mário pedrosa diálogo entre a crítica e a história da arte

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17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis 493 MÁRIO PEDROSA: DIÁLOGO ENTRE A CRÍTICA E A HISTÓRIA DA ARTE Maria Lúcia Bastos Kern - PUCRS Resumo: O presente ensaio tem em vista analisar o pensamento de Mário Pedrosa, como crítico de arte, circunscrito às suas reflexões relativas às práticas artísticas dos anos de 1960 e à sua percepção de mudanças de paradigmas da arte moderna. Esse estudo procura fazer dessas reflexões o meio de compreender as intersecções entre a crítica de arte e a história da arte. Com isto, não se pretende dar conta da complexidade de seu pensamento como um todo, mas considerar os textos mais pertinentes para o fim que se propõe esse estudo. Palavras-Chave: Modernidade, Pós-Modernidade, Crítica de Arte, História da Arte. Abstract: This paper aims to examine the thought of Mario Pedrosa, as critic of art, confined to their reflections on the artistic practices of the years of 1960 and their perception of changes in the paradigms of modern art. The study tries to do these reflections the means to understand the intersections between art criticism and history of art. With this, is not intended to give an account of the complexity of their thinking as a whole, but consider the text more relevant to the end that is proposing the study. Keywords: Modernity, Post-Modernity, Critique of Art, History of Art. Desde 1946, Mário Pedrosa se dedica à atividade de crítico de arte, num momento em que o Brasil passa por um processo de modernização, que a burguesia começa a investir na criação de novas instituições de arte e em obras e que os artistas aos poucos abandonam a figuração. Ele exerce um papel, extremamente, importante junto aos artistas, estimulando-os a fazerem novas pesquisas; e junto ao público cujo olhar necessita ser educado para acompanhar as mudanças que estão se processando no campo da arte. Pedrosa prepara os artistas e o público para o entendimento da arte, quando escreve com regularidade no Correio da Manhã (1946-51) e, em 1957, no Jornal do Brasil. i Mário Pedrosa atua como crítico da arte da modernidade e nos anos de 1960 revela as suas dificuldades em aceitar as novas modalidades de obra. “Todos nós estivemos ligados à arte moderna a víamos como uma arte com futuro, progressista, companheira da nova arquitetura, pensando o homem como um todo. (...) Uma arte que se pretendia (...) universal, levantando os problemas da modernidade como forma de lutar por uma nova civilização”. E

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Page 1: Mário Pedrosa Diálogo Entre a Crítica e a História Da Arte

17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

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MÁRIO PEDROSA: DIÁLOGO ENTRE A CRÍTICA E A HISTÓRIA DA ARTE Maria Lúcia Bastos Kern - PUCRS Resumo: O presente ensaio tem em vista analisar o pensamento de Mário Pedrosa,

como crítico de arte, circunscrito às suas reflexões relativas às práticas artísticas dos anos de 1960 e à sua percepção de mudanças de paradigmas da arte moderna. Esse estudo procura fazer dessas reflexões o meio de compreender as intersecções entre a crítica de arte e a história da arte. Com isto, não se pretende dar conta da complexidade de seu pensamento como um todo, mas considerar os textos mais pertinentes para o fim que se propõe esse estudo. Palavras-Chave: Modernidade, Pós-Modernidade, Crítica de Arte, História da Arte.

Abstract: This paper aims to examine the thought of Mario Pedrosa, as critic of art, confined to their reflections on the artistic practices of the years of 1960 and their perception of changes in the paradigms of modern art. The study tries to do these reflections the means to understand the intersections between art criticism and history of art. With this, is not intended to give an account of the complexity of their thinking as a whole, but consider the text more relevant to the end that is proposing the study. Keywords: Modernity, Post-Modernity, Critique of Art, History of Art.

