialização de sua produção. Neste sentido, Faine destacou que

esta alternativa também era uma boa opção para os agricultores. Nas palavras de Ivo: “tu pode

44

Principalmente pelo maior valor agregado. 45

Neste sentido, a política de ‘fidelidade’ de entrega da produção dos produtores à Cooperativa, enfatizada por

atores sociais vinculados a Languiru, também pode ser um complicador para o surgimento destas iniciativas. 46

Destaque-se que a Cooperativa é proprietária dos dois maiores supermercados existentes em Teutônia.

Todavia, a maior parte dos agricultores que considera existirem tensões entre a Cooperativa e iniciativas como

Feira e agroindústrias familiares, não pensa que estas tensões se devam à concorrência com os supermercados,

mas sim quanto aos fornecedores de matéria prima para a agroindustrialização. 47

Entrevista realizada em 18/08/2011, na unidade produtiva da família de Ivo, na zona rural do bairro

Canabarro. 48

A produção da agroindústria da familia de Ivo é comercializada diretamente na unidade produtiva e através de

passagens com caminhoneta nos centros urbanos de Teutônia e através.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 91

ir aí nas linhas mais escondidas, daí tu vai ver como tem colono forte, por causa da

integração, que também é uma opção boa, né?”.

Percepção muito semelhante é a do agricultor Mauricio Schneider e de sua esposa,

Vania Schneider49

. Mauricio é o atual presidente da Associação da Rota Germânica. Neste

sentido, lembra-se que em vinte e seis de outubro de 2001 foi fundada a Associação da Rota

Germânica em Teutônia50

. Na mesma data de fundação desta Associação foi fundada a Rota

Germânica, pela administração pública de Teutônia51

. A Rota Germânica, segundo Mauricio,

resultou de várias reuniões entre produtores e o Poder Público, visitas técnicas, cursos e

programas desenvolvidos pelo SEBRAE e SENAR, através do Departamento de Turismo da

Secretaria de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer. Em 2002, Mauricio e a esposa reestruturaram

o alambique da família desta, em sua unidade produtiva.52

Em 2003, iniciaram suas atividades

em turismo rural junto à Associação da Rota Germânica. Os pais de Vania iniciaram suas

atividades no alambique em 1959, desativando o mesmo na década de 1970. Mauricio e sua

esposa iniciaram suas atividades a partir do instigamento da então Secretária de Turismo do

Município de Teutônia, que teria realizado diversas visitas à sua unidade produtiva. Para

reestruturarem o alambique, Mauricio e Vania realizaram diversos cursos no SEBRAE e

SENAR, os quais teriam sido articulados pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Frente à

assistência técnica, o casal destacou o trabalho do técnico da EMATER regional Nilo

Cortez.53

Segundo Mauricio e Vania, sua produção é comercializada, principalmente, nas

visitações de turistas através da Rota Germânica e em visitações individuais. Neste sentido, o

casal destacou que, até o momento, não enfrentaram problemas de regulamentação em sua

atividade, em vista de a produção ser escoada diretamente aos consumidores na unidade

produtiva.

Frente às possibilidades de expansão do turismo rural em Teutônia, Mauricio e Vania

destacaram que os participantes da Associação compreendem que as potencialidades da região 49

Entrevistas realizadas em 08/02/2011, na unidade produtiva da família, na linha São Jacó Alta. 50

O quadro social desta Associação é composto por “todos os empreendedores rurais, residentes na Região

Turística dos Vales e Montanhas” (Estatuto Social da Associação da Rota Germânica, 2001). 51

Na data de fundação da Rota, o Secretário de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer, que também era vice-prefeito

na data, destacou que “uma das preocupações da Administração Municipal (era) buscar alternativas para

incrementar a economia no meio rural, sendo que esta é a primeira Rota Turística do Vale do Taquari” (Ata de

Fundação da Rota Germânica, 2001). 52

Este empreendimento possui sitio eletrônico, no qual é possível realizar a compra de produtos

agroindustrializados na unidade produtiva, apresentado o empreendimento, seu histórico e demais informações.

Ploeg (2008) destaca a criação de espaços virtuais por iniciativas semelhantes a esta, considerando-as

expressão da (re)valorização identitária destas unidades produtivas, na relação entre produção, agricultor e

unidade produtiva. 53

O resgate histórico e configuração estética do alambique, que destacam-se, foram realizados pelo casal. Neste

sentido, destaca-se que os arranjos estéticos em toda unidade produtiva são muito diversos da maioria das

unidades produtivas de Teutônia.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 92

neste setor são grandes. Todavia, a maioria dos agricultores do município não se interessaria

pela atividade, segundo o casal. Nas palavras de Mauricio: “O pessoal (agricultores) não

percebe outra possibilidade além do porco, frango ou leite na integração”. A predominância

desta percepção entre os agricultores de Teutônia poderia ser observada pelo reduzido número

de agroindústrias familiares no município, segundo Mauricio e Vania. Neste sentido, Mauricio

destacou que por muitos anos estas alternativas de organização produtiva e de

comercialização da agricultura familiar teriam sido relegadas pelas administrações publicas

do município. Todavia, na percepção de Mauricio, esta situação “aos poucos vem mudando”.

Em entrevista com a atual presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de

Teutônia e Westfália, Liane Brackmann,54

a mesma salientou que alternativas de organização

produtiva e de comercialização da agricultura como a Feira e agroindústrias familiares ainda

precisam ser construídas no imaginário dos agricultores familiares de Teutônia, como

atividades econômicas viáveis e interessantes. Conforme Liane, ao longo das ultimas cinco

décadas, foi construída a percepção de que a integração a grandes agroindústrias seria a única

possibilidade de manutenção da agricultura familiar, no imaginário dos agricultores

teutonienses. Assim, na percepção de Liane, até a atualidade, a grande maioria dos

agricultores familiares do município respaldam a ideia de que a integração a grandes

agroindústrias é a ‘melhor’ opção para a agricultura familiar em Teutônia.

Nos meses de agosto e setembro de 2011, foram realizadas três reuniões com

agricultores na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Teutônia, com o objetivo de

reestruturar/dinamizar a Feira de produtores rurais no município. Estas reuniões foram

organizadas pelo Sindicato, EMATER Teutônia, Secretária de Agricultura e Meio Ambiente,

Secretaria de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer do município, e pelo Centro de Apoio ao

Pequeno Agricultor.

Os três agricultores que atualmente trabalham na Feira participaram destas reuniões.

Estes, recorrentemente, frisaram que para a dinamização da Feira o Poder Público deveria

investir em um local apropriado para a realização desta atividade. Da mesma forma, estes

agricultores salientaram a necessidade de se restringir a comercialização de hortigranjeiros

por comerciantes ambulantes no município, em vista de o trabalho destes ser muito prejudicial

aos feirantes.

Os agricultores que estruturaram e que estão estruturando suas agroindústrias

familiares em Teutônia também participaram assiduamente destas reuniões. Nestas reuniões

54

Entrevista realizada em 14/06/2011, na sede deste Sindicato, no bairro Languiru.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 93

frisaram a necessidade de ser construído um local adequado para a realização da Feira. Na

terceira reunião, realizada em quinze de setembro de 2011, o agricultor Ivo Faine também

salientou que a partir da construção de um espaço adequado a Feira poderia ser realizada

diariamente, citando o exemplo da feira realizada no município de Venâncio Aires, onde os

feirantes contratam um funcionário para que este comercialize a produção de todos os

agricultores em seis dias por semana. Outra opção apontada por Faine seria escalonar os

agricultores feirantes para que cada um se responsabilizasse por comercializar a produção de

todos em um dia especifico, pois assim a feira seria realizada todos os dias sem que todos os

agricultores necessitassem despender tempo em toda a semana. Ivo salientou que somente

desta forma a Feira poderia concorrer de forma simétrica com os supermercados, pois os

consumidores já estariam habituados à sistemática de adquirirem os gêneros alimentícios no

momento em que quiserem, não realizando uma programação para o consumo semanal da

família. Esta proposta foi recebida com entusiasmo por todos os agricultores participantes da

reunião.

Todavia, as instituições organizadoras destas reuniões salientaram que

momentaneamente este projeto era inviável. A única possibilidade, segundo os representantes

destas instituições, seria a realização da primeira Feira mais ampla, num sábado, no Centro

Administrativo municipal. A partir da mesma, tentar-se-ia dinamizar esta Feira para que a

mesma passasse a ser realizada semanalmente e no futuro se construir um espaço adequado

conforme a demanda dos agricultores. Esta proposição não pareceu ter agradado a grande

maioria dos agricultores participantes, na percepção do autor. Todavia, como sendo a ‘única’

possível, segundo os representantes das instituições organizadoras, ficou decidido que a Feira

seria realizada desta forma.

A partir destas reuniões, pode-se observar que a dinamização/consolidação da Feira é

uma demanda dos agricultores que estruturaram e estão estruturando suas agroindústrias

familiares em Teutônia. Neste sentido, considera-se ser de suma importância a percepção dos

técnicos Nilo Cortez, Lauderson Holz e Lidia Muller, de que pelas características sócio-

étnico-culturais dos agricultores de Teutônia os mesmos seriam resistentes e teriam

dificuldades em realizar a comercialização de sua produção diretamente aos consumidores

fora das porteiras de suas unidades produtivas.

Em entrevista com o técnico da EMATER regional, Nilo Cortez, o mesmo destacou as

resistências de comercialização da produção por parte dos agricultores familiares de Teutônia,

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 94

o que Nilo compreende ser expressão de suas características etno-culturais. Nas palavras de

Nilo:

E é uma outra coisa que a gente nota, que a diferença, na hora de comercializar,

entre a cultura alemã, do que, por exemplo, a cultura italiana.55

O italiano é mais

expansivo, ele é mais vendedor, sabe? e coisa. O alemão, ele é correto, ele faz

aquilo ali, mas muito fechado, sabe? Alguns é que se destacam daí [...] (risos). Mas

a maioria: ‘olha, parece que esse negócio não é pra mim’. ‘Que alguém

comercialize pra mim.’

Esta resistência dos agricultores da região de Teutônia em comercializa sua produção

também foi salientada pela técnica Lídia Margarete Müller Dhein, que trabalhou no escritório

da EMATER de Teutônia de inícios da década de 1990 a fins da década de 2000; como

também pelo engenheiro agrônomo Lauderson Holz, que trabalha no Centro de Apoio ao

Pequeno Agricultor (CAPA) regional desde meados do ano de 2007. Da mesma forma que

Nilo, estes técnicos também destacaram esta como sendo uma característica sócio-étnica-

cultural destes agricultores.

Lídia, a técnica em agropecuária, ao ser questionada sobre quais os motivos de refluxo

de iniciativas como a Feira Livre de Produtores em Teutônia, considerou que:

A origem alemã, assim, ela sabe produzi. Ela produz, até na porteira. Da porteira

pra fora, ela sair pra vender o produto que ela tem na propriedade. É muito difícil.

[...] Porque teve casos, assim, que a mulher disse assim: ‘não, porque aqui nós

estamos com doze vacas, eu boto uma vaquinha a mais, não preciso correr rua, não

preciso botar meu produto lá.’ Sabe, então, gerar renda ali, e tá resolvido. Por isso

assim, a Feira foi degringolando.56

Da mesma forma, o engenheiro agrônomo Lauderson, ao ser questionado sobre os

entraves para o desenvolvimento de alternativas como a Feira em Teutônia, considerou que

duas questões seriam centrais: o volume de capital que circularia nas produções via

integração;57

como também a cultura alemã dos agricultores da região:

Um aspecto é, numa feira, é tu não ter o mesmo volume de capital que tem num

sistema de integração. O volume de dinheiro que circula num aviário ou que vai

circular numa feira. E, acho que isso faz parte da cultura alemã, o alemão, que ele

tem uma de suas características é que ele sabe produzir. Trabalha, produzir. Ele

produz, pronto. Agora, ele não tem um perfil de venda, de ser vendedor. Isso tá

muito mais presente na cultura italiana. O italiano, antes de ele produzir ele se

preocupa como ele vai vender isso. Já o alemão não, ele se preocupa como eu vou

produzir isso, quando tá pronto ele se pergunta: ‘e agora, como eu vou vender?’ Da

55

Esta comƒparação se deve ao fato de a região de Teutônia situar-se ao pé da Serra Gaúcha, que foi colonizada

por imigrantes italianos, em sua maioria. 56

Entrevista realizada em 10/11/2011, no escritório da EMATER de Imigrante. L. M. trabalha neste escritório

desde o ano de 2010. 57

Nestas atividades Lauderson também destacou que a organização produtiva e de comercialização via

integração não demonstrou limites em garantir resultados econômicos aos agricultores integrados na região.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 95

porteira pra fora ele não tem este tino comercial. Isso é um fator que limita essas

iniciativas. E no atual, assim, a agricultura convencional, nos sistemas de

integração, eles tão dando a resposta econômica. Enquanto este sistema tiver dando

uma resposta econômica, ele (agricultor) não vai procurar uma outra alternativa.

Ele vai pensar em uma outra coisa a partir do momento em que o sistema de

produção não tiver mais dando o resultado econômico, ou quando ele tiver um

problema de saúde muito sério. Tu pode olhar que muitas experiências, muitas

iniciativas em produção ecológica58

.

Neste sentido, destaca-se a observação de que para dinamizar/consolidar de iniciativas

de agregação de valor à produção oriunda dos agricultores familiares de Teutônia, deva-se dar

atenção especial à construção de circuitos mercantis que viabilizem as mesmas.

Contudo, destaca-se a observação de que esta resistência dos agricultores teutonienses

em realizar a comercialização direta sua produção não deva ser compreendida como

característica sociocultural intrínseca aos agricultores familiares do município, resultado de

suas origens étnicas, mas sim como algo que foi construído/afirmado historicamente, ao longo

do processo de consolidação da articulação econômico-produtiva via integração. Processo

social em que determinados aspectos socioculturais foram sendo afirmados e consolidados,

em detrimento de outros, conformando determinados ‘mundos’ como possíveis no imaginário

dos agricultores do município. Emblemático, neste sentido, é a observação de que no

município de Estrela, do qual Teutônia se emancipou em 1983, e onde o contingente de

migrantes germânicos é comparável ao existente em Teutônia, foram estruturadas mais de

trinta agroindústrias familiares nas última década. Todavia, destaca-se que em Estrela a feira

de produtores rurais foi consolidada conjuntamente à dinamização destas iniciativas.

***

A partir do estudo aqui empreendido, observa-se que a construção de alternativas de

organização produtiva e de comercialização paralelas à integração enfrentaram uma ampla

gama de tensões em Teutônia. Este conjunto de tensões se expressaram de distintas formas

nos diferentes contextos, e que foram de grande relevância na conformação de determinadas

ações e percepções pelos atores sociais envolvidos na estruturação destas iniciativas.

Neste sentido, observa-se que em meados da década de 1980 a criação da Feira foi

apoiada pelo Poder Público Municipal, EMATER e Cooperativa Languiru, no contexto de

crise econômica dos setores em integração. Todavia, com a recuperação e dinamização dos

setores de aves, suínos e gado leiteiro, em integração, a partir de meados da década de 1980,

o apoio à Feira restringiu-se muito. Neste sentido, os agricultores fundadores da Feira

destacaram o descaso do Poder Público Municipal, logo após os primeiros anos de

58

Entrevista realizada em 26/10/2011, no Sínodo de Teutônia, no bairro Centro Administrativo.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 96

funcionamento da Feira, como também o declínio de apoio da EMATER municipal, após a

saída do agrônomo André Kich, em fins da década de 1980.59

Assim, observa-se que neste

contexto a falta de apoio a iniciativas de organização produtiva e de comercialização paralelas

à integração por parte dos atores sociais dinamizadores do desenvolvimento rural em Teutônia

foram de crucial importância para a não dinamização destas iniciativas, na compreensão dos

agricultores vinculados com as mesmas. O que seria resultado do predomínio da percepção de

que articulação econômico-produtiva via integração seria a ‘melhor’ alternativa aos

agricultores familiares de Teutônia.

A partir da década 1990, observou-se ter ocorrido uma importante reconfiguração

social frente a estas iniciativas, impulsionada por uma ampla gama de fatores, com destaque

para o processo de transformação das políticas públicas nacionais para a agricultura, ao longo

da década de 1990, atreladas ao surgimento de novas demandas sociais que surgiram neste

contexto de abertura e desregulação da economia; e redefinições de orientações de assistência

técnica da EMATER-RS, que ganharam cada vez mais expressão a partir de fins de 1990. Em

Teutônia, percebeu-se que dentre estas reconfigurações foram de crucial importância o

incentivo dado pela EMATER e pelo Poder Público à estruturação de agroindústrias

familiares, a partir de fins da década de 1990. Assim, observou-se que a maioria dos

agricultores que estruturaram suas agroindústrias familiares, a partir deste período,

destacaram o apoio dado por estas instituições. Todavia, neste contexto, observou-se que um

dos principais complicadores para a disseminação destas alternativas foi a consolidação do

ideário predominante entre agricultores teutonienses de que a ‘melhor’ alternativa econômica

para a agricultura no município seria integração a grandes agroindústrias.60

No contexto atual, juntamente com a predominância deste ideário entre os

agricultores, também destacou-se como elemento constritor na dinamização de agroindústrias

familiares no município, a inexistência de circuitos mercantis consolidados, que viabilizassem

o escoamento desta produção. Neste sentido, observou-se que a não consolidação da Feira

59

Esta configuração levou ao afastamento dos agricultores feirantes frente ao Poder Público e EMATER

municipal, percebendo-as como complicadores para o desenvolvimento de suas iniciativas e distanciando-se

das mesmas até a contemporaneidade. A exemplo das famílias de Erich Heinemann e Arlindo Laghemann. 60

O que compreende-se ser resultado da interação, a partir de meados do século XX, entre agentes vinculados a

grandes agroindústrias, com destaque para Cooperativa Languiru, com os agricultores familiares de Teutônia.

Processo interativo em que repertórios e referenciais de ação dos agricultores também foram sendo

trabalhados. Destaca-se a observação de que entre agricultores teutonienses predomina o ideário de que a

modernização na agricultura não apresentou limites. Neste sentido, destaca-se ainda que na percepção dos

agricultores de Teutônia não ocorreu um processo excludente com as integrações. Da mesma forma, lembra-se

que na percepção destes agricultores a organização produtiva via integração também não demonstrou limites

frente a questões ambientais na região de Teutônia. Neste sentido, destaca-se que expressões deste ideário

foram perceptíveis na maioria das visitações a agricultores familiares do município.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 97

durante a década de 2000 foi um elemento importante para que não ocorresse certa

dinamização de agroindústrias familiares em Teutônia61

, em que merece destaque a

consolidação de determinadas características socioculturais dos agricultores da região, com

resistência a comercialização direta de sua produção.

Desta forma, compreende-se que para que sejam dinamizadas perspectivas de

desenvolvimento rural mais equitativas e menos excludentes em Teutônia, por meio da

consolidação de iniciativas de agregação de valor nas unidades produtivas dos agricultores

familiares do município e seu escoamento, principalmente através de circuitos mercantis

locais ou regionais, com produtos de atributos diferenciados, duas problemáticas devam ser

enfrentadas como sendo centrais: a consolidação de um imaginário avesso a estas alternativas,

por parte dos agricultores familiares do município; e a consolidação de circuitos mercantis

locais que viabilizem o escoamento da produção beneficiada pelos agricultores em suas

unidades produtivas. Acerca da primeira problemática identificada, considera-se que visitas

de intercâmbio dos agricultores do município a regiões em que alternativas de produção e

comercialização paralelas à integração agroindustrial tenham se demonstrado viáveis, sejam a

maneira mais profícua para que se rompa com o imaginário consolidado entre os agricultores

familiares de Teutônia. No segundo problema apontado, observa-se a necessidade de se dar

atenção especial à criação de circuitos mercantis locais que viabilizem o escoamento da

produção dos agricultores familiares do município, a exemplo da Feira Livre dos Produtores

rurais.

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O que observou-se pelo interesse dos agricultores que estruturaram suas agroindústrias familiares ao longo da

década de 2000 na dinamização da Feira. Neste sentido, destacou-se que na percepção de técnicos que

trabalharam com estas iniciativas os agricultores de Teutônia seriam resistentes e teriam dificuldades em

realizar a comercialização de sua produção diretamente aos consumidores, o que se deveria pelas

características sócio-étnico-culturais destes agricultores. Assim, frisou-se a necessidade de coadunar o trabalho

com a Feira e agroindústrias familiares, em vista de a dinamização/consolidação da Feira poder viabilizar um

importante mercado para as agroindústrias familiares em Teutônia. Frente ao que, destacou-se que o estimulo a

estratégias de elaboração e/ou ao processamento de alimentos em unidades produtivas familiares, visando o

desenvolvimento rural mais equitativo e menos excludente, deve ser coadunado com o estimulo aos de

circuitos curtos de mercado. Lembre-se que esta importância dos circuitos curtos de mercado para a

dinamização de experiências como agroindústrias familiares também foi apontada por Maluf (2004),

Wilkinson (2008) e Ploeg (2008).

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 99

Comportamentos do consumidor de alimentos e suas maneiras de pensar a

alimentação.

Thelma Lucchese-Cheung

Mário Otávio Batalha

Jean Louis Lambert

Comportamentos alimentares

O que os consumidores pensam sobre sua alimentação? Quais os significados de comer

bem? Por que fazem algumas escolhas em detrimento de outras? Quais são as principais

restrições para o consumo de alimentos? Pretendendo-se responder essas perguntas, decidiu-

se realizar uma pesquisa para investigar as experiências de consumo de mil e seiscentos

brasileiros que habitam em quatro grandes capitais e revelar informações detalhadas sobre

seus comportamentos.

Lambert et al. (2005) afirmam que, especificamente para o caso de produtos alimentares,

os comportamentos devem ser interpretados como um fenômeno que ultrapassa atos de

compra e, por isso, o conteúdo de um carrinho de supermercado pode não representar o que é

encontrado no prato do consumidor. Deve-se investigar as especificidades do consumo, levar

em conta as incertezas dos consumidores quanto à incorporação de certos alimentos,

compreender as maneiras como os indivíduos percebem a comida e, assim, definem suas

preferências alimentares (CASOTTI, 2002; CHEN, 2008).

Para Etilé (2007) os estudos que tratam das experiências de consumo alimentar dos

comensais podem recuperar nas suas declarações, por exemplo, informações sobre as normas

sociais que influenciam as suas maneiras de pensar a alimentação, de categorizar os alimentos

em proibidos e bons para o consumo e de julgar a corpulência.

Assim, para a realização da pesquisa mais explicativa sobre os comportamentos

alimentares que se pretendeu realizar, considerou-se que sobre as práticas alimentares agem,

além dos fatores econômicos, outros fatores socioculturais. Optou-se, então, pela adoção de

um referencial teórico e metodológico que possibilitasse que um quadro mais detalhado

acerca desses comportamentos fosse obtido. Por fim, cabe mencionar que contribuições de

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 100

algumas teorias da sociologia e da antropologia da alimentação tiveram de ser utilizadas de

modo a auxiliar a interpretação dos dados coletados em campo.

As concepções do comer e os determinantes do consumo

O caráter cotidiano e repetitivo do ato alimentar não pode resumi-lo a um ato banal.

Para serem consumidos, os produtos alimentares devem, necessariamente, ser ingeridos. Tal

condição confere aos alimentos uma característica particular quando comparados aos demais

produtos consumidos diariamente pelos indivíduos. Nesse sentido, a alimentação humana

pode ser interpretada como uma ferramenta a serviço, entre outros exemplos, da saúde, do

prazer e da aparência física (FISCHLER, 2001; POULAIN, 2002).

Poulain (2004) afirma que, devido os alimentos serem incorporados (transpassam a

barreira do corpo), as práticas alimentares podem representar maneiras de expressão dos

indivíduos, contribuir na afirmação das suas identidades sociais e no processo de construção

dessas identidades. Assim, para os estudos que reconhecem que práticas alimentares não são

determinadas, apenas, por fatores econômicos ou utilitários, mas também sofrem influência de

aspectos simbólicos ligados à alimentação, faz-se necessário considerar as dimensões

cognitivas e imaginárias do ato alimentar (ETILÉ, 2007).

Em relação à construção das identidades sociais pela alimentação, Fischler (2001)

explica que a incorporação da comida é uma ação que contribui à manutenção e

transformação do corpo físico, bem como uma ação que está ligada, em um plano simbólico, à

construção da identidade dos sujeitos (corpo como identidade social), pois segundo o

Princípio da Incorporação "os indivíduos são aquilo que consomem".

A antropologia, a psicologia e a ciência cognitiva afirmam que, de modo geral, os

indivíduos, quando pensam sobre sua alimentação, utilizam um modo de funcionamento

intelectual denominado pensamento mágico. Essas teorias sugerem que o pensamento mágico

constitui uma tentativa de racionalizar aquilo que não é conhecido através de relações de

causalidade entre eventos independentes. Assim, as pessoas acabam acreditando que aquilo

que é incorporado pode modificar o estado de um organismo, sua natureza e,

conseqüentemente, sua identidade (FISCHLER, 2001; POULAIN, 2004). Com isso, Fischler

(2001) define o ser humano como uma criatura onívora que se alimenta de carnes, de vegetais

e do imaginário.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 101

Também, para auxiliar na reflexão sobre as intervenções dos determinantes

socioculturais nos comportamentos alimentares dos grupos de indivíduos de uma sociedade,

sobretudo no que diz respeito à percepção em relação à comida e suas preferências, as

análises dos discursos dos indivíduos foram realizadas à luz da teoria das Representações

Sociais. Cabe destacar que, embora a teoria das Representações Sociais seja pouco utilizada

em Marketing, nos trabalhos de Solomon (2002) e Blackwell, Miniard e Engel (2005) os

autores, apenas, mencionam que as representações humanas podem ser interpretadas como

fatos da memória que influenciam a escolha dos consumidores.

Dentre outros autores, Lahlou (1998), Poulain (2002), Gallen (2005) e Bartels e

Reinders (2010) afirmam que as preferências e atitudes dos seres humanos em relação aos

alimentos que consomem têm fortes vínculos com os seus sistemas de representação social.

Moscovici (2003) explica que essas representações devem ser entendidas como uma maneira

específica de compreender e comunicar algo. O autor reforça que o objetivo das mesmas é dar

sentido aos estímulos e objetos, ordenando e influenciando as percepções dos indivíduos.

Dessa forma, uma representação social pode ser definida como um sistema de valor, o qual

estabelece uma ordem que possibilita que as pessoas de uma dada sociedade se orientem e se

comuniquem. Cabe acrescentar que esse sistema de valor (conjunto de normas, valores,

crenças e tabus) é transmitido aos sujeitos pelo sistema social e ideológico no qual estão

inseridos. Assim, quando se pretende compreender as ações comportamentais, considerando

as interações dos sujeitos nos ambientes que participam e as ações de normas culturais sobre

tais comportamentos, Costalat-Founeau (2002), Huotilainen e Tuorila (2005), Cooks (2009),

Bartels e Reinders (2010) destacam a contribuição da teoria das representações sociais

naqueles estudos.

As análises sobre as representações possibilitam o entendimento de como os objetos

são interpretados pelos indivíduos e a posição que os mesmos ocupam nos campos social e

cultural na sociedade (MOSCOVICI, 2003). Representações individuais, pontos de vista

particulares de um indivíduo, estão ligados a uma dada realidade comum, ou seja, podem ser

considerados como um subconjunto das representações sociais.

Para Rozin, Riklis e Margolis (2004) os atos alimentares podem provocar tanto

integração quanto diferenciação social na medida em que reforçam as ligações sociais entre os

indivíduos. Assim, a cozinha é apontada como determinante das representações dos

indivíduos, porque, segundo Fischler (2001), é capaz de tornar públicas as normas culturais de

um povo. Ingredientes de base, temperos utilizados, a ordem dos pratos (salgados e doces, por

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 102

exemplo), as maneiras de cozimento dos alimentos e as ocasiões de consumo são exemplos

das normas mencionadas.

Para a captura de informações acerca das representações sociais, Jodelet (2001) afirma

que a investigação dos discursos dos indivíduos, quando direcionados a opiniões sobre sua

alimentação, revela, entre outras informações, os critérios de escolha, as maneiras de

categorizar e separar os alimentos em classes, as ações de valores e normas sociais sobre esses

atos, por exemplo, em relação ao que se deve comer para manter uma boa saúde e ao que se

deve evitar para não comprometer a boa saúde. Nesse sentido, Poulain (2002), Cooks (2009)

e Bartels e Reinders (2010) afirmam que os discursos são reveladores das diferentes relações

que esses estabelecem entre alimento e forma física, alimento e saúde e alimento e prazer.

Em seus estudos sobre as representações sociais da comida no meio urbano brasileiro,

Garcia (2004) lembra que os alimentos são percebidos pelos indivíduos a partir de uma lente

impregnada de valores e conceitos, que faz com que esses sejam triados e integrados em

velhas ou novas representações. A autora reforça que a percepção da realidade é possível

graças às representações, forma de conhecimento do senso comum. Porém, no caso do estudo

de práticas alimentares de indivíduos urbanos, a autora afirma que, além das informações

científicas incorporadas às práticas alimentares pela transformação do senso comum, agem

sobre as representações sociais da alimentação a publicidade dos produtos alimentícios, as

condições de disponibilidade, o tempo e o espaço, os costumes alimentares, a origem cultural

e as experiências orgânicas.

Ressalta-se, então, que as práticas alimentares dos indivíduos podem ser determinadas

por restrições materiais, mas também estão inscritas em um sistema complexo de funções

sociais e simbólicas. Sabendo-se que os padrões e a estrutura das refeições são culturalmente

específicos para cada sociedade e seus arranjos refletem as diferentes identidades sociais, os

gostos ligados ao cotidiano, ao festivo, ao luxo ou à necessidade, apresenta-se a seguir a

tipologia de consumidores brasileiros e a análise das relações dos grupos encontrados com os

alimentos.

Metodologia

Os resultados apresentados neste trabalho estão inseridos em uma ampla pesquisa que

procurou investigar a ação de diferentes determinantes (sociodemográficos, socioeconômicos

e socioculturais) sobre as práticas alimentares de brasileiros urbanos. Tal pesquisa foi

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 103

financiada pela Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), ligada ao Ministério de Ciência

e de Tecnologia, possibilitando a realização de entrevistas pessoais junto a 1600

consumidores brasileiros, igualmente distribuídos entre as cidades de Porto Alegre, São

Paulo, Goiânia e Recife.

Para a coleta de dados, equipes especializadas foram contratadas para a escolha da

composição da amostra e aplicação do questionário (os indivíduos foram entrevistados na rua

e em diferentes bairros de cada cidade). Com base nos dados divulgados pelo Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o qual disponibiliza informações sobre as

características de toda a população das capitais entrevistadas, cotas foram estipuladas quanto

aos perfis de consumidores que deveriam ser entrevistados. Pretendeu-se entrevistar grupos

de indivíduos que representassem perfis sociodemográficos que se aproximassem aos da

população. Vale acrescentar que a composição da amostra não pretendeu ser representativa da

população de referência. Considerou-se que o tamanho da amostra (1600 indivíduos) e sua

característica heterogênea poderiam tornar possível, a um estudo que visou analisar os

comportamentos de consumo, escolher critérios de comparação (por exemplo, consumidores

assíduos e esporádicos de um produto alimentar), verificar diferentes comportamentos de

consumo (segundo suas idades, rendas, gêneros, profissões, etc.) e identificar consumidores

marginais e potenciais de determinados alimentos. Para facilitar a interpretação dos

resultados, uma estratificação quanto ao gênero (homens e mulheres), idade (indivíduos com

idade maior do que 20 anos) e à renda dos consumidores (menor do que 2 salários mínimos, 2

a 5 salários mínimos, 5 a 10 salários mínimos, 10 a 20 salários mínimos, 20 a 30 salários

mínimos e mais do que 30 salários mínimos) foi realizada.

Para tratar os dados coletados em campo e realizar agrupamentos das respostas, optou-

se por efetuar uma análise de correspondência múltipla seguida por uma classificação

ascendente hierárquica, análise de cluster, com auxílio do software francês SPAD. A

diferença dessas análises multivariadas das análises clássicas é que a análise de

correspondência múltipla permite avaliar a relação entre um conjunto muito grande de

variáveis e a de classificação ascendente hierárquica permite encontrar a tipologia de

consumidores de alimentos.

Sobre as variáveis ativas (chamadas de determinantes dos comportamentos de

consumo) cálculos de distância dos indivíduos são efetuados. Com isso, a repartição dos

indivíduos e as modalidades de variáveis (por exemplo, a variável gênero conta com duas

modalidades, homem e mulher) mais próximas podem ser representadas em um espaço

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 104

multidimensional. Os fatores representados sobre eixos fatoriais correspondem aos cálculos

de distância por ordem decrescente. Escofier e Pages (1998) e Lebart et al (1995), reforçam

que a métrica do Qui-quadrado (χ2) permite a comparação de linhas (indivíduos) e colunas

(modalidades). Dessa forma, a semelhança entre dois indivíduos foi definida pelo cálculo da

distância do Qui-quadrado (χ2), ou seja, distância entre os seus perfis (modalidades

escolhidas), a qual desempenha um papel semelhante ao cálculo do desvio padrão utilizado no

estudo de variáveis numéricas ou contínuas.

Os planos fatoriais representados nas figuras devem ser interpretados como mapas,

onde a posição que os indivíduos ocupam está muito relacionada à semelhança das suas

respostas sobre as variáveis ativas. A distância de um grupo do centro do plano fatorial reflete

sua diferença em relação aos indivíduos situados no ponto central (sem muita

representatividade estatística). Uma proximidade maior ou menor dos grupos no mesmo plano

fatorial implica em uma maior ou menor correlação entre as modalidades de variáveis que

caracterizam tais grupos, principalmente quando estão afastadas do ponto central. Quanto

mais afastados estão os grupos do ponto central, maior o coeficiente de correlação entre as

variáveis do cluster e o eixo fatorial.

As variáveis ativas utilizadas neste estudo para a análise de correspondência múltipla

foram as questões referentes:

a) à organização no tempo das refeições (duração, frequência de consumo,

regularidade e valor atribuído às refeições – refeições festivas e ordinárias);

b) à organização no espaço (no domicílio ou fora do domicílio);

c) ao grau de comensalidade (refeição convivial ou solitária);

d) ao conteúdo das refeições (alimentos sólidos e líquidos, tipos de pratos e de

culinárias).

Para testar o que determinou os diferentes comportamentos declarados, variáveis

explicativas dos comportamentos, chamadas de ilustrativas, foram introduzidas no software.

Como exemplo dessas variáveis tem-se: características demográficas e socioeconômicas dos

indivíduos (gênero, idade, número de pessoas na família, escolaridade, profissão, renda e

tamanho da cidade onde mora).

A análise de correspondência permitiu recuperar os principais tipos de

comportamentos e seus determinantes. A análise de dados e dos planos fatoriais foram

utilizadas para realizar os agrupamentos dos indivíduos em uma tipologia de síntese. Para

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 105

minimizar o caráter empírico deste método, uma classificação ascendente hierárquica foi,

então, efetuada. Assim, os indivíduos foram classificados a partir das distâncias calculadas na

análise de correspondência. O número de grupos de indivíduos foi escolhido em função do

grau de síntese desejado e da capacidade de explicar o fenômeno estudado.

As informações sobre as práticas alimentares dos consumidores entrevistados foram

recuperadas a partir dados de práticas declaradas pelos consumidores (a técnica de coleta

adotada foi a survey). Em cada grupo ou classe de indivíduos, a porcentagem apresentada ao

lado de cada modalidade de variável correspondeu a sua posição significativa no eixo.

Maiores detalhes sobre as técnicas empregadas podem ser encontrados em Escofier e Pages

(1998) e Lebart et al. (1995).

Diferentes comportamentos, diferentes maneiras de pensar a alimentação: resultados e

análise das declarações de consumo

Sabendo-se que as representações orientam comportamentos, buscou-se melhor

compreender o que os indivíduos pensam sobre a alimentação e como tal modo de ver os

alimentos influencia os seus comportamentos. As respostas obtidas a partir de

questionamentos sobre o que os consumidores pensam quando vão se alimentar, sobre as

razões do consumo ou rejeição de certos produtos alimentares, bem como sobre a opção

desses em relação a certos perfis de comportamentos alimentares são interpretadas por este

trabalho como julgamentos que possibilitam que normas sociais e valores, fortes

determinantes dos comportamentos, sejam conhecidos. Pretendeu-se, com isso, conhecer

algumas das representações alimentares dos indivíduos entrevistados, ou seja, verificar como

os mesmos concebem ligações entre alimentação e saúde, alimentação e estética, alimentação

e prazer e alimentação e sobrevivência.

Quando questionados sobre o que pensam quando se alimentam, durante a semana e

no domingo (dia festivo), as possibilidades de respostas foram: durante a semana (ou no

domingo), quando me alimento penso na saúde; no prazer; na forma física; na minha tradição

ou não penso nem no alimento e nem nas suas consequências para o corpo.

Alguns perfis de consumo foram apresentados aos consumidores e estes foram levados

a escolher aquele que mais se aproximava ao perfil alimentar declarado pelos mesmos. Assim,

no quadrante constam:

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 106

a) perfil A: segue conselho de médicos e nutricionistas e, com isso, pode evitar

ou retardar certas doenças, ficando em forma até idade mais avançada;

b) perfil B: almoça com amigos e janta com família. Detesta ficar sem uma

refeição ou ser obrigado a comer muito rápido;

c) perfil C; preocupa-se em controlar o apetite e o peso. Gostaria de mudar

alguns hábitos alimentares e fazer mais esporte, mas não consegue;

d) perfil D: considera que comer é um dos grandes prazeres do ser humano.

Gosta de falar de comida e preocupa-se com a qualidade daquilo que

consome;

e) perfil F: normalmente encontra dificuldades em obter os alimentos que

gostaria de comer. Assim, quando tem oportunidade, come em grande

quantidade.

Além disso, cabe acrescentar que os questionamentos realizados sobre as razões de

consumo ou rejeição de produtos light e/ou diet foram utilizados como indicadores de

representação social. Após a realização de comentários sobre os grupos formados são

apresentados os vocabulários que mais se repetiram e melhor representaram a opinião dos

grupos sobre o significado de comer bem (questão aberta proposta para enriquecer o nível de

informação acerca da representação social da comida).

Para uma melhor interpretação dos resultados e contextualização dos grupos, julgou-se

conveniente identificar, inicialmente, os principais grupos sociais que melhor caracterizaram a

amostra entrevistada e, a partir deste resultado, analisar as relações entre tais grupos e certas

práticas de consumo alimentar declaradas. Assim, os grupos sociais que melhor

caracterizaram a população estudada foram:

a) pobres urbanos com baixo nível de instrução: 16% de toda a amostra,

melhor representados pelos indivíduos que declararam renda inferior a dois

salários mínimos, indivíduos da cidade de Recife, indivíduos que têm

primeiro grau incompleto, aqueles que não têm freezer, forno de

microondas, não contam com empregada doméstica no domicílio,

indivíduos que declararam vendedores do comércio e dona de casa como

profissão, domicílios em que a mulher não trabalha e que conta com mais de

cinco pessoas;

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 107

b) classe popular com nível de instrução deficitário: 23% de toda a amostra,

grupo melhor representado por indivíduos que declararam renda de 2 a 5

salários mínimos, indivíduos habitantes de Goiânia, indivíduos analfabetos,

aqueles que não têm freezer, forno de microondas e não contam com

empregada doméstica no domicílio, indivíduos que declararam trabalhador

da produção e dona de casa como profissão, domicílios em que a mulher

não trabalha, mulheres em relação aos homens responderam a um maior

número de questões de modo semelhante, tornando-as mais representativas

deste grupo;

c) aposentados: 7% de toda a amostra, grupo melhor representado por

indivíduos aposentados, com mais de 60 anos, aqueles que declararam renda

de 5 a 10 salários mínimos, domicílios que contam com 2 ou 1 pessoa,

aqueles que têm freezer, possuem primeiro grau completo, domicílios em

que a mulher não trabalha;

d) classe média com nível intermediário de instrução: 30% de toda a amostra,

grupo melhor representado por indivíduos que declararam renda de 5 a 10

salários mínimos, indivíduos habitantes de São Paulo e Porto Alegre,

indivíduos com segundo grau completo, aqueles que têm freezer,

domicílios em que a mulher trabalha fora, indivíduos que declararam

servidor administrativo, vendedor do comércio e técnico com nível médio

como profissões que melhor representaram as escolhas de tal grupo,

domicílios que contam com 5 pessoas;

e) jovens académicos: 9% de toda a amostra, grupo melhor representado por

indivíduos com nível superior incompleto, profissão estudante, com idade

de 20 a 30 anos, residentes de Porto Alegre melhor representaram o grupo,

domicílios que contam com forno de microondas, domicílios com renda de

5 a 10 e 10 a 20 salários mínimos;

f) abastados com nível superior de instrução: 15% de toda a amostra, grupo

melhor representado por indivíduos que declararam profissionais de

Ciências ou Artes e Membro Superior como profissão, contam com

empregada, com forno de microondas e freezer, foram melhor representados

pelas maiores rendas, sendo 20 a 30 salários mínimos e mais do que 30

salários mínimos, domicílios em que a mulher trabalha fora, residentes de

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 108

Porto Alegre melhor representaram o grupo, grupo melhor representado pela

faixa etária 41 a 50 anos.

A seguir os resultados do trabalho são apresentados e comentados.

Figura 1 - Tipologia de consumidores: os alimentos e as representações a ele agregadas

Fonte: Figura elaborada pelos autores

A análise das modalidades que melhor contribuíram para a formação dos eixos

fatoriais permitiu que oposições marcantes quanto às maneiras que os grupos declararam

pensar sua alimentação fossem verificadas. Constatou-se que os mais preocupados com a

saúde opõem-se aos que dão prioridade ao hedonismo alimentar e aos que dão valor às

tradições alimentares, ou melhor, com os grupos que pensam, sobretudo, no prazer que a

alimentação lhes proporciona, bem como em seu caráter cotidiano ou rotineiro. Por outro

lado, constatou-se, também, uma oposição entre o grupo melhor caracterizado pela declaração

de que não pensam na alimentação nem sua consequência para o corpo e o grupo melhor

representado por uma relação com a alimentação mais ligada à estética.

Com base nas declarações reveladas pelo grupo 5/5 (alimento-saúde), as modalidades

das variáveis que melhor caracterizaram tal grupo revelaram um modo particular de pensar

sobre sua alimentação, sobretudo quanto às representações construídas pela preocupação com

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 109

a saúde. Contudo, cabe destacar que tal classe faz parte do grupo que não mencionou a

ingestão de verduras ou legumes, preferem consumir carnes com mais gordura e alimentos

que lhes garantam maiores sensações e saciedade. Sendo melhor representados por indivíduos

que declararam os mais baixos níveis de escolaridade e profissões que exigem mais esforço

físico do que intelectual, poder-se-ia dizer que a maneira como realizam ligações da

alimentação com a saúde está mais relacionada à preocupação em ter saúde para se manter

vivo e ter força para trabalhar (no caso dos aposentados, a preocupação em alimentar-se para

manter-se vivo estaria mais próxima à representação dessa classe em relação aos alimentos).

Em relação à declaração do consumo de produtos light e/ou diet, a investigação quanto

ao consumo semanal desses produtos levou à constatação de que a frequência do consumo

que melhor caracterizou as declarações do grupo foi duas vezes na semana e quatro vezes na

semana. Ao contrário das preocupações estéticas e dietéticas que poderiam caracterizar um

modelo de corpo magro e a adoção de alimentos menos calóricos (light) ou que apresentam

substituição total de alguma substância presente na composição dos mesmos (no caso de

produtos diet), os indivíduos desse grupo, além de declararem consumi-los por ordem médica,

interpretam a ingestão desses produtos como um benefício à boa saúde. Tal informação é

interessante, pois para o grupo que associa a saúde à noção de ausência de doenças e que

privilegia a ingestão de alimentos que garantam maior condição de saciedade (carne gorda,

por exemplo), a declaração do consumo de produtos chamados light e/ou diet como

mantenedores da boa saúde demonstra que, para certos grupos de indivíduos brasileiros, as

informações quanto ao significado da característica light e/ou diet de um produto alimentar e

suas ações no organismo ainda são deficitárias.

No que concerne à análise do conteúdo das declarações dos indivíduos sobre o

significado de “comer bem”, constam no quadro 1 informações sobre as declarações de cada

grupo encontrado e outras análises.

Quadro 1 - Significados de comer bem e representações da comida para os grupos da tipologia

Grupo Para você, o que significa

“comer bem”

As diferentes maneiras de pensar a

alimentação

Grupo 5/5

(representando

40% das

respostas de toda

a amostra

entrevistada)

“É comer arroz, feijão e carne,

aquilo que sustenta!”; “comida

balanceada com bastante verdura

e, principalmente, arroz, feijão e

carne”, comida caseira e com

qualidade como um arroz, feijão

e uma carne”, “alimentar-se bem

com arroz, feijão e carne”, “ter

vontade de comer para ter boa

Alimentação e saúde (os alimentos

interpretados como mantenedores da boa

saúde e da força ou disposição física). Um

modelo mais energético caracteriza o

comportamento alimentar do grupo,

mobilizando como representações

simbólicas a força proporcionada pela

incorporação trio arroz, feijão e carne.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 110

Grupo Para você, o que significa

“comer bem”

As diferentes maneiras de pensar a

alimentação

saúde”.

Grupo 4/5

(representando

26% das repostas

de toda a amostra

entrevistada)

“É comer tudo o que gosta, é ter

uma dieta balanceada com todos

os alimentos que gosta, é comer

com satisfação, é comer uma

comida variada e gostosa, comer

é um dos grandes prazeres da

vida”.

Alimentação e prazer. A busca pela

convivialidade nas refeições, a refeição

interpretada sempre como um momento

festivo, a rejeição de alimentos tipo light

ou diet explicam a representação da

comida associada ao prazer.

Grupo 3/5

(representando

15% das

respostas de toda

a amostra

entrevistada)

“É comer uma comida caseira,

comer uma comida boa e

saborosa, comer uma comida

saudável que não faça mal,

sentir-se satisfeito com uma

comida bem feita, fazer as três

refeições e se sentir satisfeito”.

Alimento e tradição. A preservação

simbólica do familiar e da casa é

encontrada nas expressões “comida

caseira”. Afirmam ter uma relação com o

corpo menos reflexiva ou estética e um

modelo alimentar mais próximo do

tradicional, onde a família populosa (cinco

pessoas) partilha as refeições,

interpretadas como ocasiões sociais da

vida diária e marcada pela sociabilidade.

Grupo 2/5

(representando

11% das

respostas de toda

a amostra

entrevistada)

“Alimentar-se direito, é pensar

na saúde e não comer proteínas

em excesso, priorizando as

vitaminas e sais minerais, é

comer uma comida saudável e na

hora certa, comer equilibrado em

termos nutricionais, comer certo

para não sentir culpa”.

Alimento como meio de conseguir uma

boa forma física. Declarações que revelam

uma forma de pensar sobre a alimentação

que privilegia a forma física e a

preferência pelo modelo estético

(preocupação no que concerne a

alimentação e seus efeitos para a gestão do

corpo e a construção de um corpo magro

de socialmente aceitável).

Grupo 1/5

(representado por

9% das repostas

de toda a amostra

entrevistada)

“Comer bem é ter o que comer, é

conseguir fazer as três refeições,

é comer o que gosta sem

restrições, é comer para manter a

saúde e não ficar doente, é ter

uma alimentação sadia, é comer

o que gosta quando quiser, não

comer saladas e frutas, mas

comidas que sustentem”.

Alimento é a sobrevivência. Comer bem

representa para os indivíduos do grupo

satisfazer uma necessidade vital, ou seja,

estar saciado e não sentir fome. Os efeitos

dos alimentos sobre o corpo são

interpretados quanto ao seu poder em

garantir a sensação de saciedade. As

preocupações com a qualidade e higiene

dos alimentos estão ligadas às

preocupações quanto à falta de saúde que

podem levar a uma indisposição ao

trabalho e, com isso, a uma maior privação

alimentar.

Fonte: Dados coletadas através de pesquisa de campo.

Com base no que foi apresentado no quadro 1, torna-se interessante citar o que foi

descoberto por Canesqui e Garcia (2005) acerca das representações da comida para grupos de

indivíduos urbanos brasileiros de baixa renda. Visando melhor conhecer as maneiras que

indivíduos dessa classe pensam sobre a comida, a autora constatou que o significado de comer

bem, também, foi relacionado às preocupações quanto à segurança dos alimentos. Comer

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 111

bem, segundo lembra a autora, seria "comer menos mal possível". Assim, para os indivíduos,

o que seria consumido deveria proporcionar sensações de saciedade e não mal estar ou

doenças (o corpo alimentado significa disponibilidade para o trabalho e remuneração).

O estudo das representações da comida mostra que os alimentos, impregnados de

valores simbólicos, refletem identidades sociais. Dessa forma, os alimentos categorizados

como aqueles que não fazem parte do campo do "possível alimentar" de um grupo podem

desencadear atitudes negativas dos indivíduos em relação aos mesmos. Com isso, as formas

como pensam sobre sua alimentação e a hierarquização dos alimentos que resulta dessas

representações levam a comportamentos alimentares que marcam identidades e barreiras de

um grupo em relação a outros.

Conclusões

Neste trabalho, pretendeu-se ressaltar a importância da realização de análises mais

explicativas e menos descritivas das práticas alimentares dos consumidores. Para tanto,

investigações foram realizadas sobre as experiências de consumo dos comensais. Buscou-se

estudar tais comportamentos a partir de informações reveladas pelos próprios entrevistados

sobre os produtos alimentares consumidos ou rejeitados, as suas formas de pensar sua

alimentação, bem como sobre as suas principais restrições ao consumo. Com isso, foi possível

realizar um estudo que considerasse além da ação dos determinantes socioeconômicos das

práticas alimentares dos indivíduos, a importante influência dos aspectos socioculturais sobre

a maneira como os mesmos percebem os alimentos e adotam comportamentos de consumo.

A consideração da alimentação como um fenômeno sociocultural permitiu entender

que os alimentos (impregnados de significados simbólicos) são difusores de identidades

sociais e, também, contribuem no processo de construção dessas identidades (crença na

incorporação dos componentes nutricionais e simbólicos dos alimentos - "os indivíduos são

aquilo que consomem"). Além disso, cabe acrescentar que os indivíduos são seres sociais e,

segundo influências de valores, normas, tabus e crenças, suas práticas alimentares

representam meios de lhes aproximar dos seus grupos de pertencimento ou referência ou,

ainda, de lhes distanciar socialmente.

Os dados deste trabalho podem ser úteis tanto para os agentes dos poderes público

quanto do privado. Para os agentes do Poder Público, o conhecimento das diferentes

representações sociais dos alimentos poderia contribuir para uma melhor orientação das

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 112

políticas de saúde pública que pretendem melhorá-la através da alimentação. Conforme já

comentado, os indivíduos têm concepções diferentes dos alimentos, bem como percebem seus

corpos de maneiras distintas. Julga-se, então, conveniente àqueles que pretendem, entre outras

ações, realizar campanhas de reeducação alimentar, a busca por informações sobre as

maneiras como os indivíduos percebem os alimentos, sobre as suas necessidades quotidianas,

bem como sobre os seus sistemas de valor que também guiam suas escolhas alimentares e,

assim, representam importantes determinantes dos comportamentos dos comensais. Já em

relação às ações dos agentes dos poderes privados, o conhecimento das representações sociais

da comida poderia, entre outros exemplos, auxiliá-los na definição de suas estratégias de

segmentação de mercado, na elaboração de novos produtos, na promoção dos mesmos e na

escolha dos melhores canais de distribuição para a comercialização dos produtos alimentares.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 114

SEGUNDA PARTE

MERCADOS LOCAIS E CADEIAS CURTAS: RECONECTANDO

PRODUTORES E CONSUMIDORES

Plantando ideias inovadoras, colhendo transformações na agricultura

familiar: a produção de base ecológica e a construção social de mercados no

sul do Rio Grande do Sul

Monique Medeiros

Flávia Charão Marques

Introdução

Nos dias atuais, mercados para produtos orgânicos ou ecológicos encontram-se cada

vez mais em evidência no país e no mundo. A cada dia, mais preocupados com sua saúde,

consumidores de todo o mundo, tendo como meta obter uma alimentação saudável, têm

aderido a novos padrões de consumo, seja aqueles que incluem alimentos livres de

agroquímicos e/ou transgênicos, ou obtidos em sistemas socialmente justos. Com a ampliação

da demanda por esses alimentos, a área cultivada com os chamados orgânicos vem

aumentando no Brasil, os acréscimos são reportados como significativos, embora ainda seja

difícil estabelecer comparações entre o volume comercializado de alimentos convencionais e

de alimentos de base ecológica, bem como a formação de preços entre os produtos oriundos

dos diferentes sistemas.

O debate com relação ao lugar dos mercados no processo de fortalecimento da

agricultura de base ecológica é marcado por inúmeras controvérsias. Entre as diversas

posições sobre o assunto, destacam-se aqui duas, uma englobando aqueles que percebem a

globalização do sistema agroalimentar como um modelo que deve ser incorporado por todos

os produtores e acreditando na necessidade de se adaptar, da melhor maneira possível, às

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 115

regras de um mercado influenciado por um regime dominante, fortemente concentrado em

padrões de produção capitalista, e onde as normas de qualidade são crescentemente restritas.

Nesse sentido, a certificação, a ênfase no acesso aos mercados de exportação e às prateleiras

dos grandes supermercados e a regulação governamental como forma de garantir a identidade

do produto orgânico, como vem ocorrendo no Brasil nos últimos anos, são entendidos como o

único caminho capaz de assegurar a viabilidade econômica de uma agricultura

ambientalmente sustentável (SCHMITT; GUIMARÃES, 2008).

Na outra posição, encontram-se aqueles que acreditam ser possível transformar as

relações de produção, distribuição e consumo dominantes no atual sistema agroalimentar,

incorporando a esta modificação não somente variáveis relacionadas à sustentabilidade

ambiental dos sistemas produtivos, como também valores éticos, sociais e culturais.

Princípios como justiça social, soberania alimentar, reciprocidade, autonomia, respeito à

diversidade cultural, entre outros. Sua tradução prática, do ponto de vista das relações sociais

que permeiam a produção e o consumo, são afirmados como dimensões-chave do processo de

transição para uma agricultura de base ecológica (ARAÚJO et al., 2007; SCHMITT;

GUIMARÃES, 2008).

Apoiados pelos atores sociais favoráveis a esta segunda posição, como algumas

organizações governamentais e não governamentais, consumidores específicos, ativistas,

acadêmicos, entre outros, os agricultores familiares lutam para conseguir que a agricultura de

base ecológica conquiste importantes mercados, através da reorganização do sistema

produtivo e organizacional.

Feiras de produtos ecológicos, cooperativas de consumo e entrega direta de cestas de

alimentos são alguns exemplos de iniciativas que buscam reduzir a distância entre produtores

e consumidores, valorizando circuitos locais de comercialização e reforçando formas

comunitárias de organização social. Dessa forma, associações e cooperativas desempenham

papel protagonista no favorecimento da comercialização dos produtos ecológicos procedentes

deste segmento da agricultura (SCHMITT; GUIMARÃES, 2008).

Mais do que facilitar o acesso à assistência técnica, diferentes formas de organizações

de agricultores têm propiciado a inserção dos mesmos em mercados locais e regionais,

contribuindo para o desenvolvimento de sistemas de cultivo de alimentos de base ecológica e

decorrente aumento na oferta desses produtos. Permanecer ou não produzindo sob os sistemas

de base ecológica, para os agricultores familiares, está fortemente relacionado à viabilidade de

comercialização de seus produtos. Na maioria dos casos de desistência ou retorno para o

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 116

sistema de produção convencional, a principal causa constatada é a dificuldade em manter

níveis de renda adequados.

Uma das chaves para o apoio ao desenvolvimento rural consiste em identificar e

qualificar diferentes sistemas de produção e abastecimento, bem como as relações sociais

envolvidas em determinados processos do trabalho agrícola. No Brasil, as feiras locais e o

mercado institucional proporcionam exemplos de mercados que produzem vínculos sociais e

mobilizam a sociedade por meio das relações diretas entre produtores e consumidores

(SABOURIN, 2009), fato que diferencia esses mercados dos mercados conduzidos em

sistemas oligopolizados e centralizados de comercialização.

Apesar de esses mercados serem vias muito significativas para a reprodução

econômica de algumas famílias vinculadas à produção agrícola de base ecológica, eles ainda

são pouco ampliados, possuindo restrições com relação ao número de agricultores envolvidos,

e limitações de funcionamento, como momentos de baixa rentabilidade, que podem fazer com

que o agricultor tenha consideráveis prejuízos, o que evidencia a necessidade de adaptações e

reconstruções desses mercados, assim como o estabelecimento de novos e seguros espaços de

comercialização para esses agricultores.

Permeada por tais reflexões, essa pesquisa essencialmente qualitativa, que compreende

relações e processos que envolvem agricultores familiares e outros atores sociais relacionados

com a construção social de mercados, mais especificamente, a operação e o desenvolvimento

de cadeias curtas de abastecimento e sua imersão em valores e práticas sociais específicas, foi

realizada nos Municípios de Pelotas e São Lourenço do Sul, ambos localizados no Estado do

Rio Grande do Sul, e apresenta como debate central as relações entre consumidores e

agricultores familiares em mercados locais, abrangendo feiras, redes de comercialização,

assim como suas interfaces de cooperação e conflitos, e o papel e a influência do Estado e das

políticas públicas, com ênfase no PAA na determinação de modelos agroalimentares

localizados.

Realizando visitas específicas, ou até mesmo por encontros “casuais”, durante algumas

semanas entre os meses de março e junho de 2010, foi possível conviver no dia a dia com

diversos atores sociais envolvidos com a construção social de mercados locais e observar suas

atividades cotidianas, como o trabalho nas feiras livres, os eventos regionais da agricultura

familiar, os encontros e reuniões entre agricultores, as atividades nas lavouras e na produção

agroindustrial.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 117

O recorte empírico e a problemática que direciona a pesquisa

Na Região Sul do estado do Rio Grande do Sul, não diferente de outros lugares do

país, a agricultura familiar sofreu severas transformações produtivas e tecnológicas com a

chegada da modernização ao espaço rural62

, o que influenciou a organização e a vida

comunitária.

A modernização trouxe variados problemas, especialmente, no que tange à

desigualdade social e à sustentabilidade em suas várias dimensões (econômica, ambiental,

social, cultural). Assim, a produção agrícola baseada nos princípios da modernização

começou a ser questionada ainda nos anos 1970, quando a elevada demanda por recursos

naturais e energéticos, inclusive de fontes não renováveis, passou a chamar a atenção de

ambientalistas e pesquisadores (ALMEIDA; NAVARRO, 1997).

Principalmente nas décadas de 1980 e 1990, quando os debates que questionavam

essas diretrizes ‘modernas’ estavam mais amadurecidos, a Comissão Pastoral da Terra (CPT)

da Diocese de Pelotas iniciou alguns trabalhos, que se pode identificar como ‘contra a

corrente’, incentivando a produção agrícola ecológica entre os agricultores familiares do

município. A necessidade de ampliar fronteiras e de contar com apoio, principalmente

técnico, fez com que a CPT, poucos anos depois, firmasse um convênio com o Centro de

Apoio ao Pequeno Agricultor (CAPA), uma organização não governamental vinculada à

Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), com a qual é articulada através

de distintas instâncias63

.

A parceria, inicialmente criada com o objetivo de levar assistência técnica na área de

Agroecologia aos agricultores familiares de Pelotas, foi mais longe. Como o CAPA já

desenvolvia atividades nesse âmbito no município de São Lourenço do Sul, desde 1982, as

fronteiras foram ampliadas e ambos os municípios passaram a ser foco dos trabalhos.

Do aperfeiçoamento das ações e das relações envolvidas nesses trabalhos surgiram as

primeiras organizações com caráter de integração destas iniciativas. No ano de 1988, foi

62

O que se convencionou chamar de modernização do espaço rural ou “modernização da agricultura” refere-se a

um complexo processo de transformações nos espaços agrícola e rural do mundo desencadeado a partir da

década de 50, no Brasil especialmente a partir de meados da década de 60, que correspondia, efetivamente, à

integração da agricultura ao processo de acumulação de capital (ALMEIDA, 2009). 63

O CAPA é apoiado pela Fundação Luterana de Diaconia (FLD) e recebe apoio financeiro do Serviço das

Igrejas Evangélicas na Alemanha para o Desenvolvimento (Evangelischer Entwicklungsdienst – EED), com

sede em Bonn e da Evangelical Lutheran Church in America (ELCA/EUA). A execução financeira dos

recursos disponibilizados e todo o amparo legal são feitos pela Instituição Sinodal de Assistência, Educação e

Cultura, ISAEC (FROÉS et al., 2008).

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 118

criada a União das Associações Comunitárias do Interior de Canguçu (UNAIC), em Canguçu,

organização que atualmente congrega aproximadamente trinta e oito associações de

agricultores familiares; e, no ano de 1992, foi fundada a Cooperativa Mista dos Pequenos

Agricultores da Região Sul (COOPAR), em São Lourenço do Sul. Ambas organizações

tinham como propósito inicial diminuir custos de produção e superar a dependência de

agentes intermediários nos processos de comercialização.

Concomitantemente, alguns agricultores demonstraram interesse em questões

relacionadas à saúde, não unicamente de sua família, como também daqueles que consumiam

os alimentos produzidos de maneira convencional, ou seja, com o uso de agrotóxicos. Assim,

através da orientação técnica do CAPA e da CPT, surgiram os núcleos de produção de base

ecológica.

A partir da organização destes núcleos, foi fundada uma associação regional, a

Associação Regional de Produtores Agroecologistas da Região Sul (ARPASUL) que, em

1995, teve o início de suas atividades marcado pela criação da feira livre ecológica na cidade

de Pelotas e que hoje abrange em torno de cinquenta famílias de agricultores.

A produção de base ecológica destinada à feira era crescente, gerando um excedente,

cujo consumo não estava sendo totalmente absorvido. Para sanar tal problema, a ARPASUL

criou outro ponto de feira livre ecológica, localizado na cidade de São Lourenço do Sul.

Mesmo ampliando o número de pontos para a comercialização dos ‘alimentos ecológicos’64

, o

volume comercializado ainda não era suficiente (BECKER et al., 2007).

No ano de 2000, os agricultores tiveram um importante avanço, com a possibilidade

de venda para o mercado institucional através do projeto piloto “Merenda Escolar Ecológica”,

implantado em algumas escolas da rede estadual de ensino. Incentivados por tais meios de

comercialização de produtos, os agricultores que já produziam alimentos de base ecológica

ampliaram seus cultivos, enquanto várias famílias que ainda não cultivavam esses alimentos

aderiram a este processo. Mas isso era só o início, afinal, esses agricultores perceberam que o

acesso a outras formas de mercado poderia ser uma ferramenta importante ao seu

desenvolvimento, porém, tal acesso parecia mais facilitado a tais meios se estivessem

organizados em cooperativa.

64

Os termos ‘alimentos ecológicos’ ou ‘produtos ecológicos’ são utilizados neste trabalho a fim de designar

alimentos que além de serem produzidos dentro dos princípios da agricultura ecológica, são produzidos por

agricultores conscientes da importância do equilíbrio entre os diversos fatores que são atuantes em seu trabalho

com a agricultura, desde o respeito com suas criações animais e preocupação com não gerar desperdícios,

reaproveitando ao máximo o material que sobra de suas atividades até sua participação em relações

coletivistas, buscando uma melhor qualidade de vida para os dias atuais e para os dias futuros.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 119

Com isso, a fim de conseguirem o acesso a esses mercados, além de buscarem ajuda

mútua na compreensão e aperfeiçoamento de práticas e técnicas específicas à agricultura de

base ecológica, esses agricultores ecologistas reuniram-se em vários grupos de afinidade,

espalhados em São Lourenço do Sul, Canguçu e Pelotas, o que, pouco tempo depois,

culminou no surgimento de uma cooperativa de abrangência regional.

No ano de 2001, nasce a Cooperativa Sul Ecológica de agricultores familiares, em

resposta à necessidade dos agricultores familiares ecologistas, assistidos pelo CAPA, terem

uma entidade que lhes representasse frente aos mercados e os auxiliasse na organização e

planejamento da produção.

A organização desses agricultores abriu portas para uma integração ampliada a outras

formas de comercialização para seus produtos. Uma dessas formas foi através do Programa de

Aquisição de Alimentos, implementado pelo governo federal em 2004. O mais relevante é

que esta comercialização acabou por constituir-se em um dos mais importantes mercados

consumidores para a venda da produção ecológica das famílias cooperadas.

Desmistificando o mercado: o local e o institucional

No ano de 2001, antecedente à criação do PAA, organizações de agricultores

familiares, nos municípios analisados, assessoradas pelo CAPA (que naquele momento já

havia transferido sua sede de São Lourenço do Sul para Pelotas), já estavam mobilizadas no

sentido de garantir o acesso dos agricultores ao mercado institucional, tendo implantado o

projeto de merenda ecológica nos municípios de Pelotas, Canguçu e São Lourenço do Sul,

como uma experiência piloto.

É importante salientar que estas vias comerciais só seriam acessíveis aos agricultores

familiares se estes estivessem organizadas em sistema de cooperativa. Dessa forma, o CAPA,

apoiado pelo governo municipal, contribuiu para a criação de duas novas organizações

cooperativas com base em Pelotas, sendo uma delas a Cooperativa Sul Ecológica que,

posteriormente, viria a fazer parte da Rede de Produção e Comercialização Solidária, assim

como apresentado anteriormente.

O reconhecimento público das iniciativas de gestão ou de produção de bens comuns

pelos grupos de agricultores abre novas perspectivas. Com ele é possível fundar, a partir de

práticas locais, por um lado, mecanismos de construção conjunta, entre ação coletiva local e

Poder Público, de instrumentos de políticas públicas. Os apoios públicos podem produzir um

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 120

efeito alavanca sobre as dinâmicas locais, graças à concentração dos esforços e dos recursos

que fortalecem a constituição, o funcionamento inicial e a institucionalização das dinâmicas

locais ou de suas estruturas portadoras, fazendo com que novas conexões e redes sociais

sejam constituídas (SABOURIN, 2009).

Dessa forma, a implementação do PAA auxiliou na estruturação dessa rede de

produção e distribuição de alimentos ecológicos para os mercados institucionais. Entre o final

de 2003 e o início de 2005 a rede chegou a articular 16 organizações, incluindo associações,

cooperativas e grupos informais. Em meados de 2005, mudanças no contexto político-

administrativo ocorridas após as eleições municipais, levaram a uma reconfiguração dos

fluxos de distribuição existentes, com o enfraquecimento da atuação de alguns parceiros da

rede, como a prefeitura de Pelotas e, por outro lado, o surgimento de novos, como a prefeitura

de São Lourenço do Sul. Além desse fator, a evolução da experiência influenciou para que a

rede se desafiasse a ampliar e diversificar sua produção em nível das unidades produtivas, a

incorporar novas famílias de produtores e a construir novas parcerias envolvendo prefeituras,

entidades assistenciais e comunidades em situação de insegurança alimentar de outros

municípios. Com isso, os mercados institucionais do município de Pelotas deixaram de ser os

únicos consumidores dos produtos distribuídos pelo programa, e redes de distribuição de

produtos foram organizadas também nos municípios de Canguçu e São Lourenço do Sul

(SCHMITT; GUIMARÃES, 2008).

Este fato abre caminho para uma outra discussão interessante: o papel desempenhado

pelas redes de organizações sociais que são criadas durante o processo de construção dos

mercados institucionais. O trabalho em forma de rede é fundamental para que os agricultores

familiares possam acessar o PAA, inclusive no que se refere à infraestrutura disponível para

comercialização.

É importante dizer quanto ao PAA que trata-se de um dos mais importantes canais de

comercialização para a produção de base ecológica das famílias cooperadas da Sul Ecológica,

o que pode ser percebido nas falas de vários agricultores:

Ter entrado na cooperativa mudou muita coisa significativamente, ter onde vender

foi muito bom. Ter acesso ao mercado institucional, Fome Zero, foi uma alavanca

pra gente. (ENTREVISTA 22)

A gente consegue ajudar muitas pessoas pelo sistema do Fome Zero, né. Muitas

pessoas sobrevivem disso e, também, muitos agricultores. No momento em que a

cooperativa fechar, muitos agricultores terão que procurar outros meios de venda

e de sobrevivência, vejo por minha família, pra feira a gente planta uma

diversidade e tal, mas tu não consegue vender uma quantidade grande, 1000, 1500

quilos de cebola. A cooperativa compra uma quantidade bem maior, é o Fome

Zero, ter onde vender, mas uma coisa complementa a outra. (ENTREVISTA 13)

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 121

Essas experiências desenvolvidas por meio do PAA mostram que as estratégias que

inter-relacionam o acesso a políticas públicas com a organização dos atores sociais,

principalmente em forma de cooperativa, podem ser direcionadas no sentido de potencializar

processos de transição para uma agricultura de base ecológica, reforçando até mesmo outras

iniciativas de comercialização já existentes, como as feiras livres locais.

Aqui, é relevante destacar que novas conexões dos agricultores familiares de São

Lourenço do Sul e Pelotas com o mercado envolvem múltiplos aspectos que vão além da

esfera econômica, abrangendo aspectos ambientais, sociais e culturais. Empiricamente, esta

ideia encontra correspondência em um exemplo instigante, o das comunidades quilombolas,

que outrora eram identificadas somente como público beneficiário dos programas sociais e

hoje são integradas à dinâmica produtiva local, por meio do trabalho em redes.

A lógica que direciona o trabalho desses quilombolas, baseada no desenvolvimento

contínuo de uma ‘sintonia fina’, que associa criatividade e seu sustento a partir da agricultura,

fundamentalmente, é parte de um processo de refundação da atividade agrícola como

coprodução. Por consequência, se estabelece uma inter-relação recíproca entre esses

quilombolas e a natureza, amplamente fortalecida por meio de técnicas baseadas nos

princípios da agricultura de base ecológica, sendo a oportunidade de essas comunidades

quilombolas tornarem-se fornecedoras de alimentos para o programa Fome Zero uma

evidência que reflete na transformação social ocorrida. Anterior a sua participação ativa no

programa, esses quilombolas não tinham a agricultura entre suas principais fontes de renda.

