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CARAMUJOS DO MATO , fl) coMuM denominar o povo de caramujos l- aos moluscos gastrápodes de gturd" l-J porte e providos de concha espêssa tipi- camente enrolada em espiral. O têrmo vulgar é usado tanto para as formas marinhas quanto para as de vida terrestre. Os caramujos terrestres vivem, preferen- cialmente, nas regiões assombreadas das flores- tas, gue compartilham com outros animais muitos da mesma classe, também gastró- podes. Dêstes, alguns não possuem concha ou têm-na muito rudimentar - são as lesmas; outros, porém, dc dimensões menores, de concha tor- cida em espiral, mas delgada, ter- restres ou habitantes das águas doces são, vulgarmente, co- nhecidos pelo nome de caracóis. Nas florestas de todo o Brasil e até mesmo nas formo- sas matas que circunscrevem a nossa cidade maravilhosa vivem muitas espécies de caramujos. Êstes, também, chamados aruas do mato, são pouco conhecidos da população, constituída de pessoas que, por diversas razóes, se vêem obrigadas a permanecer nas áreas ur- banas, deixando de subir às serras e de EnaÂNoer A. MaRrrNs Nafuralista do Museu Nacional sêres oferecer ao homem e, ainda, conhecer, para evitar, os malefícios que, por ventura, pos- sam causar ao homem, aos animais e às plantas. Muito freqüentes nas matas do Distrito Federal são os. aruás cientificamente conhecidos pelos nomes dé Strophocheilus (Borus) 'ouatus Mtiller e Strophocheilus (Thaumastus) tau- naysii Férussac. O primeiro é um grande ca- ramujo medindo a concha cêrca de l5cm. no maior diâmetro e podendo o corpo, estendido Íora dela, alcançar a 20cm. de comprimento. O segundo é bem menor, tendo a concha uns 9cm. na maior extensão e a parte do corpo que se põe para fora dela, alon- gando-se a l2cm. A concha dos caramujos do mato é a parte dura, resistente, do animal e que lhe serve de abri- go, protegendo-o mesmo contra o ataque de possiveis inimigos. É de natureza calcárea, consti- tuída principalmente de carbo- nato de cálcio. Reveste-a exter- namente uma delgada camada or- gânica, mais comumente pardo- Concha de Strophocheilus ( Strophocheilus ) uniden. tatus Sowerby; Brasil N." 34.920 da coleçáo malacológica do Mu- seu Nacional, (Tu. manho natural) se embrenhar nas florestas privando-se,' assim, do prazer de estar em pleno contato com a natueza. São êles, porém, bem conhecidos dos cientistas que os vão estudar no próprio habitat, observando cuidadosamente o seu com- portamento em relação ao mundo vivo que os envolve. Tais estudos têm por obletivos, não apenas adquirir novos dados para a Ciência, mas saber das aplicações úteis que possam êsses oliva-a epiderme. Sua forma é a de um cone ôco, alongado, formado de 4 a 7tÁ voltas de espira, de superfície ex- terna finamente rugosa, e enroladas flor- malmente da esquerda para a direita em tôrno de um eixo central - a columela, o qual pode ser visto serrando-se a concha. A união das várias voltas se Íaz ao longo de uma linha em espiral, deprimida, e denominada linha de sutura, O vértice do cone ê o ápice orgânico da concha e e ponto pelo qual se inicia o seu crescimento; a base é representada pela aber- ÀGÔSTO, 1945 I 17

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Page 1: MATO - museunacional.ufrj.br · CARAMUJOS DO MATO, fl) coMuM denominar o povo de caramujos l-J l- aos moluscos gastrápodes de gturd" porte e providos de concha espêssa tipi-camente

CARAMUJOS DO MATO

,fl) coMuM denominar o povo de caramujosl- aos moluscos gastrápodes de gturd"l-J porte e providos de concha espêssa tipi-camente enrolada em espiral. O têrmo vulgaré usado tanto para as formas marinhas quantopara as de vida terrestre.

Os caramujos terrestres vivem, preferen-cialmente, nas regiões assombreadas das flores-tas, gue compartilham com outros animaismuitos da mesma classe, também gastró-podes. Dêstes, alguns não possuemconcha ou têm-na muito rudimentar

- são as lesmas; outros, porém, dcdimensões menores, de concha tor-cida em espiral, mas delgada, ter-restres ou habitantes das águasdoces são, vulgarmente, co-nhecidos pelo nome de caracóis.

Nas florestas de todo oBrasil e até mesmo nas formo-sas matas que circunscrevem anossa cidade maravilhosa vivemmuitas espécies de caramujos.Êstes, também, chamados aruasdo mato, são pouco conhecidos dapopulação, constituída de pessoasque, por diversas razóes, se vêemobrigadas a permanecer nas áreas ur-banas, deixando de subir às serras e de

EnaÂNoer A. MaRrrNsNafuralista do Museu Nacional

sêres oferecer ao homem e, ainda, conhecer,para evitar, os malefícios que, por ventura, pos-sam causar ao homem, aos animais e às plantas.