Desde 1946, Mário Pedrosa se dedica à atividade de crítico de arte, num

momento em que o Brasil passa por um processo de modernização, que a

burguesia começa a investir na criação de novas instituições de arte e em

obras e que os artistas aos poucos abandonam a figuração. Ele exerce um

papel, extremamente, importante junto aos artistas, estimulando-os a fazerem

novas pesquisas; e junto ao público cujo olhar necessita ser educado para

acompanhar as mudanças que estão se processando no campo da arte.

Pedrosa prepara os artistas e o público para o entendimento da arte, quando

escreve com regularidade no Correio da Manhã (1946-51) e, em 1957, no

Jornal do Brasil. i

Mário Pedrosa atua como crítico da arte da modernidade e nos anos de

1960 revela as suas dificuldades em aceitar as novas modalidades de obra.

“Todos nós estivemos ligados à arte moderna a víamos como uma arte com

futuro, progressista, companheira da nova arquitetura, pensando o homem

como um todo. (...) Uma arte que se pretendia (...) universal, levantando os

problemas da modernidade como forma de lutar por uma nova civilização”. E

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conclui: “A avalanche do mercado barrou nosso otimismo”. “O caos reinante

parte da arte mais recente, ‘pós-moderna’”. ii

O crítico vislumbra o processo de mudança das práticas artísticas e da

sociedade, levando-o a identificar a presença de outro momento, no qual a arte

moderna se extingue. Ele cria a denominação pós-moderna, visto que a nova

arte se distancia das premissas da arte moderna e que, ao mesmo tempo, ela

evidencia a sua própria crise. Nesse momento, o seu papel como crítico é

nomear e refletir sobre esse fenômeno totalmente novo. Por ser inédito,

Pedrosa é obrigado a trilhar distintos caminhos, no presente e no passado,

para poder entendê-lo e interpretá-lo. O olhar sobre o passado possibilita

comparar e elucidar as vivências culturais do presente, sem cair nas visões

restritas que pautam os discursos de muitos críticos de arte, dos anos 60.

Ele analisa as transformações sociais e do sistema capitalista pela ótica

marxista e, como tal, seu pensamento se encontra atrelado ao historicismo,

que se fundamenta nas noções de evolução, progresso, unidade e universal,

que na contemporaneidade são colocadas em xeque pela ciência e arte. A

visão utópica de um mundo perfeito no futuro não se constitui mais como meta

a ser atingida, nem a noção de arte total defendida pelo crítico. Com isto, ele

sente maior dificuldade em face às questões que a arte apresenta e procura

entendê-las e interpretá-las.

Pedrosa verifica nas grandes exposições nacionais e internacionais que

os artistas têm feito novas experiências, abandonando a pureza das antigas

categorias, como gravura, pintura, escultura, mas sem chegar a resultados

satisfatórios. Muitas dessas experiências já foram feitas e refeitas, e não têm

mais o caráter de originalidade até então perseguido pelos artistas. iii A partir

dessa e outras constatações é que o crítico percebe o momento de crise

vivenciado pela arte.

Ao comentar o livro de Hebert Read, A arte de agora, agora, ele

identifica o Pop Art como o movimento que propicia o início das transformações

e justifica afirmando que as obras produzidas “abre(m) mão de qualquer

transcendência”, desmistificam “o conceito fátuo da obra de arte única e

eterna”, que a seu ver são “fetiches intocáveis”. iv Com isto, ele constata a

mudança de estatuto da obra e, posteriormente, do público. A partir desse

momento, outros movimentos artísticos colocam em questão a atitude do

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público de contemplação, fazendo-o participar do processo criativo ao intervir

na obra. “A velha relação artista-contemplador” modifica-se “em uma nova em

que sujeito-artista e o sujeito-espectador” se unem “numa participação comum,

isto é, no objeto criado”. v

Para entender essas transformações, o crítico analisa a sociedade

industrial e de consumo de massa, na qual a política de mercado e a

publicidade permitem diagnosticar as motivações do Pop Art norte-americano.

