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Memória e sociedade: a dimensão teórica - Maria Inês Mancuso Memória, representação e identidade Eu, Senhor, cogito este problema, trabalho em mim mesmo. (...) Agora já não escalo as regiões do firmamento; não meço a distância dos astros; não procuro as leis do equilíbrio da Terra; sou eu que me lembro, eu, o meu espírito. Não é de admirar que esteja longe de mim tudo o que não sou eu. Todavia, que há mais perto de mim do que eu mesmo? Oh! Nem sequer chego a compreender a força da minha memória, sem a qual não poderia pronunciar o meu próprio nome! (Santo Agostinho, 1973, p.207) O que é a memória? “Que amo eu quando amo o meu Deus?” pergunta-se Santo Agostinho em Confissões para, em seguida, se dedicar a descrever a natureza do homem e a memória. Parte da idéias de que o homem é duplo: por ser um homem “servem-me um corpo e uma alma; o primeiro é exterior, a outra interior. Destas duas substâncias, a qual eu deveria perguntar quem é o meu Deus, que já tinha procurado com o corpo, desde a terra ao céu, até onde pude enviar, como mensageiros, os raios dos meus olhos?” (Santo Agostinho, 1973, p. 199) Responde que não é pela vida que enche o corpo que poderá encontrar o seu Deus, mas pela alma, por esta “outra força que não só vivifica, mas também sensibiliza a carne que o Senhor (...) criou" (Santo Agostinho, 1973, p.200). Não é a alma, porém a memória que ele passa então a discutir, sugerindo a identidade entre alma e memória.

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Page 1: Memória e sociedade: a dimensão teórica - Maria …cec/arquivos/referencias/Memoria e... · Web view(Santo Agostinho, 1973, p.207) O que é a memória? “Que amo eu quando amo

Memória e sociedade: a dimensão teórica - Maria Inês Mancuso

Memória, representação e identidade

Eu, Senhor, cogito este problema, trabalho em mim mesmo. (...) Agora já não escalo as regiões do firmamento; não meço a distância dos astros; não procuro as leis do equilíbrio da Terra; sou eu que me lembro, eu, o meu espírito. Não é de admirar que esteja longe de mim tudo o que não sou eu. Todavia, que há mais perto de mim do que eu mesmo?Oh! Nem sequer chego a compreender a força da minha memória, sem a qual não poderia pronunciar o meu próprio nome! (Santo Agostinho, 1973, p.207)

O que é a memória?

“Que amo eu quando amo o meu Deus?” pergunta-se Santo Agostinho em Confissões para, em

seguida, se dedicar a descrever a natureza do homem e a memória. Parte da idéias de que o homem é duplo:

por ser um homem “servem-me um corpo e uma alma; o primeiro é exterior, a outra interior. Destas duas

substâncias, a qual eu deveria perguntar quem é o meu Deus, que já tinha procurado com o corpo, desde a

terra ao céu, até onde pude enviar, como mensageiros, os raios dos meus olhos?” (Santo Agostinho, 1973, p.

199) Responde que não é pela vida que enche o corpo que poderá encontrar o seu Deus, mas pela alma, por

esta “outra força que não só vivifica, mas também sensibiliza a carne que o Senhor (...) criou" (Santo

Agostinho, 1973, p.200). Não é a alma, porém a memória que ele passa então a discutir, sugerindo a

identidade entre alma e memória.

Grande é a potência da memória, ó meu Deus! Tem não sei quê de horrendo, uma multiplicidade profunda e infinita. Mas isto é o espírito, sou eu mesmo. E que sou eu, ó meu Deus? Qual é a minha natureza? Uma vida variada de inumeráveis formas com amplidão imensa.Eis-me nos campos da minha memória, nos seus antros e cavernas sem número, repletas, ao infinito, de toda a espécie de coisas que lá estão gravadas, ou por imagens como os corpos, ou por si mesmas, como as ciências e as artes, ou, então, por não sei que noções e sinais, como os movimentos da alma, os quais, ainda quando não a agitam, se enraízam na memória, posto que esteja na memória tudo o que está na alma. (...) Tão grande é a potência da memória e tal o vigor da vida que reside no homem vivente e mortal! (Santo Agostinho, 1973, p.207/208)

A identidade é sugerida — “Mas isto é o espírito, sou eu mesmo” — e negada — “posto que esteja

na memória tudo o que está na alma”. Sentir e lembrar que se sentiu são distintos e isto demonstra a não

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identidade entre memória e alma. Se a memória fosse a alma, esta se perturbaria com as lembranças dos

afetos. As quatro perturbações da alma — desejo, medo, alegria e tristeza — não a alteram, porém, quando

são lembradas. Para Santo Agostinho, e aí está algo de equivalência, é como se a memória fosse o ventre da

alma. Sente-se com a alma, e o que é sentido passa para a memória. Lembrar-se é retirar da memória o que ela

contem, e que foi percebido, sentido ou aprendido pela alma. Se os afetos são o alimento da alma, é na

memória que eles se encerram depois de serem sentidos, ou ‘comidos’, mas aí já não têm sabor.

A idéia de duplo, porém, persiste: o homem é, simultaneamente, corpo e alma, que contém a

memória, ou corpo e memória. Essa idéia é retomada por Durkheim, em As Formas Elementares da Vida

Religiosa, para justificar a possibilidade que o homem tem de, na vida intelectual, ultrapassar o alcance dos

conhecimentos empíricos. Surge, portanto, quando ele discute e supera, ao apresentar o objeto da pesquisa

que desenvolve, as perspectivas teóricas, o empirismo e o apriorismo1[1], que, no seu tempo, buscavam

entender as categorias — conceitos gerais, universais e necessários, que se referem, entre outras concepções

homogêneas, a tempo e espaço, causa, número, personalidade etc. As categorias são necessárias, na medida

em que, por alguma espécie de autoridade, se impõem ao espírito sem serem acompanhadas de nenhuma

prova. A razão seria o conjunto das categorias fundamentais, entre as quais se destacam o tempo e o espaço;

seria o poder que o espírito tem de se elevar acima do particular, do contingente, do individual, para pensar

sob a forma do universal. Pela razão, os diferentes espíritos podem se encontrar.2[2] As categorias mais gerais

garantem um mínimo de conformismo lógico, tão necessário à sobrevivência da sociedade quanto um mínimo

de conformismo social.3[3] A possibilidade de construir a razão e, dessa forma, ultrapassar o alcance dos

conhecimentos empíricos suscitados pela ação direta dos objetos no espírito, portanto, essencialmente

subjetivos e individuais, deve-se simplesmente ao fato de que o homem é duplo: é ser individual e social.

A concepção do homem enquanto duplo associa-se à idéia do homem constituído de corpo e alma, na

qual

a alma é aquilo que existe de melhor e mais profundo em nós mesmos, a parte eminente do nosso ser; e, no entanto, trata-se também de hóspede passageiro que nos veio de fora, que vive em nós existência distinta do corpo, e que um dia deverá reaver a sua completa independência (Durkheim, 1989, p.307).

1[1] A apresentação mais detalhada dessas perspectivas será feita ao se discutir representação, no ítem 2.2[2] Simmel (1976), ao escrever sobre a metrópole, diz que ela é sede da economia monetária e do intelecto; que nela predominam as relações racionais. Compara, então, a racionalidade ao dinheiro: a racionalidade é critério de equivalência entre indivíduos distintos, assim como o dinheiro é critério de equivalência entre valores de uso distintos. Há, portanto, entre autores diferentes quanto à inspiração intelectual, identidade de preocupação quanto ao que permite a possibilidade de encontro nas diferenças.3[3] Em Os Parceiros do Rio Bonito, Antonio Candido parte da hipótese de que o “equilíbrio social depende duma equação entre o mínimo social e o mínimo vital. (...) há, para cada cultura, em cada momento, certos mínimos abaixo dos quais não se pode falar em equilíbrio. Mínimos vitais de alimentação e abrigo, mínimos sociais de organização para obtê-los e garantir a regularidade das relações humanas” (1971, p.25). Nesse mínimo social estariam incorporados, na terminologia de Durkheim, o mínimo de conformismo social e o mínimo de conformismo lógico?

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Durkheim acredita que a alma é o que há de melhor em cada um, assim como acredita Santo

Agostinho: “Por isto te digo, ó minha alma, que és superior ao corpo, porque vivificas a matéria do teu corpo,

dando-lhe vida, o que nenhum corpo pode fazer a outro corpo” (Santo Agostinho, 1973, p.199).

Para Santo Agostinho, o espírito (a alma) poderá ser “demasiado estreito para se conter a si mesmo”,

posto que não chega a apreender o próprio ser (Santo Agostinho, 1973, p.201), assim como para Durkheim,

há, na alma de cada homem ou de cada mulher, uma parcela dos grandes ideais que é a alma da coletividade

— “à medida que participa da sociedade o indivíduo vai naturalmente além de si mesmo seja quando pensa,

seja quando age” (Durkheim, 1989, p.45/46).

Se a alma, para Santo Agostinho, leva a Deus e dele provém, para Durkheim leva à sociedade e dela

provém. A alma, para Santo Agostinho, contém conhecimentos que provêm de Deus; em Durkheim,

conhecimentos que provêm da sociedade, e que estão contidos nas representações.

as representações cuja trama constitui a nossa vida interior são de duas espécies diferentes e irredutíveis uma à outra. Umas estão em relação com o mundo exterior e material, as outras com um mundo ideal ao qual atribuímos uma superioridade moral sobre o primeiro. (...) Tal é o sentido profundo da antítese que todos os povos conceberam mais ou menos claramente entre o corpo e a alma, entre o ser sensível e o ser espiritual que coexistem em nós (Durkheim,1989, p.323).

Esse mundo superior é a sociedade. Em As Formas Elementares da Vida Religiosa, Durkheim

conclui que as deidades às quais os homens reverenciam são apenas projeções do poder da sociedade. Ao

reverenciar Deus ou os deuses, os homens estariam reverenciando a sociedade. De Santo Agostinho para

Durkheim, parece ocorrer um fenômeno de transubstanciação: Deus se transubstancia em sociedade.

A idéia de alma, para Durkheim, foi durante muito tempo, e ainda continua a ser, a idéia popular de

personalidade e de pessoa. A idéia de pessoa é produto de duas espécies — novamente a idéia do duplo — de

fatores: um fator impessoal, princípio espiritual que serve de alma à coletividade e que faz parte do

patrimônio coletivo, e um fator de individualização que fragmenta aquele princípio e o diferencia.

É o corpo que desempenha esse papel. Como os corpos são distintos uns dos outros, como ocupam pontos diferentes do tempo e do espaço, cada um deles constitui um meio especial onde as representações coletivas vêm se retratar e se colorir diferentemente. Resulta daí que, se todas as consciências engajadas nesses corpos estão voltadas para o mesmo mundo, isto é, o mundo de idéias e de sentimentos que constituem a unidade moral do grupo, nem todas o vêem pelo mesmo ângulo, cada uma o exprime à sua maneira. (...) (Porém,) a individualização não é característica essencial da pessoa. Uma pessoa não é apenas um sujeito singular que se distingue de todos os outros. É, além disso e sobretudo, um ser ao qual é atribuída autonomia relativa em relação ao meio com o qual está mais imediatamente em contato (Durkheim,1989, pp.331/332).