Muito freqüentes nas matas do DistritoFederal são os. aruás cientificamente conhecidospelos nomes dé Strophocheilus (Borus) 'ouatusMtiller e Strophocheilus (Thaumastus) tau-naysii Férussac. O primeiro é um grande ca-

ramujo medindo a concha cêrca de l5cm.no maior diâmetro e podendo o corpo,

estendido Íora dela, alcançar a 20cm.de comprimento. O segundo é bemmenor, tendo a concha uns 9cm. namaior extensão e a parte do corpo

que se põe para fora dela, alon-gando-se a l2cm.A concha dos caramujos do matoé a parte dura, resistente, doanimal e que lhe serve de abri-go, protegendo-o mesmo contrao ataque de possiveis inimigos.É de natureza calcárea, consti-tuída principalmente de carbo-nato de cálcio. Reveste-a exter-

namente uma delgada camada or-gânica, mais comumente pardo-

Concha de Strophocheilus( Strophocheilus ) uniden.tatus Sowerby; BrasilN." 34.920 da coleçáomalacológica do Mu-seu Nacional, (Tu.

manho natural)

se embrenhar nas florestas privando-se,'assim, do prazer de estar em pleno contatocom a natueza. São êles, porém, bem conhecidosdos cientistas que os vão estudar no própriohabitat, observando cuidadosamente o seu com-portamento em relação ao mundo vivo que osenvolve. Tais estudos têm por obletivos, nãoapenas adquirir novos dados para a Ciência,mas saber das aplicações úteis que possam êsses

oliva-a epiderme. Sua forma é a deum cone ôco, alongado, formado de 4

a 7tÁ voltas de espira, de superfície ex-terna finamente rugosa, e enroladas flor-

malmente da esquerda para a direita em tôrnode um eixo central - a columela, o qual podeser visto serrando-se a concha. A união dasvárias voltas se Íaz ao longo de uma linhaem espiral, deprimida, e denominada linha desutura, O vértice do cone ê o ápice orgânicoda concha e e ponto pelo qual se inicia o seucrescimento; a base é representada pela aber-

ÀGÔSTO, 1945

I

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Concha de Strophocheilus taunaysii Férussac, seccionada, paramostrar no interior a columela onde se prende Íortemente o

corpo mole do animal. (Aumentada duas vêzes)(Fotografia de Moacir Lsão)

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tura ou bôca da concha, de forma oval alongadae formada pela última volta. O contôrno daabertura é inteiriço, constituindo o peristômioque apresenta um ourelo revirado de dentropara fora, formando o lábio, mais pronunciadoem sua parte externa. Os aruás do mato nãopossuem, como outros gastrópodes, um opérculo-para vedar a abertura da concha.

O corpo mole do caramujo compreendeuma parte denominada massa oisceral, sempreoculta no interior da concha onde se enrola,prenclendo-se à columela por um forte mítsculo,e outra chamada céfalo-pediosa que pode esten-der-se fora da concha e, aplicando-se sôbre osolo, permite a locomoção do animal. E pelacontração do músculo colunear que esta últimaporção do corpo se recólhe totalmente ao inte. \rior da concha.

A massa visceral contém os órgãos nobresda economia - digestivos, circulatórios, excre-'tores, etc. , e se acha encerrada numa dobra dotegumento, o manto, delgada membrana que

também reveste e se prende à face interna daconcha. No interior da última e maior voltadesta o manto forma a cavidade ou câmata pul-monar, a qual se abre no exterior por um orifí-cio - o pneumostômio, situado à direita e juntoao bordo da abertura da concha. É por êste ori-fício que penetra o ar necessário à respiraçãodo animal.

A porção céfalo-pediosa é constituída poruma densa massa muscular, retrátil, revestidaexternamente pelo tegumento úmido, viscoso,devido ao muco que abundantemente secreta.Compreende ela uma região anterior - a cabe-ça, e outra posterior - o pé ou so/a." A cabeça do aruá do mato é arredondada e

provida de dois pares de tentáculos, os anterio-res curtos e funcionando como órgãos do tato,e os posteriores bem maiores com uma dilataçãonas extremidades livres onde se localizam osolhos. Os quatro tentáculos são muito retráteise podem envaginar-se no corpo. Na parte ante-rior e ventral da cabeça está a abertura bucalsendo que, para dentro dela, em plena massacarnosa e revestida de paredes musculares, en-contra-se a cauidade bucal em cujo soalho [ixa-se uma pequena peça córn?ã - a rádula, pro-vida de numerosos dentículos, dispostos em [ila.Constitui a rádula um poderoso órgão desti-nado à trituração e apreensão dos alimentos.Sua configuração e, nela, a disposição dos den-tículos, são elementos importantes paÍa a deter-minação da espécie do caramujo a que pertence.