Essa arte evidencia a “nostalgia do objeto” em plena “civilização do

desperdício, essência da civilização americana” que produz a “estética do

resíduo, da dejeção, do lixo”, presentes não só nas experiências pop, mas

também naquelas efetuadas pelo neo-realismo e outras práticas artísticas. vi

Uma das conseqüências dessas mudanças é o estímulo aos sentidos,

que transborda as “limitações estéticas individuais para traduzir num formidável

movimento de liberação humana, um dos traços mais profundos da revolução

cultural em marcha”. Pedrosa observa que essa liberação é uma das

modalidades de superação da arte moderna, “que se caracterizava sob a

supremacia da visão sobre os outros sentidos”. vii Para ele, é também o meio

de abandonar os formalismos e convenções e de integração da arte à vida.

Ele recupera a interpretação de Read dos anos 60, como década de

predomínio do contexto niilista e acrescenta que a produção de arte se limita,

sobretudo, à “comunicação”, vinculada à lingüística e tem o caráter

“eminentemente social”. viii Pedrosa acredita que esse fenômeno é decorrente

da necessidade dos artistas sobreviverem face à sociedade de consumo e às

políticas de mercado, bem como de se inserirem no mundo das técnicas de

comunicação modernas. Os artistas desprezam os cânones consagrados

“numa operação radical (para) desmistificar (...) a obra de arte. (...) Num

desespero de suprema objetividade, (...), (eles) negam a Arte, começam (...)

outra coisa, (...) cuja significação mais profunda ainda (eles) não têm perfeita

consciência”. ix

Esse fenômeno sócio-cultural é inédito e foge aos paradigmas

convencionais da arte moderna. “Chamai a isso de arte pós-moderna, para

significar a diferença”. x Observa-se que ele não tem ainda um conceito

formalizado a respeito do pós-moderno, mas que faz um diagnóstico face às

práticas artísticas e sociais que se afastam dos parâmetros da modernidade.

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Para o crítico, os EUA representam esse modelo, que ele caracteriza como a

civilização do desperdício, do efêmero, do lixo e da sucata. Daí o Pop Art

representar a nostalgia do objeto, numa sociedade em que a produção

industrial se peculiariza pela fragilidade dos objetos e rápida superação. A

apropriação do objeto industrializado e de uso cotidiano pelos artistas

representa o gesto semelhante ao de Duchamp com os ready-made, porém

segundo os parâmetros estéticos negados por este artista.

No seu livro, “Mundo em crise, homem em crise, arte em crise”, Pedrosa

analisa a complexidade da civilização moderna e resgata nesta a valorização

do sentido discursivo visual, em detrimento da expressão verbal e escrita. xi

Retoma a noção de “aldeia global” de Mc Luhan para explicar que toda a tribo

usa dos mesmos sentidos como condição de comunicação. Assim, a arte

contemporânea, como os meios de comunicação, através de “meios ópticos,

auditivos e até (...) do olfato”, explora todos os sentidos. O crítico constata que

a arte procura abarcar esse “mundo aberto de hoje”, para acompanhar a

expansão técnico-científica e as mudanças que estão se processando sob

temor de por fim a si - mesma. xii

Outra questão, decorrente da concepção de arte vinculada à teoria da

informação, é a noção de linguagem, usual nos anos 60, oriunda em parte do

pensamento de Cassirer, filósofo das formas simbólicas e do “caráter

significativo-simbólico da Arte”. Na sua acepção, a arte como linguagem é feita

de símbolos e comunica uma significação. Entretanto, Pedrosa salienta que os

símbolos lingüísticos têm valores cognitivos e informativos precisos e se

subordinam a determinados processos conceituais, “destinados a transmitir

informações de ordem abstrato-científica ou de ordem prática”. Já os símbolos

na arte são portadores de expressão sensível. Para Cassirer, a arte “é uma

interpretação da realidade” que não se faz por meio de conceitos e de

pensamento, mas através de intuições e formas sensoriais. xiii Pedrosa

esclarece que a natureza e as funções dos símbolos em arte são distintas da

fala discursiva ou dos fins práticos informativos, “como os sinais de iluminação

e de trânsito”. Por isso, não podem ser transmitidos de um contexto ao outro,

como conceitos e palavras. Ele conclui que esses símbolos não são

discursivos, lógicos ou propositivos e que só “servem (...) na obra em que se

apresentam”, onde funcionam por sua qualidade expressiva. xiv Para ele, “o que

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a obra de arte exprime é algo de universal e permanente”, “uma organização