Segundo seus próprios relatos, se restringiam a produzir quantidades e diversificação

limitadas de alimentos, em especial algumas hortaliças, milho e mandioca, utilizados somente

para o suprimento parcial de sua alimentação.

Através de ações de mediação social, desenvolvidas principalmente pelo CAPA, e

guiados pelo objetivo de melhorar suas condições de vida, esses agricultores quilombolas

foram adaptando as técnicas e práticas de produção levadas a eles através de projetos de apoio

técnico com seu conhecimento e cultura locais. Adaptaram a sua forma de trabalho com a

agricultura desde a fertilização do solo, com a utilização de práticas como a compostagem e

adubação verde, até o combate de pragas por meio do plantio de plantas repelentes. Por meio

dessas e outras variadas transformações e aperfeiçoamentos em sua lógica agrícola, esses

quilombolas conseguiram pouco a pouco ir reordenando seus recursos locais e aumentando a

qualidade e a quantidade da produção de alimentos com base ecológica, ao mesmo tempo

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 122

mantendo muitos de seus costumes, como, por exemplo, a utilização de sementes crioulas65

.

Essa prática vem sendo fortalecida por meio de ações como realização de feiras específicas

regionais, onde são promovidas trocas de sementes e comercialização de produtos oriundos da

agricultura familiar da região, não somente entre quilombolas de diversas comunidades, como

os descendentes de italianos, alemães e franceses.

Essas feiras, mais do que espaços de trocas de sementes e comercialização de

produtos, são espaços de troca de conhecimento, que proporcionam aos agricultores

descobrirem vias alternativas não só relacionadas à produção de base ecológica, mas também

à comercialização desta, ao acesso a políticas públicas e assim por diante, ou seja, são espaços

importantes para esses agricultores familiares em geral, para a transposição de fronteiras de

suas unidades de produção. Outro aspecto conveniente a salientar é o contato entre

organizações, a formação de redes no desenvolvimento dos trabalhos que envolvem

agricultores familiares e mediadores sociais durante a construção dos mercados. Impulsionada

pela busca ao acesso a uma determinada política pública, essa construção de redes, que conta

com variadas conexões, tem feito com que diferentes agricultores familiares criem cada vez

mais ‘espaços de manobra’ para suas ações de sobrevivência e formas de reconhecimento de

seu trabalho com a agricultura, entre as quais parece estar em evidência o desenvolvimento da

agricultura de base ecológica.

Como mencionada anteriormente, além da inserção no mercado institucional

proporcionada pelo PAA, as feiras livres representam uma fundamental forma de

comercialização da produção (Figura 1).66

65 São denominadas sementes crioulas aquelas utilizadas por comunidades específicas em suas práticas agrícolas,

são portadoras de características peculiares por não terem sofrido ações dirigidas de melhoramento genético,

em geral, estão bem adaptadas aos locais onde são cultivadas e mantidas, além de estarem associadas

diretamente ao conhecimento local. 66

A primeira ‘feira ecológica’ da região sul do estado do Rio Grande do Sul foi realizada em meados do ano de

1995. Tinha como objetivos garantir um mercado específico para os produtos cultivados no sistema de base

ecológica, diminuir a distância entre os produtores e os consumidores e assegurar retorno financeiro para os

agricultores, já que, na ausência de um comerciante intermediário, a margem de ganho poderia ser mais alta.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 123

Figura 1 - Feira ecológica realizada em frente ao mercado público de Pelotas

Fonte: acervo da pesquisa.

Notas: A – Agricultores e consumidores na feira; B, C e D – Detalhe dos produtos ecológicos

comercializados; E – Feijão Fradinho ecológico comercializado com o selo da Cooperativa Sul

Ecológica; F – Feijão Mouro ecológico comercializado com o selo da Cooperativa Sul

Ecológica; Pelotas/RS. Maio/2010

A realização da feira livre favorece o envolvimento dos agricultores com a produção

de base ecológica e o comprometimento de oferecer um produto de qualidade para o

consumidor. Entretanto, a feira livre dificulta a participação dos agricultores que moram mais

distantes do local de sua realização. O transporte da produção costuma ser uma das

dificuldades, tendo em vista que nem todos contam com um veículo adequado e, deste modo,

o deslocamento a grandes distâncias acaba tornando-se um empecilho à prática da atividade.

Na comunidade quilombola Alto do Caixão, localizada em Pelotas, tal situação vem

sendo contornada por meio dos trabalhos coletivos entre os agricultores quilombolas,

cooperados da Sul Ecológica e outros, organizados por meio da Associação Alto do Caixão.

Os agricultores que possuem veículos propícios para o transporte de produtos alternam entre

si a coleta e o carregamento de todos os produtos de cada uma das unidades de produção,

abastecendo, então, a feira localizada na cidade. Entre laços de reciprocidade, evidenciados

por meio de sua organização em associação e redes de contato ampliadas, depois de muito

buscar formas de ampliar seus “espaços de manobra”, esses agricultores quilombolas foram

beneficiados com uma camionete para o transporte de seus produtos para a feira do

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 124

município, adquirida por meio de um projeto da Empresa EMBRAPA - Clima Temperado,

com incentivo do Programa Nacional de Apoio a Projetos de Infraestrutura e Serviços em

Territórios Rurais (PROINF). Situação esta que só corrobora com a ideia de que múltiplos

envolvimentos existentes entre distintos atores sociais, criados por meio de uma situação que

se apresenta inicialmente como problemática (como a falta de transporte para a produção dos

agricultores até a feira), quando existe espaços para a construção de consensos e objetivos

comuns entre os atores atuantes, podem constituir um ambiente rico em interfaces e

aprendizagens, que podem superar eventuais conflitos.

Com relação a esta busca por melhores condições de vida, a feira livre de produtos

ecológicos é exemplo interessante de iniciativa que vem ocorrendo nos municípios de São

Lourenço do Sul e Pelotas e que busca reduzir a distância entre produtores e consumidores,

valorizando circuitos locais de comercialização e reforçando formas associativas e

comunitárias de organização social.

Em meio a entraves e barreiras, a construção de transformações locais

Como mencionado anteriormente, o desenvolvimento da agricultura de base ecológica

na região, sequencialmente, gerou a ampliação do volume de produção, fato que acabou por

atingir um limite na comercialização, ou seja, os canais de escoamento da produção se

tornaram insuficientes. Sendo assim, agricultores e mediadores perceberam que era necessário

viabilizar a ampliação do mercado, uma vez que, aparentemente, havia demanda para tais

alimentos.

Este processo parece ter sido o incentivo para a ampliação e consolidação de diversas

formas de organização social. Assim, o objetivo de reunir as produções para atender (e criar)

novos mercados foi fundamental para a fundação da Cooperativa Sul Ecológica, mas também

para o estabelecimento de redes de relações entre outras organizações de agricultores, além

das governamentais e não governamentais. Esta malha de relações, como apontado na seção

anterior, que pode ser entendida como um reordenamento no uso de recursos, deriva da

conexão entre os primeiros grupos organizados de agricultores e as organizações que se

dispuseram a trabalhar com elas em favor da emergência da agricultura de base ecológica na

Região Sul do Rio Grande do Sul.

Organizados, os agricultores que conquistaram os espaços das feiras livres em locais

de grande circulação nas sedes dos municípios, posteriormente, criaram um selo, uma marca

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 125

que passou a caracterizar seus produtos. O selo da Sul Ecológica estampado nas embalagens

dos produtos fez com que os consumidores passassem a identificar esses produtos, atribuindo-

lhes maior valor por sua qualidade e credibilidade. Também há relatos de que, com a

consolidação da marca da cooperativa, tem havido uma fidelização dos consumidores, que

passaram a frequentar a feira semanalmente em busca dos mesmos produtos.

Isto remete às ligações estabelecidas entre a agricultura de base ecológica e o consumo

urbano. Essa conexão traz, por exemplo, mudanças no uso de recursos ‘naturais’ ou

‘materiais’, como é o caso de alguns cultivos, antes circunscritos ao autoconsumo nas zonas

rurais, que passam a constituir produtos comercializáveis, uma vez que o consumidor passa a

reconhecer seu valor como alimento, pelas características nutricionais que contém, ou como

retomada de hábitos alimentares perdidos, tornando os repertórios culturais outra vez

importantes no ato de consumir. Também cultivares de milho, feijões, arroz, frutas nativas,

que não tiveram vez nos processos de produção homogeneizadores da modernização e

industrialização, passam a ocupar, não só maiores áreas de cultivo, mas também as mesas dos

consumidores.

Como é da natureza da atividade agrícola enquanto um processo identificado como

coprodução entre os agricultores familiares, surgem alternativas que se desviam da tendência

prevalente, em geral identificada pela subordinação aos complexos agroindustriais ou pela

exclusão econômica e social. As alternativas na tentativa de superação das limitações

impostas são atividades geradoras de renda e, no caso dos agricultores que fizeram opção pela

base ecológica, elas aparecem aliadas ao ideário da menor agressão à natureza, do respeito às

culturas e tradições locais e da justiça social.

Partindo dessa visão, muitas atividades têm sido postas em marcha através de

diversificadas estratégias, que em muito diferem da uniformização proposta para o espaço

rural dentro dos padrões de desenvolvimento orientados à liberalização e à industrialização.

Dentre essas atividades, destacam-se aqui os mecanismos ligados à agroindustrialização

familiar da produção agrícola, mais precisamente, de base ecológica.

É bastante conhecido e estudado o fato de que a agricultura familiar enfrentou, ao

longo de muitos anos, sérias dificuldades em relação à capacidade de reprodução social e à

manutenção de qualidade de vida. A subordinação a grandes agroindústrias relacionadas a

produção de fumo, suínos, aves, entre outras, como meros fornecedores de matéria-prima em

sistemas chamados integrados, retira a autonomia desses agricultores e os coloca uma posição

vulnerável, transformando-os em ‘operários’.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 126

Segundo Rudnicki (2009) o sistema implantado por essas grandes agroindústrias, ao

mesmo tempo em que propicia vantagens ao agricultor integrado garantindo a compra de seus

produtos e fornecendo assistência técnica, suscita diversos questionamentos sobre a

permanência desse agricultor na lógica instaurada neste processo de dependência, cuja forma

de governança é baseada na “apropriação” e no “controle”.

A adesão desses agricultores a esse sistema de produção pode ser associada a uma

forma de padronização no meio rural, que modifica o próprio modo de produção neste espaço.

O estabelecimento desses sistemas de produção pode ser visto como um processo que se

constitui de regras e padrões integrados a instituições e infraestruturas dominantes (PLOEG,

2008), ou seja, ao regime sociotécnico prevalente.

Dentre os agricultores que colaboraram com a pesquisa, foi possível através do

discurso da agricultora Mirian evidenciar como as famílias, na Região Sul do Rio Grande do

Sul, vivenciaram esse processo de subordinação:

Meu pai plantava arroz, fez a vida plantando arroz em granjas de arroz lá em

Santa Vitória. Era parceiro, sócio em uma das granjas do Grupo Extremo sul, do

Erico Ribeiro, o maior produtor de arroz da América do Sul até o final da década

de 80. Depois, ele desistiu de trabalhar lá e veio pra cá (São Lourenço do Sul), ele

se deu conta da exploração que a atividade era, foi uma das poucas pessoas que

viu isso, e veio pra cá [...] daí, depois teve aviário, essas empresas que só

compravam de ti se tu comprasse os pintinhos deles, ele viu que era exploração

novamente, sempre incentivou a gente a estudar para não passar por isso.

Aqui nesta investigação, essa iniciativa é representada pela agroindústria familiar rural

Figueira do Prado, que se ocupa da elaboração de sucos e schimiers. A constituição dessa

agroindústria está associada, em grande medida, ao desejo dos agricultores de agregar valor à

sua produção agrícola e a eliminar intermediários na comercialização de seus produtos, e

contou fortemente com o apoio da experiência realizada pelo governo estadual na região,

envolvendo a compra de produtos de base ecológica da agricultura familiar para fornecimento

na merenda de crianças de uma escola local, como pode ser notado em um dos trechos da

entrevista que se segue:

Em 2000, teve um plano piloto com a escola Cruzeiro do Sul, uma escola estadual

(de São Lourenço do Sul). Durante o governo Olívio houve o incentivo de recolher

alimentos dos pequenos agricultores para a merenda escolar. [...] Então,

começamos o trabalho com os sucos e com o plano piloto com a escola Cruzeiro do

Sul. [...] Com o passar dos anos e a consolidação do PAA, vieram os anos que eu

produzi mais e faturei mais fazendo sucos e schimiers, arrumei o carro, construí o

poço artesiano, tudo mandando pro mercado institucional, Fome Zero de Pelotas.

[...] Foi uma coisa sensacional, o pulo do gato!

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 127

Visando à ampliação do espaço de comercialização de seus produtos, a dona desta

agroindústria familiar, após quatro anos de muita batalha e troca de informações conseguiu

transformar sua agroindústria, outrora artesanal, em uma microempresa, uma vez que passou a

ser obrigada a possuir Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), por ser imprescindível

legalmente para a produção, circulação, transporte e comercialização dos produtos fabricados

pelas agroindústrias.

Não contar com o CNPJ restringe o acesso desses agricultores a oportunidades de

colocação de seus produtos à disposição de consumidores mais distantes dos mercados

regionais, fato este que pode surgir como obstáculo, desencorajando o agricultor a seguir

adiante em seu objetivo inicial. Abre-se, portanto, uma ‘janela’ para um debate sobre o

duvidoso caminho que esses agricultores familiares devem percorrer ao almejar a

transformação de sua empresa de caráter artesanal em microempresa. Ou, ainda, a discussão

de como manter-se ‘artesanal’, já que este é o diferencial e identidade dos produtos assim

obtidos, porém com a tranquilidade de estar cumprindo as exigências legais necessárias e sem

ter de abrir mão do estatuto de agricultor.

Contando com o apoio da Cooperativa Sul Ecológica, na qual é uma das associadas,

do CAPA, e incentivada pela política pública de compra de alimentos da agricultura familiar,

essa agricultora encontrou “espaços de manobra” para melhorar suas condições de vida.

Todos esses fatores remetem a construção de vias inovadoras, realizada pelo ativo

engajamento em arenas constituídas pela negociação de interesses entre a agricultora, outros

grupos de agricultores, mediadores sociais do CAPA, da EMATER, da Sul Ecológica e

agentes públicos (prefeitura local e vizinha), além do acesso a políticas públicas recém

estabelecidas.

A trajetória que leva ao estabelecimento da agroindústria está claramente associada a

uma dinâmica de transposição de fronteira, e associada a isto está a criação de novos vínculos,

relações sociais geradoras de redes. É justamente pelo engajamento em tais redes que essa

agricultora tem conseguido utilizar, de maneira significativa, os espaços de feiras e outros

eventos para divulgar e comercializar seus produtos. As organizações atuantes na região,

neste caso principalmente o CAPA, financiam o transporte dos produtos, o deslocamento e

hospedagem dos agricultores, viabilizando a participação nessas feiras, como se pode

averiguar na fala a seguir:

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 128

Em todas as feiras que eu posso ir, eu vou pra levar meus produtos [...] tudo em

função do próprio CAPA. [...] Hoje, 70% dos meus produtos, suco e doce é

comercializado pra Sul Ecológica, pra merenda, Fome Zero e o resto é para as

feiras [...].

Acompanhando as atividades na agroindústria, foi possível acompanhar o processo de

produção de suco de ananás (Ananas spp), cujo desenvolvimento do processo conjuga um re-

direcionamento no uso dos recursos, criativamente engendrado mesclando velhos e novos

conhecimentos. Além de ananás, a agricultora, que conta com a ajuda e parceria do filho nas

atividades com a agroindústria, tem experimentado uma série de outras polpas de frutas como

matéria-prima na produção de sucos e schimiers, tais como o araçá (Psidium cattleianum), o

pêssego, a bergamota, e, em especial, o butiá (Butia sp):

Em 2002, 2003, dia 16 de abril de 2001 foi o ‘Boom’, onde a gente descobriu o

butiá e as outras frutas, frutas nativas, né. O butiá hoje é o carro-chefe [...].

É importante evidenciar que a utilização de polpas de frutas nativas na confecção dos

produtos dessa agroindústria tem um significativo potencial para a valorização de hábitos

culturais e dos recursos naturais existentes no local, o que intrinsecamente favorece a

formação de sistemas produtivos sustentáveis. Algo interessante a notar é que, quando a

agricultora vai às feiras de exposição e comercialização de seus produtos (como foi o caso da

VII Feira Nacional da Agricultura Familiar e Reforma Agrária – Brasil Rural Contemporâneo

realizada em maio de 2010 em Porto Alegre/RS, como evidencia a Figura 2), carrega consigo

banners explicativos sobre a planta e os frutos do butiá. Em meio à comercialização de sucos

e schimiers, são trocadas informações, entre os consumidores e a agricultora, sobre aspectos

de cultivo e hábitos da planta, e até mesmo com relação ao processamento do fruto e sua

transformação no produto comercializado.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 129

Figura 2 - Exposição e comercialização dos produtos da Agroindústria Figueira do Prado na VII

Feira Nacional da Agricultura Familiar e Reforma Agrária –

Brasil Rural Contemporâneo. Porto Alegre/RS. Maio/2010

Fonte: acervo da pesquisa.

No espaço dessas feiras, e mesmo com a distância ‘encurtada’ entre consumidor e

produtor, a agricultora se beneficia com contatos e dicas para possíveis novos mercados de

comercialização para seus produtos. Dessa maneira, seus produtos têm viajado o país e

conquistado os mais diversos espaços.

Verifica-se que a mobilização social vinculada a todos esses acessos a programas,

políticas, projetos, etc. são lógicas relacionadas ao produzir, cultivar, organizar-se, relacionar-

se, que podem estar influenciando diretamente o reordenamento de recursos, não só naturais,

como também sociais.

Procura-se aqui reconhecer que a agroindustrialização familiar está fundamentada em

metas que buscam a minimização da pobreza, do desemprego, do êxodo rural, da exclusão da

mulher e dos jovens da vida econômica e das ações comunitárias locais. Nesse caso, retrata-se

a agroindústria familiar dirigida por uma agricultora e seu filho, um jovem de 18 anos, uma

iniciativa que pode ser caracterizada como uma iniciativa inovadora emergente, que

estabelece espaços de aprendizagem que tendem a criar um ambiente mais propício para

mudanças tecnológicas mais profundas; Desta forma, vale ressaltar que esses agricultores, ao

reordenarem o uso dos recursos naturais e sociais, promovem também mudanças

organizacionais e institucionais interelacionadas, fato este que indica que não se trata apenas

de redirecionar a produção de alimentos ecológicos de um mercado a outro, trata-se da

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 130

inserção em processos mais amplos que, embora precocemente, pode-se começar a vislumbrar

como contribuições à mudança no regime da agricultura convencional.

Irradiando as experiências locais: algumas considerações

O mercado de cadeia curta e o mercado institucional configuram-se, no contexto

estudado, como formas de resistência e de conquista de autonomia. Estas se constituem em

conexões inovadoras com o mercado de produtos agrícolas, por se posicionarem contra as

transações comerciais que distanciam mais e mais quem produz de quem consome e por

estarem engajadas em processos sociopolíticos mais amplos de obtenção de soberania

alimentar.

Considerando que não pairam dúvidas sobre o crescimento da demanda por produtos

limpos, orgânicos, socialmente justos, verdes, ecológicos, uma das questões recorrentes se

refere ao fato de que tais produtos têm entrado em circuitos de comercialização ditos

elitizados, ou seja, servem para atender uma parcela de consumidores com alto poder

aquisitivo no país e, principalmente, no exterior. Isto porque se construiu a ideia de que a

agricultura de base ecológica só é viabilizada se houver grande agregação de valor, sob a

alegação das baixas produtividades de tais sistemas de produção. Por outro lado, as iniciativas

de incentivo à comercialização de produtos ecológicos fornecidos por agricultores familiares

para o mercado institucional, ou mesmo às feiras locais, introduzem novos elementos no

debate sobre o lugar dos mercados com relação à agricultura de base ecológica.

Um dos elementos se refere à reflexão, ao nível da sociedade, acerca do papel do

Estado na reestruturação dos circuitos de produção, distribuição e consumo de alimentos,

especialmente tomando como princípios a justiça social e a sustentabilidade, em todas as suas

dimensões: social, econômica e ambiental. Também deve-se considerar que um elemento

importante é que novas conexões com o mercado, pela transição a sistemas de produção de

base ecológica, dizem respeito ao resgate de estruturas comunitárias pelo estabelecimento de

múltiplos dispositivos coletivos, que estão inseridos em processos de desenvolvimento local,

melhoria da qualidade de vida dos agricultores e novas dinâmicas de aprendizagem coletiva.

Nesse sentido, a pesquisa permitiu identificar que a emergência da construção social

da qualidade envolvida tanto na produção, como no consumo dos alimentos produzidos pela

agricultura familiar dos municípios analisados, por meio da troca de conhecimentos entre os

próprios agricultores e demais atores sociais, está se ampliando pelos municípios vizinhos,

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 131

fato que evidencia o destaque que os mercados de cadeia curta e institucional estão atribuindo

aos alimentos produzidos com base ecológica. Essa ampliação parece estar criando uma nova

dinâmica de desenvolvimento rural, mais territorializada e adaptada às especificidades locais,

e que representa um conjunto de iniciativas que emergem da mobilização dos agricultores em

favor da conquista da autonomia, mas também associada a processos de geração de

conhecimento e a distintas trajetórias de construção.

É importante notar que o protagonismo dos atores envolvidos nessa construção social

de mercados está relacionado ao rompimento das regras estabelecidas pelo padrão

‘modernizante’ de agricultura e está inserido em processos mais amplos, que ocorrem em um

nível da ação social que extrapola o nível micro ou local. Nos estudos realizados, fica

evidenciado que os processos de organização social levaram ao vínculo com políticas

públicas, em especial com o Programa de Aquisição de Alimentos. Se, por um lado, o acesso

à política pública se refere a um avanço importante na construção de estratégias para integrar

novos mercados, por outro, a iniciativa local vem mostrando que é possível mobilizar o poder

regulador e de compra do Estado na construção de novos circuitos de comercialização, com

base em princípios de viabilidade econômica, justiça social e sustentabilidade ambiental.

A experiência acumulada pelas diferentes organizações, hoje engajadas em iniciativas

concretas de acesso ao mercado institucional, é ingrediente fundamental para que as compras

governamentais possam se consolidar, de fato, como uma ferramenta capaz de potencializar

formas sustentáveis de produção e consumo de alimentos. Essas novas formas de mercado e

de relação com o Estado, que apenas começam a se mostrar, também provocam

desdobramentos, abrindo espaços para outras emergências, como é o caso do

desenvolvimento de agroindústrias familiares, que surgem como estabelecimento de formas

organizacionais autônomas de trabalho, capazes de agregar valor à produção primária.

Algo que também merece destaque refere-se ao fato das políticas públicas no Brasil,

em especial as que são voltadas para a situação do espaço rural, ainda serem construídas de

cima para baixo, ou seja, baseadas em realidades distantes do cotidiano dos agricultores e

desconsiderando especificidades locais. A ausência de inter-relação de conhecimentos

possivelmente é acarretada pelos poucos espaços de diálogo entre as representações políticas

de agricultores e outros atores locais com os agentes das áreas técnico-científicas e da

elaboração de políticas. Também há um longo caminho ainda a ser trilhado para efetivamente

ter-se o reconhecimento e a valorização dos conhecimentos locais em toda sua

heterogeneidade. Nesse sentido, parece interessante ampliar estudos no que se refere à análise

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 132

da construção de políticas públicas baseadas em realidades locais, nas quais os próprios

agricultores familiares sejam protagonistas do processo.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 133

Qualidade partilhada e relações de sociabilidade entre produtores

familiares e consumidores no processo de comercialização direta, no

noroeste paulista

Antonio Lázaro Sant´Ana

Flaviana Cavalcanti da Silva

Valéria da Silva Modenese

Divanir Zaffani Sant´Ana

Gabriela dos Santos Souza

Introdução

Este artigo insere-se em uma temática que, apreendida na sua forma mais ampla,

consiste na análise dos fatores que influenciam e condicionam as estratégias (BOURDIEU,

1990) dos produtores familiares em áreas de agricultura familiar tradicional e em

assentamentos rurais no noroeste do Estado de São Paulo.

Os agricultores familiares, além de se vincularem, de forma subalterna, às grandes

cadeias agroindustriais no noroeste paulista (carne bovina; leite; açúcar e álcool; e suco

concentrado de laranja), também buscam outras formas diferenciadas de comercialização

(SANT´ANA, 2010). Estas formas diferenciadas de inserção no mercado são caracterizadas

por envolver circuitos curtos de comercialização e relações mais horizontais entre os agentes,

muitas vezes de caráter informal e baseadas no interconhecimento (MENDRAS, 1978). A

comercialização diferenciada, embora seja bastante heterogênea em relação aos tipos de

produtos e à forma como é organizada, apresenta marcante influência das tradições tanto nas

práticas de fabricação (quando é o caso), quanto na construção e funcionamento do mercado,

em termos de regras e também no estabelecimento da qualidade desejável, já que esta também

é objeto de disputa por legitimação, como advertem vários autores (MIOR, 2003;

SYLVANDER, 1995; NICOLAIS; VALCESCHINI, 1995).

O objetivo geral da pesquisa que originou este artigo foi realizar uma análise

comparativa das estratégias de inserção dos agricultores familiares no mercado, nas

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 134

microrregiões de Andradina, Jales e São José do Rio Preto67

, especialmente em processos de

comercialização diretos ou semi-diretos, como a venda sem intermediação ao varejo e/ou ao

consumidor de produtos in natura ou com algum outro tipo de agregação de valor, assim

como as estratégias de produção que visam legitimar esta inserção diferenciada. Neste artigo a

análise restringiu-se aos 120 produtores familiares das referidas microrregiões que vendem

direto ao consumidor e a 94 consumidores que adquirem produtos dos referidos agricultores.

Esta investigação também representou a continuidade de uma pesquisa realizada na

França68

que estudou os chamados produtores fermiers69

. Os produtores fermiers franceses,

assim como os agricultores familiares do noroeste do Estado de São Paulo, utilizam

mecanismos para sua inserção no mercado que têm como característica principal a criação de

relações de confiança entre o produtor e o consumidor e não a definição de normas detalhadas

e homogêneas dos processos produção e de fabricação, válidas para todos os produtores,

como ocorre nos casos dos selos de certificação da qualidade na França70

.

Agricultura familiar e inserção no mercado

O processo de globalização, marcantemente neoliberal, trouxe a preocupação de que

seus efeitos causariam a exclusão em massa de pequenas empresas e dos agricultores

familiares do mercado, comprometendo a reprodução social deste segmento social. De acordo

com Wilkinson, para tentar amenizar esse problema, em vários países da América Latina

foram criados programas visando fortalecer as experiências que exploram as vantagens de

proximidade e identidade, a partir de três modelos: clusters, aglomerações de agroindústrias

rurais e estratégia de qualidade superior (artesanal e ética). Os clusters visam à construção de

67

Pesquisa financiada pelo CNPq e que contou também com uma bolsa de Iniciação Científica da Fapesp. 68

A referida pesquisa foi realizada durante Estágio Pós-Doutoral, com bolsa Capes, do primeiro autor, no

INRA/TSV e EHESS, na França, sob supervisão da Profa. Dra. Marie-France Garcia-Parpet. 69

Cazella e Roux (1999), embora vejam semelhança com o termo colonial utilizado no Sul do Brasil, optaram

por não traduzir esta palavra francesa, devido às variações que existem para o mesmo tipo de produto em

outras regiões brasileiras (no Estado de São Paulo a denominação produto caseiro ou artesanal é mais

utilizada). 70

O caso dos produtores fermiers é uma exceção, pois na França há uma tendência de formalização dos

processos produtivos e de fabricação, por meio de protocolos e certificados que determinam as características

exatas do produto para que este receba uma denominação específica. Para utilizar a denominação “produto

fermier”, este deve apenas atender às condições gerais ditadas pela “Direction Générale de la Concurrence,

de la Consommation et de la Repression des Fraudes” a qual estabelece que o produto deve ser produzido

com matérias primas principais provenientes das explorações agrícolas do próprio produtor; no caso de

processamento deve seguir métodos artesanais (não industriais); e deve ser vendido pelo próprio produtor

que se responsabiliza desde a produção até a apresentação final do produto (fora da venda direta é obrigatório

constar o nome do produtor na embalagem e não é permitida a reembalagem) (CAZELLA; ROUX, 1999;

FNAPF, 2006).

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 135

competitividade em mercados nacionais ou de exportação, a partir das vantagens de

proximidade, sendo que as pequenas empresas e a agricultura familiar giram em torno de

atores maiores. No caso de agroindústrias rurais o maior desafio tem sido inicialmente

adequar tais atividades (muitas vezes em condições informais ou clandestinas) às exigências

de qualidade mínima e de fiscalização tributária, ao mesmo tempo em que se busca a melhoria

nas rendas das famílias diretamente envolvidas. As agroindústrias rurais podem estar

associadas a estratégias de qualidade superior que destacam os valores da tradição e do

artesanal e ao turismo rural, configurando estratégias baseadas no conceito de

multifuncionalidade71

(WILKINSON, 2003).

Mior (2003), ao analisar as mudanças sociais no oeste catarinense, utiliza a noção de

redes verticais e horizontais de desenvolvimento rural, conforme abordado por autores como

Marsden (1999) e Murdoch (2000). As redes verticais seriam adequadas para análises

setoriais, como a de uma cadeia produtiva, enquanto as redes horizontais se prestam a uma

abordagem territorial, a partir de redes de inovação e aprendizagem que permitiriam

questionar o entendimento do desenvolvimento rural como um processo que necessariamente

deveria passar pela intensa capitalização comandada pelas grandes empresas e pelo declínio

do poder do trabalho.

Assim como Wilkinson (1999, 2003), Mior (2003) considera que é necessário um

amplo leque de estratégias de inserção da agricultura familiar no sistema agroalimentar, tanto

no mercado commodities, que passa por formas de ação coletiva, como aproveitando

oportunidades de mercado para produtos orgânicos ou com valorização regional (artesanais).

Estes processos desmistificam a ideia de que os mercados são autoregulados pelas

curvas de oferta e demanda. Os mercados são construções sociais, ou seja, “são definidos nos

processos de interação social entre os atores econômicos que participam de sua construção”

(GAZOLLA; PELEGRINE, 2011, p. 138).

As estratégias presentes nas redes horizontais que envolvem adaptação de tecnologia

às condições locais, mercado de proximidade e de nicho, diversificação da organização

produtiva, dentre outras, são reveladoras da forma como os produtores constroem sua

participação no mercado (MIOR, 2003).

Observa-se que a maior parte destas estratégias pode ser estimulada por políticas

públicas de desenvolvimento rural que tenham como objetivo apoiar os produtores familiares.

71

Saborin (2005) considera que a multifuncionalidade no caso brasileiro, antes de valorizar as funções não

mercantis da agricultura, pode ser pensada em termos de melhorar o acesso dos produtores familiares a

mercados diferenciados a partir da origem, qualidade e especificidade dos produtos; do comércio solidário ou

justo; e da certificação ambiental e serviços rurais, como o agroturismo.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 136

Maluf (2001) destaca, no entanto, que o modelo predominante de desenvolvimento agrícola e

agroindustrial no país possui caráter excludente, mesmo em relação aos agricultores

integrados, pois estes sofrem os impactos do processo seletivo imposto pelas agroindústrias,

no sentido de elevar a escala média de seus fornecedores.

Historicamente, a agricultura familiar enfrentou quadros macroeconômicos adversos,

marcados pela instabilidade monetária e inflação elevada, políticas comerciais e cambiais

desfavoráveis à agricultura, presença de política agrícola favorável aos produtores patronais

em detrimento de iniciativas voltadas para a agricultura familiar, e serviços públicos

deficientes de apoio ao desenvolvimento rural (BUAINAIN et al., 2003).

Em estudo na década de 1990, Abramovay (1997) já enfatizava a importância da

adoção de políticas públicas descentralizadas, principalmente, no que se refere à gestão dos

recursos, embora destacasse que tal mudança nas políticas não dependeria apenas da

disposição do governo em adotá-la, mas, também, da capacidade de mobilização das

instituições representativas dos agricultores familiares.

Para Carneiro (1997) a descentralização deve ser pressuposto das políticas públicas e

utilizada na definição dos tipos de agricultores a serem beneficiados. Ao se considerar as

potencialidades locais, abrem-se caminhos para desconstruir a noção do “verdadeiro

agricultor”, como sendo aquele profissional com capacidade empresarial apto para encontrar

na atividade agrícola a fonte da quase totalidade da renda familiar, pois muitas famílias rurais,

sem deixar de serem agricultores profundamente ligados à terra, por motivos variados são

levados a desempenhar atividades não agrícolas de caráter complementar.

O processo de desenvolvimento local traz consigo novas perspectivas de adequação

das políticas públicas nacionais às peculiaridades regionais e dos espaços urbanos e rurais, em

sua dimensão física, econômica, social e cultural, respeitando, portanto, todos os preceitos do

desenvolvimento sustentável (CAMPANHOLA; GRAZIANO DA SILVA, 2000).

Para Schneider (2003), no entanto, as iniciativas voltadas para o desenvolvimento

local ainda carecem de políticas específicas, nas quais peculiaridades regionais e locais

promovam a diferenciação das ações governamentais. Para tanto, torna-se necessário dirigir

um novo olhar para o espaço rural em vista de suas novas necessidades, pois “[…] sem

desconhecer que a agricultura ocupa um lugar de destaque no espaço rural, cuja importância

varia segundo as regiões e os ecossistemas naturais, não se pode, contudo, imaginar que ela

própria não tenha sido modificada no período recenté.” (SCHNEIDER, 2003, p. 100).

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 137

Por outro lado, embora a mediação do mercado seja fundamental para a reprodução da

agricultura familiar contemporânea, esta não é orientada apenas pela obtenção do máximo

rendimento econômico como em uma empresa capitalista típica. Estudo coordenado por

Lamarche (1993, 1998) mostrou que os agricultores familiares incorporam diferentes lógicas

para compor suas estratégias de reprodução social, resultando em diferentes pesos da família

nas decisões e no maior ou menor grau de dependência tecnológica, financeira e comercial,

em função do contexto no qual estão inseridos. Portanto, as variáveis econômicas não são

suficientes para entender a agricultura familiar e nem servem para estabelecer uma pretensa

linha evolutiva (do menos capitalizado para mais capitalizado), pois mais do que um padrão

de agricultura familiar, o que parece ser necessário diante dos desafios atuais, como do

desenvolvimento sustentável, é a presença da diversidade de formas de produção e modos de

vida (LOBO, 1992; TELLES, 1992).

Os agricultores familiares adotam várias estratégias que, via de regra, aparecem

combinadas em uma mesma unidade familiar, como a diversificação da produção; a

agregação de valor aos produtos por meio do processamento e/ou comercialização

diferenciada (que inclui formas associativas ou com algum grau de cooperação); o aumento da

escala de produção ou da produtividade de atividades específicas; a produção para

autoconsumo; as estratégias educacionais; as estratégias fundiárias; a pluriatividade, dentre

outras (BOURDIEU, 1990; 1994; TEDESCO, 1999; SANT´ANA, 2003).

A menor dependência do mercado e de agentes externos, mencionada por Lamarche

(1998), não significa apenas que a produção para o autoconsumo é relevante, mas também

que os produtores buscam maior autonomia relativa em relação aos processos de produção e

na negociação e determinação dos preços de comercialização, como ocorre nos casos de

comercialização direta (ao consumidor) ou ao comércio varejista (semi-direta) no âmbito

local/regional.

Metodologia e técnica de pesquisa

O eixo teórico-metodológico apóia-se no conceito de estratégia (BOURDIEU, 1990;

1994) e na noção de modo de vida (LOBO, 1992; TELLES, 1992) para entender como os

produtores constroem uma forma diferenciada de relacionamento com os consumidores e com

o pequeno comércio varejista, baseada em um saber-fazer (savoir faire) e em valores éticos

tradicionais compartilhados por esses sujeitos que confere (supostamente) aos produtos uma

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 138

qualidade superior em relação ao padrão standard industrial. Portanto, também foi necessário

tratar da questão da qualidade e das diferentes abordagens existentes em torno desta noção

(ALLAIRE; BOYER, 1995; NICOLAIS; VALCESCHINI, 1995; THÉVENOT, 1995).

Por meio de questionários, aplicados junto a produtores familiares do noroeste do

Estado de São Paulo (em áreas de agricultura familiar tradicional e em assentamentos rurais),

buscou-se caracterizar uma das principais estratégias dos produtores, que é a inserção

diferenciada no mercado por meio da venda direta aos consumidores.

Foram pesquisados produtores de três microrregiões (classificação do Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE): a de Andradina, com predominância de

agricultores familiares assentados; a de Jales, que apresenta áreas com fruticultura

diversificada e estrutura fundiária com predominância de pequenos estabelecimentos; e a

microrregião de São José do Rio Preto que sofre influência deste centro consumidor

relativamente vigoroso. A escolha dos produtores foi baseada em indicações de técnicos de

órgãos públicos de cada microrregião que trabalham com assistência técnica e extensão rural e

de entidades de representação dos produtores. No total foram aplicados questionários a um

total de 148 produtores, divididos de forma aproximadamente igual entre cada uma das

microrregiões, mas este artigo analisa somente os resultados referentes aos 120 produtores

que vendem ao menos parte de sua produção diretamente ao consumidor. O número de

produtores não foi definido por critério estatístico, portanto não teve a pretensão de

representar o conjunto de produtores que realizam este tipo de comercialização diferenciada

nas microrregiões estudadas, mas visou apreender qualitativamente a diversidade de

experiências existentes.

O questionário destinado aos agricultores familiares foi bem amplo, sendo que para

compor esse artigo, foram utilizados dados referentes à caracterização do produtor e dos

membros da família que trabalham na propriedade e algumas características gerais das

propriedades. Em relação à comercialização direta ao consumidor foram levantados dados

referentes à quantidade comercializada, aos preços médios estabelecidos para cada produto, o

número de clientes, a frequência da venda, bem como as formas/locais utilizados para realizar

a comercialização. Foram também incorporadas aos questionários perguntas abertas, visando

registrar as impressões dos produtores sobre seus produtos e sobre o processo de

comercialização.

A aplicação dos questionários aos produtores familiares foi realizada durante visitas

aos respectivos estabelecimentos e, em alguns casos, nas feiras-livres, de modo a observar a

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 139

forma como estavam produzindo, organizando a produção e o trabalho no estabelecimento,

assim como as técnicas de comercialização por eles empregadas.

Para investigar as características dos clientes dos produtores e a percepção dos

mesmos em relação aos produtos adquiridos, foram elaborados dois modelos de questionários

(embora bastante semelhantes, continham algumas questões específicas para cada canal de

comercialização utilizado), um dirigido aos consumidores de feiras-livres e outro para

consumidores que compram por meio dos demais canais de comercialização. No total, 94

consumidores responderam ao questionário.

O questionário dirigido aos consumidores foi estruturado com o intuito de se verificar

aspectos pertinentes às compras realizadas junto a agricultores pesquisados, por meio do

levantamento dos produtos adquiridos, dos valores e periodicidade das compras, de aspectos

ligados a relação produtor/consumidor, como fidelidade e motivos de preferência. O

questionário levantou, ainda, as características do consumidor e da respectiva família.

Características gerais dos produtores pesquisados

A grande maioria (95%) dos 148 produtores pesquisados, nas três microrregiões, mora

na propriedade e cerca de 2/3 do total (66,9%) dos produtores conta com dois ou três dos

membros da família trabalhando no estabelecimento. A quase totalidade (94,6%) dos

produtores são proprietários ou possuem laços de parentesco com o mesmo, trabalhando em

regime familiar.

Verificou-se que a faixa etária predominante dos titulares e cônjuges que trabalham

nos estabelecimentos pesquisados situa-se entre 41 e 60 anos. O grau de escolaridade é muito

baixo, pois mais de 80% dos titulares e dos cônjuges não estudaram além do ensino

fundamental, sendo que, em ambos os casos, a maioria possui no máximo a 4ª Série do

Ensino Fundamental. Este perfil de escolaridade é semelhante ao verificado em outras

pesquisas com agricultores familiares da região (SANT’ANA et al., 2007).

O tempo de trabalho na agricultura é muito variável dentre os produtores pesquisados,

mas a maioria (63,8%) possui longo tempo de experiência (mais de 25 anos).

Os estabelecimentos pesquisados apresentam em média 12,7 hectares, sendo que

86,3% dos estabelecimentos possuem até 20 hectares (o módulo predominante nestas

microrregiões situa-se entre 24 e 30 ha). A bovinocultura é a principal atividade econômica,

por meio da produção de leite e venda de bezerros, mas uma parte dos produtores da

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 140

microrregião de Jales possui renda significativa proveniente da fruticultura e, nas três

microrregiões, no universo pesquisado, a olericultura também é uma atividade relevante em

termos de geração de renda.

A comercialização direta aos consumidores

O recorte geral da pesquisa incluiu produtores que realizavam algum tipo de

comercialização diferenciada, mas, dentre os 148 entrevistados, 72 (48,6%) declararam que

comercializam seus produtos tanto diretamente ao consumidor, como também diretamente ao

comércio varejista, pequenas indústrias e mercado institucional; já 48 produtores (32,4%)

comercializam apenas diretamente ao consumidor e outros 28 (18,9%) vendem seus produtos

exclusivamente para o segmento varejista, pequenas indústrias e mercado institucional. Como

já foi mencionado, neste trabalho trataremos somente dos 120 produtores que vendem

diretamente ao consumidor (inclui aqueles que vendem somente ao consumidor e aqueles que

comercializam para ambos os segmentos simultaneamente).

Os produtores que realizam vendas diretas ao consumidor comercializam em média

seis produtos72

. Embora 9,5% dos produtores comercializem um único produto, quase sete em

cada dez (68,7%) comercializa quatro ou mais produtos e 12,7% vendem mais de nove tipos

de produtos. Trata-se de uma quantidade de produtos bem superior à média (que é de dois a

três produtos) comercializada pelos produtores familiares da região (SANT’ANA, 2003,

2007).

A diversidade pode ser observada também quando se analisa os tipos de produtos

comercializados diretamente ao consumidor. No total são 37 diferentes grupos de produtos,

sem contar que em alguns casos há vários produtos inseridos em um mesmo grupo, como os

cárneos, os lácteos e os resultantes de panificação. Em termos de frequência destacam-se as

olerícolas folhosas, comercializadas por 39,2% dos produtores (do total de 120) e não

folhosas (37,5%). A olerícola mais vendida dentre as folhosas é a alface e das não folhosas a

abóbora. As frutas são vendidas também por uma parcela significativa dos produtores

(32,5%), especialmente na região de Jales e dentre as frutas foram mais citadas a banana e a

laranja.

Os lácteos são comercializados por 24,2% dos produtores, sendo que parte vende o

leite in natura diretamente ao consumidor e outros vendem derivados, com destaque para o

72

A média ficou entre cinco e seis produtos, mas como alguns (poucos) produtores não discriminaram de modo

exaustivo todos os produtos que comercializam, estimou-se a média em seis produtos por produtor.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 141

queijo tipo frescal. A comercialização deste tipo de produto em muitos municípios só é

permitida a produtores que atendam as exigências da legislação sanitária e fiscal

estadual/federal, o que exclui a quase totalidade dos produtores pesquisados. Há, no entanto,

municípios que admitem a comercialização de produtores artesanais, sob condições menos

rigorosas ou simplesmente não exercem fiscalização quando a venda é realizada diretamente,

sem passar por pontos comerciais formais (varejo). As diferenças de rigor da fiscalização

podem ser observadas quando se constata que mais da metade dos produtores que

comercializam lácteos são da região de Jales.

Este também é o caso dos produtos cárneos (comercializados por 18,3%), pois, em

princípio, os animais não podem ser abatidos e comercializados sem passar por um frigorífico

que atenda aos padrões sanitários vigentes, mas como parte dos animais é vendida viva

(frango, carneiros e leitões), a distribuição entre as microrregiões pesquisadas é mais

homogênea. Foram mais mencionados frangos e suínos (vivos ou abatidos e limpos), mas

neste último caso também são vendidos derivados, como a linguiça, o toucinho, a banha

derretida, dentre outros.

Entre os produtos específicos, destacaram-se a mandioca comercializada por 24,2% e,

em menor grau, o feijão e o milho verde, com participação de 12,5% e 10,8% dos produtores,

respectivamente. Quanto ao feijão, verificou-se que há predominância do feijão catador ou

feijão-de-corda (Vigna unguiculata), sendo que a venda é realizada principalmente por litro e,

segundo declaração dos produtores, os principais consumidores deste produto são de origem

nordestina.

Em relação aos condimentos vendidos por 14,2% dos produtores, o principal produto é

a pimenta (verde ou em conserva), mas também foram citados o coloral (obtido do urucum) e

o açafrão.

Entre os outros produtos há uma grande variedade composta por doces diversos,

vassoura (utiliza-se uma variedade de sorgo), mudas (ornamentais e frutíferas,

principalmente), macarrão caseiro, broto de bambu, sabão caseiro, bucha (para o banho) e até

produtos menos comuns como cogumelo do sol em pó (usado como suplemento alimentar).

Observa-se que uma parte dos produtos possui particularidades que atendem a

preferência dos consumidores da região (embora não sejam exclusivos, pois possuem origens

diversas). São produtos associados à cultura caipira73

do interior do Estado de São Paulo,

73

O termo “caipira”, que em outros contextos pode ter conotação negativa, nesse caso é referência de alta

qualidade, ligada a um sabor, modo de criação (animais) ou de fazer próprio do interior do Estado de São

Paulo. É um termo que se assemelha, em seu sentido geral, ao qualificativo “fermier”, utilizado pelos

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 142

como o frango e o porco caipira, o queijo fresco e o pão caseiro; enquanto outros remetem a

costumes de migrantes nordestinos como o feijão catador e o coentro.

O principal canal de comercialização utilizado pelos agricultores pesquisados que

realizam vendas diretas ao consumidor é a feira-livre (60%) (Tabela 01).

Tabela 1 - Formas/locais de comercialização empregados pelos produtores pesquisados nas

vendas diretas ao consumidor

Formas/local de

comercialização N° de produtores (%)

Na Feira 72 60,0

Na Rua/Residência 30 25,0

No estabelecimento 27 22,5

Sob encomenda 10 8,3

Outras 5 4,2

Fonte: Dados da Pesquisa 2008/2009

Nota: *Valores com repetição, pois alguns produtores comercializam em mais de um local.

As feiras são realizadas semanalmente, sendo que em cidades um pouco maiores (Jales

e Mirassol) ocorrem mais uma feira durante a semana (em diferentes locais). No total os

produtores indicaram 15 feiras em doze municípios das microrregiões pesquisadas. Parte dos

produtores participa de mais de uma feira semanal, às vezes em mais de uma cidade: estes

produtores são aqueles que dependem quase exclusivamente da venda direta. Já a maioria

utiliza a feira como forma complementar, seja da venda direta (usam outras formas de venda

direta ao consumidor) ou a combinam com a venda ao varejo e/ou com outras atividades

produtivas na propriedade.

A grande maioria dos agricultores que utiliza as feiras mostrou-se satisfeita, mas

indicaram que tem ocorrido uma paulatina diminuição do público que aflui a estes

equipamentos públicos. Os produtores, ao mencionarem sua satisfação pela comercialização

nas feiras, destacam não apenas os aspectos econômicos, mas, também, a formação de

amizades/reencontro de amigos e trocas de experiências, ou seja, é uma forma de

sociabilidade em que o trabalho mistura-se ao lazer. Observou-se também que os produtores,

durante o tempo de funcionamento da feira, trocam informações, combinam outros negócios

ou estabelecem alianças de uma forma típica da sociabilidade rural tradicional, baseada na

confiança e informalidade74

.

agricultores franceses, pois ambos buscam expressar a mesma idéia de qualidade ligada ao conhecimento

tradicional (em suas mais diversas formas) e que é valorizada pelos consumidores. 74 Um exemplo de colaboração entre os feirantes/produtores e da informalidade das relações, baseadas na

amizade, pôde ser presenciada durante a pesquisa em Jales: um produtor que comercializa milho verde na feira

perguntou a outro produtor (que vende carne de porco) se este tinha milho no ponto de ser colhido verde

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Além das feiras utilizadas pela maioria dos produtores pesquisados, estes também

comercializam a produção diretamente na rua e/ou na residência do consumidor (25%) e em

seu próprio estabelecimento (22,5%) (Tabela 1). A venda no estabelecimento permite, em

muitos casos, ao agricultor, simultaneamente, dirigir a rotina de trabalho ligada à produção e

promover a comercialização. Durante a realização da pesquisa, em algumas visitas foi

possível dialogar informalmente com consumidores presentes em determinados

estabelecimentos. Quando questionados com relação ao motivo do deslocamento até a

propriedade, afirmaram que dada a preocupação com as condições de produção, se sentiam

mais “seguros” em comprar produtos diretamente nos locais, pois podiam observar a forma

como estavam sendo produzidos e manipulados.

Em relação à periodicidade, constatou-se que mais da metade dos agricultores (57,5%)

que realizam vendas diretas ao consumidor o fazem uma vez por semana e a maioria destes

expõe seus produtos nas feiras-livres. Um percentual bem menor (15,8%) realiza vendas de

duas a três vezes por semana e diariamente são apenas 13,3% produtores, sendo estes

agricultores que entregam o produto nas residências na cidade ou que possuem um ponto

comercial ou, ainda, um estabelecimento de fácil acesso (chácaras dentro ou nas imediações

do núcleo urbano). Dentre os pouco mais de 10% dos produtores que realizam vendas em

períodos irregulares, a maioria alegou dificuldades de organização da produção ou de infra-

estrutura para produzir (falta ou insuficiência de irrigação, estufa, etc.).

Buscou-se verificar também a origem do “saber” empregado nos processos de

produção/agregação de valor realizado pelos agricultores. Especialmente dentre os 61

produtores que realizam algum tipo de processamento de um ou mais produtos observou-se

que os conhecimentos necessários aos processos de produção e/ou agregação de valor foram

transmitidos pelos pais e/ou avós (ou outro ascendente), em 57,4% dos casos. Nota-se, então,

a marca da tradição familiar nos processos de fabricação com base em receitas que, muitas

vezes, resistem por gerações e, mesmo com algumas adaptações, seguem com suas origens

impressas no fazer de cada produto, dando-lhes distinção e uma qualidade específica. A

segunda forma mais citada foi a experiência própria (21,3%) e somente em seguida aparecem

os cursos específicos oferecidos por instituições, como o Itesp, a Cati, o Sebrae e o Serviço

Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) – órgão ligado à Confederação Nacional da

Agricultura. Estes dados indicam, ao mesmo tempo, o forte peso do conhecimento tradicional

(embora a cultura deste último tenha sido plantada para grão); diante da resposta positiva, o primeiro combinou

de pegar milho verde na propriedade do outro na semana seguinte, sem mesmo discutirem o preço.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 144

dos agricultores e a baixa efetividade de ação das instituições públicas e privadas em relação a

esses processos de transformação/fabricação de produtos por parte dos agricultores familiares.

Caracterização dos consumidores de produtos adquiridos diretamente dos agricultores

Foram entrevistados 94 consumidores que compram de 24 produtores pesquisados,

sendo que as entrevistas foram realizadas em feiras-livres (a maioria), mas também em

estabelecimentos, em residências/local de trabalho e em ponto comercial informal fixo na

cidade (uma esquina).

Os consumidores entrevistados possuem, em média, 55 anos e embora as mulheres

sejam a maioria (53,7% do total), a diferença foi pequena, ocorrendo um relativo equilíbrio

em termos de sexo.

Com relação às famílias, observou-se que são pouco numerosas, pois cerca de 2/3 dos

consumidores entrevistados apresentavam no máximo três pessoas na residência (incluindo o

mesmo) e somente 18% tinham mais de quatro pessoas.

A Figura 1 mostra que a escolaridade dos consumidores pesquisados se assemelha a

que foi constatada dentre os produtores (possivelmente devido à média de idade relativamente

alta dos consumidores). Quase 70% não estudaram ou alcançaram no máximo o final do

ensino fundamental. O percentual de analfabetos (9%) é até maior do que aquele encontrado

dentre os produtores (que é de 5,6% e 7% de homens e mulheres, respectivamente). Como a

maioria dos consumidores são frequentadores de feira e nesse tipo de comércio os preços são

consultados verbalmente, é possível que as pessoas analfabetas ou com baixa escolaridade se

sintam mais à vontade nesse ambiente. Há outro grupo de consumidores que busca, na compra

direta dos produtores, aspectos específicos relacionados à qualidade dos produtos e é provável

que a maioria destes inclua aqueles que tenham curso superior (17%) e/ou maior poder

aquisitivo (como será visto a seguir).

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Figura 1 - Grau de escolaridade dos consumidores pesquisados

Fonte: Dados da pesquisa, 2008/09.

A renda familiar de metade dos consumidores situa-se entre 2,1 e 5 salários mínimos,

o que indica um poder aquisitivo modesto, mas superior à média da população brasileira

(GIAMBIAGI; FRANCO, 2007), pois apenas 11,7% dos consumidores entrevistados possuía

renda familiar de até dois salários. Quase um terço dos consumidores situa-se em faixas

médias de renda, entre 5,1 e 15 salários mínimos, e um pequeno grupo de 5% declarou renda

familiar superior a 15 salários mínimos (Tabela 2).

Tabela 2 - Renda familiar dos consumidores entrevistados

Renda Familiar

(Salários Mínimos) N° de consumidores (%)

Até 2,0 11 11,7

De 2,1 a 5,0 47 50,0

De 5,1 a 10,0 19 20,2

De 10,1 a 15,0 12 12,8

Superior a 15,0 5 5,3

Total 94 100,0

Fonte: Dados da Pesquisa 2008/2009

Os consumidores indicaram um total de 56 produtos distintos que costumavam

comprar dos agricultores, com destaque para as olerícolas e as frutas (11 tipos diferentes).

Dentre os produtos específicos foram mais citadas a alface e a mandioca, por 24 e 21

consumidores, respectivamente (Tabela 3).

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 146

Tabela 3 - Principais produtos adquiridos pelos consumidores junto aos agricultores

pesquisados (por número de citações)

N° de Consumidores Produtos

24 Alface

21 Mandioca

8 Abóbora, banana e milho verde

7 Almeirão, manga, pimenta, queijo, leite e feijão

6 Cheiro verde e chuchu

5 Brócolis, quiabo, laranja, couve e aguardente

Fonte: Dados da Pesquisa 2008/2009

Em relação aos gastos efetuados pelos consumidores, como a abordagem nas feiras era

realizada pelo pesquisador quando o produtor iria iniciar a compra ou a havia concluído em

uma banca específica de um dos produtores pesquisados, foi possível estimar o valor gasto

pelo consumidor com aquele produtor específico.

Os consumidores entrevistados gastam, em média, R$9,33 a cada compra realizada,

mas conforme se observa na Tabela 4, a maioria destes (54,3%) realiza compras modestas, de

até R$5,00 e se somarmos a estes aqueles que gastam entre R$5,01 e R$10,00 são 78,8% do

total. Somente 11,7% dos consumidores despendem nas compras valores superiores a

R$15,00 (maior valor citado R$75,00 reais), e nestes casos a compra geralmente incluía

produtos processados, de maior valor agregado, como queijo, requeijão, produtos cárneos

(carne de porco e seus derivados, frango), aguardentes e licores, dentre outros.

Tabela 4 - Valores referentes às compras realizadas pelos consumidores com o produtor,

no momento da abordagem para a entrevista

Valor da Compra N° de consumidores (%)

Até R$5,00 51 54,3

De R$5,01 a R$10,00 23 24,5

De R$10,1 a R$15,00 9 9,6

Acima de R$15,00 11 11,7

Total 94 100,0

Fonte: Dados da Pesquisa 2008/2009

É necessário ressaltar que os valores citados servem apenas como referência, pois as

compras são realizadas em intervalos de tempo variados. Embora predomine a periodicidade

semanal, 62,4% (especialmente no caso das feiras), um percentual significativo de

consumidores (32,3%) adquire os produtos em intervalos de tempo maiores.

A pesquisa buscou levantar junto aos consumidores a “fidelidade” destes em relação

aos agricultores pesquisados. Observou-se que o público entrevistado realiza compras em

média há 6,4 anos junto aos produtores em questão, o que indica uma sólida relação de

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fidelidade. Foram constatados casos de consumidores que adquirem produtos do mesmo

produtor há 20 ou até 30 anos. Verificou-se, ainda, que 41,5% dos consumidores pesquisados

já conheciam os respectivos agricultores, em virtude de, entre outros fatores, terem sido

vizinhos ou companheiros de trabalho em algum momento (a maioria na área rural),

possuírem amigos em comum ou algum grau de parentesco, o que mostra que a preferência

pelo produtor passa pela qualidade intrínseca dos produtos, mas vai além desta, envolvendo,

muitas vezes, relações de interconhecimento prévio, como se pode verificar ao analisar os

motivos da preferência.

Inicialmente foram investigados junto aos produtores quais eram os motivos, segundo

a percepção dos mesmos, da preferência dos consumidores por seus produtos. Os motivos

apontados podem ser observados na Tabela 5, enquanto na Tabela 6 foram listados os

principais motivos mencionados pelos próprios consumidores sobre sua preferência em

comprar daquele produtor especificamente.

Tabela 5 - Percepção dos agricultores pesquisados sobre os motivos de preferência do

consumidor por seus produtos

Motivos N° de produtores % de produtores

Qualidade (total) 66 55,0

Preço menor 24 20,0

Higiene 18 15,0

Amizade 12 10,0

Bom atendimento 12 10,0

Conhecimento/confiança 11 9,2

Produto com menos ou sem

agrotóxico 11 9,2

Produto diferenciado – não

encontrado no mercado 11 9,2

Para incentivar o produtor 4 3,3

Fonte: Dados da Pesquisa 2008/2009

A maioria (55%) dos produtores ao ser questionado sobre o motivo pelo qual as

pessoas preferiam comprar seus produtos (Tabela 5) atribuiu tal fato a aspectos ligados à

qualidade, citando, por exemplo, o frescor, o sabor e o maior tempo útil para consumo. De

modo semelhante (Tabela 6), o principal fator mencionado pelos consumidores, quando

questionados a respeito do motivo pelo qual compravam de determinado produtor, também se

referiu a atributos próprios da qualidade dos produtos (51,1%), com destaque para o frescor e

sabor.

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Tabela 6 - Motivos de preferência consumidores pesquisados em relação aos produtos

adquiridos diretamente dos produtores

Motivos N° de consumidores % de consumidores

Qualidade (total) 48 51,1

Conhecimento/confiança 15 16,0

Produtos frescos 10 10,6

Preço menor 10 10,6

Bom atendimento 9 9,6

Produto com menos ou sem

agrotóxico 9 9,6

Higiene 9 9,6

Amizade 8 8,5

Produto natural 5 5,3

Praticidade 4 4,3

Produto caipira/caseiro 0 3,0

Fonte: Dados da Pesquisa 2008/2009

Outro aspecto mencionado com certo destaque e que também se relaciona com a

qualidade (extrínseca) do produto foi a limpeza/higiene, mas esta é mais percebida pelos

produtores (15%) do que pelos consumidores (9,6%). A higiene é citada pelos produtores e

percebida pelos consumidores em visitas que realizam aos produtores no estabelecimento, na

forma de apresentação das mercadorias comercializadas, como embalagens e locais nos quais

são expostos seus produtos (bancas, balcões), e também na vestimenta dos produtores.

Os produtores parecem atribuir maior importância ao suposto preço menor que

praticam do que é percebido pelos consumidores. Enquanto 20% dos agricultores citam esse

fator, entre os consumidores o percentual é quase a metade (10,6%).

De modo inverso, o conhecimento em relação ao produtor e confiança a respeito da

forma que é realizada a produção é mencionada mais pelos consumidores (16%) do que pelos

produtores (9,2%), enquanto um aspecto próximo da confiança, a amizade, foi citada, de

forma semelhante, pelos dois segmentos. Estes dois fatores, assim como o “bom

atendimento”, claramente extra-econômicos e dissociados da qualidade específica do produto,

indicam que as relações sociais estabelecidas por parte significativa dos produtores e dos

consumidores apoiam-se em valores mais amplos e não explicados pela racionalidade

instrumental. Mais do que simples operações de cunho meramente econômico, os fatores que

determinam as preferências e as avaliações sobre a qualidade dos produtos se entrelaçam com

relações afetivas, muitas vezes de longa data e anteriores ao início desta forma de

comercialização, pois, como foi visto, quase a metade dos consumidores já conhecia o

produtor antes de se tornar um freguês.

Observa-se que a qualidade, como afirma Allaire et Boyer (1995) é resultado de um

processo social, no qual podem se defrontar diferentes lógicas. Stanziani (2003) também

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 149

assinala que a qualidade dos produtos não são atributos essenciais pré-existentes, antes desses

serem introduzidos no mercado, e que a evolução histórica das mudanças de qualidade não

são simples reflexos de mudanças tecnológicas, mas os atores também intervêm no

funcionamento do mercado através de negociações (ou imposições), cujo objetivo é definir a

qualidade dos produtos. Stassart (2005) acrescenta que a qualidade é resultado da interação de

atores que apresentam uma pluralidade de lógicas de ação, organizadas em diferentes formas

de coordenação e dão origem a diferentes definições da qualidade.

No caso dos produtores em análise, o tipo de reconhecimento da qualidade é o que

Thévenot (1995) denomina qualidade “doméstica”, caracterizada pela mobilização do saber-

fazer informal acumulado pela experiência, podendo resultar de ligações duráveis com os

consumidores que criam a confiança e mantêm a reputação do produto ligada uma origem

e/ou a um modo de produção.

Estes produtos também remetem a um modo de vida ligado ao campo que os

consumidores valorizam, seja por fazer parte de seu passado ou de seus pais, seja por

representar a idéia de uma tradição em que a convivência com a natureza aparecia de forma

mais harmônica.

O menor uso (ou não uso) de agrotóxicos também é mencionado por cerca de 10%

tanto de produtores, como de consumidores. Alguns consumidores citaram aspectos

correlacionados, como a ausência de conservantes e “química”; o fato de ser um produto

natural, puro, “do campo” e “caipira”.

A pesquisa realizada junto aos consumidores identificou alguns casos que envolvem

outro tipo de relação de confiança, em que os consumidores se referem à possibilidade de

“comprar fiado”, como fator que contribui para a preferência pelo agricultor em questão.

Renda obtida na comercialização direta ao consumidor

Além do levantamento dos produtos comercializados, a pesquisa aferiu, também, a

quantidade e os preços destes que aliados à periodicidade tornou possível o cálculo da renda

bruta decorrente da venda dos respectivos produtos, segundo a forma de comercialização

empregada. No entanto, como parte dos agricultores entrevistados não conseguiu fornecer

determinados dados importantes para tais cálculos, especialmente a quantidade

comercializada dos respectivos produtos, calculou-se a renda mensal bruta decorrente dos

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 150

produtos listados por 94 agricultores (dentre o total de 120) que realizam comercialização

direta ao consumidor e que forneceram dados mais detalhados.

A renda bruta recebida mensalmente pelos agricultores, decorrente da comercialização

direta ao consumidor é bastante variável, com alguns valores, conforme mostra a Tabela 7,

inferiores a cem reais e outros que ultrapassavam três mil reais na época da pesquisa75

. Nota-

se que a maioria (52,1%) recebia mensalmente valores entre R$500,00 e R$2.000,00, mas há

também uma parcela significativa (25,5%) cujos valores recebidos ultrapassam R$3.000,00.

Tabela 7 - Rendas brutas obtidas mensalmente por meio de vendas diretas ao consumidor pelos

produtores pesquisados

Faixa de renda mensal Nº de agricultores %

Até R$100,00 3 3,2

R$101,00 a R$500,00 7 7,4

R$501 a R$1.000,00 22 23,4

R$1.001,00 a R$2.000,00 27 28,7

R$2.001 a R$3.000,00 11 11,7

Acima de R$3.000,00 24 25,5

Total 94 100,0

Fonte: Dados da pesquisa, 2008/09.

Estes dados indicam a importância, em termos de geração de renda, que a

comercialização direta tem para a grande maioria das famílias pesquisadas. A renda média da

produção de leite (principal atividade da maioria dos agricultores familiares do noroeste

paulista), calculada por Tarsitano et al (2008), no Assentamento Timboré, foi de 2,27 salários

mínimos, o que resulta em um total de R$942,05, se considerarmos para efeito comparativo o

valor do salário mínimo no segundo semestre de 2008 (R$415,00), época em que foram

coletados os dados da pesquisa a que se refere o presente artigo. Verifica-se que 62 produtores

(66%), daqueles vendem direto ao consumidor e que foi possível calcular a renda,

conseguiram uma renda superior à média obtida pelos produtores de leite. Cabe destacar,

ainda, que parte dos produtores vende também para o mercado varejista, pequena indústria

e/ou mercado institucional, portanto a renda da comercialização diferenciada é ainda mais

significativa para o conjunto destes produtores.

75

Os levantamentos de campo foram realizados no segundo semestre de 2008.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 151

Considerações finais

A comercialização realizada pelos agricultores diretamente ao consumidor é

caracterizada por uma grande diversidade de produtos colocados no mercado, alguns que

exigem alto grau de especialização, outros um saber-fazer específico e transmitido de uma

geração à outra dentro de uma família e ainda outros que são produtos do quintal,

normalmente plantados exclusivamente para consumo próprio, mas que atendem preferências

de determinados clientes. A diversidade também se manifesta nas estratégias que os

produtores utilizam para colocar seus produtos no mercado, pois embora as feiras-livres sejam

predominantes, há uma ampla variedade de formas de comercialização, acionadas a partir de

relações de interconhecimento anteriores até mesmo ao início da comercialização direta e/ou

então construída ao longo do tempo, com base na qualidade reconhecida pelos clientes e que é

ampliada pela indicação realizada de forma pessoal (boca a boca).

Tanto produtores como consumidores identificam a qualidade, aliada à confiança,

como principais fatores que proporcionam o sucesso na comercialização. Esta qualidade é

expressa de forma ampla, mas com marcantes referências aos sistemas de produção menos

intensivos em termos de uso de insumos químicos sintéticos (especialmente agrotóxicos), aos

processos de fabricação artesanais/caseiros e a aspectos relacionados à proximidade (física) da

produção, que permite a obtenção de produtos mais frescos, além da proximidade afetiva,

pelo gosto de vender/comprar diretamente do produtor/consumidor nas feiras,

estabelecimentos e residências.

A renda gerada pela venda direta ao consumidor é muito relevante para a maioria dos

produtores pesquisados. Em torno de dois terços dos produtores que vendem direto ao

consumidor conseguiram uma renda maior do que a média obtida pelos produtores de leite,

que é a principal atividade da maioria dos agricultores familiares das microrregiões estudadas,

além do fato de que uma parte expressiva dos produtores vende também para o comércio

varejista, pequena indústria e/ou mercado institucional.

A análise do conjunto dos resultados da pesquisa permitiu verificar que a

comercialização direta ao consumidor é muito importante, não somente para a geração de uma

renda monetária mensal expressiva para as famílias. Além do aspecto econômico, vários

produtores mencionaram que, nessas atividades de comercialização direta, sentem maior

autonomia relativa para organizar a produção, maior poder de negociação de preços e alguns

destacaram, com satisfação, o fato de formarem um leque mais amplo de conhecimentos, de

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 152

amizades (entre o rural e o urbano/dentro do próprio rural), enfim, de novas sociabilidades,

que vão além daquelas que teriam se mantivessem apenas a atividade produtiva agrícola em

seu estabelecimento.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 155

Construcción de mercados desde la perspectiva de los espacios protegidos:

El caso de la cuenca lechera caprina em Santiago del Estero, Argentina

Raúl Paz

Introducción

La producción de leche de cabra para el autoconsumo constituyó históricamente una

actividad tradicional por parte de las familias rurales de Santiago del Estero. Recién en 1987,

con la ejecución del Proyecto “Desarrollo de Pequeños Productores Cabriteros” por parte de

la Fundación para el Desarrollo en Justicia y Paz (Fundapaz), la lechería caprina se instala

desde una perspectiva comercial. El proyecto desarrolló acciones tendientes a promover la

lechería caprina como una nueva alternativa de producción por parte de los campesinos,

fuertemente vinculada al desarrollo agroindustrial.

El resultado, luego de más de 20 años, es la conformación de una cuenca lechera

caprina compuesta por cerca de 50 productores (el 90 % son campesinos y el resto pequeños

productores familiares) integrados verticalmente a dos pequeñas plantas queseras ubicadas

dentro de la cuenca. A las dos fábricas se suma una tercera fábrica de tipo artesanal, que es

propiedad de un pequeño productor que procesa sólo la leche que produce en su explotación.

En este proceso histórico, la pequeña producción lechera caprina estuvo sometida al

influjo de numerosos factores que pusieron a dicha actividad en una constante tensión. Por un

lado, factores que favorecieron al desarrollo y el consecuente establecimiento de la misma

como una actividad productiva articulada al mercado y otros que por el contrario, conspiraron

para su desaparición y pusieron en situación de crisis a la actividad (PAZ et al., 2009).

La particularidad de esta experiencia de desarrollo se encuentra, precisamente, en la

presencia de un cierto grado de institucionalidad, que en términos relativos podría

considerarse como fortalecida por la presencia de productores con una cierta identidad

cultural, que se materializa en el saber hacer y que ha permitido grados razonables de

transformación productiva (PAZ, 2004). Asimismo, la construcción y fortalecimiento del

capital social resulta un importante factor a tener en cuenta en este caso, como elemento

indisociable de este rasgo institucional e identitario (MARSDEN; PLOEG, 2008).

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 156

Sin embargo, y pese a la participación de una importante cantidad de instituciones, tanto

gubernamentales como no gubernamentales, que ha generado una densa trama de

relacionamientos en todos los niveles, por la que circulan recursos financieros, humanos,

técnico-productivos y de gestión, surge un interrogante central: ¿Por qué no se logró a la

fecha un desarrollo económico, social y productivo sostenido? Este interrogante, entre otros,

llevó a un trabajo de sistematización de dicha experiencia a los efectos de encontrar algunas

respuestas. Así entre las conclusiones de Paz et al. (2011), se plantea que un proyecto de

desarrollo rural que se apoya en una actividad productiva orientada fuertemente al mercado,

como lo es la leche de cabra, requiere necesariamente abordar tres aspectos que resultan

centrales:

a) producir de forma competitiva y sustentable;

b) articular la economía del territorio a mercados dinámicos;

c) la generación de una nueva institucionalidad orientada a la búsqueda de

gobernabilidad de los mercados.