O que confere essa autonomia relativa em relação ao meio, segundo Kant, é a vontade. “A vontade é

a faculdade de agir de acordo com a razão, e a razão é o que existe de mais impessoal em nós” (Durkheim,

1989, p.331). Como já se afirmou, a razão é o conjunto das categorias fundamentais.

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Longe está, portanto, de sermos tão mais pessoais quanto mais individualizados. Os dois termos não são de nenhuma forma sinônimos: em certo sentido eles se opõem mais do que se implicam. A paixão individualiza e no entanto subjuga. Nossas sensações são essencialmente individuais; mas nós somos tanto mais pessoa quanto mais nos libertamos dos sentidos e quanto mais capazes de pensar e agir por conceitos. Portanto, aqueles que insistem sobre o que existe de social no indivíduo não pretendem, com isso, negar ou rebaixar a personalidade. Recusam-se apenas a confundi-la com o fato da individuação (Durkheim,1989, p.333).

Em nota de rodapé, para que não se interprete depreciativamente o fato da individuação, Durkheim

remete o leitor à obra Divisão do trabalho social na qual afirma:

Não negamos, com isso, a importância do fator individual: isso se explica, do nosso ponto de vista, tão facilmente quanto o fator contrário. Se o elemento essencial da personalidade é o que existe de social em nós, por outro lado, só pode haver vida social se indivíduos distintos estiverem associados. E ela será tanto mais rica quanto mais numerosos e diferentes forem uns dos outros. O fator social é pois condição do fator impessoal. A recíproca não é menos verdadeira, pois a própria sociedade é uma fonte importante de diferenciações individuais (Durkheim, 1989, p.333).

A concepção do homem enquanto duplo, elaborada por Santo Agostinho, encontra correspondência

em Durkheim. Vai também encontrar correspondência a possibilidade de equivalência entre memória e alma,

alma entendida, por Durkheim, como o conjunto de representações recebidas da sociedade.

No estudo Representações individuais e representações coletivas, publicado em 1898, Durkheim

identifica a memória à vida mental e ao conjunto de “tudo aquilo que constitui nossa característica moral” e

nega a concepção de memória como epifenômeno de fatos orgânicos pois, se assim fosse, a memória seria

também fato orgânico e não haveria vida propriamente psíquica,

nem, por conseqüência, matéria para uma psicologia própria. Pois, nestas condições, se queremos compreender os fenômenos mentais, a maneira segundo a qual eles se produzem, se reproduzem e se modificam, não são esses que devem ser analisados e considerados, mas são os fenômenos anatômicos dos quais são a imagem mais ou menos fiel (Durkheim, 1970, pp.22,23).

A memória — “os resíduos deixados por nossa vida anterior, (...) os hábitos contraídos, os

preconceitos, as tendências que nos movem sem que disso nos apercebamos (...) tudo aquilo que constitui

nossa característica moral” (Durkheim, 1970, p.20) — dirige a vida de cada um de nós. Isso não quer dizer

que a vida intelectual é exclusivamente a reprodução sem modificações dos estados de consciência

anteriormente experimentados. O fato de que as idéias e as imagens, constitutivas da vida intelectual e

integrantes das representações, agem entre si segundo as suas semelhanças, suas diferenças e seus contrastes,

demonstra que a vida intelectual não é mera reprodução sem modificações do que recebemos anteriormente.

Mesmo que novas representações não sejam integradas ao conjunto de representações que constituem a vida

intelectual, a percepção de novas relações entre as representações já existentes, independentemente de sua

distância temporal, pressupõe a possibilidade de uma vida intelectual e, portanto, de uma memória

continuamente reconstruída. “A vida representativa (...) não é formada de átomos separados uns dos outros ; é

um todo contínuo, no qual todas as partes se interpenetram” (Durkheim, 1970, p.32). Nessa discussão,

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Durkheim introduz a questão da atualização da memória, isto é, se associamos a memória a um tempo

passado, é no presente e pelos estímulos nesse tempo presente que se solicita a memória. Além disso, mesmo

que novas representações não sejam introduzidas, a percepção de novas relações entre as existentes leva a

uma memória continuamente reconstruída, pois “qualquer representação, no momento em que se produz,

afeta, além dos órgãos, o próprio espírito, isto é, as representações presentes e passadas que o constituem,

desde que se admita, como nós, que as representações passadas subsistem conosco” (Durkheim, 1970, p.31).

Para Santo Agostinho, a atividade de relacionar as noções, aparentemente dispersas, já existentes na

memória, constitui o pensar.

E assim, como se fossem novos, é necessário pensar, segunda vez, nesses conhecimentos existentes na memória — pois não têm outra habitação — e juntá-los (cogenda) novamente, para que se possa saber. Quer dizer, precisamos de os coligir (colligenda), subtraindo-os a uma espécie de dispersão. E daqui (cogenda, cogo) é que vem cogitare (...) Porém a inteligência reivindicou como próprio este verbo (cogito), de tal maneira que só ao ato de coligir (colligere), isto é, ao ato de juntar (cogere) no espírito, e não em qualquer parte, é que propriamente se chama “pensar” (cogitare) (Santo Agostinho, 1973, p.204).

Halbwachs, em Les Cadres Sociaux de la Mémoire, retoma a tese de equivalência entre memória

individual e vida mental individual e entre memória coletiva e pensamento social. Com essa tese, que vem no

bojo da descrição das crenças sociais, Halbwachs conclui o seu livro, de maneira surpreendente. Pode-se

entendê-la, por essa posição de fecho da discussão, como a tese básica que esteve sempre a orientar o rumo

das discussões, e a surpresa vem pelo fato de que se percebe que, efetivamente, ela esteve sempre presente

mesmo que não declarada.

No resumo conclusivo, afirma ele o caráter duplo das crenças sociais: são tradições ou lembranças

coletivas e, dessa forma, articulam-se ao passado, e são idéias ou convenções e, dessa forma, resultam do

conhecimento do presente. Se a crença social fosse apenas idéia, o pensamento social seria puramente lógico:

não admitiria senão o que convém às condições atuais. Se a crença social fosse apenas tradição, não deixaria

nele penetrar nenhuma idéia, nenhum fato que estivesse em desacordo com crenças antigas.

Assim, em um ou outro caso, a sociedade não admitiria nenhum compromisso entre a consciência das condições presentes, e o afeto às crenças tradicionais: ela se alicerçaria inteira sobre um ou sobre outro. Mas o pensamento social não é abstrato. Mesmo quando corresponde ao presente, e que o exprime, as idéias da sociedade tomam sempre corpo nas pessoas ou nos grupos; atrás de um título, uma virtude, uma qualidade, ela vê em seguida aqueles que os possuem; ora grupos e pessoas existem e deixam seus traços na memória dos homens. Não há, neste sentido, idéia social que não seja ao mesmo tempo uma lembrança da sociedade (Halbwachs, 1952, p.296).

Essas lembranças indeléveis são possíveis de serem lembradas desde que significadas pela sociedade

e tornadas parte do seu sistema de idéias. Uma idéia é uma lembrança da sociedade. Assim, não basta a

imagem para que aconteça o rememorar. A sociedade

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se esforçaria em vão em recobrar, sob uma forma puramente concreta, tal figura ou tal acontecimento que tenha deixado uma forte marca na sua memória. Toda personagem e todo fato histórico, desde que penetrem nesta memória, aí se transpõem em um ensinamento, em uma noção, em um símbolo; ele recebe um significado; ele se torna um elemento do sistema de idéias da sociedade. Assim se explica que possam afinar as tradições e as idéias atuais; é que, em realidade, as idéias atuais são também tradições, e que uma e outra exigem, ao mesmo tempo e ao mesmo título, uma vida social antiga ou recente, na qual tomam seu impulso (Halbwachs, 1952, p.296).

Halbwachs reafirma, concluindo, que não somente o pensamento social é essencialmente memória,

mas que o conjunto de lembranças coletivas só pode ser reconstruído a partir das noções e estímulos atuais.

Como o Panteão da Roma Imperial abrigava todos os cultos, desde que fossem cultos, a sociedade admite todas as tradições (mesmo as mais recentes) desde que sejam tradições. Ela admite todas as idéias (mesmo as mais antigas) desde que sejam idéias, isto é que elas possam tomar lugar no seu pensamento, que elas interessam ainda aos homens de hoje, que eles as compreendam. Do que resulta que o pensamento social seja essencialmente uma memória, e que todo seu conteúdo seja feito apenas de lembranças coletivas, (...) (que subsistem desde) que a sociedade, trabalhando sobre seus quadros atuais, possa reconstruir (Halbwachs, 1952, p.296).

É surpreendente, pois, que ao se propor estudar a memória, encontre-se com o pensamento social;

que ao se pensar no passado, encontre-se em um ponto de articulação entre os tempos: entre o passado e o

presente e — por que não? — o futuro. Pela memória, encontramos o passado no presente: “a minha infância,

que já não existe presentemente, existe no passado que já não é. Porém, a sua imagem, quando a evoco e se

torna objeto de alguma descrição, vejo-a no tempo presente, porque ainda está na minha memória” (Santo

Agostinho, 1973, p.246). Não há, sublinha-se, “idéia social que não seja uma lembrança da sociedade”

(Halbwachs, 1952, p.296).

Representação e identidade

A noção de duplo vai-se repetir nos dois tipos de memória descritos por Santo Agostinho: a memória

sensitiva e a intelectual. Na primeira

se conservam distintas e classificadas todas as sensações que entram isoladamente pela sua porta. Por exemplo, a luz, as cores e as formas dos corpos penetram pelos olhos; todas as espécies de sons, pelos ouvidos; todos os cheiros pelo nariz; todos os sabores, pela boca. Enfim, pelo tato entra tudo o que é duro, mole, quente, frio, brando ou áspero, pesado ou leve, tanto extrínseco como intrínseco ao corpo. O grande receptáculo da memória (...) recebe todas estas impressões, para as recordar e revistar quando for necessário. Todavia, não são os próprios objetos que entram, mas as suas imagens: imagens das coisas sensíveis, sempre prestes a oferecer-se ao pensamento que as recorda (Santo Agostinho, 1973, p.201).

A memória intelectual, ao contrário, não retém as imagens, mas as próprias realidades, noções das

ciências e das artes que não são recebidas pelos sentidos, “mas que sem imagens vemos no nosso interior tais

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como são em si mesmas” (Santo Agostinho, 1973, p.203). Muitas das noções aí retidas parecem inatas. De um

mesmo objeto pode-se ter a imagem, retida pela memória sensitiva, e a sua idéia, retida pela memória

intelectual.