simbólica nova, perceptiva e imaginária”, cujos “traços jamais tiveram

existência prévia”. xv Logo, diferente da mensagem dos meios de comunicação.

Pedrosa resiste não só ao caráter de comunicação do Pop Art, mas

também ao fato dos artistas se apropriarem de objetos do design comercial e

da cultura de massa.

Além dessas observações, o crítico ao analisar as idéias de Susana

Langer, Cassirer e Bergson sobre intuição e formas simbólicas como cognição,

acrescenta à noção de arte como linguagem, que a imagem antecede ao

símbolo verbal. xvi Posteriormente, ele afirma que o que “precede e prepara a

significação verbal é original e expressivo, é de domínio da intuição, logo do

conhecimento pela forma. Como linguagem discursiva, aquele conhecimento

implica relações cognitivas, cujas regras de integração e coordenação são

também de certo modo lógicas e abstratas, como sustenta Langer”. xvii

Observa-se que Pedrosa acompanha as reflexões e questões teóricas

que estão em debate, as grandes mostras nacionais e internacionais e as

discute em suas matérias jornalísticas. Graças a essa dinâmica, ele é sensível

às mudanças artísticas e verifica que elas não só se pautam mais sob

premissas da arte moderna e que não se constituem como um fenômeno

isolado e limitado à arte norte-americana. Em face dessas evidências, o crítico

de arte enfrenta o problema da complexidade dos fenômenos e da

precariedade dos suportes conceituais para o entendimento das funções que a

arte exerce num mundo em transformação. Pedrosa revisa as novas teorias

que fundamentam as artes, os estatutos das obras e do artista e o contexto

sócio-econômico em que essas são praticadas. Porém, ele não tem o

distanciamento suficiente para dar respostas mais definitivas. Mesmo assim,

ele retoma a modernidade para entender as obras e manifestações culturais

contemporâneas.

O crítico ao analisar o Pop Art e outras manifestações artísticas

contemporâneas, faz o percurso do historiador ao estabelecer constantemente

comparações com os movimentos e obras das vanguardas históricas. Nesse

procedimento metodológico de análise, ele manifesta claramente a sua

preferência pelas últimas, se justificando pela qualidade das obras, criatividade

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e expressão pessoal. Isto se evidencia também na sua resistência à arte norte-

americana do momento, ao considerá-la destituída desses valores.

“Nos Estados Unidos (Rauschenberg, Westerman e outros) entregaram-

se a juntar coisas disparatadas, não para efeitos líricos ou com intenções

oníricas (...), mas (para) produzir objetos inéditos entre a imagem e o conceito,

num esforço bem mais próximo da informação e da mensagem. Foi a fase mais

intensa dos catadores de detritos do meio urbano”.xviii

Pedrosa observa ainda que grande parte dos artistas Pop ao

trabalharem com técnicas gráficas e da comunicação são meros operadores de

instrumentos da cultura e da tecnologia americana, sendo estas as razões

dessa arte ter se tornado uma prática coletiva, em detrimento de um fazer

individual. Para ele, cujo pensamento moderno se estrutura pelo conceito de

gosto de Kant, como prazer desinteressado e pelas noções de qualidade e

pureza, torna-se difícil aceitar a integração da arte à vida, a mescla com as

atividades de outras áreas do conhecimento e a banalização do próprio fazer

artístico.

A objetividade, o efêmero e o caráter desmistificador das artes

contemporâneas provocam no crítico reações negativas que dificultam as suas

reflexões, tendo em vista que se contrapõem aos parâmetros da arte moderna.