Aparentemente lo que evitó que no se lograra generar capacidades colectivas de

movilización de los recursos específicos y crear condiciones favorables para el

desarrollo de esta cadena productiva, fue la presencia de un mercado que no

mantuvo señales claras, generando incertidumbre que desestimuló la inversión por

parte de los productores, como también de las fábricas (PAZ et al., 2011, p.152).

Precisamente este artículo buscará profundizar en la búsqueda de la gobernabilidad de

los mercados a través de la construcción de espacios protegidos y la emergencia de nuevas

redes socio técnicas, acciones que en distintos momentos de la cuenca fueron implementados

por los diferentes agentes que participan en su desarrollo.

El artículo analizará tres ejemplos que a juicio del autor son experiencias que pueden

aportar -desde los aciertos y errores- elementos tendientes a la construcción de cadenas cortas

de comercialización (productor-consumidor), a la generación de nuevos mercados dinámicos

locales y a la búsqueda de una competitividad sistémica amplia que incluya tanto a los

productores como a las agroindustrias.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 157

Caracterización del territorio

Ubicación geográfica de la cuenca.

Mapa 1 - Localización geográfica de la cuenca lechera caprina

La zona de influencia de la cuenca se extiende en parte de los departamentos Banda y

Robles, área de riego del río Dulce de la provincia de Santiago del Estero. El área está

enmarcada con la Ruta Nacional 34 (que une las principales ciudades del país, entre las que se

encuentran Salta, Tucumán, Rosario y Buenos Aires) y las rutas provinciales 1 y 18 (que unen

la capital de Santiago del Estero, con Villa Robles -cabecera departamental- y Forres). (Mapa

1)

Dimensión productiva y actores del territorio

En la actualidad, la cuenca lechera abarca alrededor de 900 km2

con 50 tambos de

pequeños productores y por tres fábricas: Las Cabrillas, perteneciente a Fundapaz y La

Carola, de capitales privados con una capacidad operativa de 2.000 litros/día cada una. Una

tercera fábrica, de tipo artesanal, que es propiedad de un pequeño productor que procesa sólo

la leche que produce en su explotación con una capacidad 100 lts/día.

Una característica constante en la historia de la cuenca ha sido lo errático de su

producción, observándose en ella momentos de expansión y contracción.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 158

Cuadro 1- Oferta anual de leche entregada a las fábricas para el período 1999-2009

AÑO 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

L 113.397 97.963 75.295 83.892 205.333 329.869 188.121 125.541 122.240 150.418 195.503

A los efectos de tener una dimensión más precisa de la leche de cabra generada en las

explotaciones de los pequeños productores, si se observa el mes de enero de 2009 (uno de los

meses de mayor producción en el año) hubo productores cuyo pico máximo alcanzó los 1.900

litros, en tanto que otros llegaron a los 200 litros para el mismo mes. Paralelamente y para

julio del mismo año (uno de los meses en los que disminuye la producción) hubo productores

que entregaron alrededor de 500 litros y los de menor producción rondaron los 20 litros.

La curva de oferta mensual de leche fluida de cabra muestra un marcado carácter

estacional. La concentración de los mayores volúmenes de leche entregada por parte de los

tamberos ocurre durante los meses de septiembre a marzo (leche de verano) y los menores

volúmenes entre los meses de abril a agosto (leche de invierno).

Mercados, circuitos de comercialización y generación de nuevos mercados

Ejemplo 1: construyendo cadenas cortas de comercialización

Un aspecto clave a tener en cuenta son los circuitos de comercialización utilizados por cada

una de las fábricas. Los volúmenes de producción tanto Las Cabrillas como La Carola SRL

rondan aproximadamente los los 20.000 kg/anuales. Estas dimensiones las ubican en la

categoría de pequeñas agroindustrias. Sin embargo, ya esos volúmenes le exigen explorar

circuitos más amplios que trascienden lo específicamente local, para ocupar espacios

comerciales en las principales provincias del país.

En contraposición, los volúmenes de producción de la tercera fábrica (2.000 kg/año)

trabajado por el propio productor llamado Don Francisco, permiten explotar un circuito más

corto, más directo entre la producción y el consumidor, aspecto éste que abre una instancia de

negociación con otros parámetros comerciales.

Entre las principales actividades desarrolladas en el predio, cobra relevancia las

relacionadas con el sistema pecuario: es diversificado y está compuesto por 2 equinos, 2

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 159

vacas y 2 terneras, 109 cabras76

, 3 reproductores caprinos, 5 cerdas reproductoras, 9 capones

cerdos y 30 lechones. Además tiene aves de corral y unas cuantas colmenas ubicadas en el

monte. Parte de la producción se orienta al autoconsumo y otra importante a la venta. La

producción primaria está fuertemente integrada al proceso agroindustrial buscando una mayor

vinculación de los recursos tendientes a generar mayor valor agregado.

El proceso agroindustrial se desarrolla a partir de la conversión de leche a queso y de

producción de carne (especialmente la proveniente de los cerdos) a chacinados o embutidos.

La producción de quesos es la actividad principal desempeñada en la explotación y se realiza

diariamente durante todo el año de forma artesanal. Los quesos tienen como principal insumo

la leche que proviene de la misma explotación. Paralelamente, durante la época de clases el

establecimiento recibe la visita de escolares77

. Actividad que podría ser concebida como de

agroturismo, desarrollándose en la explotación de forma complementaria a la producción de

quesos y chacinados. Durante el paseo por la granja se interactúa con los animales, luego se

les muestra como elaboran los quesos, y por últimos la visita termina con un desayuno con

pan, miel y leche. Los maestros y padres de los alumnos aprovechan la posibilidad de

comprar productos elaborados artesanalmente. Es esta una forma de dar a conocer sus

productos y atraer al cliente, ya que mientras los escolares desayunan, se proporciona una

degustación de los productos a los adultos.

Un aspecto que es central al momento de articularse al mercado como oferente de la

producción de quesos, se refiere a las relaciones específicas establecidas en el mercado

(PLOEG, 2001; MARSDEN; PLOEG, 2008). Históricamente las dos fábricas que están

ubicadas en la cuenca lechera, han venido colocando en los comercios78

ubicados en las

ciudades de La Banda y Santiago del Estero entre los 500 kg y 700 kg de queso al año,

teniendo serias dificultades en ampliar dicho mercado. Don Francisco coloca alrededor de

1.500 kg/año. Su estrategia de venta está puesta en la utilización y comprensión del

funcionamiento de los circuitos cortos y descentralizados que vincula directamente (cara a

cara) la producción y el consumo. Los escolares y las personas que visitan la explotación, los

clientes permanentes a los cuales les lleva el queso a su domicilio y un local de ventas de

delicatessen suelen ser sus circuitos más importantes.

76

Al momento de iniciar el control lechero tenía 40 cabras en lactación y 72 cabritos. 77

Los escolares que asisten a la visita de la explotación permanecen en ella tres horas aproximadamente y pagan

$4/alumno (1 dólar). Se busca que los niños tomen contacto directo con los animales de la granja, muchas

veces participando de algunas actividades como el ordeñe o la alimentación a los gansos. 78

Estos comercios suelen dedicarse a la venta de quesos, fiambres y productos de alto valor agregado, donde los

quesos de cabra son uno de ellos.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 160

Un queso de calidad, el uso de buenas prácticas tanto en la producción de leche como

en la elaboración del queso, un precio final que está por debajo de la competencia79

y circuitos

de cadena corta, constituyen la clave de su estrategia de marketing.

Ejemplo 2: generando mercados dinámicos locales

En 1999 aparece una de las crisis más fuertes de la cuenca por falta de mercado del

queso de cabra y, en consecuencia, de la leche fluida. Fundapaz gestiona un acuerdo con el

Gobierno de la Provincia, que se materializa en el plan piloto provincial denominado

"Alimentando a 1000 niños de las escuelas rurales". El plan piloto sólo cubre a seis escuelas

rurales ubicadas en el área de influencia de Fundapaz, y tiene como principal objetivo

incorporar al menú diario de los comedores escolares la leche de cabra junto a otros productos

como la miel y mermeladas locales.

Sin embargo, este plan va más allá del hecho de viabilizar e incrementar la demanda

de leche fluida y quesos de cabras; también busca generar una cultura del "compre local",

disminuyendo la importación de dichos productos de otras provincias.

El Plan Piloto comenzó a tener problemas diversos, la mayoría de tipo operativo,

financiero, de control y gestión. Uno de los principales problemas es que a los niños no les

gustaba la leche pura, a la que hubo que agregar en fábrica algún tipo de saborizante.

Posteriormente resultaba difícil hacer llegar la leche en las mejores condiciones,

especialmente con la cadena de frío, disminuyendo la calidad del producto.

Las escuelas rurales no tenían instalaciones de frío para recibir la leche, muchas de

ellas no tenían los elementos básicos como heladeras, tazas y cucharas. Las escuelas recibían

por parte del Ministerio de Educación un valor por ración/estudiante que los Directores de las

escuelas debían administrar. La incorporación de la leche de cabra (un poco más cara que la

leche de vaca) a la dieta diaria, elevaba esos costos y el Ministerio no los cubría.

Posteriormente se ajustó el presupuesto, pero muchas veces no llegaba en tiempo y forma,

cortándose la cadena de pago para Fundapaz y en consecuencia para los tamberos

involucrados. En este proceso se observó un primer desencuentro entre el valor de la ración

manejada por el Ministerio y el aumento de los costos por parte de los comedores escolares.

El otro aspecto estuvo relacionado con la falta de compromiso por parte de los

distintos funcionarios de gobierno y una descoordinación entre los Ministerios de Bienestar

79

Precisamente, una baja inversión externa, ausencia de categorías económicas como las amortizaciones,

salarios, pagos de intereses por créditos o pagos por impuestos y un despliegue de estrategias de no

mercantilización, en un marco de mayor endogeneidad y sustentabilidad de los sistemas de producción permite

obtener una producción a bajo costo y por lo tanto ser más competitiva. Para más detalles ver Paz et al. (2011).

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 161

Social y de Educación que muchas veces no se pusieron de acuerdo en las cuestiones

operativas y de funcionamiento del Plan.

Por cuestiones de orden operativo-financiero como también por una falta de

compromiso del Gobierno provincial dicho plan deja de funcionar a finales del mismo año.

Sin embargo, y pese a la no continuidad, el Plan Piloto, a juicio del autor, constituye

una experiencia muy interesante en cuanto permite, a partir de articulaciones entre organismos

no gubernamentales o privados y el gobierno, generar un mercado dinámico local. Dicho

mercado se puede ir ajustando a la oferta de leche producida por la cuenca y no a la inversa,

es decir que el desarrollo de la cuenca deba ajustarse al mercado, condición que ha sido el

estigma de la cuenca y que no permitió su desarrollo y consolidación. A medida que se

observe un incremento de la producción de leche por parte de la cuenca -y no hay un

incremento de la demanda en los quesos-, se puede ir incorporando nuevas escuelas a los

efectos de regular la demanda en función de la oferta de leche. Por el contrario, al momento

de que las fábricas encuentren ubicación del queso en el mercado y se amplíe la demanda de

leche a los productores, se disminuye la entrega de leche en las escuelas, buscando modificar

rápidamente el tipo de ración. En síntesis, sería la búsqueda del equilibrio en el mercado; todo

ello requiere un trabajo coordinado entre los distintos actores de la cuenca lechera como

también del gobierno, participando distintos ministerios y organismos públicos. Aquí el

desafío está puesto, no precisamente en la construcción de nuevos mercados que resultaría

relativamente sencillo, sino más bien en el diseño, articulación y coordinación de las distintas

instituciones (desplegando redes).

Esta estrategia de construcción de nuevos mercados dinámicos locales, podría

asimilarse al modelo de coordinación con el mercado, dirigido a realizar acuerdos

comerciales entre las fábricas y el gobierno local con el objeto de poder ubicarse en un

mercado de mucha incertidumbre y de demanda estacional. Hay que recordar que la mayor

producción de leche se da en verano donde la demanda de quesos disminuye notablemente

(demanda anticíclica a la producción).

Ejemplo 3: buscando una competitividad sistémica amplia

No es suficiente alcanzar un cierto grado de competitividad por parte de los pequeños

productores para el desarrollo de la cuenca lechera en general. También las industrias deben

lograr un cierto grado de competitividad. Para la cuenca lechera, son las plantas queseras las

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 162

que tienen una fuerte articulación al mercado regional o nacional y su lógica responde a los

clásicos imperativos del mercado, básicamente a través de los mecanismos de precios.

La planta quesera, en una coordinación con el mercado (VIHINEN; KRÖGER, 2008),

responde a los cambios de la demanda (calidad y precios), estando obligada a mejorar su

producto y bajar sus costos de producción a los efectos de ser más competitiva. Ello lo puede

lograr por medio de mejorar sus procesos productivos y disminuir el precio de la leche al

momento de la compra a los productores. Estas estrategias han sido utilizadas en distintos

momentos de la cuenca.

Históricamente las plantas han tenido serios problemas de colocación de los quesos en

el mercado nacional, lo que ha repercutido directamente en la contracción de la cuenca

lechera y la imposibilidad de un desarrollo sostenido.

Las dos plantas queseras, de forma individual, han logrado desarrollar otras estrategias

tendientes a sostenerse en el mercado. Uno de los caminos, asimilado al modelo de

coordinación con el mercado, estuvo dirigido a realizar acuerdos comerciales con otras

fábricas que tienen una mayor participación y presencia en el mercado.

Una forma es a través de la venta de quesos con marca blanca80

. Esta nominación se

da a la venta de quesos - sin etiquetar y sin establecer su procedencia- a otras empresas que

ponen su identificación y la venden como producción propia. Este mecanismo fue usado en

distintos momentos por las dos empresas.

Otra instancia fue el traspaso de la fábrica a otras empresas. En el año 2004, Fundapaz

entregó a Las Cabrillas en forma de comodato a la empresa La Salamandra SA, con el

objetivo de dinamizar y garantizar la colocación del queso, aspecto éste que no prosperó

generando así la disolución de dicho contrato a principios de 2007. Una estrategia similar en

cuanto a la búsqueda de apertura y ampliación en el mercado fue realizada por La Carola

SRL, para el año 2009, a través de la venta de parte de sus acciones a otra empresa que tiene

una fuerte participación en el mercado de quesos de cabra a nivel nacional81

.

Sin embargo, las plantas queseras en su historia y gracias a haberse sostenido en el

mercado han logrado desarrollar otras estrategias más acordes a la situación social, económica

y territorial de la cuenca lechera. En estos últimos años, las empresas en conjunto con los

productores, primero a través de las propias organizaciones y luego por medio de la mesa de

80

Esta nominación se da a la venta de quesos, sin etiquetar y establecer su procedencia, a otras empresas que

ponen su identificación y la venden como producción propia. 81

De la entrevista con uno de los socios de la empresa surge “[…] este arreglo buscó posicionarse en el mercado

asociado a una empresa líder […], sin embargo ello no amplió la demanda de queso a nivel nacional, lo que se

hizo fue participar de un mayor pedazo de la torta de la demanda, pero la demanda no cambió”.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 163

concertación (productores, industrias y gobierno), han ido generando una suerte de acuerdos a

los efectos de poder tener cierto control sobre los mercados.

Es así que se plantea una coordinación cívica, entendida como una relación entre los

actores a través de acuerdos, debates y delegaciones. La coordinación es construida sobre la

cooperación, reconocida a partir de intereses y objetivos comunes que trascienden los

intereses estrictamente personales (VIHINEN; KRÖGER, 2008).

Una leche de calidad y a un precio conveniente en tiempo y forma, tanto para las

fábricas como para los productores es una idea compartida por parte de los distintos actores

de la cuenca lechera. Desde esa perspectiva, la experiencia del Fondo Rotatorio es innovadora

para la cuenca, en tanto implica acciones tendientes a la estructuración organizacional de los

actores locales para la administración y gestión participativa de recursos públicos.

En el año 2007 hay problemas en la colocación del queso y, por lo tanto, en la

demanda de leche por parte de las fábricas. El planteo de La Carola es que su principal

problema es la falta de liquidez financiera y por el circuito productivo-financiero imperante82

,

resulta difícil pagar a los tamberos a los 30 días de recibida la leche en fábrica. Normalmente

los tamberos deben esperar entre 60 y 90 días para cobrar la leche.

Es en ese contexto que las relaciones comerciales entre los tambos y La Carola, se

formalizan a través de un convenio marco entre la fábrica y el Gobierno de la Provincia

(quien subsidia la compra de leche para la creación de un fondo rotatorio) y las asociaciones

de pequeños productores. Así La Carola compra la leche fluida de cabra a los pequeños

productores mediante un subsidio otorgado por el Gobierno Provincial y les paga en un plazo

de 30 días. El mismo es administrado por la Comisión Municipal de Villa Robles que es

donde se ubican espacialmente la mayoría de los tambos. Este subsidio es devuelto por la

empresa a los 90 días y depositado en una cuenta a nombre de la Comisión Municipal que

servirá para iniciar nuevamente el circuito del fondo rotatorio.

Entre las ventajas se encuentran las siguientes:

a) liquidez financiera de la industria y aumento de la capacidad de negociación

dentro de la cadena de comercialización,

b) apertura y ampliación de mercado en cuanto que la fábrica puede absorber

más leche;

82

La leche recibida es procesada y llevada al mercado a los 30 días o 180 días, según sea un queso fresco o de

pasta dura. Los comerciantes suelen pagar una vez recibido el producto a los 30 días en el mejor de los casos.

Por lo tanto, para los industriales, “juntarse con el dinero de esa leche lleva al menos entre 90 y 120 días […]”

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 164

c) los tamberos se ven favorecidos al vender todo su producción y cobrar en un

plazo de 30 días, y

d) control financiero de la industria que le permite posicionarse de otra forma

en el mercado, como, por ejemplo, el procesamiento de quesos duros que

tienen mayor valor agregado.

Algunas reflexiones

La gobernabilidad de los mercados es la capacidad institucional para controlar y

fortalecer el mercado y también construir otros nuevos. Los tres ejemplos muestran distintas

formas de construir espacios protegidos tendientes a tener un cierto control y manejo de los

mercados.

Para el caso de Don Francisco, el uso de circuitos comerciales de cadenas cortas e

informales, distinto a los de cadena larga y más formalizados, difícilmente respondan los

formatos clásicos de la economía moderna, aspectos que dan lugar a una difícil identificación

de tales circuitos comerciales y en consecuencia a ponderarlos monetariamente. En síntesis, se

podría decir que existe una economía invisible pero no por ello carente de valor comercial.

Desde la perspectiva de un economista clásico, la venta de quesos por parte de Don

Francisco puede ser definida como un mercado tradicional en cuanto hace referencia a canales

de distribución informales, productos poco diferenciados, variaciones relativamente

importantes en calidad y homogeneidad, poca transparencia en el precio y fundamentalmente

posibilidades de realizar las transacciones al momento que el productor lo necesite

(DURSTEWITZ; ESCOBAR, 2006). Sin embargo, ello no quita que también presente

algunas características de un mercado dinámico en cuanto puede absorber una cantidad de

bienes importantes producidos en la finca como también en el propio territorio

(SCHEJTMAN; RAMIREZ, 2004). En una síntesis de varias experiencias en una

convocatoria realizada por Chorlavi, se llega a concluir que “[…] la connotación de mercados

dinámicos no sólo se observa en espacios de venta extralocales formales. Por el contrario, se

ha observado que mercados locales con altos grados de informalidad también pueden resultar

en espacios de mercadeo dinámico para los territorios pobres y marginados” (RAMIREZ et

al., 2007, p. 8).

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 165

Sin embargo, la construcción de estos circuitos cortos y no formales logra su

competitividad a partir de escalas mínimas de producción y puntos bajos de equilibrio a través

de fuertes procesos de artesanalidad de la producción y de intensificación.

Los otros dos casos, donde participan las fábricas, se observa que, por el contrario, las

transacciones, al realizarse a través de las plantas lácteas, establecen vínculos formales con los

mercados. Son las plantas queseras las que traccionan el mercado de la leche fluida y, en

consecuencia, al estar insertas en una lógica de coordinación con el mercado, en general son

tomadoras de precios como de la demanda de quesos.

Tener control sobre el mercado de leche fluida requiere una coordinación civil dirigida

hacia los mercados. El plan piloto Alimentando a 1000 niños de las escuelas rurales y el

Fondo Rotativo constituyen diseños innovadores en términos de avanzar hacia cierta

gobernabilidad sobre los mercados a partir de la coordinación cívica.

De esta breve experiencia se desprenden algunas lecciones. La primera es la necesidad

de una importante sensibilidad por parte del Gobierno provincial y/o municipal a los efectos

de llevar adelante y facilitar tal propuesta. La segunda se refiere a la necesidad de fuertes

apoyos externos (políticos, financieros y de organización), tanto para iniciar los procesos

como para asegurar la sostenibilidad. En tercer lugar, la necesidad de trabajo asociativo como

una condición ineludible para enfrentar los retos del mercado, observándose que cuanto más

formales son los mercados, mayor debe ser la formalidad que requiere la organización de

productores dentro del territorio.

Para el caso de la cuenca lechera en particular, la nueva institucionalidad debe estar en

estrecha relación con la gobernabilidad del mercado, aspecto éste en el cual no se ha

profundizado aún. Ello exige la formulación de objetivos que trasciendan lo netamente

económico productivo predominante en las agencias gubernamentales y no gubernamentales

que intervienen en la experiencia y la gremial de las organizaciones de productores, para

situar su ámbito de acción en niveles de decisión política que puedan abrir mercados

vinculados con el enfoque de la economía social y local. Perspectiva, esta última, que parte de

una visión sustantiva de la economía, reconociendo y conceptualizando las diferencias

económicas en el marco del sistema social capitalista, a través de la identificación de la

existencia de una economía mixta, con diferentes formas organizativas y lógicas en sus

subsistemas (capitalista, pública y popular) (CORAGGIO, 2007, 2009; DE MELO LISBOA,

2000; POLMAN et al., 2010).

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 166

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 167

Adquirindo alimentos da reforma agrária: o Programa de Aquisição de

Alimentos (PAA) como política de segurança alimentar nos

assentamentos do Rio Grande do Sul

Priscila Gualberto de Lima

Gilson César Pianta Corrêa

Introdução

A partir dos anos 1990, é evidente o crescimento de demandas e reivindicações em

torno do desenvolvimento rural. Inúmeras transformações sociais, políticas e econômicas

ocorreram no país nesse período, permitindo a emergência desse debate no Brasil. As

discussões sobre a temática envolveram um amplo espectro de fatores que contribuíram

para que emergisse como relevante no contexto sociopolítico da época, no entanto, quatro

fatores seriam decisivos para sua ocorrência.

Em primeiro lugar, o crescimento da agricultura familiar como uma categoria

política, fortemente vinculada à recomposição do movimento sindical dos trabalhadores

rurais na década de 1990, além dos diversos estudos e pesquisas produzidos, os quais

apresentavam uma nova tipologia dos estabelecimentos rurais brasileiros. Em segundo, a

crescente influência e ação do Estado no meio rural, impulsionada tanto por meio das

políticas para a reforma agrária, inicialmente, como de ações relacionadas à agricultura

familiar, segurança alimentar e nutricional, previdência rural, etc. Em terceiro lugar, as

mudanças no âmbito político e ideológico, fazendo com que a discussão sobre

desenvolvimento rural surgisse como uma alternativa e uma oposição à noção de

agribusiness e agronegócio. Por fim, o tema da sustentabilidade ambiental, o qual

transcende a própria fronteira do espaço rural, sendo discutida nas mais diversas áreas

(SCHNEIDER, 2010a).

Ainda de acordo com o autor, uma das principais ações ocorridas para a afirmação

da agricultura familiar como categoria social e política foi a aceleração da reforma agrária

no país, em decorrência da criação da Secretaria Especial Extraordinária de Assuntos

Fundiários que, posteriormente, viria a se tornar o Ministério do Desenvolvimento Agrário

(MDA), em 1998. Até 1990, como destaca Leite (2000), os projetos de assentamento

(PAs) existentes no Brasil totalizavam 876 núcleos, sendo que destes, 515 foram

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 168

realizados na esfera do I Plano Nacional de Reforma Agrária (I PNRA). Em 1995, dados

oficiais do governo indicaram o aumento do número de assentamentos, somando 1.626

núcleos com cerca de 350.000 famílias assentadas em 27 milhões de hectares.

Somando-se a isso, a criação, em 1996, do Programa Nacional de Fortalecimento

da Agricultura Familiar (PRONAF), considerado uma importante conquista em termos de

crédito rural para os pequenos agricultores, auxiliou sobremaneira a consolidação desse

debate acerca da agricultura familiar e do desenvolvimento rural no país. No ano de 2003,

outra importante iniciativa do Estado passou a se materializar em um programa para a

geração de benefícios diretos na comercialização dos produtos da agricultura familiar,

permitindo o acesso dos agricultores aos mercados e garantindo os preços de sua

produção. Trata-se do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), cujas grandes linhas

de atuação podem ser sintetizadas nas contribuições dadas ao fortalecimento da

agricultura familiar e à garantia da segurança alimentar e nutricional.

É, precisamente, sobre os efeitos dessa última ação governamental para os

agricultores que este artigo pretende examinar. À medida que o PAA se consolida e que o

debate acerca de sua importância para o meio rural avança, diversos estudos têm buscado

analisar o PAA, sobretudo no que se refere aos resultados obtidos pelos beneficiários

(agricultores e suas famílias), a partir de seu acesso a essa política pública. De uma forma

mais ampla, a questão a ser respondida neste artigo é: qual o papel do PAA no processo de

construção de uma política alimentar no Brasil? Mais especificamente, pretende-se

verificar em que medida o acesso a essa política pública se torna importante para os

assentados e suas famílias em termos de criar espaços para a comercialização de seus

produtos, bem como de que maneira a política promove, por exemplo, práticas alimentares

saudáveis, sobretudo, em modalidades que envolvam beneficiários produtores e

beneficiários consumidores.

É importante ressaltar que este artigo não se limita à apresentação dos dados sobre

o PAA nos assentamentos da reforma agrária, uma vez que as análises relativas ao

programa não mostram diferenças significativas do que ocorre no universo mais amplo da

agricultura familiar. Desse modo, a proposta a ser examinada aqui visa investigar de que

maneira o PAA se insere como um instrumento de política pública que busca incluir os

agricultores assentados, juntamente com outras categorias de agricultores familiares,

como parte de seu público-alvo.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 169

A segurança alimentar e nutricional: uma breve reflexão conceitual

Tratar do tema da segurança alimentar e nutricional implica necessariamente em

caracterizar a sociedade contemporânea e situar o contexto em que surge uma maior

preocupação com as questões alimentares. Nas dimensões econômica, social e política,

observa-se a crescente integração das economias e das sociedades nos diversos países do

mundo através do processo conhecido como globalização, cujos efeitos podem ser

percebidos na produção de mercadorias e serviços e na forma como a informação se

dissemina, especialmente após o advento das tecnologias de informação e comunicação.

Ainda em relação a essas dimensões, convém lembrar também que a sociedade

contemporânea tem se pautado pelo paradigma pós-moderno em suas várias nuanças

(literatura, artes plásticas, música, etc.). A identidade do indivíduo pós-moderno - quem

eu quero ser? - é caracterizada por símbolos e signos comuns aos grupos, os quais buscam

se constituir como sujeitos através de um elenco de identidades que emergem a partir de

circunstâncias dadas pelos sistemas culturais (HALL, 1995).

No panorama delineado, é relevante observar, igualmente, a influência da chamada

sociedade do risco, cujas expressões são dadas pelos “[…] riscos sociais, políticos,

econômicos e individuais [que] tendem cada vez mais a escapar das instituições para o

controle e a proteção da sociedade industrial (BECK, 1995, p.15), bem como da

modernidade reflexiva, que radicaliza a modernidade, invadindo as premissas da

sociedade industrial, acabando com categorias sociais até então tradicionais como classes,

ocupação, sexo, família nuclear, etc.

Toda essa conjuntura exerceu forte efeito na maneira como a sociedade passou a

produzir e a consumir os alimentos. No que diz respeito à produção de alimentos, as

indústrias alimentares se desfizeram das atividades ligadas à origem dos insumos para se

concentrar no preparo e marketing do produto já finalizado. No decorrer do tempo, as

empresas alimentares aumentaram significativamente a distância em relação a suas bases

agrícolas, sobretudo em relação àqueles produtos que poderiam ser organizados através de

mercados independentes de commodities (WILKINSON, 1999).

No que se refere ao consumo dos alimentos, percebe-se que os consumidores

passam a se tornar agentes determinantes das decisões, definindo o seu consumo, dando

valor a características como segurança dos alimentos, apresentação dos pratos a serem

comidos e sabor dos mesmos, além de outros aspectos. Os estilos de vida e os padrões de

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 170

consumo passam a ser distintivos, sendo que as mercadorias e os serviços não só

satisfazem as necessidades humanas, mas também tornam notáveis o status ‒ prestígio de

um indivíduo ou grupo ‒, a ser mostrado por meio do que está sendo consumido

(BOURDIEU, 2007).

A respeito do consumo de alimentos, é importante salientar o que Goodman (2003)

denomina de virada para a qualidade (quality turn), diretamente associado à crescente

disseminação das redes alternativas agroalimentares83

(alternative agro-food networks ‒

AAFNs). Esse tipo de abordagem estaria ligado à mudança de paradigma da política rural

europeia, a partir do esgotamento da Política Agrícola Comum (PAC), para um modelo

que privilegiasse o desenvolvimento territorial. Portanto, essa virada para a qualidade

seria resultante do modo como os consumidores buscam produtos de qualidade,

identificando-se como agentes de mudança através de suas escolhas alimentares e do que

sabem sobre os alimentos.

Para o autor, três conceitos importantes sobressaem-se em relação ao quality turn:

enraizamento/imersão (embeddness), confiança e localização/local. Estas concepções,

associadas aos novos padrões de produção e consumo, têm como objetivo caracterizar a

imersão social e cultural da produção de alimentos, além de destacar a questão da

confiança e da relação entre produtor e consumidor como, por exemplo, nas cadeias curtas

de abastecimento, bem como valorizar a procedência, localidade e território da produção

alimentar.

Como frisa Goodman (2003), a literatura recente sobre as redes agroalimentares

alternativas pode ser distinguida pelos estudos existentes na América do Norte e na

Europa. Apesar de um repertório comum às pesquisas realizadas, existem diferenças na

maneira como são analisadas as práticas alimentares alternativas locais e suas redes.

Enquanto a investigação norte-americana está vinculada aos círculos de ativistas,

acadêmicos e leigos, e se preocupa fortemente com o status de oposição e potencial

transformativo sociopolítico das AAFNs, a investigação europeia se concentra mais nas

mudanças institucionais incrementais e é dirigida, explícita ou implicitamente, para os

formuladores de políticas públicas.

Na perspectiva da literatura acadêmica norte-americana, as redes alternativas

agroalimentares são examinadas a partir da contestação do sistema corporativo industrial

83

O movimento Slow Food, criado na Itália em 1986, é um exemplo de redes alternativas agroalimentares. Seu

nome representa uma forma específica de qualidade, que buscar interferir na forma de padronização e

deslocalização da produção representada pelos fast food.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 171

agroalimentar e do complexo agrícola hegemônico técnico-científico existente. Já as

pesquisas sobre AAFNs na Europa situam-se dentro de um amplo debate público sobre a

segurança alimentar e a reforma da política agrícola, dando especial ênfase à reorientação

da PAC para um conceito endógeno mais amplo e multidimensional das zonas rurais de

desenvolvimento. Essas formas de tratamento sobre as redes agroalimentares alternativas

têm omitido dos estudos sobre a produção/produtor o consumo/consumidor.

Como sublinham Goodman e Dupuis (2002), as relações entre produção e consumo

têm sido analisadas assimetricamente, tendo-se, por um lado, visões “culturais” da

sociedade e orientadas pelo consumo (totem de Durkheim) e, por outro, perspectivas

“econômicas” da sociedade e orientadas pela produção (fetiche da mercadoria de Marx).

A omissão dos consumidores, como objeto de estudo, nas pesquisas sobre as AAFNs é

mais evidente na medida em que a expansão e a reprodução dessas redes, por definição,

dependem da sua capacidade de reconectar as relações produtor-consumidor. Em termos

conceituais, as pesquisas sobre a produção e o consumo de alimentos devem abordar as

duas faces da questão, isto é, os consumidores e os produtores como parceiros ativos nas

relações de transformação das práticas alternativas agroalimentares.

Além das redes agroalimentares alternativas, a tríade (imersão, confiança e

localização) é bastante presente no que se denomina de cadeias curtas de abastecimento

(short food supply chain), que são caracterizadas pela habilidade de engendrar algum tipo

de conexão entre produção e consumo, tanto geográfica quanto socialmente, destacando-

se o processo de compra. As questões o que estou comprando e de quem passam a trazer

implícitas informações relativas à procedência do produto, seu local de produção, os

métodos e pessoas envolvidas para sua elaboração.

Como bem apontaram Renting et al. (2003), há diversos tipos de cadeias curtas de

abastecimento, podendo elas serem caracterizadas através de três principais modelos:

a) face a face, onde existe interação pessoal entre produtor e consumidor ‒

local;

b) proximidade espacial, em que os produtos são produzidos em regiões

específicas e os consumidores são informados sobre sua produção no

ponto de venda ‒ regional;

c) espacialidade estendida, em que os consumidores são informados sobre o

local de produção, mas não conhecem aquela região ‒ exportação.

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Para o funcionamento das redes agroalimentares alternativas e das cadeias curtas

de abastecimento, convém examinar aspectos relativos ao papel da confiança na percepção

da qualidade dos produtos alimentares locais. Segundo Prigent-Simonin e Hérault-

Fournier (2005), o setor agroalimentar tem sido afetado por uma série de crises com

relação à segurança e qualidade dos alimentos, as quais têm gerado novas formas de

comércio entre o produtor e o consumidor como, por exemplo, as vendas diretas. Estas

novas formas de comércio representariam, assim, um novo tipo de contrato social entre os

consumidores e os produtores.

A qualidade dos alimentos, conforme as autoras, só pode ser tratada

multidimensionalmente, a partir de suas variadas faces, sendo os consumidores

conduzidos a escolher determinados produtos a partir de características quali tativas

distintas. Com base em Cazes-Valette (2001), há, pelo menos, sete diferentes dimensões

que compõem a qualidade dos alimentos:

a) qualidade nutricional: contribuição do alimento para uma dieta

equilibrada;

b) qualidade higiénica: questão da inocuidade, isto é, a garantia de que o

alimento não contém nenhuma substância nociva ou tóxica;

c) qualidade funcional: produto prático para compra, manuseio, transporte,

armazenamento, preparação, etc.;

d) qualidade organoléptica: relacionada com o prazer sensorial (ou

desprazer);

e) qualidade social: dimensão social da alimentação, a distinção pela

comida que permite um posicionamento em relação a um grupo de

referência;

f) qualidade simbólica: relacionada com as questões culturais e religiosas;

g) qualidade humanística: valorização de alimentos cultivados com práticas

sustentáveis, comércio justo, etc.

Cabe destacar que para que um produto seja considerado de qualidade, é necessário

haver a confiança nas relações produtores-consumidores. A confiança pode ser

conceituada a partir de duas abordagens complementares. A primeira está ligada ao

conhecimento com base em fatos adquiridos ao longo do tempo; a segunda é a crença, a

qual está relacionada ao fato de que o conhecimento é e sempre será restrito. Assim, a

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confiança será o resultado desse sistema conjugado de conhecimentos e crenças

(PRIGENT-SIMONIN; HÉRAULT-FOURNIER, 2005).

Associadas à confiança, as autoras trazem três grandes dimensões de análise: a

competência, a honestidade e o altruísmo de Hess (1995), que podem ser equivalentes à

credibilidade, à integridade e à benevolência de Gurviez (1999). A

competência/credibilidade, baseia-se na crença da eficiência e responsabilidade do

parceiro, ou seja, está baseada na reputação de um fornecedor, construída no “boca a

boca” positivo ou com a publicidade, e é reforçada quando a compra positiva ocorre. A

honestidade/integridade está relacionada com o cumprimento dos compromissos

assumidos pelo fornecedor. O altruísmo/benevolência é qualificado como um componente

emocional da confiança, baseada em uma ligação emocional entre duas pessoas no

momento da compra.

A localização é também outro conceito fundamental para o entendimento das

cadeias curtas de abastecimento, pois liga produção e consumo em lugares específicos,

proporcionando, por exemplo, que os consumidores se tornem conscientes da origem do

produto, reconfigurando os padrões de abastecimento e a localização das unidades de

transformação dos produtos, estes identificados a partir do lugar, do território (ILBERY et

al., 2005; BRUNORI, 2007). Favorecer o local surge, portanto, com uma alternativa

interessante frente ao sistema agroalimentar global, já que permite maior controle sobre os

mercados, dando aos produtores relativa autonomia. Contribui também para o bem-estar

da comunidade, dado que as relações produtor-consumidor são próximas, além de

preservar o meio ambiente, a partir da introdução de modelos mais naturais de produção, a

exemplo dos agroecológicos.

Entretanto, é crucial advertir que nem sempre as concepções de local implicam na

criação de cadeias alternativas alimentares que resultem em sustentabilidade, viabilidade

econômica e justiça social. Dupuis e Goodman (2005) fazem uma importante crítica ao

localismo e às políticas voltadas aos alimentos produzidos localmente. Conforme os

autores, os estudos alimentares feitos nos Estados Unidos e na Europa tendem a colocar o

global como a lógica universal do capitalismo e o local como ponto de resistência a essa

lógica global. No entanto, conforme eles, o local pode ser, muitas vezes, um lugar de

desigualdades e dominação hegemônica.

A partir dessa ideia, Dupuis e Goodman (2005) apresentam estudos que se utilizam

de uma perspectiva romantizada a respeito do local, em que pesquisadores afirmam que o

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localismo torna-se uma contra-hegemonia para a tese da globalização. Essas abordagens

romantizadas sobre o local podem implicar na inclusão e exclusão de uma

população/povo, lugares e modos de vida particulares. Segundo eles, a representação do

local e seus conceitos – qualidade, imersão/enraizamento, confiança, etc. – podem

privilegiar certas categorias analíticas naturalizando as políticas do local. Além disso, o

localismo pode estar baseado em interesses de uma elite autoritária e segregacionista, que

reproduz “políticas de perfeição”, a partir de ideais de “viver bem” e “comer bem”.

Para os autores, há amplas áreas do conhecimento sobre o localismo que têm sido

ignoradas na literatura sobre os estudos alimentares locais. Os estudos urbanos poderiam

contribuir para as pesquisas sobre o localismo. Nos EUA, por exemplo, pesquisas

realizadas na área mostraram que a classe média consumidora tem sido uma poderosa

força política na criação de modernos ecossistemas urbanos, incluindo sistemas

alimentares. A geografia humana também poderia contribuir para as investigações sobre o

localismo, pois reconhece que o conceito de localismo pode ser mobilizado como uma

poderosa estratégia de competição territorial entre as regiões. Em alguns casos, o

regionalismo pode estar ligado a um esforço de desenvolvimento regional e também a uma

forma de xenofobia.

Nesse sentido, torna-se necessário atentar à reificação do local encontrado em

diversas perspectivas e sua naturalização como um baluarte em oposição ao capitalismo

global anômico. Como se pode observar em Dupuis e Goodman (2005), construir o

localismo a partir de processos democráticos mais abertos e reflexivos, em vez de um

conjunto fixo de normas, é um dos principais desafios que o movimento e as pesquisas

sobre as redes alternativas agroalimentares enfrentam atualmente. Ainda que existam

dificuldades quanto a esses aspectos, ações que objetivam levar em consideração a relação

entre a produção e o consumo de alimentos podem ser observadas em diversos países. No

Brasil, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) propõe isto, algo que será

examinado a seguir.

O funcionamento do PAA e a possibilidade de compor a política de SAN no Brasil

Para Schneider (2010b), as políticas públicas brasileiras direcionadas ao meio rural

poderiam ser pensadas em termos de gerações de políticas públicas. Essas gerações

seriam:

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a) políticas agrárias (reforma agrária, previdência rural, PRONAF), criadas

desde a década de 1970 até o fim dos anos de 1990;

b) políticas assistenciais ligadas à segurança alimentar e nutricional

(Programa Bolsa Família, Programa Fome Zero), lançadas no início dos

anos 2000; e

c) políticas de construção de mercados, ainda fortemente relacionadas à

segunda geração de ações governamentais como o PAA e o Programa

Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e que sinalizam um novo

estágio nas políticas públicas voltadas à agricultura familiar.

O panorama político em que o PAA foi lançado contou com uma articulação do

Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e o governo federal,

sendo constituído como uma ação estruturante no contexto do Programa Fome Zero

(PFZ), no primeiro governo do então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.

Assim, o PAA visou promover não apenas a inclusão social e econômica no campo, por

meio do fortalecimento da agricultura familiar, mas também o acesso das populações em

situação de insegurança alimentar. Em 2009, 30,2% do número de domicílios brasileiros

se encontrava em algum grau de insegurança alimentar, significando que 65,6 milhões de

pessoas residentes em 17,7 milhões de domicílios apresentavam alguma restrição

alimentar ou, pelo menos, alguma preocupação com a possibilidade de ocorrer restrição

devido à falta de recursos para a aquisição de alimentos (INSTITUTO BRASILEIRO DE

GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE, 2010).

Instituído pelo artigo 19 da Lei nº 10.696 de 2003, o PAA é desenvolvido com

recursos do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e do

Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Seu campo de ação está ligado, de uma

parte, pelas ações da política agrícola de formação de estoques e compra de produtos

agrícolas, operacionalizadas pela Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), e, de

outra parte, pelas ações do PFZ, que buscam ampliar o acesso aos alimentos por meio de

mecanismos de subvenção às compras e redistribuição às entidades que trabalham com

populações em situação de risco ou de vulnerabilidade social e alimentar (BRASIL,

2010a; MATTEI, 2007; MÜLLER; FIALHO; SCHNEIDER, 2007).

Um dos principais objetivos do programa é o de garantir a comercialização dos

produtos da agricultura familiar, através do estabelecimento de preços mínimos a serem

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praticados, ao mesmo tempo em que articula essa produção para os mercados

institucionais – a exemplo dos existentes na merenda escolar, nos estoques para

atendimento às emergências supridas pela Defesa Civil, na alimentação do Exército, nos

hospitais, no auxílio alimentar no exterior, entre outros – ou para a formação de estoques

públicos, atendendo aos princípios da segurança alimentar e nutricional (BRASIL, 2010a).

Os atores estatais envolvidos no PAA pertencem às instâncias federal, estadual e

municipal, sendo também participantes como articuladores/beneficiários diversos atores

da sociedade civil. São eles: o Grupo Gestor – MDS, MDA, Ministério da Fazenda (MF),

Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), Ministério da Agricultura,

Pecuária e Abastecimento (MAPA) e Ministério da Educação (MEC); os gestores dos

recursos (MDS e MDA), gestores executores (CONAB, estados e municípios) e os atores

locais (conselhos, cooperativas, associações e entidades da rede socioassistencial).

O público-alvo do programa inclui os mais diversos segmentos do meio rural,

denominados, de um lado, como beneficiários produtores (fornecedores), isto é,

agricultores familiares, aquicultores, pescadores artesanais, silvicultores, extrativistas,

indígenas, membros de comunidades remanescentes de quilombos e agricultores

assentados, e, de outro, dependendo das modalidades, beneficiários consumidores

(recebedores), pertencentes ao meio rural ou não, ou seja, hospitais, escolas, entidades

sociais, Exército, entre outros.

A aquisição dos produtos da agricultura familiar, a partir do PAA, dispensa

licitação, permitindo que a produção dos agricultores familiares seja exceção no que se

refere às compras de alimentos realizadas pela administração pública brasileira – tendo em

vista que as demais aquisições são feitas pela Lei nº 8.666 de 1993 (Lei de Licitações e

Contratos). Outra exceção que também beneficia a agricultura familiar nessa mesma

direção é a Lei nº 11.947 de 2009 (Lei da Alimentação Escolar), a qual no âmbito do

Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE), prevê a aquisição de, no mínimo,

30% de gêneros alimentícios da agricultura familiar (BRASIL, 2010b, 2010c).

Para acessar o PAA, é necessário que, nas modalidades operadas pela CONAB, os

agricultores sejam enquadráveis no âmbito do PRONAF e estejam organizados em grupos

formais e/ou informais. As modalidades podem ser cumulativas, desde que uma seja com

liquidação em produtos e a outra financeira, ou ainda que o valor total comercializado

atinja o limite da modalidade. O programa ainda prevê um acréscimo de 30% no preço dos

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produtos, se eles forem orgânicos ou agroecológicos. Em termos de modalidades, o PAA

já teve diversas reformulações em sua forma de operacionalização.

Uma das primeiras modalidades do programa a funcionar foi a Compra Antecipada

da Agricultura Familiar (CAAF), que vigorou apenas em 2003 e 2004, mas com

importante participação no total dos recursos destinados à modalidade. A

operacionalização dessa categoria se dava pela antecipação prévia dos recursos para o

plantio, sendo a quitação efetuada com produtos da colheita referente ou por quitação

financeira. O público-alvo da CAAF eram aqueles agricultores, especialmente assentados,

que não tiveram acesso ao crédito de custeio, vindo esta questão a se tornar a principal

crítica da modalidade. Para participar, os agricultores deveriam estar organizados em

grupos formais e informais, sendo que o projeto de entrega para o programa deveria ser

elaborado pelas organizações. Era operada pela CONAB com recursos do MDS, tendo

sido descontinuada devido à inadimplência.

Após a descontinuidade da CAAF, a versão atual do PAA apresenta diferentes

mecanismos de aquisição de produtos da agricultura familiar, sendo eles: Compra Direta

da Agricultura Familiar (CDAF); Formação de Estoque pela Agricultura Familiar (CPR-

Estoques); Compra da Agricultura Familiar com Doação Simultânea (CPR-Doação);

Compra Direta Local da Agricultura Familiar (CDLAF); Incentivo à Produção e ao

Consumo do Leite (PAA Leite). Apenas três das cinco modalidades são executadas no Rio

Grande do Sul, sendo elas brevemente detalhadas a seguir.

A primeira modalidade, a Compra Direta da Agricultura Familiar (CDAF), visa a

compra de alimentos dos agricultores com vistas à recuperação dos preços e estoques

estratégicos. Os beneficiários deste mecanismo são os agricultores organizados, em

grupos formais e informais, podendo ser acessado pelos agricultores individualmente. É

operada pela CONAB com recursos do MDS e do MDA. Seu funcionamento está

relacionado ao preço de mercado dos produtos da região, isto é, quando o preço de

mercado está abaixo do preço de referência, a CONAB divulga na região a instalação de

um polo de compra para onde os agricultores, sejam organizados ou não, devem levar a

produção que desejam comercializar, dentro das normas estabelecidas pela CONAB e do

valor máximo por agricultor ao ano, ou seja, R$ 8.000,00 por beneficiário.

A segunda modalidade do PAA, Formação de Estoques pela Agricultura Familiar

(CPR-Estoques), disponibiliza recursos para que a organização compre os produtos dos

agricultores e forme estoques em sua própria estrutura, sustentando os preços ou dando

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capital de giro para as organizações agregarem valor aos produtos. Os beneficiários desta

modalidade são os agricultores organizados em associações e/ou cooperativas

(organizações proponentes). Para a entrega dos produtos ao programa nesse mecanismo,

as organizações devem elaborar uma proposta de comercialização (projeto de entrega). É

operada pela CONAB com recursos do MDA e, eventualmente, do MDS, sendo limitada

no valor de R$ 8.000,00 por beneficiário anualmente.

A terceira modalidade a fazer parte do programa é a Compra da Agricultura

Familiar com Doação Simultânea (CPR-Doação), que tem como objetivo comprar os

alimentos dos agricultores para atendimentos às pessoas em situação de insegurança

alimentar e nutricional, bem como em situação de vulnerabilidade social. Para que os

agricultores familiares participem, é necessário que estejam organizados em associações

e/ou cooperativas (organizações proponentes). A organização que participa dessa

modalidade deve entregar um projeto para a CONAB, indicando a quais

instituições/entidades serão entregues os alimentos, assim como os locais e o cronograma

de entrega desses alimentos. É operada pela CONAB com recursos do MDA, com um

limite de até R$ 4.500,00 por agricultor familiar ao ano.

Merece destaque na operacionalização do programa, o aprofundamento dos níveis

de cooperação entre os agricultores, a partir de sua participação no PAA. Segundo

conclusões do III Seminário Nacional sobre o PAA ocorrido no ano de 2010, o programa

tem desenvolvido um importante papel no que se refere ao fortalecimento do

associativismo e do capital social nos locais onde é implementado, estimulando a

organização econômica da produção através de grupos informais, associações,

cooperativas e ONGs. No âmbito local, esse incentivo tem facilitado o acesso dos

agricultores ao programa – nas três modalidades anteriormente mencionadas –, os quais,

ao venderem sua produção por meio do PAA, ampliaram suas dinâmicas de relação,

criando variados arranjos institucionais (BRASIL, 2010d).

No que se refere aos seus resultados, pode-se afirmar que o programa tem se

constituído em um instrumento de fortalecimento e organização da agricultura familiar,

propiciando a que muitos agricultores sejam beneficiados com a execução dessa política

pública. Desde o tempo de sua criação, no ano de 2003, o PAA já teve mais de R$ 3,5

bilhões em investimentos na aquisição de alimentos, envolvendo em torno de 160 mil

agricultores familiares por ano, em mais de 2.300 municípios do Brasil. Além disso, os

alimentos adquiridos já contribuíram para o abastecimento de 25 mil entidades sociais e

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 179

assistenciais que atenderam cerca de 15 milhões de pessoas em todo o país (BRASIL,

2010d).

A próxima seção apresentará o panorama do PAA no Brasil e no Rio Grande do

Sul, assim como sua relevância para o desenvolvimento de um grupo específico de

agricultores, os assentados da reforma agrária. Como já mencionado, a participação destes

produtores no programa não difere muito da participação mais geral dos agricultores

familiares, sendo, portanto, apresentada mais a dimensão quantitativa (números absolutos

e percentuais) do PAA nas áreas de reforma agrária, do que propriamente uma discussão

conceitual acerca do PAA e da segurança alimentar nos assentamentos.

A segurança alimentar e nutricional nos assentamentos da reforma agrária:

evidências recentes do PAA no Brasil e no Rio Grande do Sul

Esta seção apresenta uma aproximação quantitativa a respeito do PAA.

Consideram-se os dados relativos à implementação do PAA nos assentamentos de reforma

agrária no Brasil e no Rio Grande do Sul, desde a implantação do programa. Para

expressar as características da operacionalização da política, utilizaram-se como

indicadores: a participação dos assentados e demais grupos no PAA; as modalidades

executadas nos diversos anos; a distribuição geográfica dos recursos; o número de

assentados entre os fornecedores do PAA no Brasil, bem como o número de famílias

assentadas entre estes fornecedores no estado; e os valores totais aplicados pelo programa

em assentamentos do Rio Grande do Sul. Para tanto, recorreu-se a variadas fontes como a

Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), tanto no âmbito nacional quanto no

âmbito estadual, assim como relatórios e documentos diversos realizados sobre o

programa.

Quanto à participação dos assentados e demais grupos no PAA, o programa tem

um público-alvo relativamente variado. Para se ter uma ideia da multiplicidade de

beneficiários que participam da política, os agricultores que acessaram o PAA, segundo

grupos específicos, no ano de 2009, totalizaram 105.990 agricultores e eram constituídos

por agricultores familiares (89,40%), assentados (7,65%) e outros grupos como

pescadores artesanais, agroextrativistas, quilombolas, indígenas e trabalhadores rurais

sem-terra acampados (2,95%). Ainda que o programa tenha tido como prioridade os

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assentamentos rurais, na extinta modalidade CAAF, executada durante os anos de 2003 e

2004, há dificuldades relacionadas à inclusão desse público prioritário ao PAA (Fig. 1).

Figura 1 – Participação por grupos específicos de agricultores,

excluídas as modalidades CDLAF e PAA Leite, em 2009

Fonte: adaptado de BRASIL (2010d).

Segundo a figura acima mostrada, constata-se que a participação de assentados

entre os fornecedores do PAA ainda é pequena, tendo o programa, majoritariamente, os

agricultores familiares como os principais fornecedores ao PAA. Vale destacar que,

embora o programa adquira alimentos de todos os agricultores familiares, há um esforço

de priorização de famílias mais pobres e vulneráveis como mecanismo de inclusão

econômica e social (BRASIL, 2010d), no entanto, não é o que parece estar ocorrendo,

como demonstra a Figura 1. Isso pode estar associado, em parte, aos precários canais de

divulgação do programa, mas também à falta de informações sobre as regras, normas e

condições de enquadramento, cujo desconhecimento poderia impedir que os agricultores

acessassem a política.

No que se refere às modalidades executadas, é necessário destacar que o PAA é

um programa único que se desdobra em diferentes modalidades e é operacionalizado por

vários agentes, portanto, a distribuição dos recursos é originária de distintos ministérios.

No período compreendido entre os anos de 2003 e 2010, o PAA disponibilizou um

montante de R$ 3,09 bilhões para as modalidades, correspondendo a 88% do total de

recursos, por parte do MDS, e um valor de R$ 424 milhões, equivalente a 12% dos

recursos totais, por parte do MDA. A predominância dos recursos orçamentários do PAA

pelo MDS está relacionada ao maior número de modalidades que o órgão executa. A

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Figura 2 mostra a execução do PAA, no período 2003-2009, nas diversas modalidades

executadas pelo programa.

Figura 2 ‒ Execução do PAA no período 2003-2009, em milhões de R$, por modalidade

Fonte: adaptado de BRASIL, 2010d.

De acordo com a Figura 2, há uma predominância da modalidade CPR-Doação

(39%), seguida pela PAA Leite, que possui 36% dos recursos totais executados pelo PAA,

no período 2003-2009. Já as modalidades Compra Direta ‒ englobando a CDAF e a

CDLAF ‒ e a CPR-Estoques aparecem com o menor volume de recursos alocados no

período analisado. Observa-se, ainda conforme a figura, a modalidade CAAF, que foi

operada apenas em 2003 e 2004, tendo este mecanismo obtido 3% dos recursos aplicados.

A maior participação das modalidades CPR-Doação e PAA Leite podem estar ligadas ao

fato de ter sido disponibilizado um elevado volume de recursos a esses dois mecanismos,

onde aproximadamente R$ 1.400.000,00 foram destinados à CPR-Doação e cerca de R$

1.300.000,00 foram reservados ao PAA Leite, mas pode estar associado também em

virtude de incidirem mais diretamente no público-alvo consumidor do programa, isto é,

nas populações em situação de vulnerabilidade social e alimentar, do que as outras

modalidades do PAA.

Ainda no que diz respeito à execução orçamentária do programa, é válido lembrar

que os recursos orçamentários destinados ao PAA são originários do Fundo de Combate e

Erradicação da Pobreza, sendo alocados para a aquisição de produtos oriundos das

unidades familiares de produção enquadráveis no âmbito do PRONAF, mais precisamente

os pertencentes aos grupos A, B e A/C. Como frisam Delgado, Conceição e Oliveira

(2005), isto coloca o PAA apenas como mais uma ação orçamentária dentre as dezenas

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delas existentes sob a rubrica abastecimento alimentar e não propriamente um programa

orçamentário na linguagem do Plano Plurianual de Governo.

Quanto à distribuição geográfica dos recursos, é necessário levar em

consideração que sua execução e disponibilidade podem apresentar uma predominância

maior de determinada modalidade, dependendo da região do país onde está sendo

operacionalizada. Por exemplo, entre os anos de 2003 a 2009, a região Nordeste foi aquela

que concentrou o maior volume de recursos do PAA (51%), em parte, devido à operação

da modalidade PAA Leite que predomina naqueles estados. A Região Sul ocupou posição

de destaque, nesse mesmo período, devido à aplicação de elevado volume de recursos

originários das modalidades Compra Direta e CPR-Doação (22%), seguida pela região

Sudeste com 20% dos recursos. Já as regiões Norte e Centro-Oeste apresentam baixos

patamares de aplicação de recursos do PAA em comparação com as demais (7%), como

mostra a Figura 3.

Figura 3 ‒ Distribuição dos recursos do PAA por região geográfica (2003-2009)

Fonte: adaptado de Brasil, 2010d.

A respeito do público que acessa o programa, em especial, os assentados de

reforma agrária, destaca-se que, nos anos que vão de 2006 a 2010, a participação desse

grupo específico de agricultor entre os fornecedores do PAA, nas modalidades

operacionalizadas pela CONAB, situou-se entre 7% e 10%, na média nacional. Embora

não seja possível apresentar o número de assentados em cada estado do Brasil, pode-se

afirmar que o acesso desse grupo específico ao PAA é também distinto. Numericamente, o

estado de São Paulo é aquele com maior número de assentados acessando o programa,

seguido dos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul

(BRASIL, 2010d). A Tabela 1 apresenta o número de assentados entre os fornecedores do

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PAA nas modalidades CPR-Doação, Compra Direta e CPR-Estoques no Brasil, no período

2006-2010.

Tabela 1 ‒ Número de assentados entre os fornecedores do PAA nas modalidades CPR-

Doação, Compra Direta e CPR-Estoques (2006-2010) – Brasil

Anos Nº de assentados

Nº total de agricultores

fornecedores % Assentados

2006 5.663 86.543 7%

2007 7.238 92.285 8%

2008 10.438 92.307 11%

2009 7.783 98.340 8%

2010 9.749 94.398 10%

Fonte: CONAB (2011a, 2011b).

Os dados da Tabela 1 indicam que, em 2006, a participação de assentados no

PAA era de 7% do total de agricultores fornecedores ao programa, sendo que, em 2010,

essa taxa teve um acréscimo de apenas 3 pontos percentuais em relação ao ano

comparado. Ainda é evidente que o maior acesso dos assentados ao PAA se deu no ano de

2008 (11%), diminuindo relativamente no ano de 2009 (8%). Esta baixa participação pode

estar relacionada aos próprios impasses do programa, sobretudo no que diz respeito aos

aspectos operacionais e logísticos, onde os agricultores se defrontam, após um primeiro

acesso, com dificuldades advindas dos custos de produção, das poucas informações a

respeito das demandas e exigências da política, e, muitas vezes, da falta de apoio

institucional para que continue a participar do programa.

No Rio Grande do Sul, as principais modalidades do PAA acessadas são a

Compra Direta, CPR-Estoques e CPR-Doação. O número de famílias assentadas entre os

fornecedores do PAA nessas três modalidades aumentou significativamente entre os anos

de 2006 a 2010, oscilando de forma expressiva no período 2008-2010, como se observa na

Tabela 2, abaixo. Segundo dados da CONAB (2011a), alguns estados do Brasil como

Mato Grosso, Paraná e Santa Catarina se mantiveram estáveis no que se refere ao acesso

dos assentados ao programa nesse período, já os demais estados mostraram

descontinuidades no decorrer da execução do programa, tal qual ocorrido no Rio Grande

do Sul.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 184

Tabela 2 ‒ Número de famílias assentadas entre os fornecedores do PAA nas modalidades

CPR-Doação, Compra Direta e CPR-Estoques (2006-2010) – Rio Grande do Sul

Anos N

o de famílias assentadas

que forneceram

Nº total de famílias

fornecedoras % Assentados

2006 473 18.996 2,5%

2007 455 23.016 2%

2008 2.399 21.848 11%

2009 1.077 23.124 5%

2010 1.671 13.808 12%

Fonte: CONAB (2011c).

Em termos do número de famílias assentadas, verifica-se que em todos os anos

esse número não atingiu mais que 2.400 assentados fornecedores ao PAA. No entanto, ao

analisar a participação dos assentados em comparação com o número total de famílias

fornecedoras, nos anos de 2007 e 2008, nota-se um acréscimo de 9 pontos percentuais,

indicando um grande número de projetos aprovados pela CONAB por parte dos

assentados. Digno de nota é que a soma total de famílias fornecedoras, em sua maior parte

composta por agricultores familiares, permaneceu quase sempre com o mesmo número,

diminuindo expressivamente no ano de 2010, com quase 10.000 agricultores a menos a

fornecer ao programa. Para além de suas diferenças em termos de grupos, os agricultores

familiares, os assentados e os outros segmentos que fazem parte do programa partilham

das mesmas dificuldades citadas anteriormente, como falta de informações sobre o PAA,

exigência de padrões de qualidade, demora nos recursos a receber, entre outros.

No que se refere aos recursos aplicados nos assentamentos do Rio Grande do

Sul, pode-se observar, segundo dados da CONAB (2011c), que o valor total aplicado nos

assentamentos do estado, durante os anos de 2003 a 2009, foi aproximadamente de 55

milhões de reais, salientando que a maior parte dos recursos aplicados pela CONAB

nestes assentamentos foi originária da modalidade Compra Direta, em seguida pela CPR-

Estoques e, por fim, CPR-Doação, como pode ser demonstrado na Tabela 3.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 185

Tabela 3 – Valores totais aplicados em assentamentos do Rio Grande do Sul,

nas modalidades Compra Direta, CPR-Estoques e CPR-Doação (2003-2009)

Anos Compra Direta CPR-Estoques CPR-Doação

2003 R$ 1.079.984,86 R$ 60.000,00 R$ 112.469,40

2004 R$ 252.000,00 R$ 1.722.995,01 R$ 422.690,27

2005 R$ 230.900,00 R$ 2.772.885,36 R$ 1.014.845,92

2006 -* R$ 1.624.771,50 R$ 885.319,36

2007 -* R$ 2.790.495,57 R$ 10.728.902,52

2008 R$ 10.239.840,00 R$ 2.040.648,46 R$ 907.028,92

2009 R$ 12.099.336,57 R$ 5.299.065,76 R$ 67.765,87

Total R$ 23.902.061,43 R$ 16.310.861,66 R$ 14.139.022,26

Fonte: CONAB, 2011c.

Nota: *A CONAB não operou a modalidade Compra Direta nos anos 2006 e

2007, no Rio Grande do Sul.

Os dados disponíveis na Tabela 3 permitem observar que o valor total de recursos

aplicados na modalidade Compra Direta aumentou significativamente, passando de R$

230 mil, no ano de 2005, para mais de R$ 12 milhões no ano de 2009. Esta é a modalidade

mais acessada pelos assentados no Rio Grande do Sul, em parte, por estar atrelada à forte

participação de organizações proponentes a exemplo da COSULATI, na Zona Sul do

estado, a qual acessa o PAA fornecendo leite em pó para entidades socioassistenciais da

região de Pelotas, recebendo grande parte da produção leiteira dos assentamentos das

cidades vizinhas, a exemplo de Piratini e Canguçu.

Vale notar também, conforme a Tabela 3, que a modalidade CPR-Doação ainda

que tenha tido um significativo volume de recursos no ano de 2007, contando com cerca

de 11 milhões de reais, reduziu drasticamente o aporte de recursos no ano seguinte, tendo

diminuído mais ainda em 2009. Não há informações claras sobre tal oscilação, no entanto,

uma possibilidade é a de que o conhecimento na forma como a modalidade opera, uma

vez acessada pelos assentados, faz com que eles desistam de continuar no programa, já

que são eles responsáveis tanto pelo planejamento da produção quanto pela distribuição

dos alimentos produzidos, algo que não ocorre nas modalidades Compra Direta e CPR-

Estoques, em que os assentados entregam diretamente a organizações proponentes ou aos

polos de compra.

Os avanços apresentados pelo PAA podem estar relacionados às modificações nas

características e requisitos para o acesso ao programa. Embora ainda não tenha sido

possível mostrar estes avanços, em termos qualitativos, nos assentamentos do Rio Grande

do Sul, a literatura acadêmica tem evidenciado os benefícios proporcionados pelo

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 186

programa aos assentados em outros estados do Brasil (CHMIELEWSKA; SOUZA;

LOURETE, 2010), tornando viável uma estratégia de autossuficiência na produção de

alimentos dos assentados. Como coloca o coordenador nacional do MST, Egidio Brunetto,

o PAA é importante para os assentados, pois

[...] distribui renda e aumenta os recursos dos assentados. Também garante a

venda da plantação, por exemplo, de feijão, de milho, que vai ter um preço

razoável e vai ter a garantia da compra. E garante o desenvolvimento local e

garante que as famílias recebam renda. Diferente de você receber o Bolsa

Família, porque com ele você come, com o PAA se investe, produz, vai

melhorando a estrutura produtiva e vai sendo remunerado por ela. Essa sim é

uma distribuição de renda que fortalece o desenvolvimento dos assentamentos

(BRUNETTO, 2011, p. 2, grifos nossos).

Portanto, o PAA pode, de fato, construir novos mercados para os assentados,

permitindo organizar sua matriz produtiva, gerando renda e trabalho para as famílias

assentadas, além de trazer benefícios no que se refere ao consumo de alimentos. Quanto à

implementação do PAA nos assentamentos de reforma agrária no Brasil, pode-se concluir

que a garantia de compra dos produtos dos assentados, longe de se restringir somente aos

aspectos positivos aqui demonstrados, pode também se tornar uma estratégia interessante

para a efetivação da reforma agrária no país, desenvolvendo os assentamentos e

enfrentando a pobreza no meio rural.

Considerações finais

Este artigo pretendeu pôr em debate o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)

como parte da política de segurança alimentar e nutricional (SAN) no país. Ainda que não

tenha, eventualmente, alcançado este objetivo, uma vez que o tema da segurança alimentar

e nutricional inclui diversos temas, que vão desde a produção dos alimentos até seu

consumo, a ideia foi de lançar luzes sobre a importância desse programa, não apenas para

a comercialização dos produtos da agricultura familiar, mas também para o

desenvolvimento de práticas alimentares mais saudáveis, tanto por parte dos agricultores,

quanto dos consumidores.

Para tal intento, foi apresentada uma breve reflexão conceitual da SAN, mostrando

a relevância do tema na literatura científica internacional. É destacável o fato de que,

conceitualmente, a SAN necessita ser mais discutida no Brasil, sobretudo, a partir de

enfoques mais amplos e multidisciplinares, já que a temática abrange muitas áreas do

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 187

conhecimento (economia, nutrição, antropologia, saúde, etc.), não podendo ser examinada

através de uma única área, como, seja dito de passagem, tem ocorrido. De fato, esse

trabalho pretendeu auxiliar na disseminação dessa proposta.

Apesar das dificuldades relativamente a uma política alimentar que se pretenda

intersetorial, a operação de uma política que articule o conjunto de todos os setores de

forma integrada (agricultura, saúde, educação, trabalho, etc.) pode ser um desafio no

Brasil. Pensar o PAA como parte de uma política de segurança alimentar envolve cumprir

a importante função proposta no direito humano à alimentação, contribuindo para a

garantia de compra dos produtos da agricultura familiar, como evidenciado aqui através

dos assentados, a promoção de práticas alimentares saudáveis, bem como reforçando a

importância de uma reconexão entre os agricultores familiares locais e os consumidores.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 190

TERCEIRA PARTE

MERCADOS, INSTITUIÇÕES E A QUESTÃO DA QUALIDADE

Os mecanismos de qualificação e certificação como interfaces entre

reciprocidade e troca mercantil

Eric Sabourin

Introdução

Esse trabalho mobiliza a teoria da reciprocidade em antropologia para analisar o

processo de qualificação de produtos da agricultura familiar no Brasil. Qualquer processo de

qualificação que garante a origem, a especificidade e a qualidade de um produto pode permitir

reduzir os efeitos de concorrência e especulação característicos da troca mercantil (SAUTIER;

BIENABE; CERDAN, 2011). A abordagem parte da hipótese de que a qualificação do

produto introduz uma dimensão de reciprocidade numa relação de troca mercantil. Os

processos de qualificação podem contribuir para estabelecer uma relação de reciprocidade

simétrica entre produtores e consumidores (TEMPLE, 2003). Os mesmos podem também

concorrer para criar uma estrutura de compartilhamento das normas de qualidade no seio de

um grupo ou de uma rede de produtores. Tais relações simétricas de reciprocidade entre

produtores e consumidores tendem a gerar sentimentos e valores de confiança, reputação,

honra e responsabilidade. Geralmente, são esses valores éticos que contribuem para garantir a

legitimidade e a autoridade do processo de certificação. Esses mecanismos podem levar à

criação de uma economia territorial em torno de um produto específico. No entanto, os

mecanismos de qualificação e certificação podem também introduzir a exclusão de certos

produtores e/ou consumidores quando conduzem a um aumento dos custos de produção, ou

por conta das exigências das modalidades de auditoria da qualidade. Entretanto, mesmo se no

seio do grupo ou da rede de produtores qualificados operam valores de identidade e regras de

reciprocidade, fora deste ambiente, são as leis da troca mercantil que dominam os mercados.

Por isto, existe a necessidade de uma articulação ou interface para permitir um diálogo entre a

lógica de troca da relação mercantil e a lógica de reciprocidade no seio da dinâmica de

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 191

qualificação. A interface oferecida pelos mecanismos de certificação da qualidade pode

contribuir para reintroduzir a dimensão de reciprocidade econômica (a família, a unidade

doméstica, a comunidade rural ou camponesa, a cooperativa, as normas e os valores

compartilhados) no sistema da troca mercantil.

Para isso, convêm que o processo de certificação não constitua (mediante o seu custo

ou as suas modalidades) um novo fator de exclusão social ou econômica. Na lógica de justiça

da generalização da reciprocidade não é interessante, de fato, que a certificação tenda a

excluir os produtores do acesso à qualificação por motivos financeiros ou ainda a negar o

acesso a certos consumidores mediante seu efeito sobre o aumento do custo dos produtos. A

interface oferecida pelos mecanismos de certificação da qualificação pode obedecer, por sua

vez, tanto a lógica da troca mercantil, como a lógica da reciprocidade ou até a dinâmicas

híbridas ou mistas.

Este trabalho está baseado numa comparação entre três experiências de certificação da

qualidade agroecológica de produtos da agricultura familiar no Brasil: certificação de grupo

por auditoria externa, certificação participativa e cocertificação. A comunicação tem três

partes:

a) o quadro teórico e o contexto;

b) os estudos de caso e seus principais resultados, e;

c) a discussão, as lições e perspectivas.