As idéias dos objetos, as realidades — noções das ciências e das artes — e os afetos da alma são

expressos, traduzidos por palavras, e essas palavras são retidas na memória. Nas palavras retidas, retém-se a

realidade por elas significada.4[4] E é por causa desse significado que as palavras podem apetecer quando são

pronunciadas. A palavra felicidade, por exemplo. A quem quer que se pergunte se se quer ser feliz há de

responder, sem hesitação, que sim. “O que não aconteceria, se a memória não conservasse a própria realidade,

significada nessa palavra” (Santo Agostinho, 1973, p.210). Em De Magistro, Santo Agostinho (1973) retorna

à questão da palavra. Para ele, o fim da palavra é duplo: serve “ou para ensinar ou para suscitar recordações

nos outros ou em nós mesmos” (p.323). A memória, à qual se aderem as palavras, “faz com que venham à

mente as próprias coisas, das quais as palavras são sinais” (p.324). As coisas significadas nas palavras retidas

na memória intelectual não foram atingidas pelos sentidos, nem vistas em parte alguma a não ser no espírito.

Duas questões postas nesses trechos de Santo Agostinho vão reaparecer em Halbwachs. Uma tem a

ver com a importância e o significado da palavra quando se discute memória; outra, com a distinção entre

imagem e noção intelectual, a que se chama de conceito.

Halbwachs utiliza a relação entre palavra e memória para, uma vez mais, demonstrar o caráter social

da memória individual. Diz ele que o único estado de consciência puramente individual é a imagem,

destacada da palavra. Não há, porém, lembranças às quais não correspondam palavras5[5], assim como não há

palavra que não contenha lembranças.

Os homens vivendo em sociedade usam palavras das quais eles compreendem o significado: é a condição do pensamento coletivo.(...) Nós falamos nossas lembranças antes de as evocar; é a linguagem e todo o sistema de convenções sociais que aí estão solidários que nos permitem, a cada instante, reconstruir nosso passado (Halbwachs, 1952, p.279).

Na busca de apresentar a memória como construção social, e de mostrar como ela é estimulada a

partir de referências sociais, Halbwachs nega a oposição entre imagem e idéia estabelecida por Bergson6[6]

que, ao definir imagem, desliga-a de toda noção de relação e todo significado intelectual e, ao definir

conceito, esvazia-o de toda imagem, toda sensação. Para Halbwachs, que tem, como referência, Platão e

4[4] Goode e Hatt (1972, p. 59) afirmam que os conceitos se desenvolvem a partir de uma experiência condividida. Porque dois povos experimentaram coisas diferentes ou escolheram diferentes aspectos dessas coisas para conceptualizar, é muitas vezes difícil traduzir palavras de uma para outra língua. 5[5] Italo Calvino (1991B), ao escrever sobre cidades, atenta para a importância das palavras para se reter a imagem de uma cidade na lembrança. Diz, a respeito de duas cidades que gostaria de conservar distintas na mente, que não lhe resta “alternativa senão falar de uma delas, porque a lembrança da outra, na ausência de palavras para fixá-la, perdeu-se” ( p.66).6[6] O trabalho de Halbwachs é um diálogo constante, orientado por Durkheim, com a obra de Bergson sobre a memória.

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Spinoza, a idéia conteria a imagem sensível e individual, mas iria além, ao incorporar relações abstratas.

Porque “a sociedade não pode pensar senão à ocasião de fatos, de pessoas, de acontecimentos, não há idéias

sem imagens” (Halbwachs, 1952, p.97). Halbwachs integra, assim, a imagem à noção intelectual. Uma

definição desse tipo, que sintetiza, na idéia, a imagem e o conceito, a imagem sensível e a sua dimensão

lógica, remete à noção de representação coletiva, trabalhada por Durkheim.

Em As Formas Elementares de Vida Religiosa, reflexões básicas de Durkheim sobre representação

aparecem na discussão sobre as categorias.7[7] As perspectivas teóricas que, no momento em que Durkheim

escreve, buscavam entender as categorias, incorporavam a oposição entre imagem e conceito, entre corpo e

alma. O apriorismo considerava a categoria como imanente ao espírito humano, anterior portanto à

experiência. O empirismo considerava a categoria uma construção do indivíduo a partir da experiência.

Admitida a tese empirista, retiram-se das categorias as suas propriedades características, isto é, a

universalidade, a necessidade e a independência que elas têm de qualquer espírito individual. Os dados

empíricos apresentam características distintas dessas: “Uma sensação, uma imagem referem-se sempre a

objeto determinado ou a coleção de objetos desse gênero e exprimem o estado momentâneo de uma

consciência particular: é essencialmente individual e subjetiva” (Durkheim, 1989, p.43). Reduzir a categoria à

experiência é negar, à razão, as características de universalidade, de necessidade e de independência. Para

pensar que o mundo tenha um aspecto lógico expresso de forma eminente pela razão, é preciso admitir que o

espírito tenha o poder de ir além da experiência imediata, que possa acrescentar algo ao que lhe é dado. O

apriorismo, ao contrário do empirismo, reconhece essa possibilidade. Ao remeter, porém, a origem dessa

possibilidade à existência de uma razão imanente, ou a um poder inato, não consegue explicá-la.

Saber qual a origem das categorias e, portanto, da razão continua uma questão em pauta. Para Santo

Agostinho, a razão provém de Deus. Para Durkheim, da sociedade. Já em As Regras do Método Sociológico,

ele explicita essa origem. Ao buscar a origem dos fatos sociais conclui que eles não derivam das consciências

individuais. Demonstra-o o seu caráter de exterioridade: se os fatos sociais se impõem às consciências

individuais é porque não nascem nelas. Excluído o indivíduo, resta a sociedade como origem desses fatos e de

sua transformação, a sociedade como resultante da combinação das consciências individuais. “Agregando-se,

penetrando-se, fundindo-se, as almas individuais dão nascimento a um ser, psíquico se quisermos, mas que

constitui individualidade psíquica de novo gênero” (Durkheim, 1972, p.90). São os homens em relação que

criam as categorias, representações essencialmente coletivas que traduzem estados da coletividade e

dependem de como esta é organizada e constituída. São os homens em relação — o meio propriamente

humano, constitutivo do meio social interno8[8] — que constituem o fator ativo a determinar as transformações

7[7] Na esteira desta discussão, como foi visto, aparece também a concepção de homem como ser individual e social, como corpo e alma. 8[8] Além do meio propriamente humano, o meio social interno é constituído de coisas sociais: dos objetos materiais incorporados à sociedade e os produtos da atividade social anterior. As características básicas do meio propriamente são o volume da sociedade — o número de habitantes e as vias de comunicação — e a intensidade dinâmica — o estreitamento moral, a vida em comum (Durkheim, 1972, p.98).

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sociais e que produzirão as categorias, as representações, as emoções, entre as quais o sofrimento e a

felicidade. Isso é trabalhado em O Suicídio, pesquisa exemplar da produção de correntes sociais.9[9] As forças

sociais ou correntes de opinião que dariam diferentes formas a essa relação, chamadas por Durkheim de

egoísmo, altruísmo e anomia, estariam presentes, de maneira conflitiva, em toda sociedade. O equilíbrio

precário entre elas pode ser rompido: a hegemonia do egoísmo produziria a tendência para a melancolia

langorosa, para o desgosto de uma existência que parece sem sentido (posto que o homem, em sendo um

duplo, só pode se realizar e encontrar sentido na sociedade); a do altruísmo, o renunciamento ativo, o

desprezo pela própria existência ou pela existência do outro, o pouco caso pela dor humana inclusive pela

própria; a da anomia, a lassidão exasperada que se pode voltar contra si mesmo ou contra o outro produzindo

crimes de sangue. Serão essas relações que produzirão o sofrimento, quando as diferentes forças estiverem em

desequilíbrio, ou mesmo, pode-se supor, a felicidade, quando as diferentes forças estiverem em equilíbrio.10[10]

As representações coletivas exprimem a sociedade e resultam da combinação das consciências

individuais. Elas são

produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas no espaço, mas no tempo; para produzi-las, uma multidão de espíritos diversos associaram, misturaram, combinaram suas idéias e seus sentimentos; longas séries de gerações acumularam aí a sua experiência e o seu saber. Uma intelectualidade muito particular, infinitamente mais rica e mais complexa que a do indivíduo aí está como que concentrada (Durkheim, 1989, p.45).

Essa intelectualidade coletiva, resultante da combinação de consciências individuais, possibilita que

não só a razão vá além dos conhecimentos empíricos mas que o próprio indivíduo vá além de si mesmo. “À

medida que participa da sociedade o indivíduo vai naturalmente além de si mesmo seja quando pensa, seja

quando age” (Durkheim, 1989, p.45/46).

As representações coletivas são essenciais à vida em sociedade pois que “

Uma sociedade não pode criar-se nem recriar-se sem criar, ao mesmo tempo, alguma coisa de ideal. Essa criação não é para ela uma espécie de ato suplementar com o qual ela se completaria a si mesma uma vez constituída; é o ato pelo qual ela se faz e se refaz periodicamente. (...) A sociedade ideal não está fora da sociedade real; faz parte dela (Durkheim, 1989, p. 500/501).

9[9] Stintchcombe (1970) utiliza a pesquisa sobre o suicídio para discutir a lógica da inferência científica. Merton (1970, p. 71) afirma que “a monografia de Durkheim, Suicide, talvez constitua o exemplo clássico do uso e do desenvolvimento da teoria de médio alcance.” Merton situa uma teoria de médio alcance entre as pequenas mas necessárias hipóteses de trabalho que “surgem em abundância durante a rotina das pesquisas diárias e os amplos esforços sistemáticos para desenvolver uma teoria unificada capaz de explicar tôdas as uniformidades observadas de comportamento, organização e mudanças sociais” (p. 51). 10[10] O trabalho de Durkheim sobre o suicídio anômico é uma peça de rara beleza sobre o sofrimento. Acredito, por este motivo, que ele possa ser lido, às avessas, como uma discussão sobre a felicidade, ou de como esta depende, como o sofrimento, do ponto em que nos encontramos no cruzamento de correntes egoístas, altruístas e anômicas. Isto é, de como ela depende das relações sociais.

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A sociedade organiza-se em nós de maneira duradoura, suscitando todo um mundo de idéias e

sentimentos que a exprimem, mas que, ao mesmo tempo, são parte integrante de nós mesmos — a trama das

representações sociais constitui a nossa vida interior (Durkheim, 1989, p.323). A sociedade se representa a si

mesma, e a idéia que faz de si mesma é parte dela mesma, assim como nós nos representamos a nós mesmos,

em nossa relação com os outros, e construímos, em nós, o sentimento de identidade, condição necessária para

a nossa existência.