Ele verifica que os conceitos com os quais trabalha habitualmente a arte já não

são possíveis de serem aplicados.

O crítico ao verificar as transformações de paradigmas percebe o

processo de crise em que a arte se encontra, considerando-a como

manifestação de antiarte. Pedrosa, diante desta convicção a respeito do Pop,

coloca em xeque também o papel do crítico de arte e dos métodos habituais de

análise da obra, tendo em vista que alguns de seus colegas a legitimam. Ele os

denomina de anticríticos: “Se o papel do crítico é estabelecer que antiarte seja

arte, talvez uma sibila venha profetizar a vinda dos anticríticos”. xix

Apesar de sua aversão à arte Pop e à política de mercado nos EUA, ele

observa que nas últimas bienais de Veneza são os artistas norte-americanos

os premiados, como por exemplo, Calder e Rauschenberg. Menciona ainda

que nos jardins da bienal é articulada a batalha simbólica, enquanto luta pelo

poder, produzida pelas inscrições provocadoras pregadas em cartazes, que

anunciam: “O centro mundial de arte deixou Paris por Nova Iorque”. Esse fato

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é, para ele, resultante da especulação e da publicidade, bem como da

mobilização da arte e dos artistas pelo Estado “para cobrir a face horrenda de

sua política imperialista”. xx

Pedrosa nos seus discursos aborda aspectos sociais e da história da

arte para entender os processos criativos contemporâneos e constata que a

sociedade norte-americana é a primeira a ter a sua forma de vida cotidiana

transformada pela produção em massa. Verifica ainda que no plano

institucional, Nova Iorque é a primeira cidade a criar um museu de arte

moderna, e que após os ‘ismos’ é o local onde emerge o movimento do action

painting, tendo a frente Pollock e seu teórico, Harold Rosenberg. xxi Essas

novas práticas artísticas fazem de Nova Iorque um centro irradiador, no qual

elas atuam como representações simbólicas nacionais.

Como crítico da modernidade, Pedrosa identifica a arte como meio de

libertação do homem e valoriza a sua autonomia. Face às práticas artísticas

contemporâneas, Pedrosa é levado a refletir a respeito do trabalho do crítico de

arte. Até os anos 60, esse teria que ser um grande erudito, devendo dominar

os conhecimentos de muitas disciplinas específicas, como por exemplo, a

estética e a história da arte. Com o “abstracionismo e suas ramificações”, o

crítico tem que estudar a “Semântica, Semiótica, (da) Teoria da Informação à

Cibernética”, buscando constantemente novos conhecimentos interdisciplinares

para desvendá-los. Entretanto, ele verifica que o uso da “linguagem

extremamente apurada” dissolve-se com o advento do Pop Art e do Cinetismo.

O estatuto da obra modifica-se de tal maneira que o instrumental teórico

utilizado até então pela crítica entra em crise. Não há mais preocupação em

eternizar a obra com materiais duráveis, nem em seguir os princípios de

autonomia, qualidade e originalidade. Constata ainda a dessacralização do

fazer artístico, cultuado pelos modernos. Para ele, o artista não cultua mais a

arte, mas o objeto de desejo estimulado pelo consumo, como, por exemplo, a

Coca-Cola e a sopa Campbell.

Outra mudança observada por Pedrosa refere-se ao artista que no

contexto social dos anos de 1960 “se recusa à auto-expressividade”. xxii Ele

sacrifica os valores abstratos e formais da arte moderna ao ter em vista apenas

informar e comunicar a partir de códigos convencionais. A positividade do fazer

artístico e a penetração em outros campos não são bem aceitas pelo crítico,

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porque banalizam a arte e se restringem, muitas vezes, a um universo

superficial, sem penetrar nas suas profundezas.

