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    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE ARQUITETURAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUITETURA E URBANISMO

    MARIANA RIBAS CORDEIRO

    ESPAO-MOVIMENTO

    DESESTABILIZAES ARQUITETNICAS NA PRODUO DA CIDADE CONTEMPORNEA

    Salvador

    2011

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    MARIANA RIBAS CORDEIRO

    ESPAO-MOVIMENTO

    DESESTABILIZAES ARQUITETNICAS NA PRODUO DA CIDADE CONTEMPORNEA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade deArquitetura, Universidade Federal da Bahia, comorequisito parcial para obteno do grau de Mestre.

    Orientador: Prof. Dr. Pasqualino Romano Magnavita

    Salvador

    2011

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    Faculdade de Arquitetura da UFBA - Biblioteca

    C794 Cordeiro, Mariana Ribas.

    Espao-movimento : desestabilizaes arquitetnicas na produo dacidade contempornea / Mariana Ribas Cordeiro. 2011

    110f. : il.

    Orientador: Prof. Dr. Pasqualino Romano Magnavita

    Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade deArquitetura, 2011.

    1. Arquitetura moderna Sc. XXI. 2. Espao (Arquitetura) -subjetividade. 3. Urbanismo. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdadede Arquitetura. II. Magnavita, Pasqualino Romano. III. Ttulo.

    CDU: 72.036

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    TERMO DE APROVAO

    MARIANA RIBAS CORDEIRO

    ESPAO-MOVIMENTO

    Desestabilizaes arquitetnicas na produo da cidade contempornea

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps Graduao em Arquitetura e Urbanismoda Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia como requisito parcialpara obteno do grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo e avaliada pela seguintecomisso examinadora:

    Professor Dr. Pasqualino Romano Magnavita

    (Orientador Universidade Federal da Bahia)

    Professor Dr. Fernando Gigante Ferraz

    (Universidade Federal da Bahia)

    Professor Dr. Luis Antonio Dos Santos Baptista(Universidade Federal Fluminense)

    Professora Dr. Paola Berenstein Jacques

    (Universidade Federal da Bahia)

    Salvador, 31 de maio de 2011.

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    Agradecimentos

    Ao meu querido e generoso orientador Pasqualino Magnavita, por todas as orientaes,

    desorientaes, reorientaes. Por todas as vezes que foram necessrias criar

    condies de desaprumo e desvio sem as quais no seria capaz de construir as

    situaes que do substncia a esta pesquisa. Obrigada Pasqua, por me ensinar que a

    gente s ensina o que tem sede de saber.

    A Fernando Ferraz, Luis Antonio Baptista e Paola Jacques, pelas orientaes, crticas e

    contribuies ao longo de todo o processo de produo e finalizao. Obrigada por me

    emprestarem um pouco de suas lentes de viso alm do alcance. Confesso que por

    vezes operei certas distores ticas, tentei inclusive visualizar por outras faces, ou

    simplesmente fechei os olhos para que aquilo se fizesse mais ameno em mim.

    Distores perceptivas fazem parte de qualquer processo de adaptao e

    amadurecimento, e todas me foram muito vlidas.

    Ao CNPQ pelo apoio financeiro, ao Programa de Ps Graduao e Faculdade de

    Arquitetura pelo acolhimento acadmico, ao Laboratrio Urbano e Cooperativa de

    Orientao pela contribuio no desenvolvimento do repertrio conceitual da pesquisae por ter me proporcionado um derrame de acontecimentos em Salvador.

    Aos estudantes, arquitetos e urbanistas que fizeram parte desta pesquisa e

    colaboraram diretamente na construo do ser arquiteto que se expe ao longo da

    dissertao: Akemi Tahara, Adriano Leite, Aline Porto, Amanda Reis, Amine Portugal,

    Ana Fernandes, Ana Maria Binazzi, Andr Teobaldo, Aruane Garzedin, Camila

    Benezath, Carolina Tavares, Clara Passaro, Clara Pignaton, Danielle Guimares, Diego

    Mauro, Diego Solano, Eduardo Rocha, Fenando Minho, Fernando F. Ribeiro, Fernando

    Mesquita, Flvio de Souza, Gabriel Schvarsberg, Glria Ceclia, Iazana Guizzo, caro

    Vilaa, Igor Souza, Layra, Lel, Lucas Mucarzel, Luciana Raposo, Luis Vieira, Lutero

    Proscholdt, Marcio Targa, Marcos Nunes, Marcos Queiroz, Mrio Vtor, Paulo Myada,

    Pedro Freire, Regina Coeli Barros, Renata Alencar, Thais Portela, Thais Rebouas e

    Xico Costa.

    Aos produtores de desestabilizaes urbanas que tambm contriburam no

    deslocamento deste arquiteto: Ghustavo Tvora, Mariana Terra, Priscila Lolata, Tiago

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    Costa, Carol rica, Iara Sales, Pricles Mendes, Carolina Fonseca, Regina Helena,

    Fabiana Britto e o GIA.

    Aos amores da comunidade que me deram apoio durante toda a estada em Salvador,por suportarem minhas digresses filosficas no caf da manh ou em qualquer outra

    hora imprpria e por vibrarem junto em cada nova resoluo. Por serem pacientemente

    minhas cobaias voluntrias e aprovarem com cara de satisfao cada nova inveno

    por mais estranha que lhes parecessem. Aos que deixei, minha deusa da

    concentrao Glorita, minha haribol iluminada Mari Terra e meu queridssimo amigo

    Bruno Westermann. Aos que nos deixaram saudades: Marcola, Kaju, Risa e Renan.

    Aos agregados, de passagem ou no: Thai, Passarinha, Claridade, Priscila, Tlio,

    Fernando, Fran e Cintoca. E a Thais Portela, porto seguro para elucidaesacadmicas ou no.

    A minha famlia linda e amada por seu apoio e equilbrio sem os quais eu no poderia

    seguir, Paulo, Lcia, Camila e Filipe. E tambm a Juliana, Adelma e Marina pelas

    iluminaes e ajustes finais da ltima etapa.

    As palavras tomam rumos que ns mesmos no somos capazes de significar, tantas

    vezes quantas forem suas leituras, recepes e interpretaes, tantas vezes quantas

    forem as incurses criativas que poremos sobre cada uma delas, a qualquer tempo, em

    qualquer corpo. As palavras aqui contidas so frutos da construo coletiva de todos os

    seres acima citados e por isso mesmo, a depender do arranjo, tendem a tomar outras

    configuraes. Deixemos que as palavras reverberem. A todos vocs meu muito

    obrigada.

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    "Sempre que se comea a ter amor a algum, no ramerro, o

    amor pega e cresce porque, de certo jeito, a gente quer que

    isso seja, e vai, na idia, querendo e ajudando, mas quando

    destino dado, maior que o mido, a gente ama inteirio fatal,

    carecendo de querer, e um s facear com as surpresas. Amor

    desse, cresce primeiro; brota depois."

    Guimares Rosa em Grande Serto: Veredas

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    Resumo

    No intento de provocar desestabilizaes na produo da arquiteturacontempornea, esta dissertao explora desvios conceituais atravs do uso de

    lentes provenientes da literatura, psicologia e filosofia e busca traar meios para

    embasar uma construo reflexiva do que seja uma arquitetura-que-vaza e se

    utiliza da figura conceitual e virtual denominada espao-movimento. O espao

    que no pra de conectar-se, relacional e circunstancial, o espao dos

    deslocamentos. Tomamos a vida do ser humano como objeto e condio de

    nossa abordagem arquitetnica e consideramos a arquitetura enquanto campoampliado do prprio corpo. A arquitetura e a cidade enquanto o duplo do

    homem. Nosso objetivo trazer arquitetura uma possibilidade de abertura

    capaz de engendrar um pensamento para um tipo de poltica da contingncia

    dos espaos construdos que seja capaz de dar conta da produo da cidade

    subjetiva.

    Palavras chave: arquitetura, urbanismo, produo de subjetividade, cidadecontempornea.

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    Abstract

    Within the intent to cause destabilization in the production of contemporary

    architecture, this dissertation explores conceptual detours through the light of

    literature, psychology and philosophy and seeks to outline ways to support a

    reflexive conception of what can be an architecture-that-pours and uses the

    conceptual and virtual figure of what can be known as space-movement. The

    space that never ceases to connect itself, that is relational and circumstantial;

    the space of displacements. We take human life as object and condition of ourarchitectural approach and consider the expanded field of architecture as the

    body itself. The architecture and the city as the dual of man. Our goal is to bring

    the possibility of opening to an architecture capable of critical thought and to

    engender a kind of political contingency of the built environments that is able to

    account for the production of the subjective city.