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O pé ou sola, porção do corpo eue se se.gue imediatamente à cabeça e se aplica direta-mente sôbre o solo, quando o caramujo sai daconcha, apresenta-se corno uma massa carnosa,pregueada, viscosa, cuja face ventral se estendee se alarga numa superfície plana, destinada aperrnitir o rastejamento do animal durante alocomoção

A marcha do caramujo se opera por movi-mentos do pé, cujos segmentos se deslocam, unsapós outros, segundo um ritmo particular. Aabundante mucosidade que o animal segregapermite-lhe a fixação mesmo em superfícies lisasquais as de certas fôlhas.

Procuram os caramujos terrestres os luga-res sombrios e úmidos da mata, vivendo sob asfoltras sêcas e nas fendas dos rochedos, sendoque, por vêzes, sobem às árvores e muros ouescavam a terra. Em geral, preferem abando-nar os seus esconderijos, tendo vida mais ativa,durante a noite. Seu aparecimento diurno ê

mais freqüente no verão, depois das chuvas, ounos dias úmidos. A exposição ao sol ou ao arsêco é desfavorável ao animal, podendo ãcãÍÍc-tar-lhe a morte. Nesta situação, defendem-seos caramujos aumentando a umidade do tegu-mento externo pela maior segregação de muco.

Periôdicamente, quando as condições am-bientais não são favoráveis, passam oS cârâmü-jos por períodos de repouso. Retraem-se naconcha e obturam a abertura com uma ÍreÍD-brana calcárea, endurecida, o epifragma, Estaobturação temporária é permeável ao ar e, porconseqüência, a respiração pode Í.azer-se atra-vés dela.

Reproduzem-se os caramujos por meio deovos que são postos em grande número, de cadavez, escavando o animal um buraco pouco pro-fundo no solo, para os esconder. Os ovos dealgumas espécies são bastante grandes, tais osdo Srr . ouatus Müller que atingem mais de umapolegada (25mm) de comprimento no momentoda eclosão, tendo envoltório calcáreo e Íormaovóide. Dos ovos saem os pequenos caramujoscom desenvolvimento guase completo e conti-nuam a crescer até alcançar o estado adulto.

Em geral, os aruás do mato são bianuaissendo gue, em cativeiro, podem viver um períodomais longo, o que de regra não acontece Íro es-tado livre, pois são perseguidos por muitos ini-migos.

Um grande nümero de animais selvagensdá caça aos caramujos e dêles se alimenta naÍalta de melhor prêsa - passáros, répteis, sa-pos, rãs. Outros parasitam-nos externamente,

tais alguns insetos e ácaros ou internamente, osvermes. Procuram os aruás escapar aos seusperseguidores aproveitando a semelhança fla-grante da coloração de sua concha com a domeio em que vivem (mimetismo), ou recolhen-do-se inteiramente dentro dela e provocandouma maior segregação de muco para formar urnacamada isolante.

Os caramujos terrestres são herbÍvoros e

vorazes e muito apreciam as fôlhas de hortali-ças, máxime as de alface e couve. Mostrammesmo preferência por cert4s plantações tantoque, habitualmente, são encontrados infestandoos milharais, canaviais, bananais e cafàzais.Não obstante, são êles extremamente resisten-tes à inanição, podendo passar muitos meses

sem alimento.Como animais predadores que são, causam

sérios prejuízos à lavoura, razáo por gue sãoperseguidos"pelos proprietários de hortas e f.a.zendas. Não obstante, podem ser úteis, ser-vindo à alimentação do homem.

Ern todos os tempos mesmo os caramujosdo mato foram usados como alimento. Atual-mente o seu uso é muito restrito sendo, porém,muito apreciado em certas regiões. Emboraconstituindo um prato nutritivo pela abundânciade nitrogênio, fósforo e enxôfre que encerra é,

entretanto, insípido, quando preparado seÍr coÍl-dimentos, e de difícil digestão devido à fartamucosidade, obrigando o us'o de substâncias queativem a secreção do suco gástrico. O seu usoé perigoso porquanto pode estar o animal im-pregnado de matérias vegetais tóxicas. Deve-se ter o cuidado, antes de usá-lo, de manter ocararnujo durante alguns dias em jejum.

Talvez devido ao seu valor nutritivo e àsubstância graxa semelhante à do fígado de ba-calhau que, consta, contêm os caramujos domato também no fígado (hepato-pâncreas) sãoempregados empiricamente no tratamento dasanemias e da tuberculose.

Valendo-nos da oportunidade que nos ofe-rece a Reuista do Museu Nacional é com satis-fação que apresentamos aos seus leitores e, mulparticularmente, aos nossos concidadãos algunscaramujos que ocorrem no Brasil, inclusive os

das matas do Distrito Federal. As fotografiasque ilüstram o presente artigo são de exempla-res pertencentes à Coleção Malacológica doMuseu Nacional, em cuja sala de exposiçãopoderão ser vistos juntamente com muitos outrosespécimes, provenientes das mais diversas loca-lidades.

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