memórias clanestinas historias nao contadas

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Memórias Clandestinas, histórias não contadas. Muito do que conhecemos sobre o passado, seja ele regional, nacional ou mundial, conhecemos porque foram narradas historias a seu respeito e, de alguma maneira divulgadas para que pudéssemos conhece-lo. Nesse processo de criação de memórias, muitas histórias são repetidas e repetidas ao longo dos anos, e muitas outras histórias ficaram no esquecimento, seja porque não foram escritas ou não foram divulgadas. No que diz respeito à história recente brasileira dos últimos sessenta anos há ainda muito o que ser contado, analisado e refletido. O documentário Memórias Clandestinas, de Maria Thereza Azevedo, contribui com esse processo de dar visibilidade às histórias não narradas. Alexina Crespo, uma senhora que passa dos seus oitenta anos, mora em Recife, Pernambuco, tem uma vida comum. Tem seus filhos, netos e bisnetos. Quem a vê caminhando pelas ruas não imagina a história invisível e as experiências de vida que carrega em suas memórias. O documentário Memórias Clandestinas tem o mérito de dar visibilidade a essa personagem nos palcos da história brasileira. O filme não conta “toda” sua história, pois isso seria impossível, mas chama a atenção para a experiência dessa simples mulher que conheceu Fidel Castro, Che Guevara, Mao Tse Tung, dentre muitos outros. Alexina Crespo, casada com o advogado e ex-deputado Francisco Julião, foi convocada pela situação na qual estava inserida a tomar atitudes que pudessem mudar o quadro de injustiças sociais, principalmente no que diz respeito à situação desumana vivida pelos camponeses que conheceu. Ela se envolveu em movimentos que tinham como meta a transformação social, optou pela luta armada como meio para essa transformação. Participou de treinamentos guerrilheiros e participou de planos para uma revolução. Depois de muitas batalhas e no desenrolar da guerra, foi também convocada a sobreviver e proteger sua família numa época de radicalidades. Hoje, passados muitos anos, Alexina Crespo, no seu dizer modesto, sempre afirma “eu não fiz nada demais. Fiz apenas o que tinha que fazer”. Mas, quem não conhece sua história não entende o que significa “não ter feito nada”.

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Page 1: memórias clanestinas historias nao contadas

Memórias Clandestinas, histórias não contadas.

Muito do que conhecemos sobre o passado, seja ele regional, nacional ou

mundial, conhecemos porque foram narradas historias a seu respeito e, de alguma

maneira divulgadas para que pudéssemos conhece-lo. Nesse processo de criação de

memórias, muitas histórias são repetidas e repetidas ao longo dos anos, e muitas

outras histórias ficaram no esquecimento, seja porque não foram escritas ou não

foram divulgadas.

No que diz respeito à história recente brasileira dos últimos sessenta anos há

ainda muito o que ser contado, analisado e refletido. O documentário Memórias

Clandestinas, de Maria Thereza Azevedo, contribui com esse processo de dar

visibilidade às histórias não narradas.

Alexina Crespo, uma senhora que passa dos seus oitenta anos, mora em

Recife, Pernambuco, tem uma vida comum. Tem seus filhos, netos e bisnetos. Quem

a vê caminhando pelas ruas não imagina a história invisível e as experiências de vida

que carrega em suas memórias.

O documentário Memórias Clandestinas tem o mérito de dar visibilidade a

essa personagem nos palcos da história brasileira. O filme não conta “toda” sua

história, pois isso seria impossível, mas chama a atenção para a experiência dessa

simples mulher que conheceu Fidel Castro, Che Guevara, Mao Tse Tung, dentre

muitos outros.

Alexina Crespo, casada com o advogado e ex-deputado Francisco Julião, foi

convocada pela situação na qual estava inserida a tomar atitudes que pudessem

mudar o quadro de injustiças sociais, principalmente no que diz respeito à situação

desumana vivida pelos camponeses que conheceu. Ela se envolveu em movimentos

que tinham como meta a transformação social, optou pela luta armada como meio

para essa transformação. Participou de treinamentos guerrilheiros e participou de

planos para uma revolução. Depois de muitas batalhas e no desenrolar da guerra, foi

também convocada a sobreviver e proteger sua família numa época de radicalidades.

Hoje, passados muitos anos, Alexina Crespo, no seu dizer modesto, sempre

afirma “eu não fiz nada demais. Fiz apenas o que tinha que fazer”. Mas, quem não

conhece sua história não entende o que significa “não ter feito nada”.

Page 2: memórias clanestinas historias nao contadas

Alexina Crespo deixou um legado de solidariedade, humildade, garra, e,

principalmente, um ponto de união de uma família que cresceu. Além de sua atuação

política, Alexina foi uma grande mãe, protegendo seus filhos e descendentes da

violência do mundo em que viviam. Protegendo sua família das situações mais

arriscadas pelas quais passou. Depois de anos de instabilidade, exílio e ameaças de

morte, a família voltou ao Brasil, nos anos 1980 e continuou a guerra pela vida

depois de tantas batalhas.

O documentário Memórias Clandestinas toma como ponto de partida a antiga

casa, já destruída pelo tempo, onde os filhos de Alexina foram crianças e onde

começou o contato com os camponeses. Já as memórias da família vêm à tona na

casa do presente, onde foram reunidos os filhos, netos e bisnetos para a experiência

de narrar e registrar suas memórias.

Na medida em que o dia passa e as histórias emergem, os temas vão sendo

tratados por outros depoentes sejam sociólogos, jornalistas e amigos que contribuem

para dar mais vida e uma dimensão mais ampla a uma história pessoal/familiar que

não termina numa experiência particular, mas ecoa na história social brasileira dos

últimos 50 anos.

Apesar da dureza do tema, das dificuldades enfrentadas, Alexina Crespo e sua

família mantêm a alegria de viver. E o filme mantém o mesmo tom. O passado,

mesmo dolorido e difícil, não deve ser objeto de apego e dor. Não se pode viver

eternamente à sombra de um passado traumático. É preciso fazer um trabalho de

superação que possibilite a continuidade da vida, apesar do passado. Alexina nos

ensina isso. A vida continua, e as batalhas também.

Alexina Crespo é mais uma personagem que deve ser considerada no palco da

história. E o documentário Memórias Clandestinas contribui como um pioneiro ao

dar visibilidade a ela.

Por Vitória Azevedo da Fonseca – historiadora e produtora audiovisual