    Keywords: architecture, urbanism, production of subjectivity, contemporary city.

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    Lista de Ilustraes

    Figura 1 - isto arquitetura? Interveno sobre imagem. Detalhe de instalao, Miniusina(BA) -

    Igor Souza e Marcos Nunez, 2011. Foto: Igor Souza. .................................................................... 11

    Figura 2 - Interveno sobre gravura. Composio das obras de Frank Ghery. Edgar Gonzalez,

    2010............................................................................................................................................... 28

    Figura 3 - Detalhe de instalao, Lugares Moles. Jose Menna Barreto, 2007. Foto: Menna

    Barreto .......................................................................................................................................... 52

    Figura 4 - Detalhe de interveno Urbana - Amarelinha, Rio de Janeiro, 2009. Foto: Mariana

    Ribas .............................................................................................................................................. 77

    Figura 5 - Detalhe de instalao, Miniusina(BA). Igor Souza e Marcos Nunez, 2011. Foto: Igor

    Souza ............................................................................................................................................. 96

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    Sumrio

    Desestabilizaes Arquitetnicas .............................................................................................. 13Captulo 1 ........................................................................................................................... 30

    Movimentos de limitao ................................................................................................... 30

    Do espao e do homem contemporneo ................................................................................. 31

    Arquitetura, capital e insnia ................................................................................................ 31

    1.1 Do sistema de modelizao contemporneo .................................................................. 35

    1.2 Do terrorismo subjetivo .................................................................................................. 39

    1.3 Do sujeito cotidiano ........................................................................................................ 44

    1.4 Da produo do espao arquitetnico ............................................................................ 47

    Captulo 2 ........................................................................................................................... 53

    Movimentos de abertura .................................................................................................... 53

    Da criao, um desvio ........................................................................................................... 54

    2.1 Da construo do espao e da arquitetura ..................................................................... 57

    2.1 Subjetividade e singularidade ......................................................................................... 63

    2.3 Arquitetura e produo de subjetividade ....................................................................... 66

    2.4 Do espao-movimento .................................................................................................... 73

    Captulo 3 ........................................................................................................................... 78

    Reorientaes..................................................................................................................... 78

    Nota sobre defenestrar arquiteturas .................................................................................... 79

    3.1 Dos desafios .................................................................................................................... 80

    Sobre reinventar o espao arquitetnico ............................................................................. 80

    3.2 Das possibilidades ........................................................................................................... 87

    Arquitetura, autopoise e autonomia .................................................................................. 88

    Consideraes Finais ........................................................................................................... 97

    Sobre o espao-movimento e o arquiteto intensivo ............................................................ 99

    Referncias bibliogrficas ................................................................................................. 105

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    Introduo

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    Desestabilizaes Arquitetnicas

    Enquanto arquiteta e urbanista, fui formatada para responder com destreza asquestes de demanda projetual com resolues prticas e efetivas que propem

    arquiteturas de qualidade, reas urbanizadas, regulamentadas e plenamente

    integradas estrutura formal da cidade, tal como a grande parte dos

    profissionais, hoje em atividade. Solues, que em sua maioria, sugerem o

    encobrimento das potncias e das diferenas pelo concreto ou pelo asfalto e

    tm provocado inquietaes que nos levam a pensar como o questionamento

    provocada pela cano do GIA, Grupo de Interferncia Ambiental, sediado emSalvador uma cidade interferida uma cidade melhor?. Por que insistimos

    tanto em moldar o espao ao nosso desejo? Por que insistimos em moldar o

    espao ao desejo de outros que pensamos ser nosso?

    A ao da sociedade atual nos impe inmeras normas de modelizao, para

    conter a ao deliberada e inusitada, substituindo-as por tipos padres de

    comportamento. Governada para produzir objetos, imagens e modos de vida

    que podem ser comprados, a cidade brasileira, onde reina a democracianeoliberal, impulsiona a transformao do pas num grande mercado e seus

    habitantes em seres subjugados pelos interesses de produo e acumulao de

    capital reboque do mercado mundial. Que cidade esta que se constri sob o

    julgo de comportamentos normativos? como se os impulsos do humano no

    pudessem fazer parte da artificialidade da cidade recriada para os negcios.

    Nesta cidade-mercadoria, cidade-empresa, cidade-espetculo, no cabem

    conflitos urbanos, diferenas, muito menos a profunda desigualdade scio

    espacial; o que no exceo, mas tem sido regra do nosso processo de

    urbanizao.

    Em nome de uma prosperidade nacional, ordem, produtividade, emancipao e

    progresso o Aparelho de Estado 1 age atravs de programas, tecnologias e

    1 Em Dilogos, Deleuze nos explica o que consiste o Aparelho de Estado: [...] umagenciamento concreto que efetua a mquina de sobrecodificao de uma sociedade. Essamquina, por sua vez, no , portanto, o prprio Estado, a mquina abstrata que organiza osenunciados dominantes e a ordem estabelecida de uma sociedade, as lnguas e os saberesdominantes, as aes e sentimentos conformes, os segmentos que prevalecem sobre os outros.

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    estratgias que operam para moldar e orientar a conduta dos seres humanos.

    preciso lembrar que estes mesmo seres humanos no so os sujeitos

    agregados por um regime lgico de governo que produz pessoas como queira.Diferente disto, eles vivem suas vidas em um constante movimento entre

    diferentes prticas, que, por sua vez, subjetivam de diferentes maneiras.

    Esta ao resulta na transformao do planeta num gigantesco mercado e,

    seus habitantes, em zumbis hiperativos includos ou trapos humanos excludos

    (ROLNIK, 2007, p. 18), subjugados pelos interesses de produo e acumulao

    de capital. Aqui, nesta cidade que vendida para que o mais feroz dos

    liberalismos tenha condies de depred-la e faa dela um negcio, se estimulaa propriedade, mas de todos os modos se restringe a apropriao (DELGADO,

    2007).

    A interferncia da globalizao e da sociedade do consumo na formao da

    cidade pe a questo da imagem da arquitetura em carter central. E, por

    negao, expe a importncia da dimenso do corpo no espao que, envolto

    num mundo de vertigem e fluidez, est cada vez mais deslocado. O ser humano

    permanece como uma certeza materialmente sensvel, diante de um universodifcil de apreender (SANTOS, 2008, p. 314).

    A experincia da arquitetura, atravs de sua dimenso corprea, poderia ser

    vista como uma crtica ao pensamento hegemnico contemporneo da

    arquitetura e do urbanismo e, a partir do momento em que a cidade vivida,

    deixa de ser simples cenrio montado para a promoo e o entretenimento

    turstico. As aes dos arquitetos no espao so legitimadas ou no por sua

    apropriao cotidiana, deste modo, o espao se qualifica em funo do corpo dohabitante que o habita, onde o movimento do corpo no espao movimenta e

    transforma o espao.

    [...] Ela no depende do Estado, mas sua eficcia depende do Estado como do agenciamentoque a efetua em um campo social. [...] No h cincias de Estado, mas h mquinas abstratasque tm relaes de interdependncia com o Estado. Por isso, sobre a linha de segmentaridadedura, deve-se distinguir os dispositivos de poder que codificam os segmentos diversos, a

    mquina abstrata que os sobre codifica e regula suas relaes, o aparelho de Estado que efetuaessa mquina. (DELEUZE, PARNET, 1998, p. 151, 152)

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    Como comenta Maia, no mais a arquitetura que gera o espao no qual o

    homem deve se adaptar. O corpo gera a arquitetura onde a mesma est

    completamente subjugada aos atos do indivduo (MAIA, 2001). O arquitetosensvel a este modo de construir cidades seria o catalisador dos desejos dos

    habitantes. Nestas condies, a nossa posio enquanto arquitetos e

    urbanistas, produtores da cidade, se coloca em sua complexidade, e solicita-nos

    a restabelecer nossas responsabilidades estticas, ticas e polticas. De

    dentro da prpria cidade democrtica, em seu consenso, reencontrar nosso

    devir profissional e guiar, por nossos projetos e por nossas intenes decisivas

    bifurcaes do destino da cidade subjetiva (GUATTARI, 2008a, p. 178)

    Sendo ento a cidade obra das relaes sociais, considerando o carter

    sensvel e singular da produo dos desejos de seus habitantes, as diferenas,

    os conflitos e as tenses sobre a ao deliberada e as micro-resistncias;

    considerando que a cidade resultante das foras de uma configurao

    histrica, de sua produo de cultura e de suas polticas de subjetivao; e

    ainda, considerando a fluidez e a vertigem desta cidade onde as mutaes

    concretas e abstratas so constantes, de que modo seramos capazes de lidar

    com a complexidade da cidade em sua alteridade em nossa prtica

    arquitetnica?