Certamente, encarnando-se nos indivíduos, os ideais coletivos tendem a se individualizar. Cada um os compreende à sua maneira, marca-os com a sua impressão; eliminando-lhes alguns elementos, acrescentam-lhes outros. O ideal pessoal origina-se, assim, do ideal social, à medida que a personalidade individual se desenvolve e se torna fonte autônoma de ação (Durkheim, 1989, p.500/501).

A idéia de alma indica um processo de construção social da identidade individual — uma imagem de

si, para si e para os outros; uma representação de si. Portanto, “as representações são a trama da vida social e

são, também, a trama de nossa vida interior” (Durkheim, 1989, p. 322/ 323) e são fonte das identidades

coletiva e individual. É como membro de alguns grupos que nós nos representamos a nós mesmos. A

referência ao outro leva a se considerar a construção do sentimento de identidade como um processo de

mudança e de negociação, de conflitos sociais e intergrupais, com o outro. “A construção da identidade é um

fenômeno que se produz em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e

que se faz por meio da negociação direta com outros” (Pollack, 1992, p.204).

Durkheim e George H. Mead contribuem para o entendimento da construção social da identidade, o

que é ressaltado por Habermas ao discutir o agir comunicativo. Em George H. Mead, observa-se a idéia do

duplo: o mim (me), dimensão da identidade, revela o quanto esta é relacional o que a associa à exigência de

legitimidade do agir comunicativo11[11]; o eu (I), dimensão que poderia corresponder ao princípio da

individuação e que estaria associada à exigência de autenticidade do agir comunicativo.

Mead trata a formação da identidade sob o aspecto de uma relação entre o mim (me) e o eu (I). A expressão mim designa a perspectiva a partir da qual a criança, ao adotar frente a si mesma as expectativas do “outro generalizado”, constrói um sistema interno do comportamento. Por via de internalização de papéis sociais se forma uma estrutura de super-ego cada vez mais integrada, que permite ao agente orientar-se por pretensões normativas de validez. Ao mesmo tempo que se forma este super-ego — o mim — forma-se também o eu — o I — o mundo subjetivo das vivências às que cada um tem acesso privilegiado (Habermas, 1987, vol. II, p.62).

Habermas (1987), afirma que Durkheim, no contexto da análise do rito, altera o entendimento do

conceito de consciência coletiva para associá-lo à estruturação da identidade coletiva. Naquela análise,

consciência coletiva “se refere não tanto aos conteúdos como à estrutura de uma identidade grupal criada e

11[11] No agir comunicativo, o ator deve estar orientado para o entendimento quanto a três exigências de validade da declaração: primeira, que esta seja verdadeira (o que demonstra a relação com um mundo exteriorizado); segundo, que seja legítima com respeito a um contexto normativo (o que mostra a relação com o mundo social); terceiro, que expresse a intenção do ator, isto é, que seja autêntica (o que mostra a relação com um mundo interiorizado) (Habermas, 1981, vol. I, pp. 99/100).

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renovada mediante a identificação comum com o santo". Habermas destaca o quanto as identidades

individuais se constróem concomitantemente àquela identidade e a correspondência do termo indivíduo à

dimensão eu e do termo pessoa à dimensão mim da identidade (vol. II, p.79/80). Para ele, a tese de Durkheim

de que as localizações espaço-temporais do corpo e as pulsões naturais introduzidas pelo organismo na

socialização são o princípio de individuação não é plausível pois as vivências subjetivas estão fortemente

marcadas pela cultura. Conclui: “É, pois, manifesto que também a individualidade é um fenômeno gerado

socialmente, o qual é resultado do processo mesmo de socialização e não expressão de umas pulsões residuais

que escapem à socialização” (p.86).

No duplo pessoa e indivíduo, encontram-se, pois, dois sinais básicos do sentimento de identidade: de

um lado, um sinal de equivalência, dado pela idéia de pessoa; de outro lado, um sinal de diferença, dado pela

idéia de indivíduo. A identidade individual e a grupal pressupõem a identificação e a diferenciação com o

outro.

E como a memória contribui para a construção da identidade? Para Michel Pollack, há, entre a

memória e o sentimento de identidade — a auto- imagem “que uma pessoa adquire ao longo da vida, (...) que

constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para

ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros” (Pollack, 1992, p.204) — uma ligação

fenomenológica muito estreita. Pollack explica essa ligação, ao identificar três elementos essenciais da

construção da identidade: primeiro, a unidade física, ou seja, o sentimento de ter fronteiras físicas, no caso do

corpo da pessoa, ou fronteiras de pertinência a grupos, no caso de um coletivo; segundo, a continuidade

dentro do tempo, no sentido físico da palavra, mas também no sentido moral e psicológico; terceiro, o

sentimento de coerência, ou seja, de que os diferentes elementos que formam um indivíduo são efetivamente

unificados.

Podemos portanto dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente muito importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (Pollack, 1992, p.204).

Referindo-se a Halbwachs, Duvignaud afirma que o “eu” e sua duração situam-se no ponto de

encontro de duas séries diferentes e por vezes divergentes: uma que se atem aos aspectos vivos e materiais da

lembrança — o tempo presente, e aquela que reconstrói o que é do passado (Duvignaud, 1990, p.13). Em

Halbwachs, está presente a ligação entre memória e construção da identidade, em especial pelo sentimento de

continuidade e de coerência conferidos pela memória à identidade, mesmo que as lembranças sejam

continuamente reconstituídas.

De cada época de nossa vida, guardamos algumas lembranças, sem cessar reproduzidas, pelas quais se perpetua, como por efeito de uma filiação contínua, o sentimento de nossa identidade. Mas precisamente porque essas são repetições, porque vão sendo engajadas sucessivamente em sistemas de noções muito diferentes, nas diversas épocas de nossa vida, elas perdem sua forma e aspecto de outrora (Halbwachs, 1952, p.89).

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A contínua reconstrução da memória vai corresponder à contínua reconstrução do sentimento de

identidade. Segundo Pollack (1992),

ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de negociação, de transformação em função dos outros.(...) Vale dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma pessoa ou de um grupo.Se é possível o confronto entre a memória individual e a memória dos outros, isso mostra que a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos (pp.204/205).

De maneira magnífica, Santo Agostinho (1973) se refere à ligação entre memória e sentimento de

identidade:

Tudo isto realizo no imenso palácio da memória. Aí estão presentes o céu, a terra e o mar com todos os pormenores que neles pude perceber pelos sentidos, exceto os que já esqueci. É lá que me encontro a mim mesmo, e recordo as ações que fiz, o seu tempo, lugar, e até os sentimentos que me dominavam ao praticá-las. É lá que estão também todos os conhecimentos que recordo, aprendidos ou pela experiência própria ou pela crença no testemunho de outrem (p 201).

Rememorar: os quadros sociais da memória

Halbwachs, em Les Cadres Sociaux de la Mémoire, se dedica a pensar o ato de rememorar. Para ele,

o pensamento individual é capaz de se lembrar na medida em que se coloca nos quadros sociais da memória e

de que participa da memória coletiva. Quadros sociais da memória e memória coletiva são, portanto,

conceitos distintos.

Memória coletiva é o conjunto dos acontecimentos essenciais do passado de um grupo. Desse

passado, retém-se apenas aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo.

No primeiro plano da memória de um grupo se destacam as lembranças dos acontecimentos e das lembranças que concernem ao maior número de seus membros e que resultam quer de sua própria vida, quer de suas relações com os grupos mais próximos, mais freqüentemente em contato com ele (Halbwachs, 1990, p.45).

Barros (1989, p.32), a partir de Halbwachs, diz que a memória coletiva é o passado que se perpetua e

vive na consciência coletiva. A consciência coletiva diferencia a memória coletiva da memória histórica.

Quando se estuda memória, buscam-se os homens, elementos vivos e depositários de lembranças do passado.

No conceito de memória coletiva, portanto, encontra-se a história vivida. “Não é na história aprendida, é na

história vivida que se apóia nossa memória” (Halbwachs, 1990, p.60).

Duvignaud (1990) vai qualificar de “notável” a distinção feita por Halbwachs entre memória

histórica e memória coletiva. A primeira “supõe a reconstrução dos dados fornecidos pelo presente da vida

social e projetada no passado reinventado". A segunda “recompõe magicamente o passado” ( p.14/15).

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D’Aléssio (1993) destaca duas características da memória coletiva como trabalhada por Halbwachs.

A primeira é a de que as “situações vividas só se transformam em memória se aquele que se lembra sentir-se

afetivamente ligado ao grupo ao qual pertenceu” (p.98). O afetivo indica o pertencimento. A segunda é a de

que “para que um grupo físico seja um grupo afetivo ou grupo — comunidade, é preciso que haja uma certa

duração na convivência” (p.99). Essa característica aponta para a questão do tempo, para a dimensão da

continuidade. “A história não é memória porque há descontinuidade entre quem a lê e os grupos, testemunhas

ou atores dos fatos narrados” (p.99).

“Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva (...) este ponto de vista

muda segundo o lugar que ali eu ocupo (...) este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho

”(Halbwachs, 1990, p.51). A importância da memória coletiva no ato individual de lembrar, porém, é tão

poderosa que as fatos e noções mais fáceis de lembrar são os de domínio comum e,

por mais estranho e paradoxal que isto possa parecer, as lembranças que nos são mais difíceis de evocar são aquelas que não concernem a não ser a nós, que constituem nosso bem mais exclusivo, como se elas não pudessem escapar aos outros senão na condição de escapar também a nós próprios (Halbwachs, 1990, p.49).

Segundo Duvignaud (1990), “a rememoração pessoal situa-se na encruzilhada das malhas de

solidariedades múltiplas dentro das quais estamos engajados". A lembrança “coloca-se na intersecção de

várias correntes do ‘pensamento coletivo’. Eis porque experimentamos tanta dificuldade em nos lembrar dos

acontecimentos que apenas nos concernem” (p.14).

Esses destaques, por pequenos que sejam, demonstram a importância dos grupos de referência e de

apoio à memória. Se a memória, como foi indicado, associa-se ao sentimento de identidade, perder esses

grupos de referência é arriscar esse mesmo sentimento. A morte dos amigos da mesma geração, que

compartilharam de experiências e sentimentos comuns, é um pouco a morte daqueles que sobrevivem e a

sensação da morte de um mundo e de um tempo. A essa altura da discussão, começa a tomar corpo o

significado delicado e sensível da memória dos velhos. Trabalhar com a memória dos velhos é estar o tempo

todo a tatear a presença da morte, a lidar com o tempo que se esgota pela consumição do futuro e que se

transforma, em um determinado momento, só em passado. Os desejos, os sonhos e as esperanças se

transformam em recordações.