Referencial teórico e metodológico e contexto: Comercialização dos produtos

agropecuários e relações de reciprocidade

A comercialização de produtos agropecuários não pode ser reduzida às únicas formas

e regras do mercado capitalista. No Brasil, a venda direta, as feiras locais e agroecológicas são

tantos exemplos de mercados de proximidade gerando laços sociais e produzindo

sociabilidade a partir da relação direta entre produtor e consumidor. Apesar do processo de

mercantilização capitalista vivido pela agricultura familiar e camponesa (CONTERATO,

2004; PLOEG, 2008), existem ainda mercados socialmente controlados, que também atendem

às regras de reciprocidade (POLANYI, 1957) ou que introduzem uma parte de sociabilidade e

de reciprocidade nas relações de troca mercantil (RADOMSKY; SCHNEIDER, 2007;

SABOURIN, 2009b). Entendemos por reciprocidade a dinâmica de reprodução de prestações

de serviços, criando laços sociais tal como foi identificada por Mauss (1989) através da triple

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 192

obrigação de “dar, receber e retribuir”. Temple (2003) define a reciprocidade como o

redobramento do ato ou da prestação que permite o reconhecimento do outro e a participação

de uma comunidade humana. Do ponto de vista antropológico, o princípio da reciprocidade

corresponde a um ato reflexivo entre sujeitos, uma relação intersubjetiva e não a uma simples

permutação de bens ou objetos, tal como a troca. Dois elementos da teoria da reciprocidade

são particularmente mobilizados neste estudo.

Em primeiro lugar, o princípio da reciprocidade não se limita a uma relação de

dádiva/contradádiva entre pares ou grupos sociais simétricos. O reducionismo desta definição

que ainda prevalece, às vezes, na antropologia, está levando a uma confusão entre troca

simétrica e reciprocidade. Este impasse persiste enquanto a reciprocidade é interpretada com a

lógica binária que é adequada para a troca. A prestação de troca, no extremo, pode ser

reduzida a uma simples permutação de objetos, quando a prestação de reciprocidade se

caracteriza por uma relação reversível entre sujeitos. Temple e Chabal (1995) propõem

recorrer à lógica ternária de Stéphane Lupasco (1951) que faz aparecer “um terceiro” na

relação de reciprocidade. Este “terceiro incluído” pode ser interpretado como o “ser” dessa

relação e dar conta dela como sendo a estrutura original da intersubjetividade. Diferencia,

assim, a relação de reciprocidade daquela de troca de bens ou de serviços que, pelo contrário,

liberta os sujeitos de toda dívida social e concorre muito menos a gerar obrigações e laços

sociais.

Em segundo lugar, as relações de reciprocidade podem ser analisadas em termos de

estruturas, no sentido antropológico (LEVI-STRAUSS, 1967), e divididas entre algumas

estruturas elementares (TEMPLE, 1998).

Estas relações de reciprocidade estruturadas sob a sua forma simétrica geram valores

éticos:

a) a relação de reciprocidade em uma estrutura bilateral simétrica cria um

sentimento de amizade;

b) a relação numa estrutura simétrica de repartição de bens ou serviços dentro

de um grupo cria o sentimento de confiança;

c) a relação simétrica numa estrutura de redistribuição equilibrada de bens ou

serviços cria o valor de justiça, etc.

Este é o ponto mais complexo da teoria “renovada” da reciprocidade proposta por

Temple e Chabal (1995) e, sem dúvida, o mais difícil de validar, porque diz respeito não

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 193

somente a produção de bens materiais, mas também de sentimentos e valores humanos. Mas é

um elemento central que oferece várias possibilidades de análises e de propostas alternativas

em termos de construção social de regras econômicas.

Em termos de comercialização de produtos agrícolas, os agricultores ou suas

organizações, têm implementado vários tipos de interface que permitem uma convivência,

uma articulação entre práticas de reciprocidade e práticas de troca.

A primeira interface é a da venda direta baseada no encontro entre o produtor e o

consumidor. Existe uma relação de troca monetária, mas o contato direto entre produtor e

comprador permite redobrá-la por uma relação de reciprocidade binária (o cara a cara)

gerando valores afetivos como o sentimento de reconhecimento, de amizade ou valores éticos:

respeito, confiança e até fidelidade.

É também o caso das cadeias curtas socialmente controladas por grupos de produtores

ou cooperativas de consumidores. Podemos citar as iniciativas como os mercados camponeses

e as “cestas camponesas” ou Associações para a Manutenção de uma Agricultura Camponesa

(AMAP’s) na França, que são administradas por associações mistas de agricultores e

consumidores (LAMINE, 2008).

Tais situações de contato direto, (estrutura do “cara a cara”) dão origem a relações

humanas específicas: conversas e explicações em torno dos produtos, do trabalho, dos

processos, mas também da vida social, da família ou da política. Além da afetividade, essas

relações geram também valores de lealdade e de confiança entre produtores e consumidores.

Quando a relação direta não é possível, existe a possibilidade da intermediação qualificada e

interpessoal: a corretagem. O corretor permite estabelecer uma relação de reciprocidade

ternária com o produtor e os consumidores, mediante o interconhecimento e informações

privilegiadas sobre a qualidade do produto e do produtor (DARRÉ, 1994). Esta estrutura

corresponde a uma relação de reciprocidade que, se for simétrica ou equilibrada, produz

valores como a responsabilidade, a confiança e, sobretudo, a reputação (do produtor como do

corretor) que leva ao prestígio. A dialética do prestigio é típica das lógicas de dádiva e de

reciprocidade, pois ele é fonte de autoridade e/ou de poder nesses sistemas.

O processo de qualificação dos produtos que assegura uma articulação entre o

princípio de reciprocidade e o princípio da troca mercantil pode constituir um mecanismo de

interface. A política de qualificação (o selo ou rótulo) limita os efeitos da concorrência e da

especulação característicos da lógica de troca mercantil e pode contribuir para construir

territórios de reciprocidade em torno de um produto e de uma comunidade de produtores.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 194

Quando o nome do produtor, da sua localidade ou do seu grupo social está envolvido,

são as relações de reciprocidade que geram os valores de honra, reputação e responsabilidade

que permitem a reprodução da qualidade e do ciclo comercial em torno dos produtos

"qualificados" (SAUTIER; BIENABE; CERDAN, 2011). São, entre outros, esses valores

éticos que garantem a legitimidade e autoridade do processo de certificação das normas de

qualidade e de origem. As empresas capitalistas identificaram rapidamente a importância

destes valores éticos (reputação, confiança, responsabilidade social) para transformá-los em

objetos mercantis por meio da privatização dos serviços de auditoria das normas de qualidade.

No entanto, e particularmente para produtos alimentícios, a verdadeira sanção é

essencialmente a do consumidor. Além disso, a garantia da qualidade (orgânica, por exemplo)

é muitas vezes inerente ao próprio processo de produção. Qualquer agricultor comprometido

num processo de conversão agro ecológica seja por razões materiais (valor agregado), éticas

ou ecológicas, não tem, a priori, nenhum interesse de enganar o consumidor ou de voltar atrás

no seu sistema de produção. Atrás da chave da interface, há de fato uma questão de confiança

entre consumidor e produtor, entre os próprios produtores, ou entre produtores e comerciantes

intermediários. É esta questão da credibilidade da qualidade do produto que está sujeita à

validação, que passa por um processo de controle chamado de certificação.

Análise da certificação e evoluções recentes

Minha hipótese é que o processo de certificação não é um dado tecnológico neutro. É

uma construção social, que depende principalmente da confiança humana, mais que da

conformidade a processos ou padrões tecnológicos.

A economia das convenções (DUPUY, 1989; EYMARD-DUVERNAY, 1995;

VALESCHINI, 1995) já identificou os fatos confirmados pela experiência de sistemas de

certificação participativa baseados sobre a validação da conformidade social, mais que na

conformidade tecnológica.

Mas essas abordagens não vão exatamente até o fim da lógica da produção dos valores

sociais e éticos. De fato, no caso de produtos alimentares e agroecológicos, o reconhecimento

desses valores deveria, logicamente, conduzir a mecanismos de cocertificação e ao fim da

certificação externa mercantil. A ampla revisão de Hatanaka, Bain e Busch (2005) indica

como a certificação por auditoria externa (ou por Terceira Parte) leva a uma globalização de

normas impostas pelos grandes grupos transnacionais e as redes de supermercados.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 195

Logicamente, suscitou resistências e a procura de modalidades alternativas por grupos

de agricultores familiares pelo mundo. Louden e Macrae (2010), a partir de estudos no

Canadá mostram que normas nacionais impostas unilateralmente pela regulamentação federal

da qualificação agroalimentar excluem muitos sistemas produtivos localizados diferenciados.

Por outra parte, sociólogos e economistas têm trabalhado recentemente a questão dos

valores afetivos e éticos, e em particular da confiança, nos sistemas de qualificação e de

certificação. James (2002), a partir da teoria dos jogos, indica que a confiança é criada e

reproduzida pela própria prática de cooperação e por incentivos externos.

Sonnino (2007) mostra, a partir de trabalhos na Itália e Holanda que esses valores de

sociabilidade entrelaçados com o econômico (embeddedness) não são dados, mas construídos

socialmente pelas relações entre atores, produtos e lugares ou territórios.

No Brasil, existem, assim, várias iniciativas de implementação de sistemas de

cocertificação, certificação de grupo, certificação dita “participativa”, entre produtores ou

entre produtores e consumidores (MEDAETS; MEDEIROS, 2004; WILKINSON; CERDAN,

2011). Essas experiências estão ligadas ao renascimento dos mercados de proximidade, das

feiras agroecológicas e da dinâmica dos efeitos de reputação (CERDAN et al., 2009).

A segunda parte apresenta uma análise comparativa de três sistemas de certificação de

produtos agroecológicos da agricultura familiar: Certificação por Auditoria Externa de Grupo

CAE no Mato Grosso, Certificação Participativa em Rede (CPR) em Santa Catarina e

cocertificação na Paraíba (Figura 1).

A metodologia consistiu na aplicação de uma grade de análise comparativa (ver

Tabela 1) inspirada em MEDAETS; MEDEIROS (2004) e completada por perguntas sobre a

origem dos valores ligados a conformidade social, de acordo com trabalhos anteriores

(SABOURIN, 2009 a et al. b; 2011, SABOURIN; RODRIGUEZ, 2009). O estudo

bibliográfico e a análise da documentação desses três sistemas foram associados a uma série

de entrevistas individuais de agricultores, comerciantes, técnicos e consumidores e à

observação de reuniões, visitas de avaliação e situações de comercialização.

Três estudos de caso no Brasil

Os três casos correspondem a agricultores familiares organizados para produzir e

comercializar a sua produção agroecológica. Na Amazônia, trata-se de uma cooperativa de

produtos agroecológicos destinados ao mercado de exportação e ao mercado regional e

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 196

nacional. No Sul, a venda é realizada nas redes comerciais clássicas (supermercados, lojas

especializadas). No Nordeste, a comercialização é restrita à venda direta nas feiras

agroecológicas em várias cidades no Estado da Paraíba (Figura 1).

Figura 1 - Localização das três experiências de produção agroecológica

Fonte do mapa: Brasil (2005).

Certificação de grupo por auditoria externa (MT Cooperagrepa e Ecocert).

A Cooperativa de agricultores agroecológicos de Terra Nova do Norte (Mato Grosso),

Cooperagrepa (300 famílias), produz, desde 2003, guaraná, castanha do Brasil, açúcar

mascavo, café e mel (SABOURIN; RODRIGUES, 2009). Adotou um sistema de certificação

de grupo proposto por uma empresa privada, a Ecocert Brasil (WHYTE, 2002). O contrato de

grupo foi estabelecido para 50 unidades familiares (a Ecocert requer um mínimo de 30

agricultores para esta modalidade).

A Ecocert realiza a auditoria externa de uma amostragem dos produtores (em média

10 por ano) e de todas as unidades de processamento a cada ano. O controle interno é

realizado anualmente por um agrônomo da Cooperagrepa, que assegura o conjunto dos

registros e documentos para cada unidade de produção.

Os custos de auditoria externa são demasiado elevados para os pequenos agricultores

membros da Cooperagrepa. A cooperativa recebe o apoio do Serviço Brasileiro de Apoio de

Pequenas Empresas (SEBRAE) durante cinco anos: o SEBRAE paga o custo total da

Feiras Agroecologicas

da Borborema-PB

Cooperagrepa

Terra Nova -MT

Rede Ecovida - SC

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 197

certificação nos primeiros três anos e a metade nos dois últimos. Em 2009, o custo era de 700

reais (R$) por unidade de produção (R$ 350 pagos pelo produtor). O SEBRAE e o agricultor

depositam esse valor antes da visita da Ecocert, que fornece o certificado após o recebimento

do pagamento e a inspeção. Maior é o grupo, mais o custo individual é reduzido. O custo de

um sistema de certificação individual pela Ecocert era de R$1000/ano até 2009.

A verificação da conformidade é essencialmente técnica. O grupo produtor passa por

um período de conversão durante o qual deve realizar e fornecer os registros solicitados, em

função dos requisitos estabelecidos pelo modelo de produção. No final deste período, o

organismo de certificação realiza a avaliação da conformidade, que conta com o relatório de

inspeção de todas as unidades de produção do grupo e da análise em laboratório de uma série

de testes selecionados aleatoriamente por amostragem.

A decisão de certificação não é tomada pelos indivíduos que realizam as inspeções,

mas centralmente pelo organismo certificador. Assim, tal como é exigido pela Organização

internacional de normalização (ISO), há separação entre as funções de inspeção e certificação.

O conjunto dos registros é mantido pelo organismo certificador. Os técnicos da

COOPERAGREPA asseguram um papel de auditoria das unidades de produção e recebem um

treinamento específico sobre os procedimentos de inspeção. A seleção desses inspetores

depende de um conjunto de critérios que reduzem a possibilidade de outro tipo de

relacionamento entre o inspetor e o inspecionado.

A Rede Ecovida de Agroecológia

A Rede Ecovida de Agroecologia foi criada em 1998 no Estado de Santa Catarina,

“[...] com o fim de promover a agroecológia e criar mecanismos legítimos para a produção de

credibilidade e segurança dos processos desenvolvidos pelos seus membros.” (REDE

ECOVIDA DE AGROECOLOGIA, 2002, p.4). A rede abrange os estados de Santa Catarina,

Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo e conta com mais de 120 organizações ou dispositivos

coletivos de agricultores (grupos formais e informais, associações e cooperativas de

produtores e consumidores) e 23 unidades de apoio atingindo diretamente cerca de 1.500

famílias de produtores.

Diversas normas internacionais, como as do sistema IFOAM/IOAS Grower group

(IFOAM, 2009), o Regulamento CEE nº 2.092/91 ou a norma do Ministério da Agricultura do

Brasil MAPA Nº6 de 2002 abrem e regulam a possibilidade de certificação por grupos de

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 198

produtores organizados. A Rede Ecovida adotou o sistema de Certificação participativa em

rede (CPR) por conformidade social em vários dos seus grupos.

De acordo com Ferrari (1983, p.457), a "conformidade social" representa “[...] a

alteração ou modificação do comportamento e crenças de uma pessoa ou de um grupo, numa

direção determinada por um grupo mais amplo.” A conformidade repousa na pressão do

grupo e nos “grupos de referência” como forças motivadoras. O autor menciona que a

conformidade se manifesta condicionada por variáveis interpessoais e variáveis cognitivas.

Toda alteração envolve um processo de sanções positivas, negativas e neutras. Assim,

no caso da CPR, um forte investimento é necessário para que os indivíduos envolvidos no

sistema atinjam uma "conformidade social".

A avaliação da conformidade social é diferente da avaliação da conformidade

tecnológica em três aspectos:

a) ela é feita com base em reuniões ou comitês onde a observação sistêmica e a

convergência de informações não recobrem um perfil tecnológico;

b) as exigências de conformidade não se referem ao sistema técnico de

produção, mas às condições sociais e aos fatores sociais da sua

implementação;

c) ela não depende de peritos treinados para inspeção / auditoria, mas de

técnicos e agricultores treinados em agroecológia. Finalmente, o técnico está

envolvido diariamente com os grupos de agricultores certificados no seu

processo de construção da conformidade social.

As "visitas" do Comitê de Ética constituem a segunda atividade de controle de

qualidade onde se manifesta a presença externa à unidade de produção. Os técnicos, os

agricultores, e até os consumidores que realizam as "visitas" de uma unidade de produção

vêm de um ambiente exterior e podem assegurar um papel de "inspeção externa."

A última ação de controle, a revisão pelos pares, ocorre dentro do núcleo ou do grupo

para dar lugar à decisão de certificação.

Os mercados agroecológicos na Paraíba

Na Paraíba, as feiras agroecológicas de Lagoa Seca, Campina Grande e Massaranduba

foram organizadas pelo Polo Sindical da Borborema (PSB) para fornecer à população local

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 199

produtos saudáveis e aumentar a autonomia dos agricultores familiares com relação às cadeias

tradicionais que eles não podem controlar (KILCHER, 2004; FLORENTINO et al., 2007).

O público-alvo é de condição modesta e os preços praticados não são muito diferentes

daqueles dos mesmos produtos convencionais nas outras feiras da região. Permanecem bem

inferiores aos preços de produtos idênticos não agroecológicos nos supermercados de

Campina Grande. A iniciativa do PSB levou a criar uma associação regional de agricultores

agroecológicos e a estruturar um processo de certificação da qualidade. Trata-se de uma

cocertificação de grupo ou certificação mútua, realizada por comissões de agricultores

designadas pela associação de produtores agroecológicos. As comissões visitam regularmente

cada produtor e verificam o processo de manejo dos cultivos, o itinerário técnico e a natureza

dos insumos utilizados.

Cada agricultor pode se tornar avaliador ou avaliado. Os riscos de fraude são bem

limitados por conta da pressão social e do interconhecimento. Mas antes de tudo, é porque o

interesse primordial dos agricultores é manter uma clientela ainda frágil e, portanto, não

trapacear na qualidade. Este sistema de certificação mútua (ou recíproca) tem a vantagem de

ser gratuito, de não aumentar o custo de produção e de não colocar os agricultores na

dependência das empresas de certificação. No processo de cocertificação, o controle de

qualidade torna-se inerente à estrutura da produção a partir do momento que esta é

reposicionada em um sistema de reciprocidade. Os mercados agroecológicos não têm como

primeiro ou único objetivo aumentar o valor agregado e a mais valia para os produtores. A

meta inicial era de se liberar da dependência dos intermediários das cadeias tradicionais,

promovendo o controle de cadeias curtas e a venda direta. A segunda meta era recuperar uma

relação humana favorável à agricultura familiar junto à população local, proporcionando

produtos de qualidade saudável. Estas feiras não apareceram simplesmente em resposta a uma

transformação das práticas de cultivo ou pelo incentivo de entidades de assistência técnica. A

condição do seu sucesso está na sua resposta qualificada, durável, coletiva e

institucionalizada, a uma demanda dos consumidores locais para produtos de qualidade e sem

pesticidas.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 200

Análise comparativa, discussão, ensinamentos e perspectivas

Analise das três experiências

A análise dos três sistemas de certificação apresentados examina as práticas, o tipo de

relações que lhes correspondem, os resultados obtidos e a natureza dos valores mobilizados

ou gerados. Cada um dos sistemas estudados pode ser assimilado a uma lógica (troca

mercantil, cooperação, reciprocidade) e também, de acordo com MEDAETS; MEDEIROS

(2004), a uma linguagem específica.

A Certificação pela Auditoria Externa (CAE) é fundamentada em três elementos:

a) um nível de registros rigoroso e elevado (talvez demasiado?);

b) inspeções externas para reduzir o oportunismo;

c) a centralização das decisões de certificação com base na documentação do

sistema de controle do uso da marca de certificação.

A lógica mercantil desse sistema leva a controlar tanto (ou mais) as normas de uso da

marca de certificação que as normas do sistema técnico como, por exemplo, o uso de insumos

orgânicos.

A CEE (2002) menciona que as modalidades da CAE não fazem distinção entre

grandes empresas do agronegócio e pequenos agricultores familiares ou camponeses;

exigindo o mesmo esforço e normas de inspeção, independentemente do tamanho da unidade

de produção e do tipo de produto, o sistema leva, muitas vezes, a operações desnecessárias e

inadequadas para os pequenos produtores.

Essa crítica pode ser estendida aos critérios de amostragem, à realização de testes e

análises, e aos procedimentos de registros dos insumos ou das vendas, etc. Estes

procedimentos "globalizados" pelos guias ISO ignoram as particularidades do meio rural local

e as potencialidades das relações de cooperação, de proximidade e de reciprocidade em

termos de construção da credibilidade ou de controle mútuo pela pressão social. A CAE por

firmas privadas tende a provocar o aumento dos custos, dos preços aos consumidores e a

limitar o acesso de pequenos agricultores familiares e camponeses à qualificação dos seus

produtos (LANDEL et al., 2009; ÁVILA, 2011). Por outra parte, por conta das exigências

documentarias e financeiras, o controle externo privado realmente realizado tem se revelado

pouco eficaz para a qualificação das unidades da agricultura familiar (SABOURIN;

RODRIGUES, 2009). No entanto, esta questão da certificação da qualidade torna-se

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 201

inevitável uma vez que existe no Brasil um processo de regulamentação dos mercados de

produtos agroecológicos que torna obrigatória a certificação da produção orgânica (BRASIL,

2002).

O CPR e a cocertificação são sistemas baseados na "conformidade social" a um

objetivo comum de qualidade do sistema de cultivo e do processamento/embalagem do

produto e a acordos formais e informais para atingi-los. A decisão de certificação

descentralizada dá lugar a um mecanismo de sanção (podendo ir até à exclusão), quando os

acordos estabelecidos dentro dos grupos não são respeitados; esses dois sistemas prevêem

também um engajamento ou um compromisso dos consumidores (uma consulta no mínimo)

(Tabela 1).

A certificação de grupo por auditoria externa procura um grau de excelência das

inspeções e das recomendações relacionado com as normas de exportação. A decisão depende

de um conjunto de dados e documentos que permitam a rastreabilidade do produto controlado.

O sistema de conformidade social recomendado pela CPR depende das visitas e

revisões por pares. Estas duas operações bem distintas dependem de um conjunto de critérios

que são menos numerosos e menos exigentes ou objetivos que aqueles dos procedimentos da

CAE por auditoria externa (Tabela 1).

A Associação de Certificação Participativa da Rede Ecovida assegura essa função com

base em avaliações dos conselhos de ética dos grupos locais. Na Paraíba, é a associação de

produtores agroecológicos que garante o monitoramento e o controle das normas através de

reuniões e visitas técnicas. O papel da pressão dos consumidores e do conhecimento mútuo é

fundamental na Paraíba e, por vezes, na Rede Ecovida. Em ambos os casos, a decisão de

certificação é descentralizada e tomada pelos atores envolvidos no processo de produção. Não

há separação entre as funções de inspeção e de certificação. Nos Núcleos da Ecovida existe

essa separação (REDE ECOVIDA DE AGROECOLOGIA, 2002). No caso da CPR, não há

inspetor externo, mas as visitas são realizadas por técnicos e agricultores treinados em

agroecológia e habilitados para verificar o cumprimento das normas estabelecidas pela Rede

Ecovida (Tabela 1).

No entanto, o fato da documentação exigida pela CPR ser mais simples que a da CAE

não autoriza discutir da qualidade da certificação fornecida. Além disso, o caráter

descentralizado e participativo da CPR confere aos produtores uma competência relevante,

não só do conhecimento das normas e do controle de qualidade, mas também em matéria de

gestão e contabilidade das suas operações (MEDAETS; MEDEIROS, 2004).

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 202

As reuniões entre as famílias, a intensidade do processo de intercâmbio de

informações através do monitoramento mútuo, a geração de uma reputação entre pares e a

exclusão daqueles que não respeitam os acordos assinados, são todos fatores que contribuem

para a construção de uma "conformidade social" no sistema da CPR. Essa conformidade

social é o resultado de uma pressão social dentro do grupo.

Ela está sendo motivada e garantida por valores comuns e interesses sociais e

materiais comuns. No caso dos mercados da Paraíba, a documentação reunida é ainda menor

no processo de cocertificação; mas em compensação, há uma intensidade dos intercâmbios

orais. Eles estão na base da informação mútua e da pressão social que constituem os

principais fatores da construção da reputação do produtor e do produto.

Quanto aos mecanismos de verificação, a principal expectativa de um sistema de

certificação é, em última análise, que ele permita reduzir a assimetria de informação e os

espaços de fraude ou, pelo menos, de oportunismo. Os três sistemas conseguem isto, sem

diferença significativa nos resultados, mas com uma forte diferenciação (entre eles) em

termos de custos e procedimentos (Quadro 1).

Quadro 1 - Comparação das modalidades de controle da qualidade

Componentes do

controle de qualidade

Certificação de Grupo

por Auditoria Externa

Certificação Participativa

em Rede

Cocertificação de grupo

1. Padrões Construção em processo

de revisão periódica.

Construção em processo de

revisão periódica.

Construção em processo

de revisão mútua

permanente

2. Meios de

verificação

a) Inspeção

b) Capacitação

c) Variáveis medidas e

técnicas utilizadas

d) Registros e

documentação

a) por 1 perito em

inspeção. Principio do

inspetor externo.

b) sobre produção

agroecológica e

inspeção

c) Atividades de

avaliação da

conformidade técnica.

d) elevados, rigorosos e

sempre centralizados.

a) por um perito praticante

em agroecológia (produtor

ou técnico). Sem inspetor

externo.

b) concentrada sobre

produção agroecológica

c) avaliação da

conformidade social e

conformidade técnica.

d) leves, não uniformes e

descentralizados

a) por um perito praticante

em agroecologia

(produtor). Sem inspetor

externo.

b) sobre produção

agroecológica.

c) conformidade social e

conformidade técnica.

d) leves, não uniformes e

descentralizados

3. Organismo Certificador

a) Responsabilidade

pelo sistema de

certificação

b) Estrutura

c) Separação entre

apoio técnico e

a) Do organismo

certificador externo

b) normas ISO 65.

c) Realizada

a) Do organismo

certificador, mas não

operando na prática.

b) normas ISO 65 não

operando na pratica

c) nem sempre realizada

b) do agricultor e da

associação de produtores

agroecológicos.

b) normas agroecológicas

locais, regionais ou

nacionais

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 203

Componentes do

controle de qualidade

Certificação de Grupo

por Auditoria Externa

Certificação Participativa

em Rede

Cocertificação de grupo

certificação

d) Decisão de

certificação

e) Técnico

d-1) Centralizada.

d-2) Decisão de

certificação separada da

inspeção.

e) Externo.

d-1) Descentralizada. Feita

nos grupos/núcleos da rede

Ecovida

d-2) separada da inspeção

se feita no Núcleo e

conjunta se realizada no

Grupo.

e) Presente na comunidade

c) não se aplica

d-1) Descentralizada.

Realizada nos grupos e

visitas.

d-2) conjunta nos grupos.

e) Presente na comunidade

4. Comunicação da

qualidade

Selo, reputação do

produtor e do organismo

certificador

Selo, reputação do produtor

e do organismo certificador,

influencia dos critérios de

conformidade social

Selo, reputação do

produtor e pressão social

5. Custo anual por

Unidade familiar

(2009)

Grupo : 700,00

R$/unidade

Individual: l000,00

R$/unidade

90,00 R$ /unidade (3 dias

trabalho por família)

30,00 R$ /unidade (um dia

de trabalho por família)

Fonte: Baseada em Medaets e Medeiros (2004) e Sabourin (2009).

Lições e perspectivas

A política de qualificação constitui uma interface de sistema. Ela limita os efeitos da

concorrência e da especulação específicos da troca mercantil capitalista. Observamos que esta

interface pode ser gerenciada por diversos mecanismos. Primeiro, pode ser regulada pela

comunidade de produtores: é o caso da cocertificação mútua das feiras agroecológicas da

Paraíba, de acordo com um princípio de reciprocidade e de gratuidade. Este mecanismo

permite não aumentar o custo do produto por conta do processo de certificação de qualidade e

manter o saber-fazer e a autonomia dos produtores. A credibilidade da qualidade está fundada

em princípios que vêm completar e validar o processo de cocertificação, chamado por Temple

(2003) de qualificação centrípeta (interna ou realizada dentro do ambiente de produção): o

conhecimento mútuo, a relação física direta entre produtores e consumidores e, claro, o valor

de reputação.

A certificação pode também ser confiada a uma empresa externa de acordo com uma

lógica contratual e mercantil. Esta solução aumenta significativamente o custo de produção e

deixa os agricultores em situação de dependência, de suspeição, e até de falta de competência.

Este sistema coloca em dúvida o reconhecimento da capacidade dos agricultores em controlar

e validar a qualidade dos seus produtos. No entanto, sendo reconhecido pelas regras do

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 204

comércio internacional, esta modalidade de certificação externa e mercantil da qualidade pode

ser exigida para a exportação em certas redes.

É por isso que os agricultores brasileiros desenvolveram uma solução intermediária

entre o sistema de reciprocidade e o sistema da troca mercantil. A CPR mantém a autonomia

e a construção da competência dos agricultores, mas permite, com um custo adicional

reduzido, o reconhecimento externo e internacional, mediante, por exemplo, as normas ISO

para exportação.

O sistema de CPR constitui uma dupla interface entre a lógica da reciprocidade e a

lógica da troca. Primeiro, ele permite uma articulação entre a produção doméstica e o

mercado de troca, protegendo a produção qualificada dos efeitos da concorrência. Segundo,

oferece um sistema de garantia e de controle desta qualidade baseado na reciprocidade e na

ajuda mútua entre pares (DARRÉ, 1994). Se este mecanismo de certificação quase gratuito (3

dias de trabalho/família/ano) escapa à lógica mercantil capitalista, ele permite, no entanto,

dialogar e interagir com ela, especialmente ao nível das normas internacionais para a

exportação. Neste sentido, é um mecanismo de certificação híbrido, adequado para sistemas

mistos, caracterizados por práticas que associam a lógica de troca e a lógica de reciprocidade.

A teoria da reciprocidade permite interpretar o significado social e a lógica econômica

construídos pelas comunidades humanas ao longo da história, atrás de práticas e prestações,

que, muitas vezes, de maneira quase imperceptível, foram naturalizadas como pertencendo ao

quadro da troca mercantil ou capitalista.

Entretanto, o capitalismo tem pouca preocupação com os valores éticos ou com o

projeto de uma sociedade mais justa para toda a humanidade.

Todas as possibilidades para a qualificação dos produtos rurais ainda não foram

exploradas. O caso da cocertificação mútua da Associação de produtores agroecológicos no

Agreste da Paraíba mostra que uma validação da qualificação centrípeta (de dentro, interna) é

possível. Este sistema poderia, também, ser adaptado para o mercado nacional e inclusive

para a exportação dos produtos.

A qualificação centrípeta ou “interna” e o selo personalizado constituem uma das

chaves para um desenvolvimento rural endógeno ou autocentrado que atenda às necessidades

prioritárias das comunidades locais.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 205

Considerações finais

O trabalho questiona a equidade social e econômica nas inovações em matéria de

qualificação e certificação de produtos agroalimentares. Oferece uma análise de modalidades

alternativas de certificação, menos caras e mais sustentáveis do que a certificação por

auditoria externa por firmas.

Em termos de reflexão global sobre a inovação, este artigo destaca o papel da

inovação econômica e social na agricultura e no mundo rural. Os rurais não estão condenados

a depender de inovações tecnológicas, muitas vezes recuperadas e instrumentalizadas pelos

interesses privados de firmas, como no caso da certificação por auditoria externa.

De fato, o mercado capitalista de troca opõe a “homogeneidade” das normas de

padronização da CAE por firmas à “heterogeneidade” ou à variação nos procedimentos de

registro da certificação participativa (CPR). De acordo com a lógica do mercado capitalista,

essas variações poderiam causar uma redução da credibilidade do sistema CPR (AKERLOF,

1970). Na verdade, o risco é maior do outro lado: a certificação por auditoria externa

dificilmente pode pretender refletir a diversidade dos sistemas e das condições de produção,

as situações diversas e diferenciadas das localidades, dos territórios, especialmente as

diversidades sociais e culturais (HATANAKA; BAIN; BUSCH, 2005; CERDAN et al., 2009;

LOUDEN; MACRAE, 2010).

Aqui reside uma das vantagens da certificação por conformidade social. Mas

certamente, ela não deveria substituir completamente a conformidade técnica; é por isso que o

ponto de vista dos produtores como pares e o dos consumidores como juízes, permanecem

primordiais e incontornáveis. As noções de confiança (JAMES, 2002), reputação (OSTROM,

1998) e interconhecimento ou conhecimento mútuo (DARRÉ, 1994), estão no centro dos

processos de qualificação dos produtos (especialmente agroalimentares) e, portanto, dos

diversos mecanismos de certificação (OSTROM, 2003, 2005). Essas normas sociais

correspondem a valores humanos e relações típicas das estruturas de reciprocidade (TEMPLE,

1998, 2003; SABOURIN, 2011). A pressão social é reconhecida por sua eficácia nos

processos de garantia da credibilidade da qualidade (SONNINO, 2007). No Brasil, vários

autores sugerem desenvolver e expandir o debate sobre a conformidade social como

mecanismo alternativo eficaz em matéria de controle de qualidade no campo da agricultura

familiar e camponesa (REDE ECOVIDA DE AGROECOLOGIA, 2002; MEDAETS;

MEDEIROS, 2004; CERDAN et al., 2011)

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 206

Houve evoluções significativas nos quiinze últimos anos. Na verdade, as iniciativas de

qualificação e certificação participativa apareceram no Sul e particularmente na America

Latina onde a reflexão teórica sobre a reciprocidade e a economia plural ou solidaria é mais

ativa e diversificada do que nos países do Norte (MARTINS; NUNEZ, 2004; GAIGER, 2005;

MENEZES, 2006; FRANÇA FILHO 2006). Entre outros conceitos pioneiros, podemos

mencionar os Sistemas Agroalimentares Localizados-SIAL (MUCHNIK; SAINTE-MARIE,

2010), as indicações geográficas (SAUTIER; BIENABE; CERDAN, 2011; WILKINSON;

CERDAN, 2011) e o sistema de comércio justo no Brasil (BRASÍLIA, 2007; SISTEMA

NACIONAL DE COMÉRCIO JUSTO E SOLIDÁRIO, 2006; FÓRUM BRASILEIRO DE

ECONOMIA SOLIDARIA, 2007).

Este debate, ainda tímido no Brasil, abre um campo de aplicação da teoria da

reciprocidade e, em particular, do princípio da interface de sistema (TEMPLE, 2003;

SABOURIN, 2011). O exemplo das feiras agroecológicas da Paraíba e dos grupos da Rede

Ecovida mostra que uma qualificação personalizada e centrípeta, por meio de um processo de

cocertificação por pares é tão eficaz e muito mais barato do que a certificação por auditoria

externa das empresas privadas. É, portanto, o interesse dos consumidores e a sua capacidade a

se informar e a entrar numa relação de reciprocidade mais simétrica com os produtores que

constitui a base do princípio da qualificação dos produtos (SABOURIN, 2011).

Este tipo de abordagem abre novas perspectivas para a pesquisa e a ação, de um lado

em torno da aprendizagem e dos valores no marco das relações de reciprocidade (COUDEL;

SABOURIN; TONNEAU, 2009) e, do outro lado, sobre as modalidades de regulação da

interface entre práticas de troca e práticas de reciprocidade.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 211

Circuito carioca de feiras orgânicas: a expansão da venda direta de

alimentos orgânicos, o controle social, a regularização da agricultura

orgânica e os princípios do comércio justo e solidário

Maria Fernanda de Albuquerque Costa Fonseca

Cristina de Brito Ribeiro

Ana Paula Pegorer de Siqueira

Anny Paula Machado

Gisele Ribeiro R. da Silva

Renato Linhares de Assis

Introdução

A produção e o mercado de produtos orgânicos no mundo e no Brasil vêm crescendo

desde os anos 90 mais aceleradamente. No Brasil ainda não temos dados concretos do

tamanho da área e volume de produção e comercialização de produtos da agricultura orgânica

porque os órgãos oficiais não elaboram estas estatísticas. Dados estimativos foram divulgados

por fontes oficiais como o MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento). De

posse das informações de certificadoras, associações de produtores e ONGs, elaborou folder

na época da BIOFACH 2005, na Alemanha, em que mostrava que tínhamos 19 mil

estabelecimentos controlados e cerca de 6 milhões e 500 mil hectares manejados sob as

normas da agricultura orgânica (BRASIL, 2005).

De acordo com Willer e Yussefi (2011), o Brasil ocupa o segundo lugar em área

orgânica certificada, onde o primeiro lugar é ocupado pela Austrália (12,02 milhões) e o

terceiro e quarto pela Argentina (4,01 milhões) e China (1,85 milhões), respectivamente.

Seguindo orientação da FAO e por esforço próprio, o Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE), em 2006, durante o Censo Agropecuário, registrou as informações

autodeclaráveis dos estabelecimentos rurais que diziam praticar a agricultura orgânica quando

perguntados. De acordo com essas informações (INSTITUTO BRASILEIRO DE

GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE, 2009), foram registrados cerca de 90 mil

estabelecimentos rurais que declararam praticar agricultura orgânica, ocupando área estimada

de cerca de 4,93 milhões de hectares, o que corresponde a 1,5% da área agrícola no Brasil

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 212

(333,7 milhões de hectares). O valor da produção é de cerca de 1.200 milhões de reais e a área

média por estabelecimento é de 54 hectares. Desses 90 mil estabelecimentos “orgânicos”,

85% são conduzidos pelos agricultores familiares e 89,5% não são certificados, sendo que nos

estabelecimentos rurais até 10 ha, cerca de 95% não são certificados.

Entretanto, a regulamentação brasileira foi elaborada a partir da realidade e das

normas internacionais, prevendo três formas de dar garantia de que um produto foi obtido de

acordo com os procedimentos autorizados para uso na agricultura orgânica, dependendo de:

a) o perfil do produtor (agricultor familiar ou não);

b) os arranjos locais (controle social ou não);

c) o tipo de canal de comercialização (venda direta ou indireta).

O agricultor familiar, organizado em grupos (formais e informais), que estiver

realizando a venda direta (estabelecimentos rurais, feiras, cestas em domicílio, compras

governamentais para doação e alimentação escolar, lojas dos produtores) de seus produtos,

basta estar cadastrado no MAPA e submetido a alguma forma de controle social, não precisa

estar certificado (BRASIL, 2010).

As outras duas formas de dar garantia são por meio da certificação (em grupo ou

individual) e dos sistemas participativos de garantia (SPG).

Até a presente data, apesar do MAPA possuir as informações sobre os produtores

orgânicos, encaminhadas em dezembro de 2010 durante credenciamento pelas Organizações

de Controle Social (OCS), Organizações de Avaliação da Conformidade (participativas ou

não) – OAC e OPAC, o cadastro nacional dos produtores orgânicos ainda não está disponível

na página do MAPA para consulta. Em informação disponível na internet (BRASIL, 2011), o

MAPA divulgou a lista de Organismos de Avaliação da Conformidade (OAC ou OPAC)

credenciados até agora, que são: 04 certificadoras (TECPAR, IBD Certificações, ECOCERT

Brasil, IMO Control Brasil; 03 OPACs (Rede Ecovida de Agroecologia, Associação de

Agricultura Natural de Campinas e região (ANC) e Associação dos Agricultores Biológicos

do Rio de Janeiro (ABIO)). Quanto às organizações de controle social (OCS), são 58

cadastradas no MAPA localizadas em 14 estados da federação (69% OCS região nordeste,

16% no Sudeste e 5% para cada uma das regiões Norte, Centro Oeste e Sul).

Por ocasião da Rio + 20, o MAPA divulgou dados sobre a produção orgânica no

Brasil, onde alcançamos uma área de 1.722.807 hectares e 11.904 projetos controlados

(BRASIL, 2012), o que não expressa o real número de produtores orgânicos cadastrados pois,

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 213

às vezes, por exemplo, um projeto que é submetido à certificação em grupo de pequenos

produtores, pode envolver mais de 4 mil famílias, como é o caso das Quebradeiras de Coco

Babaçu, no Nordeste do Brasil.

Pesquisas no Rio de Janeiro vêm sendo feitas pela academia e por empresas privadas

para identificação do perfil do produtor na agricultura orgânica e das estratégias de

comercialização, bem como a percepção dos consumidores quanto aos produtos da agricultura

orgânica (FONSECA; CAMPOS, 1999; GUIVANT et al., 2003; CARVALHO, 2011). Como

fruto desses estudos, a partir de 2007, a Empresa de Pesquisa Agropecuária do estado do Rio

de Janeiro (PESAGRO) em parceria (ABIO, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária

(EMBRAPA), Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do estado do Rio de Janeiro

(EMATER/RIO), identificou alternativas para aumento da oferta de orgânicos. As

oportunidades estavam na modalidade da venda direta para resolução dos gargalos ligados ao

crescimento da comercialização de produtos orgânicos. Por isso, passou a realizar pesquisas e

construir ações de fomento ao crescimento da oferta em feiras e para os mercados

institucionais. Essas iniciativas acontecem no interior do estado e na região metropolitana.

No caso das feiras, em pesquisa com recursos FAPERJ, realizada em 2007

(FONSECA et al., 2009), um dos gargalos para aumento do número de locais e dias de feiras

estava relacionado à localização destas, onde o estacionamento de veículos, o barulho e o lixo

nas cidades eram problemas identificados. Outros desafios eram uma infraestrutura mínima

(banheiros, por exemplo), regras claras de acesso e formação de preço de venda, exposição da

tabela de preços, uso de balança e padronização dos tamanhos dos lotes, registros da produção

e da venda dos produtos, trabalho coletivo de destino das sobras e dos resíduos das feiras.

Mais recentemente, ocorreu a expansão da venda direta de alimentos orgânicos controlados,

ofertados por produtores do Rio de Janeiro, membros da ABIO, na cidade do Rio de Janeiro,

desde a instalação do Circuito Carioca de Feiras Orgânicas em maio de 2010.

Objetivos e Metodologia

Este trabalho pretende descrever a construção social do canal de comercialização

modalidade venda direta, que aproxima produtores e consumidores, com a implantação do

Circuito Carioca de Feiras Orgânicas nas praças da cidade do Rio de Janeiro. Pretende

identificar as articulações estabelecidas, os compromissos negociados e assumidos entre os

diferentes atores públicos, privados e da sociedade civil. Pretende caracterizar o perfil dos

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 214

produtores, a oferta de produtos, os preços praticados, a infraestrutura e layout do espaço. Ao

final, fornecemos alguns entraves atuais identificados e possíveis soluções/sugestões em

andamento, ou não, que viabilizem a continuidade e o crescimento deste canal de

comercialização em outros espaços da cidade do Rio de Janeiro e no interior do Estado.

Pretende também apontar entraves para a implementação da regulamentação da agricultura

orgânica neste canal de comercialização, obrigatória a partir de janeiro de 2011.

Para atingir esses objetivos, lançamos mão de fontes secundárias (FONSECA, 2009;

ABIO, 2011), levantamentos, observações e entrevistas realizadas nos espaços de

comercialização e durante as reuniões dos núcleos de Sistema Participativo de Garantia (SPG)

da ABIO.

Resultados

A ABIO foi criada em meados da década de 1980 e em 1988 criou seu caderno de

normas. A ABIO, assim como a PESAGRO e a EMBRAPA Agrobiologia e Agroindústria de

Alimentos, participaram ativamente da construção da regulamentação brasileira da agricultura

orgânica, apoiando as alternativas à certificação individual, fomentando a certificação

participativa em rede que viria a institucionalizar-se como Sistema Participativo de Garantia

quando da regulamentação da Lei 10.831/2003. Em 2010, seus membros optaram pela adoção

do SPG como forma de dar garantia aos produtos orgânicos comercializados por seus

membros, sendo a ABIO credenciada como OPAC pelo MAPA em dezembro de 2010. Os

maiores problemas identificados quanto às não conformidades na aplicação da

regulamentação da agricultura orgânica foram: registros, plano de manejo orgânico, dúvidas

quanto aos insumos permitidos para uso na agricultura orgânica. As visitas de pares deveriam

ser estimuladas.

Durante 16 anos, entre 1994 e 2010, a região metropolitana da cidade do Rio de

Janeiro contou praticamente com apenas uma feira orgânica em espaço público: a Feira

Cultural e Orgânica da Glória, criada pela ABIO e pela COONATURA em 1994. Ocorriam

pequenas iniciativas de venda direta com poucas barracas nos bairros de Botafogo, Flamengo

e Barra da Tijuca, ficando a maior oferta de orgânicos produzidos no Rio de Janeiro, restrita

aos supermercados, lojas de produtos naturais e cestas em domicílio.

Fruto das discussões e articulações do grupo de comercialização da Comissão da

Produção Orgânica do Rio de Janeiro (CPOrg-RJ), a ABIO iniciou no verão de 2009 e

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 215

participou depois de doze feiras de produtos orgânicos promovidas pela Secretaria Municipal

de Cultura, nos Arcos da Lapa, centro da cidade do Rio de Janeiro. Em maio de 2010, um ano

após o início das discussões do projeto apresentado pela ABIO à Prefeitura do Rio, foi criado

o Circuito Carioca de Feiras Orgânicas. É uma parceria da ABIO com a Secretaria Especial de

Desenvolvimento Econômico Solidário (SEDES), e com a aprovação das Associações de

Moradores dos bairros onde estavam localizadas as praças que abrigariam as barracas do

Circuito.

O Circuito tem como objetivos:

a) criar canais de venda direta de produtos orgânicos, contribuindo, assim, para

a viabilização econômica dos produtores orgânicos do Estado do Rio de

Janeiro;

b) aumentar o acesso da população da cidade do Rio de Janeiro aos alimentos

orgânicos;

c) viabilizar a ampliação da agricultura orgânica no Estado do Rio de Janeiro,

contribuindo para a manutenção da paisagem e o desenvolvimento rural

sustentável por meio do aumento da oferta de alimentos orgânicos

produzidos no Rio de Janeiro.

No Quadro 1 apresentamos informações gerais sobre as feiras do CIRCUITO.

Quadro 1 – Informações sobre o Circuito Carioca de Feiras Orgânicas

FEIRA Nº

BARRACAS

DATA DA

INAUGURAÇÃO

DIA LOCAL

Feira Orgânica e

Cultural da Glória

40 Outubro/1994* Sábados Praça do Russell -

Glória

Feira Orgânica do

Bairro Peixoto

28 Maio/2010 Sábados Praça do Bairro Peixoto –

Copacabana

Feira Orgânica de

Ipanema

34 Junho/2010 Terças Praça N. Sra. da Paz –

Ipanema

Feira Orgânica do

Leblon

22 Setembro/2010 Quintas Praça Antero de Quental –

Leblon

Feira Orgânica do

Jardim Botânico

15 Setembro/2010 Sábados Praça da Igreja de São

José da Lagoa – Lagoa

Fonte: ABIO (2011)

Nota: * A Feira Orgânica e Cultural da Glória passou a integrar o Circuito apenas a partir de

novembro de 2010.

Além do Circuito Carioca, existem outras feiras orgânicas na cidade do Rio de Janeiro

(Botafogo, Flamengo, Barra, Largo Machado), no Grande Rio (Duque Caxias, Nova Iguaçu),

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 216

em Niterói e Seropédica. No interior podemos citar as feiras de Teresópolis, Campos (02),

Petrópolis e Valença. Umas são semanais, outras ocorrem duas vezes na semana. Em Nova

Friburgo, desde 2008 tínhamos 01 feira semanal (aos sábados), mas que foi desativada com a

catástrofe da região serrana em janeiro de 2011. Há previsão de apoio do Programa Rio Rural

para viabilizar a reabertura destas feiras no interior do estado e que sigam os padrões do

Circuito Carioca.

Participantes e localização da produção

Participam das feiras do Circuito agricultores familiares, pequenos produtores e

comerciantes associados à ABIO, e submetidos a algum dos mecanismos de garantia

(certificação, sistemas participativos de garantia e controle social para a venda direta)

previstos na regulamentação brasileira (BRASIL, 2010).

O número de barracas não poderá ser superior a 35 (trinta e cinco) por feira (com

exceção da Feira Orgânica e Cultural da Glória), sendo 1 (uma) ocupada pelo Ponto de

Informação da ABIO. O objetivo deste ponto de informação é fornecer informações aos

consumidores e produtores, espaço para localização de máquina eletrônica para pagamento

com cartão.

Em cada feira, são reservadas 3 (três) barracas para agricultores do município do Rio

de Janeiro. Os grupos de produtores têm prioridade de participação sobre os produtores

individuais. A participação dos comerciantes, restrita a um por feira (com exceção da Feira

Orgânica e Cultural da Glória), visa complementar a oferta, com produtos orgânicos de outros

estados do Brasil que não estejam sendo produzidos no Rio de Janeiro.

Temos a participação de 63 produtores fornecedores: 51 produtores estão agrupados

em 12 grupos e 12 produtores participam individualmente. Nos grupos de produtores, 33

produtores (52%) estão localizados na região serrana (Nova Friburgo, Bom Jardim,

Sumidouro, Teresópolis, Duas Barras, Petrópolis). Nos demais grupos, os produtores estão

localizados nos municípios de Seropédica, Cachoeiras de Macacu, Itaboraí, Tanguá, Paty dos

Alferes, Rio de Janeiro, totalizando 12 municípios como origem dos alimentos orgânicos

ofertados no Circuito Carioca de Feiras Orgânicas. Dos 12 fornecedores individuais, 05 são

processadores. Participam também das feiras 04 comerciantes.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 217

Gestão: Princípios do Comércio Justo e Solidário

O Circuito Carioca de Feiras Orgânicas adota os princípios do comércio justo e

solidário de acordo com norma voluntária brasileira (BRASIL, 2010). Um desses princípios é

a autogestão, feita pelo coletivo de feirantes de cada feira e pela ABIO, como organização

coordenadora do espaço. A ABIO é a organização responsável pelo espaço perante a

municipalidade responsável pela autorização de uso do espaço. O coletivo de feirantes se

reúne mensalmente.

O Circuito é regido por um Acordo de Funcionamento, previamente discutido em

todos os Grupos de Comercialização da ABIO, que atuam também como núcleos de SPG. O

Acordo de Funcionamento contempla os seguintes aspectos: seleção de novos participantes,

regras de funcionamento, reclamações e denúncias e punições.

Cada feira do CIRCUITO é administrada por um Gerente indicado pela ABIO e

confirmado pelo coletivo de feirantes, que atua como representante da ABIO na feira e que

tem, como principal função, zelar pelo cumprimento do Acordo de Funcionamento nos seus

aspectos operacionais.

Cada feira possui uma Comissão de Ética, composta por 3 (três) membros titulares e 1

(um) membro suplente, escolhidos, por sorteio, entre os feirantes. A Comissão de Ética tem

como atribuições assessorar o Gerente nas decisões relacionadas à qualidade orgânica dos

produtos comercializados na feira e decidir sobre os casos omissos neste Acordo que tiverem

que ser resolvidos durante a realização da feira.

Outro princípio é o da transparência, que se realiza, na prática, nas prestações de

contas abertas, na formação de faixas de preços dos produtos, na disponibilização dos

Formulários de Rastreabilidade e dos Certificados.

Os custos diários de participação nas feiras do Circuito incluem o aluguel das barracas

(R$ 15,00), a remuneração do Gerente (R$ 8,00) e a contribuição para a ABIO (R$ 2,00),

totalizando (R$ 25,00) vinte e cinco reais por barraca por dia. Despesas com divulgação são

rateadas entre os feirantes, proporcionalmente ao número de barracas ocupadas por cada um.

Controle da qualidade orgânica: Sistema Participativo de Garantia (SPG)

Cada feira do Circuito tem seu Certificado de Conformidade Orgânica emitido pelo

SPG-ABIO. O principal aspecto relacionado ao controle da qualidade orgânica dos produtos

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 218

comercializados nas feiras é a rastreabilidade. Antes do início de cada feira, os feirantes

entregam ao Gerente o formulário "Rastreabilidade de Produtos" devidamente preenchido, e

assinado por cada produtor, seja individual, seja membro de um grupo cujos produtos são

comercializados. O Gerente, a cada feira, por amostragem, deve conferir a oferta e a origem

dos produtos. Os Formulários de Rastreabilidade são, também, um importante instrumento de

avaliação da diversidade de produtos ofertados, bem como uma ferramenta para que os

produtores planejem sua produção.

Desde a implantação da regulamentação da agricultura orgânica, os produtores

fornecedores membros da ABIO optaram pelo SPG como mecanismo de avaliação da

conformidade orgânica. Estão no Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos, organizados

em 11 núcleos e a ABIO funciona como Organismo Participativo de Avaliação da

Conformidade (OPAC) credenciada desde dezembro de 2010 pelo MAPA/ Coordenação de

Agroecologia (COAGRE) para emitir certificados de credenciamento.

Na Tabela 1 podemos ter uma visão do número de membros dos núcleos de SPG da

ABIO. Os membros são produtores, unidades de processamento, comerciantes, produção de

insumos, consumidores, técnicos (pesquisadores, extensionistas, consultores) e professores.

Tabela 1 - Membros dos Núcleos SPG da ABIO em dezembro 2010.

NÚCLEO Nº DE MEMBROS

Nova Friburgo 15

Itaboraí 09

Cachoeiras de Macacu 09

Teresópolis 10

Petrópolis 29

Seropédica I 16

Seropédica II 08

São José do Vale do Rio Preto 09

Rio da Prata 08

Valença 14

Guapimirim 10

TOTAL (11) 137

Fonte: ABIO (2011)

No Quadro 2 mostrado anteriormente, podemos ter uma visão do perfil de parte das

unidades de produção controladas pela ABIO em dezembro de 2010 por ocasião do

credenciamento junto ao MAPA como OPAC. Aparecem 08 núcleos de SPG, em 04 regiões

(Metropolitana, Serrana, Médio Paraíba, Sul) com 56 unidades de produção controladas

responsáveis pelo abastecimento às feiras do Circuito Carioca de Feiras Orgânicas,

localizadas em 15 municípios do estado do Rio de Janeiro.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 219

Quadro 2 - Perfil de parte das unidades de produção controladas nos núcleos de SPG da ABIO

fornecedores do Circuito Carioca de Feiras Orgânicas

Fonte: ABIO (2011)

NOME

NÚCLEO

SPG

UNIDADE

PRODUÇÃO

REGIÃO MUNICÍPIOS ESCOPO TIPO PRODUÇÃO/PRODUTOS

Friburgo 10 Serrana

Bom Jardim;

Nova

Friburgo;

Duas Barras;

Sumidouro;

Cachoeiras

de Macacu.

Produção

Primária Vegetal;

Produção

Primária Animal;

Processamento de

produtos de

origem vegetal

Olericultura; Fruticultura;

Produção de grãos;

Avicultura de Postura;

Apicultura;

Fabricação de doces, geléia,

granola, temperos;

Itaboraí/

Cachoeira

s

4 Metropol

itana

Cachoeiras

de Macacu

Produção

Primária Vegetal

Olericultura; Fruticultura;

Produção de grãos.

Teresópol

is 3 Serrana

São José do

Vale do Rio

Preto;

Teresópolis;

Sumidouro;

Produção

Primária Vegetal;

Olericultura; Fruticultura;

Produção de grãos;

Rio

Petrópolis 18

Serrana,

Médio

Paraíba

Petrópolis;

Três Rios.

Produção

Primária Vegetal;

Produção

Primária Animal.

Olericultura; Fruticultura;

Produção de grãos;

Apicultura; Produção de

cogumelo.

Rio

Urbano 1

Metropol

itana

Rio de

Janeiro.

Processamento de

produtos de

origem vegetal.

Produção de sucos e biscoitos.

Seropédic

a I 6

Metropol

itana, Sul

Seropédica;

Pinheiral.

Produção

Primária Vegetal.

Olericultura; Fruticultura;

Produção de grãos;

São José 1 Serrana

São José do

Vale do Rio

Preto.

Processamento de

produtos de

origem vegetal.

Produção de Rações

Valença 13 Sul Valença; Rio

das Flores.

Produção

Primária Vegetal;

Produção

Primária Animal;

Processamento de

produtos de

origem vegetal

Olericultura; Fruticultura;

Produção de grãos;

Bovinocultura de leite; Produção

de queijos;

Floricultura; Produção de doces

e geléias;

Produção de cana de açúcar;

Produção de açúcar mascavo,

cachaça, melado, rapadura.

TOTAL

08

56

04

15

03

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 220

Figura 1 - Feira do Jardim Botânico

Fonte: Foto de pesquisa de campo.

Aspectos econômicos e sociais

Considerando os meses de junho a dezembro de 2010 (sete meses), nas Feiras

Orgânicas do Bairro Peixoto e de Ipanema, foram comercializados produtos orgânicos no

valor aproximado de R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais), o que representa uma média de R$

86.000,00 (oitenta e seis mil reais) por mês. Considerando os meses de setembro a dezembro

de 2010 (quatro meses), nas Feiras Orgânicas do Leblon e do Jardim Botânico foram

comercializados produtos orgânicos no valor aproximado de R$ 175.000,00 (cento e setenta e

cinco mil reais), o que representa uma média de R$ 45.000,00 (quarenta e cinco mil reais). Na

Feira Orgânica e Cultural da Glória, os dados ainda não estão sendo coletados de forma

sistemática. No entanto, de acordo com informações dos próprios feirantes, que participam de

2 feiras, as suas movimentações financeiras excedem em 50% a Feira Orgânica de Ipanema,

ou seja, em torno de R$ 65.000,00 (sessenta e cinco mil reais) por mês. Extrapolando-se estes

dados para o período de doze meses, calcula-se que as cinco feiras do Circuito Carioca de

Feiras Orgânicas movimentam anualmente quase R$ 2,5 milhões (dois milhões e meio de

reais). As despesas de realização das feiras (aluguel de tabuleiros, remuneração do Gerente e

contribuição para a ABIO) não chegam a atingir 10% desse valor.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 221

A ABIO ainda não teve capacidade para coletar, sistematizar e analisar dados sobre o

impacto das feiras na produção orgânica do estado: ampliação da área cultivada,

investimentos realizados nas unidades de produção, aumento da mão de obra empregada,

aumento da renda, dentre outros. No entanto, informações qualitativas são acessadas nas

reuniões dos Grupos e nas Visitas de Verificação do SPG-ABIO, apontando para um elevado

nível de satisfação dos produtores. Alguns indícios do retorno econômico proporcionado pelas

feiras são: investimento feito por um dos grupos em um caminhão novo, investimento que

está sendo feito por um produtor na construção de um entreposto de ovos e a suspensão

provisória do fornecimento para o Programa de Aquisição de Alimentos - PAA (indicando

que o escoamento nas feiras é percebido como satisfatório) em Petrópolis.

É importante notar que as operações envolvidas na realização das feiras geram

empregos e renda no campo. Nas famílias e nos grupos, alguns produtores, particularmente os

mais jovens, ao se envolverem na comercialização dos produtos, encontram novas

perspectivas para permanecerem no campo e na atividade rural.

Considerações finais

Durante quase um ano de funcionamento, apesar do sucesso da iniciativa do Circuito

Carioca de Feiras Orgânicas, identificamos muitos desafios e perspectivas promissoras para a

sua manutenção e expansão.

Como desafios:

a) sazonalidade da oferta e da demanda (falta de planejamento coletivo e queda

de vendas nos meses de verão e excesso de oferta no inverno);

b) aperfeiçoar a coleta de dados, separando o faturamento dos comerciantes

que vendem produtos de outros estados do faturamento dos produtores do

Rio de Janeiro;

c) elaboração e divulgação sistemática do custo de produção dos orgânicos

para servir de base de negociação e nas tomadas de decisões de políticas

públicas e dos diversos segmentos das cadeias produtivas.

d) melhor quantificar os custos de transporte proporcional ao volume de

vendas por grupo por produtor no intuito de melhorar a logística;

e) sistematização dos dados de oferta de produtos/rastreabilidade para

identificar oferta atual e potencial de alimentos;

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 222

f) confrontar os custos de produção/comercialização com os preços cobrados

aos consumidores para justificar preço, com os preços pagos pela CONAB e

secretarias de educação para melhorar oferta ao PAA e PNAE;

g) implantar o Plano de Manejo Orgânico nos estabelecimentos rurais; apoiar

adequação ambiental, social e produtiva dos sistemas de produção

orgânicos;

h) implantar sistema de mapeamento e de rastreabilidade dos produtos

orgânicos ofertados nas feiras do Circuito.

As perspectivas de continuidade do apoio público na infraestrutura (SEDES) e nas

análises feitas pela PESAGRO no Observatório da Agricultura Orgânica dos dados coletados

pela ABIO e das pesquisas em outras fontes, são fundamentais para viabilizar planejamento

da produção e estratégias de comercialização. Há necessidade de investimento em formação e

treinamento em serviço de técnicos, capacitação de produtores para a transição agroecológica,

geração de tecnologias (sementes, por exemplo) e investimento nos órgãos públicos para dar

apoio ao desenvolvimento da agricultura orgânica. O planejamento da produção é importante

para que os produtores possam viabilizar a oferta de acordo com a época do ano, com a

demanda das feiras, com a disponibilidade de mão de obra familiar, mas também a

possibilidade de entregar para outros canais e para população em situação de insegurança

alimentar: compras governamentais no caso dos agricultores familiares, por exemplo.

São pensadas atividades para aproximar produtores e consumidores, para passar

critérios do Comércio Justo e Solidário e da agricultura orgânica, bem como para estimular

hábitos alimentares saudáveis e venda direta a outros canais de comercialização (hotéis,

restaurantes). Palestras e outras atividades mensais estão previstas no “Café com prosa”.

Padronização do layout para informação dos preços está sendo pensada em parceria com

alunos de marketing da PUC. A expansão do circuito para outros bairros também está sendo

pensada, mas outros grupos de produtores devem assumir esta tarefa, o que mostra que há

viabilidade de aumento da área com agricultura orgânica no Estado do Rio de Janeiro.

Os desafios são os registros, a adequação sanitária da produção de origem animal,

aumentar a visita entre pares nos núcleos e entre os núcleos, a regularização fiscal, o custo de

produção, os preços de venda e o planejamento da produção. Está sendo planejada a

capacitação dos membros da comissão de verificação da conformidade dos núcleos de SPG da

ABIO juntamente com os técnicos executores do Programa Rio Rural. Há extrema

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 223

necessidade de formar jovens rurais em Manejo Agroecológico de Pragas (MAP) e nos

princípios da agroecologia, do comércio justo e solidário, além de fazer treinamento em

serviço destes jovens sob a coordenação de técnicos seniors.

A perspectiva de implantação de projeto para melhorar o processo de rastreabilidade

(do campo à mesa) e conectá-lo às imagens digitais disponíveis na internet facilitará também

a adequação e a gestão ambiental das unidades sob sistema orgânico de produção. O objetivo

é que este sistema esteja funcionando até a Rio +20 que acontecerá em junho de 2012. Outro

projeto vai se encarregar de planejar o fornecimento de alimentos orgânicos durante a Rio +20

junto com eventos gastronômicos ligados aos ecochefs.

Referências

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Brasília, 2005. Folder.

______. Legislação para os sistemas orgânicos de produção. Brasília: MAPA/ACS, 2009.

______. Planilha dos produtores orgânicos nacionais cadastrados junto ao MAPA:

Organização de controle social (OCS). Brasília: MAPA, 2011a.

______. Organismos de avaliação da conformidade credenciados até o momento. Brasília:

MAPA, 2011b. (Memorando circular n.07/2011 COAGRE/DEPROS/SDC).

______. Produção orgânica. Brasília: MAPA, 2012. Folder.

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CARVALHO, R. de (Org.). Perguntas e respostas sobre gargalos setoriais: biotecnologia,

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orgânicos. Rio de Janeiro: UFRJ/IE, SEBRAE-RJ, REDETEC, 2011.

FONSECA, M. F. de A.C. O mercado de produtos orgânicos no Estado do Rio de Janeiro:

uma análise a partir dos mercados institucionais, feiras e distribuidoras. Relatório final do

projeto FAPERJ E -26 / 110.670 / 2007. Niterói: PESAGRO, 2009a.

______. O mercado institucional no estado do Rio de Janeiro: entraves e perspectivas para a

inclusão dos agricultores orgânicos. Relatório final. Niterói: PESAGRO-RIO, p. 35, 2010.

Concluído.

FONSECA, M. F. de A C.; CAMPOS, F. F. O cenário da comercialização dos orgânicos no

Estado do Rio de Janeiro: I - perspectivas na visão do agricultor, II – feiras, III –

processadoras/distribuidoras, IV – grandes varejistas, V – pequenos varejistas. In: SIMPÓSIO

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 224

DE AGRICULTURA ECOLÓGICA, 2.; ENCONTRO DE AGRICULTURA ORGÂNICA 1.,

1999, São Paulo. Agricultura ecológica. São Paulo: IAC, AAO, 1999.

GUIVANT, J. et al. Os supermercados e o consumo de FLV orgânico certificado. Relatório

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n. 052874/01-3. Niterói: PESAGRO-RIO, 2003. p. 109.

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Agropecuário 2006. Rio de Janeiro: IBGE, 2009.

OLIVEIRA, F. H. de. Cultura orgânica. Rio de Janeiro: Desiderata, 2010

WILLER, H.; YUSSEFI, M. (Ed.). The world of organic agriculture: statistics and emerging

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 225

A teia da qualidade, do EMBEDDEDNESS e do local para construção de

cadeias agroalimentares curtas: o caso dos agricultores familiares em Santa

Catarina

Dilvan Luiz Ferrari

Introdução

Nos anos recentes, o modelo produtivista na agricultura tem produzido efeitos

econômicos, sociais e ambientais negativos, fazendo que se repense modelos tecnológicos

dominantes e trazendo ao centro do debate novas formas de produção agrícola, novas funções

para a agricultura e novas relações entre homem e natureza. Por sua vez, a diversidade das

formas sociais presentes na agricultura remete a uma multiplicidade de modos de produção,

de emprego de tecnologias, de organização e divisão social do trabalho, bem como de

reconfigurações e revalorização de uma agricultura, antes dita tradicional e agora considerada

no centro dos processos de desenvolvimento rural. Neste contexto, emergem novos atores

sociais e se ampliam os espaços e as relações entre o mundo rural e urbano. Antigas certezas

são postas à prova, costumes e tradições se entrelaçam com a “modernidade”, novos saberes e

novas identidades profissionais se misturam ao cotidiano e a práticas, já naturalizadas no

mundo rural, onde família, terra e trabalho conformam um modo de produzir e de viver.

Santa Catarina testemunhou uma acelerada integração econômica a partir dos últimos

trinta anos, quando o processo de “modernização” da agricultura fortaleceu as bases da

economia mercantil. Ploeg (1992) considera a mercantilização como um processo histórico e

heterogêneo de inserção crescente aos mercados. Assim, a heterogeneidade da agricultura

deve ser entendida como o produto de estratégias conscientes ativamente manejadas e

adaptadas pelos atores, que são construídas socialmente. Uma característica central presente

na agricultura familiar catarinense é a diversificação de sua base produtiva, combinando

produtos vegetais com a criação de animais. Assim, formas altamente sofisticadas de

produção no sistema de integração agroindustrial convivem com práticas tradicionais de

autoconsumo e troca entre vizinhos, articulação com mercados locais, redes mercantis

informais e integração em circuitos mais formais de comercialização.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 226

As limitações impostas pelo mercado das principais commodities nos últimos anos,

seja em relação à exclusão das principais cadeias agroindustriais, seja em relação à queda na

renda (squeeze) das atividades tradicionais dos pequenos produtores (milho, feijão, soja),

produziram mobilizações por parte dos agricultores familiares e suas organizações no sentido

de desenvolver estratégias alternativas de acesso aos mercados, não apenas contra as ameaças

de exclusão, mas, sobretudo, para gerar um “valor agregado” suficiente para enfrentar as

novas condições de cidadania, tendo em comum os aspectos coletivos de proximidade e de

território e sua orientação para uma valorização definida por qualidades advindas do

consumidor. Além da expansão para novas atividades (frutas, hortaliças) e do incentivo aos

circuitos locais (feiras livres), consolidou-se um movimento em torno da produção

orgânica/agroecológica e da formação de pequenas agroindústrias familiares rurais, coletivas

e formando redes horizontais (MURDOCH, 2000) num esforço para construir e consolidar

mercados alternativos a partir da agricultura familiar.

Assim, para além de sua participação nos mercados coordenados pelas agroindústrias

e/ou pelas redes de supermercados, estão surgindo novas redes de comercialização a partir de

valores “intrínsecos” associados à agricultura familiar: orgânicos, artesanais, conhecimentos

tradicionais, fair trade e sustentabilidade. A agricultura familiar frente às mudanças no padrão

de consumo do sistema agroalimentar pode se apresentar em vantagem estratégica na medida

em que seus produtos forem associados à tradição, à natureza, ao artesanal e ao local, um

conjunto de valores agora valorizados pelos consumidores urbanos. Assim, nota-se a

persistência e mesmo expansão dos mercados de proximidade, que se firmam pela reputação,

mesmo em condições de comércio informal. Isso possibilita, por sua vez, o estímulo de

políticas locais, como a aquisição de alimentos para a merenda escolar e a criação de espaços

para feiras livres e outra formas de venda direta, como as “casas coloniais” e mercados

públicos regionais.

De acordo com Wilkinson (2008), as expectativas em torno desta visão se

fundamentam na importância que já alcançaram os mercados de alimentos artesanais na

Europa, sobretudo na França e na Itália, por um lado, bem como o crescimento de

movimentos de fair trade e circuitos baseados em princípios diversos de sustentabilidade. Por

sua vez, esse processo exige tanto uma reinvenção de tradições como a adoção de práticas

novas, na medida em que estas tradições agora tenham como aval um exigente consumidor

urbano. Não bastam aqui as vantagens de proximidade, nas quais os mercados são, muitas

vezes, o prolongamento das redes sociais e a garantia de qualidade uma extrapolação de

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 227

qualidades pessoais de conhecimento comum. Entramos no mundo das certificações, que

exige a conversão para práticas novas e custosas, e no mundo dos selos e até das indicações

geográficas, pautado na adesão a padrões acordados de qualidades artesanais que pressupõem

uma ação coletiva eficaz e uma forte capacidade de negociação.