    Estas questes comearam a tomar consistncia aps experimentaes que

    permitiram observar o espao urbano para alm de suas formas construdas. E

    que, posteriormente, se desdobraram em mais dois estgios de pesquisa. Tais

    experimentaes s foram possveis por conta do envolvimento provocado, emprincpio, por exerccios prticos para a concluso de algumas disciplinas,

    eventos e cursos independentes que aconteceram em paralelo, entre os anos

    de 2008 e 2009.

    Experimentaes estas que se puseram como um convite a se dispor no espao

    pblico procura de elementos capazes de pr em evidncia traos da

    produo arquitetnica que no estavam encerrados em seus projetos e em

    seus contornos formais. Pudemos observar elementos imprevisveis que nos

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    fizeram mover junto com o prprio espao, e notamos que as limitaes

    encerradas em suas geometrias eram capazes de se abrir para muitas outras

    relaes. Neste momento tudo pareceu estar muito mais alm da at entosabida arquitetura, ou pelo menos da arquitetura que nos era ensinada e

    promovida enquanto tal. E se isto que observamos era arquitetura, como

    deveramos nos portar diante dela?

    O primeiro caso foi promovido por conta de uma disciplina optativa chamada

    Esttica Urbana, oferecido na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da

    Bahia (UFBA) pelas professoras Paola Berenstein Jacques e Fabiana Dultra

    Britto, executado em novembro de 2008, na estao central de nibus urbanosda Lapa, em Salvador. Partimos de uma discusso que girava em torno das

    adies provocadas pelo ser humano aos seus corpos enquanto facilitadores

    da vida e que abrigava desde objetos construdos para seu uso pessoal at a

    prpria construo da cidade. Pudemos notar a uma cidade enquanto campo

    ampliado do prprio corpo.

    Na interveno, se que se assim podemos chamar a nossa experimentao

    que no tinha inteno artstica ou performtica, optamos por interceptar estasfacilitaes. A ao consistia em atrapalhar a fluidez da principal escada rolante

    da estao simplesmente descendo 2 no sentido inverso ao de suas

    engrenagens que levavam para cima seus usurios, cruzamos, interceptamos e

    intrigamos as pessoas que nela iam com o objetivo de tir-las de tempo. At que

    chegou o momento em que escada parou de funcionar e todos, sem o apoio de

    seu aparato tecnolgico de deslocamento, ficaram perplexos e inertes espera

    de um funcionrio capaz de faz-la funcionar novamente. Esta constataopoderia ter sido tomada em qualquer outro espao, com qualquer outro

    equipamento em escala pblica ou at mesmo pessoal. Mas foi na Lapa, onde

    traamos um questionamento sobre a afirmao do hbito como construo

    coletiva e sua naturalizao subjetiva subseqente. Nos perguntamos como a

    potncia criativa do homem estava sendo aplicada na criao de aparatos

    2 Errando na Rolante, experincia executada com Aline Porto, Clara Pignaton, Iara Sales e PriclesMendes, resultou um vdeo disponvel em: infravocabulo.blogspot.com

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    tecnolgicos modelizadores e de que modo estes se tornavam indispensveis

    manuteno da vida humana dentro da cidade.

    A mobilidade programada e tecnicamente dimensionada foi ento posta emevidncia. Pesou-nos a idia de que a mecanizao da cidade, enquanto o

    campo ampliado do prprio ser humano, estava sendo capaz de lhe assaltar a

    vida e a habilidade de lidar com o inesperado. De como a arquitetura estava

    colaborando com esta produo de autmatos cotidianos e ainda, de que modo

    seramos capazes de enfrentar o oco existencial gerado pela apatia

    generalizada pr-programada.

    Outra questo foi levantada sob a temtica do poder do uso da imagem comointermediador e guia da ao contempornea na cidade. Discutimos a

    explorao do poder imagtico da arquitetura e a produo de objetos enquanto

    imagem, num curso promovido pelo DIMAS - Diretoria do Audiovisual da

    Fundao Cultural do Estado da Bahia, o Imaginauta Salvador, sob orientao

    de Ghustavo Tvora. Ainda sob a temtica do uso da imagem, trabalhamos com

    o Filmar pra Ver, sob orientao do professor Xico Costa, na Faculdade de

    Arquitetura da UFBA. A primeira ao por seu olho-cmera imagem, e asegunda, olho-cmera imagem em movimento, saamos s ruas para capturar a

    vida urbana atravs de nossos aparatos tecnolgicos: olhos-mquinas.

    As duas experimentaes se deram no Barris, bairro central de Salvador. A

    primeira com um apelo muito mais miditico e tinha como final programado uma

    mostra de fotografia, happeninghours e horablogs, que incentivava uma

    publicizao de nossa produo em rede nacional. A idia era juntar

    imaginautas, formados pelo curso em vrias cidades brasileiras, em redessociais virtuais, para promover e difundir o uso da imagem como deliberadora

    de afetos e promover happenings em mostras presenciais de intercmbio.

    A segunda, bem menos apologtico-imagtico, mas no menos desconfortvel.

    A idia central do vdeo como pusemos3 no release, era captar a construo

    cotidiana, coletiva e individual, no espao pblico e parte das apropriaes, pelo

    comrcio informal, observando as teias e ns produzidos na dinmica das

    3 O vdeo DeRua teve roteiro e direo de Camila Ferraz, Eduardo Rocha e Mariana Ribas, com edio deFelipe Costa.

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    relaes sociais engendradas no espao comum. Nele, a figura do camel

    surgiria como personagem norteador que, resistindo violncia simblica e

    subjetividade manipulada e imposta pelo capitalismo produz criativa eativamente novos ritmos, intensidades, ambincias, comportamentos e

    percepes urbanas imperativas sua sobrevivncia.

    Saamos s ruas portando equipamentos profissionais e adereos pesados para

    intermediar nossas abordagens com as pessoas que ali viviam. Aps alguns

    dias de filmagens e entrevistas acabamos por notar que as constituies das

    redes iam bem mais alm do que presumamos. Com suas intensidades e

    velocidades prprias, suas apropriaes efmeras e frgeis, elas bailavam entreo formal e informal com as possibilidades combinatrias que atravessam estas

    polaridades.

    Apesar dessas constataes ainda pesava o fato do experimento haver sido

    intermediado por grandes equipamentos por vezes intimidadores e

    desconfortveis, mas, na grande maioria das vezes, disparadores de um grande

    desejo de visibilidade: Em que canal vai passar? A ns pesou o fato do olho-

    cmera interferir em nossa aproximao, na vivncia do espao, e mais ainda, ofato disto tomar forma de imagem e capturar a vida real.

    Deparamo-nos com outras possibilidades, nem sempre aparentes e por vezes

    imperceptveis ao olhar desatento do arquiteto, uma urbanidade complexa

    repleta de mincias e personalizaes assimtricas. Nelas, a pr-determinao

    programada da arquitetura e a legalidade dos cdigos de postura eruditos nada

    podiam fazer e davam lugar a cdigos de conduta especificamente produzidos

    para as situaes paralelas criadas fora da cidade legal. Viu-se uma re-produo da forma utilizada pelo poder hegemnico se desdobrava no ilegal e

    direcionava a vida na calada. Quanto a nossos supostos heris camels,

    resistentes e leais vida ordinria, estavam eles mesmos sobrecodificados,

    submetidos tambm a quase inescapvel modelizao contempornea.

    A quarta experimentao se deu por via de um colquio realizado no Rio de

    Janeiro: Ambincias Compartilhadas. Amarelinha era o nome da proposio

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    encabeada por Iazana Guizzo4. A ao propunha a montagem de dois jogos de

    amarelinha na Cinelndia, um no meio da praa e outro em meio a uma de suas

    vias transversais. Um convite ldico aos encontros estava feito.A questo da escala se descortinava com o surgimento da sensao de

    vulnerabilidade por estar no meio de uma praa pblica ou encerrado em um

    beco cheios de donos. O possvel encontro com estranhos era operado com

    certa desconfiana e, no caso do beco, bem mais aparente. A mesma

    desconfiana o que preserva as distncias seguras entre um ser humano e o

    outro, at que ele se permite prosseguir para alm de sua individualidade. Por

    mais que se incentivassem as trocas, elas s se davam no momento oportuno,onde o risco do encontro no fosse tomado como ameaa.

    A individualidade, ou melhor dizendo, o individualismo incentivado pela

    subjetividade capitalstica em suas modelizaes nos afasta dos encontros, das

    aberturas para produzir um outro tipo de arquitetura. Normas e posturas pr-

    determinadas, cdigos de todo tipo operam no corpo recusas, que impedem que

    apostemos em ns mesmos e nos outros, apenas porque no pega bem.