As vinculações da arte contemporânea com outras práticas culturais

acentuam os questionamentos dos críticos e historiadores que até então

trabalhavam com o conhecimento especializado e sob parâmetros da

modernidade. Além disto, a ausência de unidade da arte, as polêmicas

suscitadas e as suas constantes constituições dificultam a sua apreensão e

definição. O que vem a ser arte contemporânea? Qual o papel que esta exerce

no mundo atual? Quais os fundamentos teóricos e filosóficos que os críticos e

historiadores podem lançar mão para interpretar os objetos de arte em face à

derrocada dos princípios estéticos e das grandes narrativas históricas da

modernidade?

Os constantes processos de construção da arte contemporânea, a

pluralidade de práticas e a ausência de delimitação conceitual dificultam a sua

apreensão. A história do presente não apresenta uma delimitação de estudo

que seja muito diferente da crítica de arte. Ambas enfrentam o problema da

precariedade dos suportes conceituais e do entendimento das manifestações

da arte no mundo, no qual as transformações estão se processando.

As dificuldades e resistências são tantas que em 1969, o crítico de arte

norte-americano, Clement Greenberg, mesmo vivendo no meio cultural em que

a revolução está, em parte, ocorrendo, não percebe o Pop Art como

demarcador de fronteiras. Para ele, o Pop é concebido como “um novo

episódio na história do gosto, mas não um episódio autenticamente novo na

evolução da arte contemporânea”. xxiii Esse crítico de formação kantiana,

formalista e preso às noções de originalidade e pureza dos suportes, não

percebe que a estética e a teoria da arte pautadas nessas categorias de

análise não dão conta da complexidade das novas práticas artísticas e

culturais.

Desde esse momento, ele deixa de exercer o papel de crítico que

descobre novos artistas qualificados e espreita o desconhecido, arriscando

previsões a partir de seu olho experimentado, porque não consegue mais

entender o Pop Art e outras manifestações artísticas. As categorias de pureza,

autonomia e de gosto universal não se aplicam, diante do hibridismo e da

mescla da arte com diferentes atividades práticas.

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Segundo Arthur Danto, é somente nas décadas de 1970 e 1980 que a

crítica de arte começa a definir a diferença marcante entre artes moderna e

contemporânea, visto que até esse momento não há ainda muita consciência a

respeito dos fenômenos que estão acontecendo. xxiv

A partir das considerações de Danto e das dificuldades de Greenberg

face às novas práticas, verifica-se que Pedrosa, mesmo vivendo num país

periférico, tem um olhar mais sensível e arguto sobre as mudanças que estão

se processando no mundo contemporâneo. Fato que lhe permite pensar sob

parâmetros mais flexíveis do que Greenberg e avançar suas reflexões a partir

de distintos campos do conhecimento.

Pedrosa revela nos seus discursos lucidez, ao compreender as

transformações que estão se produzindo e ao apontar em suas reflexões o fim

do paradigma moderno. Esta percepção faz dele não apenas um crítico arguto,

mas também historiador da arte ao conectar o presente com o passado.

Assim, ele utiliza perspectivas históricas para entender o processo artístico e

perceber com mais acuidade as mudanças que a cada momento ocorrem, bem

como as mudanças de paradigmas. Deste modo, a história da arte não se

configura apenas como memória e conhecimentos objetivos e sistematizados

do passado. O olhar sobre as práticas contemporâneas permite tanto ao crítico

de arte, quanto ao historiador comparar e refletir sob outras premissas a

respeito do passado e verificar as condições de criação da arte na atualidade.

É nesse sentido que Didi-Huberman xxv defende o anacronismo como

meio fecundo de se entender as obras de artistas do passado, quando afirma

que o historiador não pode se contentar em fazer a história da arte sob o

ângulo da “euchronie”, isto é, sob o ângulo conveniente do artista e seu tempo.

As artes visuais exigem que se aborde sob ponto de vista de sua memória, de

“suas manipulações do tempo” e dos diálogos que os artistas estabelecem

entre si. Para ele, diante da imagem contemporânea o passado não cessa de

se reconfigurar, porque ela só é pensada numa construção de memória. Ela é

elemento de passagem e também de futuro.