Assim, às necessidades dos produtores em se legitimarem nesses circuitos

agroalimentares de qualidade se juntam os interesses dos consumidores por um alimento mais

saudável, numa sociedade em que a confiança nos sistemas peritos (GIDDENS, 1991) foi

abalada por escândalos recentes como os da “vaca-louca”. Nesse sentido, um movimento

consistente e que tem despertado o interesse dos estudiosos do mundo rural é o que tem se

convencionado denominar de “quality turn” (GOODMAN, 2003, 2004), que consiste em uma

mudança em relação ao padrão de consumo agroalimentar dominante na sociedade

contemporânea. A qualidade passa a ser um fator-chave no (re)estabelecimento da confiança

entre consumidores e produtores de alimentos. Assim, inverte-se a lógica anterior e o

consumo passa a comandar a produção. Daí emerge uma valorização dos alimentos

produzidos localmente, da produção orgânica e agroecológica, artesanal e das cadeias

agroalimentares curtas, espaço de reconexão entre produtores e consumidores.

De acordo com a literatura (MARSDEN et al., 2000; MARSDEN, 2004; RENTING et

al., 2003), há três tipos principais de cadeias de alimentos curtas, a saber:

a) face-to-face;

b) de proximidade espacial;

c) espacialmente estendida.

Estas ainda podem ser divididas, de acordo com critérios de qualidade, em

regionais/artesanais e ecológicas/naturais. Na perspectiva dos autores, por enraizar práticas

alimentares em relações ecossocial locais, essas cadeias criam novos espaços econômicos que

são mais capazes de compensar as forças desenraizadoras da globalização, uma divisão de

trabalho crescentemente complexa e o poder das corporações.

As cadeias “face-to-face” se aproximam do que comumente se chama de vendas

diretas, como as feiras livres, vendas a domicílio, vendas na porta da fazenda, casas coloniais,

rotas turísticas. Esse tipo de cadeia certamente representa uma importante estratégia dos

agricultores familiares de Santa Catarina. O segundo tipo, o de proximidade espacial, é o que

tem se apresentado de forma mais promissora no Estado, especialmente com relação a

produtos da agroindústria familiar rural, identificados e reconhecidos como “produtos

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 228

coloniais”. Estes produtos normalmente estão associados com algum atributo do local, do

território, do saber-fazer tradicional, da produção artesanal. O comércio se faz através de

vendas a varejistas locais, restaurantes, vendas institucionais (merenda escolar), rotas

temáticas, eventos na comunidade, feiras e mercados regionais. O terceiro tipo de cadeias

curtas, espacialmente estendida, embora de menor abrangência e mais recente, também pode

ser encontrado em Santa Catarina. São os casos que envolvem “fair trade”, processos de

certificação e indicação geográfica.

Uma característica chave destas cadeias agroalimentares curtas é sua capacidade para

ressocializar ou reespacializar o alimento, permitindo ao consumidor fazer julgamento de

valor. Significa redefinir a relação produtor-consumidor ao dar claros sinais sobre a origem do

produto e o papel desta relação na construção de valores e significados. A questão

fundamental está no fato de que o produto alcança o consumidor embedded com informações,

o que permite ao consumidor fazer conexões e associações com o local de produção, com os

valores das pessoas envolvidas e os métodos de produção empregados (MARSDEN et al.,

2000). As interfaces produtor-cliente são complexas e diversas em termos de tipos de relações

e características organizacionais, sendo que o entendimento destas complexidades permitirá

melhor julgar a extensão na qual os diferentes atores rurais podem criar valor adicionado para

regiões rurais.

Inseridos nesta problemática, neste artigo buscamos, a partir do estudo de caso de duas

cadeias agroalimentares curtas situadas no Oeste e nas Encostas da Serra Geral em Santa

Catarina, entender os elementos que conformam a complexa teia do ‘mundo dos alimentos’

no contexto da agricultura familiar catarinense. Iniciamos o artigo abordando as interfaces que

sublinham dois mundos em disputa: o das cadeias convencionais e o das cadeias curtas. Em

seguida se buscará compreender como se dá o processo de reconexão entre pessoas, produto e

lugar que dá distintividade aos alimentos com qualidades específicas produzidos pelos

agricultores familiares catarinenses. Por último, analisaremos as distintas trajetórias

percorridas e que dão especificidade às cadeias agroalimentares curtas que estão sendo

construídas em duas regiões catarinenses.

Poder e disputa no mercado de alimentos diferenciados

No Oeste catarinense, de forma mais contundente que nas Encostas da Serra Geral,

estão presentes os dois movimentos que a literatura internacional aponta para o setor

agroalimentar. De um lado, estamos testemunhando processos de globalização da cadeia

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 229

agroalimentar, a industrialização da produção de alimentos e concentração econômica na

indústria de processamento e setores varejistas. Do outro, pode-se observar a emergência de

uma ampla variedade de novas cadeias alimentares (em alguns casos estas são mais uma

reemergência de cadeias artesanais tradicionais, autênticas) que são caracterizadas pelas

noções de relocalização, embeddedness e um turn para a qualidade84

(ROEP; WISKERKE,

2006).

Trata-se do que Morgan, Marsden e Murdoch (2006) denominaram de “mundos do

alimento”, que nos ajuda a construir um senso sobre recentes tendências no setor alimentar,

que agora trabalha não apenas em acordo com uma lógica econômica, mas também de acordo

com lógicas culturais, ecológicas e político-institucionais. Isto é, o enraizamento do alimento

em novos mundos produtivos está tomando lugar por causa de problemas ecológicos e de

saúde no mundo industrial e a emergência de novas culturas de consumo orientadas para

alimentos de proveniência local e distinção. Em resumo, as convenções que são reunidas

dentro dos novos ‘mundos do alimento’ cobrem economia, cultura, política e ecologia. Aliás,

para estes autores, a globalização do setor alimentar é ‘unicamente constrangida por natureza

e cultura’, já que a produção de alimentos requer a transformação de entidades naturais até

formas comestíveis, enquanto o ato de comer em si mesmo é um exercício profundamente

cultural. Ou seja, as cadeias de alimentos nunca escapam completamente da ecologia e da

cultura.

Isto tem sido decisivo em promover um ‘reenraizamento’ do processo de produção de

alimentos em contextos locais, em parte porque alimento de fonte local é frequentemente

assumido por ser de melhor qualidade que alimento industrial (placeless). Num contexto de

incerteza de consumo (pânico com BSE, salmonella e outros) os consumidores tornam-se

mais ‘reflexivos’ (BECK, 1992) em seus relacionamentos com alimento e outras

commodities. Uma consequência desta reflexividade é justamente uma preocupação com a

proveniência do alimento: o lugar e as condições implicadas no processo de produção; a

dimensão cultural, isto é, ser produzido de acordo com tradições de longa data85

. Esta “reação

artesanal” tem ocorrido em um contexto de globalização, conformando uma complexa

interação entre escalas espaciais. Assim, alguns alimentos são globais, outros são locais,

84

Os aspectos teóricos em relação a estas noções e conceitos podem ser encontrados em Ferrari (2011). 85

O movimento Slow Food vem combatendo os impulsos padronizantes das cadeias alimentares globalizadas,

enfatizando a necessidade em redescobrir e proteger a diversidade geográfica como um bem em si mesmo.

Assim, busca fortalecer mercados para produtos alimentares locais e regionais, isto é, produtos que tem uma

clara conexão com os sistemas locais de produção e consumo - que os franceses chamam de terroir. Neste

sentido, o Slow Food é a voz crítica da massificação do gosto.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 230

enquanto outros ainda combinam o local e o global (parmigiano reggiano, por exemplo). O

resultado é um mercado de alimentos crescentemente fragmentado e diferenciado.

Na Europa o valor cultural ‘colado’ em alimentos locais e regionais pode ser visto

especialmente através de produtos com PDO e PGIs, numa tentativa de atar qualidades

inerentes ao produto com qualidades inerentes ao contexto espacial de produção. Entretanto, o

desenvolvimento destes ‘selos’ de qualidade é desigual: enquanto são abundantes na França e

Itália, são quase completamente ausentes em outros países, o que parece refletir a própria

desigualdade na sobrevivência de esquemas de produção de qualidade. Tem-se então

testemunhado uma diferença cultural significante entre o Sul e o Norte (PARROTT et al.,

2002)86

. No Sul, a associação entre terroir, tradição e qualidade é autoevidente, enquanto no

Norte tal associação é muito fraca. Por exemplo, o Reino Unido, com poucas exceções, tem se

tornado um ‘placeless foodscape’ (ILBERY; KNEAFSEY, 2000) dominado por marcas

nacionalmente reconhecidas e homogêneas. Este parece ser o caso do Brasil87

e também de

Santa Catarina, onde se engatinha em alguns processos de diferenciação dos produtos com

selos IG.

Contudo, o que queremos ressaltar é que os distintos mundos não ocupam

necessariamente espaços exclusivos. Embora algumas áreas possam ser claramente

dominadas pelo mundo industrial ou mercantil e outras serem claramente dominadas pelo

mundo interpessoal, a maioria combinará características de diferentes mundos. Esta situação

se verifica em Santa Catarina. Enquanto nas Encostas da Serra Geral encontramos um espaço

que de certa forma escapou do completo rigor da industrialização, justamente por ser uma

área geograficamente isolada e que historicamente não despertou o interesse dos grandes

conglomerados agroindustriais, ali se tornou mais ‘fácil’ construir uma cadeia agroalimentar

alicerçada em valores do mundo doméstico, ecológico e cívico. Por sua vez, no Oeste

catarinense, convive-se, de um lado, com um mundo industrial que aos poucos vem se

movendo inexoravelmente para o mundo mercantil de produtos industriais diversificados e, de

outro, com o ressurgimento ou reconfiguração do mundo doméstico de produtos localmente

específicos e social e culturalmente enraizados.

Por esta razão, no Oeste, mais que nas Encostas da Serra, desenha-se uma batalha

entre a cadeia convencional de alimentos (aqui representada por grandes grupos da

86

Dos mais de 500 produtos com PDO e PGI em 2001, a maioria se encontrava na Europa do Sul, especialmente

na França, Itália, Portugal, Grécia e Espanha (MORGAN et al., 2006). 87

No Brasil temos apenas dois produtos a partir de matérias-primas agrícolas com DO: arroz do litoral norte

Gaúcho e vinho do vale dos vinhedos. Santa Catarina tem um selo IP para o vinho dos “vales da uva goethe”

no Sul do Estado e outro em tramitação para o queijo Serrano no Planalto Catarinense.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 231

agroindústria de carnes: Sadia, Perdigão, Seara, Aurora e de médios e grandes laticínios:

Tirol, Bom Gosto, Cordilat, Aurora) e as cadeias horizontais lideradas pelos agricultores

familiares que transformam matérias-primas em alimentos de forma mais artesanal a partir de

pequenas unidades agroindustriais individuais e coletivas situadas nas próprias comunidades

rurais onde trabalham e residem. Na verdade, também outros atores regionais, principalmente

técnicos, profissionais liberais, empresários do meio urbano, vêm se ‘apropriando’, ao longo

dos últimos anos, da imagem do colonial para lançar seus produtos nos mercados.

No mundo mercantil das cadeias convencionais, o processo de produção permanece

“estandardizado”, mas culturas de consumo estão se fragmentando e se tornando

crescentemente diferenciadas nos muitos nichos de mercado agora existentes. Por isso, agora,

estes grupos do mundo industrial batalham pelos mesmos consumidores dos produtos

artesanais ou ‘coloniais’ produzidos pelas pequenas agroindústrias familiares conformadoras

de grande parte das cadeias curtas no Estado. Assim, também produzem o frango ‘caipira’

(Sadia); queijo ‘colonial’ (Tirol, Bom Gosto, Cordilat, Santa Helena, Carlitos, Natuleite);

salame ‘colonial’ (Girardi, Pizzatto, Friguzi), dentre outros produtos que caracterizam a

conexão entre colono, cultura e alimento. O risco para os pequenos produtores familiares é

justamente deslocar o campo de disputa de um produto diferenciado (o colonial, um valor do

mundo doméstico) para o mecanismo de preços, uma convenção do mundo mercantil.

Este processo revela duas importantes tensões. Primeiro, as definições de qualidade

natural ou artesanal dos produtos podem ser adotadas pelos distintos tipos de cadeias de

abastecimento. Isto implica que são vulneráveis para substituição, duplicação e intensa

competição entre cadeias agroalimentares curtas e convencionais. Segundo, as evidências

sugerem uma complexa evolução da diversidade social e econômica e fendas nas relações

produtor-consumidor dentro do setor alternativo. Neste sentido, Watts et al (2005) consideram

que as cadeias curtas podem ser classificadas como fracas ou fortes sobre as bases de seu

engajamento e potencial subordinação às cadeias de abastecimento convencionais. Assim,

propõem que é o fortalecimento da network antes que os atributos do alimento que

providenciam a fortaleza das cadeias curtas. Em seu argumento, as cadeias curtas podem

apresentar uma alternativa espacial ao reduzir a distância pela qual os alimentos viajam entre

a produção e o consumo; uma alternativa social ao forjar o contato face-to-face entre

produtores e consumidores, promovendo confiança e integração comunitária na cadeia; uma

alternativa econômica ao criar mercados locais para a produção local, o que permite aos

produtores primários capturar mais valor da cadeia de alimentos.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 232

Embora pertinentes, precisamos qualificar estes argumentos em dois aspectos:

primeiro, a distinção entre o processo (a cadeia) e o produto (o alimento) é um tanto artificial,

visto que a qualidade do alimento é fundamental para manter a rede sólida; segundo, a

‘alternatividade’ não deve ser um fim em si mesmo, mas antes um meio para alcançar fins

mais substantivos – a saber, a criação de cadeias agroalimentares que possam ser socialmente

justas, economicamente viáveis e ambientalmente sustentáveis. Como argumentaram Sonnino

e Marsden (2006), antes que ver cadeias alimentares alternativas e convencionais como

esferas separadas, devemos vê-las como altamente competitivas e relacionais. Afinal, a

dinâmica evolucionária das cadeias agroalimentares permite, inclusive, que se mova de uma

produção “estandardizada” e genérica para uma especializada e localizada ou vice-versa. As

complexidades da produção alimentar contemporânea muitas vezes borram as fronteiras entre

ambas, sendo um dos fatores responsáveis os atributos de qualidade, um conceito negociável

e contestado que está sempre aberto à interpretação e apropriação (SONNINO; MARSDEN,

2006).

Neste aspecto, joga um papel fundamental o contexto macro-regulatório no qual a

cadeia se desenvolve e opera. Neste caso, é frequente que diferentes atores das cadeias de

abastecimento, especialmente os que operam no sistema convencional, disputem autoridade

para definir o caráter particular de qualidade dos alimentos. Trata-se de argumentos

substantivos que refletem diferentes interesses e valores. Há um potencial para atores

poderosos dentro das cadeias de produção e consumo de alimentos criarem dificuldades para

pequenos produtores que desejam diferenciar seus produtos e assegurar um valor

adicionado88

. No Brasil, o debate acerca de uma nova legislação para a cadeia do leite, que

resultou na Instrução Normativa 51, é um exemplo bastante interessante dos interesses e das

disputas que cercam a regulação de importantes cadeias de produção e consumo de alimentos.

Mais recente ainda foi a disputa que conformou o novo sistema de inspeção sanitária

unificada, o SUASA, ainda em fase de implantação.

Já que a qualidade é construída e negociada, ela adquire significado com referência a

um contexto específico e reflete diferentes padrões e locações de poder econômico em cadeias

alimentares em particular (ILBERY; KNEAFSEY, 2000). Por exemplo, a combinação de um

número de fatores culturais e estruturais89

é que reforçam os links entre região de origem,

88

O exemplo clássico na literatura é a ‘convencionalização’ da agricultura orgânica na Califórnia (ver

GUTHMAN, 2004). 89

Na Europa do Sul, há predominância de pequenos agricultores familiares diversificados e intensivos em

trabalho empregando métodos tradicionais; a presença de setores de processamento de alimentos altamente

fragmentados. No Norte Europeu, prevalace farms maiores, mais intensivas em capital, economicamente

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 233

tradição e qualidade no Sul da Europa. Estes incluem a prevalência da convenção do ‘mundo

doméstico’, com as convenções de mercado e industrial enraizadas em robustas ordens de

avaliação localísticas e cívicas. Neste contexto, alinham-se produtores com alimentos

regionais tradicionais e típicos e o terroir, ou o contexto de produção (cultura, tradição,

processo de produção, clima, solo, sistema de conhecimento local) que fortemente formam a

qualidade do produto em si (PARROTT et al., 2002). Por sua vez, em países como o Reino

Unido, Holanda e Alemanha, o desenvolvimento de cadeias curtas é frequentemente baseado

sobre definições de qualidade ‘modernas’ e mais ‘comerciais’, acentuando sustentabilidade

ambiental ou bem estar animal e sobre formas de marketing inovativos (“retailer-led”). Isto é,

partilham fatores estruturais e culturais que tendem a militar contra a construção de alimentos

regionalmente distintivos e contra qualquer clara associação com noções espacializadas de

qualidade. Neste caso, há presença de convenções localística ou ecológica que estão

enraizadas em um contexto industrial e mercantil. Qual a implicação disto? A legislação sobre

proteção legal de produção de qualidade tem sido um estímulo institucional para a

consolidação de redes alimentares curtas na França e na Itália. Em contraste, o Norte Europeu

desenvolveu um sistema de proteção legal e marketing que gira em volta de marcas

registradas privadamente apropriadas e uma abordagem mais funcional para governança

alimentar, sendo a qualidade do alimento determinada mais por questões de saúde pública e

higiene que por propriedades organolépticas. Aqui, reinam eficiência econômica e

sensibilidade para o mercado.

Ilustrar o caso Europeu ilumina o contexto da regulação no Brasil. Assim,

paradoxalmente, embora Santa Catarina, e o Sul do Brasil em geral, possuam fatores culturais

e estruturais que se assemelham aos países do Sul da Europa, aqui prevalecem os padrões de

qualidade dos alimentos que dominam o Norte da Europa e também os Estados Unidos. Desta

forma, em especial a legislação que trata de produtos de origem animal, valoriza mais

aspectos higiênico-sanitários que aqueles ligados à tradição, ao saber-fazer, ao terroir. Assim,

o típico “salumi” e “formaggio” colonial que chegaram aqui trazidos pelos imigrantes

europeus ainda em meados do século XVIII e que ajudaram a conformar a gastronomia local e

cotidianamente compõem a mesa das muitas famílias de colonos camponeses agora, sob a

égide da legislação, metamorfoseiam-se num produto (quase) industrial. Aqueles colonos que

ainda produzem estes produtos do modo tradicional, conseguem vendê-los na informalidade

em relações que tem por base a confiança e a reciprocidade.

eficientes e especializadas, setor de processamento mais centralizado e estandardizado dominado por médias e

grandes manufaturas de alimentos e varejistas.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 234

Assim, o ‘campo de batalhas’ (MARSDEN, 2004) parece se desenvolver em duas

frentes: a da deslocalização (setor agroalimentar convencional) e relocalização (setor

agroalimentar alternativo) e a das ‘batalhas da qualidade’ que ocorrem entre cadeias

agroalimentares curtas e aquelas altamente intermediadas. Interessa notar que estas redes ou

cadeias que estão surgindo nos interstícios das cadeias de abastecimento mais convencionais

conferem uma relação competitiva entre elas, isto é, há diferentes e crescentemente ‘mundos’

fluidos de alimento dentro dos mesmos espaços operando paradigmas rivais de conhecimento,

poder e regulação. Contudo, a produção de qualidade artesanal e/ou local se obriga a cumprir

com a lógica e requerimentos impostos pelo sistema agroalimentar convencional dominante90

.

Esta parece ser a grande ‘batalha’ que definirá a trajetória que seguirá a produção diferenciada

nas pequenas unidades agroindustriais familiares catarinenses.

Neste sentido, nos estudos de caso aqui apresentados, das Encostas da Serra Geral e do

Oeste catarinense, percebe-se uma constante preocupação dos agentes das cadeias

agroalimentares curtas em construir dispositivos e/ou canais de comercialização exclusivos ou

distintos, como, por exemplo, as feiras livres, as casas coloniais, casa do produtor, compras na

propriedade, rotas turísticas, cestas delivery, comércio e-mail, circuitos agroecológicos,

mercados públicos, lojas especializadas, cooperativas de produção e consumo. Por outro lado,

aproveitam-se das estruturas comerciais do sistema convencional para vender seus produtos.

Assim, fazem chegar ao consumidor através de pequenos comércios, mercearias, açougues,

minimercados locais, restaurantes, enfim, uma rede de varejo que se alicerça no consumidor

da localidade, do bairro. Além disso, muitos colocam seus produtos nas redes de

supermercados. Diferentemente dos outros canais, aqui é mais difícil o alimento chegar ao

consumidor carregado da informação que permitiria fazer sua conexão com o produtor, o

modo de fazer, o lugar. Portanto, esvai-se mais facilmente a relocalização e ressocialização

inerentes às cadeias curtas de alimentos com qualidade diferenciada.

O aumento do número e tipos de novas cadeias agroalimentares, igual a que estamos

verificando em diferentes localidades de Santa Catarina, pode ser entendida como um “contra-

movimento” a tendências prevalentes de globalização do sistema agroalimentar. Inerente a

este processo está a intenção deliberada para criar distintividade, por exemplo, ao produzir

alimentos com qualidades organolépticas distintas e/ou por mudar o modo de conectividade

90

Talvez uma única exceção seja o caso do queijo de minas artesanal que, recentemente, através do IPHAN

adquiriu a condição de patrimônio cultural imaterial brasileiro, preservando, assim, o modo artesanal de

fabricação do queijo e permitindo manter as características que dão tipicidade ao queijo produzido por

pequenos agricultores familiares que residem em territórios agora ‘protegidos’ nas regiões do Araxá, Canastra,

Cerrado, Serro e Campo das Vertentes, localizadas em Minas Gerais.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 235

entre produção e consumo de alimentos, o que se dá geralmente através de reconexão do

alimento ao contexto social, cultural e ambiental no qual ele é produzido. Vejamos então

como isso acontece.

(Re)conectando pessoas, produto e lugar

Agricultores historicamente produzem alimento! Contudo, devemos reconhecer, seu

metier é antes agronômico que gastronômico. O crescente descolamento entre a produção de

produtos agrícolas e o processamento e abastecimento de alimentos tem caracterizado o setor

agroalimentar moderno. Goodman et al. (1990) retrataram esse processo em termos de

apropriacionismo e substitucionismo. Uma das consequências desta desconexão tem sido a

associada fratura entre os consumidores de alimento e os tradicionais produtores de gêneros

alimentícios, os agricultores. Outra tem sido o declínio constante na receita que os

agricultores são capazes de conseguir da venda de sua produção, já que o locus do valor

adicionado tem se movido da farm para o grande setor varejista e processador de alimentos.

Contra este conjunto de fraturas - consumismo de massa, verticalização da cadeia de

alimentos e produtivismo agrícola - existe um crescente número de tendências contrárias e de

contestação social de diversas origens que têm coletivamente oferecido um desafio

sustentado. Estes variam de uma preocupação da sociedade com a qualidade ambiental e bem-

estar animal para novas formas de consumo reflexivo (MURDOCH; MIELE, 1999), métodos

de agricultura sustentável e a recomposição de cadeias de alimentos específicas

(‘alternativas’) em torno de noções de qualidade e embeddedness territorial e social

(HINRICHS, 2003; MURDOCH et al., 2000; SAGE, 2003). Seria a passagem do paradigma

‘modernista’ para o paradigma do ‘desenvolvimento rural’ (PLOEG et al, 2000), o qual deve

ser visto em termos de um processo crítico de reconexão.

Central para a reportada ‘riqueza empírica de emergentes redes alimentares

alternativas’ (MAYE; HOLLOWAY; KNEAFSEY, 2007), e que ajuda na diferenciação, é sua

aparente capacidade para ressocializar e reespacializar alimento (RENTING et al., 2003). A

diferença crítica entre cadeias agroalimentares curtas e convencionais é que os alimentos

alcançam o consumidor embedded com informação, o que permite a este fazer juízo de ‘valor’

acerca dos alimentos que está comprando, fazendo a conexão com os produtores, o lugar e os

modos de produção empregados. Por exemplo, sistemas de produção de alimentos de

qualidade enraizados em ecologias locais (MURDOCH et al., 2000); sistemas de produção em

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 236

bases territoriais (SAGE, 2003); um turno do produtivismo para produção de qualidade

(WISKERKE, 2003); reconfiguração de relações entre animais, agricultores e consumidores

(STASSART; WHATMORE, 2003); imagem de ‘reserva da biosfera’ para os produtos

Rhöngold na Alemanha (KNICKEL; RENTING, 2000).

Um mecanismo chave para a reconexão, portanto, é o desenvolvimento e marketing de

produtos alimentares que são de algum modo ‘diferentes’ daqueles que são tanto produzidos

em massa quanto prontamente disponíveis nos pontos de varejo dominantes. Para aqueles que

operam na produção final da cadeia de alimentos, a noção de ‘diferença’ se torna crítica para

o processo de reconexão: criar uma diferença em ‘qualidade’ entre produtos específicos e

produtos produzidos em massa; criar uma diferença entre anonimidade geográfica na

proveniência de alimentos e especificidade territorial; e criar uma diferença no modo que

certos alimentos são produzidos. Além disso, tendo alcançado tal diferença, ela necessita ser

reconhecida, destacada e vendida através de distintos processos. Aqueles que de fato

conseguem mais facilmente aproximar o consumidor do produtor são alicerçados em

interações diretas. Enquanto o enraizamento em mercados de proximidade facilita a conexão,

as forças desenraizantes notórias em mercados mais distantes podem ser minimizadas através

de ‘esquemas’ de acreditação e selos.

Como sabemos, diferenciar produtos rurais através de selos ou marcas distintivas não

é um fenômeno novo. Por exemplo, a French ‘Appellation d’Origine Controlée’ (AOC) foi

criada em 1935 para proteger a integridade, notoriedade e qualidade dos vinhos (BARHAM,

2003). Contudo, os anos 1990 marcaram a rápida multiplicação em todo o mundo de

esquemas que buscaram usar selos, rótulos e certificados como meio de promover locais ou

processos de produção em particular ou produtos agrícolas específicos. As razões diferem de

país para país. Para muitos produtores, a necessidade em obter maior receita através da

criação de valor adicionado permanece uma questão primária. Para outros, pode ser a proteção

ambiental. Contudo, mais provavelmente é a necessidade de cada um defender produtos

tradicionais locais e as estruturas sociais e econômicas que os sustentam, ou achar meios

alternativos e mais socialmente justos de produzir alimentos.

Assim, Ilbery et al. (2005) identificaram três ingredientes essenciais para construir

distintividade: ‘produto, processo e lugar’, que podem ser combinados de diferentes modos

dependendo dos motivos subjacentes aos esquemas que sustentam. Enfocar os links entre

‘produtos’ e ‘lugares’ é essencialmente motivado pelo desejo para desenvolver mercados para

produtos com origens distintas com a intenção de proteger “livelihoods”, construir identidade

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 237

territorial e assegurar coesão comunitária. As estratégias variam de caso a caso, desde

ligações mais reguladas e autenticadas entre qualidade do produto, distintividade ambiental

local e habilidades de produção localmente enraizadas (como no caso de PDO/PGIs) até

esquemas menos regulados que tentam estabelecer links entre imagens do lugar e produtos

usando logotipos e slogans. As mudanças do consumidor na direção de produtos mais ‘locais’

e ‘naturais’ vêm encorajando sistemas de produção de qualidade a se tornarem ‘reenraizados’

em territórios locais.

Por sua vez, a partir da perspectiva orientada ao ator (LONG, 2001), entende-se que

estas categorias podem ser reagrupadas diferentemente, com vistas a enfatizar que produtos e

lugares somente passam a existir a partir da interação social. Assim, consegue-se identificar

na Figura 01 abaixo as possíveis conexões que formatam os processos de construção social de

mercados de alimentos com qualidade diferenciada. Seus elementos se reconfiguram de

diferentes maneiras a depender dos motivos que governam sua formação. Neste aspecto,

incluem-se benefícios econômicos para economias rurais locais, o fortalecimento de

identidades espacializadas, o desenvolvimento de mercados local ou regionalmente

diferenciados, e efeitos ecossociais positivos.

Figura 1 - Relação entre pessoas, produto e lugar

Fonte: Elaboração do autor, a partir de Ilbery et al. (2005).

Este potencial que conforma a qualidade específica de um produto é resultado de uma

combinação única de recursos naturais (condições climáticas, características de solo,

variedades de plantas locais, raças, etc.) e habilidades locais, práticas históricas e culturais,

bem como conhecimento tradicional na produção e processamento dos produtos. Assim, o

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 238

produto apresenta algumas características específicas ligadas a sua origem geográfica que dá

uma qualidade especial e reputação no mercado; o lugar é o resultado dos recursos humanos e

naturais do local em que é produzido; as pessoas, os produtores locais, tendo herdado

tradições e know-how, em conjunto com outros agentes locais, se engajam na criação de valor

e preservação dos processos.

O que precisamos agora é examinar como ‘distinção’ é construída por produtores e

outros atores nas cadeias agroalimentares ao combinar estes distintos atributos em uma

variedade de esquemas de marketing e selos.

Nos mercados de vendas diretas - caso das feiras livres - a distinção é a própria relação

face-to-face, que serve de matriz para o enraizamento (social, local, cultural, político) e

‘relações de respeito’ que informam os processos de troca e permitem a tessitura das redes

sociais ao redor dos produtos ‘coloniais’, ‘naturais’ e agroecológicos que transitam neste

espaço social. Assim, as qualidades dos alimentos vendidos na feira são construídas antes, a

partir da valorização dos recursos humanos do lugar, seu conhecimento e ‘saber-fazer’, do que

de elementos intrínsecos ao ambiente natural local. Os agricultores (feirantes) personificam o

patrimônio histórico e cultural através do que produzem e vendem no local e, assim,

participam na criação de um valor coletivo que tende a preservar os processos que vem

revitalizando as práticas sociais associadas à produção de alimentos na região.

No caso específico dos produtos ‘coloniais’ do Oeste catarinense a reputação que lhes

dá distinção foi construída a partir da tradição de se consumir alimentos feitos de maneira

artesanal na própria cozinha dos colonos e que trouxeram na bagagem a cultura da culinária

praticada por descendentes de alemães e italianos que, ainda no início do último século,

majoritariamente se instalaram na região. A expansão urbana permitiu ampliar os espaços de

consumo para além do núcleo doméstico. Os consumidores, através da compra e consumo

destes alimentos ‘coloniais’, reconectam-se às raízes culturais que construíram e conformam a

vida social local. Esta ‘arte’ requer habilidade e cuidado e envolve construir sobre os

conhecimentos do passado para alcançar as novas necessidades sociais do consumidor

contemporâneo. Mas, a partir do desenraizamento nas relações de troca, sublinhado pelo

desencaixe crescente que conforma a sociedade ‘moderna’, como fazer a reconexão entre

produtores e consumidores através do alimento produzido pelos agricultores locais?

Para além dos ‘dispositivos’ locais que permitem fazer esta interação, caso das feiras

livres, vendas diretas em domicílios, casas coloniais, vendas na propriedade rural, rotas

turísticas, que apresentam limites tanto aos agricultores em termos da possível conciliação

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 239

entre trabalho e negócio e de demanda ampliada quanto aos consumidores em termos de

tempo dispensado na aquisição desses alimentos diretamente nos locais em que são

fabricados, resta imprimir, através de marcas e selos, a distintividade que caracteriza tais

produtos e que possam ser, então, ‘facilmente’ reconhecidos pelos consumidores em

potencial. Assim, através da organização coletiva em pequenas cooperativas descentralizadas

que compõem uma rede horizontal de mercantilização destes produtos coloniais, foi possível

dar significado via marcas individuais e selos coletivos. Dessa forma, “sabor colonial”

simboliza a conexão entre o ‘saber-fazer’ e o ‘modo de vida’ dos colonos e a ‘qualidade

percebida’ pelos consumidores urbanos. A marca individual, geralmente o nome da família ou

grupo que processa o alimento, reafirma a honra do trabalho que se transforma em comida.

Portanto, é o enraizamento social e cultural que dá dinâmica à constituição das cadeias

agroalimentares curtas em processo no Oeste catarinense.

Figura 2 - Rótulos de produtos com selo coletivo e marca individual

Fonte: fotos do autor.

No caso dos agricultores agroecológicos das Encostas da Serra Geral (Agreco), a

distinção é construída buscando enraizar o produto no território. Neste sentido, buscou-se a

sinergia da comida (orgânica e artesanal) com o agroturismo via Associação Acolhida na

colônia. A reconfiguração local dos processos foi radical no sentido de que os produtores

tiveram que recuperar saberes ou hibridizar conhecimentos tácitos e científicos notadamente

no processo de produção orgânica que se implementou na região. Aqui, identificamos a

preocupação dos agentes locais em conectar a produção de comida com a sustentabilidade

ambiental e preservação da paisagem que caracteriza as encostas da Serra Geral, buscando

vincular imagem do lugar com o produto através do logotipo e das informações inscritas no

rótulo dos alimentos vendidos (ver item a seguir). Além disso, há um desejo explícito de

construir identidade territorial e uma renovada ecoeconomia local. Portanto, os recursos

naturais, o ‘senso de pertencimento’ e o desenvolvimento dos recursos humanos, mais do que

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 240

recuperar alguma tradição, foram essenciais para a reconfiguração dos processos mercantis

nesse território. Aqui, o ‘projeto’ formatou uma rede sociotécnica e estabeleceu

‘compromissos’ (BOLTANSKI; THÈVENOT, 1991) entre os agentes que permitiram criar

uma nova cadeia de alimentos sustentáveis contando com o “empreendedorismo ecológico” e

fortes relações rurais urbanas.

Portanto, os diferentes casos mostram, também, distintas combinações dos elementos

que configuram as cadeias agroalimentares curtas aqui analisadas. Agora, resta entender como

as conexões estabelecidas entre pessoas, produto e lugar podem levar a distintas trajetórias

que passam a identificar a cadeia de alimentos que vai se construindo nos diferentes

contextos.

Trajetórias de sustentabilidade: a força do local, das ‘novidades’ e da diferenciação

Construir uma nova cadeia agroalimentar sempre envolve fazer escolhas conscientes e

estratégicas sobre governança, embedding e marketing e coordenar essas três dimensões

(ROEP; WISKERKE, 2006). (Re)construir uma existente envolverá repensar, reavaliar e

reconfigurar estas dimensões, que são inter-relacionadas e interconectadas. Na medida em que

uma cadeia de alimentos aumenta em escala temporalmente, como vem acontecendo nos

casos da Agreco e da Copafas, a mesma tem que ser continuamente coordenada e balanceada.

A governança envolve tanto aspectos estruturais quanto relacionados ao processo de

criação e manutenção de uma cadeia/rede. A estrutura se refere ao modo segundo o qual a

aliança é organizada e seu status legal e formal (associação, cooperativa) enquanto o processo

inclui questões como divisão de papeis, relações de poder, códigos de prática. O enraizamento

adquire uma dimensão que vai além do social, incorporando ecologia, cultura, política, o local

e a extensão do envolvimento de organizações e atores locais e da partilha de valores. O

marketing se refere à gestão de negócios orientada ao mercado. Seu sucesso depende de sua

capacidade em continuamente entender, antecipar e se adaptar aos desenvolvimentos dos

mercados. Uma atividade fundamental neste campo é o desenvolvimento de estratégias no

que se refere ao grau de competitividade e diferenciação de produto.

Os estudos de caso abordados neste artigo permitiram reconstruir a criação e

desenvolvimento de cadeias curtas que estão buscando trajetórias sustentáveis. Suas histórias

mostram como cada iniciativa criou e percorreu seu próprio caminho, o qual, embora seja

único, sempre apresenta similaridades e diferenças observáveis entre elas. Assim, seguindo a

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 241

perspectiva de Roep e Wiskerke (2006) para os casos aqui analisados, foi possível distinguir

três diferentes trajetórias para construção de cadeias agroalimentares curtas sustentáveis:

inovação na cadeia, diferenciação na cadeia e enraizamento territorial. Portanto, distintas

trajetórias de sustentabilidade são uma combinação das três dimensões citadas, envolvendo

diferentes combinações de seus elementos. Entretanto, cada trajetória tem seu ponto focal

específico ou ponto de partida. Assim, o primeiro tipo, inovação na cadeia, parte da dimensão

de governança, enquanto diferenciação na cadeia e enraizamento territorial partem de

marketing e embedding, respectivamente. Entretanto, devemos ressaltar que,

independentemente do ponto de partida original, quanto mais desenvolvida e balanceada estas

três dimensões são, melhor a performance de uma iniciativa.

Figura 3 - Relação entre estratégias e trajetórias em cadeias sustentáveis

Fonte: Elaboração do autor. Adaptado de Roep e Wiskerke (2006).

As iniciativas coletivas aqui analisadas confirmam que a distintividade é criada e

realizada através das dimensões de governança, embeddedness e marketing. Já afirmamos que

cada uma destas dimensões pode levar a diferentes trajetórias conforme as cadeias

agroalimentares curtas vão sendo construídas pelos agentes que se posicionam dentro da

esfera mercantil, uma arena que confere às coisas o caráter de mercadoria em determinados

momentos de sua vida social (APPADURAI, 2001).

Assim, para o caso dos produtos “coloniais” no Oeste catarinense verificamos na

dimensão da governança uma trajetória de inovação, ou melhor, de produção de “novidades”

não somente em termos de busca de singularidades nos produtos “coloniais”, mas também em

termos de organização da cadeia. Os exemplos aqui apresentados em torno da rede articulada

pela Apaco dão a dimensão exata desse processo. A ‘novidade’ está justamente na criativa

forma encontrada pelos agentes locais para contornar os limites impostos para agricultores de

pequena escala. A organização dos grupos de agricultores e suas agroindústrias em torno de

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 242

uma central de serviços (a UCAF) e a estruturação de cooperativas locais ou microrregionais

articulando-as entre si e com os agricultores na forma de filiais, permitiram construir a coesão

necessária para transpor as barreiras da informalidade jurídica, sanitária e tributária. Ademais,

permitem maior flexibilidade, transparência e autonomia na gestão e controle dos negócios

dos grupos associados. Esta estratégia tem permitido fortalecer o poder de barganha e a

posição comercial dos agricultores dentro das novas cadeias agroalimentares locais e

regionais.

A Copafas tem mais de 100 pontos de vendas. Isto é uma vantagem que nós temos,

sabe. O cara do Pão de Açúcar queria comprar 15 mil kg/mês de açúcar mascavo.

Mas, se resolve não comprar mais amanhã. Daí não. Agora, se nós temos 50 pontos,

se um não quer mais, temos ainda 49. É mais difícil, mas é mais seguro. Então, o

sucesso, tendo vários pontos, cada ponto vendendo um pouquinho, a venda fica

grande. (ENTREVISTA com AD, agricultor, coordenador da Copafas).

Na dimensão do marketing, a trajetória que vem se verificando repousa sobre

processos de diferenciação dos produtos com qualidades distintas daqueles produzidos pela

indústria convencional. De fato, verifica-se uma reconfiguração dos seus recursos sociais e

produtivos, especialmente dos “saberes” que informam a cultura local, para uma espécie de

“reinvenção da tradição” (SONNINO, 2007) agora sob novas condições, qual seja, a produção

para autoconsumo ganha espacialidade através da expansão da demanda e do consumo de

produtos outrora valorizados pelo uso e que agora se atualizam na troca mercantil. As

qualidades distintivas do “colonial” são agora (re)embedding (a terceira dimensão) via cadeias

agroalimentares curtas que facilitam o processo de interação social, impulsionador do

consumo e da construção das conexões que permitem o crescimento do mercado de produtos

artesanais na região.

Assim, os agricultores inseridos nessas cadeias/redes vêm reconfigurando tal processo

através de ações localizadas. Por exemplo, em relação ao nosso estudo de caso, a Copafas de

Seara promove seus produtos na feira local, na “casa colonial” e na “janta colonial”. A casa

colonial foi construída em 200691

e serve de vitrine para seus produtos que já movimentam

em torno de 18 mil reais por mês para os associados da Copafas. “É um ponto de referência”,

diz AD (agricultor associado). Junto à casa colonial nos sábados se realiza a feira livre, que

91

Foi construída em parceria com o MDA e a prefeitura municipal que disponibilizou o terreno e cedeu a casa

em comodato. Em acordo realizado, a casa serve ao mesmo tempo para três entidades de Seara: a Copafas, a

Copase e a Associação das mulheres agricultoras (estas vendem miudezas e artesanato), perfazendo um total de

50 pessoas associadas que entregam seus produtos no local. Do valor das vendas, atualmente 16% (pode

variar) são retidos pela administração da casa colonial para cobrir as despesas de manutenção (é praxe também

a outros municípios que dispõem deste tipo de estabelecimento). Há na região casos de “casas coloniais” que

fecharam por razões diversas.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 243

possibilita o contato direto entre produtores (seis famílias) e consumidores. AD já nos havia

relatado acerca da importância da aproximação com os consumidores locais, o que foi feito

através de reuniões à noite para divulgação dos produtos e da certificação orgânica, havendo

na época um evento (uma janta) na comunidade que reuniu aproximadamente duzentas

pessoas: “Isso foi que divulgou, adquiriram uma confiança e estão comprando”.

A “janta colonial” é realizada no salão comunitário da linha São Paulo e já está na 5ª

edição. O objetivo era divulgar os produtos dos associados da Copafas. “Eu que dei a ideia”,

diz OB, um dos associados. A partir daí, conta AD, “a procura pelos nossos produtos só

aumentou, porque nós nunca tínhamos divulgado a marca, nada. Agora, não tem produto que

chega, vendemos mais do que conseguimos produzir, mercado não falta”. No último evento,

realizado em março, participaram 550 pessoas de toda a região. São servidos (26) pratos

típicos da cultura local (italiana) produzidos pelos grupos familiares da cooperativa a partir de

produtos cultivados em suas terras e processados nas suas pequenas agroindústrias.

Longe de ser uma condição dada, como mostrou Sonnino (2007), o enraizamento

social é criado através de um processo complexo de mobilização de valores e significados que

cimentam os interesses convergentes de diferentes “stakeholders” acerca de uma renovada

identidade e senso de comunidade. No caso da Copafas e do “sabor colonial”, essa identidade

é crucial não somente para estabelecer as fronteiras da cadeia agroalimentar, mas, também,

para protegê-la. No contexto do alimento, o processo de enraizamento afeta mais que somente

a esfera social. Para os associados da Copafas (e das outras cadeias e redes articuladas na

região) entrar no mercado significou mais do que alcançar um balanço em termos de

quantidade produzida, foi uma questão de diferenciar seu produto em termos de qualidade. No

argumento de Ilbery et al. (2005), criar uma diferença em qualidade entre produtos específicos

e produzidos em massa é crucial para o processo de reconexão, o qual vem formatando uma

nova geografia do alimento no Oeste catarinense.

Num contexto onde qualidade também tende a ser definida sobre as bases da

existência de uma ligação explícita entre um produto alimentar e uma tradição local, enraizar

o “colonial” também se torna necessariamente um processo cultural. Individualmente e

coletivamente, ambos os componentes das redes de produção artesanal trabalham para

enraizar suas práticas e seus produtos dentro de um espaço que não é local, mas de

pertencimento. Então, essas redes não são apenas baseadas em relações sociais que cortam o

espaço, elas também envolvem o desenvolvimento de relações históricas que atravessam o

tempo. Por isso, Sonnino (2007) afirma: embeddedness é multidimensional, é um processo

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 244

social, espacial e temporal. Com fronteiras difusas, o enraizamento torna-se essencialmente

uma questão de criar relações que aproximem diferentes interesses e escalas de prática. Nesse

aspecto, agir coletivamente se torna uma estratégia acertada, pois numa situação de formas

altamente heterogêneas de organizações, o envolvimento e a tradução de interesses passam

por questões de agência e identidade social.

Nas cadeias agroalimentares ligadas a Apaco, a tentativa de ligação de identidade

entre o produtor e o consumidor se inscreve no selo, ou marca, “sabor colonial”. Mas,

conforme depoimentos dos próprios agricultores que usam este sinal, o consumidor ainda não

o reconhece da forma que foi idealizada. Por exemplo, PH, associado de uma agroindústria de

derivados de carne suína, estava até pensando em não mais usá-lo: “a maioria nem sabe o que

quer dizer o sabor colonial, não foi feito um trabalho de marketing, por que o sabor colonial,

o que ela significa”. Na sua visão, a retirada do selo de seu produto não significaria uma

perda de clientes, pois eles valorizam mais a sua marca, a qual teve, de fato, um forte trabalho

realizado por PH, pois ele mantém relações diretas com os consumidores de seus produtos.

Esta é a possível razão de sua convicção. Por sua vez, AD, presidente da Copafas, também

exalta sua preocupação com a questão da divulgação da marca, inclusive informa que já estão

impressos dois mil portfólios além de banners (ver fotos no final do capítulo 5 da feira da

Agricultura Familiar) viabilizados com recursos do projeto dos Territórios do Ministério do

Desenvolvimento Agrário. Entretanto, destaca algumas especificidades:

Eu vejo que o consumidor, principalmente em cidade mais pequena (como Seara),

os caras que vieram da roça, se identifica com a marca, é da colônia. Na cidade

maior, talvez não, mas também não foi feita uma grande divulgação desta marca.

(AD, agricultor, presidente da Copafas).

De fato, traduzir as tradições da produção artesanal e do consumo destes produtos

coloniais pela população local através de uma ‘inscrição’ requer uma estratégia de

reconhecimento que pode ser onerosa e precise de tempo para maturação.

Assim, cabe a pergunta: esses alimentos que são produzidos nas pequenas unidades de

processamento no seio da agricultura familiar da região ainda carregam a distintividade que

propiciou serem reconhecidos e culturalmente valorizados entre os consumidores da região?

Eles são ainda coloniais? Além disso, agora que as grandes cadeias convencionais a partir da

expansão do mercado consumidor urbano perceberam ao longo dos últimos anos o potencial

de venda do queijo, do salame, do frango, da geleia, dentre outros, levando-as a industrializá-

los usando o mesmo apelo, “colonial”, pergunta-se de que forma os consumidores poderão

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 245

fazer a distinção entre estes e aqueles? Poderíamos, aqui, afirmar que muitos consumidores

associam o produto (alimento) ao colonial a partir de suas vivências. Assim, o reconhecem na

forma, no gosto, no cheiro, na apresentação, na embalagem, no ponto da venda, no produtor.

Ou seja, valem-se dos mundos da confiança e da opinião. Agora, precisariam também

reconhecê-lo num artefato da ciência moderna.

Parece oportuno aqui introduzir o conceito de “retroinovação”, que justamente

desenha ligações entre velhos e novos conhecimentos (STUIVER, 2006). Isto é, os

agricultores mesclam ‘velhos’ conhecimentos e ‘expertise’ com elementos ‘novos’ para

reconfigurar ou reinventar a tradição. A título de exemplo, o queijo colonial e o salame

colonial que hoje são processados nas pequenas agroindústrias familiares e vendidos dentro

das normas da inspeção (seja municipal ou estadual) passaram por processos de

reconfiguração. As exigências de ‘conservantes’ no processamento do salame e

‘pasteurização’ do leite para a fabricação do queijo, conforme regras de domínio industrial

que conformam o regime sociotécnico dominante, passaram a ser incorporadas aos saberes

tácitos e técnicas de fabricação tradicionais dos colonos, o que determinou o surgimento de

um ‘novo’ produto, agora um mix de conhecimento popular e perito. Faz parte de

engajamentos e alinhamentos dos atores em lutas contra a transformação do diferente em

igual. Isto não seria um problema, isto é, a tradição não deve ser vista como antagônica à

inovação, contanto que se mantenham as características que dão tipicidade e distinção ao bem

em questão. Este parece ser o ‘calcanhar de Aquiles’ dos novos/velhos produtos ‘coloniais’

que vem se promovendo em Santa Catarina.

Já no caso dos agricultores agroecológicos das Encostas da Serra Geral, no início de

sua trajetória, época de produção de hortaliças sem agrotóxicos, a Agreco centrou forças em

duas dimensões. A primeira, a construção de uma nova cadeia de abastecimento de alimentos

através do desenho, desenvolvimento e implementação de uma nova forma de governança na

cadeia, a partir da construção de uma associação local com relações espacialmente estendidas

a partir da conexão através dos laços de parentesco e amizade. A organização da Agreco em

redes de produção e comercialização construídas de forma associativa e em grupos,

representou uma inovação organizacional imitada e replicada em diferentes contextos. A

segunda, a produção orgânica, inicialmente despida da chancela institucional, evolui ao longo

de sua existência para certificação por auditoria com o objetivo de melhorar o desempenho

comercial de uma cadeia já consolidada. A própria mudança na linha de produtos oferecidos

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 246

significou uma alteração na trajetória inicial, num processo de aprofundamento da

diferenciação de sua cadeia agroalimentar.

O enraizamento territorial da iniciativa surge mais tarde, a partir da preocupação dos

atores locais e parceiros em relação ao desenvolvimento regional sustentável. O projeto de

criação de um território nas Encostas da Serra Geral sintetiza essa preocupação presente nas

lideranças locais e ações de fortalecimento das ligações. A busca de criação de coerência e

sinergias entre a cadeia agroalimentar e outras atividades, como o agroturismo através do

projeto “Acolhida na Colônia”, reforçam o objetivo de construção de uma cadeia de alimentos

como veículo para o desenvolvimento sustentável do território das encostas da Serra Geral.

A dimensão de marketing tem se apresentado de forma intensa em diversas ações da

Agreco. A participação mercantil nas grandes redes de supermercados tem impulsionado

alcançar uma melhor posição competitiva nos termos da teoria da firma. Um exemplo

emblemático que se apresenta como um marco na trajetória da organização reporta ao ano de

2006. Uma época de instabilidade no mercado institucional exigiu ações estratégicas mais

agressivas para consolidação de parcerias com as grandes redes comerciais. A aposta na

embalagem e rotulação dos produtos foi o caminho traçado para expansão das vendas e

fidelização dos consumidores.

Contratamos uma empresa de design. Por conta das feiras que a gente participa,

tinha algumas cooperativas com um trabalho excelente. Com recursos do MDA e

próprios, fizeram toda comunicação visual, cartão de visita, site, embalagem,

rótulo, marca. [...] A geleia de tangerina multiplicou por cinco a venda dela.

Porque o produto intrinsecamente tinha qualidade, mas ele não demonstrava isto,

então, a venda hoje, quer queira ou não, é muito por impulso, principalmente, pra

provar o produto, pra levar a primeira vez, porque não se fideliza um cliente sem

ele levar a primeira vez, então essa roupagem é fundamental (ENTREVISTA com

AL, agricultor, presidente Cooper Agreco).

Trata-se de sua capacidade em ressocializar ou reespacializar o alimento, permitindo

ao consumidor fazer julgamento de valor, mas como fazer isso? A literatura sobre cadeias

agroalimentares curtas (MARSDEN e colaboradores) mostra que no caso de redes

espacialmente estendidas, pode-se, na embalagem e rotulagem dos produtos, colocar “sinais”

que atinjam aos consumidores. Na figura 04 podemos observar esse processo realizado pela

Agreco.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 247

Figura 4 - Rótulos dos produtos com a marca Agreco

Fonte: fotos do autor.

A mensagem chega ao consumidor visualmente, tanto através de “desenhos de tábuas

de madeira” e “perfil das Encostas da Serra Geral” em que está implícita a relação do produto

com uma localidade e com um modo de fazer tradicional e artesanal, quanto através do texto

inserido (uma ‘inscrição’) na rotulagem em que se reforça esse enraizamento do produto a um

território, a um processo de produção e um modo de viver.

Um grande trabalho foi identificar esse modo diferente nosso, que é produzido em

pequena escala, por isso o sabor, o cuidado, a matéria-prima fresca porque é

agroindústria de pequeno porte feito pelo próprio agricultor, então ele traz a

conserva e já faz no mesmo dia. Isso tudo fica na rotulagem com a textura de

madeira, com o desenho das encostas da Serra Geral que caracteriza um território.

[...] Quando nós fizemos uma feira, fizemos degustação, só que nós não tínhamos à

venda os produtos no formato novo, só no material impresso, daí o pessoal não

queria, imaginava que tinha menos, o vidro era diferente, era feio mesmo

(ENTREVISTA com AL, agricultor, presidente Cooper Agreco).

Significa redefinir a relação produtor-consumidor ao dar claros sinais sobre a origem

do produto e o papel desta relação na construção de valores e significados. Na dimensão do

marketing, uma trajetória de diferenciação da cadeia passa pela produção de novidades. Nesse

processo, sublinha AL, participar em feiras ajuda a ficar “antenado nas questões de mercado,

de inovações”.

Estamos lançando ketchup orgânico. Tá pronto já [mostra a embalagem do

produto]. Porque a gente compra ketchup no mercado aí hoje que tem aquele gosto

de ketchup, mas tu vê que a polpa dele é um troço meio... Claro, quando tu come um

Heinz [marca] assim, tu vê que é um produto de qualidade né, mas tem muita

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porcaria. E é muito fácil produzir um ketchup de qualidade, é só usar bastante

polpa. Ficou bom, modéstia à parte, 70% tomate. [...] Não perde nada em sabor,

ganha em sabor do convencional e tu sabe que tá consumindo um produto rico em

licopeno (ENTREVISTA com AL, Cooper Agreco).

A gente quer lançar um nuggets [empanado de frango] orgânico. O abatedouro

agora já comprou equipamento pra fazer isso. Isto sim é um salto, quando a gente

começar a ter produto substituto pra linha convencional efetivamente, ter mortadela

orgânica, não existe né. O consumidor hoje é muito mal servido no Brasil, o

consumidor que quer ter uma linha de orgânicos, ele encontra muita verdura,

alguns pontos encontra uma carne, o feijão o preço lá nas alturas. Não é bem

atendido na linha de orgânicos, o espaço é vago (ENTREVISTA com AL, da Cooper

Agreco).

É, portanto, um processo experimental que incorpora todos os tipos de conhecimentos.

Os agricultores “aprendem a fazer fazendo” num processo de aprendizagem contínuo. Como

argumentam Stuiver et al. (2004), é visto como multidimensional e comporta processos de

aprendizado social e de construção em redes. A produção orgânica nas Encostas da Serra

Geral apresenta-se como um espaço privilegiado para a ‘produção de novidades’ na

agricultura, pois carrega o potencial para quebrar as rotinas existentes, é dependente do

tempo, do ecossistema e da cultura local, nos quais o processo de trabalho está enraizado. A

inovação na cadeia, intrínseca à construção de uma nova cadeia agroalimentar pela Agreco e

outros atores locais, tem por objetivo melhorar a posição dos agricultores dentro da cadeia de

fornecimento de alimentos, exigindo o exercício de novas formas de governança na cadeia, o

que por sua vez mobiliza novas alianças estratégicas e a construção de um forte suporte por

organizações da sociedade, grupos de interesse e autoridades governamentais. Este apoio é de

vital importância para a criação de um “espaço protegido para experimentação e

aprendizagem”, ou seja, de um possível nicho de inovação.

Em síntese, a trajetória de sustentabilidade da cadeia agroalimentar da Agreco vem

mesclando inovação organizacional, diferenciação do produto e enraizamento no território. O

desenvolvimento e balanceamento dessas três dimensões ao longo de sua trajetória têm

permitido um melhor desempenho da iniciativa. Por sua vez, a rede da Apaco estudada aqui a

partir da Copafas de Seara, tem buscado combinar aspectos da diferenciação dos artesanais

em relação aos industrializados e inovativas e inéditas formas de organização da produção e

mercantil, com o objetivo de melhorar a performance econômica das iniciativas coletivas em

curso na região. Aqui, em ambos os casos, a própria organização dos agricultores se

transforma numa ‘novidade’.

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Considerações finais

Essas cadeias agroalimentares curtas, portanto, caracterizam-se por enraizar práticas

alimentares em relações ecossocial e culturais locais, criando, assim, novos espaços

econômicos, ou seja, novos mercados onde transitam bens carregados de ‘valor’. Seriam elas

portadoras das ‘sementes de transição’ para um desenvolvimento rural e territorial com mais

sustentabilidade no Oeste catarinense e nas encostas da Serra Geral catarinense? Para alguns

autores (PLOEG et al., 2000), o desenvolvimento rural é multinível, de multiatores e

multifacetado, enraizado em tradições históricas. Diz respeito à construção de novas redes, à

reformatação e recombinação do social e do material, ao uso renovado do capital social,

cultural e ecológico e à revalorização e reconfiguração dos recursos rurais. Assim, a literatura

vem apontando o surgimento destas novas cadeias agroalimentares curtas com potencial para

desencadear amplos processos de desenvolvimento rural nos diferentes contextos e territórios

(MARSDEN et al., 2000; RENTING et al., 2003; PLOEG; RENTING, 2004; ROEP;

WISKERKE, 2006; SONNINO, 2007).

Um levantamento recente (EPAGRI, 2010) diagnosticou a presença de 2700 (duas mil

e setecentas) iniciativas com objetivos econômicos, as quais incluem pequenos

empreendimentos ligados ao processamento de alimentos (1894 empreendimentos que

geraram, em 2009, 7215 postos de trabalho diretos), 490 empreendimentos não agrícolas

(agroturismo, artesanato, vestuários, prestação de serviços) e 330 redes de cooperação

(organizações que agregam os empreendimentos individuais e coletivos), situadas no meio

rural e lideradas por famílias e grupos de agricultores familiares que trabalham e vivem em

pequenas comunidades rurais de Santa Catarina. Os agricultores e suas organizações são

protagonistas desses processos e contam com a parceria de diversos agentes: prefeituras,

ONGs, Epagri, Cidasc, Fetraf, Fetaesc, MDA, sindicatos, movimentos sociais. Este amplo

movimento social e econômico certamente vem reconfigurando o espaço rural catarinense.

Este retrato vem a reforçar a importância destes empreendimentos para a reprodução

social e econômica dos agricultores familiares catarinenses e vem a corroborar com a tese

proposta por Marsden et al. (2000) de que as cadeias agroalimentares curtas se apresentam

como uma dimensão chave nos novos padrões de desenvolvimento rural emergentes.

Igualmente, como argumentou Ploeg (2008), estes alimentos processados em pequena escala

pelos agricultores catarinenses normalmente são consumidos em espaços de proximidade,

reproduzindo circuitos curtos, senão vejamos: das 1894 agroindústrias, 1700 venderam seus

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produtos no próprio município e 933 nos municípios vizinhos ao local da instalação da

unidade de processamento. Os dispositivos mercantis mais utilizados pelos agricultores foram

em ordem: a venda direta ao consumidor (utilizada por 1508 agroindústrias92

); a venda em

pequenos varejos (mercados, padarias, mercearias e lojas especializadas – por 802

agroindústrias); supermercados (por 526 agroindústrias); e mercado institucional (por 318

agroindústrias).

Estes aspectos vêm a reforçar o que sublinhamos no decorrer desta pesquisa, que as

cadeias agroalimentares curtas lideradas pelos agricultores familiares têm a capacidade para

reespacializar e ressocializar os alimentos fazendo a (re)conexão do produtor e consumidor

em novos espaços mercantis que são socialmente construídos através de ações econômicas

localizadas imersas em uma teia de rede de relações sociais que atravessam o espaço e o

próprio tempo. Tanto na região Oeste catarinense, quanto nas Encostas da Serra Geral

testemunhamos a capacidade de agência dos agricultores familiares e outros atores locais para

reconfigurar, recombinar, produzir ‘novidades’, fazer conexões, buscar maior autonomia,

agregar valor econômico, articular aprendizagens, alinhar expectativas, construir redes, enfim,

praticar ações de desenvolvimento rural.

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na própria propriedade familiar; 596 venderam no domicílio do consumidor; e 332 em feiras livres municipais.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 254

Os caminhos da agroindustrialização no campo percorridos por três

microempresas rurais que produzem e processam leite de cabra localizadas

no estado de São Paulo

Luís Fernando Soares Zuin

Poliana Bruno Zuin

Heloísa V. Battagin

Miguel A. Díaz Manrique

Suzanne Ferte

Introdução

Na propriedade rural, é possível ao agricultor agregar valor às suas commodities

agropecuárias por meio de três caminhos produtivos e mercadológicos. O primeiro seria o

processamento de sua matéria-prima em algum grau. A segunda via se daria por meio da

adoção de algum tipo de certificação voluntária para as suas matérias-primas ou processos,

como, por exemplo, as normas de responsabilidade social conhecidas como “comércio justo”.

A terceira forma de agregar valor aos seus produtos agropecuários seria pela junção das duas

primeiras, ou seja, um produto certificado e que foi processado em algum grau nas

propriedades rurais (ZUIN; QUEIROZ, 2006).

Ao longo da primeira década dos anos 2000, foi observado que essas estratégias

produtivas se mostraram cada vez mais determinantes para a sobrevivência de uma parte

significativa dos pequenos e médios produtores rurais brasileiros, o que levou o Poder Público

de alguns estados brasileiros a adotarem políticas públicas, objetivando fomentar esta forma

produtiva (GAZOLLA; PELEGRINI, 2010). A título de exemplificação, nos estados de Santa

Catarina e São Paulo, iniciou-se em 2010 o Programa Microbacias II, que possui como

principal objetivo a agroindustrialização sustentável do campo por meio do fomento à

formação de associações de agricultores.

Do ponto de vista operacional, um dos determinantes para que os produtos

agroindustrializados possam ser inseridos no mercado consumidor com sucesso, seria a

adoção pelos agricultores do emprego de técnicas de gerenciamento durante as atividades que

compõem o desenvolvimento de novos produtos alimentícios, como preconizam em seus

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 255

estudos Zuin e Alliprandini (2006). Os autores relatam que essa complexidade técnico-

gerencial exige dos produtores rurais uma habilidade em coletar informações e capacidades

produtivas a fim de não sofrerem reveses econômicos, em todas as etapas do processo de

desenvolvimento de novos produtos (PDP).

Este capítulo do livro possui o objetivo de analisar as atividades gerenciais referentes

ao PDP em três microempresas rurais da cadeia produtiva de queijos finos de cabra,

localizadas no estado de São Paulo. Para essa atividade de diagnóstico foi empregado o

modelo de PDP proposto por Zuin e Alliprandini (2006).

Material e métodos

Esta pesquisa é de caráter exploratório, sendo desenvolvida a partir de uma análise

empírica junto a um conjunto de agricultores que manufaturam produtos derivados do leite de

cabra dentro das suas propriedades rurais. Para alcançar os objetivos propostos nesta

investigação foram necessários os empregos dos seguintes instrumentos metodológicos:

aplicação de questionários, entrevistas e observações diretas nos ambientes de coletas das

informações. A pesquisa aqui relatada está fundamentada nos princípios metodológicos que

compõem o “Paradigma Indiciário” descrito por Ginzburg (1990).

Para este estudo, as três empresas receberam as denominações de “A”, “B” e “C”.

Conforme pode ser observado no quadro 01, foram recolhidas junto às três microempresas

pesquisadas um conjunto de informações referentes a seis variáveis socioeconômicas, sendo:

números de funcionários; quantidade de proprietários; porcentagem do faturamentos dos três

principais produtos; a origem da matéria-prima; o tipo de inspeção sanitária às quais são

submetidos; e se possuem certificações de padrões de qualidade voluntárias.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 256

Tabela 01 - Caracterização das três empresas estudadas

EMPRE-

SAS

Quantidade

de

proprietários

Número

de

funcio-

nários

Porcentagem do faturamento dos

produtos comercializados em

porcentagem Qual a

origem da

matéria-

prima?

Tipo de

Inspeção

Sanitária

aos quais

são

submetido

s?

Possui

certifi-

cações

voluntá-

rias? Leite Queijo

Fresco

Queijo

Matura-

do

Matrizes e

Reprodu-

tores

A 02 02 60 20 5 15 100% na

propriedade SIMPOA* Não

B 01 05 05 70 25 zero 80% na

propriedade SISP** Sim

C 04 05 zero 100 zero zero 75% na

propriedade SISP** Não

Fonte:

Notas: * Serviço de Inspeção Sanitária Municipal de Produtos de Origem Animal;

** Serviço de Inspeção Sanitária do Estado de São Paulo.

As três empresas se localizam no estado de São Paulo e são consideradas

microempresas, porque trabalham em cada uma delas menos de dezoito funcionários (Serviço

Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas - SEBRAE, 1999). No que se refere à

quantidade de proprietários, somente a empresa “B” não possui sócios no seu

empreendimento, as demais empresas são comandadas por mais de uma pessoa. Apenas na

empresa “A” foi observado uma falta de sincronia entre os sócios para alguns pontos do

empreendimento, refletindo visões distintas para o seu negócio. A coleta de dados junto aos

caprinocultores ocorreu no primeiro semestre do ano de 2010, e foram entrevistados o

proprietário da empresa “B”, uma proprietária da empresa “C” e os dois proprietários da

empresa “A”. A escolha das empresas pesquisadas neste estudo se deu a partir de alguns

pressupostos como:

a) utilizam parte, ou totalmente, da produção de sua matéria-prima na

fabricação de produtos derivados do leite de cabra;

b) fabricam queijos dentro de suas propiedades;

c) comercializam seus produtos diretamente com o varejo.

Quanto aos produtos comercializados, constatou-se que na empresa “B” quase a

totalidade das suas matérias-primas (95%) sofrem algum grau de processamento. A empresa

“C” somente comercializa produtos processados, em forma de queijos frescos. Na empresa

“A” pode ser observada uma maior diversificação de seus produtos. A maior quantidade da

sua matéria-prima (60%) é destinada à comercialização em forma de leite pasteurizado e

congelado, além de comercializar queijos (maturados e frescos), correspondendo a 25% do

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 257

montante do seu negócio. A venda de animais (matrizes e reprodutores) reflete 15% do

faturamento do negócio. Todas as empresas pesquisadas pasteurizam o leite (matéria-prima)

que utilizam para a fabricação de todos os seus produtos.

Nas três empresas, a inserção dos seus produtos nos mercados consumidores é

determinada pela possibilidade de comercializar seus produtos em uma ou várias regiões do

Estado de São Paulo. Somente as empresas “B” e “C” possuem certificações sanitárias que

possibilitam que seus produtos sejam disponibilizados em todo o estado. Porém, elas focam a

comercialização do seu mix de produtos nas regiões metropolitanas das cidades de Campinas

e São Paulo. A empresa “A”, por outro lado, somente pode comercializar seus produtos

derivados do leite de cabra dentro dos limites de seu município, no qual contém 45 mil

habitantes, contra centenas de milhares de potenciais consumidores que podem ter acesso aos

produtos das empresas “B” e “C”.

Todos os entrevistados relataram que o mercado para os produtos derivados do queijo

de cabra encontra-se em crescimento no Estado de São Paulo, o que levou as empresas “C” e

“B” a firmarem parcerias com outros caprinocultores, visando o fornecimento de matéria-

prima para o aumento do volume de seus produtos ofertados para os seus consumidores. Na

empresa “B”, o volume adquirido dos fornecedores é de 20% do total da matéria-prima que é

destinada para a produção, na empresa “C” a quantidade aumenta um pouco, sendo 25%. A

empresa “A” não realiza este tipo de parceria pois, conforme o seu relato, os produtos

derivados do leite de cabra no Brasil ainda são destinados a um nicho de mercado e como ela

não pode comercializar em outras regiões do estado, fica impossibilitada de aumentar o seu

volume de produção.

Em seus estudos, Alliprandini et al. (2005) relatam que o enfoque nos nichos de

mercado, no setor de alimentos, pode ser uma boa escolha mercadológica visando agregar

valor aos produtos. Os autores relatam que, ao invés de as empresas buscarem atender todo o

mercado ou grandes segmentos dele, podem levar em conta a idéia do nicho, que é de

encontrar grupos menores de consumidores com potencial de crescimento e com necessidades

ainda não atendidas, gerando o maior valor possível para os seus produtos. Entretanto, esse

modelo mercadológico de nichos descrito pelos autores é positivo para as empresas rurais

quando essas possuem acesso a várias praças de comercialização, pois muitas vezes os

consumidores não se encontram aglutinados em uma região geográfica, como observado nesta

investigação.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 258

No que diz respeito às certificações de padrões de qualidade voluntárias, somente a

empresa “B” as possui, como a norma halal, cedida por uma associação religiosa brasileira. A

empresa ainda possui outra certificação interna de uma empresa aérea nacional para ser o seu

fornecedor de queijos de cabra. Atualmente, é crescente a busca pelos consumidores de

produtos que ofertem algum diferencial competitivo, levando em consideração suas

preferencias sociais, culturais e ambientais, sendo, provavelmente, a maior tendência para o

consumo de produtos sem agrotóxico e ligados as aspectos ambientais (PESSOA; SILVA;

CAMARGO, 2002).

Resultados e discussão

Foram coletadas nas três empresas rurais informações relativas aos aspectos que

compõem a estrutura, gestão, dificuldades, tendências e perspectivas do PDP. Os dados e

informações aqui descritos foram analisados por meio da comparação com o referencial

teórico produzido por Zuin e Alliprandini (2006), que sugerem ao produtor rural um conjunto

de atividades e tarefas gerenciais que auxiliam o processo de desenvolvimento de novos

produtos alimentícios nos territórios rurais. Essas atividades e tarefas do modelo de PDP rural

propostas pelos autores podem ser aglutinadas em três fases: pré-desenvolvimento,

desenvolvimento e pós-desenvolvimento.

Durante as coletas dos dados, foi indagado aos gestores das empresas “A” e “B” o que

consideravam mais importante quanto à definição dos objetivos da sua empresa na fase de

pré-desenvolvimento. Esses objetivos encontram-se relacionados aos desenvolvimentos dos

aspectos financeiros, mercado consumidor e capacidade produtiva das empresas. Os

proprietários das duas empresas responderam que atingir os objetivos financeiros era a

principal preocupação no decorrer dos trabalhos de desenvolvimento de novos produtos. A

empresa “A” destacou que a ação de coletar informações no mercado consumidor é uma

exceção e não a regra, mas que gostariam que fizessem parte de suas rotinas das atividades do

seu PDP. Na empresa “C”, o principal objetivo a ser alcançado durante os trabalhos do PDP é

o mercadológico; atualmente os proprietários desta empresa acreditam ser este o fator

principal de sucesso dos seus produtos. Geralmente, a primeira variável considerada no

projeto é a financeira, como relatado pelos entrevistados e também observado nas pesquisas

de Rozenfeld et al (2005) e Mintzberg (2004). Durante a realização de um novo projeto,

apesar de ser mais fácil analisar números que variáveis qualitativas (odor e sabor), a

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 259

orçamentação de novos produtos e processos pode ser uma ação desarticulante de outros

atributos importantes. De forma geral, o agricultor pode recorrer à compra de produtos

considerando apenas o menor custo e não padrões de qualidade mais elevados e diferenciados,

destacando o seu produto dos demais com baixa diferenciação. Essa ação pode afetar

negativamente os atributos de qualidade dos produtos das empresas rurais.