Os quadros sociais da memória se referem, de um lado, aos estímulos presentes que conduzem à

rememoração e, de outro, à localização no passado do que o presente suscitou. Os quadros articulam,

portanto, o presente ao passado. Rememorar é um ato que acontece no e é provocado pelo presente: do

passado retornam a nós os acontecimentos que correspondem às nossas preocupações atuais. É do presente

que se parte.12[12] Os fatos, acontecimentos, personagens, conhecimentos, sensações depositados na memória

12[12] Nisbet (1977) também refletiu sobre a relação entre o passado e o presente em seu trabalho sobre a formação do pensamento sociológico, que tem como tema as idéias-elementos que proporcionariam a medula da Sociologia: “idéias que persistiram através da época clássica da Sociologia moderna e chegam, na verdade, até o presente.” Afirma ele que o ponto de partida para o encontro destas idéias é o presente. “A história —

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se reorganizariam não só na presença de algo que se acrescenta a eles mas também segundo a pergunta

presente que se faz à memória. A memória é, assim, seletiva.

não é o passado todo inteiro que exerce sobre nós uma pressão com vista a penetrar em nossa consciência. Não é mais a série cronológica dos estados passados que reproduziria exatamente os acontecimentos antigos, mas são aqueles únicos entre eles que correspondem a nossas preocupações atuais que podem reaparecer. A razão de sua reaparição não está neles mas na sua relação às idéias e percepções de hoje: não é pois deles que partimos mas dessas relações (Halbwachs, 1990, p.141/142).

Porque a memória é seletiva, rememorar é também esquecer. O que o presente não solicita à

memória é esquecido. “As fronteiras desses silêncios e ‘não- ditos’ com o esquecimento definitivo e o

reprimido inconsciente (...) estão em perpétuo deslocamento” (Pollack, 1989, p.8). Além do lembrar e do

esquecer, Pollack (1989) discute três outros mecanismos possíveis de articulação entre a memória e o

presente.

O primeiro é o de proibição político-ideológica de expressão pública de um determinado tipo de

lembranças. A referência empírica desse mecanismo é a reescrita da história em dois momentos da

destalinização: o primeiro, após o XX Congresso do PC da União Soviética, quando Nikita Kruschev

denunciou pela primeira vez os crime stalinistas; o segundo aconteceu trinta anos mais tarde no quadro da

glasnot e da perestroika, quando a liberdade da crítica despertou traumatismos profundos e ressentimentos

acumulados no passado e a memória da dominação e de sofrimentos que não podiam se exprimir

publicamente irromperam. O silêncio anterior não significava e não levou ao esquecimento.

O segundo dos mecanismos tem a ver com dificuldades de integrar lembranças de grupos na

memória da sociedade maior. O silêncio se produz pela necessidade de encontrar um modus vivendi nessa

sociedade. A referência empírica é a dos sobreviventes dos campos de concentração que, após serem

libertados, retornaram à Alemanha ou à Áustria. Retornados, em um primeiro momento encontraram quem os

escutasse. O esforço de reconstrução do país, porém, exauriu a disposição de ouvir e lhes retirou a

comunidade de ouvintes. Além disso, o retorno dos deportados e de suas histórias despertavam sentimentos de

culpa entre aqueles que assistiram a deportação e nada fizeram. As lembranças se tornaram indizíveis para

não constranger os não deportados e criar dificuldades de integração aos deportados.

O terceiro mecanismo diz respeito às lembranças vergonhosas, não ditas para evitar mal-entendidos.

A referência empírica é o de alsacianos que foram recrutados à força pelo exército alemão na Segunda Guerra

Mundial. Depois da guerra, o grau de colaboração e comprometimento desses homens foi questionado.

Nos três casos, esses tipos de lembranças são transmitidos no quadro familiar, em redes de

sociabilidade afetiva e/ou política. O rememorar acontece, em geral, em resposta ao outro ou ao grupo. São as

pessoas, com suas perguntas e sua presença, que despertam a memória individual. É enquanto membros de

um grupo que cada um de nós se representa e é, na experiência compartilhada, que a memória individual se

alguém o disse muito bem — revela seus segredos somente a quem começa pelo presente. Para mencionar as palavras de Alfred North Whitehead, o presente é terra sagrada” (p.17).

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alimenta. Os grupos com os quais estamos em relação mais contínua seriam os grupos que, mais do que os

outros, estruturariam nossa memória. Destacam-se, entre eles, a família, o grupo de amigos e o de trabalho.

Para Thompson (1993), o papel da família na transmissão cultural intergeracional é grande pois

inclui não somente a transmissão da memória familiar (...) mas também da linguagem (“a língua mãe”), do nome, do território e da moradia, da posição social e da religião, e, mais além ainda, dos valores e aspirações sociais, visões de mundo, habilidades domésticas, modos de comportamento, modelos de parentesco e casamento ( p.10).

Para Barros (1989), “a importância do grupo familiar como referência fundamental para a

reconstrução do passado advêm do fato de a família ser, ao mesmo tempo, o objeto das recordações dos

indivíduos e o espaço em que essas recordações podem ser avivadas” (p.33/34). Sobre a representação da

família no universo de camadas médias, realizou duas pesquisas. Na primeira, entrevistou avós, fundamentais

na análise da representação da família. Ao longo da pesquisa, os avós foram se configurando como

responsáveis pela manutenção do valor-família. A vida dos avós é fonte de transmissão de determinados bens

simbólicos, que representam uma situação social e ao mesmo tempo uma ordem moral. Na segunda, o tema

foi analisado a partir de álbuns de retratos com aqueles que, “ciosos da importância da família na construção

da identidade dos indivíduos, tomam para si a tarefa de preservar os arquivos da memória familiar: os álbuns

de família". As imagens contidas nas fotos contem pistas para a memória. “Na fotografia antiga do grupo de

família, visualiza-se um modelo de família: a grande-família cujas relações estão estabelecidas anteriormente

à existência dos indivíduos particulares que a compõem” (Barros, 1989, p.36/37/39).

O rememorar também é estimulado pelos lugares, testemunhos atuais de fatos e acontecimentos

passados, de personagens e de relações sociais. Aos lugares se atribuem significados sociais: eles passam,

assim, a ter alma. Os grupos aos quais pertencemos e os lugares aos quais nos vinculamos têm neles uma

memória inscrita, da qual participamos. A memória individual, portanto, é, em parte herdada, e, tanto quanto a

coletiva, é social.

Os quadros sociais da memória são constituídos por dois aspectos solidários. De um lado, de noções

lógicas que organizam o objeto, a personagem ou o acontecimento quanto ao tempo, ao lugar e quanto às

relações de semelhança, isto é, de noções que localizam a lembrança. As noções de tempo e espaço são

fundamentais para a rememoração do passado, na medida em que a localização13[13] espacial e temporal das

lembranças é a essência da memória. A semelhança, por sua vez, é “o sinal de uma comunidade de interesses

13[13] Segundo Halbwachs (1952), ao seu tempo, os psicólogos diferenciavam reconhecer de localizar uma lembrança. Localizar seria ter idéia do momento em que se adquiriu uma lembrança; reconhecer seria ter o sentimento de que uma pessoa que se vê ou uma imagem que nos atravessa o espírito foram apresentados para nós no passado sem que possamos dizer em que momento. A idéia estaria contraposta ao sentimento. A sociedade interviria somente na localização da lembrança. Halbwachs não concorda com esta distinção. Para ele, “a propósito de toda lembrança, nós podemos dizer, senão exatamente quando e onde, ao menos em que condições a adquirimos (...) em outras palavras, eu posso sempre indicar em qual zona da vida social esta lembrança nasceu. (...) Assim, a localização precede não somente o reconhecimento mas a evocação das lembranças(...) é uma reflexão, mas que, sob a forma de idéias, contem já fatos concretos e sensíveis. Nesse sentido, a localização explicaria a lembrança” (pp.118/119).

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e de pensamento. Não é porque elas são parecidas que podem ser evocadas ao mesmo tempo. É mais porque

um mesmo grupo se interessa por elas, e é capaz de as evocar ao mesmo tempo, que elas se parecem”

(Halbwachs, 1952, p.144). O segundo aspecto solidário são os significados atribuídos pelo grupo aos objetos,

às personagens e aos acontecimentos.

a sociedade que porta julgamentos sobre os homens que vivem e sobre o dia de sua morte, tanto quanto sobre os fatos quando eles se produzem, encerra na realidade dentro de cada uma dessas lembranças importantes não somente um fragmento de sua experiência, mas também um reflexo de suas reflexões. (...) Um fato passado é um ensinamento, e um personagem desaparecido, um encorajamento ou um advertimento (...) O quadro da memória é também uma cadeia de idéias e de julgamentos (Halbwachs, 1952, p.282).

Esses componentes básicos dos quadros sociais da memória demonstram que esses quadros integram

noções lógicas às imagens sensíveis. “Uma representação coletiva tem tudo o que é necessário para responder

a uma definição como essa” (Halbwachs, 1952, p.281). Portanto, os quadros sociais da memória seriam

constituídas de representações, assim como a própria memória. Essa hipótese — de identidade de natureza

entre os quadros e o acontecimento, de que um e outro são feitos de lembranças, e essas são representações —

explicaria porque a desaparição ou transformação dos quadros ocasiona a desaparição — o esquecimento —

ou transformação das lembranças.

A sociedade, segundo as circunstâncias, e segundo o tempo, se representa de diversas maneiras o passado: ela modifica suas convenções. Como cada um de seus membros se sujeita a essas convenções, ele inclina suas lembranças no sentido para o qual evolui a memória coletiva (Halbwachs, 1952, p.279).

Assim, se certas lembranças não reaparecem é porque elas estavam enquadradas em um sistema de

noções que não se encontram mais no presente. Essa negociação ou compromisso entre os quadros e as

lembranças acontece, mesmo quando haja incompatibilidade entre aspectos destas lembranças e as noções

atuais, posto que as noções que compõem os quadros são feitas de lembranças tanto quanto os

acontecimentos, fatos ou pessoas lembrados. Isso leva a uma característica básica do passado reconstituído

pela memória: ele é sempre uma reconstrução, por mais detalhes que contenha. E é uma reconstrução feita no

presente.

De onde provém essa força do presente para reconstruir o passado se, do ponto de vista do total do

pensamento social, as idéias do passado são preponderantes? Segundo Halbwachs, essa força provém da

maior extensão dos grupos sociais aos quais correspondem as idéias presentes. A tradição sempre se refere a

um grupo considerado; as idéias atuais a muitos outros grupos contemporâneos.

A razão se opõe à tradição como uma sociedade mais estendida a uma sociedade mais estreita. Além disso as idéias atuais não são verdadeiramente novas senão para os membros do grupo no qual elas penetram. Por toda parte onde elas não se chocam com as mesmas tradições que nesta, elas tem podido se desenvolver livremente e tomar elas mesmas a forma de tradições (Halbwachs, 1952, p.291).