    Envolvidos em meio ao jogo produzido entre arquitetura, visibilidade, imagem,forma, representao, modelizao e cidade, pudemos perceber que a

    produo da arquitetura trabalha intimamente com a manuteno da ordem

    incentivando algo no limiar do apaziguamento das pulses humanas,

    encobrindo as possibilidades de produo da diferena. Ao menos no que diz

    respeito ao campo do visvel. Porm, medida em que tomamos confiana,

    atravessamos o visvel e vivenciamos o espao, iniciamos um processo

    irreversvel de trocas e cristalizaes mltiplas. S no ntimo dos espaos quetemos a capacidade de operar para alm das percepes, de investir na

    produo singular de subjetividades que sejam capazes de transpor os limites

    dados enquanto fronteiras do possvel.

    Em boa parte das apresentaes que foram expostas no prprio colquio,

    notamos que os pesquisadores se posicionavam do lado de fora dos

    4

    Clara Passaro, Eduardo Rocha e Mariana Ribas, a convite de Iazana Guizzo, atravs do LaboratrioUrbano, coordenado por Paola Berenstein, e do grupo propositor Alice De Marchi, Cristiane Kinijnik,Cristiano Rodrigues, Luisa Bogossian e Frederico Parede, fomos colaboradores desta experincia.

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    acontecimentos urbanos, utilizando a arquitetura como um suporte de registro

    das afetaes humanas. E que, por muitas vezes, ainda se apresentavam como

    o pesquisador explorador da diversidade alheia, do que se compartilhava, masno exatamente do mim mesmo.

    A partir dessas aes foi operada uma modificao no modo de compreender o

    que deveria ser a pesquisa em arquitetura, como se o pesquisador pudesse ao

    final dizer, que, mais do que uma interveno ou explorao na arquitetura, tudo

    isto resultou numa experimentao e uma interveno em sua pessoa. Em si

    enquanto pesquisador arquiteto, enquanto grupo de pesquisa, enquanto ter

    descoberto a partir dos desdobramentos em seu prprio corpo a possibilidadepara uma abordagem em arquitetura, como uma explorao de si, a arquitetura

    como seu duplo. Talvez isso nos faa operar um desarme frente s

    pressuposies, e nos faa estar mais atentos aos murmrios emitidos pela

    arquitetura.

    Adicionado a estas experimentaes, o segundo estgio da pesquisa se deu

    dentro de sala de aula, ainda no ano de 2009, onde foi possvel acompanhar o

    andamento de duas turmas de projetos de arquitetura e urbanismo. Por doissemestres integramos a equipe de professores tirocinantes do ltimo atelier do

    curso e por um semestre no atelier da turma do segundo ano. As duas

    experincias foram bastante ricas e distintas, a iniciar por seus contedos

    programticos, mas, atravs delas, foi possvel observar o comportamento de

    professores e estudantes. E tambm foi possvel uma maior aproximao com

    outras turmas.

    A inteno inicial de optar por duas turmas to diferentes era poder ter a chancede perceber como estava sendo incentivado, por parte dos professores, o

    imaginrio sobre a produo do espao arquitetnico, sua relao com a cidade,

    os seres humanos nela viventes e seu prprio corpo agente. E tambm at onde

    a busca pela competncia tcnica poderia incentivar o recobrimento do poder da

    vida em sua mobilidade.

    Ao longo do trabalho ser apresentado um pouco mais dos detalhes, mas de

    antemo vale salientar que, por muitas vezes, a prpria escola de arquitetura

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    acaba optando por investir na criao de resolues prticas para responder as

    solicitaes do mercado. E tambm na prpria escola que temos a

    oportunidade de vislumbrar uma potencializao do poder da vida que escapes modelizaes.

    Por ltimo, no primeiro semestre de 2010 fomos convidados a integrar como

    arquitetos colaboradores, a equipe de um escritrio de arquitetura de referncia

    em Salvador, cujo maior propsito era desenvolver grandes obras de carter

    pblico. Esta pareceu ser uma boa oportunidade para fechar o ciclo da pesquisa

    de campo e, neste ltimo estgio, buscar mais informaes de como estavam

    sendo travados os embates sobre a construo da arquitetura desde suaoperacionalizao enquanto projeto, dentro do mercado. E ainda como as aes

    provenientes dos escritrios, produtos da demanda do prprio mercado estavam

    retroalimentando a produo da arquitetura nas escolas e estimulando as

    posturas profissionais.

    Atravessar os trs estgios da produo da arquitetura nesta pesquisa de

    campo nos deu a possibilidade de chegar a algumas constataes que se

    desdobraro ao longo de todo este trabalho. A primeira delas que aarquitetura vai muito mais alm das formas construdas e que de modo algum

    poderamos nos limitar a encerr-la, sob o risco de sua runa ou de que ela

    mesma se imploda. Assim, caminhamos para algo da ordem dos

    amolecimentos, de uma arquitetura-que-vaza que daremos o nome de espao-

    movimento.

    Para a compreenso do espao-movimento notamos que era necessrio

    abordar a arquitetura como uma experincia de pensamento, uma arquiteturaque desestabiliza, ou que promove o que Virilio (1999) chama de desnorteio da

    representao. Nesta arquitetura encontramos o pensamento da diferena, e

    cada soluo dada por uma resoluo local, especfica impossibilitando que

    sejam promovidas generalizaes. a virtualidade criadora no espao-tempo.

    Parece-nos bastante claro que temos que incentivar a experimentao da

    cidade para poder compreender alguns fragmentos das informaes que ela nos

    fornece, aparentes e principalmente as no aparentes. E trilhar esta cidade

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    requer esforo corporal e sensvel e muita disponibilidade para pr-se em

    perigo, para se colocar em contato com o desconhecido, com o diferente e

    principalmente com os muitos outros. Onde os outros no so apenas outroscorpos, mas tambm outros mundos capazes de rachar a carapaa segura que

    nos envolve.

    Temos sido co-responsveis pela ao reguladora sobre o espao, pela ao

    planejada e projetada a curto, mdio e longo prazo, capaz de re-produzir

    mundos ou realidades, criar ou recriar necessidades. E como percebemos nas

    experimentaes, muitas aes arquitetnicas no tm sido capazes de

    valorizar a produo de singularidades e, muito pelo contrrio, tm trabalhadoem funo de um poder hegemnico que incentiva o fosqueamento das

    potncias de vida urbana, sob argumentos repressivos ou apaziguadores. Se

    no atentarmos para uma disponibilidade para com as grandezas do nfimo5

    (BARROS, 2001), no poderemos tratar das questes que suscitam nossa

    presena encarnada.

    A arquitetura aqui compreendida no mais que um cruzamento de mobilidades

    e se dispe a funcionar pelos deslocamentos que nela se produzem, que acircunstanciam e temporalizam. (DELGADO, 2007). A cidade que a abriga seria

    o espao que gera e de onde se gera a vida urbana como experincia do

    deslocamento e do estranhamento, do desconhecimento mtuo. A cidade

    pura mobilidade dos corpos que a ocupa em extenso e tempo.

    Os processos de transformao da cidade no cessam de inscrever nele as

    marcas e traos do tempo. As vrias solicitaes e intervenes habituais,

    reconfiguradoras ou desconfiguradoras dos contextos existentes, constroemnovos espaos urbanos, tornando-os instveis e transitrios. As arquiteturas,

    paradoxais e difusas, integram e desintegram os suportes da memria e ativam

    e desativam os mecanismos de reconhecimento, produzindo novas relaes

    com os habitantes. Alm do lugar em que emergem movimentos, a cidade

    constitui uma resultante do prprio espao em movimento.

    Segundo Flix Guattari (2008a, p.158),

    5 Manoel de Barros nos ensina que para apalpar as intimidades do mundo e as grandezas do nfimo preciso, alm de outras coisas, desaprender oito horas por dia.

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    O alcance dos espaos construdos vai ento bem alm de suas estruturas

    visveis e funcionais. So essencialmente mquinas, mquinas de sentido, de

    sensao, mquinas abstratas [...], mquinas portadoras de universos

    incorporais que no so, todavia, Universais, mas que podem trabalhar tanto nosentido de um esmagamento uniformizador quanto no de uma re-singularizao

    liberadora da subjetividade individual e coletiva.

    Guattari nos provoca a questionar como o arquiteto poderia apreender e

    cartografar estas produes de subjetividade inerentes cidade e sua

    atividade coletiva. E coloca, que talvez pelo reconhecimento dos territrios

    existenciais e pela necessidade de uma autoconsistncia subjetiva atravs de

    uma responsabilidade tico-poltica, poderamos assumir o posicionamento comrelao subjetividade parcial que ajudamos a engendrar.