Nas empresas “A” e “C”, os gestores foram indagados a respeito das principais fontes

de novas ideias empregadas no desenvolvimento de seus produtos. Eles relataram que a fonte

preferencial seria a comunicação direta com os consumidores, con a qual a informação

relativa aos seus desejos e necessidades foi coletada nos locais de venda dos seus produtos.

Para a empresa “B”, as fontes para novas ideias se residiam na comunicação direta com os

consumidores, nos produtos concorrentes disponíveis no mercado e nas sugestões dos

familiares dos proprietários, bem como dos funcionários. Em seus estudos, Toledo et al

(2005) observam que a principal fonte de ideias para novos produtos, no conjunto de

empresas alimentícias estudadas em sua pesquisa, é originada de produtos concorrentes, que

já se encontram disponíveis no mercado, aumentando, portanto, as chances de sucesso para o

novo produto quando este é ofertado para os consumidores. Mas as formas de captação de

ideias para novos produtos no ambiente externo à empresa rural não são as únicas disponíveis

para os agricultores. Em seus estudos, Zaltaman (2003) sugere outra fonte de novas ideias, a

criatividade dos dirigentes e funcionários das empresas, como foi observado na empresa “B”.

Entretanto, quando é observada a importância dos consumidores no processo de

seleção de novas ideias para um novo produto, Mello (2006) anuncia uma preocupação na

concretização desta atividade, no sentido de compreender o que realmente os consumidores

valorizam nos produtos. Este aspecto é importante quando nos deparamos com os produtos

derivados do queijo de cabra. Todos os entrevistados ouvidos para a investigação deste

capítulo do livro observaram que o consumidor brasileiro se interessa em consumir um

produto menos intenso, no que se refere ao sabor e odor, quando comparados com os mesmos

produtos europeus.

Para finalizar a fase de pré-desenvolvimento, foi indagado aos entrevistados como

eram realizadas a seleção dessas ideias. Um dos proprietários da empresa “A” respondeu que

era mediante estudo de sua capacidade produtiva, porém o seu sócio relatou que a seleção das

ideias era oriunda de uma maneira mais intuitiva, empregando o método de tentativas

experimentais, por meio de testes de degustação na empresa, com prováveis consumidores.

Na empresa “B”, a seleção de suas ideias ocorre mediante estudo financeiro do novo produto

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 260

e, na “C”, observou-se os dois tipos de estudos, o de capacidade produtiva e o financeiro.

Com a nova ideia selecionada, as três empresas responderam que determinavam o conceito do

novo produto.

Na segunda fase do PDP rural, a de desenvolvimento do produto, foram coletados nas

empresas investigadas conjuntos de informações sobre a realização das atividades que

permeiam o projeto do produto. Foi observado que para a fabricação de seus queijos, todas as

empresas seguiam formulações francesas consagradas, com pequenas alterações em suas

especificações. Conforme os relatos, todas as empresas observam que esta escolha do padrão

de qualidade dos queijos franceses decorre de um processo historicamente construído, sendo

reconhecidas e desejadas pelo mercado consumidor brasileiro (ZUIN; ZUIN, 2009).

Entretanto, como observado anteriormente, todas as três empresas se preocupam em oferecer

para o mercado um queijo com sabor e odor menos marcantes. As três empresas relataram que

os queijos com características de sabor e odor mais intensos não são apreciados pelo mercado

brasileiro. Para Montigelli (2005), a adoção desta atividade de tropicalização do padrão de

qualidade europeu, para o produto queijo de cabra, deve ser realizada com cuidados. Para a

autora, o leite de cabra é uma excelente matéria-prima para a fabricação de queijos e, além do

visual, seu sabor e odor característicos transformam esse produto em especiarias finas, para o

consumo de um nicho de mercado. Entretanto, a autora acredita que o queijo de cabra pode

ser mais difundido como uma alternativa de um alimento com sabor diferenciado do que

apenas um artigo de luxo, concordando com a abordagem de mercado consumidor que foi

relatada pelo entrevistado A. Por outro lado, aponta Chalita et al. (2009), apesar de concordar

com a influência francesa na produção mundial de queijos, observa-se que as características

estruturais do mercado deste produto no Brasil são opostas àquelas do mercado mundial, que

se pauta pela tradição na produção artesanal e fortemente vinculada a uma região geográfica.

Para os autores, no Brasil, o consumo de queijo de cabra, apesar de crescente, ainda pode ser

considerado tímido, ainda que as tendências apontem a um crescimento no seu consumo,

como foi relatado por todas as empresas desta investigação.

Na etapa do projeto do processo, os produtores de todas as empresas visitadas

relataram que é feita uma avaliação das condições produtivas do laticínio quando se planeja

um novo produto. Após essa avaliação, caso necessite, é desenvolvido um novo processo,

comprando novos maquinários, adaptando por meio de reformas a planta de produção. Os

produtores ainda relataram que, normalmente, as novas tecnologias são adotadas em função

de atender as normas dos sistemas de garantia da qualidade da inspeção sanitária, como as

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 261

boas práticas de fabricação e higiene. Todas as empresas investigadas encontram-se

preocupadas com a manutenção de seus padrões de qualidade durante o desenvolvimento dos

seus produtos, no qual são realizados, frequentemente, testes físico-químicos e por

contaminações microbiológicas. Durante as atividades do processo de desenvolvimento do

protótipo de um novo produto, perguntamos se era confeccionado um modelo funcional do

produto e todos os entrevistados relataram que sim. Em relação à embalagem, foi indagado se

era feito um modelo ou um protótipo e os proprietários da empresa “A” relataram que não,

pois essas são simples, existindo farto material no mercado. Todavia, as empresas “B” e “C”

realizavam esta atividade, tendo sido contratadas empresas de design para o desenvolvimento

de seus rótulos e embalagens. Quanto à etapa de testes do produto, todas as empresas

pesquisadas responderam que realizam atividades para determinar a formulação dos seus

produtos, para as embalagens, análise sensorial e determinação da vida de prateleira do

produto.

No intuito de saber a respeito do estudo dos sistemas de garantia da qualidade na fase

de processamento do produto, indagamos aos produtores rurais se eram consideradas, durante

os trabalhos de PDP, as normas provenientes das Boas Práticas de Fabricação (BPF), Boas

Práticas de Higiene (BPH), Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (APPCC) e

Rastreabilidade. Com relação às BPF, tanto os proprietários da empresa “A” como da “B”

afirmaram que se preocupam e aplicam seus padrões nas suas rotinas produtivas, mas essas

atividades ainda não se encontram documentadas, apenas atendem às exigências da vigilância

sanitária. A empresa “C” apresentou um sistema de garantia da qualidade mais completo e

maduro, onde além das BPF foram observadas a APPCC e a rastreabilidade dos seus

produtos. Essa preocupação se deve ao fato de que, em um futuro próximo, a empresa tem o

interesse em exportar seus produtos para o mercado europeu.

Para a questão relativa à atividade de precificação de um novo produto, o produtor

rural da empresa “A” insere um valor a partir da observação dos custos de produção,

acrescido de uma margem de lucro. O proprietário ainda afirmou que gostaria muito de

colocar o preço observando, além do custo de produção e do lucro, o consumidor final, ou

seja, a partir do questionamento a esse de quanto desejaria pagar por seus produtos; todavia,

relatou considerar essa ação uma atividade utópica. Já as empresas “B” e “C”, utilizam

planilhas de custos, seguindo também as orientações dos valores dos produtos concorrentes

disponibilizados no mercado. De acordo com Boon e Kurtz (1998), durante os trabalhos de

determinação de preços, há quatro fatores levados em consideração: os lucros, os objetivos de

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 262

volume, o combate aos preços da concorrência e os objetivos de prestígio do produto. Esse

conjunto de fatores foi observado apenas na empresa “B”.

Quanto à última fase do PDP, a de pós-desenvolvimento, foram coletadas informações

relativas às atividades de melhoria contínuas realizadas pelas empresas. Para essa temática,

todos os entrevistados afirmaram que essa atividade ocorria de maneira informal, por meio de

melhorias pontuais nos seus produtos e processos. Ainda com relação à formalidade, um dos

produtores da empresa “B” afirmou que gostaria de documentar todas as atividades da

empresa, mas lhe faltava uma estrutura funcional para isso, com funcionário e local

adequados. Para os seus produtos, as informações que irão gerar melhorias são coletadas

diretamente nos consumidores, por meio de um número de telefone, disponibilizado nas

embalagens e por testes de degustação nos locais de venda. Seus processos, por outro lado,

são aperfeiçoados por meio de sugestões dos funcionários, sendo de interesse tanto do

empresário como de alguns de seus funcionários a adoção das atividades de melhoria. Zuin e

Zuin (2008) relatam em seus estudos que o processo de melhoria contínua nos produtos e

processos nas propriedades rurais pode ser um caminho para ser criada no ambiente da

empresa familiar uma rotina para a inovação.

Em outro momento da entrevista, foi perguntado às empresas sobre as participações

dos clientes e fornecedores nos trabalhos do PDP. As empresas “A” e “B” relataram que os

clientes (varejo e atacado) não participam das atividades de PDP. Já na empresa “C”,

disponibilizam-se para os clientes mais antigos amostras do novo produto que será lançado e

essa atividade se dá por meio de testes de degustação. Nesse mesmo sentido, quisemos

averiguar a participação de fornecedores no desenvolvimento dos produtos da empresa “A”,

sendo a resposta negativa a essa forma de parceria. Ao contrário da empresa “A”, as

organizações “B” e “C” relataram que os fornecedores participam diretamente do

desenvolvimento dos produtos e embalagens. Para Toledo e Simões (2010), é importante

aceitar as sugestões dos clientes e fornecedores, bem como de funcionários nas rotinas das

atividade do PDP. Para os autores, esse trabalho em conjunto diminui as incertezas inerentes

produtivas e mercadológicas que cercam o desenvolvimento de um novo produto.

A respeito da taxa de sucesso de novos produtos desenvolvidos nos últimos cinco

anos, as empresas “A” e “B” possuem porcentagem de êxito acima de 70%, enquanto que a

empresa “C” possui uma média de 50%. Essas taxas de sucesso refletem as mesmas

porcentagens encontradas em vários setores da indústria de alimentos brasileira (TOLEDO et

al., 2005). Quando indagamos o proprietário da empresa “B” sobre essa alta taxa de sucesso

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 263

de seus produtos, ele relatou que poderia ser a qualidade do produto reconhecida por seus

consumidores. Ele ainda observou que uma parte significativa do seu mercado consumidor

teve contato com os produtos derivados do leite de cabra em viagens realizadas na Europa,

voltando a consumi-los aqui no Brasil.

No que se refere à adoção de inovações tecnológicas, a empresa “A”, nos últimos dois

anos, realizou essa atividade apenas nos seus processos, como, por exemplo, a mudança na

forma de resfriamento do leite. Quanto aos benefícios trazidos por essas inovações, foi

verificado, pelo produtor rural, um maior período de tempo do seu padrão de qualidade do

produto, devido ao congelamento mais rápido do leite. Nas empresas “B” e “C” não

ocorreram inovações tecnológicas nos seus processos no mesmo período. De acordo com

todos os entrevistados, as inovações tecnológicas em seus processos têm o objetivo de

cumprir com as exigências prescritas pela vigilância sanitária.

Na última etapa da entrevista, foi indagado aos proprietários rurais quais seriam as

tendências ou perspectivas para o PDP em suas empresas. Todas as empresas responderam

que irão, em médio prazo, ampliar a capacidade de desenvolvimento de novos produtos. Do

ponto de vista mercadológico, os proprietários da empresa “A” também gostariam de poder

comercializar os seus produtos em outras regiões do estado, mas sentem-se desanimados em

adotar todas as prescrições da legislação sanitária. A empresa “B” pretende desenvolver

parcerias com os pontos de venda, fazendo e comercializando pizzas com queijo de cabra. A

empresa “C” espera desenvolver novos produtos, como iogurtes e patês de leite de cabra.

Com relação ao investimento de novas tecnologias, os proprietários das empresas “A” e “B”

caminham para investir em novas tecnologias, principalmente adquirindo maquinários mais

modernos, com o objetivo de reduzir os seus custos de produção. Já a empresa “C”, irá

buscar novos investimentos em maquinários e embalagens mais atrativas, sendo um dos seus

objetivos, como relatado, a exportação dos seus produtos para o mercado europeu. Em seus

estudos, Souza e Filippi (2008) afirmam que, a partir da década de 1990, o ambiente de

negócios passou a ser mais complexo e, atualmente, os produtores rurais enfrentaram um

novo ambiente para os seus produtos, o qual não foi observado nas décadas anteriores.

Mas nem sempre as empresas querem ou precisam inovar, como no caso da empresa

“A”, na qual os dois proprietários se contradisseram quanto à decisão de inovar, ou não, seus

produtos e processos. No entanto, é necessário desenvolver um novo olhar nas empresas

familiares rurais, nas quais se busca, frequentemente, aperfeiçoar os processos de negócios,

através do aprendizado dos funcionários e de inovação permanente. Tavares (2009) concorda

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 264

quando comenta a respeito do uso de inovação para buscar liderança em resposta à

competição, ou seja, o uso da inovação como estratégia para a sobrevivência no mercado.

Rozenfeld et al. (2005) argumenta que as mudanças inerentes à produção e aos produtos

exercem um impacto positivo no avanço dos seus processos inovativos, tornando as empresas

mais competitivas. Para Gollo (2006), a inovação e as estratégias de cooperação competitiva

representam possibilidades reais de aumentar a competitividade e promover o

desenvolvimento regional num mercado cada vez mais globalizado. Em seus estudos, Afuja

(2002) observou nas organizações uma correlação positiva entre o potencial inovativo e a

quantidade de relacionamentos cooperativos entre os funcionários. Dessa maneira, pode-se

considerar que as inovações podem não ser sempre eficazes para o crescimento de uma

empresa, mas, ao menos, podem colaborar para que se mantenham no mercado e sobrevivam

à concorrência, sendo, nos melhores casos, uma alavanca para o desenvolvimento financeiro e

do prestígio da empresa.

Para finalizar, buscamos conhecer quais os problemas e dificuldades que as empresas

enfrentam ao longo do PDP. Em um nível pessoal, os proprietários da empresa “A” relataram

que uma das dificuldades enfrentadas se refere às mudanças das rotinas de trabalho. Segundo

os entrevistados, os momentos de mudança no processo e manejo dos animais causam nos

funcionários grande ansiedade, fato que muitas vezes os levam a não adotarem na sua

plenitude as novas atividades. Já o entrevistado da empresa “B” observou que atualmente está

muito difícil encontrar no mercado de trabalho funcionários capacitados para trabalhar com a

fabricação de queijos finos de cabra. Esse cenário o levou a oferecer aos seus funcionários,

além de um bom salário, um programa de participação nos lucros da empresa. Quando

indagado sobre quanto era a porcentagem de participação no lucros dos funcionários, bem

como os salários dos funcionários, o entrevistado não respondeu. Em seus estudos Zuin, Zuin

e Manrique (2011) relatam a importância dos cursos de capacitação dos funcionários e

gerentes das propriedades rurais para alcançar o sucesso nos processos produtivos

agropecuários.

Outros problemas enfrentados por todas as empresas se referem aos fornecedores. As

dificuldades relacionadas aos fornecedores dizem respeito ao valor e à quantidade de

matérias-primas que as empresas familiares adquirem: por necessitarem um volume pequeno

de produtos, os seus preços são altos, aumentando significativamente os seus custos de

produção.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 265

Conclusões

Com o corpo deste capítulo exposto, podemos chegar a algumas conclusões.

Observamos nas três empresas rurais que o processo de agroindustrialização do campo, por

meio do desenvolvimento de novos produtos alimentícios, visando o aumento da renda do

produtor rural, depende de vários fatores técnicos e gerenciais para alcançar os sucessos

produtivos e comerciais. Um dos fatores que verificamos nos três caprinocultores foi que o

mix de produtos mais lucrativos, aqueles nos quais a matéria-prima foi transformada em

queijo, dependem diretamente do acesso a um mercado consumidor de tamanho e volume de

demanda adequados.

Uma das dificuldades que o pequeno e médio produtor rural encontra para

disponibilizar os seus produtos em vários mercados consumidores simultaneamente, tem,

frequentemente, origem no atendimento das normas da legislação sanitária brasileira, no qual

estas se encontram em constante aperfeiçoamento. Para minimizar e resolver essas

dificuldades, os caprinocultores deste estudo estão adquirindo novos maquinários,

melhorando os seus processos produtivos, garantindo os padrões de qualidade exigidos pelos

órgãos reguladores governamentais dos seus produtos e processos.

Outro fator que se mostrou determinante para o sucesso do negócio diz respeito à

atividade de tropicalização que sofreram os queijos de cabra brasileiros, que foi realizada

pelos caprinocultores para atender às necessidades e desejos quanto a sabor e odor do queijo

fino de cabra exigidos pelo consumidor final. O processo de tropicalização foi observado nas

três empresas estudadas, nas quais o seu sabor e odor foram suavizados, quando comparados

com os produtos similares europeus.

Para os produtores rurais deste estudo, uma das deficiências mais marcantes nos seus

processos produtivos diz respeito à falta de mão de obra qualificada nas etapas produtivas

relacionadas ao processamento dos produtos derivados do leite de cabra. Para minimizar este

problema, seria interessante o aumento de programas governamentais que pudessem capacitar

tanto os funcionários como os proprietários rurais nesta temática produtiva. Entretanto, tanto

o formato como o conteúdo destes cursos devem obedecer a uma postura entre sujeitos que

seja dialógica.

Finalmente, observamos que todas as propriedades rurais desta investigação, apesar de

não documentarem os seus vários procedimentos produtivos ligados à gestão do negócio,

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 266

apresentam um bom gerenciamento de suas atividades empresariais, o que contribui com a

sobrevivência e aperfeiçoamento de seus processos produtivos.

Como sugestão de trabalhos futuros desdobrados desta pesquisa seria interessante o

estudo dos processos de capacitação ofertados pelos órgãos de extensão rurais

governamentais e privados para os produtores rurais e seus funcionários que desenvolvem

produtos em suas propriedades rurais.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao Prof. Dr. Rubens Nunes (FZEA-USP) pelas sugestões que nos

forneceu para a melhora deste capítulo de livro.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 268

QUARTA PARTE

INOVAÇÕES, REDES SOCIOTÉCNICAS E CONSTRUÇÃO DE

MERCADOS

Agregação de valores a espécies do Cerrado como oportunidade de inserção

da agricultura familiar em mercados diferenciados

Janaína Deane de Abreu Sá Diniz

Denise Barbosa-Silva

Cláudia Souza

Adelaide dos Santos Figueiredo

Magda Eva Soares de Faria Wehrmann

Flávio Murilo Pereira da Costa

Contexto e objetivos do trabalho

O objetivo deste artigo é discutir a abrangência de algumas experiências de agregação

de valor a espécies vegetais nativas do Cerrado, geralmente coletadas por comunidades

agroextrativistas da região Centro-Oeste e comercializadas por meio de redes de organizações

comunitárias e alguns canais de distribuição específicos. Discute-se o processo de

envolvimento dos agroextrativistas familiares locais nos novos canais de distribuição que

começam a se estruturar a partir da valorização de produtos do Cerrado, no Plano de

Promoção das cadeias de produtos da sociobiodiversidade e em programas ou iniciativas

públicas e privadas. No contexto dos projetos de desenvolvimento de comunidades

agroextrativistas, o termo "valorização" faz referência às estratégias de promoção de produtos

florestais a partir da introdução de inovações tecnológicas nos processos extrativos e

produtivos, associada à valorização da origem e das formas tradicionais de exploração desses

produtos.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 269

O artigo também aborda experiência de projeto focado na agregação de valor a produtos

florestais não madeireiros do Cerrado em áreas de reserva legal de agricultores familiares do

Distrito Federal e Entorno, onde a questão da agregação de valor foi abordada não apenas na

dimensão econômica, mas também dos aspectos sociais e de formação, culturais e ambientais.

Sociobiodiversidade do Cerrado

Nesta seção é apresentada uma contextualização a respeito das cadeias de produtos

florestais não madeireiros (PFNM), ao abordar os usos tradicionais e as potenciais inovações

aplicadas às comunidades extrativistas e introduzir o conceito de sociobiodiversidade. As

redes envolvendo agricultores familiares e extrativistas que exploram PFNM são destacadas,

abordando-se aspectos sociotécnicos, organizacionais e institucionais, a fim de se promover a

construção de mercados para produtos do extrativismo do Cerrado.

O que a Amazônia tem que o Cerrado não tem?

Os maiores biomas brasileiros são a Amazônia e o Cerrado, sendo este também um

dos ecossistemas de maior biodiversidade do planeta. A Amazônia ocupa 49,3% do território

nacional e abriga vastos estoques de madeira comercial e de carbono, além de possuir uma

grande variedade de produtos florestais não madeireiros, que permite a manutenção de

diversas comunidades locais. Com a pressão sofrida nos últimos anos, o bioma necessita

modelos de desenvolvimento com atividades econômicas baseadas em outras dimensões da

sustentabilidade (MACHADO, 2008).

O Cerrado atinge aproximadamente 24% do território brasileiro e se apresenta como

uma das regiões de maior diversidade do planeta, com um alto grau de endemismo de

espécies vegetais, figurando entre os 34 hotspots mundiais de biodiversidade

(MITTERMEIER et al., 2005). Em contrapartida, devido à expansão agrícola desordenada, é

um dos biomas mais ameaçados do planeta (SFB, 2010). Sua flora possui mais de 12 mil

espécies de plantas, muitas com potencial alimentício, ornamental, condimentar, corante,

têxtil, corticeiro, tanífero, oleaginoso, apícola, medicinal, madeireiro, além do uso em

artesanato (ALMEIDA et al., 1998; ÁVIDOS; FERREIRA, 2000; GUARIM-NETO;

MORAIS, 2003; SILVA-JÚNIOR et al., 2005; AQUINO et al., 2007; MOREIRA; GUARIM-

NETO, 2009; RONDON-NETO et al., 2010).

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 270

Algumas iniciativas governamentais, não governamentais e privadas têm conseguido

agregar valor a espécies do Cerrado, garantindo, assim, a conservação de áreas importantes

para a manutenção do bioma. Entretanto, comparando-se com o bioma Amazônia, ainda são

poucos os estudos que relatam a situação atual e algumas mudanças ocorridas em cadeias que

utilizam produtos do extrativismo do Cerrado, pelo menos do ponto de vista da inovação e da

construção de mercados específicos onde essas espécies são valorizadas.

A opção de expansão do agronegócio no Cerrado, como forma de preservar o bioma

Amazônia, é evidente em diferentes esferas governamentais e privadas. Em seu discurso de

posse, a presidente Dilma Roussef enfatizou a vocação agrícola da Região Centro-Oeste,

associando a preocupação com a biodiversidade apenas para o bioma Amazônia. Um trecho

desse discurso destaca o tratamento diferenciado aos biomas, onde a presidente reforça que

seu governo pretende seguir “[...] preservando e respeitando a biodiversidade da Amazônia no

norte, dando condições à extraordinária produção agrícola do Centro-Oeste [...]”93

.

Além de não estar associado às prioridades ambientais para preservação da

biodiversidade, o Cerrado também não é foco da maioria dos projetos internacionais de

financiamento na área ambiental, o que dificulta a consolidação de linhas de pesquisa voltadas

para o desenvolvimento de mais conhecimento sobre muitas espécies que compõem a

diversidade biológica do bioma, assim como de tecnologias adaptadas às populações que nele

vivem.

Usos tradicionais e potenciais para os produtos da sociobiodiversidade

De acordo com a Portaria Interministerial nº 239/2009, que estabelece orientações para

a implementação do Plano Nacional de Promoção das Cadeias de Produtos da

Sociobiodiversidade, os produtos da sociobiodiversidade são bens e serviços (produtos finais,

matérias-primas ou benefícios) gerados a partir de recursos da biodiversidade, voltados para a

formação de cadeias produtivas de interesse dos povos e comunidades tradicionais e de

agricultores familiares, que promovem a manutenção e valorização de suas práticas e saberes

e asseguram os direitos daí decorrentes, gerando renda e promovendo a melhoria de sua

qualidade de vida e do ambiente em que vivem (BRASIL, 2009).

93

Discurso durante compromisso constitucional perante o Congresso Nacional. Disponível em:

http://www2.planalto.gov.br/imprensa/discursos/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-durante-

compromisso-constitucional-perante-o-congresso-nacional.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 271

A cadeia produtiva da sociobiodiversidade é um sistema integrado, constituído por

atores interdependentes e por uma sucessão de processos de educação, pesquisa,

manejo, produção, beneficiamento, distribuição, comercialização e consumo de

produto e serviços da sociobiodiversidade, com identidade cultural e incorporação

de valores e saberes locais dos Povos e Comunidades Tradicionais e Agricultores

Familiares (PCTAF) e que asseguram a distribuição justa e equitativa dos seus

beneficios. (BRASIL, 2008, p. 28).

Já o conceito de sociobiodiversidade expressa “[…] a inter-relação entre a diversidade

biológica e a diversidade de sistemas socioculturais” (BRASIL, 2008, p. 29).

Os produtos da sociobiodiversidade são historicamente manejados pelos povos e

comunidades tradicionais e por agricultores familiares em todos os biomas brasileiros e têm

uma importância determinante para a sua sobrevivência e reprodução socioambiental e

cultural. Contribuem de forma significativa também para a conservação da biodiversidade,

para a segurança alimentar e nutricional, a economia e o desenvolvimento sustentável local,

regional e nacional.

Devido a diversos aspectos históricos e atuais, os produtos florestais não madeireiros

(PFNM) também podem ser considerados produtos da sociobiodiversidade. Os PFNM já

foram conhecidos como “[…] produtos florestais menores, outros produtos florestais,

produtos florestais secundários, produtos florestais especiais, produtos menores, outros

produtos florestais econômicos, ou, ainda, como produtos florestais não industriais”

(TABUNA, 2000). A Organização das Nações Unidas para a Alimentação (FAO/ONU)

define esses produtos como “bens de origem biológica, exceto a madeira, fornecidos por

florestas, bosques e outras árvores em áreas não florestais”94

. Os PFNM vêm assumindo papel

de destaque, pois se apresentam como fonte alternativa de renda possuindo potencial de

incentivo econômico para a exploração sustentável do ecossistema (MACHADO, 2008;

SOARES et al., 2008; FIEDLER et al., 2008). Apesar da grande importância socioeconômica

dos PFNM, existe ainda pouca informação sistematizada sobre volumes, valores, processos de

produção (manejo e conservação), industrialização e comercialização desses produtos. Essa

escassez de informações constitui uma barreira para sua conservação e desenvolvimento de

estratégias mercadológicas necessárias ao crescimento e desenvolvimento das atividades

relacionadas ao extrativismo de PFNM. Isso se deve principalmente, pela sazonalidade,

temporalidade e variabilidade de sua produção e mercados (FIEDLER et al., 2008).

No caso das espécies frutíferas do bioma Cerrado, além do consumo in natura, muitos

também podem ser consumidos em forma de doces e bebidas, além de apresentarem outros

94

http ://www.fao.org/forestry/site/11486/fr/page.jsp. Acesso em 10/07/04.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 272

usos como: alimentício da fauna silvestre, apícola, aromatizante, artesanal, condimentar,

corticeiro, madeireiro, medicinal, oleaginoso, ornamental, tanífero, têxtil, tintorial e industrial

(ALMEIDA et al., 1998; ÁVIDOS; FERREIRA, 2000; GUARIM-NETO; MORAIS, 2003;

SILVA-JÚNIOR et al., 2005; AQUINO et al., 2007; RIBEIRO et al., 2008; MOREIRA;

GUARIM-NETO, 2009).

Além da obrigatoriedade legal, o incentivo à manutenção e recuperação de áreas de

reserva legal torna-se fundamental, visto que as áreas protegidas por Unidades de

Conservação (Estaduais e Federais) são insignificantes no Cerrado. Por isso, as reservas legais

devem ser consideradas altamente relevantes como ferramenta para proteger os recursos

naturais (KLINK; MACHADO, 2005).

Segundo o Plano Estratégico de Desenvolvimento do Centro-Oeste (2007-2020), com

a maior extensão do espaço regional, os cerrados apresentam uma forte e crescente presença

antrópica com a expansão da agropecuária, principalmente grãos e gado, acompanhada do

rápido aumento da população e formação de importantes centros urbanos regionais. Embora a

gestão ambiental no bioma seja muito frágil e de limitada capacidade de controle das pressões

antrópicas, foram criadas algumas unidades de conservação para preservar parte da

biodiversidade, como Parques Nacionais, alguns parques estaduais e estações ecológicas, que

correspondem a 6,5% da área total de cerrado (BRASIL, 2007).

Alguns estudos demonstram que grande parte das espécies lenhosas encontradas no

Cerrado tem uso medicinal popular. Podem ser destacados o cajuzinho-do-cerrado

(Anacardium humile), o araticum (Annona crassiflora), o baru (Dipteryx alata) a sucupira

(Bowdichia virgilioides), a mangaba (Hancornia speciosa), o pau-santo (Kielmeyera

coriacea), o pau-terra (Qualea grandiflora) e o jatobá (Hymenaea stigonocarpa) (ALMEIDA

et al., 1998; GUARIM-NETO; MORAIS, 2003; SILVA-JÚNIOR et al., 2005; AQUINO et

al., 2007; RIBEIRO et al, 2008; MOREIRA; GUARIM-NETO, 2009). Outras espécies como

o pequi (Caryocar brasiliense), buriti (Mauritia flexuosa), pimenta de macaco (Xylopia

aromatica), murici (Byrsonima coccolobifolia), além das já citadas anteriormente, mangaba,

araticum, baru e jatobá, têm sido largamente empregadas na alimentação (RIBEIRO et al.,

2008; MOREIRA; GUARIM-NETO, 2009).

Tendo em vista a importância dos PFNM e os riscos associados com o aumento de sua

escala de produção, o manejo desses produtos se faz necessário. Os PFNM, além de ser uma

forma de tornar a floresta rentável, geram atividades que a valorizam e garantem a

continuidade de padrões culturais de povos e comunidades regionais, gerando alternativa

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 273

econômica. Pode-se, assim, contribuir para a redução do êxodo rural e das taxas de

desmatamento, possibilitando a autogestão de grupos comunitários (MACHADO, 2008;

SOARES et al., 2008). Em alguns casos, o manejo sustentável pode ser um requisito para um

possível processo de certificação e alcance de selos de qualidade para os produtos gerados

(MACHADO, 2008).

Dessa forma, as possibilidades de manejo ou outros tipos de exploração e conservação

pós-colheita podem estar associados a processos de inovação de grupos de atores:

agricultores, extrativistas, agroextrativistas e organizações relacionadas, que fazem uso de

espécies nativas do Cerrado. As inovações surgem, portanto, não apenas nos novos usos e

novas práticas agroextrativistas e de conservação pós-colheita, mas também nas novas

possibilidades de mercado para esses produtos. Para Wilkinson e Lima (2002), o agricultor

precisa não apenas de novos conhecimentos tecnológicos, mercadológicos e de gestão, mas

também deve repensar suas práticas agrícolas de acordo com critérios ambientais e estímulos

do próprio mercado.

Possibilidades também de inovações no manejo de alguns PFNM são relatadas por

Shackleton et al. (2007), em referência a produtos que tiveram as demandas locais e regionais

aumentadas, incentivando os pequenos agroextrativistas a definir novas formas de aumentar a

disponibilidade de determinadas espécies, não dependendo apenas da coleta da floresta.

Assim, também começaram a selecionar e a plantar algumas dessas espécies em áreas

próximas às suas casas e propriedades. Caso semelhante ao que está acontecendo com o açaí

(Euterpe oleracea) na Amazônia e, em menor escala, com o pequi no Cerrado. Ainda, o

crescente aumento da demanda pelo baru (Dipteryx alata) nos últimos dez anos pode, num

médio prazo, incentivar também o plantio de mais árvores, visando o atendimento da

crescente demanda do fruto.

As redes de agricultores familiares e extrativistas: abordagem sociotécnica,

organizacional e institucional

As estruturas em rede representam práticas colaborativas entre organizações sem

privilegiar a hierarquia, uma característica da sociedade industrial. Nesta, a economia de

escala era considerada o objetivo principal, ao passo que uma estrutura sem hierarquia parece

ser uma característica da recente sociedade do conhecimento. Cada participante de uma rede

possui, de certa forma, um pouco de poder. A rede, sendo um conjunto de atores, pode

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 274

também exercer esse poder. Todos os atores são empoderados por definição e não existe

concessão ou delegação de poder a outro ator, mas, na realidade, uma coordenação de

autonomias (MARTINHO, 2006). As redes constituem uma proposta de realização de

trabalho coletivo e da circulação do fluxo de informações, elementos essenciais ao processo

cotidiano de transformação social (VEIGA; RECH, 2001); no setor produtivo, “as redes

permitem uma produção em grande escala, fato impossível para uma pequena cooperativa”

(VEIGA e FONSECA, 2002, p. 61).

A necessidade de união de diversos atores ou organizações não é suficiente para

sustentar uma rede. Também é importante se considerar as experiências de aprendizagem e de

cooperação como resultados do processo de organização (MENDONÇA et al., 2007).

Apesar do potencial que as novidades apresentam para aqueles que as produzem e as

utilizam, por serem circunscritas e adaptadas às condições locais e por serem potencialmente

produtoras de mudanças em diferentes domínios da produção, apenas desenvolver novidades

não é suficiente para a geração de mudanças sociais mais amplas. Para que essas mudanças

ocorram alinhadas a um paradigma do desenvolvimento rural sustentável, torna-se necessário

que, junto à produção de novidades, ocorram processos de aprendizagem coletiva, de

formação de redes sociais e de alinhamento dos objetivos e expectativas dos atores envolvidos

nessas redes e processos de aprendizagem (OLIVEIRA et al., 2011).

Os nichos de mercado ou sociotécnicos podem ser considerados ambientes onde os

atores estão dispostos a investir em melhorias de uma nova tecnologia e no desenvolvimento

de novos mercados (OLIVEIRA et al., 2011, p. 108). As atuais redes de serviços, criadas com

o objetivo de articular os governos federal, estaduais e municipais com a sociedade civil

organizada para o desenvolvimento e adequação de tecnologias e mercados, podem ser

consideradas redes institucionais, que vêm contribuindo para a construção de mercados para

diversos produtos da sociobiodiversidade, entre eles os frutos do Cerrado.

Construção de mercados para os frutos do Cerrado

Os mercados locais para PFNM, nos quais as espécies vegetais nativas do Cerrado

estão incluídas, tendem ainda a ser relativamente pouco reconhecidos, subestimados e

negligenciados. Além disso, não existem informações detalhadas sobre a magnitude da grande

maioria das espécies, pois sua estrutura local é bastante espalhada e os dados estatísticos

pouco confiáveis (SHACKLETON et al., 2007). A maioria dos estudos existentes concentra-

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 275

se nos produtos coletados para mercados internacionais (ARNOLD, 1998, apud

SHACKLETON et al., 2007), mesmo que, em alguns casos, esses não sejam os mais

importantes, em termos de contribuição para a renda e os empregos rurais, nem em

quantidades envolvidas. No caso do bioma Cerrado, algumas espécies podem atingir

mercados internacionais diferenciados, porém, como nas regiões estudadas por Shackleton et

al (2007), a maior demanda por essas espécies ainda está nos mercados locais. Esses autores

relatam, ainda, que começam a aumentar as preocupações de que o foco que tem sido dado ao

potencial dos PFNM para os mercados internacionais tem ofuscado a real importância e as

oportunidades que podem ser encontradas em nível local.

De Beer e McDermott (1996, apud SHACKLETON et al., 2007) afirmam que

qualquer iniciativa relacionada à comercialização de PFNM deve explorar inicialmente os

mercados locais, seguidos dos mercados regionais e nacionais e, somente se eles não

fornecerem oportunidades suficientes, então considerar os mercados internacionais. Os

autores alegam que os mercados internacionais são os mais difíceis entre todos, pois os

padrões de qualidade são elevados, os modismos e movimentos da concorrência são de difícil

previsão e o contato direto com os clientes, para atender reclamações e problemas,

dificilmente é possível.

O mercado diferenciado pode ser considerado um mercado de nicho. É o mercado que

atribui um valor aos produtos pelas suas características diferenciadas daqueles que são

produzidos em grande escala, ou seja, produtos que possuem identificação de origem,

diferencial orgânico, oriundos da sociobiodiversidade ou do comércio justo, entre outros.

O processo de comercialização apresenta-se como um dos principais dilemas da

agricultura familiar, sendo que o acesso aos mercados institucionais é um fenômeno recente

no país. Consideram-se como mercados institucionais de alimentos, aqueles formados por

demandas de produtos e serviços para fins de uso no âmbito das instituições públicas

(alimentação escolar, distribuição de alimentos às populações carentes, fornecimento a

hospitais, presídios, creches, etc.). Os mercados institucionais constituem um instrumento

importante, mas ainda pouco explorado com o objetivo de favorecer os agricultores

familiares.

Ramalho Maciel (2008) caracteriza o mercado institucional como aquele que envolve

as três esferas governamentais (municipal, estadual e federal) em todas as suas operações de

compra de alimentos, tanto aquelas de caráter contínuo, quanto as aquisições de caráter

esporádico. O autor cita como de caráter contínuo as aquisições para creches, escolas,

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 276

hospitais, etc., e as de caráter esporádico, aquelas que atendam às populações em casos de

calamidade pública e outras referentes às políticas de Estado e Programas de governo, como o

Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

As primeiras ideias sobre o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) surgiram

durante a formulação do Programa Fome Zero, lançado em outubro de 2001 pelo Instituto da

Cidadania. Naquele momento, o Programa Fome Zero insere-se em um debate mais amplo

sobre a segurança alimentar e nutricional, que emergiu na década de 1990 e no início deste

século no país.

O PAA95

foi concebido no conjunto das políticas públicas do Programa Fome Zero.

Segundo Mattei (2007), “o Programa visa implementar ações no âmbito das políticas

agrícolas e de segurança alimentar com o objetivo de fortalecer a política global de combate à

fome” (p.33). Essa nova perspectiva de política pública contribuiu também para ampliar e

diversificar as linhas de atuação do componente crédito para a produção via o já existente

Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

O PAA tem a perspectiva de conectar a demanda por alimentos, impulsionada pelos

programas públicos, com a produção originada da agricultura familiar carente de mercados,

incluídos os assentamentos do Programa de Reforma Agrária. A lei que instituiu o PAA

desburocratizou o processo de aquisição dos produtos da agricultura familiar para o

atendimento aos programas públicos, dispensando as regras de licitação requeridas pela Lei

8.666, de 1993. Com isso, criou-se um marco jurídico capaz de possibilitar a presença mais

efetiva do Estado no apoio aos processos de comercialização desenvolvidos por essa categoria

específica de produtores. Para Ramalho Maciel (2008), “a superação dos entraves impostos

pela licitação possibilitou um contexto em que vínculos de confiança – uma vez que respostas

mais céleres são dadas - entre a parte compradora (Estado) e a parte vendedora (agricultores

familiares) fossem estabelecidos” (p.14). O autor argumenta que o desenvolvimento de tais

vínculos diminui a necessidade de controle burocrático, o que resulta em menores custos de

transação, cujo resultado é uma maior aproximação entre Estado e sociedade civil.

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) tem por objetivo contribuir

para o crescimento e o desenvolvimento biopsicossocial, a aprendizagem, o rendimento

escolar e a formação de hábitos saudáveis dos alunos em relação à alimentação, por meio de

95

Surgiu como um instrumento de política pública instituído pelo artigo 19 da Lei nº. 10.696, de 2 de julho de

2003. Sua regulamentação deu-se, atualmente, pelo Decreto nº 6.447, de 07 de maio de 2008, que revogou o

Decreto nº. 5.873, de 15 de agosto de 2006.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 277

ações de educação alimentar e nutricional e da oferta de refeições que fomentem as suas

necessidades nutricionais durante o período letivo.

A aquisição de produtos da sociobiodiversidade é prevista pelo Programa, pois em

suas diretrizes ele propõe o emprego da alimentação saudável e adequada, compreendendo o

uso de alimentos variados, seguros, que respeitem a cultura, as tradições e os hábitos

alimentares saudáveis; o apoio ao desenvolvimento sustentável, com incentivos para a

aquisição de gêneros alimentícios diversificados, produzidos em âmbito local e

preferencialmente pela agricultura familiar e pelos empreendedores familiares rurais,

priorizando as comunidades tradicionais indígenas e de quilombolas. Além disso, a Lei

11.947/09 prevê em seu artigo 14 que do total dos recursos financeiros repassados pelo

FNDE, no âmbito do PNAE, no mínimo 30% deverão ser utilizados na aquisição de gêneros

alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas

organizações, dando prioridade aos assentamentos da reforma agrária, às comunidades

tradicionais indígenas e às comunidades quilombolas.

O governo federal criou, há 3 anos, um outro instrumento de comercialização: a

Política de Garantia de Preços Mínimos para produtos da sociobiodiversidade (PGPM-Bio).

Essa iniciativa possibilita a sustentação de preços de produtos da biodiversidade no mercado,

o que contribui para a preservação dos recursos naturais. O Decreto-Lei nº 79 de 1966

instituiu normas para fixação de preços mínimos e aquisição de produtos agropecuários. A Lei

nº 11.775, de 2008, permitiu a modalidade de Subvenção Direta, que prevê ao extrativista o

recebimento de um bônus caso efetue a venda de seu produto por preço inferior ao preço

mínimo fixado pelo Governo Federal, ou seja, a PGPM-Bio. A Conab elabora e

operacionaliza os Preços Mínimos. Já estão na PGPM-Bio onze produtos da

sociobiodiversidade brasileira e, dentre eles, alguns de ocorrência no Cerrado. Os produtos

são: açaí, babaçu, borracha natural do Bioma amazônico, pequi (fruto), piaçava (fibra),

castanha do Brasil, umbu (fruto), baru (fruto), mangaba, cera de carnaúba tipo 4 e pó cerífero

Tipo B96

.

Procedimentos metodológicos

Seguindo o referencial da literatura com os temas abordados na seção anterior, foi

desenhada a pesquisa de campo para coleta de dados primários para estudos de caso, assim

96

http://www.conab.gov.br/OlalaCMS/uploads/arquivos/386a29b4c12b75c01e3e01ead8f92008

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 278

como para a condução de uma pesquisa-ação com comunidades de agricultores familiares do

Distrito Federal e Entorno. Para a seleção das redes de organizações coletivas e privadas,

foram identificadas as origens dos principais produtos a base de espécies do Cerrado que eram

comercializados no Distrito Federal, principalmente no Plano Piloto de Brasília. Algumas

dessas redes assumem o papel de canais de distribuição para os produtos florestais não

madeireiros (PFNM) do bioma Cerrado, mas também possibilitam a troca de informações

relacionadas com processos e tecnologias adotadas pelos atores associados.

Na pesquisa-ação com comunidades de agricultores familiares do DF e Entorno, a

proposta metodológica abrangeu quatro dimensões de pesquisa e de ação: socioeconômica,

tecnológica, ambiental e de formação de agricultores familiares, que foram desenvolvidas de

forma integrada entre as diferentes instituições participantes.

Resultados e discussões de uma pesquisa-ação com comunidades de agricultores

familiares do Distrito Federal e Entorno

O projeto Pequisação97

é um projeto de pesquisa e extensão multidisciplinar e

interinstitucional, que trabalha com quatro dimensões que se complementam na agregação de

valor, assim como na sustentabilidade econômica e ambiental de frutos nativos do Cerrado em

áreas de reserva legal de agricultores familiares do Distrito Federal e Entorno. As dimensões

são desenvolvidas de forma integrada, envolvendo as instituições participantes (Faculdade

UnB de Planaltina, Emater-DF, Instituto Federal de Brasília (IFB) campus Planaltina,

Universidade Católica de Brasília e Embrapa Cerrados), a fim de contribuir para a

preservação e inovação no uso de produtos com frutos do Cerrado. As comunidades

escolhidas para realizar as atividades propostas foram o Assentamento Colônia I, localizado

no município de Padre Bernardo-GO, o Assentamento Márcia Cordeiro Leite (“Monjolo”) e o

Núcleo Rural Sítio Novo (“Sarandi”), ambos localizados na Região Administrativa de

Planaltina-DF.

Dimensão socioeconômica

A fim de mapear as principais demandas, os fornecedores e a origem dos frutos do

Cerrado consumidos no Distrito Federal, foram realizadas entrevistas semidirigidas em

97

Agregação de valor às espécies vegetais nativas do Cerrado em áreas de reserva legal de produtores

familiares do Distrito Federal e Entorno. Edital MCT/CNPq/MDA/SAF/Dater No 033/2009.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 279

estabelecimentos do ramo alimentício que trabalham com pelo menos um tipo de fruto. O

questionário foi aplicado em 18 estabelecimentos, os quais foram classificados em:

restaurantes naturais, regionais e gourmet, sorveterias, panificadoras, lojas de produtos

naturais e feiras de abastecimento.

Na região do DF e Entorno, foi observado que ainda não existe uma cadeia produtiva

definida dos frutos do Cerrado, visto que a demanda e a oferta dos mesmos é bastante

diversificada. Constatou-se que o consumo de frutos nativos do Cerrado ainda é pequeno e os

estabelecimentos, na sua grande maioria, trabalham com apenas um ou dois frutos, com

exceção de sorveterias que produzem picolés e sorvetes com uma maior variedade de

espécies. O maior consumo de produtos e/ou pratos com frutos do Cerrado ocorre nos

restaurantes naturais e regionais. Nos restaurantes regionais, o pequi (Caryocar brasiliense)

pode ser encontrado em 46,67% dos estabelecimentos, seguido pela guariroba (Syagrus

oleracea), que ocorre em 30% dos restaurantes. Já o baru (Dipteryx alata) é o mais

consumido nos restaurantes naturais, sendo encontrado em 20% dos locais, seguido pelo

pequi (16,67%).

De acordo com o fruto consumido, existe uma variação na origem dos fornecedores.

Entre os estabelecimentos entrevistados, 10,64% não souberam informar o local de origem

dos frutos e em 12,77% a matéria-prima foi adquirida em rodovias próximas às áreas de

coleta da região Centro-Oeste. Onde foi possível identificar a procedência, verificou-se que os

frutos vieram principalmente de outras localidades fora do DF. Dentre as origens mais

citadas, tem-se Pirenópolis, Goiânia, feiras locais e a Ceasa do Distrito Federal.

Os fornecedores dos frutos do Cerrado, em sua maioria, são de fora do Distrito

Federal, com destaque para a região de Goiânia e Pirenópolis, sendo que uma parte dos

estabelecimentos do ramo alimentício não possui um fornecedor fixo, muitos compram em

feiras ou diretamente com coletores na época do fruto. Pode-se concluir que os fornecedores

levantados distribuem para restaurantes naturais, lojas de produtos naturais e principalmente

para sorveterias. Nesse último caso, atualmente, as sorveterias de frutos do cerrado estão

ganhando grande visibilidade. A origem dos frutos, que são retirados das comunidades para

serem transformados em produto com maior valor agregado e posteriormente serem levados

para a distribuição, é principalmente de Goiás e Minas Gerais. A maioria dos

estabelecimentos levantados não possui um fornecedor fixo. Em se tratando das sorveterias,

os frutos coletados são diversos, com maior destaque para o baru.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 280

Pode-se concluir que a lógica da cadeia produtiva dos frutos nativos do Cerrado no

DF, de um modo geral, está organizada de acordo com a seguinte sequência: matéria-prima

(cidades diversas de Goiás e Minas Gerais) – fornecedores (Goiânia e Pirenópolis) –

distribuição (Brasília e outras regiões do país) – consumidores finais (Brasília e entorno do

DF). Portanto, faz-se necessário o fortalecimento das comunidades e dos pequenos

agricultores do DF, incentivando-os a fornecer seus frutos de maneira sustentável para os

estabelecimentos, gerando, assim, renda complementar para os produtores e fornecendo

incentivos para garantir a preservação do bioma.

Dimensão tecnológica

Algumas espécies foram utilizadas, em escala piloto, no processamento de diversos

produtos, a fim de se identificar novas aplicações e usos, gerando informações sobre a

composição química, nutricional e funcional, para valorização da biodiversidade do Cerrado e

alternativas de renda para os agricultores familiares. As espécies foram escolhidas de acordo

com a sazonalidade e disponibilidade dos frutos em feiras e mercados locais, assim como em

áreas rurais de Planaltina. São elas: cagaita (Eugenia dysenterica), pequi (Caryocar

brasiliense), araticum (Annona crassiflora), jatobá (Hymenaea stignocarpa), baru (Dipteryx

alata) e buriti (Mauritia flexuosa).

Com o intuito de disponibilizar alternativas alimentares e de agregação de valor para

agricultores familiares, foram ainda desenvolvidos dois tipos de oficinas de aproveitamento

alimentar, com capacitação participativa e degustação, utilizando-se os frutos acima citados.

O público-alvo dessas oficinas abrangeu, além de agricultores familiares, estudantes e

professores de algumas instituições de ensino participantes.

Nas oficinas de capacitação eram apresentadas algumas receitas como alternativas

inovadoras no processamento desses frutos. Cada oficina tinha um fruto-tema, de acordo com

a sazonalidade da espécie, compondo um cardápio variado, sendo que pelo menos uma das

receitas era trazida e preparada por convidados externos (pesquisadores e chefs de cozinha).

Após uma breve exposição teórica sobre o fruto-tema, abordando características morfológicas

e botânicas da espécie, curiosidades e relações ecológicas da planta dentro do bioma, além de

aspectos socioeconômicos da produção e distribuição, os participantes eram levados até um

exemplar da espécie em questão para observação. Em seguida, seguia-se para a cozinha

experimental, onde se dava o desenvolvimento e processamento dos pratos. As receitas

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 281

desenvolvidas são resultados da inovação e adaptação de receitas pré-existentes, como, por

exemplo, cookies de baru, chutney de araticum, cheese cake de buriti, crepe de jatobá, frozen

de cagaita, muffin salgado de pequi, entre outros.

Já as oficinas de degustação foram realizadas em escolas, congressos e exposições

agropecuárias. O principal objetivo desse tipo de oficina foi a divulgação de alternativas

alimentares com produtos derivados desses frutos do Cerrado.

Como produto destas oficinas, foi produzido um livreto de receitas, que tem sido

distribuído às comunidades rurais envolvidas, além de proprietários dos estabelecimentos

entrevistados na dimensão socioeconômica e outros atores ligados aos canais de distribuição

de frutos do Cerrado no DF.

Dimensão ambiental

As atividades dessa dimensão foram desenvolvidas junto às três comunidades rurais

anteriormente citadas.

Mapeamento e avaliação da sustentabilidade das populações vegetais submetidas ao

extrativismo

A distribuição de espécies vegetais não ocorre ao acaso, na maior parte dos casos está

associada a características abióticas tais como tipo de solo, temperatura e umidades locais.

Dessa forma, o primeiro passo para se averiguar o potencial de uso de uma determinada

espécie deve envolver o mapeamento das populações e tentar associar a ocorrência da espécie

a fatores externos que permitam inferir sua ocorrência em outras áreas de Cerrado. Outra linha

de investigação importante para determinar a sustentabilidade de exploração vegetal envolve

o conhecimento da biologia básica da espécie em questão. Os dados populacionais, da

dinâmica das populações, recrutamento e os reprodutivos, taxa de produção de flores, frutos e

sementes, são importantes para o planejamento adequado do manejo de uma determinada

espécie.

O levantamento florístico, seguido do mapeamento de espécies frutíferas, com

potencial de usos, servirá para estudos posteriores na averiguação da sustentabilidade das

comunidades vegetais submetidas ao extrativismo em áreas de reserva legal.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 282

Nas três comunidades envolvidas nas ações do projeto (Sarandi, Colônia I e Monjolo)

foram realizados estudos acerca do potencial de exploração de espécies frutíferas nas áreas de

reserva legal de cada comunidade.

Na primeira área avaliada, o núcleo rural Sarandi, foram estudadas duas áreas de

reserva legal fisionomicamente diferentes. Na fisionomia de Cerradão, que constitui uma

pequena parte da reserva legal, constatou-se que apenas quatro espécies, sendo duas de araçá

(Pisidium myrsinoides e P. salutare), além de cagaita (Eugenia dysenterica) e jatobá

(Hymenaea stigonocarpa), apresentam número suficiente de indivíduos na área e que talvez

justifique a exploração como complemento de renda dos agricultores. Pimenta de macaco

(Xylopia aromatica) foi a espécie que apresentou maior número de indivíduos, frequência e

densidade e, apesar de seus frutos não serem comestíveis in natura, são bastante apreciados

pela população local e utilizados como condimento no preparo de alimentos. Dessa forma,

essas podem ser espécies que mereçam estudo mais detalhado quanto à capacidade de

produção e extração de frutos. Já nas áreas de Cerrado sentido restrito, o potencial de extração

frutífera é um pouco maior, podendo ser destacados araticum, cagaita, jatobá, pequi e

mangaba. Porém, o tamanho das populações é insuficiente para a extração em escala

comercial.

Na comunidade do assentamento Colônia I, cada propriedade possui sua reserva legal

em área de Cerrado sentido restrito, sendo que, de modo geral, o tamanho e o grau de

preservação e conservação da mesma difere. De modo geral, as espécies frutíferas que mais se

destacam são araticum, pequi, jatobá e mangaba, porém suas populações são suficientes

apenas para o extrativismo de subsistência da comunidade em questão.

No assentamento Monjolo, algumas espécies comumente utilizadas na alimentação,

tais como pequi, cagaita e araticum apresentaram populações insipientes. Considerando-se o

número de indivíduos por hectare, é possível apenas que o araçá, o jatobá e o bacupari tenham

real potencial de exploração visando incremento de renda às famílias dos assentados.

Entretanto, é provável que o tamanho das populações das espécies de interesse e a

produtividade dos indivíduos somente sejam vantajosos à exploração se houver um manejo

adequado e enriquecimento das espécies em questão na área, ou se a demanda por essas

espécies for pequena.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 283

Avaliação de sistemas de produção utilizados pelos agricultores familiares

Para a avaliação da sustentabilidade dos sistemas produtivos locais, foi adotada a

metodologia proposta por Altieri e Nicholls (2002) que aplicam a discussão prévia e

participativa visando gerar possíveis indicadores mínimos de sustentabilidade nos sistemas

produtivos dos agricultores e extrativistas. O indicador permite a avaliação de uma realidade

que mensura numericamente os principais pontos de força e fraqueza do meio avaliado.

Utilizando metodologia participativa, foram estabelecidos, para essas duas

comunidades envolvidas, dez indicadores para o parâmetro Qualidade do Solo e dez

indicadores para a Sanidade de Cultivos, com o intuito de se determinar os níveis de

sustentabilidade dos sistemas produtivos desses agricultores. A partir do estabelecimento e

construção de tais indicadores, a avaliação foi aplicada pelos mesmos, em suas respectivas

áreas de cultivo, independentemente do tipo de produto cultivado.

Foram avaliados 12 agricultores no Assentamento Márcia Cordeiro Leite e seis

agricultores no Assentamento Colônia I. Observou-se que as duas comunidades possuem

pontos de fraqueza muito parecidos. Sobre a qualidade do solo, é possível afirmar que a maior

dificuldade dos agricultores está relacionada com a retenção de água no solo, bastante comum

em área de solo sob Cerrado. Nas duas localidades o solo é relativamente profundo e

apresenta algum tipo de compactação, talvez pela natureza física dos mesmos (latossolo

vermelho amarelo), porém baixa existência de erosão, por serem áreas com pouco declive.

Em condição de solo sob Cerrado, pouco se espera em relação à cobertura de solo ou mesmo

em relação ao estado de resíduos sobre o mesmo, que pode ser função das práticas de manejo

adotadas pelos agricultores, ou seja, pouco uso de plantas de cobertura, principalmente no

período de inverno seco. Os valores de presença de matéria orgânica são medianos, o que

pode contribuir para a visualização de um baixo índice de estruturação do solo. Pela mesma

razão, é de se esperar uma baixa atividade microbiológica e presença de invertebrados,

especialmente quando da análise dos indicadores fora do período chuvoso.

Em relação à análise dos indicadores de saúde de cultivo, um primeiro ponto que

chama a atenção é o sistema de manejo. Mesmo os agricultores em fase de transição para o

sistema orgânico de produção (Colônia I) não concordam em atribuir valores que os

identifiquem como totalmente aderidos às técnicas agroecológicas. Isso é facilmente

identificado pela alta incidência de insetos, pragas e doenças em suas lavouras,

independentemente do tipo cultivado; pela baixa presença de inimigos naturais; baixa

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 284

diversidade de vegetação, tanto externa como internamente; e razoável competição entre

cultivos e plantas espontâneas, observados nos sistemas orgânicos de produção. Ainda, nas

duas comunidades avaliadas, o crescimento e a aparência das plantas cultivadas apresentam-

se visualmente inibidos, provavelmente pelo sistema de manejo adotado e pela baixa

fertilidade do solo, ainda em processo de recuperação. Por intermédio desse mesmo indicador

é possível observar que os agricultores têm menos dificuldades de manejar ou conduzir as

plantas cultivadas do que manejar o solo nos cultivos.

As informações disponíveis até o momento permitem aos agricultores se orientarem

em relação aos seus esforços para a obtenção de uma produção mais estável e sustentável.

Vale lembrar que é preciso definir quais são as melhores características que o sistema deve ter

para ser considerado sustentável, tais como: diversidade, equidade, resiliência e autonomia.

Dimensão de aprendizagem e formação de agricultores familiares

A partir de um índice desenvolvido pela Emater-DF, o Índice de Desenvolvimento

Comunitário Rural (IDCR), foi aplicado o questionário que constrói uma relação de

indicadores multidimensionais e são apresentados aos diversos segmentos de público, por

meio de metodologias participativas. Esses indicadores são sistematizados em seis dimensões

(bem-estar, cidadania, apropriação tecnológica, econômica, agroecológica e ambiental) e

apontam os desequilíbrios, vulnerabilidades e potencialidades da comunidade. O objetivo do

IDCR é elaborar um diagnóstico da comunidade para que ele seja instrumento de

sensibilização e motivação das instituições públicas e privadas para a construção de políticas

específicas que irão atuar diretamente nas vulnerabilidades e potencialidades diagnosticadas.

A proposta do questionário do IDCR visou atender as diretrizes humanista, dialógica,

construtivista, ambientalista e desenvolvimentista, em um recorte territorial que é a

comunidade rural98

.

Esse resultado gera um relatório que estabelece um instrumento de acompanhamento

para avaliar a eficácia dos esforços, tanto dos membros da comunidade, quanto das

instituições envolvidas no processo. Os dados processados permitem acessar o índice de

desenvolvimento da comunidade, que é representado por um número que varia de zero a um.

98

Os indicadores do IDCR foram fundamentados na sequência de demandas da pirâmide de Maslow que, para

um contexto comunitário, certamente ainda serve para nortear a hierarquia de necessidades que um conjunto de

seres humanos demanda.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 285

Quanto mais próximo do um for o valor do IDCR, mais desenvolvida é a comunidade, e

quanto mais próximo de zero, maior será o desafio para os agentes de desenvolvimento. Esse

valor é obtido pela soma dos valores relacionados ao bem-estar, cidadania, economia,

apropriação tecnológica, agroecologia e ambiental.

Para compor a base de dados deste diagnóstico, o questionário foi aplicado em

dezembro de 2010 no Assentamento Colônia I, com 19 entrevistas com os proprietários das

24 unidades produtivas existentes, perfazendo uma amostragem em torno de 79,16%. Já no

Núcleo Rural Sarandi, a aplicação da metodologia foi feita em março de 2010 em todos os 24

assentados que residiam no local na época da entrevistada. Na comunidade do assentamento

Monjolo, o questionário foi realizado entre dezembro de 2011 e fevereiro de 2012, sendo

aplicado nas 83 famílias que residiam no local na época aplicada, totalizando uma

amostragem de 100%.

Tabela 1 - Demonstrativo da composição e dos valores utilizados para gerar o valor do IDCR

nas comunidades Colônia I, Sarandi e Monjolo

Dimensão Valor ideal Colônia I Sarandi Monjolo

Bem-estar 0,2 0,107 0,116 0,061

Cidadania 0,2 0,111 0,097 0,074

Econômica 0,2 0,091 0,112 0,072

Apropriação tecnológica 0,13 0,034 0,029 0,000

Agroecologia 0,13 0,028 0,001 0,062

Ambiental 0,14 0,070 0,046 0,055

SOMA 1,00 0,441 0,400 0,324

Fonte: Pesquisa de campo.

Neste diagnóstico, o valor de IDCR nas duas primeiras comunidades é próximo, sendo

de 0,441 no Assentamento Colônia I, de 0,400 no Sarandi e 0,324 no Monjolo (Tabela 1),

sinalizando a vulnerabilidade e alguns desequilíbrios dessas comunidades no momento em

que foi feito o levantamento de campo.

Para fins de acompanhamento das ações junto às três comunidades, estes resultados

correspondem ao tempo “zero”, sendo que avaliações periódicas deverão ser aplicadas à

medida que mudanças são introduzidas, como após a implementação de novos processos e

produtos relacionados às cadeias de produtos da sociobiodiversidade e aos canais de

distribuição para mercados diferenciados.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 286

Considerações finais

Até essa fase da pesquisa pode-se concluir que não existe uma cadeia produtiva

definida dos frutos nativos do cerrado, havendo necessidade de se mapear a existência de

fornecedores a partir da demanda de mercado no DF. Apesar de as iniciativas de promoção da

comercialização destes produtos por comunidades extrativistas terem aumentado nos últimos

anos, estas ainda ocorrem de forma isolada, com pouco intercâmbio de ações entre as

instituições promotoras. Além disso, a dificuldade de sistematização das informações

relacionadas à cadeia destes frutos também limita a sua divulgação às comunidades, assim

como o planejamento das ações de capacitação para o atendimento destes mercados associado

ao uso sustentável das espécies mais demandadas.

Nas áreas de reserva legal estudadas até o momento, foram identificadas pelo menos

oito espécies nas quais é possível se trabalhar na construção de mercados consumidores. O

mercado institucional aparece como uma alternativa para produtos derivados do extrativismo,

uma vez que o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de

Alimentação Escolar (PNAE) começam a incluir espécies nativas de diferentes biomas nos

seus projetos e ações. Entretanto, a construção de mercados para esses produtos também deve

ser apoiada por um aprofundamento das informações sobre capacidade de atendimento das

demandas e das possibilidades de adaptação de tecnologias para a conservação e

beneficiamento de novos produtos. No que se refere aos processos de conservação ainda em

andamento, espera-se que alguns possam ser sugeridos às comunidades envolvidas para

facilitar a armazenagem e distribuição de produtos beneficiados.

Uma política de manutenção da biodiversidade nos diferentes biomas é a estratégia de

conservação e valorização “da floresta” ou “do cerrado” em pé, que consiste no uso

sustentável dos recursos naturais de forma a garantir o atendimento das demandas do

mercado, garantindo também os estoques destes recursos nas áreas de conservação.

Apesar do forte apelo socioambiental existente nos produtos originários destas áreas, a

estrutura de comercialização a partir das comunidades de agricultores familiares e

extrativistas do Cerrado é ainda incipiente. São poucas as iniciativas individuais ou coletivas

que têm conseguido se manter ou expandir nos diferentes mercados. Dessa forma, é

importante o aprofundamento das pesquisas sobre os canais de distribuição de espécies do

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 287

Cerrado na região de Brasília e DF, a fim de fornecer subsídios para a proposição de novos

arranjos e parcerias para a promoção dos produtos da sociobiodiversidade do Cerrado nos

mercados potenciais para a agricultura familiar.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 290

O protagonismo da agricultura familiar em foco: rede de referência e sua

interface com os mercados no sul gaúcho

Shirley G. Nascimento Altemburg

Cláudio Becker

Fernanda Novo da Silva

Nádia Velleda Caldas

Introdução

Com a modernização da agricultura, o que se viu em todo o mundo, e sobretudo no

Brasil, foi a desvalorização dos saberes empíricos dos agricultores. Saberes estes que

tradicionalmente perpassavam gerações. Consequentemente, muitos agricultores abdicaram

dos seus conhecimentos para adotar o “novo”, ou seja, a técnica moderna preconizada pelo

saber perito do extensionista rural. Assim, por meio do uso intenso de máquinas e de insumos,

uma considerável parcela de agricultores abandonou práticas que se pautavam nos ritmos da

natureza99

e que admitiam a finitude dos recursos naturais.

Em que pese esta mudança de cenário, a agricultura familiar100

tem sido incentivada,

ainda que de forma tênue, a resgatar algumas das práticas e conhecimentos, para, a partir

deles, construir alternativas que lhe permita ampliar o acesso aos mercados e assegurar sua

reprodução social. É no intuito de validar e respaldar estas ações e estes conhecimentos, que

muitas iniciativas têm surgido, entre as quais figura a Rede de Referência em Agricultura

Familiar, coordenada pela Embrapa Clima Temperado101

.

Convém destacar que, etimologicamente, o substantivo feminino “rede” deriva do

latim, reunindo, dentre diversos significados, o de “entrelaçamento de fios, cordas, cordéis,

arames, com aberturas regulares fixadas por malhas, formando uma espécie de tecido”

(FERREIRA, 1986). Esta noção pode ser transposta para pensar a circulação de informações,

99

Aqui se trata da abordagem de “temporalidade”, entendido por Montibeller-Filho (2001, p.51) como “o tempo

geológico, o tempo na natureza em sua ordem, seus ciclos próprios de reprodução, incorpora-se na

abordagem ao lado e superando a hegemonia do tempo econômico (dominado pela racionalidade da produção

e da produtividade).” 100

O conceito de agricultura familiar assumida neste trabalho é que a mesma assume uma forma social de uso da

terra que melhor responde à noção de sustentabilidade (ALMEIDA, 1998). 101

Convém grifar que ao longo do texto quando estivermos nos referindo à Rede de Referência em Agricultura

Familiar, estaremos utilizando o termo “Rede”.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 291

como percorrendo os fios da trama, para levar conhecimentos entre os diversos atores que

constituem os nós que entrelaçam a trama desta rede.

Com a intenção de unir agricultores, divulgar ações e tecnologias que auxiliam na

promoção do desenvolvimento endógeno, a Rede de Referência acaba formando uma teia de

conhecimentos, que se dissemina para além de seus limites físicos (PERERA, 2009). Assim,

de nossa parte, entende-se como fundamental avaliar estas ações sob a ótica dos

protagonistas, no intuito de compreender como esta Rede vem auxiliando do ponto de vista

das relações que os agricultores mantêm para além dos limites da própria Rede de Referência.

É nesse âmbito que se inscreve este artigo, que visa analisar o papel da Rede como

instrumento de auxilio no acesso aos mercados, bem como no afã de discutir os reflexos deste

processo para os próprios agricultores familiares que a integram.

Rede de Referência: um suporte para a organização social

Como forma de entender o universo empírico desta pesquisa, esta seção procurou dar

suporte à teoria sobre redes, para posteriormente caracterizar a Rede de Referência em

Agricultura Familiar e, na sequência, discutir as implicações da Rede nas relações

estabelecidas por seus integrantes.

A concepção de Redes e o entendimento de seus conceitos

A busca por alternativas que respaldem o alcance de objetivos unidirecionais em

organizações não se configura como algo atual e remonta, sim, à Antiguidade. De acordo com

Marcon e Moinet (2001, p.18), atualmente, existe outra maneira de ver a realidade, uma vez

que a mesma já existia, e, neste sentido, afirmam que “[…] a noção de rede nunca esteve tão

presente na linguagem e no pensamento atual”.

De forma a buscar um maior entendimento sobre as redes é conveniente verificar a

trajetória das mesmas enquanto campo de pesquisa. Martes et al. (2006) comentam que, no

contexto da sociologia, a evolução histórico-científica de redes contém três bases de

formação: “[…] estudos sociométricos, apoiados na psicologia gestalt102

; estudos

102

De acordo com Barros (1985, p. 48), para a psicologia gestalt um todo não pode ser compreendido quando

separado das partes, já que o todo é mais que a soma de todas as partes. “Uma paisagem não é apenas relva +

céu + árvores + nuvens + outros detalhes. É uma percepção única que depende do relacionamento especial

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 292

desenvolvidos por antropólogos da Universidade de Manchester; e estudos desenvolvidos

pelos estruturalistas da Universidade de Harvard” (MARTES et al., 2006, p. 10, grifo nosso).

Os estudos sociométricos iniciados na década de 1930 tiveram como pioneiro o

pesquisador Jacob Levy Moreno, que utilizava Sociogramas103

para identificar os

relacionamentos em forma de rede entre pessoas e os padrões de interação, clusters e as

dinâmicas dos pequenos grupos (MARTES et al., 2006).

Já os estudos desenvolvidos pelos antropólogos de Manchester, na década de 1950,

utilizaram a fusão entre “matemática e a teoria social substantiva” e como resultado obtiveram

duas abordagens: “a utilização de redes egocêntricas, isto é, a análise de redes em torno de um

indivíduo em particular” e, ainda, “[…] a análise do conteúdo dos laços da rede por meio de

abstrações que descrevem modos particulares da atividade social, tais como parentesco,

interação política, amizade e relações do trabalho” (MARTES et al., 2006, p. 11).

Com relação aos estudos deste grupo, é importante destacar as variações quanto à

concepção de rede, de uma visão mais técnica fundamentada nos padrões e formas para

identificar rede, migrando para uma noção que reconhece aspectos sociais e humanos

presentes no fenômeno.

Por sua vez, os estruturalistas, estudiosos da escola de Harvard, a partir de 1960,

buscaram a conciliação entre diferentes abordagens de redes e seus trabalhos “[…] sobre a

base matemática das estruturas sociais”, numa tentativa de “modelar e mensurar

matematicamente os papéis sociais – chamada de blockmodeling – pode ser considerado como

o fundamento da atual forma de análise de redes” (MARTES et al., 2006, p. 11, destaque no

original).