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Memória de velhos

Vou recitar um hino que aprendi de cor. Antes de principiar, a minha expectação estende-se a todo ele. Porém, logo que o começar, a minha memória dilata-se, colhendo tudo o que passa de expectação para o pretérito. A vida deste meu ato divide-se em memória, por causa do que já recitei, e em expectação, por causa do que hei de recitar. A minha atenção está presente e por ela passa o que era futuro para se tornar pretérito. Quanto mais o hino se aproxima do fim, tanto mais a memória se alonga e a expectação se abrevia, até que esta fica totalmente consumida, quando a ação, já toda acabada, passar inteiramente para o domínio da memória.(...) Isto mesmo sucede em toda a história “dos filhos dos homens”, do qual cada vida individual é apenas uma parte (Santo Agostinho, 1973, p.255).

As “comunidades geracionais”

Pensar na cidade para si — a cidade interiorizada pelos seus habitantes e que carrega as marcas da

vida desses mesmos habitantes — é pensar no processo de mudança das relações sociais que acompanha o

processo de urbanização levam a pensar no suceder de gerações que faz com que “a criação e a acumulação

culturais nunca sejam realizados pelos mesmos indivíduos” (Mannheim, 1982, p.74).

Para definir e compreender a natureza da geração como tipo particular de situação social, é

significativa a contribuição de Mannheim, contida em um pequeno texto, O Problema Sociológico das

Gerações14[14], escrito na primeira metade do século. Recentemente, a importância das gerações tem sido

questionada.

Expressões como “curso da vida pós-moderno”, “sociedade unietária” e “descronologização da vida” têm sido utilizadas de modo a dar conta de mudanças que, a partir dos anos 70, deram novas configurações aos comportamentos tidos como adequados aos grupos de idade e às relações entre eles, promovendo um embaçamento das fronteiras que caracterizavam estilos de vida considerados próprios aos indivíduos em diferentes faixas etárias (...) (Esse) apagamento das fronteiras (...) é, segundo Moody, o reflexo de uma sociedade pós-fordista, marcada pela informatização da economia, pela desmassificação dos mercados de consumo, da política, da mídia e da cultura, e pela fluidez e multiplicidade de estilos de vida, frutos de uma economia baseada mais no consumo do que na produtividade (Debert, 1997, p.120/124).

14[14] Segundo Coser, a Sociologia das Gerações de Mannheim é um primeiro e qualificado exemplo da determinação existencial do conhecimento (Coser, 1971, p.434).

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Debert (1997) afirma que o processo, indicado pelas expressões “curso da vida pós-moderna” e

outras, pelo qual a juventude é considerada um bem possível de ser adquirido por todos em qualquer

momento da vida, é concomitante ao processo “que transforma as idades em mecanismos privilegiados na

criação de atores políticos e na definição de mercados de consumo” (p. 20). Pondera, além disso, que

As idades ainda são uma dimensão fundamental na organização social e seria um exagero supor que elas deixaram de ser um elemento fundamental na definição do status de uma pessoa.(...) A afirmação da irracionalidade da razão, a crítica às pretensões universalistas e a valorização do pluralismo e do conhecimento local, próprios da pós-modernidade, certamente explicam a quebra da autoridade dos adultos. Contudo, poder-se-ia ainda argumentar que esse é um fenômeno restrito, próprio de certos setores da classe média e não uma nova sensibilidade que teria se difundido na sociedade como um todo (p.125).

Pelas ponderações de Guita Debert, reafirma-se a decisão do corte proposto, mesmo que o mundo

marcado pelas distinções entre gerações possa ser finito.

Para Mannheim, uma geração não é uma comunidade, posto que não é um grupo concreto baseado

em laços existenciais e vitais de “proximidade”15[15], e nem uma organização criada pela aplicação consciente

da vontade racional.16[16] Ela, porém, assim como a situação de classe, existe independentemente da

consciência que o indivíduo tenha dela e determina, a vários indivíduos, uma similaridade de situação.

Enquanto a posição de classe baseia-se “na existência de uma estrutura econômica e de poder em

transformação na sociedade”, a situação de geração baseia-se

no ritmo biológico de nascimento e morte (...) (Porém), não fosse pela existência de interação social entre seres humanos, pela existência de uma estrutura social definida, e pela história estar baseada em um tipo particular de continuidade, a geração não existiria como um fenômeno de localização social; existiria apenas nascimento, envelhecimento e morte. O problema sociológico das gerações (...) começa nesse ponto onde é descoberta a relevância sociológica dos fatores biológicos (Mannheim, 1982, p.71/72).

Antonio Candido mostra, a partir da análise do livro de Dino Buzzati, O Deserto dos Tártaros,

escrito em 1940, como a morte pode definir o ser de um homem e lhe dar oportunidade de encontrar

justificativa para a própria vida. Segundo Antonio Candido (1993), Giovanni Drogo, o personagem central do

romance, durante a vida inteira “esperou o momento que permitiria a uma espécie de revelação do seu ser, de

maneira que os outros pudessem reconhecer o seu valor, o que o levaria a reconhecê-lo ele próprio. Mas aqui

surge a contradição suprema, pois esse momento acaba sendo o da morte” (p.185). Está formulada, nesse

15[15] A palavra proximidade vem posta entre aspas para que não se refira apenas à proximidade física. Segundo Tönnies, quem cunhou os termos Gemeinschaft e Gesellschaft, a comunidade pode estar baseada na amizade. A amizade espiritual “forma uma espécie de laço invisível, um imperativo moral, uma reunião mística animada de algum modo por uma intuição e um vontade criadora” (Tönnies, 1995,p.240). Assim, a palavra proximidade pode referir-se à proximidade por afetos ou por valores.16[16] Nessas duas formas de grupos concretos, percebem-se duas formas básicas de relações sociais — comunidade e sociedade — consideradas, por Nisbet (1977) e por Florestan Fernandes (1973) idéias fundamentais para a constituição do pensamento sociológico.

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trecho, a questão da busca da identidade, mais de busca do que de construção. Está formulado, também, o

significado da morte tal como poderia ter sido para Drogo. Esse significado, porém, é dado pelo narrador ou

pelo crítico, porque, diz Norberto Bobbio (1997),

da minha morte só os outros podem falar. Posso contar minha vida através das recordações minhas e daqueles que me foram próximos (...) Posso contá-la até os últimos minutos. Não posso contar minha morte. Só os outros podem fazê-lo. (...) Minha morte é imprevisível para todos, mas para mim é também indizível (pp.36/37).

A morte de cada um de nós, portanto, sua imagem e seu significado, a ruptura e a reorganização das

relações sociais que ela provoca, só os outros experienciarão. A presença da morte, ou a dos outros ou a

expectativa da própria, está sempre presente nos relatos dos velhos entrevistados. Norberto Bobbio (1997)

afirma que “a vida não pode ser pensada sem a morte. (...) Levar a vida a sério significa aceitar firmemente,

rigorosamente, da maneira mais serena possível, a própria morte” (p.40).

O significado social dos fatores biológicos resulta, para Thompson (1993), do contraste entre as

pretensões da cultura em representar a tradição através dos séculos, as chamadas verdades eternas, e a crua

brevidade da vida humana. “Daí a necessidade universal de transmissão da cultura entre as gerações” (p.9).

Segundo Mannheim (1982), em uma sociedade qualquer, a criação e a acumulação culturais são

realizadas por indivíduos diferentes que se sucedem ao longo do tempo, portanto, por indivíduos de gerações

diferentes, que entram de maneira diferente em contato com a herança acumulada. A mudança cultural

associa-se ao “contato original”, que “sempre significa um relacionamento modificado, um distanciamento

em relação ao objeto e uma abordagem original na assimilação, uso e desenvolvimento do material oferecido”

( p.74).

Com o suceder de gerações, produzem-se dois tipos distintos de “contatos originais” com a herança

cultural e social: um determinado pelas mudanças sociais, quando se alteram as relações sociais; outro

determinado por fatores biológicos fundamentais — de um lado, a entrada em cena continuada de novos

grupos etários; de outro, o envelhecimento e a saída de cena.

O segundo “contato original” capacita os membros de uma sociedade à recordação social, à produção

da memória coletiva tão cara à preservação da identidade. Pela lembrança, a experiência passada é

incorporada ao presente. Segundo Mannheim (1982), dois são os modos pelos quais a experiência passada se

incorpora ao presente:

1o.) “como modelos conscientemente reconhecidos pelos quais os homens amoldam sua conduta”

(p.76);

2o.) “como padrões inconscientemente ‘condensados’, meramente ‘implícitos’ ou ‘virtuais’(...)

considere, como exemplo, como as experiências passadas estão ‘virtualmente’ contidas em tais manifestações

específicas como a de sentimentalidade” (p.77).

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Desses modos, “o tipo de memória que contem o passado na forma de reflexão é muito menos

significante (...) do que aquele onde o passado só está presente ‘implicitamente’, ‘virtualmente’; além disso,

os elementos reflexivos freqüentemente são mais dependentes dos elementos não-reflexivos do que vice-

versa”(Mannheim, 1982, p.77). Nesse último modo, o “inventário de experiência que é absorvido do ambiente

por infiltração no início da juventude freqüentemente se torna o estrato historicamente mais antigo da

consciência, que tende a estabilizar-se como a visão natural do mundo” (Mannheim, 1982, p.82).

Reconhece-se, nesse modo, a presença das representações coletivas, até na inconsciência, apontada

por Durkheim (1991) como característica das fontes de nossa vida moral. Para ele, algumas almas “não

compreendem as fontes de onde decorre a sua própria moralidade, porque estas fontes são demasiado

profundas.(...) A consciência é um mau juiz para aquilo que se passa no fundo do ser, porque não penetra aí”

(p.196).

Walter Benjamin (1975) insiste também na importância, senão da inconsciência, ao menos dos

elementos não-reflexivos, para que a narração passe a fazer parte do repertório da memória de quem a escuta.

Não há meio mais indicado para que a memória conserve determinadas estórias do que aquela casta concisão que as subtrai à análise psicológica; e quanto mais naturalmente o narrador renuncia à ornamentação psicológica, tanto mais elas podem aspirar a um lugar na memória daquele que as escuta, pois hão de adaptar-se mais facilmente à sua própria experiência e ele terá, em dias próximos ou afastados, tanto mais agrado em passar a transmiti-las por sua vez (p.68).

Segundo Bosi (1994), “reflexões que escutamos e que calharam bem com nosso estado de alma,

estão a um passo da assimilação e do esquecimento da verdadeira fonte” (p. 407). Entre as reflexões, aquelas

que foram assimiladas e que tiveram esquecidas a verdadeira fonte foram as que mantiveram afinidades

eletivas com o nosso estado de alma. Afirma também que as fases desse processo de assimilação e de

esquecimento não são elaboradas pela consciência. Continua: “determinar a origem de uma influência social é

um problema difícil. Ela pode ser um ponto de convergência de várias correntes de pensamento coletivo”

(p.408).

Os dois modos de “contato original” associam-se a estruturações diferenciadas da percepção do

mundo, a estruturações diferenciadas da consciência, o que faz com que jovens e velhos, na mesma época e na

mesmas condições sócio- econômicas, vivam diferentemente os mesmos acontecimentos.