Marc Bloch já defendia a necessidade do historiador se apoiar no

presente para melhor entender o passado e antes dele Aby Warburg utilizava o

conceito de sobrevivências que repousa sob a noção de sintomas. xxvi Esta

noção parte do pressuposto de que as manifestações artísticas se vinculam à

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história, que elas evidenciam os seus diferentes sentidos e temporalidades. A

partir do processo de comparação entre as obras em distintos momentos

históricos, Warburg restabelece os diálogos praticados entre os artistas,

percebe as permanências e infere novos questionamentos. A identificação do

sintoma permite, assim, avançar o conhecimento.

A história da arte das grandes narrativas, de mestres e de obras-primas

desaparece diante das práticas contemporâneas e da ruptura de fronteiras dos

diferentes campos do conhecimento. Os discursos da crítica de arte que até

esse momento se apóiam nos paradigmas estéticos e científicos da

modernidade também se modificam.

Tanto a história, quanto a crítica buscam nas ciências humanas e

sociais subsídios para a interpretação da arte, apoiando-se em conceitos da

Antropologia e da Sociologia, ao conceber as obras como parte da cultura

visual, assim como ao procurar perceber as funções sociais, o estatuto da obra

e do artista e as questões relativas à recepção. A história e a crítica de arte que

até os anos 60 se encontram atreladas à análise formalista e à uma visão

teleológica, agora focalizam o seu objeto sob enfoque interdisciplinar, tendo em

vista a sua complexidade. Face às artes contemporâneas, ambas (história e

crítica) revisam seus pressupostos e se estruturam em diálogo com outros

campos do conhecimento.

Apesar do olhar moderno do crítico de arte, Mário Pedrosa revela nas

suas reflexões a consciência da necessidade de abordagens interdisciplinares

e de atualização teórica para analisar as novas práticas artísticas, bem como

do estabelecimento de conexões do presente com o passado. Graças à sua

formação erudita, ao profundo conhecimento de história da arte, ao constante

acompanhamento das produções dos artistas e aos procedimento

metodológicos, ele identifica os sintomas que evidenciam a mudança de

paradigma, isto é, um novo momento que denomina de pós-moderno.

i A partir de 1946, ele trabalha também nos jornais Estado de São Paulo e Tribuna da Imprensa. ii Entrevista concedida a Roberto Pontual, Jornal do Brasil, 24 abril 1980. IN: ARANTES, Otília. Mário Pedrosa diante da arte pós-moderna. Arte em revista, 7, CEAC, agosto 1983. p. 79. iii PEDROSA, M. Arte e invenção. IN: Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975. p. 58. iv PEDROSA, M. Posfácio de READ, Hebert. A arte de agora, agora. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 162-164 IN: ARANTES, O. Op.Cit., p 81. v PEDROSA, M. Pósfácio. Op. Cit., p. 162-164. vi PEDROSA, M. A crise do condicionamento artístico. IN: Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975. p. 89. vii PEDROSA, M. Mundo em crise, homem em crise, arte em crise. Op. Cit., p. 217.

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17° Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis

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viii PEDROSA, M. A crise do condicionamento artístico. Op. Cit., p. 162-164. ix PEDROSA, M. Crise do condicionamento artístico. Op. Cit., p.92. x PEDROSA, M. Crise do condicionamento artístico. Op. Cit., p.92. xi PEDROSA, M. Mundo em crise, homem em crise, arte em crise. Op. Cit., p. 215-6. xii PEDROSA, M. Mundo em crise, homem em crise, arte em crise. Op. Cit., p. 218-220. xiii PEDROSA, M. Arte, linguagem internacional. IN: Mundo, homem, arte em crise. Op. Cit., p. 54. xiv PEDROSA, M. Arte, linguagem internacional. Op. Cit., p. 54. xv PEDROSA, M. A problemática da sensibilidade I. Op. Cit., p. 14. xvi PEDROSA, M. Das formas significantes à lógica da expressão. Op. Cit., p. 62 xvii PEDROSA, M. Das formas significantes à lógica da expressão. Op. Cit., p. 66. xviii PEDROSA, M. Quinquilharia e Pop’ Art. Op. Cit., p. 178. xix PEDROSA, M. Quinquilharia e Pop’Art. Op. Cit., p. 176. xx PEDROSA, M. Veneza: feira e política das artes. Op. Cit., p. 83, 85. xxi PEDROSA, M. Veneza: feira e política das artes. (1966) p. 83. Harold Rosenberg, como Pedrosa, não aceita o Pop Art, num momento em que o expressionismo abstrato é considerado como expressão nacional nos EUA. xxii PEDROSA, M. Crise ou revolução do objeto. Op. Cit., p. 159. xxiii DANTO, A. Após o fim da arte. A arte contemporânea e os limites da História. São Paulo: Edusp, 2006. p. 115. xxiv DANTO, A. Op. Cit., p. 6 e 14. xxv DIDI- HUBERMAN, G. Devant le temps. Histoire de l’art et anachronisme des images. Paris: Minuit, 2000. p. 10 e 39. xxvi Em 1893, Warburg publica “O nascimento da Venus” e “ A Primavera” de Botticelli e formula a hipótese relativa à sobrevivência das expressões gestuais da Antigüidade, que supõem uma espécie de memória inconsciente. Nessas pinturas, os movimentos das figuras e das vestes são relacionados com a dança e as vestes são percebidas como iguais das ninfas da Antigüidade. Já Francastel em “Realidade Figurativa” identifica nessas obras os espetáculos da Renascença. DIDI-HUBERMAN, G. Preface. IN: MICHAUD, P. Aby Warburg et l’image en mouvement. Paris: Macula, 1998. p. 10 e 17. Ver os textos relativos às duas pinturas em WARBURG, A. Essais florentins. Paris: Klincksieck, 1990. p. 49-100. Warburg identifica no tratamento arcaizante, ornamental, anti-naturalista e anti-mimético das obras de Botticelli que as mesmas deveriam ser motivadas pela filosofia antiga e, sobretudo, pela poesia de Ovídeo. Com isto, conclui a respeito da diversidade em relação às obras de Rafael e Miguel Ângelo que se fundamentam num conhecimento mais científico, do que literário e arqueológico. Constata ainda o posicionamento anti- moderno de Botticelli ao não adotar os pressupostos do classicismo renascentista. Referências Bibliográficas: ARANTES, O. Mario Pedrosa diante da arte pós-moderna. Arte em Revista 7, CEAC, ag. 1983. p 81. ____. Mário Pedrosa: intinerário crítico. São Paulo: Cosac&Naif, 2004. ____. Mário Pedrosa. Acadêmicos e modernos. São Paulo: Edusp, 2004. DANTO, A. Após o fim da arte. A arte contemporânea e os limites da História. São Paulo: Edusp, 2006. DIDI- HUBERMAN, G. Devant le temps. Histoire de l’art et anachronisme des images. Paris: Minuit, 2000. MICHAUD, P. Aby Warburg et l’image en mouvement. Paris: Macula, 1998. PEDROSA, M. Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975. READ, Hebert. A arte de agora, agora. São Paulo: Perspectiva, 1972 WARBURG, A. Essais florentins. Paris: Klincksieck, 1990. CURRÍCULO RESUMIDO: Maria Lúcia Bastos Kern é formada pela Universidade de Paris I e EHESS; professora titular da PUCRS e pesquisadora do CNPq. Autora do livro Arte argentina: tradição e modernidade; coordenadora de livros e autora de capítulos: Imagem e conhecimento; América Latina: territorialidade e práticas artísticas; As questões do sagrado na arte contemporânea da América Latina, Artes plásticas na América Latina contemporânea, etc.