Segundo estes autores (MARTES et al., 2006), as diferenciações e modificações na

forma de perceber a rede foram resultado de transformações que ocorreram no ambiente

acadêmico no início da segunda metade do século XX e tinham como princípio “a fuga de

explicações individualistas, atomistas em direção a explicações relacionais, contextuais e

sistêmicas”, que se espalhou por diversas áreas das ciências: “Estudos Organizacionais,

Sociologia, Antropologia, até a Medicina e Física” (MARTES et al., 2006, p. 10).

Deste modo, entende-se que as redes podem ser concebidas sob diversos ângulos, mas

com um norte comum: facilitar o entendimento entre diversos atores sociais e suas ações.

existente entre as partes”. É possível perceber as partes, porém estas só existem “em relações definidas umas

com as outras. Mudemos as relações e a qualidade e o todo mudará completamente.” 103

É uma técnica que pretende obter uma radiografia grupal, isto é, procura obter de maneira gráfica, mediante a

observação e contextualizacão, as diferentes relações entre sujeitos que conformam um grupo, pondo assim

de manifesto os laços de influência e de preferência que existem no mesmo. Este tipo de relações não são

necessariamente formais, na maioria dos casos são informais.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 293

Clegg e Hardy (1999, p. 40), afirmam que redes

[...] são formadas por uma estrutura celular não rigorosa e composta de atividades de

valor agregado que, constantemente, introduzem novos materiais e elementos.

Podem assumir formas muito diferentes, variando da formal à informal; podem

existir simplesmente para a troca de informações ou para serem envolvidas em

processo de atividades conjuntas; podem ser mediadas por destruidores de redes ou

surgir de iniciativas das próprias empresas. Parece que as redes possuem inúmeras

vantagens como forma de organizar, incluindo a diluição do risco e

compartilhamento de recursos para se evitar a duplicação onerosa de esforço

independente; maior flexibilidade, comparadas a outras formas de integração, como

em uma venda de controle acionário ou fusão, principalmente em que os ciclos de

vidas dos produtos são curtos; maior acesso ao know-how e às informações por

meio de relações de colaboração antes do estágio de conhecimento formal .

Conforme consta na vasta literatura sobre o tema, o conceito de redes pode ser

utilizado tanto para mensurar a vida útil de um produto, quanto para categorizar o custo de

produção, contabilizar os gastos com um serviço ou ainda ser utilizado em sua forma mais

expressiva que a de proporcionar interação entre pessoas e conhecimentos.

Certamente seria possível destacar aqui um conceito de redes para cada área de

conhecimento. Todavia, este não é o propósito deste artigo. Na próxima seção trataremos de

destacar o conceito de redes que fundamenta este trabalho. Parte-se da concepção de redes

como sendo “[…] o conjunto de relações ou laços entre atores (indivíduos e organizações)”

(MARTES et al., 2006, p. 12). Assume-se a ideia de Rede social vendo as relações entre os

atores a partir da existência de forças específicas e da presença de substâncias como

confiança, reciprocidade, cooperação e outras. (CASTILLA et al., 2000).

Redes para a agricultura familiar e a organização social no Sul do Rio Grande do Sul

Considerando que as redes de referências para a agricultura familiar104

compõem o

objeto empírico deste trabalho, é necessário fornecer elementos que permitam ao leitor

conhecer em maior profundidade o projeto desenvolvido pela Embrapa Clima Temperado,

respaldando a leitura deste texto, no qual serão discutidos os resultados obtidos e apresentadas

as conclusões e recomendações de pesquisa.

Conforme exposto anteriormente, as redes apresentam uma multiplicidade de usos e

objetivos. Neste sentido, muitos trabalhos e estratégias de intervenção, voltados para agricultura

familiar, valem-se desta metodologia em sua implantação para garantir a troca de informações,

104

Entende-se que a agricultura familiar está ligada de maneira estreita aos princípios do desenvolvimento

sustentável e pode, por meio de processos agroecológicos, estabelecer novas bases para a produção agrícola

que reflita na tão sonhada qualidade de vida no rural.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 294

bem como a validação de tecnologias que causem os menores impactos possíveis ao ambiente e

ao homem.

Na Região Sul do Rio Grande do Sul, a Rede de Referência em Agricultura Familiar

surgiu com a implantação, pela Embrapa Clima Temperado, do projeto RS Rural, que colocou

em prática o projeto intitulado “Geração e adaptação de tecnologia para os sistemas de

produção e ações integradas para o desenvolvimento sustentável da agricultura familiar na

Região Sul do RS”. Este projeto tinha como grande objeto subsidiar o processo de transição

agroecologica na Região Sul do Rio Grande do Sul (MEDEIROS et al., 2005).

Vale ressaltar que o referido projeto foi estruturado a partir das experiências realizadas

pelo Institut de L’Élevage, na França105

. A importância desta metodologia se expressa pelo fato

de a mesma levar em consideração a participação dos agricultores como agentes decisórios e,

assim, garantir uma livre circulação de informações e o intercâmbio de experiências. A

combinação destes dois fatores constitui ingredientes essenciais para formar um raciocínio de

administração e planejamento da propriedade rural. E, por conseguinte, aflora no agricultor uma

predisposição favorável às mudanças tecnológicas necessárias ao processo de transição.

Projetos embasados neste tipo de metodologia vêm respaldando, ao longo dos anos, a

geração, teste e validação de tecnologias voltadas à transição agroecológica da agricultura

familiar na Região Sul do estado, tendo como função primordial fornecer estruturação e

suporte às ações junto aos agricultores (MEDEIROS et al., 2005)

Segundo Perera (2009), este projeto foi orientado para atender ao contingente de

agricultores familiares da região, especialmente aqueles que já se encontravam organizados e

dispostos a iniciar práticas sustentáveis em Agroecologia, mas ainda carentes de suporte

técnico-científico para assumir protagonismo no processo de transição para uma agricultura

sustentável. Baseado em princípios epistêmico-metodológicos pouco usuais na pesquisa

agropecuária dita convencional, o projeto utilizou a interdisciplinaridade, a multi-

institucionalidade, o reconhecimento e valorização do saber dos agricultores e a participação

social como forma de promover um arranjo local de pesquisa e desenvolvimento.

Atualmente, o referido projeto vem dando continuação à ação de pesquisa junto ao

agricultor, sob nome de Pesquisa participativa em Rede de Referência para a agricultura

105

O Institut de L’Élevage, instituição francesa de pesquisa e desenvolvimento na área de produção animal,

identificou uma alternativa metodológica para a fase de validação de sistemas, traduzida na proposta das

Redes de Propriedades de Referências, desenvolvidas por essa instituição desde 1981. Criado e gerido pelos

produtores desde a década de 60, o Institut de l’Élevage é o resultado da fusão de três diferentes institutos

técnicos voltados à produção animal, constituindo-se em um dos quinze institutos e centros técnicos

organizados por produtos sob a responsabilidade das organizações profissionais dos produtores franceses

(SOARES JÚNIOR et al., 2000, p.84-85, destaque no original).

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 295

familiar de base ecológica na Região Sul do RS, compondo o Macro Programa 6 da Embrapa,

voltado ao apoio e ao desenvolvimento da agricultura familiar e à sustentabilidade do rural.

Neste sentido, o projeto da Rede de Referência, implantado na Região Sul do Rio

Grande do Sul, teve como base a escolha de unidades de produção representativas para a

agricultura familiar na região. De acordo com Medeiros et al. (2005, p. 43), a Rede constitui-se

em

[...] um conjunto de propriedades representativas do sistema de produção agrícola

familiar, que passaram por um processo de otimização visando ampliação de sua

eficiência e sustentabilidade. Os trabalhos de validação de tecnologias nessas

propriedades foram conduzidos pelos agricultores e técnicos, e serviram como

referência técnica e econômica para as outras unidades.

Deste modo, entende-se que a Rede de Referência em Agricultura Familiar

proporciona o acompanhamento do desempenho técnico-econômico das práticas realizadas

pelos agricultores, auxiliando o processo de intervenção da pesquisa ou da extensão rural, por

meio da coleta de informações agronômicas e socioeconômicas com base em sistemas de

produção, tipologia de unidades produtivas e referenciais agroecológicos (RS RURAL, 1999).

De acordo com Medeiros et al (2005, p. 43), a Rede, para o fomento de suas

atividades, valeu-se de objetivos como:

Levantar demandas de pesquisa, a partir de diagnósticos nas propriedades integrantes

das redes; Realizar testes, ajustes e validação de tecnologias; Ofertar tecnologias e ou

atividades que ampliem a eficiência dos sistemas de produção; Disponibilizar

informações e propor métodos para orientar os agricultores na gestão da propriedade

rural; Servir como pólo de difusão e capacitação de técnicos e agricultores; Subsidiar

formulação de políticas de promoção da agricultura familiar.

Conforme explicam Medeiros et al. (2005), os critérios adotados para a seleção das

unidades “de referência” foram:

a) estabelecimentos agrícola-familiares representativos de sistemas de

produção da região;

b) agricultor comprometido com os objetivos do projeto de pesquisa

participativa em Agroecologia ou decisão de transição agroecológica;

c) capacidade de atender aos objetivos propostos nos respectivos projetos de

pesquisa;

d) demonstração de interesse pelo agricultor e sua família pelo trabalho

proposto e disposição para implementar mudanças tecnológicas;

e) bom relacionamento com a comunidade local;

f) participação em grupo de produtores ou associações;

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 296

g) ser polo irradiador das tecnologias consolidadas.

Além dos critérios citados, a motivação dos agricultores em fazer parte do projeto

também foi levada em consideração. Assim, as unidades produtivas foram definidas com o

apoio de técnicos das entidades envolvidas (Embrapa Clima Temperado, Emater, Fepagro, Irga,

Coopar, Coopal, Capa, Unaic, MPA, conselhos municipais e associação de agricultores). Estes

estabelecimentos encontram-se situados em sete municípios da Região Sul, conforme ilustra a

Figura 1:

Figura 1 - Mapa ilustrativo do Rio Grande do Sul com destaque aos municípios onde se situam

as unidade produtivas vinculadas à Rede de Referência em Agricultura Familiar

Fonte: Elaboração dos autores.

A Tabela 1 apresenta quatorze unidades, selecionadas para compor a Rede de Referência em

Agricultura Familiar, distribuídas por localidade e vinculação por entidade parceira.

Perera (2009) relata que a partir da definição das unidades de referência ocorreu a

caracterização dos sistemas de produção desenvolvidos pelo agricultor, com a identificação

dos principais elementos que compõem os sistemas existentes na propriedade, mesmo aqueles

que não estão diretamente inseridos na geração de renda.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 297

Tabela 1 – Unidades de Produção selecionadas por Município e entidade parceira

Município Localidade Entidade Parceira Estabelecimento

106

Canguçu Remanso UNAIC 2

Canguçu Remanso UNAIC 6

Canguçu Potreiro Grande UNAIC 8

Morro Redondo Rincão da Caneleira EMATER 1

São José do Norte Capão do Meio EMATER -

São José do Norte Saraiva EMATER -

São José do Norte Praia do Mar Grosso EMATER -

São Lourenço do Sul Boqueirão COOPAR 4

São Lourenço do Sul Passo do Pinto COOPAR 5

São Lourenço do Sul Butiá COOPAR 3

Rio Grande Ilha dos Marinheiros - 11

Turuçu São Domingos EMATER e Arpasul 7

Pelotas Rincão dos Andrade EMATER e Arpasul 10

Pelotas Rincão dos Maias CAPA 9

Fonte: Elaboração dos autores, segundo os dados retirados de Medeiros et al. (2005).

Conforme consta na publicação referente ao projeto RS RURAL, foram levantados

dados com relação:

a) à infraestrutura de máquinas, benfeitorias, mão de obra, animais e criações;

b) a indicadores técnicos de cultivos e criações;

c) à situação da comercialização;

d) a indicadores sociais, ambientais e econômicos; e

e) à definição dos sistemas de produção.

Assim, é possível identificar, em ordem de relevância, quais atividades eram mais

representativas na formação da renda e quais as demandas urgentes para alavancar o processo de

produção sustentável e agroecológico.

Para atender as bases sociais buscadas pelo projeto, Perera (2009, p. 46) aponta que

os gestores da Rede promoveram atividades para troca de experiências e capacitação dos

integrantes do projeto e acrescenta que os saberes tradicionais, fruto desta experiência,

exigiram uma sistematização das informações, fato que propiciou uma “[…] sustentação

metodológica para a articulação com o conhecimento científico”.

Propostas que seguem esta orientação reiteram a noção de que a ciência e as

instituições de pesquisa devem respaldar as novas tendências da agricultura familiar voltadas

106

Estes números correspondem à organização das entrevistas e na discussão dos resultados servirá para

identificar as famílias estudadas. Por esta razão, as unidades produtivas localizadas em São José do Norte não

possuem numeração.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 298

para o universo da sustentabilidade. Neste sentido, Altieri (2002, p. 554) atenta que:

Dentro da estrutura de uma abordagem agroecológica participativa, os objetivos

econômicos, sociais e ambientais são definidos pela comunidade rural local e são

implementadas tecnologias de baixo uso de insumos externos para harmonizar o

crescimento econômico, a eqüidade social e a preservação ambiental. Finalmente,

além do desenvolvimento e da difusão das tecnologias agroecológicas, a promoção

da agricultura sustentável requer mudanças nas prioridades da pesquisa, na política

agrícola e agrária e no sistema econômico, incluindo preços e mercado mais justo,

assim como incentivos governamentais.

Caracterização dos agricultores vinculados à Rede de Referência em Agricultura

Familiar

As informações que aqui trazemos fazem parte do conjunto de dados de pesquisa de

campo realizada no período de maio a dezembro de 2010 e junho de 2011, refletindo as

opiniões e posições assumidas por membros vinculados a onze das famílias integrantes da

Rede de Referência.

Nesta perspectiva, buscou-se caracterizar o perfil socioeconômico destes agricultores

familiares de base ecológica, bem como exteriorizar suas opiniões em relação ao papel

funcional da Rede em suas organizações sociais e à contribuição desta no fortalecimento de

seus vínculos com os mercados.

Assim, através das tabelas e gráficos que serão apresentados adiante, poderão ser

visualizadas características tais como: faixa etária dos agricultores, tipos de renda,

composição familiar e organização social.

Com relação à faixa etária dos agricultores, observou-se que a agricultura de base

ecológica, vinculada à Rede de Referência em Agricultura Familiar, não vem se renovando,

visto que entre os entrevistados a idade média é superior a 40 anos (Fig.2). Este fato requer

atenção, visto que outros estudos107

vão de encontro a esta constatação, predominando a

juventude à frente da produção de base ecológica.

De acordo com Lovatto (2007, p. 94), tomando como referência os dados de pesquisa

exploratória no Vale do Rio Pardo,

[…] a juventude é responsável pela ascendência da agricultura orgânica no período

atual, pois a mesma combina com abertura às inovações, predominante na

juventude, onde os indivíduos estão mais pré-dispostos as novas experiências,

justamente pelo fato de não possuírem hábitos arraigados, inclinam-se às

107

Referimo-nos a alguns trabalhos que compõem a edição da Revista Agriculturas (vol.8 N.1 – intitulada

“Juventude na construção da agricultura do futuro”) e à pesquisa desenvolvida por Lovatto (2007).

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 299

alternativas que surgem sem muita resistência quando essas lhes parecem atrativas.

No que afeta a situação econômica das famílias entrevistadas, indagou-se sobre a

renda mensal, a fim de verificar sua origem e montante obtido pelas atividades desenvolvidas.

Figura 2 – Faixa etária dos 11 agricultores familiares entrevistados

Fonte: Pesquisa de campo maio/ dezembro de 2010.

Com relação à renda agrícola, conforme observado na Figura 3 verificou-se que há

predominância (50%) da renda bruta acima de R$ 1000,00/mês, sendo que algumas das

famílias possuem renda mensal acima de R$ 3.000,00 e outras que vêm encontrando

dificuldades na produção e comercialização de seus produtos, auferindo rendas médias

inferiores a R$ 1.000,00.

Corroborando com esta realidade no trabalho desenvolvido por Lovatto (2007), os

agricultores familiares de base ecológica também possuiam renda bruta predominante entre

R$ 1.000,00 e R$ 2.000,00.

Figura 3 – Renda bruta mensal das 11 famílias entrevistadas

Fonte: Pesquisa de campo maio/dezembro de 2010.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 300

Como os agricultores em questão possuem baixa dependência de insumos externos,

os valores ganhos com a comercialização da produção têm atendido de forma razoável as suas

necessidades, pois são suficientes para suprir as despesas mensais. Contudo, não possibilita

aos mesmos a realização de investimentos em suas unidades produtivas.

Convém destacar que esta questão está atrelada à falta de mão de obra dentro do

grupo estudado e será apontado outras vezes durante as discussões, uma vez que este fator

está presente de forma expressiva, condicionando o campo decisional destes sujeitos.

Com relação à renda não agrícola, constatou-se que apenas 36% das famílias contam

com auxílio de aposentadoria, o que se justifica pela idade dos entrevistados, e apenas um dos

agricultores desenvolve atividades remuneradas fora da propriedade.

Considerando o número de pessoas por família e ocupação dos mesmos (Tabela 2),

percebe-se que na maioria dos casos o número de trabalhadores ativos por estabelecimentos –

restringindo-se basicamente ao casal – sendo que estes desenvolvem todas as atividades na

propriedade, o que causa uma sobrecarga diária de horas de trabalho. Verifica-se, ainda, que a

maioria dos filhos dos agricultores que permanecem no campo até o presente momento divide

as atividades agrícolas com o processo de educação, ou não possuem idade para auxiliar nas

atividades dentro do estabelecimento (situação vivida por cinco famílias). Os filhos que teriam

como auxiliar os pais estão trabalhando na cidade ou no próprio interior, porém fora da unidade

agrícola familiar.

Tabela 2 – Composição familiar e atividades desenvolvidas

Estabelecimento Nº de familiares Atuando na

agricultura

Trabalhando

fora da UP Estudando

1 5 5** - 1

2 4 2 2 -

3 4 3 1 -

4 2 2 - -

5 6* 5 - -

6 5 5** - 3

7 3 3 - -

8 3 2 - 1

9 4* 2 - -

10 3 1 2 -

11 3 2 - 1

Fonte: pesquisa de campo maio/ dezembro de 2010.

Notas: * Família com crianças com idade inferior à escolar, e idosos que já não ajudam nas

atividades agrícolas.

** Filhos auxiliam nas atividades apenas na parte da tarde.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 301

Certamente, são várias as causas desta situação, pois o maior acesso à informação, o

processo educativo passando por mudanças, a crise vivenciada pelo setor agrícola familiar e a

falta de perspectiva dos jovens com a agricultura vêm ocasionando o abandono do campo108

.

Diante deste contexto, entre os diversos estudos realizados sobre esta temática, dois

são de grande recorrência na literatura atual: um deles é a tendência imigratória dos jovens,

em grande parte justificada por uma visão relativamente negativa da atividade agrícola e dos

benefícios que ela propicia; e o outro se refere às características ou problemas existentes na

transferência dos estabelecimentos agrícolas familiares à nova geração (BRUMER, 2006).

Os agricultores confirmam a assertiva do envelhecimento do rural a partir dos relatos

que seguem: “Meus dois filhos se formaram e foram embora. Só os velhos estão ficando no

campo.” (ENTREVISTA 9, 2010); “Meus dois filhos mais velhos foram embora. Estão muito

bem na cidade. Esses mais novos também têm cabeça boa e logo, logo também tão indo. È

talvez o do meio fique, às vezes ele diz que quer ficar trabalhando na agricultura.”

(ENTREVISTA 6, 2010)

Por outro lado, em alguns casos em que os filhos estavam presentes durante as

entrevistas, estes manifestaram interesse em permanecer na agricultura, embora afirmassem que

o trabalho é pesado e de retorno financeiro pequeno.

É como forma de validar o que foi dito anteriormente com relação à necessidade de

uma nova roupagem para agricultura familiar que os relatos acima citados tornam-se

notadamente relevantes.

Outro ponto comum em relação a este grupo de agricultores é que todos eles já

fizeram parte, ou ainda fazem, de cooperativas e associações. Com relação aos motivos que os

levaram a participar, está a troca de conhecimento, mas principalmente o fortalecimento da

produção familiar de base ecológica.

108

No Brasil, estudos (SCHNEIDER, 1994; SACCO DOS ANJOS, 2003) preocupados com as transformações

no meio rural têm acenado para a ocorrência de fenômenos demográficos importantes, como os processos de

desagrarização, masculinização e envelhecimento da população, o que indica que o que abstraímos neste

estudo é um fenômeno de ocorrência não singular.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 302

A Rede e suas interfaces: acesso a tecnologias, ferramenta de organização e gestão das

unidades de produção e relações com o mercado na Região Sul.

A presente pesquisa foi realizada109

em uma região específica do Rio Grande do Sul,

a Região Sul110

, cuja existência e operacionalização da Rede de Referência em Agricultura

Familiar materializa-se pela forte presença da agricultura familiar de base ecológica111

e forte

incentivo de instituições ligadas a esta área.

É notório que na Região Sul há uma forte presença de entidades que trabalham em

prol da agricultura familiar de base ecológica. Segundo Becker (2010, p. 22), “[…] nos

últimos anos estes [agricultores familiares de base ecológica] vêm experimentando um forte

processo de organização social, propiciado pelo protagonismo crescente de diversos

movimentos sociais (ONG’s, sindicatos, cooperativas, associações, etc.)”.

O trabalho a campo foi realizado em 11 estabelecimentos rurais que estão em

processo de transição agroecológica e fazem parte da Rede de Referência em Agricultura

Familiar. Os mesmos estão situados na porção meridional do Rio Grande do Sul, nos

municípios de São Lourenço do Sul, Canguçu, Rio Grande, Pelotas, Morro Redondo e Turuçu

(Fig. 1).

Cabe ressaltar que a região onde estes municípios se situam é uma das mais

enfraquecidas economicamente, mostrando índices de desenvolvimento equivalentes aos das

regiões Norte e Nordeste do Brasil. Fazem parte dessa região, além dos municípios

supracitados: Aceguá, Amaral Ferrador, Arroio do Padre, Arroio Grande, Candiota, Capão do

Leão, Cerrito, Chuí, Cristal, Herval, Hulha Negra, Jaguarão, Pedras Altas, Pedro Osório,

Pinheiro Machado, Piratini, Santana da Boa Vista, Santa Vitória do Palmar, e Turuçu.

Esta região tem dimensão equivalente a 39.960 km2. Dos seus 841.722 habitantes,

152.351 (18,10%) vivem na área rural. Na região, estão instalados 115 assentamentos da

reforma agrária, com aproximadamente 3,7 mil famílias. A Região Sul do RS ainda conta

com expressivo número de comunidades quilombolas (27 autodefinidas), que são a marca

viva do lastro histórico de desigualdade social herdado da indústria do charque (PORTO,

109

Cabe ressaltar que os dados coletados no mês de junho do presente ano através de entrevistas em

profundidade contribuíram para fomentar as discussões que estão sendo feitas nesta secção. 110

Para expressar a localização da região de estudo, nos valeremos doravante da denominação, utilizada pela

Embrapa Clima Temperado, qual seja: região sul do Rio grande do sul. 111

Neste trabalho, utilizamos o termo “de base ecológica”, por atribuir à agricultura familiar de base ecológica o

entendimento do sistema de produção como um agroecossistema, cuja produção inclui dimensões: ética,

política, cultural, social, econômica e ambiental. Optou-se por não utilizar o termo “agricultura orgânica” por

acreditar que o mesmo possa carregar significados que não estejam necessariamente incluídos na ótica da

Agroecologia, muito embora este seja o termo utilizado pela legislação brasileira (Lei nº 1831) e seus

dispositivos superiores.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 303

2008).

É para fins de melhorias na região que a Agroecologia materializa-se como suporte

ao processo de desenvolvimento, o qual vem sendo esboçado também pelos atores sociais que

representam e praticam a agricultura familiar.

O universo de comercialização alcançado pelos agricultores vinculados à Rede de

Referência em Agricultura Familiar

As feiras livres de base ecológica112

são o principal canal de comercialização

atingido por estes agricultores, ficando em segundo plano a venda direta a restaurantes e aos

mercados institucionais. Fato este que se deve à essência de formação deste grupo que se

organizou na perspectiva de comercialização de seus produtos na venda direta ao consumidor

e, assim, consolidou um modo diferenciado de inserção ao mercado. Segundo expressam os

entrevistados, esta relação refletiu positivamente em suas vidas em função de os mesmos

estabelecerem contato direto com os consumidores, conhecendo suas preferências, criando

vínculos de amizade e respeito que transpõem o ato de vender alimentos. Ou seja, são os laços

de confiança, reciprocidade e credibilidade que se sedimentam.

Entrementes, as bibliografias existentes permitem identificar que as feiras são uma

prática tradicional no município de Pelotas, tendo como objetivo atenuar a distância entre

produtores e consumidores e assegurar um maior retorno financeiro para os agricultores, já

que, sem a figura do atravessador, a remuneração pelo produto tende a ser maior. Assim,

ressalta-se que estas incorporam os preceitos da agricultura ecológica, quais sejam:

aproximação entre agricultor e consumidor; cooperação e não competição; equidade entre os

atores; manutenção de agricultores na terra; e defesa do emprego rural (SCHNEIDER, 2004).

Outro fator primordial que caracteriza as feiras de base ecológica na região é a

montagem das mesmas, que ocorrem sob responsabilidade dos próprios feirantes em sistemas

associativos, o que reforça os laços de solidariedade e união dentro deste grupo e, segundo

alguns relatos, é a essência do sucesso e fortalecimento deste trabalho em equipe.

112

A primeira feira ecológica inaugurada em 1995, é a que acontece aos sábados das 7h às 13h, na Av. Dom

Joaquim, na zona norte de Pelotas, RS. Constitui uma iniciativa dos agricultores ecológicos vinculados à

ARPASUL (Associação Regional de Produtores Agroecologistas da Região Sul). Posteriormente, foram se

estruturando as outras feiras que, além do apoio da ARPASUL, contam também com apoio da Cooperativa

Sul Ecológica (Cooperativa Sul Ecológica de Agricultores Familiares Ltda.).

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 304

A questão do mercado também é a questão da nucleação... o agricultor isolado

jamais consegue trabalhar o mercado, este tipo de mercado que a gente tem... hoje

está se vendendo uma quantidade de itens muito grande, que se fosse um agricultor

só, jamais conseguiria ter essa diversidade. Hoje em dia o mercado está cada vez

mais exigente nessa questão de comprar tudo o que se precisa em um local só. Ao

mesmo tempo que as pessoas não tem mais tempo, é uma correria no dia a dia... a

união direta dos agricultores é essencial para conseguir se ter êxito num trabalho

como esse... a confiança que se adquire neste trabalho é que é muito importante.

(ENTREVISTA 9, 2011)

No tocante a esta perspectiva, as feiras ecológicas estabelecem relações

insubstituíveis no que diz respeito à produção socialmente justa e ambientalmente correta na

Região Sul. Deste modo, proporciona, através da aproximação entre produtor e consumidor,

uma atmosfera de confiabilidade que resulta num processo de formação e reeducação para

ambas as partes no que diz respeito ao modo de produção de alimentos e as reais necessidades

dos consumidores finais113

. Neste sentido, a confiabilidade entre produtor e consumidor e a

mudança paradigmática nos modos de produção e vida dispõe sobre o consumo a indução dos

processos (LOVATTO et al., 2009).

A Rede de Referência, seus atores sociais e os mercados

Na ótica de validação da metodologia de redes para a Região Sul do Brasil, o que se

apresenta como maior importância, segundo relatos dos agricultores, é o papel desta

ferramenta na consolidação da transição dos formatos tecnológicos.

Por parte do grupo de entrevistados, a Rede apresentou dois distintos papéis, ou seja,

por parte do grupo de agricultores que já vinham de um processo de transição, antes mesmo

de seu ingresso na Rede, ela serviu como motivador, ao mesmo passo em que também

forneceu suporte ao enfrentamento das dificuldades produtivas. Já por parte dos agricultores

que se mostravam dispostos, mas que ainda não haviam iniciado a conversão do sistema

produtivo, a Rede foi fundamental no auxílio para adequação das técnicas à realidade

encontrada em cada sistema.

Neste contexto, construíram-se as bases para organicidade da própria Rede e de sua

interface entre os agricultores e com outras instituições, que se estruturaram e se fortaleceram,

criando uma atmosfera que convergiu em busca de informações e tecnologias que

respaldassem o acesso aos mercados.

113

Os métodos de produção da agricultura agroecológica vão ao encontro com as demandas da sociedade. Além

disso, o modelo convencional tem demonstrado que é insustentável, tanto para o meio ambiente, como no

aspecto social e político dos agricultores e consumidores (MAFRA, 2001).

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 305

A venda do que é produzido pela agricultura familiar de base ecológica constitui o

respaldo necessário de que os agricultores precisam para se sentirem valorizados e muito.

Além disso, para terem uma forma socialmente justa de viver, uma vez que o acesso aos

mercados garante aos agricultores o fortalecimento da agricultura familiar, por garantir espaço

regular aos produtos desta categoria, bem como incorporar maior valor aos mesmos em

função do encurtamento da cadeia comercial (RIBEIRO et al., 2003).

Na opinião de Abramovay (1992, p. 101-2), “[…] mais do que um tipo econômico, o

camponês representa, antes de tudo, um modo de vida”. Compartilhamos plenamente com o

autor, visto que nas explorações agrícolas familiares “trabalho e vida não são duas dimensões

cindidas: as crianças, as mulheres, enfim um organismo único produz com base no objetivo de

gerar não só os meios de vida, mas, sobretudo, um modo de vida”.

Nesta perspectiva, questionou-se aos agricultores entrevistados: O que contribui o

fato de você estar inserido ao mercado, ou seja, ter onde vender seus produtos? E, embora as

respostas tenham sido expressas de forma distinta, o ponto comum é que aos agricultores a

inserção no mercado garante a manutenção de vida da família e da própria propriedade,

contribuindo para criação de identidade, proporcionando-lhe credibilidade junto à sociedade.

O que a realidade estudada nos indica é que a venda de um produto vai além do ato

comercial em si, ele transpõe o véu econômico e se situa na perspectiva de reconhecimento de

um trabalho diferencial, qual seja o do agricultor familiar de base ecológica.

Deste modo, constatou-se que os agricultores conduzem suas atividades orientadas

não estritamente por fatores econômicos e que, de outra parte, eles atribuem um significado

simbólico aos seus produtos, vinculando-os com as características dos locais de produção dos

mesmos. Os excertos que seguem respaldam estas assertivas: “Somos agricultores e não

comerciantes. Olhar pelo lado do consumidor” (ENTREVISTA 2, 2011); “Produzir alimento

não é só um negócio” (ENTREVISTA 1, 2011); “O produto cria uma identidade, é

reconhecido pelo agricultor, obtido a partir de novas formas de trabalho, que é uma

aprendizagem contínua” (ENTREVISTA 9, 2011).

Na busca por melhor entender de que maneira a Rede de Referência auxilia na

consolidação de acesso aos mercados por parte dos agricultores foi perguntado aos mesmos -

Qual papel a Rede havia desempenhado na comercialização dos produtos? Neste quesito os

entrevistados foram unânimes em responder que a mesma não possui uma influência direta na

venda dos produtos, porém é fundamental no que diz respeito ao auxilio na gestão das

unidades de produção, pois garante um grande leque de informações, proporciona

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 306

intercâmbios entre os agricultores, permite acesso a cursos que auxiliam na forma de

comercialização e acesso a tecnologias que refletem diretamente na produção e venda dos

produtos.

O trecho que segue robustece de forma interessante a assertiva expressa acima:

Com o caso e eu entrar na Rede, a gente viu novas formas de trabalho, novas

formas de trabalhar e então isso aí melhorou muito nossa atividade. Porque esse

tipo de trabalho que a gente tem é um aprendizado diário, a cada dia tu tem um a

nova forma de trabalhar, tu pega a exigência do freguês... então isso é uma coisa

muito importante. (ENTREVISTA 9, 2011).

Outra questão levantada na pesquisa a campo diz respeito ao que a Rede de

Referência poderia fazer para se envolver mais na inserção dos agricultores aos mercados

locais. Com relação a este ponto é de pensamento comum dos agricultores entrevistados que a

mesma poderia trabalhar de forma mais frequente na divulgação do trabalho desenvolvido nas

unidades agrícolas de referência e dos produtos gerados por este trabalho, conforme se pode

verificar nos depoimentos que seguem:

Mas é eu acho que é na divulgação [que a Rede mais auxilia] por exemplo agora

que a gente tiver este selo [certificação] aí seria muito importante que aqui existe

um grupo, que aqui nós estamos produzindo ecologicamente... pra fazer as

pesquisas. (ENTREVISTA 6, 2011).

Par e par, a Rede tem contribuído, segundo os dados a campo, para a indissociação

no seio da agricultura familiar, pois constitui um instrumento de valorização e divulgação do

trabalho da mesma. Além de respaldar o acesso a tecnologias que proporcionam a realização

de formas de manejo sustentável e economicamente viável, refletindo no aumento da

produção, cuidado com o meio ambiente e, por consequência, obtenção de renda.

A organicidade da Rede reforça os laços já existentes, robustece as relações de toda

ordem com os envolvidos. Nas relações com o mercado, esta articulação é fundamental.

Todavia, esta organização social imprime um respaldo ao trabalho das entidades da

agricultura familiar envolvidos, extrapolando a atuação no âmbito do meio rural. Wilkinson

(1997) afirma que o futuro da produção agrícola familiar depende menos da competitividade

definida nos estreitos limites tecnológicos e organizacionais do que do efetivo surgimento de

uma coalizão de atores comprometidos com a redefinição das prioridades econômicas

regionais, a partir do potencial produtivo do sistema de produção familiar.

É o que refletem os depoimentos a seguir,

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 307

Se aumentar a venda nós vamos ter outro problema, nós vamos ter que produzir

mais ainda. Aí nós vamos ter outro problema. Nosso problema é a mão de obra. As

vezes falta mão de obra pra tocar a produção para os mercados já existentes. Que

as famílias cada vez são menores, menos gente ficando no campo, né.

(ENTREVISTAdo 1, 2011).

A divulgação e o reconhecimento aos demais segmentos sociais parece ser a

principal influência que a Rede possui na questão da comercialização. Destarte, o alcance que

estas ações alcançam transcendem a esfera mercantil, estando muito presentes os laços de

solidariedade e a reciprocidade.

Nossos entrevistados reconhecem a função da Rede em relação ao mercado da

seguinte forma,

Mais na questão de divulgação assim, porque eu me lembro que numa época tava

muito ruim assim de venda, nem tinha a feira de Canguçu ainda, só a feira de

Pelotas e tava vendendo pouco. Daí a gente chamou o pessoal da Embrapa, chamou

todo o pessoal [da Rede]... daí toda a questão dos vídeos que foram gravados nas

propriedades114

, então acho legal isso. (ENTREVISTA 2, 2011).

Diretamente com a venda a Rede não se envolve não. Talvez com a questão da

publicidade, da promoção... a Associação já tem os mercados formados. Nós

estamos preocupados em conseguir produzir mais para atender este mercado que já

temos. (ENTREVISTA 1, 2011).

Automaticamente ela [a Rede] acaba entrando de outra forma, no aprendizado, na

forma de entender o mercado. A gente entende o mercado de uma forma diferente,

esta é uma sequência de trabalhos. Eu acho que a Rede poderia entrar mais na

parte de divulgação... divulgando melhor o produto e o trabalho que a gente faz,

automaticamente estaria ajudando as propriedades, ajudando as famílias.

(ENTREVISTA 9, 2011).

Percebe-se que questões que seguem este viés possuem grande proximidade entre si.

Assim, por parte do grupo social estudado, é fundamental estarem vinculados e trabalhando

em Rede. Todavia, os mesmos reconhecem que o sucesso desta vinculação está

necessariamente atrelado ao reconhecimento da metodologia de manejo diferenciada que

desenvolvem em sua produção de alimentos, que vai ao encontro dos preceitos da

sustentabilidade.

114

A entrevistada refere-se a série de reportagens realizadas pelo Programa Terra Sul, com os agricultores da

Rede de Referência em 2008. Este programa televisivo, produzido pela Embrapa Clima Temperado,

apresenta as novidades do cenário agrícola familiar no sul gaúcho.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 308

Considerações Finais

Na finalização das discussões deste trabalho, algumas questões são de suma

importância para pensar e repensar a atuação da Rede de Pesquisa Participativa (Rede de

Referência), pois se por um lado o grupo de agricultores que compõem esta Rede já vinha

desempenhando em suas unidades produtivas um trabalho diferenciado, com a

institucionalização dela o cenário se modificou, tendo respaldo na aproximação com

instituições de ensino e pesquisa.

O fato é que, a partir de então, um novo olhar recaiu sobre este grupo social, uma vez

que este passou a desempenhar a função de espelhar a agricultura familiar de base ecológica

que se pretende difundir na região.

Assim, a Rede fomentou a consolidação de iniciativas de trabalho associativo e

construção de relações mercantis diferenciadas, para alimentos produzidos em harmonia com

o meio ambiente, em um processo de contínuo aprimoramento e entrelaçamento entre os

atores sociais imbricados nesta dinâmica. Fato este que, em nosso entendimento, tem

contribuído para a consolidação do protagonismo através da organização social deste grupo de

agricultores e, por conseguinte, propiciado o desenvolvimento de um modo singular de

produção e relação com o mercado.

Vislumbra-se que iniciativas como a da Rede de Referência são fundamentais, desde

que desenvolvidas tendo como imperativo as ações de fortalecimento da autonomia e da

participação ativa dos agricultores, a partir de mecanismos que irão subsidiar os processos de

transição agroecológica, que vem sendo encampado por este grupo de agricultores no sul

gaúcho.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 309

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 310

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 311

Os mercados das agroindústrias familiares:

produção de novidades e transições sociotécnicas no regime agroalimentar

Marcio Gazolla

Introdução

A investigação dos mercados é uma tarefa importante para os estudiosos do

desenvolvimento rural, pois é através destes que os agricultores sobrevivem e se inserem

economicamente na sociedade atual. Do ponto de vista da interpretação teórica dos mercados,

construiu-se diversos enfoques. Os primórdios teóricos foram da Economia Política Marxista,

seguida pelas ideias Neoclássicas. Nos anos 1980 se constituiu o debate da mercantilização da

agricultura (Commoditization) (PLOEG, 1992). Avanços mais recentes têm sido colhidos pela

Sociologia Econômica, Economia Institucional, bem como pela Teoria do Ator Rede

(GRANOVETTER, 1985; WILLIAMSON, 1996; NORTH, 1990)115

.

No Brasil, a polarização existente entre os estudos camponeses e da agricultura

familiar em relação aos do agronegócio não geraram avanços no debate sobre os mercados.

Este enfoque reduz formas sociais que são muito heterogêneas e que possuem estilos de

agricultura diferentes a dois “tipos” de agriculturas (na maioria das vezes, com um viés

político acentuado) que não ajudam na explicação sociológica e econômica da dinâmica da

agricultura brasileira e, consequentemente, do desenvolvimento dos seus mercados.

Sobre os estudos camponeses, é necessário avançar no sentido de não definir os

camponeses como atores sociais avessos aos mercados e que estes lhe seriam prejudiciais ou

destruidores do seu modo de vida (FERNANDES, 2009). Para entender melhor os

camponeses, é necessário estudar as diferentes formas de inserção econômica que estes

possuem, de forma que se possa melhor compreendê-los como os fizeram, por exemplo,

Friedmann (1978) e Abramovay (1998). O entendimento de como os agricultores agem nos

mercados é bem ilustrado pela passagem contida em Conterato et al (2011, p. 72):

115

Este artigo foi publicado originalmente no III Colóquio Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural com o

titulo: “Atores sociais e novidades na agroindústria familiar rural: avançando no debate sobre os seus

mercados”. Essa versão sofreu modificações e incorporações de novos argumentos e ideias e, em função

disso, não se manteve o titulo original.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 312

O modo camponês de forma alguma está associado à “aversão ao mercado” pois a

“condição camponesa” está assentada na capacidade de construir novas e

diferenciadas relações mercantis (Ploeg, 2008). [...] As estratégias de resistência

operam tanto através da desmercantilização, pelo afastamento em relação aos

mercados de insumos e fatores de produção, assim como dos circuitos de

commodities mais tradicionais, quanto pela construção de “mercados alternativos”:

especialidades de nicho, orgânicos, artesanais, solidários, institucionais, não

agrícolas, entre outros.

Para se entender os mercados na agricultura familiar é necessário dar um passo teórico

interpretativo adiante. O que se propõe a fazer neste trabalho é utilizar-se de outras

perspectivas teóricas para compreender estes mercados da agricultura familiar, utilizando-se

como campo empírico as agroindústrias familiares. Refiro-me a um enfoque que englobe a

ação social dos atores e a noção de mercados como novidades construídas pelos mesmos.

Esse enfoque pode ser encontrado na Perspectiva Orientada aos Atores (POA) de Long (2001)

e na noção de produção de novidades (WISKERKE; PLOEG, 2004).

Nesse trabalho, as novidades são entendidas como umas das dimensões importantes do

processo de desenvolvimento rural (PLOEG, 2003). Segundo o autor, o desenvolvimento

rural consiste em produzir novos produtos e serviços que estejam conectados ao acesso a

novos mercados. Segundo Ploeg et al (2010, p. 12), estes novos mercados podem ser

definidos como “[…] lugares concretos em que ocorrerem transações concretas, com

produtores concretos, consumidores concretos e concretas estruturas de referência subjacentes

que ajudam a compreender a emergência de novos mercados”. Como alguns estudos já

enfocaram, estes mercados podem ser entendidos como novidades dos próprios agricultores,

principalmente quando são cadeias curtas de comercialização (ROSSI et al, 2008; BRUNORI

et al., 2009).

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2006), os mercados

agroindustriais no RS116

possuem um valor total da produção de R$ 231.391.480,00. A

produção que as famílias não venderam compõe quase a metade de tudo que é processado

pela agroindústria rural (49,95%), sendo uma parcela relevante que não chega aos mercados,

mas é utilizada de vários modos pelas famílias, destacando-se a alimentação dos próprios

membros. Em segundo lugar, aparece a venda direta aos consumidores com 23,31% dos

mercados, conhecidos pela literatura como de proximidade ou cadeias curtas (RENTING et

al., 2003). A venda da produção para intermediários constitui 18,20% da produção e para a

indústria 6,92%. Por estes dados, nota-se a importância econômica destas iniciativas dos

116

O IBGE (2006) utiliza-se da definição de agroindústria rural.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 313

agricultores, pois elas perfazem um valor da produção considerável, que também se expressa

através dos mercados em que estes produtos agroindustriais são comercializados.

O objetivo deste capítulo é realizar a análise da dinâmica, funcionamento e dos

diferentes tipos de mercados em que as agroindústrias familiares se inserem. As questões a

serem respondidas são duas:

a) quais tipos de mercados são construídos como novidades pelas

agroindústrias familiares?;

b) qual a dinâmica destes mercados? Eles incrementam ou transformam o

regime sociotécnico alimentar existente?

Para responder tais questões, investiga-se as iniciativas familiares de

agroindustrialização na Microrregião de Frederico Westphalen/RS, como definido pelo IBGE.

Com relação aos dados utilizados, estes foram gerados a partir de dois projetos de pesquisas já

desenvolvidos com estas experiências117

. Também se usa parte dos dados coletados para Tese

de Doutorado, realizada no ano de 2011, na qual se investigou 7 iniciativas de

agroindustrialização de alimentos e bebidas. Estes dados são tanto qualitativos como

quantitativos.

O trabalho possui quatro seções com a introdução e as considerações finais. Na

próxima seção se desenvolve o enfoque teórico proposto no artigo, com base na POA e nas

ideias em torno da produção de novidades para estes mercados. Na segunda, demonstra-se os

tipos de mercados existentes a partir destas iniciativas, como eles são construídos, as suas

dinâmicas e como eles se inserem no debate das transições no regime sociotécnico alimentar.

Nas considerações finais, apontam-se algumas pistas pelas quais estes mercados são

entendidos como novidades e quais as transições e/ou incrementalismos que os mesmos

geram.

Enfoque teórico: produção de novidades e mercados

Como aportes teóricos ao estudo dos mercados destas iniciativas, utiliza-se a POA e a

noção de produção de novidades. Pela POA, entende-se a ação dos agricultores como sendo

117

Um deles foi a Pesquisa CAAF (PELEGRINI e GAZOLLA, 2006): “Caracterização e análise das

agroindústrias familiares na Região do Médio Alto Uruguai/RS” e o outro foi o Projeto IPODE

(SCHNEIDER, 2007): “Sementes e brotos da transição: inovação, poder e desenvolvimento em áreas rurais

do Brasil”. Ver em: http://www6.ufrgs.br/pgdr/ipode/. No primeiro projeto agradece-se à FAPERGS pelos

recursos disponibilizados e, no segundo, ao CNPq.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 314

ativa e estes são definidos como sujeitos portadores de “saber” e de “conhecimentos” - que

possuem agência. Os atores sociais não são considerados vazios e passivos frente a um evento

social, à ação do Estado ou mudanças não previstas. Por esta abordagem, os atores sociais são

construtores de suas atividades econômicas, sociais e, inclusive, dos mercados em que se

inserem e desenvolvem interações sociais com outros atores (LONG, 2001, 2006).

A noção de produção de novidades complementa este enfoque ao ressaltar que os

agricultores geram novidades de diversos tipos, como novas redes sociais, novos

conhecimentos, novos produtos/processos, novas tecnologias e novos mercados, entre outros,

a fim de atingirem maiores níveis de autonomia e de sustentabilidade em suas atividades

econômicas e produtivas (WISKERKE; PLOEG, 2004). Particularmente, nessa região de

estudo, as novidades em termos de novos mercados surgem da necessidade dos agricultores

em buscarem alternativas às cadeias longas de venda dos produtos como grãos e commodities,

e também devido ao squeeze118

da agricultura, com o qual houve diminuição substancial de

suas rendas e da qualidade de vida.

As novidades se caracterizam por serem radicais em relação às inovações e internas a

um contexto socioeconômico ou mesmo à unidade de produção dos agricultores. São, ainda,

locais/territoriais e podem se desenvolver fora das regras e normas das instituições vigentes,

podendo formar redes ou teias que possuem efeitos multidimensionais (PLOEG et al., 2004;

ROEP; WISKERKE, 2004; BRUNORI et al., 2009; KNICKEL et al., 2008). Neste capítulo,

as novidades são trabalhadas como sendo a construção de novos mercados nos quais os

agricultores se inserem através de suas experiências de comercialização de alimentos

transformados.

Ainda se discute se estes mercados de novidades geram transições ou

incrementalismos no regime sociotécnico instituído. O regime sociotécnico é entendido no

trabalho como as normas e regras que regulam a produção, distribuição e comercialização dos

alimentos. É definido por ser um regime sociotécnico que se caracteriza pela padronização

dos produtos, por um monopólio das grandes cadeias de distribuição e produção, pelas fusões

de grandes firmas, pela industrialização crescente dos alimentos, por dietas nutricionalmente

desequilibradas, pela centralização dos capitais agroindustriais e, eventualmente, por graves

crises e doenças agroalimentares (ROEP; WISKERKE, 2004).

118

A tradução para a palavra squeeze significa “aperto”, “compressão” ou “estreitamento”. É a situação gerada a

partir do processo de modernização da agricultura, em que os agricultores são comprimidos entre, de um

lado, o aumento dos custos de produção de insumos e tecnologias externas à propriedade e, de outro, pela

queda nos preços dos principais produtos agrícolas e alimentos, gerando um processo de queda constante na

rentabilidade das atividades produtivas. Ver Ploeg (2008) para maiores detalhes do conceito.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 315

Agroindústria familiar: mercados, novidades e transições sociotécnicas

A Tabela 1 apresenta as experiências pesquisadas, os produtos comercializados e seus

respectivos preços, quantidades e renda bruta obtida nos mercados acessados. Estes produtos

acessam os mercados de diferentes formas (Tabela 2, a seguir) produzindo uma renda variável

aos agricultores. Há experiências em que a renda bruta anual é menor (R$ 76.000,00) como é

o caso da Agroindústria Zonta, que produz suco de uva e vinhos, e da Agroindústria Gehen

(R$ 45.000,00), com a produção de erva mate ecológica de barbaquá. Em outras experiências,

a renda é um pouco mais elevada, como nos casos das Agroindústrias Prevedello (R$

101.750,00), com a produção de cachaça e cachaça envelhecida; e Ludke (R$ 174.500,00),

produzindo queijos colonial, parmesão e temperados.

Tabela 1- Preços, quantidades vendidas e rendas anuais obtidas pelas agroindústrias

Experiência

Produtos vendidos

Quantidade

Preços

(R$/Un)

Renda

Bruta (R$) 1 Agroindústria

Prevedello

- Cachaça

- Cachaça envelhecida em barril

de Carvalho

40.000 L

500 L

2,50/L

3,50/L

100.000,00

1.750,00

2 Cooperativa Biorga

– Filial de Erval

Seco*

Linhaça, trigo, feijão, amendoim,

gergelim, óleo de gergelim e

linhaça, canjica de milho, farinha

de milho e trigo

-

-

-

3 Strack Alimentos

Naturais

- Melado batido

- Melado fino (“cotovelo”)

- Açúcar mascavo

- Rapadura colonial

20.000 Kg

-

100.000 Kg

5.000 Kg

2,60/Kg

-

2,30/Kg

10,00/Kg

52.000,00

-

230.000,00

50.000,00

4 Agroindústria

Gehen

- Erva mate ecológica de barbaquá 10.000 Kg 4,50/Kg 45.000,00

5 Agroindústria

Ludke

- Queijo colonial

- Queijo parmesão

- Queijos temperados

15.000 Kg

300 Kg

1.000 Kg

10,50/Kg

16,00/Kg

12,00/Kg

157.500,00

4.800,00

12.000,00

6 Agroindústria Jotti - Salame colonial e calabresa

- Salame cracóvia

- Salsichão

- Linguiça mista defumada

- Bacon defumado

- Costela defumada

- Morcilhas

- Mortadela (em teste)

- Torresmo prensado

-Torresmo pururuca (“casquinha”)

- Codeguim

- Carnes in natura

- Banha

- Ossinhos

24.000 Kg

50 Kg

12.000 Kg

-

-

2.400 Kg

-

-

960 Kg

4.800 pc.

480 Kg

3.600 Kg

2.160Kg

3.600 Kg

10,00/Kg

14,00/Kg

5,50/Kg

-

-

8,50/Kg

-

-

8,00/Kg

2,00/pc.

4,50/Kg

5,75/Kg

2,70/Kg

1,00/Kg

240.000,00

700,00

66.000,00

-

-

20.400,00

-

-

7.680,00

9.600,00

2.160,00

20.700,00

5.832,00

3.600,00

7 Agroindústria Zonta

(antiga Natufred)

- Vinhos bordô, branco e isabel

- Suco de uva

- Graspa

7.000 L

8.000 L

-

6,00/L

4,25/L

-

42.000,00

34.000,00

-

Fonte: Pesquisa de campo (2011). OBS: - Sem informação durante pesquisa de campo.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 316

Há iniciativas que atingem altos níveis de renda bruta anual, como a Strack Alimentos

Naturais que chega a R$ 332.000,00 com a venda de açúcar mascavo, melado batido e

rapadura colonial. Também é o caso da Agroindústria Jotti que chega a R$ 376.672,00 de

renda bruta anual, com a venda de uma diversidade de produtos cárneos derivados de suínos.

Estes dados mostram a heterogeneidade socioeconômica e dos mercados que estas

experiências possuem.

O Quadro 1 apresenta de forma detalhada os diferentes mercados construídos pelas

iniciativas, bem como a sua situação frente às legislações e instituições do Estado. Primeiro,

pode-se observar que estes mercados possuem diferentes tipos de inserções institucionais,

como as locais (SIM, Alvará de Licença Municipal, Licença Ambiental Municipal), passando

pelas Certificações Participativas (Rede Ecovida) e regionais (Secretaria Regional da Saúde),

até situações que cumprem os requisitos a nível nacional, como é o caso das experiências que

seguem os parâmetros do MAPA e MS. Por outro lado, há iniciativas que estão na plena

informalidade, vendendo os seus produtos sem observar os requerimentos técnicos da

legislação agroalimentar.

Quadro 1 - Os novos mercados construídos e a sua situação frente às legislações agroalimentares

N° Experiência

Situação em

relação às

legislações

alimentares

Tipos de mercados

1 Agroindústria

Prevedello

Informal Vendas na própria agroindústria, nos

supermercados locais, bares e “bodegas”,

Cooperçara

2

Cooperativa

Biorga – Filial de

Erval Seco

Formal:

Certificação

Ecovida, CNPJ,

Secretaria Regional

da Saúde (MS) e

FEPAM

Cadeias longas (supermercados de SP e RJ),

quiosques da Recosol (Erval Seco e Frederico

Westphalen), supermercados locais, vendas na

própria agroindústria, expofeiras municipais

locais e de SC, Feira do Produtor de Palmitos –

SC, mercados institucionais (PAA), Corac (PAA)

e PAA formação de estoques (CONAB),

Cooperativa Coolmeia, Cooperbiorga

3

Strack Alimentos

Naturais

Formal: CNPJ,

FEPAM, Secretaria

Regional da Saúde

(MS)

Cadeias longas e atacadistas (Porto Alegre, SC,

RJ, PR, MG), intermediários, Cooperativa

Colônia, supermercados locais, vendas na própria

agroindústria, expofeiras locais, mercados

institucionais (PNAE), quiosques da Recosol,

Cooperçara

4 Agroindústria

Gehen

Informal: apenas

com Alvará de

Licença de

Municipal

Vendas na própria agroindústria, Associação dos

Trabalhadores de Seberi (ATS), Corac, “bodegas”

locais, Ervateira Alto Uruguai, expofeira

municipal

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 317

N° Experiência

Situação em

relação às

legislações

alimentares

Tipos de mercados

5

Agroindústria

Ludke

Formal: Sistema de

Inspeção Municipal

(SIM)

Feiras da agricultura familiar (Porto Alegre, DF,

RJ e regionais), vendas na própria agroindústria,

quiosques da Recosol, supermercados municipais,

nas casas e locais de trabalho dos consumidores,

restaurantes e cantinas, expofeiras locais,

mercados institucionais (PAA), Cooperac

6

Agroindústria

Jotti

Formal: Sistema de

Inspeção Municipal

(SIM)

Feiras da agricultura familiar (RS, RJ, DF e

regionais), 1 supermercado em Porto Alegre,

supermercados locais e regionais (10 a 12

municípios), vendas nas ruas, casas e locais de

trabalho, vendas na própria agroindústria,

Cooperac

7

Agroindústria

Zonta (antiga

Natufred)

Formal: Registro no

MAPA, Alvará de

Licença Municipal,

CNPJ, Licença

Ambiental (sendo

encaminhado) e

Bloco de Produtor

(“Sabor Gaúcho”)

Mercados institucionais (PAA e PNAE),

supermercados locais, Coopraf, quiosques da

Recosol, vendas na própria agroindústria,

expofeiras locais e do RS, feiras da agricultura

familiar (RS, RJ, DF), vendas nas casas e locais

de trabalho, STR, Feira do Produtor de Frederico

Westphalen

Fonte: Pesquisa de campo (2011)

O segundo aspecto é que há uma enorme diversidade de formas de comercialização da

produção, que muitas vezes depende da história da família, do contexto local, do tipo de

produto processado e também tem a ver com as legislações alimentares. Esta estratégia de

diversificação de mercados assegura aos agricultores a autonomia necessária nas transações,

pois se alguns mercados não “funcionarem” adequadamente, podem se relacionar com os

demais, protegendo-se de crises, logro ou outro evento inesperado.

Estes mercados serão descritos com base numa “tipologia” desenvolvida, para melhor

caracterizá-los em seu conjunto. Eles são agrupados em 6 tipos de mercados, como fica

explícito na Figura 1:

a) os mercados institucionais;

b) as cadeias curtas ou mercados de venda direta agricultor-consumidor;

c) os mercados de eventos;

d) as cadeias longas;

e) os mercados com pontos de venda formais, e

f) os mercados coletivos e em redes.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 318

Estes mercados serão retomados a seguir e discutidas as suas particularidades,

dinâmicas, frente à noção de produção de novidades e as transições e/ou incrementalismos no

regime sociotécnico que geram.

Figura 1 - Mercados construídos pelas agroindústrias familiares e seus percentuais de

participação relativa

Fonte: Pesquisa CAAF (PELEGRINI; GAZOLLA, 2006) e Pesquisa de Campo (2011).

Nota: *Os mercados coletivos e em redes foram considerados dentro dos percentuais do que a Pesquisa CAFF

denominou de “Outros mercados”.

Os mercados institucionais

Nestes mercados, há a venda dos produtos agroindustriais dos agricultores familiares

para os programas institucionais, como o PAA e PNAE. Estes mercados são obra do Estado,

já que foram construídos por dispositivos legislativos, como leis que os regulamentam para

incluir, de um lado, as populações recebedoras destes alimentos por ocasião do surgimento do

Programa Fome Zero e, de outro, para fortalecer os agricultores familiares através da compra

de seus produtos (CHMIELEWSKA et al., 2010). Neste tipo de mercados, há o

relacionamento dos agricultores e suas organizações com outras entidades, como escolas,

prefeituras, ONG’s, hospitais, órgãos assistenciais, creches. Ao Estado cabe o dever da

liberação dos recursos e gestão dos programas junto aos beneficiários e os agricultores

envolvidos.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 319

Estes mercados são importantes para as agroindústrias, pois representam um espaço

de comercialização dos seus produtos que antes de 2003 era inexistente. Na pesquisa CAAF,

estes mercados foram diagnosticados com um tamanho de 4,7% do total de mercados

acessados pelas iniciativas, lembrando que este dado é relativo a 2006 e está um pouco

defasado. Os mercados institucionais deram um novo alento aos agricultores, que chegam a

afirmar que antes do PAA e do PNAE “a dificuldade era vender os produtos” e que,

atualmente, a “dificuldade é produzir para suprir estes mercados”. Em alguns casos

investigados as entidades compradoras destes produtos chegam a ligar ou vir buscar os

produtos na residência dos agricultores, em função da exigência de cumprimento dos 30%

obrigatórios de compras da agricultura familiar estabelecidos pelo PNAE.

Um dos exemplos pesquisados a campo é o das vendas da Sociedade Frederiquense

dos Produtores Rurais e da Cooperativa dos Produtores Rurais da Agricultura Familiar

(Coopraff) a CONAB, pelo PAA CPR com doação simultânea. Esse projeto aplicou R$

134.539,24 na aquisição de 16 alimentos provenientes da agricultura e das agroindústrias do

Município de Frederico Westphalen. Há uma diversidade de produtos vendidos, desde os in

natura como frutas, tubérculos, verduras, passando pelos processados, como o mel, schimier,

bolachas, macarrão, sucos e outros produtos transformados119

. Outro fato relevante é que os

agricultores também ganham mais com estes mercados, pois no PAA os preços praticados são

superiores à média de comercialização geral da microrregião (GAZOLLA; SCHNEIDER,

2005).

Estes mercados exercem três efeitos junto às agroindústrias. Primeiro, fortalecem as

atividades produtivas e a economia das famílias, havendo incremento de produção de vários

dos produtos que acessam estes mercados e das rendas geradas com as vendas. O segundo é o

estímulo à inserção nestes novos tipos de mercados que os programas geram, pois estas

iniciativas de agroindustrialização passam a relacionar-se, através das vendas, com uma gama

crescente de instituições públicas, entidades e organizações sociais que não faziam parte da

sua dinâmica no período anterior aos programas. Como terceiro efeito, pode-se citar o

fortalecimento dos circuitos locais de produção e consumo, já que estes mercados aproximam

os produtores dos consumidores religando-os em novas dinâmicas e estimulando a produção e

consumo dos alimentos locais (TRICHES; SCHNEIDER, 2010).

119

Ressalta-se que neste projeto foram beneficiários 41 agricultores familiares e agroindústrias e 10 entidades de

consumidores, como centros de assistência social, entidades de cuidados a excepcionais, de idosos,

comunidades terapêuticas, de deficientes físicos e mentais, entidades de cuidado ao menor abandonado e

escolas municipais.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 320

Uma limitação observada nestes mercados é a respeito das experiências informais.

Estas são barradas de participarem dos programas, pois não estão de acordo com os

parâmetros institucionais requeridos para executar a comercialização da produção e garantir a

segurança alimentar e nutricional dos alimentos que ofertam. Nesse caso, os mercados

institucionais não permitem a comercialização da produção, o que representa uma sanção

institucional a estas experiências, que na maioria das vezes já são frágeis e vulneráveis. Em

outros casos, como é o exemplo da Agroindústria Zonta, houve o abandono de alguns

mercados anteriores como a venda direta aos consumidores, a supermercados e feiras locais

para a produção de sucos de uva voltar-se unicamente ao atendimento destes mercados. Esta

situação pode gerar dependência destes agricultores e deixar de fornecer estes produtos aos

outros mercados existentes, surgindo uma situação em que estes mercados tornam-se

predominantes para a venda dos alimentos.

As cadeias curtas ou mercados de venda direta agricultor – consumidores

Estes mercados são onde há um relacionamento de proximidade entre os agricultores e

os consumidores dos alimentos. São mercados nos quais esta relação de proximidade pode se

dar em uma feira de produtor local, através de vendas nas ruas, casas ou locais de trabalho dos

consumidores, na própria agroindústria ou casa dos agricultores (Quadro 1). Estes mercados

são caracterizados como sendo cadeias curtas, como os definem Renting et al (2003), devido a

que os alimentos percorrem poucos quilômetros entre o local de produção e o local de venda e

consumo. Ou ainda são conceituados como mercados diretos, pois a negociação em torno das

transações ocorre entre o agricultor e os consumidores, sem a existência de intermediários ou

de indústrias alimentares (WILKINSON, 2008).

Na microrregião analisada, estes mercados são os principais, com 50,9% das vendas

diretamente para os consumidores (Figura 1). Dois fatores explicam a sua predominância nas

transações locais entre agricultores e consumidores. Primeiro, é uma questão que tem base na

legislação alimentar, pois a grande maioria das iniciativas (72,64% das agroindústrias) são

informais perante o ambiente institucional do Estado. Isso é o principal fator que leva estas

experiências a acessarem estes mercados, que ficam à margem dos parâmetros técnicos da

legislação agroalimentar oficial120

.

120

Muitos agricultores não possuem o capital de giro necessário para poder executar o processo de legalização e

as políticas públicas que os mesmos acessam por diferentes vias e programas quase sempre enfocam o

fornecimento de estrutura física, a planta agroindustrial, máquinas e equipamentos para os processos de

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 321

Em outros casos, os agricultores nem desejam se legalizar perante estes mercados,

como é o caso das Agroindústrias Prevedello e Gehen (Quadro 1). Estas duas iniciativas

comercializam a cachaça e a erva mate ecológica, respectivamente, de maneira informal.

Primeiro, os agricultores sabem que para se formalizarem terão maiores custos de produção e

de transação associados ao processo produtivo e de comercialização dos alimentos

(GAZOLLA, 2009). Em segundo lugar, eles conseguem escoar a sua produção sem

problemas, pois estes mercados se desenvolvem devido às relações sociais de proximidade, de

interconhecimento e de transações repetidas entre os atores sociais. Isso gera lealdades mútuas

e confiança, que faz com que as compras dos alimentos sejam frequentes, mesmo não

havendo um “selo institucional” (WILKINSON, 2008).

Em terceiro lugar, há acordos tácitos entre os agricultores, os consumidores e os atores

sociais presentes nas instituições de fiscalização de alimentos, que asseguram que estes

produtos em determinadas ocasiões possam acessar os mercados. É o que acontece na

Agroindústria Gehen, em que devido à amizade com a família e conhecimento dos produtos

que a Vigilância Sanitária tem, deixa esta vender livremente no município e inclusive os

fiscais vão à casa do agricultor comprar este tipo de produto. Ou ainda nas feiras do produtor,

as instituições locais fazem um acordo tácito coletivo em que não é possível a aplicação de

sanções às experiências que ali estão comercializando produtos dessa natureza, para que estas

possam viabilizar as vendas.

Estes mercados também são tidos como principais pelos agricultores em função da

autonomia que estes lhes preservam, pois, nestes, os agricultores produzem seus alimentos,

vendem-nos aos seus consumidores conhecidos e leais, a preços negociados na hora da troca e

não dependem da legislação institucional. Um exemplo dessa autonomia são as vendas

realizadas pelas experiências, as quais, em 86,7% dos casos, são feitas pelo próprio núcleo

familiar, sem haver intermediários ou vendedores contratados.

Estes mercados também se mantêm devido a uma questão de preços e de qualidades

superiores atribuídas aos alimentos pelo imaginário dos consumidores. Os preços geralmente

praticados são inferiores aos pontos formais de comercialização, como supermercados e

outros, o que se torna um atrativo interessante aos consumidores. Por outro lado, os

consumidores veem estes mercados como possuidores de produtos com “qualidades

superiores”, atribuem adjetivações a estes alimentos como sendo “naturais”, “sem

processamento de alimentos. Estas nunca fornecem, por exemplo, uma equipe técnica especializada, recursos

monetários para o processo de legalização da iniciativa, crédito de custeio ou mesmo apoio das instituições

do Estado para que isso seja feito.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 322

conservantes químicos”, “orgânicos”, “nutritivos”, “ecológicos”, “honestos”, entre outras

denominações que demonstram a crença na “superioridade” alimentar e nutricional destes

(OLIVEIRA et al., 2002). Isso pode ser compreendido pelo que Long (2001) chamou de valor

social atribuído aos produtos, pois não são somente preços e quantidades que definem a

dinâmica dos mercados, mas também a representação que os atores possuem dos alimentos.

A força motriz que dita a evolução destes mercados são as estratégias adotadas pelo

núcleo familiar em comercializar os alimentos na esfera local. A novidade destes mercados

reside, justamente, em reconhecer as potencialidades que as famílias possuem em construí-

los, já que não recebem apoios externos e institucionais, pois estes mercados são locais,

informais e se relacionam principalmente com os consumidores (BRUNORI et al., 2009).

Estes mercados são um exemplo típico de uma novidade construída ativamente com base na

agência do grupo familiar e por fora das regras instituídas pelo regime sociotécnico alimentar.

Os mercados de eventos

Estes mercados também se caracterizam pela proximidade entre consumidores e

agricultores nas transações. Algumas ocorrem localmente e, em outras, distante espacialmente

dos locais de produção dos alimentos. Estes mercados são compostos pelas vendas em feiras,

eventos, festas e nas exposições. Apesar de terem vendas, a sua característica central é a

divulgação dos produtos, através de degustações, a visualização dos alimentos e conversa com

o público visitante. São mercados pelos quais passa uma percentagem da produção das

experiências que é de 9,4% (Figura 1). Caracterizam-se, ainda, por serem mercados formais e

informais, um misto de situações frente às instituições reguladoras.

Apesar destas características, estes mercados têm uma segunda importância para as

iniciativas. Eles são uma das formas que estes alimentos alcançam maiores distâncias

espaciais, chegando a outras regiões e até estados do Brasil, como é o caso da participação de

algumas experiências investigadas em Feiras da Agricultura Familiar em Porto Alegre/RS, no

Rio de Janeiro e em Brasília (Quadro 1). Mesmo sendo experiências informais, devido a

acordos tácitos entre instituições como o MDA, a Vigilância Sanitária e os organizadores das

feiras e eventos, estes produtos ampliam o seu raio de comercialização.

Outra forma disso acontecer é através das redes sociais que estas famílias conseguem

construir com outros atores, que servem para realizar a divulgação e comercialização dos seus

produtos a distâncias mais longas. É o caso da Agroindústria Jotti, que possui apenas o SIM e

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 323

comercializa em um supermercado de Porto Alegre, através de um tio que vem buscar os seus

alimentos e os revende nesse supermercado. É falsa a premissa de alguns estudiosos que

afirmam que estes mercados não possuem capacidade de se expandirem espacialmente para

comercializarem os produtos agroindustriais em outras regiões e que muitas destas iniciativas

estariam fadadas ao desaparecimento. Estes dois exemplos demonstram o contrário.

As cadeias longas de distribuição

Estas iniciativas também acessam os mercados chamados de cadeias longas. Têm esse

nome em função de que as distâncias percorridas pelos produtos são grandes, geralmente são

transportados da região de produção e a comercialização e o consumo acontecem em outros

locais. Estes mercados são destinados a suprir, principalmente, redes de supermercados,

compradores intermediários, indústrias e atacadistas que redistribuem essa produção. Estes

mercados são acessados por 18,9% das agroindústrias (Figura 1), sendo relevantes do ponto

de vista da reprodução social destas unidades. Este é o caso de duas experiências pesquisadas,

a Strack Alimentos Naturais e a Cooperativa Biorga.

A característica central destes mercados é o deslocamento da produção de locais de

origem para outros mais longínquos, sendo alimentos que podem ser definidos como foods

miles, como ocorre na Europa em relação aos alimentos que percorrem longas distâncias antes

de serem consumidos. Essa estratégia é pouco sustentável do ponto de vista ambiental e

econômico, pois os custos de energia são altos para deslocar espacialmente estes alimentos

(PRETTY et al., 2005). Por exemplo, um estudo desenvolvido no Reino Unido estimou que a

produção de alimentos é responsável por 17% das emissões de dióxido de carbono, que

contribuem para o efeito estufa. Só o transporte dos mesmos é responsável por 9% de todas as

emissões que cabem à parcela da agricultura121

. Estes mercados são característicos de

iniciativas formalizadas e com uma escala de produção um pouco maior, para assim poderem

suprir as demandas destes compradores. Entretanto, este relacionamento com as cadeias

longas inspira cuidados aos agricultores, pois a dependência em relação e estes impérios

alimentares pode ser grande em termos de fixação de preços, cláusulas em contratos e

margens de rentabilidade (PLOEG, 2008).