A mera contemporaneidade torna-se significante sociologicamente apenas quando envolve também a participação nas mesmas circunstâncias históricas e sociais. Além disso, temos que levar em consideração nesse estágio o fenômeno da “estratificação” (da consciência). Alguns grupos etários mais velhos experienciam certos processos históricos juntamente com a geração jovem e, no entanto, não podemos dizer que tenham a mesma situação de geração (Mannheim,1982, p.80).

O fenômeno da estratificação da consciência, que permite que gerações diferentes experenciem

diferentemente as mesmas situações, recupera a concepção de memória associada à vida representativa que,

para Durkheim (1970), “(...) não é formada de átomos separados uns dos outros; é um todo contínuo, no qual

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todas as partes se interpenetram” (p.32). A relação entre as representações, entre as lembranças e os seus

quadros, entre tempos diferentes, leva à contínua reconstrução e atualização da memória. Mannheim qualifica

essas relações de dialéticas e confere singular importância às experiências infantis que tendem a se cristalizar

em uma visão natural do mundo, o que ressalta, uma vez mais, a importância das relações familiares como

constitutivas de quadros sociais da memória e, conseqüentemente, do sentimento de identidade.17[17]

A consciência humana, estruturalmente falando, caracteriza-se por uma “dialética” interna particular. Ela é de considerável importância para a formação da consciência cujas experiências produzem aquelas “primeiras impressões” e “experiências infantis” extremamente importantes — e que subseqüentemente formam o segundo, o terceiro, e outros “estratos”. Inversamente, ao se estimar a significação biográfica de uma experiência particular, é importante saber se ela foi vivida pelo indivíduo como uma experiência infantil decisiva, ou num período mais tardio de sua vida, sobreposta a outras impressões básicas anteriores. As impressões iniciais tendem a cristalizar-se numa visão natural do mundo. Todas as experiências posteriores, então, tendem a receber seu significado desse conjunto original, quer elas apareçam como a verificação e finalização daquele conjunto, quer como sua negação e antítese. As experiências não se acumulam no curso de uma vida através de um processo de adição ou aglomeração, mas são articuladas “dialeticamente” da maneira descrita (Mannheim, 1982, p.80).

As condições para participar de uma comunidade geracional são: a co-presença em uma região

histórica e social e “a participação no destino comum dessa unidade histórica e social” (Mannheim,1982,

p.85/86). 18[18]

Na comunidade de destino, aparecem as unidades de geração particulares:

enquanto a mera ‘situação’ comum em uma geração é de uma significação apenas potencial, uma geração enquanto uma realidade é constituída quando contemporâneos similarmente ‘situados’ participam de um destino comum e das idéias e conceitos de algum modo vinculados ao seu desdobramento. (...) Dentro dessa comunidade de pessoas com um destino comum podem então surgir unidades de geração particulares. Elas se caracterizam pelo fato de que não envolvem apenas a livre participação de vários indivíduos em um padrão de acontecimentos partilhados igualmente por todos (embora interpretado diferentemente por indivíduos diferentes), mas também uma identidade de reações, uma certa afinidade no modo pelo qual todos se relacionam com suas experiências comuns e são formados por elas (Mannheim, 1982, p.89).

17[17] Berger (1977), a partir de George H. Mead, ressalta a importância dos outros significativos nas fases iniciais do processo de socialização, fases também significativas. “São as pessoas que com maior freqüência se tornam objeto da interação da criança, com as quais mantém relações emocionais mais intensas e cujas atitudes assumem importância crucial na situação em que se encontra” (p.208).18[18] Gurvitch (1968) utiliza o termo comunidade para indicar um grau de intensidade da sociabilidade por fusão parcial no Nós. Para Gurvitch, há diferentes tipos de sociabilidade, ou seja, diferentes maneiras de se estar ligado em um todo e por un todo social. Os outros tipos de sociabilidade são a massa, o mais fraco em fusão e o mais forte em pressão, e a comunhão, de grau máximo de intensidade de participação, da força de atração e da profundidade de fusão no Nós (p.171-201).

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As relações entre jovens e velhos dependem do dinamismo social. Em sociedades menos dinâmicas,

os jovens desenvolvem uma relação de fidelidade com o passado, que é referência para o comportamento. Em

sociedades mais dinâmicas, os jovens, por estarem aliviados do fardo da experiência, estão mais liberados

para viverem um mundo em transformação e a ele se adaptarem. Nessas sociedades, os velhos ou se tornam

mais receptivos às influências dos mais jovens (até mesmo de maneira mais intensa do que as gerações

intermediárias, dada a elasticidade mental proporcionada pela experiência), ou afirmam um modo de vida

peculiar 19[19], ou, possibilidade não alertada por Mannheim, sentem e vivem a exclusão. Thompson (1992)

afirma essa terceira possibilidade quando reconhece que pessoas idosas são “freqüentemente ignoradas e

fragilizadas economicamente”. Para ele, um projeto de história oral proporcionaria, ao velho, novos contatos

sociais e lhe criaria condições de vivenciar a dignidade e o sentido de finalidade de vida (p.33). Além disso,

“recordar a própria vida é fundamental para nosso sentimento de identidade; continuar lidando com essa

lembrança pode fortalecer, ou recapturar a autoconfiança” (p.208).

Situações de intensa mudança social diminuem o valor das experiências, posto que o passado deixa

de ser referência básica e única para o comportamento e referência de continuidade social. Afetam também a

narração, posto que a “experiência transmitida oralmente é a fonte de que hauriram todos os narradores”

(Benjamin,1975, p.64).

Cada vez mais rara vai se tornando a possibilidade de encontrarmos alguém verdadeiramente capaz de historiar algum evento. (...) É como se nos tivessem tirado um poder que parecia inato, a mais segura de todas as coisas seguras, a capacidade de trocarmos pela palavra experiências vividas. (...) Uma das causas é óbvia: as experiências perderam muito do seu valor. (...) Assim, a capacidade de ouvir atentamente se vai perdendo e perde-se também a comunidade dos que escutam.20[20] Pois narrar estórias é sempre a arte de transmiti-las depois, e esta acaba se as histórias não são guardadas. Perde-se porque ninguém mais fia ou tece enquanto escuta as narrativas. Quanto mais natural a atividade com que a narração é seguida, tanto mais profundamente cala aquilo que é transmitido. Onde o ritmo do trabalho se apoderou daquele que narra, ele ouve as estórias de tal maneira que lhe será natural transmiti-las depois (...) A narrativa, tal como se desenvolve durante muito tempo no círculo dos ofícios os mais diversos — do agrícola, do marítimo e, depois, do urbano — é, por assim dizer, uma forma artesanal da comunicação (Benjamin, 1975, p.63,68,69).

Walter Benjamin ressalta as mudanças na organização do trabalho como explicação possível da

perda do valor das narrativas. Italo Calvino (1991), ao discutir a imaginação e a comunicação das

experiências vividas, ressalta questões ligadas aos meios de comunicação que, infere-se, podem trazer

problemas à arte da narração:

19[19]Debert (1992, p.33 e seqüentes) relata pesquisas que demonstram esta forma de reação dos velhos. Para Mannheim (p.84), a afirmação de um modo de vida é tornado possível pela moderna tendência ao individualismo. 20[20] Perder a comunidade de ouvintes — talvez a geração dos mais jovens — é perder a comunidade de narradores, posto que a narração implica em uma relação. Para Italo Calvino, quem ouve “retém somente as palavras que deseja.(...) Quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido” ( 1991B, p.123).

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O poder de evocar imagens in absentia continuará a desenvolver-se numa humanidade cada vez mais inundada pelo dilúvio das imagens pré-fabricadas? Antigamente a memória visiva de um indivíduo estava limitada ao patrimônio de suas experiências diretas e a um reduzido repertório de imagens refletidas pela cultura; a possibilidade de dar forma a mitos pessoais nascia do modo pelo qual os fragmentos dessa memória se combinavam entre si em abordagens inesperadas e sugestivas. Hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de não podermos distinguir mais a experiência direta daquilo que vimos há poucos segundos na televisão. Em nossa memória se depositam, por estratos sucessivos, mil estilhaços de imagens, (...) é cada vez menos possível que uma delas adquira relevo (p.107).

A memória sofre, assim, um duplo ataque: um, da perda do valor do passado e das experiências

como referência, ocasionadas, para Benjamin, pelas mudanças na organização do trabalho; outro, da

influência dos meios de comunicação de massa. A esse duplo ataque, se somam as mudanças das

características da cidade, depositária de significados sociais e apoio à memória. Além desses fatores,

nitidamente sociais e culturais, se soma outro, em especial para os velhos, um fator biológico carregado de

significados sociais: a morte. Em suas reflexões sobre a velhice, Norberto Bobbio ressalta que nos “lugares da

memória, os mortos perfilam-se em torno de nós em número cada vez maior. A maior parte dos que nos

acompanharam já nos abandonou. Mas não podemos apagá-los como se nunca tivessem existido” (Bobbio,

1997, p.31) Ecléa Bosi (1994) reflete de maneira dura e delicada sobre o tema:

Integrados em nossa geração, vivendo experiências que enriquecem a idade madura, dia virá em que as pessoas que pensam como nós irão se ausentando, até que poucas, bem poucas, ficarão para testemunhar nosso estilo de vida e pensamento. Os jovens nos olharão com estranheza, curiosidade; nossos valores mais caros lhes parecerão dissonantes e eles encontrarão em nós aquele olhar desgarrado com que, às vezes, os velhos olham sem ver, buscando amparo em coisas distantes e ausentes ( p.75).

Velhice: o tempo de rememorar

Lembro-me que, há alguns anos fui visitar o avô de uma amiga. Descendente de italianos, ele, na

época com 96 anos, ainda conseguia distinguir o passado do presente21[21], distinção que hoje, com mais de

100 anos, começa a se tornar rara. Nesse dia em que o visitei, um entre muitos outros, ele novamente

começou a contar, com muita energia e vontade, as histórias da família. Fiquei ouvindo-o por uma hora mais

ou menos. Tentei então cortar a conversar e me despedir. Precisava trabalhar. Quando tentei me levantar —

eu estava sentada em um sofá que fazia ângulo de 90 graus com o sofá onde ele estava sentado — ele segurou

firmemente meu braço direito com a mão esquerda, a ponto de me paralisar no gesto de me levantar.

21[21] Segundo Halbwachs (1952), o indivíduo “se lembra tanto melhor, reproduz seu passado sob formas tanto mais precisas e concretas, quanto melhor distingue o passado do presente, isto é, que está ele mesmo no presente, que tem o espírito voltado para objetos exteriores, para os outros homens, isto é, que ele sai dele. Não há lembrança sem percepção” (p.275).

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Perguntou-me rispidamente: E agora, o que faço com as minhas histórias? Se eu morrer sem contá-las, com

quem elas ficam? Lembranças são parte importante da herança que se deixa.