    A compreenso sobre subjetividade que adotamos para este trabalho tecida

    por Guattari, que, juntamente com Giles Deleuze, antecipa: a subjetividade no

    algo dado, ela processual. A subjetividade resultante de uma irreversvel

    produo que transborda o indivduo por todos os lados. Eles sugerem que o

    que h so processos de subjetivao que se fazem nas conexes entre fluxos

    heterogneos, dos quais o indivduo e o seu entorno seriam apenasresultantes. Deste modo os resultados, sempre em processo, seriam conexes

    efmeras e sua produo, uma pressuposio de agenciamentos coletivos e

    impessoais. (ROLNIK, in: ALLIEZ, 2001, p. 453)

    H neste processo de produo instncias inter-subjetivas manifestadas pela

    linguagem e instncias sugestivas ou identificatrias concernentes etologia,

    h tambm interaes institucionais de diferentes naturezas, dispositivos

    maqunicos e universos de referncias incorporais. Segundo Guattari (2008a,p.21), esta parte no humana da subjetividade essencial, j que a partir

    dela que pode se desenvolver sua heterognese. Justamente por isso devemos

    considerar que a subjetividade no trabalhada apenas na instncia do

    indivduo, mas tambm nas grandes redes sociais, na comunicao e mdia de

    massa, nas operaes da linguagem, na arquitetura e no urbanismo.

    Rolnik (2002) aponta que a potncia de vida enquanto fora de inveno um

    tipo de batalha entre os dois planos de produo da subjetividade, o plano do

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    visvel e no plano do invisvel. Onde o plano do visvel abarca o mapa das

    formas estabelecidas, como um repertrio de cdigos. J o plano do invisvel

    aquele que consiste no diagrama flexvel das sensaes que atravessamnosso corpo quando imergimos na infinidade de fluxos compositores de todo o

    fora, do meio no qual vivemos.

    medida que a tenso entre estes dois planos da subjetividade vai

    pressionando o corpo a produzir novos contornos, estas pequenas batalhas no

    param de desestabilizar e desfazer outros: entre o movimento de tomada de

    consistncia de uma nova pele e a permanncia da pele existente. (ROLNIK,

    2002). Esse movimento produz novos outramentos, no sentido de FernandoPessoa, que era um perito na arte de outrar-se. A subjetividade no algo que

    possamos considerar abstrato, mas a nossa prpria vida, das formas de vida,

    e abrange nossas maneiras de sentir, de perceber, de amar, de morrar, de

    imaginar, de agir, de sonhar, de desejar, etc.

    Esta produo coloca o ser humano na condio de experimentador de si

    mesmo e lhe d a capacidade de pr em xeque sua condio de indivduo,

    forma-homem modelada, contrapondo-a a todo tipo de foras que lhe tocam.Como diria Orlandi (2007): um mim mesmo como espao-tempo de guerra.

    Onde esta guerra est presente em todos os verbos frequentados por ns

    mesmos, qualquer que seja ele. Cada qual com seus prprios problemas e

    desdobramentos, entre a liberao e o controle numa cadncia perturbada a

    cada emergncia das circunstncias. Onde alguns atravessamentos passam

    por nossos verbos, e so capazes de faz-los enrijecer ou vibrar e esta ao

    capaz de impor determinados modos de se estar nos verbos da vida.Quanto participao das disciplinas que nos competem neste processo, a

    arquitetura e o urbanismo, poderamos dizer que, dentro dos processos de

    subjetivao funcionam como mquinasprodutoras de subjetividades parciais.

    Objetidades ou subjetidades como aponta Guattari. Onde, carregadas de

    significados anteriormente determinados, cdigos pr-estabelecidos e cargas

    subjetivas provenientes de outros processos, inclusive relacionais responsveis

    pela elaborao enquanto objeto construdo, engendram novos processossubjetivos. como se a arquitetura, e por extenso a prpria cidade, no se

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    contendo em ser exterior, atravessassem a todos ns. Estas relaes humano-

    no-humanos de produo de existncia nos capacitam enquanto

    experimentadores de vida, e nesse caso de vida urbana, e faz da arquitetura eda cidade o nosso duplo.

    Consideramos ainda, que a arquitetura s a porque foi capaz de dar abrigo ao

    ser humano, a ele, a suas funes e tudo o que vem depois, funcionando

    enquanto extenso de seu prprio corpo. Neste processo, a arquitetura j se

    inscreve no espao carregada de cdigos e pr-determinaes e, ao longo de

    sua existncia recebe e relaciona outros mais, engendrando constantemente

    diversos processos de subjetivao parciais.O engendramento de processos subjetivos atravessa todos os procedimentos

    de produo da arquitetura desde sua idealizao, projetao, detalhamento,

    construo, at a sua exposio, utilizao, divulgao, e tambm, a sua runa e

    obsolescncia, ainda haja uma permanncia enquanto objeto histrico ou pelo

    registro que carregamos na memria em qualquer um desses estgios.

    Independentemente de qual seja o procedimento, qualquer um deles, cada um

    em sua especificidade congrega relaes de foras que colaboram para aproduo de novas combinaes.

    importante lembrar aqui que estas configuraes no so equaes lgicas

    de adio nem somatria de relaes. Tais processos so resultantes de aes

    espaos-temporais que promovem incises irreversveis no estado das coisas,

    no sentido de Arendit (2007). A forma arquitetnica , pois, circunstancial, tecida

    pelos arranjos de foras no intercruzamento de todos os processos que a

    envolvem. As formas que construmos, seja no pensamento ou no concreto, soresultantes do fluxo das atividades nas quais estamos envolvidos, nos contextos

    relacionais particulares e de seus envolvimentos prticos com aquilo que as

    cerca. Desde que consideremos que a cada nova configurao histrica estas

    foras se rearranjam formando novas agncias.

    O que realmente importa nas cidades de hoje menos seu carter de infra-

    estrutura, de comunicao ou de servios do que o fato de engendrarem, por

    meio de equipamentos materiais e imateriais, a existncia humana sob todos os

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    aspectos em que se queira consider-la (GUATTARI, 2008a, p. 172). A cidade

    produz o destino da humanidade, e o devir urbano , tambm, o devir humano.

    na sensibilizao da vida, na prpria diferena, que as intensidades ganhamou perdem sentido, produzido-se mundos e desmanchando-se outros, tudo ao

    mesmo tempo. Esta produo de intensidades e de sentidos s dada a partir

    da produo dos desejos. A potncia de afetar e ser afetado pelos fluxos da

    produo do desejo nasce justamente no entre das relaes entre os corpos.

    Ela invisvel, inconsciente e ilimitada. que enquanto se est vivo no se

    para de fazer encontros com outros corpos [...] e com corpos que se tornam

    outros. (ROLNIK, 2007, p. 49)Nesta cidade, medida em que a arquitetura, enquanto operador concreto da

    organizao dos territrios, produto e produtor de subjetividades, produtora

    de outros desejos e afetos. Aqui, a cidade sempre outra de si mesma. E

    justo essa situao extrema de alteridade urbana que pode nos ajudar a

    repensar nossas prprias definies [de arquitetura,] de cidade, de urbanidade,

    de formas contemporneas de vida em sociedade. (JACQUES, 2007, p. 153)

    A partir destas breves colocaes nos movemos para que fosse possvel este

    trabalho se desenvolver dentro do campo da arquitetura e urbanismo, porm

    intimamente atravessado por teorias provenientes de outros campos como a

    filosofia e a psicologia, e abordar o espao construdo como resultante das

    relaes de foras. Para abrir os captulos optou-se pela incluso de textos com

    base literria desenvolvidos a partir das experimentaes empricas ou

    desdobrados atravs das questes levantadas por elas, onde fosse possvel

    uma aproximao mais amena com a temtica que os seguem, porm no com

    menos contedo ou fora. A literatura abordada enquanto possibilidade de

    aproximao com a prpria arquitetura e para isso pressupe-se que ambas so

    modos de registro e territorializao dos fluxos que as afetam. Nesta zona de

    transversalidades, localizamos a produo da arquitetura enquanto um duplo da

    prpria produo do ser humano, onde a cidade ao mesmo tempo, condio e

    objeto do pensamento.

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    Nesta pesquisa, o espao-movimento tomado como figura conceitual de

    anlise virtual para que seja possvel uma abordagem mais ampliada da prpria

    arquitetura, de maneira a esbarrar menos nas limitaes abstratas da forma-imagem. E foi considerada a produo de subjetividades parciais nos processo

    de formao atual do arquiteto e do espao arquitetnico que lhe cabe.