Outra questão a considerar é o enorme crescimento dos supermercados na

coordenação de cadeias produtivas importantes, o que se revela perigoso enquanto estratégia

121

Ver: http://www.climatechoices.org.uk/pages/food3.htm

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 324

de abastecimento agroalimentar da sociedade e também para a sobrevivência das pequenas

agroindústrias. Por exemplo, Reardon et al (2003) estimam que a participação dos

supermercados no total do varejo nos seis países líderes de América Latina varia de 45-75%,

com o Brasil em primeiro lugar, seguido por Argentina, Chile, Costa Rica, México e

Colômbia. Com essa prática de comercializar com estes gigantes agroalimentares, estas

experiências estão incrementando o regime sociotécnico alimentar, baseado na produção –

transporte – comercialização – consumo de alimentos a longas distâncias e com agentes dos

mercados hegemônicos. Essas agroindústrias estão entrando em cadeias produtivas e

comerciais com as regras e sua dinâmica já institucionalizadas, nas quais a construção de

margens de manobra para estas iniciativas é muito pequena.

Os mercados com pontos de venda formais

Estes mercados são aqueles em que o local de venda dos produtos são formalizados

perante os aspectos sanitários, jurídicos e institucionais. Geralmente, são pontos de

comercialização ou de consumo de alimentos como supermercados locais, bares, as chamadas

“bodegas”, restaurantes e cantinas. Estes mercados, na grande maioria, exigem a formalização

das iniciativas dos agricultores para poder colocar os seus produtos à venda, sendo mercados

restritivos às experiências informais. Estes mercados são responsáveis por percentuais altos de

comercialização das agroindústrias, 21,7% das experiências, sendo o segundo maior, ficando

atrás somente das cadeias curtas (Figura 1).

Também são mercados que exigem certa regularidade de entregas, pois devem ter os

alimentos disponíveis aos seus consumidores em todas as épocas do ano. Isso é outro desafio

aos agricultores, devido à sazonalidade da produção agrícola, em especial os vegetais, frutas,

hortaliças e tubérculos processados. Muitos agricultores não conseguem se inserir nesses

mercados por não possuírem suprimentos em escala suficiente, com um fluxo contínuo de

produção e devido aos padrões de qualidade exigidos.

Entretanto, muitas experiências informais se utilizam destes mercados no início de seu

funcionamento para colocar os seus produtos, como demonstra o Quadro 1. A Agroindústria

Gehen comercializava a erva mate ecológica principalmente em sacos de 60 kg que eram

vendidos a supermercados locais, bares e “bodegas”, sendo estes essenciais ao fortalecimento

da experiência. Em outros casos, como as Agroindústrias Prevedello e Jotti, há o acesso a

estes mercados de forma bastante frequente. A primeira experiência vende a cachaça de forma

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 325

informal a vários supermercados de municípios vizinhos, sem nunca ter tido problemas de

sanções institucionais. Já a segunda iniciativa, comercializa seus derivados de carne suína em

10 a 12 municípios vizinhos, somente com o SIM. Nesse caso, há, novamente, acordos tácitos

entre o agricultor, as instituições dos municípios e as agências de Vigilância Sanitária e

fiscalização para que estes produtos possam ser comercializados nestes locais.

Nestes mercados, os agricultores estão presos às regras de funcionamento dos pontos

formais de comercialização e às exigências das formalidades institucionais que lhes faz parte.

Os agricultores se acham reféns das normas destes pontos formais de comércio e inserem-se

nos mesmos sem diferenciar-se, geralmente incrementando o regime sociotécnico alimentar.

Nestes mercados, a construção de novidades pelas experiências são difíceis devido a estarem

expostas as diretrizes destes pontos de compras dos alimentos.

Os mercados coletivos e em redes: o caso da Recosol

Estes mercados são caracterizados por organizações sociais coletivas, formando redes

em torno das iniciativas de agregação de valor, principalmente objetivando a comercialização

dos alimentos. São constituídos por cooperativas, associações, feiras de produtores, quiosques

de venda dos produtos das agroindústrias e grupos de agricultores. Um tipo destes mercados

investigados na pesquisa foi o da Rede de Cooperativas das Agroindústrias Familiares

(Recosol), como demonstra a Figura 2. Todas as experiências citadas no Quadro 1 participam

desta rede, através de suas cooperativas e associações.

A constituição da Recosol é uma típica novidade de mercados organizados na forma

coletiva e em redes. Ela foi criada pelos agricultores e outros atores sociais no ano de 2007,

constituindo-se como a primeira rede estadual de cooperativas de agroindústrias familiares do

RS122

. Na Figura 2, observa-se que a Recosol funciona como uma “central de

comercialização” e de organização social destas experiências. Ela é o centro dinâmico de uma

série de cooperativas, associações, agroindústrias e quiosques de venda destes alimentos que

gravitam em torno da mesma, formando uma rede territorial coletiva, parecida com o que

Wiskerke e Ploeg (2004) chamaram de Cooperativas Territoriais da Floresta da Frísia.

Na base de sustentação da Recosol, estão as experiências de agroindustrialização que

são as células de existência da rede. Estas agroindústrias se ligam a cooperativas ou

122

A experiência se inspirou na Unidade Central de Apoio às Agroindústrias Familiares Rurais do Oeste

Catarinense (UCAF), que possui uma organicidade parecida, porém, muito mais desenvolvida e avançada em

termos de existência, recursos e estrutura de estímulo aos agricultores. Para maiores detalhes ver:

http://www.ucaf.org.br/Site/index.html

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 326

associações da agricultura e da agroindústria familiar regionais. Por sua vez, estas

cooperativas e associações são os elos entre as iniciativas individuais ou coletivas e a

Recosol. Ainda há quiosques e as feiras de produtores que integram essa estrutura regional,

sendo pontos de comercialização que foram sendo instalados através dos anos pela Recosol,

geralmente situados em locais estratégicos de vendas e com maior circulação de pessoas,

como centro de cidades, próximo a estações rodoviárias, vizinhos a praças ou na beira de Br’s

como comumente são mais encontrados.

Figura 2 - Organização social da Rede de Cooperativas das Agroindústrias Familiares (Recosol)

Fonte: Elaborado pelo autor (2012).

Esta organização em números representa cerca de 70 agroindústrias familiares de

várias cadeias produtivas. Quanto ao número de cooperativas e associações, por ocasião da

pesquisa eram em 17, todas ligadas à agricultura e agroindústrias familiares, espalhadas num

raio de 34 municípios, na mesma espacialização que compõe as políticas territoriais do MDA.

Os quiosques de comercialização são em número de 6 e as feiras de produtores em número de

3, espalhados pelos municípios, formando uma rede de vendas.

Segundo levantamento realizado pelo MDA, a Recosol gera R$ 376.682.700,00 anuais

em comercialização das agroindústrias e suas cooperativas nos 34 municípios. Para fora

destes municípios, é vendido um valor de R$ 4.155.900,00 para os diversos mercados.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 327

Somente em três dos seis quiosques instalados, estima-se um volume de vendas de R$

348.045,00 no ano de 2010. Somados estes valores, a rede atinge um total de fluxos de vendas

monetários de R$ 381.186.645,00 anuais em movimentação de recursos nestes mercados,

demonstrando o seu tamanho. São 2.700 famílias que estão ligadas a ela, beneficiando-se

destes recursos, serviços e apoios prestados (MODESTI; CHIERENTIN, 2010).

Estes mercados coletivos e em redes funcionam da seguinte forma: as agroindústrias

individuais e coletivas podem comercializar livremente os seus alimentos nos mercados antes

discutidos, sendo as suas cooperativas, os quiosques e a Recosol mais uma alternativa de que

dispõem. As cooperativas também possuem supermercados ou outros pontos de vendas em

que as iniciativas podem colocar os seus produtos. Os quiosques e as feiras oferecem uma

estrutura pulverizada para comércio, sendo outra opção. Estes quiosques funcionam

regionalmente, transacionando os alimentos entre diferentes locais no interior da

microrregião, pois em algumas localidades há a produção de alguns produtos e, em outras, de

outros. A troca entre locais permite que toda a microrregião tenha à disposição a gama de

alimentos existentes e faz com que aumentem as vendas.

Por exemplo, em um dos quiosques pesquisados no Município de Erval Seco, o seu

movimento mensal de comercialização abarcava 32 produtos, 12 agroindústrias e de outros

agricultores que entregam alimentos in natura. Estas vendas totalizaram um volume de

recursos em renda bruta obtidos de R$ 2.523,00 mensais em 2011. Estes quiosques funcionam

como um ponto de venda direta dos agricultores para os consumidores, como se fosse uma

cadeia curta, pois os produtos são locais e levam em conta a possibilidade de aproximar

produtores dos consumidores pelas suas relações sociais existentes nos pequenos municípios.

Geralmente, estes espaços de vendas são administrados pelos próprios agricultores, por uma

das cooperativas ou associações da Recosol. Quando estão colocados perto dos centros

urbanos, os seus principais compradores são donas de casas, pessoas idosas e ligadas a

questões de meio ambiente e movimentos sociais. Quando implantados vizinhos a rodovias,

possuem como alvo os transeuntes, como caminhoneiros, pessoas de férias ou em viagem.

A Recosol tem como base as agroindústrias, cooperativas e associações já existentes

dos agricultores. No entanto, recebeu nos últimos anos muitos recursos do Programa

Territórios Rurais do MDA, que, a partir de 2008, tornou-se Territórios da Cidadania. Os

atores sociais locais foram fundamentais para fundar a base inicial de organicidade da

Recosol, mas esta não seria possível sem o apoio das políticas públicas territoriais. Como

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 328

exemplo, todos os quiosques implantados possuem algum grau de investimentos feito por

estas políticas públicas e até recursos de Emendas de Parlamentares123

.

Ao mesmo tempo em que as políticas públicas fortalecem a experiência da Recosol,

elas também exercem um efeito de dependência, pois toda esta rede de comercialização foi

organizada com recursos públicos que, se a qualquer momento deixarem de ser injetados, por

exemplo, em função de troca governamental federal ou mudança nas políticas territoriais,

pode ser o fim de toda essa experiência e de muitas agroindústrias ligadas a ela. Certamente

os atores sociais locais e agricultores não conseguirão manter a Recosol em funcionamento

sem as injeções de recursos federais. Exemplo disso foi o caso emblemático da Cooperativa

Regional da Agricultura Camponesa (Corac), que fazia parte da Recosol e fechou as portas

em 2009 devido à dependência existente dessa experiência para com o PAA.

A Recosol é a principal novidade de construção social de mercados que estes atores

sociais geraram nos últimos anos em toda a microrregião estudada. A Recosol é um esforço

destes atores locais, principalmente os agricultores e suas organizações, que se dirige em três

direções importantes:

a) ganhar escala de produção e comercialização agindo de forma coletiva, para

conseguir sobreviver num cenário de crises econômicas e de globalização da

economia;

b) reduzir os seus custos de transação e de produção, pois coletivamente

podem viabilizar várias necessidades em conjunto para todas as experiências

e organizações (por exemplo, uma única marca própria, rótulo, legalizações

diversas, código de barras, equipes de técnicos, etc.);

c) possuir maiores espaços políticos e organizativos para poder barganhar

recursos diferenciados frente ao Estado, às políticas públicas e às próprias

legislações agroalimentares.

123

Segundo dados do MDA (2010), no RS foram aplicados R$ 68.747.334,41 no desenvolvimento dos territórios

rurais, de 2003 a 2010. Foram ainda implantados, no mesmo período, 148 espaços de comercialização da

agricultura familiar e criadas 205 novas experiências de agroindústrias. Só no ano de 2009/2010, para a

Região do Médio Alto Uruguai, as politicas territoriais aplicaram um total de R$ 900.000,00 em recursos de

investimento e R$ 100.000,00 para custeio. Nesse caso, pode-se dizer que a novidade é institucional também

e não somente dos atores sociais locais, pois as políticas públicas possuíram um papel central em sua

viabilização. É um típico caso de coprodução de novidades entre os atores sociais, como aquele analisado por

Brunori et al (2010) na Região da Toscana - Itália.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 329

Considerações finais: por que alguns destes mercados são novidades? Quais as

transições construídas?

Um primeiro fator importante é a autonomia que as famílias adquirem em alguns

destes mercados. Por exemplo, nos mercados de cadeias curtas e nos da Recosol estes

agricultores realizam as suas transações diretamente com os consumidores e o grau de

autonomia destes é relativamente alto. Estas iniciativas não dependem do contexto

socioeconômico externo da unidade para comercializar os seus produtos; não estabelecem

relações com o ambiente institucional e as legislações alimentares; os seus consumidores são

relativamente fiéis e possuem confiança nos produtos que adquirem; e os recursos e

estratégias de vendas são dos próprios agricultores. Outro fator importante é que nestes

mercados o valor agregado à produção fica com os agricultores, pois se eliminam as

intermediações. Esta é uma característica das novidades, atingir graus elevados de autonomia

para os atores que as produzem, de forma a diminuir as suas múltiplas dependências.

As novidades se desenvolvem à margem dos padrões e regras fixados pelo regime

sociotécnico alimentar reinante, como é o caso das iniciativas informais. Normalmente, as

instituições de regulação de alimentos exigem que todas as unidades produtoras e

comercializadoras de alimentos cumpram as normas independentemente da escala,

especificidades tecnoprodutivas e do contexto social em que estas se reproduzem. Dessa

maneira, é normal que algumas destas iniciativas percorram o trajeto oposto, ou seja, de não

cumprir estes regramentos e tentar patrocinar um desenvolvimento ao contrário. Como

demonstrou Long (2001), os agricultores reagem de formas diferentes a uma dada situação

social contingente ou à intervenção do Estado, o que explica o porquê destes mercados serem

avessos ao ambiente institucional, que normalmente lhes é hostil. Este é um dos princípios das

novidades, a capacidade de surgirem fora da trajetória de desenvolvimento dominante.

Estes mercados também são novidades por que se baseiam nas estratégias dos

agricultores e do núcleo familiar para realizar a comercialização da produção, na sua maior

parte, com exceção das cadeias longas, nas quais isso é feito por outros atores e empresas. Os

agricultores não possuem um consultor, um vendedor contratado ou uma empresa terceirizada

para realizar as suas vendas. Em 86,7% dos casos investigados verificou-se que as estratégias

utilizadas de comercialização são um atributo das famílias e que geralmente é o pai ou um dos

filhos que realiza essa tarefa (PELEGRINI; GAZOLLA, 2008). Isso é um indicador de

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 330

autonomia ao grupo familiar e de agência ativa destes atores sociais em construir os seus

próprios mercados, características da produção de novidades.

Porém, nem todos os mercados analisados nesse trabalho proporcionam a produção de

novidades, como, por exemplo, os mercados de cadeias longas e alguns pontos formais de

vendas, como os supermercados e restaurantes. Nestes, cabe aos agricultores que participam

se inserirem nos padrões sociotécnicos ditados e seguir as normas (PLOEG, 2008). Nesses

mercados, os agricultores não possuem margem de manobra para fazer valer os seus projetos

individuais e estratégias. Eles se inserem no regime sociotécnico agroalimentar vigente e o

incrementam com alguns produtos vindos destas experiências para se diversificarem e

conseguirem conquistar alguns consumidores diferenciados também. Nestes mercados, as

novidades encontram-se totalmente bloqueadas.

De outro lado, estas iniciativas fazem proliferar pequenas, mas contínuas transições

em relação ao regime sociotécnico alimentar instituído:

a) uma primeira transição é verificada com relação à produção dos alimentos

com especificidades, que se diferenciam dos altamente industrializados

(artesanais, locais, da agricultura colonial, típicos, agroecológicos, étnicos,

etc.). Estes produtos disputam continuamente os espaços com os alimentos

do regime sociotécnico instituído;

b) uma segunda maneira pela qual estas transições ocorrem é com relação aos

novos circuitos de mercados criados pelos agricultores, especialmente os

circuitos curtos locais, coletivos e em redes que são alternativas às cadeias

longas e aos supermercados;

c) outras pequenas transições são sentidas em nível das organizações, como é o

caso da Recosol e suas cooperativas. Estas servem como espaços de

gestação de novas práticas locais, processos organizativos e rotinas, que aos

poucos vão modificando o ambiente institucional. Essa nova organização

coletiva e em redes é a principal novidade desenvolvida pelos agricultores

neste local;

d) como exemplo de uma transição relevante, podem ser citados as políticas e

programas existentes a níveis federais e estaduais, que foram criados em

função do surgimento das agroindústrias, como o Pronaf Agroindústria ou

mesmo o Programa de Agroindústria Familiar (PAF/RS).

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 331

Com a criação destas políticas e programas, há a sinalização de ocorrência de

transições em nível do regime, pois se abriu a possibilidade destas iniciativas de influenciá-lo,

mesmo que em graus pequenos e ainda pouco previsíveis.

Outro aspecto interessante é a intervenção das políticas públicas e instituições. Esta é

dúbia sobre estes mercados, às vezes incentivando-os e, em outros casos, fragilizando-lhes.

No caso dos programas institucionais como o PAA e o PNAE, elas agem no sentido da

inovação institucional com políticas benéficas, dando fluxo comercial e inserção econômica

às famílias e alimentos. Mas, de outro lado, podem gerar dependência destes agricultores em

comercializar somente nestes mercados. No caso das agroindústrias informais, simplesmente

os produtos sem adequação às legislações agroalimentares estão de fora destes mercados. Em

outras situações, como no caso do Programa Territórios Rurais e da Cidadania, gerou-se

dependências das cooperativas, associações e das experiências aos recursos governamentais e

não se tem conhecimento, se estes forem reduzidos ou acabarem, sobre qual será o futuro

destas iniciativas.

A pesquisa de campo também evidencia que é falsa a afirmação de alguns estudiosos

de que estes mercados não conseguem se expandir espacialmente e alçar os seus alimentos a

outros locais e regiões. Mesmo em situações em que as agroindústrias são informais e em

pequena escala, há quatro maneiras pelas quais o deslocamento dos alimentos acontece:

a) a primeira forma, pela qual há maior espacialização territorial destes produtos,

acontece nos mercados de eventos, nos quais estes se deslocam dos locais de

origem para outros, através de acordos tácitos previamente feitos entre atores e

instituições. Por exemplo, através das feiras e expofeiras é normal estes produtos

atingirem regiões como RJ, SP, Porto Alegre e até Brasília;

b) a segunda forma é através das redes sociais que os agricultores mobilizam. Estes

acionam parentes, compadres, amigos e outras relações sociais para que estes

alimentos alcancem outros lugares;

c) a terceira forma é através das cadeias longas, que mesmo sendo mercados habituais,

fazem com que as experiências formais consigam se inserir em locais mais

longínquos e;

d) a quarta forma é usando da certificação social e participativa, como a Cooperativa

Biorga faz. Com a construção desses labels sociais, esta experiência consegue

transportar a confiança e outros atributos qualitativos dos alimentos a maiores

distâncias do que os mercados locais e conquistar consumidores em outras regiões.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 332

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 335

Inovação e construção de conhecimento: o caso dos sistemas agroflorestais

manejados por citricultores ecológicos no Vale do Caí, RS

Flavia Muradas Bulhões

Fábio Kessler Dal Soglio

Introdução

O Vale do Caí é uma região de colonização predominantemente alemã, no Rio Grande

do Sul, próxima à capital do estado, Porto Alegre. Além da diferenciação ambiental,

caracterizada pelo Rio Caí e seu vale, os processos históricos de colonização similares e a

significativa interação entre os municípios integrantes desta região, fizeram com que a região

seja política, administrativa e popularmente conhecida como Vale do Caí. Esta diferenciação

é clara na formulação de políticas públicas e de mecanismos de planejamento, como o

Conselho Regional de Desenvolvimento (COREDE) Vale do Caí.

A presença de sistemas agroflorestais é uma característica relatada para a região, no

mínimo, nos último 30 anos. Granja (1979), em estudo sobre a acacicultura, relatou sistemas

agroflorestais que combinavam plantios de acácia-negra em consórcio com milho, mandioca,

melancia e fumo no primeiro ano de desenvolvimento. Em estudo mais recente, realizado por

Pazenhagen et al. (2008) em propriedades de citricultores ecológicos, foi relatado que 63%

das propriedades apresentavam algum sistema agroflorestal, e outros 25% dos citricultores

pretendem, futuramente, implantar sistemas agroflorestais nas suas propriedades.

O manejo de sistemas agroflorestais requer uma nova forma de produção, diferenciada

dos sistemas utilizados pela maior parte dos agricultores familiares, o que gera dúvidas sobre

as práticas a serem adotadas, sobre a sua viabilidade e riscos associados. Esta dificuldade em

manejar sistemas agroflorestais não é apenas dos agricultores, mas também dos técnicos e

pesquisadores que atuam na área de produção agrícola ou florestal. Neste contexto, as

dificuldades inerentes ao manejo de sistemas agroflorestais fazem com que ocorra um

processo de aprendizagem diferenciado. No enfoque adotado nesta pesquisa, considera-se

que, tão importante quanto compreender os processos físicos, biológicos e ecológicos

envolvidos, é necessário compreender as dinâmicas associadas ao conhecimento e à inovação

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 336

que ocorrem no processo de manejo de sistemas agroflorestais, especialmente por se tratar de

uma nova forma de produção para os agricultores.

Para que os agricultores manejem estes agroecossistemas, é necessário o

desenvolvimento tanto de novas técnicas e de novas formas de organização do trabalho, ou a

adaptação de técnicas, artefatos e práticas pré-existentes. As motivações para a mudança e o

processo de aprendizagem que ocorre ao longo das etapas relacionadas ao desenvolvimento

de sistemas agroflorestais é um espaço importante para o estudo de temas relacionados ao

conhecimento dos agricultores e ao processo de produção de novidades e de inovação.

Considerando as questões expostas, o objetivo geral da pesquisa foi compreender as

motivações para a opção pelo manejo de sistemas agroflorestais e o processo de construção de

conhecimento, bem como a produção de novidades e de inovações por parte de agricultores

familiares que manejam sistemas agroflorestais.

A pesquisa está embasada em referenciais teóricos que abordam a construção do

conhecimento, o processo de inovação e a produção de novidades, buscando compreender

como estes três elementos se relacionam com o manejo de sistemas agroflorestais conduzidos

por agricultores e com o conjunto de normas nos quais estes atores estão inseridos.

A abordagem teórica adotada utiliza noções oferecidas pela Perspectiva Orientada pelo

Ator, agregando elementos da Teoria do Ator-Rede e da Perspectiva Multinível. Considera-se

que esta aproximação é uma boa opção para a análise das práticas e do processo de geração de

conhecimento e de inovações produzidos por agricultores que atuam na implantação e manejo

de agroecossistemas complexos, como são os sistemas agroflorestais.

A pesquisa desenvolvida é parte integrante de diversos estudos que estão sendo

realizados por grupos de pesquisadores no âmbito dos programas de pós-graduação em

Desenvolvimento Rural e em Fitotecnia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que

buscam compreender processos de construção de conhecimento e a produção de novidades e

inovações no contexto rural, bem como aspectos ligados à busca da sustentabilidade na

agricultura. Neste contexto, buscou-se contribuir com o conjunto de pesquisas que refletem

sobre conhecimento e inovação na agricultura, abordando o seguinte problema: por que

agricultores manejam sistemas agroflorestais e como desenvolvem conhecimento para o seu

manejo? Para responder a este problema, a pesquisa passou por uma etapa de identificação de

experiências de agricultores que estivessem manejando sistemas agroflorestais. Dentre

diversas experiências existentes, foram selecionados dois grupos de citricultores que manejam

sistemas agroflorestais no Vale do Caí, Rio Grande do Sul, incluindo práticas de condução de

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 337

sucessão natural, em um processo que já dura mais de 10 anos e que iniciou antes da

formulação de políticas públicas específicas e sem pesquisas conhecidas para o tema.

Metodologia

A pesquisa proposta foi desenvolvida com agricultores familiares associados de

organizações que atuam com a “agricultura ecológica124

” na região conhecida como Vale do

Caí, e também com técnicos ou pesquisadores que desenvolvem projetos vinculados aos

agricultores entrevistados.

Os grupos participantes da pesquisa são os agricultores e técnicos vinculados à

Cooperativa dos Citricultores Ecológicos do Vale do Caí (ECOCITRUS), a Associação

Companheiros da Natureza, os técnicos ligados ao Instituto Morro da Cutia de Agroecologia

(Organização Não Governamental de Assessoria Técnica), técnicos locais da EMATER e

pesquisadores envolvidos com o tema. Estas organizações estão unidas na promoção da

citricultura ecológica, porém diferenciam-se em diversos aspectos, inclusive na abordagem

dos sistemas agroflorestais. Esta diferença foi especialmente interessante para esta pesquisa,

que buscou entender o processo de inovação tecnológica e de geração e apropriação de

conhecimento associado à adoção de um sistema de produção diferenciado.

A delimitação da área de estudo foi definida pelos locais de moradia e de trabalho dos

citricultores entrevistados e compreende parte do COREDE Vale do Caí, mais

especificamente os municípios de Brochier, Capela de Santana, Harmonia, Maratá,

Montenegro, Pareci Novo, São Sebastião do Caí e Tupandi.

O estudo desenvolvido é uma pesquisa qualitativa. As fontes de informação utilizadas

para o estudo foram as seguintes: observação participante, entrevistas semi-estruturadas,

revisão bibliográfica, diário de campo, uso de imagens (fotos e vídeo), visitas às sedes das

organizações dos agricultores e aos museus da região e análise de documentos impressos.

A observação participante se deu através da visita às residências, áreas manejadas e/ou

escritório dos entrevistados, além da participação em reuniões, em eventos e nas feiras,

buscando compreender parte do cotidiano dos agricultores e técnicos, bem como a percepção

de elementos não presentes ou negligenciados nas entrevistas, na documentação textual

analisada ou no discurso dos entrevistados. O processo de observação participante iniciou em

124

Os agricultores se autodenominam “agricultores ecológicos” - estão incluídos agricultores orgânicos,

agroecológicos, biodinâmicos e permacultores, além daqueles que combinam elementos destes diferentes

modelos de agricultura.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 338

2007, através de participação em reuniões e eventos do grupo de pesquisa em citricultura

ecológica, como uma forma de aproximação do universo dos entrevistados, estendeu-se por

2008 e foi intensificado a partir de meados de 2009 até janeiro de 2011, quando foi encerrada

a etapa de pesquisa de campo. As informações obtidas foram registradas em gravações,

vídeos, fotografias e em diário de campo.

As visitas às áreas manejadas foram previamente agendadas, de forma individualizada.

A técnica utilizada foi “walk-in-the-woods” (PHILLIPS; GENTRY, 1993; ALEXIADES,

1996) e consistiu em caminhadas livres com os entrevistados nas áreas manejadas, de forma a

obter informações sobre as espécies, as técnicas e práticas utilizadas. Diferente da entrevista,

esta etapa era totalmente conduzida pelo entrevistado, que apresentava sua forma de

produção, técnicas e práticas utilizadas em campo, definindo o roteiro a ser percorrido e as

informações que julgasse procedentes, ressaltando aspectos que considerava importantes, no

modo e na extensão que julgasse conveniente. De modo geral, esta foi uma etapa muito rica

em informações, na qual o agricultor demonstrava interesse em expor o seu trabalho.

A observação participante foi favorecida também pelas entrevistas, que foram

realizadas nos locais de trabalho dos entrevistados e/ou em suas residências, permitindo

avaliar aspectos diversos, desde a tipologia das construções, a paisagem, as formas de

relacionamento com familiares presentes ou próximos às entrevistas, a forma de organização

da propriedade e do trabalho, enfim, o contexto onde o entrevistado está inserido.

Todos os participantes da pesquisa foram entrevistados individualmente,

eventualmente com a presença de familiares. A identidade dos entrevistados foi preservada,

adotando-se códigos para sua identificação, composto por iniciais e números.

O manejo de sistemas agroflorestais como novidade e inovação na citricultura

Novidades são, ao mesmo tempo, atrativas e incertas. Esta característica de resultados

incertos é parte de todo processo inovador, que vem carregado de aprendizados. Um elemento

associado ao caráter de incerteza que foi identificado na pesquisa é a dificuldade em definir

sistemas agroflorestais por parte dos entrevistados. Os sistemas agroflorestais no Vale do Caí,

como de resto em quase todos os lugares, são anteriores à definição de um termo específico.

Os sistemas são manejados por indígenas desde antes da chegada dos europeus ao continente

americano, mas não tinham uma expressão ou um termo que os designasse. O processo de

construção de um significado para “sistemas agroflorestais” gera disputas e conflitos, no qual

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 339

as diferentes visões dos atores e as expectativas em torno dos alcances político-ideológicos

deste sistema de produção buscam espaço.

A incerteza não é apenas relativa à definição do sistema. Nem todas as novidades são

bem-sucedidas ou atingem os objetivos esperados (WISKERKE; PLOEG, 2004). Há sempre

um componente de risco e incerteza nos processos de inovação; para alguns este risco é

ameaçador o suficiente para afastá-los do processo ou atrasar a sua tomada de decisão, mas,

para outros, há desafio e criatividade em enfrentá-los e superá-los.

Cabe ressaltar que a decisão de inovar é estratégica, pensada e calculada. Nenhum dos

entrevistados arriscou mudanças no sistema de produção apenas por diversão ou curiosidade,

embora elas também estivessem presentes. Os motivos para a opção pelo manejo de sistemas

agroflorestais são diversos, variam entre os agricultores entrevistados e também entre o

conjunto dos técnicos, mas há muitos elementos comuns: todos os entrevistados reportam o

manejo de SAFs como importante elemento de defesa fitossanitária contra a pinta-preta125

, o

cancro cítrico, a queima de folhas e frutos pelo sol ou para abrigo de predadores de pragas. Os

aspectos ambientais são percebidos como embutidos na questão da defesa fitossanitária,

incluindo a oferta de habitat para a fauna silvestre, a ciclagem de nutrientes e o equilíbrio no

microclima, que resultam em plantas mais saudáveis.

Além da proteção fitossanitária do pomar, os motivos dos agricultores que manejam

SAFs expressos nas entrevistas foram os seguintes:

a) aporte de matéria orgânica e melhoria das condições do solo;

b) diversidade e equilíbrio;

c) curiosidade, experimentação e demonstração;

d) aspectos éticos ou sociais;

e) possibilidade de ganhos futuros com a comercialização de produtos

florestais;

f) motivos subjetivos diversos. Todos os entrevistados indicaram mais de um

motivo para manejar sistemas agroflorestais.

Os agricultores que inovaram com mais rapidez ou radicalizaram na mudança são, em

geral:

125

Pinta-preta e cancro cítrico são doenças importantes na citricultura e afetam as condições de acesso ao

mercado.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 340

a) membros de famílias que possuem outra fonte de renda;

b) pertencem à família com tendência à inovação bem-sucedida ou com

conhecimento acumulado sobre plantios florestais, como é o caso de filhos

de pais silvicultores.

Estes elementos lhes dão maior segurança para arriscar mais em sistemas

agroflorestais.

As dificuldades encontradas

As dúvidas e incertezas expressas pelos agricultores e técnicos entrevistados se

relacionam aos seguintes elementos: risco de redução na qualidade das frutas produzidas,

especialmente cor e sabor (teores de açúcar); risco de redução na produtividade; risco de

danos ao pomar de citros durante o desbaste das espécies florestais; risco de redução na

possibilidade de mecanização em um cenário de carência de mão de obra; risco de não contar

com mão de obra qualificada; risco de enfrentar problemas com a fiscalização ambiental;

incerteza sobre o nível de sombreamento adequado; sobre a interação entre o citros e as

espécies florestais; desconhecimento sobre as características de várias espécies florestais;

incerteza sobre as técnicas de manejo adequadas; incerteza quanto ao espaçamento adequado,

especialmente para espécies florestais e incerteza quanto ao incremento das espécies

florestais. Estas incertezas e riscos não se tratam de medos irracionais ou de uma resistência à

novidade, mas de dúvidas pertinentes e riscos inerentes ao processo de inovação pretendido.

Todos representam gargalos técnicos importantes e merecem reflexão tanto de técnicos como

de agricultores.

Frente aos riscos e incertezas da novidade ou da inovação, os agricultores assumem

várias estratégias. A maior parte deles faz experimentos em trechos dos pomares e testam

várias combinações possíveis, buscando diminuir o risco. A outra opção estratégica é estudar

o assunto detalhadamente, participando de cursos, visitando experiências ou trocando

informações com outros agricultores e técnicos. Somente após esta etapa iniciam a fase de

experimento. Há, ainda, a estratégia de aguardar os resultados dos experimentos realizados

por agricultores conhecidos que utilizam manejos similares aos deles, no caso, agricultores do

mesmo grupo de produção de citros ecológico. As estratégias são combinadas entre si, não

são autoexcludentes, ou seja, o agricultor que experimenta normalmente passou por uma etapa

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 341

de estudos prévios, que pode ser mais curta do que aquela adotada por outros. A reflexão

sobre a melhor estratégia a ser adotada demanda tempo, os citricultores declararam ter levado

de um a cinco anos entre a primeira informação recebida e a tomada de decisão em favor da

implantação e manejo de sistemas agroflorestais.

O estudo permitiu identificar mais de trinta técnicas aplicadas pelos agricultores no

manejo de sistemas agroflorestais no cultivo de citros (Quadro 1), que podem ser subdivididas

em muitas práticas, de acordo com cada agroecossistema onde são aplicadas. Para tanto,

utilizam vinte e sete diferentes tipos de artefatos, cujo manuseio também demandou um

processo de aprendizagem.

Quadro 1 – Técnicas ou práticas citadas pelos entrevistados

Técnicas ou práticas citadas pelos entrevistados

Adubação Verde Desbaste de espécies florestais

Amassada do brejo (com “rolo-pau” ou trator) Desrama de muda nova (retirada de brotos

indesejados)

Anelamento de espécies florestais indesejadas Empapelamento

Aplicação de biofertilizante Gradagem

Aplicação de caldas (sulfocálcica, bordalesa e/ou

viçosa) Manejo racional do solo e da cobertura vegetal

Aplicação de cama de galinha (esterco de aviário

orgânico) Plantio de mudas de espécies florestais

Aplicação de Cinzas Poda e raleio dos galhos

Aplicação de composto orgânico (Ecocitrus) Produção de mudas cítricas orgânicas (com

técnicas associadas que não foram detalhadas)

Aplicação de esterco de gado Raleio da bergamotinha verde

Aplicação de esterco de suínos Roçada

Aplicação de Farinha de Conchas Rotação de Culturas

Aplicação de Farinha de Rochas Seleção da regeneração natural

Aplicação de Fosfato Natural Subsolagem

Aplicação de preparados biodinâmicos Uso de quebra-vento nas divisas

Aplicações de biofertilizante (Ecocitrus) Uso do calendário biodinâmico

Capina com manutenção da cobertura morta na área Vermicompostagem

Controle biológico de pragas e doenças dos citros

Fonte: Bulhoes (2011).

O manejo de sistemas agroflorestais é muito variável, porém todos partem de algumas

questões básicas, como a seleção de espécies e de técnicas a serem empregadas e

monitoramento e reavaliação contínua. As informações sobre estes elementos foram

construídas combinando diversas fontes de informação, tais como: o aprendizado no cultivo

do citros, incluindo técnicas que são aplicáveis ao manejo de espécies florestais (roçada, poda

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 342

e desbastes), a experiência anterior com silvicultura (desenvolvida em pequena escala por

52% dos citricultores entrevistados), seguido por muita observação e experimentações

diversas. Nos diversos casos em que esta forma de aprendizagem não foi suficiente,

solicitaram informações aos outros agricultores ou aos técnicos conhecidos, construindo

conhecimento através da interação. E a terceira forma de aprendizagem, empregando

informações obtidas nas duas anteriores, é a pesquisa, que foi realizada através do Grupo de

Citricultura Ecológica126

.

O estudo incluiu perguntas a respeito das dificuldades encontradas pelos agricultores

que manejam sistemas agroflorestais e dos motivos alegados pelos agricultores que não os

manejam. A única dificuldade citada exclusivamente por aqueles que não manejam sistemas

agroflorestais foi a pouca disponibilidade de terras cultiváveis. As dificuldades citadas em

comum foram: mão de obra insuficiente ou inadequada, manejo desconhecido, mecanização

restrita, conflitos com as normas legais, riscos de problemas na produção de citros (danos ao

pomar, risco de redução na produtividade e na qualidade das frutas, de acordo com o nível de

sombreamento) e dificuldades na comercialização de produtos florestais, especialmente os

não madeireiros. As respostas são similares, embora com pesos diferentes: os agricultores que

não manejam SAFs percebem as dificuldades como maior entrave ou um risco mais

significativo do que aqueles que os manejam.

Nichos, regimes e paisagens em processos de mudança tecnológica

O processo de transição tecnológica foi estudado nesta pesquisa a partir da Perspectiva

Multinível, abordagem teórica que estuda a inovação a partir de três níveis de análise: o nível

dos nichos, o nível dos regimes e o nível da paisagem (STUIVER, 2008; WISKERKE;

PLOEG, 2004; GEELS, 2007).

O primeiro nível de análise é o nicho tecnológico. Nichos consistem em várias

práticas, onde inovações são testadas para verificar sua aplicabilidade, gerenciar expectativas

e formar redes. Os nichos são compostos de tecnologias, atores e seus acordos para

desenvolver uma inovação e protegê-la do ambiente externo. Deste modo, a aplicabilidade de

uma inovação pode ser testada e a inovação pode ser tornada mais robusta, dando-lhe

melhores condições de aceitação em ambientes externos. O processo é de mão dupla, não

apenas a inovação tem que ser adaptada às condições externas, os indivíduos, organizações e

126

O grupo de citricultura ecológica atua desde 2000, unindo agricultores, técnicos extensionistas e instituições

de ensino e/ou pesquisa na busca de respostas para diversas questões envolvidas na citricultura ecológica.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 343

a sociedade também tem que se rearranjar para adotar ou adaptar a inovação, demandando

ajustes mútuos contínuos entre a inovação e o contexto de sua aplicação (STUIVER, 2008;

RIP; KEMP, 1998 e WEBER et al., 1999).

Conforme Kemp et al. (1998) e Marques (2009), existem três processos internos que

delineam o nicho:

a) a articulação de processos de aprendizagem;

b) o estabelecimento de redes sociais;

c) o desenvolvimento e alinhamento de estratégias e experiências.

O primeiro deles, a articulação de processos de aprendizagem, ocorre nos grupos de

citricultores ecológicos participantes da pesquisa, envolvendo o conhecimento obtido pela

prática e pela experimentação, o conhecimento construído a partir da troca de experiências

entre atores locais e o conhecimento construído a partir de pesquisas participativas

desenvolvidas em conjunto com instituições acadêmicas e de pesquisa.

Os processos de aprendizagem nos nichos tecnológicos vão além da própria

tecnologia, envolvem também articulação de preferências e tendem a requerer mudanças na

regulação governamental. (SCHOT; GEELS, 2007). Agricultores, cientistas, técnicos ou

intermediários desenvolvem experimentos tecnológicos, refletem sobre o processo e se

esforçam para que eles alcancem escalas maiores (STUIVER, 2008). Estes elementos ocorrem

nos processos de construção de conhecimento associados aos sistemas agroflorestais

manejados por citricultores ecológicos, especialmente no grupo de pesquisa em citricultura

ecológica. O processo de geração de conhecimento associado aos sistemas agroflorestais,

envolveu, além de agricultores e técnicos locais, diversos pesquisadores, que atuaram em

diferentes experimentos conduzidos de forma conjunta por citricultores ecológicos,

universidades (UFRGS, PUCRS e UCS), empresas de pesquisa (FEPAGRO e EMBRAPA) e

a assessoria técnica (EMATER, equipe técnica da Ecocitrus e IMCA), em um processo que se

desenvolve em diferentes combinações, sendo uma delas o Programa de Pesquisa em

Citricultura Ecológica. Esta interação entre os diferentes atores envolvidos no processo de

inovação, resultando em um processo de aprendizagem social, é um dos principais elementos

observados na pesquisa.

A troca de informações entre os diferentes atores, a circulação de ideias, artefatos e

materiais diversos, são características de processos inovadores (CALLON, 2004). Os

citricultores se dividem em orgânicos e biodinâmicos, os técnicos em diferentes áreas de

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 344

conhecimento (agrônomos, biólogos, engenheiros florestais, técnicos em meio ambiente,

técnicos agrícolas entre outros) e os pesquisadores em várias disciplinas e formações. São

também atores originários de vários municípios, até de outras regiões, mas todos se reuniram,

em um determinado momento, no entorno do tema sistemas agroflorestais combinados com

pomares de citros. Os motivos que os aproximaram são mais antigos que os sistemas,

repousam na fase de transição da agricultura convencional para a orgânica e em laços de

confiança construídos ao longo do processo.

O segundo processo que delineia o nicho é percebido no estabelecimento de redes

sociais, construídas pelos citricultores e seus parceiros, que envolvem diferentes

organizações, com objetivos aparentemente muito diversos, mas que são continuamente

mobilizadas em diferentes e múltiplas combinações. O processo de construção de

conhecimento continua na rede expandida, incluindo organizações, interesses e expectativas,

assim como os conflitos e alinhamentos, todos sendo continuamente renegociados,

envolvendo diferentes tipos de conhecimento e diversas fontes de informações (ESHUIS;

STUIVER, 2005).

O terceiro processo interno que delineia o nicho também foi identificado no estudo: o

desenvolvimento e alinhamento de estratégias e experiências. Os citricultores ecológicos,

através de suas organizações, alinharam-se em torno de estratégias, baseadas em experiências

comuns, ou seja, definiram objetivos a serem alcançados em curto, médio e longo prazo, que

estão sendo continuamente repactuados. O apoio em diferentes organizações confere ao nicho

proteção, suporte e visibilidade. E essa proteção é necessária, porque os constrangimentos do

regime ficam evidentes nos problemas associados ao emaranhado de normas aplicáveis ao

manejo de sistemas agroflorestais e à consequente dificuldade em formalizá-los e também na

invisibilidade das políticas públicas, que ainda não estão claramente disponíveis para os

agricultores. Este processo não é exclusivo dos citricultores ecológicos participantes da

pesquisa, envolve todos os tipos de sistemas agroflorestais desenvolvidos no Brasil.

O segundo nível de análise é formado pelo regime sociotécnico. Nesta pesquisa, é

adotada a definição proposta por Rip e Kemp (1998): um regime sociotécnico é o conjunto de

regras, organizado em um complexo coerente de conhecimentos científicos, práticas de

engenharia, tecnologias de processos de produção, características de produtos, metas e

procedimentos, modos de manusear artefatos relevantes e pessoas, modos de definição de

problemas, todos eles inseridos em instituições e infraestruturas. Assim, regimes transmitem e

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 345

armazenam regras sobre como produzir, usar e regular tecnologias específicas (SCHOT;

GEELS, 2007).

A noção de regime apresenta dois sentidos. O primeiro refere-se a um conjunto de

regras compartilhadas sobre como agir e como não agir. Isto também implica que o regime

existente tem influência sobre o tipo de inovações que são desenvolvidas. O conjunto de

regras é também refletido na materialidade, nas várias tecnologias, artefatos e infraestrutura

disponíveis, portanto, o regime também envolve um aspecto cognitivo: é um reservatório de

conhecimento coletivo que é compartilhado entre os membros da infraestrutura do

conhecimento, que pode ser encontrado empiricamente em intermediários como textos,

práticas e tecnologias. Segundo, regimes são sustentados através de interações e alinhamentos

entre atores nas práticas sociais, isto é, em experimentos, projetos, pesquisas e órgãos

governamentais, o que quer dizer que em todo lugar onde atores mobilizam e conformam um

alinhamento. Um regime é também um estável conjunto de conexões entre atores, que

também depende de intermediários não humanos, como tecnologias, opções de projeto e

esquemas de comunicação (STUIVER, 2008; DEUTEN, 2003).

Regimes podem dominar o processo de inovação em um setor por um longo período

de tempo, em um processo que pode durar muitas décadas, estimada por alguns autores em 30

anos, até que a passagem de um regime estável até um novo regime estável seja definitiva

(STUIVER, 2008; PLOEG; ROEP, 2003; GEELS, 2002). O regime sociotécnico é percebido

neste estudo como o conjunto de normas técnicas e legais que conformam a produção

orgânica de citros e a produção florestal no Brasil, bem como os insumos, os equipamentos e

as técnicas disponíveis, além do conjunto de conhecimentos e formas de agir consolidadas (o

que pode e não pode ser feito) pelo grupo de citricultores ecológicos, bem como dos técnicos

e pesquisadores com os quais interagem.

O terceiro nível considerado é denominado de paisagem sociotécnica, que pode ser

compreendido como uma metáfora para o desenvolvimento estrutural. Envolve, por exemplo,

os materiais e arranjos espaciais das cidades, fábricas, mas também guerras, preços do

petróleo, valores culturais e políticos e problemas ambientais (STUIVER, 2008).

Há diferentes nichos, regimes e paisagens sociotécnicas sendo coconstruídos em cada

contexto regional. As interações entre os diferentes níveis são contínuas. As mudanças que

ocorrem no nível do regime são normalmente decorrentes de inovações que emergem do nível

do nicho, causando turbulências diversas na estrutura do regime predominante. O conjunto de

mudanças em nível de regime pode, por sua vez, alterar a paisagem sociotécnica.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 346

Saindo do nicho: constrangimentos normativos e coconstrução de mercados

As inovações emergem em um contexto onde há um regime sociotécnico pré-

existente, moldado através de um conjunto de normas e procedimentos a serem observados,

controlados e monitorados. Qualquer inovação que não seja puramente incremental causa

perturbações na estrutura pré-existente, e, em alguns casos, inovações combinadas podem

mudar o regime sociotécnico predominante. Portanto, a emergência de uma inovação, como a

apresentada pelos sistemas agroflorestais, apresenta uma interface de conflito e de

necessidade de ajustes diversos, em duas estruturas fundamentais do regime: as políticas de

Estado e o conjunto de regras. Este conflito pode apresentar diversas formas, em nossa análise

abordaremos duas delas que emergiram na pesquisa: a dificuldade dos atores em visualizar

políticas públicas adequadas para sua necessidade (invisibilidade) e os confrontos com as

estruturas de fiscalização das normas pré-existentes, até que as novas especificidades exigidas

pela inovação sejam conformadas e aceitas em novas regras.

Conforme os resultados das pesquisas, as recentes políticas públicas existentes para

sistemas agroflorestais são desconhecidas por agricultores e pela maioria dos técnicos

entrevistados. Perguntados especificamente se tinham acessado alguma política pública para

implantar ou manejar os sistemas, todas as respostas obtidas foram negativas. Na sequência,

foi perguntado se eles conheciam políticas públicas associadas aos SAFS e também

declararam não conhecê-las. A dificuldade em manejar sistemas agroflorestais de acordo com

as normas existentes e as incoerências entre a prática e a regulamentação disponível é

percebida como parte do processo de mudança tecnológica. A discussão normativa contínua e

os conflitos e alinhamentos resultantes são partes do processo de consolidação de inovações

que emergiram a partir de novidades geradas na agricultura e que passam a ser percebidas

pelo regime sociotécnico predominante, que busca regulamentá-las para torná-las parte

integrante de sua estrutura normativa.

Porém, nem todas inovações podem ser facilmente acomodadas no conjunto de

normas pré-existentes em nível de regime. As inovações são diferenciadas em relação à

capacidade de mudança do regime, podendo ser incrementais ou radicais. Conforme Schot e

Geels (2007), a inovação radical é uma mudança na estrutura subjacente que regula o regime

sociotécnico e podem produzir mudanças significativas ou o estabelecimento de um novo

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 347

regime sociotécnico, de forma mais abrupta e com nova direção. Já a inovação incremental é

parte da própria estrutura do regime, na qual são providenciados espaços internos onde cada

inovação incremental é alimentada, permitindo adaptação para uma lenta mudança.

Além do potencial de mudança no regime sociotécnico, Stuiver (2006) apresenta um

novo elemento de análise do processo de inovação ao utilizar a noção de retroinovação, que se

refere à combinação de elementos e práticas do passado com as mais recentes, configurando-

as para novos objetivos. Retroinovações delineiam relações entre velhos e novos

conhecimentos. No caso estudado, a retroinovação é percebida pelo resgate das funções das

espécies conhecidas pelos antepassados ou pelos moradores mais antigos, evidenciado pelo

desconhecimento da identificação botânica e de nomes em língua portuguesa. É no

conhecimento anterior, construído pelos colonos alemães, que eles buscam nominar as

espécies, usando a língua de seus avós, como no caso da “schwartzhert”127

, e identificar

possíveis usos, reutilizando o aprendizado sobre as espécies florestais construído pelos seus

antepassados ao longo de um século de interação com o ambiente natural local. Neste sentido,

concluiu-se que os sistemas agroflorestais podem ser considerados também como exemplos

de retroinovação, ou seja, são um sistema tradicional de produção, tão antigo quanto a

ocupação indígena no Vale do Caí, mas que foram revisitados, reavaliados sob novo olhar,

adaptados em relação aos monocultivos de citros e reestruturados, a partir de etapas de

experimentação por agricultores, acompanhamento técnico e validação científica, utilizando

métodos recentes de análise, definidos em pesquisas desenvolvidas de forma participativa

(DAL SOGLIO et al., 2006; GONZATTO, 2009; PANDOLFO, 2011).

O processo de coconstrução de mercados também ocorreu de forma paralela ao longo

da produção de novidades pelos citricultores ecológicos, iniciando na fase de transição da

agricultura convencional para a orgânica, quando tiveram que construir mercados

diferenciados para a comercialização de seus produtos, iniciando pelas feiras, passando pela

agroindustrialização e pela certificação, até construírem espaço no mercado internacional e no

mercado institucional.

A construção de mercados novos ou diferenciados passa a ser novamente necessária

agora para os produtos e subprodutos florestais oriundos do manejo de sistemas

agroflorestais. Os citricultores que manejam sistemas agroflorestais já percebem esta

necessidade ao salientar que não há mercado construído ou estruturado para os produtos

oriundos dos sistemas manejados por eles. Os agricultores identificam que a ausência de um

127

Traduzida por “coração negro” – nome decorrente do aspecto da madeira, que apresenta cerne escuro. Refere-

se à espécie arbórea Cordia americana, com nome popular de guajuvira.

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 348

mercado específico será uma restrição importante ao avanço desta nova tecnologia, e

começam a planejar estratégias para construí-lo.

O processo de coconstrução de mercados, conduzido pelos citricultores entrevistados,

não é fácil, envolve mudanças nas preferências dos consumidores e alterações na estrutura

legal que rege a atividade, uma vez que o conjunto de normas atuais é muito restritivo, tanto a

legislação ambiental quanto as regulamentações associadas ao controle fitossanitário e de

vigilância sanitária. Esta dificuldade é salientada para produtos florestais não madeireiros e

foi relatada pelos citricultores que manejam sistemas agroflorestais mais antigos, uma vez que

a produção florestal começa a ser mais perceptível, incluindo a restrição de mercado às frutas

nativas, que não fazem parte do hábito alimentar da maior parte da população, conforme

expresso na fala de um dos entrevistados:

A gente está colocando algumas frutíferas, mas aí entraria a questão econômica, né.

Tá, até é interessante, tu tem uma diversificação, mas como é que tu vai fazer para

aproveitar os araçás, os butiás, as pitangueiras, as jaboticabeiras, para te dar

retorno econômico disso. Isso é uma coisa complicada, não é muito fácil. Não tem

um mercado. Isso é uma coisa totalmente nova, não sei o que a gente vai fazer.(...)

(Agricultor AE4).

São questões ainda em aberto e que estão intimamente ligadas com a questão da

legislação ambiental e sanitária, uma vez que para comercializar produtos florestais há

necessidade de formalização dos procedimentos, dentro das normas previstas para a atividade,

que, de modo geral, não contemplam adequadamente os sistemas agroflorestais manejados

pelos citricultores ecológicos, especialmente os sucessionais.

A necessidade de coconstrução de mercados enfrenta dificuldades e constrangimentos

decorrentes da estrutura conformada pelo regime sociotécnico que atua como limitante à

inovação pretendida. As dificuldades citadas pelo conjunto de entrevistados incluem, além da

dificuldade de mercado, o risco de conflitos com as normas legais e aspectos relacionados

com o reservatório de conhecimento insuficiente se comparado com aquele disponível em

nível de regime, tais como: mão de obra insuficiente ou inadequada, mecanização restrita,

manejo desconhecido e pouco conhecimento sobre as interações internas ao sistema.

Durante o processo de inovação, são formadas ligações entre o que ocorre no espaço

protegido do nicho e o que ocorre em nível de regime. Embora as inovações sejam

desenvolvidas em espaços protegidos, elas tendem a ser influenciadas pelos acessos ou por

condições irreversíveis existentes no nível de regime, como as políticas e legislações, além da

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 349

infraestrutura tecnológica dominante que podem determinar o formato das novidades

(STUIVER, 2008, ROEP; WISKERKE, 2004; WEBER et al., 1999).

A interação entre as novidades e inovações que emergem do nicho construído

estabelecem a necessidade de ajustes no regime sociotécnico. Este processo ocorreu no

conjunto de demandas associadas aos sistemas agroflorestais desenvolvidos por diferentes

grupos de agricultores em todas as regiões do Brasil, conduzidas por diferentes organizações.

Os sistemas agroflorestais em discussão no Brasil envolvem diferentes experiências

conduzidas por diversos grupos sociais, cada um deles podendo ser compreendido como um

nicho tecnológico diferenciado. Assim, além da experiência dos citricultores ecológicos, há as

experiências dos bananicultores do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, dos seringueiros na

Amazônia, dos produtores de cacau em sistema cabruca na Bahia, dos produtores de café

sombreado no Paraná e em São Paulo, os ervais no sul do Brasil, os quintais agroflorestais,

além de várias outras experiências conduzidas por agricultores familiares. Cada um deles

pode conformar um nicho tecnológico diferenciado, uma vez que o contexto sociocultural e

natural em que emergem é diferenciado, bem como as técnicas e práticas utilizadas. Porém,

todos estão abarcados na ampla definição de sistemas agroflorestais e as similaridades e

dificuldades e conflitos comuns com as normas pré-existentes os une em nível de regime

sociotécnico.

Os sistemas agroflorestais desenvolvidos nestes diferentes espaços e grupos sociais

passam a ser percebidos em nível de regime, que ainda não consegue incorporá-los porque

suas especificidades escapam ao conjunto de normas já estruturado e estabelecem demandas

por respostas que não estão contempladas no reservatório de conhecimento coletivo

disponível. Embora estejam ocorrendo avanços, há um período de ajustes em que o que é

aparentemente permitido torna-se de difícil implantação prática, ou seja, a norma inclui a

possibilidade de regularização, mas suas exigências formais ainda são percebidas como

importantes óbices aos agricultores e técnicos locais, que precisam combinar uma realidade

dinâmica com o emprego de diferentes técnicas com a inércia do regime, onde as mudanças

ocorrem de forma mais lenta.

A dificuldade em regulamentar a diversidade de sistemas agroflorestais desenvolvidos

pelos agricultores é, portanto, também decorrente de seu caráter de inovação perante a

estrutura existente em nível de regime. Processos novos demandam muitos ajustes até serem

incorporados aos processos formais e padronizados, como os estabelecidos pelas normas em

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 350

vigor. Há também a possibilidade de não serem incorporados ao regime atual, uma vez que

parte das técnicas utilizadas no manejo podem ser contranormativas.

Além da diversidade já mencionada, há muitas diferenças internas entre os sistemas

agroflorestais manejados no Brasil. As diferenças são significativas, tanto na composição de

cada agroecossistema manejado, quanto na estrutura social, porém todos estão abarcados na

ampla denominação de “sistemas agroflorestais”, um termo novo, sujeito a vários significados

e sem fronteiras claras. Em função desta amplitude de significados, a noção de “sistemas

agroflorestais” encontra-se em disputa entre os defensores dos sistemas biodiversos,

preferencialmente sucessionais, denominados de “agrofloresta” por organizações voltadas à

agricultura familiar e à produção orgânica de alimentos, e as demais organizações, que

incluem várias subdivisões, mas que apresentam como elementos comuns a utilização de

espécies florestais exóticas e/ou organizadas em alinhamentos definidos e que não

estabelecem mudanças significativas no sistema de produção principal. Obviamente, a

realidade da agricultura e, mais especificamente, dos sistemas agroflorestais, não pode ser

resumida em apenas dois campos de discussão. Esta simplificação pode gerar uma

incompreensão acerca do alcance do debate sobre o tema. Há muitas nuances e posições

intermediárias entre os dois polos citados. Não se trata do modo de produção empresarial ou

capitalista versus o modo de produção camponês, trata-se de visões de mundo. Se fosse

apenas o modo de produção, todos os citricultores ecológicos tenderiam a desenvolver o

mesmo tipo de sistema agroflorestal. Porém, o estudo realizado demonstra que esta divisão

também ocorre no âmbito dos citricultores ecológicos, portanto a linha que separa não é tão

evidente e dicotômica quanto nas discussões nacionais. De modo geral, percebe-se que a

diferença não está apenas no sistema agroflorestal desenvolvido, mas na abordagem

ecocêntrica ou antropocêntrica que embasa o conjunto de tomada de decisão, ou seja, o peso

dos interesses antrópicos na racionalidade dos indivíduos.

A interpretação adotada neste trabalho é de que os sistemas agroflorestais sucessionais

representam uma inovação radical, enquanto os sistemas agroflorestais manejados como

consórcios entre uma plantação florestal homogênea e um cultivo agrícola podem ser

considerados como uma inovação incremental, mais facilmente incorporável no regime

sociotécnico pré-existente. A diferença de tratamento legal entre os dois tipos de sistemas são

uma evidência da dificuldade do regime sociotécnico predominante em incorporar uma

inovação radical e seu rápido ajuste frente a uma inovação incremental.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 351

As novidades que representam mudanças radicais no nível de regime também trazem

conflitos de interesses entre as partes envolvidas. Por exemplo, na modificação de uma

estrutura regulatória, vários atores podem ter opiniões conflitantes sobre as formas como esta

estrutura deve ser alterada, podem também ter diferentes opiniões sobre a direção na qual

estes novos experimentos devem ir, ou sobre o grau de mudança de regime desejado

(STUIVER, 2008). Os sistemas agroflorestais sucessionais se encontram nesta etapa de

debates sobre a estrutura regulatória e de padrões técnicos de manejo, uma vez que

reformulam a maior parte dos pressupostos da agricultura “moderna”128

. Os conflitos de

interesses são evidentes e há disputas que envolvem temas como sustentabilidade, modos de

produção, estilos de agricultura, enfim, diversas visões do que é ou deve ser considerado um

sistema agroflorestal e como ele deve (ou não deve) ser manejado. Parte destas discussões

reflete-se dentro dos grupos de citricultores ecológicos e técnicos entrevistados, em um

processo que é, ao mesmo tempo, de disputa e de aprendizagem.

Considerações finais

O estudo realizado buscou demonstrar que ocorreu um processo de construção de

conhecimento ao longo das diversas experiências de manejo de sistemas agroflorestais

conduzidas por citricultores ecológicos. Para tanto, foram entrevistados citricultores, técnicos

e pesquisadores e foram visitadas as suas experiências de manejo de sistemas agroflorestais.

A inovação estudada foi protegida em um nicho tecnológico, conformado pelos grupos

de citricultores ecológicos e os técnicos de sua confiança, que foram experimentando e

testando opções de manejo e, quando consideraram necessário, em função de gargalos

técnicos relativos ao controle de pragas e doenças dos citros, ampliaram o grupo, incluindo

pesquisadores, mobilizados através do Grupo de Citricultura Ecológica, viabilizado com

recursos estaduais e internacionais, demonstrando uma eficiente articulação com órgãos

governamentais e com organizações locais.

Durante este processo, houve produção de novidades tecnológicas que incluem várias

combinações de espécies, de densidades e a experimentação de diferentes técnicas de manejo,

incluindo o desenvolvimento de adaptações em equipamentos. Os resultados das

experimentações foram monitorados e reavaliados continuamente, tanto por agricultores como

128

Considera-se como pressupostos da “agricultura moderna”: a busca pela padronização da produção, o uso

intensivo de insumos externos, a mecanização acentuada e a homogeneidade de cultivos, procedimentos e

técnicas.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 352

por técnicos e, mais recentemente, por pesquisadores (GONZATTO, 2009; PANDOLFO,

2011). Parte das novidades é contextual e permanece em nível de nicho tecnológico, ou seja,

são aplicáveis localmente. Porém, outras apresentam alcance mais amplo e configuram-se em

inovações. Considera-se, neste estudo, que os sistemas agroflorestais desenvolvidos por

diversos grupos de agricultores e os diferentes tipos de manejo associados passaram,

recentemente, a configurar-se como inovações e são percebidos em nível de regime

sociotécnico, emergindo do nicho tecnológico em que estavam protegidos. O processo de

transformação da novidade em inovação foi definido, no caso estudado, pela atuação de

diversas organizações formais e informais, incluindo instituições de pesquisa que o estão

estudando, desenvolvendo experimentos (participativos ou não) e formalizando-os através dos

mecanismos de tradução adotados em diferentes arenas transepistêmicas. Os processos de

tradução também podem ser percebidos na formulação de diferentes leis e normas

recentemente construídas para a regulação de sistemas agroflorestais, buscando conformá-los

de acordo com os padrões e procedimentos aceitos em nível de regime. Este processo ainda

está em sua fase inicial, portanto, apresenta avanços e recuos, instabilidades e conflitos, que

representam uma oportunidade importante para estudar o processo de construção de

conhecimento e de aprendizagem associados a esta etapa.

Evidenciou-se, também, as dificuldades encontradas, as dúvidas e riscos assumidos

pelos atores envolvidos na produção de uma novidade, ressaltando os conflitos com a

estrutura existente em nível de regime sociotécnico, estabelecida no conjunto de regras,

procedimentos e comportamentos associados à produção agrícola e/ou florestal e a

necessidade de coconstrução de mercados diferenciados.

Por fim, considera-se que os sistemas agroflorestais manejados por citricultores

ecológicos apresentam elementos de mudança tecnológica, não apenas pela substituição de

cultivos únicos por agroecossistemas mais diversos e complexos, refletindo em diversas

questões ambientais, mas também pelo aporte de diferentes atores, com diferentes

conhecimentos em um mesmo processo de aprendizagem social.

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 355

SOBRE OS AUTORES

Ana Paula Pegorer de Siqueira: Mestre em Engenharia Agrícola (UNICAMP). Consultora

da Associação de Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro Janeiro.

E-mail: [email protected]

Adelaide dos Santos Figueiredo: Doutora em Engenharia de Transportes (USP).

Pesquisadora associada da Universidade Católica de Brasilia.

E-mail: [email protected]

Antonio Lázaro Sant´Ana: Doutor em Sociologia. Professor da Universidade Estadual

Paulista (UNESP), Campus de Ilha Solteira. E-mail: [email protected]

Armando Fornazier: Doutorando em Desenvolvimento Econômico pela UNICAMP. Mestre

em Agronegócios pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

E-mail: [email protected]

Anny de Paula Machado: É bolsista FAPERJ da Empresa de Pesquisa Agropecuária do

Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

Clara Craviotti: Investigadora del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y

Técnicas (CONICET) en la Universidad de Buenos Aires, Argentina.

E-mail: [email protected]

Claudia Souza: Mestre em Agroecologia. Atuando no Ministério do Meio Ambiente -

Secretaria de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentável.

E-mail: [email protected]

Cláudio Becker: Engenheiro Agrônomo (UFPel). Mestre em Ciências pelo Programa de Pós-

Graduação em Sistemas de Produção Agrícola Familiar (SPAF) edoutorando pelo SPAF

E-mail: [email protected]

Cristina de Brito Ribeiro: Graduada em Ciências Sociais (UFF). Tem experiência na área de

Antropologia e Sociologia Rural, com ênfase em associativismo e organização rural e em

agroecologia. Email: [email protected]

Denise Barbosa Silva: Graduada em Bacharelado e Licenciatura (UniCEUB), Mestre em

Botânica pela Universidade de Brasília (2007). E-mail: [email protected]

Dilvan Luiz Ferrari: Doutor em Desenvolvimento Rural (UFRGS). Atualmente é

pesquisador da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina

(EPAGRI). E-mail: [email protected]

Divanir Zaffani Sant´Ana: Especialista em Educação do Campo (UFMS).

Email: [email protected]

Eric Pierre Sabourin: Doutor em Antropologia e Etnologia - Université de Paris VII -

Université Denis Diderot (1982). E-mail: [email protected]

Fabiano Escher: Mestre e Doutorando em Desenvolvimento Rural (UFRGS).

E-mail: [email protected]

Fabio Kessler Dal Soglio: Doutor em Fitopatologia - University of Illinois at Urbana-

Champaign (1995). Docente junto ao PGDR/UFRGS. E-mail: [email protected]

Fernanda Novo da Silva: Mestre e doutoranda em Sistemas de Produção Agrícola Familiar

(SPAF) pela UFPel. E-mail: [email protected]

Flávia Charão Marques: Doutora em Desenvolvimento Rural (UFRGS) e docente

PGDR/UFRGS. E-mail: [email protected]

Flavia Muradas Bulhões: Doutora em Desenvolvimento Rural (UFRGS).

E-mail: [email protected].

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Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural

Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 356

Flaviana Cavalcanti da Silva: Doutoranda em Agronomia da Universidade Estadual Paulista

(UNESP), Campus de Ilha Solteira. E-mail: [email protected]

Flávio Murilo Pereira da Costa: Doutor em Agronomia (ESALQ/USP).

E-mail: [email protected].

Gabriela dos Santos Souza: Mestranda em Agronomia da Universidade Estadual Paulista

(UNESP), Campus de Ilha Solteira.

E-mail: [email protected]

Gilson César Pianta Corrêa: Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Rio

Grande do Sul (UFRGS).

E-mail: [email protected]

Gisele Ribeiro R. da Silva: Técnica agrícola, bolsista TCT FAPERJ da PESAGRO.

E-mail: [email protected]

Heloísa V. Battagin: Universidade de São Paulo, Faculdade de Zootecnia e Engenharia de

Alimentos.

E-mail: [email protected]

Janaina Deane de Abreu Sa Diniz: Doutora em Ciências de Gestão - Logística e Estratégia

(Universidade do Mediterrâneo Aix-Marseille II) e em Desenvolvimento Sustentável (UnB).

E-mail: [email protected]

Jean Louis Lambert: Doutorado em Economia (Universidade de Nantes, França). Professor

Aposentado (ENITIAA, Nantes França).

E-mail:[email protected].

Luís Fernando Soares Zuin: Doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal

São Carlos (2007). Docente do Dep. de Biossistemas da Faculdade de Zootecnia e Engenharia

de Alimentos da Universidade de São Paulo (FZEA-USP).

Magda Eva Soares de Faria Wehrmann: Doutora em Sociologia pela Universidade de

Brasília (2000). Atualmente é professor da Universidade de Brasília.

E-mail: [email protected]

Marcio Gazolla: Doutor em Desenvolvimento Rural com Sanduíche no Exterior na

Università di Pisa (Itália). Professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM -

CAFW) - Campus de Frederico Westphalen

E-mail: [email protected]

Maria Fernanda de Albuquerque Costa Fonseca: PhD em Desenvolvimento, Agricultura e

Sociedade. Pesquisadora da PESAGRO-RIO.

E-mail: [email protected]

Mario Otavio Batalha: Doutor em Genie Des Systemes Industriels - Institut National

Polytechnique de Lorraine (1993). Professor Associado II da Universidade Federal de São

Carlos (UFSCar).

E-mail:[email protected]

Miguel Alejandro Díaz Manrique: Graduado em Zootecnia - Universidad Nacional de

Colombia (2010). Tem experiência na área de Agronomia, com ênfase em Extensão Rural.

Monique Medeiros: Mestre em Desenvolvimento Rural (UFRGS) e Extensionista Rural da

EMATER/ASCAR – RS.

E-mail: [email protected]

Nádia Velleda Caldas: Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Sistemas de Produção

Agrícola Familiar (UFPel). Professora do Departamento de Ciências Sociais Agrárias e do

Programa de Pós-Graduação em Sistemas de Produção Agrícola Familiar (SPAF).

E-mail: [email protected]

Paulo Dabdab Waquil: Graduado em Agronomia pela Universidade Federal do Rio Grande

do Sul (1986), Mestre em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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Mercados e agricultura familiar: interfaces, conexões e conflitos 357

(1991) e Doutor em Economia Agrícola pela University of Wisconsin, Madison - EUA

(1995).

E-mail: [email protected]

Poliana Bruno Zuin: Doutora e Mestre em Educação - PPGE - pela Universidade Federal de

São Carlos. Docente e pesquisadora da Faculdade de Tecnologia, Ciências e Educação -

FATECE- Pirassununga e da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar.

Priscila Gualberto de Lima: Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de

Pelotas (UFPel), Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS).

E-mail: [email protected]

Raúl Paz: Doutor em Ciencias Agropecuarias, Docente-Investigador Categoria I da

Universidade Nacional de Santiago del Estero e Investigador Independente do CONICET.

E-mail: [email protected]

Renato Linhares de Assis: Doutor em Economia Aplicada pela Universidade Estadual de

Campinas (2002). Pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária junto ao

Centro Nacional de Pesquisa de Agrobiologia.

E-mail: [email protected]

Shirley G. Nascimento Altemburg: Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em

Sistemas de Produção Agrícola Familiar - Universidade Federal de Pelotas.

E-mail: [email protected]

Suzanne Ferte: Montpellier SupAgro

Thelma Lucchese Cheung: Graduada em Administração pela Universidade Federal de Mato

Grosso do Sul (2000), Mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de São

Carlos e Doutora e Doutora pela Universidade de Nantes, na França.

E-mail: [email protected]

Valéria da Silva Modenese: Graduada em Agronomia, Universidade Estadual Paulista

(UNESP), Campus de Ilha Solteira.

E-mail: [email protected]

Série Difusão do IEPE

1. COELHO-DE-SOUZA, Gabriela; PERUCCHI, Loyvana Carolina; KUBO, Rumi

Regina Kubo (Orgs): Patrimônio socioambiental da bacia hidrográfica do Rio

Tramandaí. Porto Alegre: Via Sapiens, 2013. (Difusão IEPE/UFRGS) http://www.onganama.org.br/pesquisas/Livros/Patrimonio_Socioambiental_Bacia_Rio

_Tramandai_marco_2013.pdf

2. GERHARDT, Tatiana Engel, et al (Org). Anotações de um cotidiano: Rincão dos

Maia, Canguçu, RS. Porto Alegre: Via Sapiens, 2013. (Difusão IEPE/UFRGS)

3. CONTERATO, Marcelo Antonio, et al (Org) . Mercados e agricultura familiar:

interfaces, conexões e conflitos. Porto Alegre: Via Sapiens, 2013. (Difusão

IEPE/UFRGS)