Se “um fato passado é um ensinamento”, o que ensinam esses fatos? Talvez nada mais do que já foi

dito e do que se é sabido, mas que surpreendem a cada vez que são percebidos. Surpreendem, talvez, porque

nos revelam que somos o que a sociedade quer que sejamos mais do que gostaríamos de ser. Esses fatos

ensinam, primeiro, sobre a narração, segundo, sobre o tempo22[22]: o tempo de trabalhar, o tempo de lembrar.

A narração morre, emudece, porque se perde a comunidade dos que escutam. Se a comunidade dos

que escutam é parte dos quadros sociais da memória, a própria memória estaria condenada pela falta de

ouvidos. Para que a narração aconteça, para que os ouvidos estejam tranqüilos e acolhedores, é necessário,

segundo Walter Benjamin (1975), “de um relaxamento íntimo que se torna cada vez mais raro” (p.68). É

necessário o ócio ou, melhor do que isso, as atividades intimamente ligadas ao ócio, que integram o

movimento das mãos ao movimento das palavras e ao das lembranças. Se eu fiasse ou tecesse, ou se pelo

menos pudesse esvaziar a mente, estaria mais acolhedora às palavras fiadas e tecidas pelo meu pai.23[23]

O segundo ensinamento é sobre o tempo. Parece existir o tempo do trabalho e o tempo da lembrança;

o tempo do adulto e o tempo do velho. Posto assim, e assim eu me colocava a questão, a afirmação apenas

incorpora estereótipos sociais, idéias cristalizadas que não apenas opõem atividades mas que dignificam umas

em detrimento de outras. Na minha reação em relação ao avô de minha amiga, eu não apenas pensava que

precisava trabalhar, mas conferia ao meu trabalho primazia e nobreza. Duas ressalvas ao raciocínio que eu

fazia. Primeiro, o adulto e a criança, tanto quanto o velho, possuem memória. Enfim, toda e qualquer

representação, todo e qualquer ensinamento é uma lembrança da sociedade. Para Ecléa Bosi (1994), porém,

nas lembranças de uma pessoa idosa, mais do que nas lembranças de um adulto, verifica-se uma história

social bem definida: “elas já atravessaram um determinado tipo de sociedade, com características bem

marcadas e definidas; elas já viveram quadros de referência familiar e cultural igualmente reconhecíveis”

(p.60). Daí a importância de se estudar a memória dos velhos. Segundo, que outras atividades como sonhar e

lembrar são igualmente dignas e necessárias e não precisam receber o estatuto de trabalho para terem valor.

Adultos e velhos lembram e trabalham. O que distingue velhos e adultos quanto às lembranças? Por

que a associação entre memória e velhice? Diz Guimarães Rosa (1988), pela boca de Riobaldo: “toda saudade

é uma espécie de velhice”(p.30)

Quando o adulto se lembra, segundo Halbwachs (1952), o seu lembrar é devaneio, é distração, é

liberação das pressões do cotidiano; quando o velho se lembra, o seu lembrar é ocupação, ele se ocupa do seu

passado, da sua vida. Halbwachs afirma que o tipo de devaneio (rêverie em francês) que é a lembrança, se

22[22] Sobre o tempo, diz Santo Agostinho (1973): “Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei” (p.244).23[23] Vale dizer aqui que o trabalho de pesquisa não só com memória de velhos, mas com toda forma de relato oral, implica em um trabalho interior do pesquisador para acolher o outro na relação de pesquisa .

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para o adulto é distração, para o velho é ocupação. Refere-se então à posição dos velhos na sociedades

primitivas nas quais o velho não é um "membro ativo mas nas quais um papel lhe é entretanto atribuído (...)

os velhos são os guardiões das tradições (...) porque eles dispõem do lazer necessário para fixar os detalhes no

curso das conversas com outros velhos, e para ensinar os jovens a partir da iniciação"(p.104). A referência a

sociedades primitivas e os termos não são membros ativos, lazer necessário demonstram que, quando fala em

ocupação, Halbwachs não se refere a trabalho. O velho

não se contenta, comumente, de esperar passivamente que as lembranças despertem, ele as procura precisar, ele interroga outros velhos, ele compulsa seus velhos papéis, suas velhas cartas e, sobretudo, ele conta o que se recorda, quando ele não se preocupa de fixar por escrito (p.104).

Ao se ocupar do passado, ao repensar suas experiências, o velho reconstrói sua identidade. Norberto

Bobbio (1997) afirma:

O tempo do velho (...) é o passado. E o passado revive na memória. O grande patrimônio do velho está no mundo maravilhoso da memória, fonte inesgotável de reflexões sobre nós mesmos, sobre o universo em que vivemos, sobre as pessoas e os acontecimentos que, ao longo do caminho, atraíram nossa atenção. (...) Esse imenso tesouro submerso jaz à espera de ser trazido à superfície durante uma conversa ou uma leitura; ou quando nós mesmos vamos à sua procura nas horas de insônia; outras vezes surge de repente por uma associação involuntária, por um movimento secreto da mente. Se o mundo do futuro se abre para a imaginação, mas não nos pertence mais, o mundo do passado é aquele no qual, recorrendo a nossas lembranças, podemos buscar refúgio dentro de nós mesmos, debruçar-nos sobre nós mesmos e nele reconstruir nossa identidade; (...) Cada vulto, gesto, palavra ou canção, que aprecia perdido para sempre, uma vez reencontrado, nos ajuda a sobreviver (pp.53/54/55).

Não é só para si próprio que retorna a ocupação de lembrar. Aqueles que estão ao seu lado também

se enriquecem com tal ocupação. Bosi (1994), ao trabalhar com memórias de velhos, analisou as expressões

da memória e em que condições ela se construiu. Entrevistou, para isto, em profundidade e longamente, oito

pessoas com idade superior a 70 anos residentes na cidade de São Paulo. O interesse estava "no que foi

lembrado", no que foi escolhido para perpetuar-se na história de sua vida” (p.37). Para Bosi, “há dimensões

da aculturação que, sem os velhos, a educação dos adultos não alcança plenamente: o reviver do que se

perdeu, de história, tradições, o reviver dos que já partiram e participam então de nossas conversas e

esperanças” (p.74). O velho, portanto, estabelece um sentido de continuidade cultural entre as gerações. Na

sociedade industrial, porém, perde-se o sentimento de continuidade o que é maléfico não só para o velho,

como afirma Bosi (p.77), mas também para crianças, jovens e adultos que perdem ou menosprezam uma

importante fonte de enriquecimento cultural.

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Sociedade e felicidade

O adulto, em seu devaneio, e o velho, em sua ocupação de lembrar, escapam da sociedade atual para

reencontrar outra constituída de outras pessoas que ficaram no passado. Qual a característica dessa outra

sociedade? Segundo Halbwachs, essa outra sociedade não se impõe a nós; nós “escolhemos” o período ou as

condições de nosso refúgio. As pessoas não constrangem umas às outras. Em geral, escolhe-se o que

representa aconchego, alegria. Às vezes, essa escolha é consciente. Toda escolha, porém, é feita sob pressão

da sociedade. Não é tão livre como se supõe. Por qual motivo, a sociedade determinaria que o passado fosse

tão transfigurado a ponto de se lamentar a sua perda, ou a ponto de se o transformar em refúgio?

Segundo Halbwachs, a sociedade não está transfigurada quando se é lembrada com saudade.

Efetivamente, é nessa perspectiva que se percebe dela uma real dimensão. É nas relações sociais que a

constituem que se tem a fonte da vida afetiva, das experiências e das idéias. Essas relações nos acolheram, nos

educaram, nos alimentaram o corpo e a alma. Liberada a sociedade da sua característica de constrangimento, é

essa outra face que ela revela. “Quando nós julgamos assim tarde demais aqueles que foram nossos

companheiros, nossos amigos, nossos pais, nós somos talvez mais justos com eles. (...) Nós descobrimos que

os homens nos amavam ao mesmo tempo que nos constrangiam” (Halbwachs, 1952, p.112). Diz Santo

Agostinho (1973) que, se recordamos, amamos e desejamos a felicidade é porque um dia a experimentamos e

a sensação se depositou na memória. “Se não conhecêssemos a vida feliz por uma noção certa, não a

desejaríamos com tão firme vontade” (pp.210/211). Se hoje deseja-se a felicidade é porque ela já foi vivida e

dela ficou a lembrança. Ela já o foi vivida e o foi vivida, segundo Halbwachs, nas relações sociais só que

encoberta pelo poder constrangedor dessas mesmas relações. Pollack (1989) ressalta que Halbwachs

longe de ver nesta memória coletiva uma imposição, uma forma específica de dominação ou violência simbólica, acentua as funções positivas desempenhadas pela memória comum, a saber, de reforçar a coesão social, não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo, donde o termo que utiliza, de “comunidade afetiva” ( p.6).

Norberto Bobbio (1997), aos 87 anos, ao refletir sobre a velhice24[24], afirma:

Não foi do meu trabalho que obtive as alegrias mais duradouras da minha vida, não obstante as honras, os prêmios, os reconhecimentos públicos recebidos, que aceitei de bom grado mas não ambicionei e tão pouco exigi. Obtive-as dos meus relacionamentos, dos mestres que em educaram, das pessoas que amei e que me amaram, de todos aqueles que sempre estiveram ao meu lado e agora me acompanham no último trecho da estrada (p.53).

Para Ecléa Bosi (1994), a busca da felicidade pelas lembranças acontece porque a sociedade esvaziou

o tempo do velho de experiências significativas, e resta a ele buscar em outra época o alento para tornar o

presente significativo: “a consciência de ter suportado, compreendido muita coisa, traz para o ancião alegria e

24[24] Para Celso Lafer (1997), a autobiografia de Bobbio é indicativa “do interesse e da qualidade que se pode obter com a História Oral (p D1).

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uma ocasião de mostrar sua competência. Sua vida ganha uma finalidade se encontrar ouvidos atentos,

ressonância”( p.82).

Quando se perguntou o que era memória, quando se cogitou sobre a equivalência entre memória e

pensamento social, realizou-se um caminho que expressava, de Santo Agostinho a Durkheim, a transfiguração

de Deus em sociedade, possibilidade levantada por Durkheim em As Formas Elementares de Vida Religiosa.

Nesse momento da discussão, encontra-se, na sociedade — não mais em uma sociedade coisificada que se

impõe e constrange, mas em um ser vivo de relações sociais que aconchegam, repudiam, agridem, apaziguam

— a fonte da felicidade, hipótese já posta na referência ao estudo O Suicídio. De Durkheim para Santo

Agostinho, essa fonte transfigurar-se-ia da sociedade em Deus. Na discussão sobre a memória, Santo

Agostinho (1973) procura a felicidade, encontra a sua lembrança, associa-a à verdade e chega ao encontro

com Deus, segundo ele, tardiamente.

Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco!Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Porém chamastes-me com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez! Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes perfume: respirei-o, suspirando por Vós. Saboreei-Vos, e agora tenho fome e sede de Vós. Tocastes-me e ardi no desejo de vossa paz ( p.214).