    Para tanto, traaremos no Captulo 1 o embasamento para a discusso sobre

    que tipo de espaos arquitetnicos tem sido produzidos em nossos dias sob a

    fora impositiva das modelizaes contemporneas. E nos toca o fato de que

    este modo de produo engendra diversos procedimentos e dispositivos de

    apaziguamento das pulses humanas e introduz pacotes de significaes paraque se produzam seres e espaos na medida em que se deseja. Investe-se

    numa espcie de terrorismo subjetivo onde as pessoas devem responder por

    identidades pr-fabricadas.

    Questiona-se que tipo arquitetura est sendo produzida e incentivada.

    Produzida em funo deste indivduo pacificado por blocos de preferncias, por

    este sujeito cotidiano mdio. Incentivada como resposta afirmativa s frentes

    abertas pelo mercado imobilirio e para a criao de identidades locais, para oespetculo, para a exibio, para a marca. Arquitetura imagem carente de

    potncia produtiva. Arquitetura que auxilia na manuteno do status quo.

    Arquitetura produtora de subjetividades parciais dominantes. Arquitetura deleite,

    mas que j ningum a percebe e rapidamente entra em decadncia porque na

    vertigem do mundo contemporneo tudo delrio de consumo e o ineditismo

    marca da competncia.

    Estas constataes da produo de indivduos e de seus espaos de consumonos levaram a crer na possibilidade escape do quadro da arquitetura

    contempornea, dos discursos produzidos e replicados, e das diretrizes de

    ensinamento e manuteno do estado atual da arquitetura. A proposta

    embasada na desconstruo da idia de uma arquitetura estigma que fixa e o

    investimento na construo de uma arquitetura do espao-movimento.

    Em espao e poltica, cuja primeira edio foi publicada na euforia dos anos de

    1968, Lefebvre j nos ensinava que a arquitetura no pode existir seno

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    enquanto prtica social. Sem esta encarnao ela no passa de pura retrica

    grfica, desenho oco, estril. O Captulo 2 uma busca para o entendimento do

    alcance da prpria arquitetura e, assim como Rolnik, propomos uma escutaatenta aos estados inditos que se produzem no corpo quando se tem a

    audcia de abandonar a pele do senso comum. Ou como aposta o querido

    Manuel de Barros (2001), desaprender oito horas por dia ensina os princpios.

    Trataremos da construo desses estados singulares capazes de produzir

    diferena e fazer mover. No espao-movimento, a produo da diferena e suas

    experimentaes de desestabilizao que nos ajuda a vislumbrar os

    diagramas de possibilidades futuras. Atravs de investimentos, assaltos e aesagudas capazes de dar conta da instabilidade da arquitetura, por seus

    desdobramentos em nossas vidas e na cidade.

    No Captulo 3, discutiremos sobre os desafios implicados na idia de espao-

    movimento e sua abordagem dentro da arquitetura e urbanismo, por seus

    desdobramentos dentro das escolas de arquitetura e urbanismo, e pelas idias

    genricas que se publicizam sobre a arquitetura que vista e a que se faz ver.

    Conversaremos sobre as possibilidades de abertura que vislumbramos,entrelaados por mobilizaes capazes de incentivar nos estudantes de

    arquitetura um processo de autoconsistncia subjetiva, no sentido de Guattari, e

    tambm, evocar sensibilidades como grande referencial do agir humano para a

    construo do conhecimento arquitetnico e urbano com base na autopoise e

    na autonomia.

    Por fim, este trabalho se apresenta enquanto uma reflexo acerca das

    naturalizaes, neutralizaes e pacificaes das aes contemporneas quetm impregnado a arquitetura e o urbanismo atravs dos modos de vida

    incrustados em nossos corpos-cidades. E tem suas foras apontadas para uma

    arquitetura que seja capaz de investir, desde suas bases, em mais autonomia e

    tica, na produo de singularidades, onde sejam possveis escapes dos

    fatalismos que decretam a morte da cidade e da vida em sua alteridade.

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    Captulo 1

    Movimentos de limitao

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    Do espao e do homem contemporneo

    Arquitetura, capital e insnia

    Nesta ltima semana foram todos demitidos. Mas no demitidos propriamente

    porque ningum tinha direito trabalhista algum. Encontrei uma ex-colega de

    trabalho na rua, com muito pesar e vrias caixas cheias de pertences

    espalhadas por seu carro. Acabara de sair do escritrio, sem rumo, ia pra casatentar pensar. Fecharam as portas do escritrio, mas assim que possvel eles

    reabrem e tornam a nos chamar. Dos 18 arquitetos que trabalhavam l, nenhum

    era funcionrio. S entravam para a equipe no momento que tivessem em mos

    uma carteira de autnomo, com os devidos impostos de autnomos pagos em

    separado, arquitetos autnomos. No desejavam configurar nenhum vnculo

    empregatcio, apesar dos meses ou anos a fio. O escritrio recolhia nossos

    impostos. Tudo a depender do projeto em questo. Quando entramos ali

    prometemos mundos e fundos. Vocs tero que se comprometer conosco.

    Comprometer seus dias, suas famlias, seus romances, seus filhos, suas noites,

    sua alimentao, seus sonhos, sua sade, seus desejos. Assentimos. Claro.

    Quem no queria trabalhar com aquele cara? Ele era o arquiteto comunista

    mais ativo que povoava nossa memria. Uma oportunidade nica. Uma vida

    nica.

    Quando algum de ns pensava em no ir trabalhar num domingo tarde logopesava a conscincia. Passada a hora do almoo, o cafezinho com chocolate

    belga tinha um sabor de pressa, pouco digestivo, afinal deveria fechar aquela

    tabela dentro de algumas horas. Desculpa, tenho que ir e bater logo meu ponto,

    a que horas eu sa mesmo? Atravessei algumas noites em claro l dentro, tive

    que compensar as horas do fim de semana: eu iria passar o feriado na praia.

    Dois dias na praia eram o cu. Uma pena eu s conseguir falar daquele

    trabalho, do quanto me consumia, do quanto precisava dormir, do quanto estavacansada, do quanto precisava voltar ao trabalho, do quanto eu no conseguia

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    boiar porque pesava o corpo inteiro, desejava voltar quela cadeira marcada

    com meu nome, eu s falava daquelas pessoas. Alis, eu s me encontrava

    com aquelas pessoas.Trabalhava-se cerca de doze horas por dia no escritrio do arquiteto comunista

    de renome. O produto em questo era resultante de nossa prpria potncia de

    vida, mas era um tipo de potncia cafetinada. Nossa capacidade criativa de

    resolver problemas, mas nada que excedesse os direcionamentos dados pelo

    chefe. E a? J terminou? Meus amigos no conseguiam me encontrar, minha

    me no conseguia me falar, sempre flor da pele. Havia uma vida alm

    daquelas janelas de pelcula lils que eu no estava participando. Aquelasjanelas eram minha fuga, nos dias que conseguia me dar conta que eram cinco

    e meia da tarde, parava e olhava o skyline atravs da pelcula lils, sem tirar as

    mos do teclado e de frente ao monitor, um lindo pr-do-sol. Ah... Pronto, de

    volta ao trabalho. Nem eu nem meus colegas tnhamos tempo de apostar

    naquela vida alm da pelcula, em pouco tempo viraramos irmos de lamrias,

    s tnhamos uns aos outros. Ningum fora dali alcanava o porqu de estarmos

    vivendo daquele modo. Nem ns.

    A arquiteta dos pertences espalhados pelo carro estava desolada. H alguns

    meses chegara ao desatino de comprar uma ducha quente e instal-la no

    banheiro feminino do escritrio. Isso lhe daria mais tempo entre o dormir dentro

    do carro na garagem do edifcio e o bater o ponto para dar incio a sua

    contagem de horas. Ela havia personalizado seu posto de trabalho. Apropriara-

    se daquele canto como se fora seu. Perto dos ps da cadeira que levava seu

    nome, roupas e sandlias em sacolas nada discretas, discos, objetos pessoais edois aparelhos de celular de ltima gerao sobre a mesa. Tomava caf da

    manh numa padaria ali perto, almoava e jantava ali perto tambm. Era

    comum trazer tudo e comer na pequena copa sem constrangimentos. No havia

    porta, tudo se sabia, os cheiros percorriam e alertavam a todos ns, tambm

    sem constrangimentos. Dela tudo se sabia tambm, mesmo que no

    quisssemos. Seus aparelhos tecnolgicos lhe asseguravam o aval para

    exibio diria, sua voz aguda nos atingia indiscretamente. A moa havia

    convencido a me a se mudar para um apartamento prximo ao escritrio, isso

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    lhe evitava maiores transtornos com o trnsito, perdia menos tempo. Parou de

    dormir no carro. Por pouco tempo.

    Este tem sido o regime de trabalho dos escritrios de arquitetura de Salvador,se voc no aceitar, outro aceitar. Pensar uma vez s, afinal voc tem contas a

    pagar e cada vez mais. No se sabe se o arquiteto, dito comunista, sabia disso,

    mas estava trabalhando para o mais voraz de todos os liberalismos. Em outros

    tempos construra um restaurante bem frequentado, sarcfago para enterrar

    toda a burguesia da cidade dentro. Hoje, est ele mesmo sendo consumido e

    enterrado pela mquina voraz da qual faz parte, subjetivamente.

    A moa dos pertences espalhados no carro e dona da ducha quente me haviaconfessado sua vontade de ser professora de arquitetura, e por contar

    especificamente com a possibilidade de uma renda mais certa, comeara a dar

    aulas numa escola particular. Ali dentro, pelo menos trs eram professores

    universitrios, pelo menos cinco davam aulas em cursos de especializao e

    pelo menos um era seguido por uma multido de admiradores. Recm-

    formados, especialistas, mestres, doutores, filhos de doutores, pais.

    Profissionais vindos de vrios lugares, todos eram muito bons em suasatribuies, talvez os melhores em suas limitaes. Mas, o mais sempre era de

    menos.

    A crise dos desejos investida pelo capitalismo atual nos incita diariamente a

    fazer escolhas no to acertadas, em nada ponderadas, simplesmente vamos

    ou entramos na onda normalizante. O vampiro de nossos dias insone e

    fashion, no repousa nunca. Sua insnia a sua fora. [...] Parece enfim,

    plugado a todo ser vivo, como uma larva banal, explorando no apenas asrealidades e fatos, mas, tambm, virtualidades e processos. (SANTANNA,

    2007). A moa era apenas mais uma entre as tantas pessoas que fazem do

    delrio do reconhecimento social seu objetivo de vida, em maior ou menor

    escala. Naquele momento ela apenas desejava ardentemente um carro novo,

    grande, robusto e prateado, com trao nas quatro rodas. Sempre mais

    tecnologia, sempre mais alto, sempre mais brilhante. Era o coroamento de seu

    sucesso individual, seu poder.

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    Onde ser que nos perdemos?

    No provvel que saibamos responder a esta indagao, nem ao menos

    saber se de fato nos perdemos de algo. Desde sempre a arquitetura ocidental,

    que tomamos como referncia, esteve relacionada aos detentores do poder, e o

    seu desdobramento dentro do capitalismo contemporneo no poderia ser

    diferente.

    A experincia do texto acima acaba por explicitar o modo de vida e trabalho de

    centenas de arquitetos e urbanistas, seus desdobramentos dentro das escolas

    de arquitetura e os projetos de cidade nos quais esto envolvidos. Submersos

    por movimentos de limitao, que so fora produtiva do regime de acumulao

    capitalista no qual esto imbricados, na grande maioria das vezes, acabam por

    reproduzir arquiteturas igualmente limitadas. Onde, envolvidos pelas foras

    hegemnicas, o grande trunfo a criao de imagem e a representao de

    ideais pastorais e consensuais que corroboram para a criao ou para a

    afirmao de identidades estveis e confortveis, ou seja, uma arquitetura-que-

    fixa.

    Para desenvolver melhor a idia desta arquitetura-que-fixa, nos valeremos de

    um breve apanhado de elucidaes e observaes que tratam do modo de

    subjetivao modelizadora, apoiada no sistema de produo capitalstico6. Onde

    se engendram diversos procedimentos e dispositivos de apaziguamento das

    pulses humanas e se introduz pacotes de significaes para que se produzam

    seres e espaos na medida em que se deseje, capazes de viver neste mundo

    de identidades pr-fabricadas.

    Questiona-se que tipo de arquiteturas esto sendo produzidas e incentivadas.

    Produzidas em funo de um indivduo pacificado por blocos de preferncias,

    por um sujeito cotidiano mdio. Incentivadas como resposta s frentes abertas

    pelo mercado e para a criao de identidades locais, para o espetculo, para a

    6

    O termo capitalstico, segundo Guattari, designa no apenas as sociedades qualificadas enquantocapitalistas, mas abrange outros setores do capitalismo que vivem numa certa dependncia com ele.(GUATTARI; ROLNIK, 1986, p.15)

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    exibio, para a marca. Arquiteturas carentes de potncia produtiva.

    Arquiteturas que auxiliam na manuteno da fora hegemnica. Arquiteturas

    deleite, mas que pouco tempo depois ningum as percebe e rapidamenteentram em decadncia porque na vertigem do mundo contemporneo tudo

    delrio de consumo.

    1.1 Do sistema de modelizao contemporneo

    Como vimos na introduo, a subjetividade no algo dado, j determinado por

    natureza, entranhado no sujeito desde o seu nascimento. O processo de

    produo da subjetividade envolve o conjunto das condies que permitem

    que instncias individuais e coletivas possam consistir enquanto territrio

    existencial auto-referencial. Porm, esta produo pode caminhar para uma

    liberao do sujeito ou para uma subjetividade do equivaler generalizado,

    recobrindo as potncias do ser humano atravs da instaurao de pr-

    programaes e lhe tirando a possibilidade de existncia autpoitica. Convem

    para este captulo situar especificamente esta produo da subjetividade

    capitalstica do equivaler generalizado, que recobre com sua cinzenta

    monotonia os mnimos gestos e os ltimos recantos de mistrio do planeta.

    (GUATTARI, 2008a, p. 34-35)

    Para tanto, devemos considerar que o que configura os modos de produo

    capitalsticos o fato que eles no operam apenas no registro dos valores detroca, da ordem do capital e financeiro. Mas operam principalmente atravs do

    modo de controle dos processos de subjetivao.

    Tudo o que produzido pela subjetivao capitalstica tudo que nos chega

    pela linguagem, pela famlia e pelos equipamentos que nos rodeiam no

    apenas uma questo de idia, no apenas transmisso de significaes por

    meio de enunciados significantes. [...] Trata-se de sistemas de conexo direta

    entre as grandes mquinas produtivas, as grandes mquinas de controle social

    e as instancias psquicas que definem a maneira de perceber o mundo. [...] E

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    no consiste unicamente numa produo de poder para controlar as relaes

    sociais e as relaes de produo. A produo da subjetividade constitui a

    matria prima de toda e qualquer produo. [...] Esta produo no apenas a

    da representao, mas a de uma modelizao que diz respeito aoscomportamentos, sensibilidade, percepo, memria, s relaes sociais,

    s relaes sexuais, aos fantasmas imaginrios, etc. (GUATTARI; ROLNIK,

    1986, p. 27-28)

    A ordem capitalstica fabrica e modela a relao do ser humano com o mundo e

    consigo mesmo, cria indivduos normalizados, articulados uns aos outros

    atravs de sistemas hierrquicos, sistemas de valores e de submisso. A sua

    produo tem a tendncia de bloquear os processos de singularizao einstaura processos de individuao. Nesta produo, os homens acabam sendo

    reduzidos condio de suporte de valor, apenas conseguindo assistir,

    desnorteados, a dissoluo de seus modos de vida. E acabam por estabelecer,

    segundo Guattari, a partir de valores universais que os serializam e os

    individualizam, esvazia-se o carter processual (para no dizer vital) de suas

    existncias: pouco a pouco, eles vo se insensibilizando. O autor ainda

    complementa dizendo que neste mesmo momento que nascem os indivduos

    e morrem as possibilidades singulares de produo da diferena.

    Todos os sistemas de medida de equivalncia de tempo [e do espao],

    interiorizados, no so apenas um fato subjetivo, mas tambm um dado de

    base da formao da fora coletiva de controle social. [...] Todas as relaes

    com o espao, com o tempo e com o cosmos tendem a ser completamente

    medidas pelos planos e ritmos impostos, pelo sistema de enquadramento dos

    meios de transporte, pela modelizao do espao urbano, do espao domstico.

    (GUATTARI; ROLNIK, op. cit., 1986, p. 44)

    Aliados a estes sistemas, cada regime de acumulao implica uma organizao

    social e trabalhista especfica e isto acaba associando, fundamentalmente a

    produo social de subjetividade produo do trabalho propriamente dita.

    (ROZENTHAL, 2005, p. 120). O modo de capitalismo atual implica novas

    reflexes sobre estas produes subjetivas, sobre a circulao do

    conhecimento, de criatividade e sobre as condies e as modalidades de

    apropriao capitalista de uma riqueza que produzida diretamente dentro das

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    redes sociais (COCCO, 2009, p. 184), onde se investe mais na vida do

    trabalhador em seu conjunto.

    O alastramento do mercado mundial para uma organizao planetria desociedades multinacionais e a expanso do capitalismo sobre todas as

    coletividades, ou como chama Guattari (1986) - para um capitalismo mundial

    integrado, incentivou a formao de uma grande mquina abstrata que

    sobrecodifica os fluxos monetrios, industriais, tecnolgicos. E tambm fez com

    que os meios de explorao, de controle e de vigilncia se tornassem mais

    difusos e sutis.

    Deste modo, o Estado passou a no dispor apenas de meios polticos,institucionais e financeiros que sejam capazes de se contrapor aos avanos e

    contra-golpes sociais da grande mquina. As aes agora se estabelecem muito

    mais alm do Estado, e no mais se apiam nas velhas formas de fazer poltica,

    nem em suas ferramentas disciplinares, na polcia ou no exrcito, nem em

    burocracias, tecnocracias, nos espaos coletivos, nas escolas, nas famlias.

    (DELEUZE; PARNET, 1998).

    A nica forma universal dentro do capitalismo tornou-se o mercado. O Estado

    passou a no ser universal, visto que agora bolsa para o prprio mercado, e

    acaba trabalhando como uma fbrica de misria e de riqueza. Com comenta

    Deleuze (1996, p. 270), no h um s Estado democrtico que no esteja

    comprometido at a saciedade nesta fabricao de misria humana. E

    complementa dizendo que nem as organizaes de direitos humanos so

    capazes de santificar as delcias do capitalismo liberal visto que elas tambm

    participam de suas estratgias de ao. Isso quer dizer que o que caracteriza anossa situao atual est muito alm dos estados nacionais.

    Este capitalismo globalizado, ps-industrial, corresponde a uma nova estrutura

    de comando, em tudo ps-moderna, descentralizada e desterritorializada. E est

    sujeito circulao de fluxos de toda ordem a alta velocidade, fluxos de capital,

    de informao, de imagens, de bens, mesmo esobretudo de pessoas.

    (PELBART, 2009, p. 81). Enaltecendo conexes, a mobilidade e a fluidez,

    incentiva a produo de novas formas de explorao e excluso, novas elites e

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    novas misrias e provoca um novo tipo de angstia, a angstia do

    desligamento, da desconexo. (PELBART, 2009, p. 21).

    Em sua estratgia de produo, o capitalismo se apropria da potncia deilimitao destas conexes cuja expresso est na capacidade de levar um

    conjunto finito de elementos a um nmero ilimitado de combinaes entre foras

    presentes ou atuantes no homem e as mais variadas composies de seu

    ambiente vital, potncia que a vida, a cincia e as tecnologias evidenciam.

    Porm, ele o faz a favor de mais acumulao e domnio do capital financeiro,

    contrariando a prpria potncia de ilimitao que ajuda a promover e continua

    se apropriando atravs de controles auto-modulantes e fluidos que visam, aomesmo tempo, extrair mais potncia e gerir as foras produtivas e a vida em

    todas as suas expresses. (NEVES, 2004, p. 138).

    Por outro lado, esta potncia de ilimitao estimula os processos de

    intensificao da vida, mas acaba compatibilizando as foras produtivas e suas

    reprodues. Isso faz com que o modo de produo capitalista esteja no

    governo de toda sociedade e das relaes sociais, e, principalmente, de toda

    natureza humana e da vida em sua virtualidade. Os afetos, o conhecimento,o desejo, so fortemente incorporados ao atual regime de acumulao

    capitalista (NEVES, op.cit., p. 139-140). Percebemos ento que o capitalismo

    capaz de se manter por ser, como apontam Deleuze e Guattari (1996), uma

    mais valia de fluxo, que ao mesmo tempo, humana, financeira e maqunica,

    assegurando ao trabalhador uma relao de assujeitamento, disciplinando sua

    vida, seu trabalho e seus modos de fazer, e pela dependncia que isso gera,

    convertendo em mais dinheiro.Nesta situao, poderemos nos dar conta que toda nossa existncia tomada e

    guiada pelo modo de produo capitalista, de tal modo que nos reconhecemos

    como criaturas levadas pelas suas modulaes descodificantes,

    desterritorializados e reterritorializados a seu favor. Como se na falta dele no

    fssemos mais capazes de pensar ou agir, como se ele mesmo fosse o nosso

    dentro e o nosso fora. O capitalismo, constituindo-se como o guia do corpo

    social, nos assalta a existncia em nossas formas de vida e em suasconfiguraes intensivas, para s assim poder extrair, a sua convenincia,

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    foras que sejam capazes de trabalhar em prol de seus deslocamentos e

    acumulaes.

    O capitalismo ps-industrial investe em especial nos processos de produo davida, em suas variaes, apresentando-se como aponta Neves (2004), em seu

    empreendedor ontolgico. Ele incita e sustenta at mesmo os modos de

    subjetivao, mas para serem reproduzidos e reificados como mercadorias de

    consumo de massa e identidades pr-determinadas. A perverso do capitalismo

    est em desconectar a singularizao do processo, em dissociar a fora de

    criao do substrato intensivo. Assim, ele faz desaparecer as distncias entre

    produo e consumo, onde o prprio consumidor torna-se matria prima e oproduto de sua maquinao (DELEUZE, 1996). Ou ainda, como diria Lefebvre

    (1991): o consumidor, consumido .

    O capitalismo contemporneo no se contenta mais em ser apenas um modo de

    produo, ele agora responsvel pela produo de vrios mundos e de vrios

    modos. O que devemos ter em conta que o que est em jogo nossa prpria

    vida, entre sua dissoluo ou sua expanso, a nossa vida enquanto potncia de

    inveno intensiva. E mesmo com as correntes tentativas de neutralizaodestas potncias, so exatamente elas que podem abrir rachaduras em sua

    carapaa. A potncia de vida enquanto fora de inveno portadora de

    coeficientes inassimilveis de liberdade (NEVES, 2004, p. 156).

    1.2 Do terrorismo subjetivo

    Terrorismo subjetivo o que alimenta a iluso, o grau zero do pensamento

    crtico, alimenta as mscaras da sociedade em sua transparncia ficcional, nos

    impedindo de crer em nossas prprias experincias. Nada lhes probe, mas

    elas se probem (LEFEBVRE, 1991), e isto um grave aspecto da sociedade

    terrorista. Uma prtica que incentiva uma vida individual que, uma hora ou outra

    encalhar em resignao, angstia ou medo.

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    Dentro do capitalismo contemporneo, nossas capacidades pessoais e

    subjetivas so incorporadas aos anseios e metas dos poderes hegemnicos e

    do mercado. Segundo Rose (1998), este fato no constitui apenas um nexoabstrato de especulao, mas uma lgica de prticas sociais e polticas. Para

    ele, a subjetividade compe a base dos clculos estatsticos, e guiam

    direcionamentos polticos que promovem iniciativas reguladoras da conduta dos

    cidados atravs de aes que incidem em suas capacidades e propenses

    mentais. Essas tecnologias humanas tecnologias que tomam modos de ser

    humano como seu objeto, rastros de Foucault acabam por funcionar atravs

    de uma minuciosa estruturao do espao, do tempo e das relaes entre os

    indivduos, que, incluindo as arquiteturas, investem na organizao calculada

    de foras e de capacidades humanas, ou seja, programas e estratgias mais

    ou menos racionalizados para a conduta da conduta (ROSE, 2001a).

    O mapeamento deste universo individual e a valorizao exacerbada do corpo e

    da auto-imagem denunciam a busca por padres patticos, ou de uma

    dimenso mimtica que incentiva certas formas de ser sobre ns, modelos e

    simulacros de eus desejveis, espelhos para reativar e refletir a fabricao de

    uma subjetividade que se pode aspirar.

    As solicitaes que sejamos um certo tipo de eu so efetivamente guiadas por

    operaes que nos diferenciam ao mesmo passo que nos identificam. E como

    denuncia Rose, para ser o que a gente, a genteno deve ser o eu que a

    gente no no aquela alma desprezada, rejeitada ou abjetada. (ROSE,

    2001b)

    As prticas contemporneas de subjetivao modelizadora acabam pondo emfoco o ser que deve ser vinculado a um projeto claro de identidade, a um estilo

    de vida, a partir do qual a prpria vida toma sentido, ao passo em que so

    constitudas como produto de escolha pessoal, onde no devem restar dvidas.

    Neste ponto somos capazes de observar que o novo sujeito contemporneo,

    ainda que diante da herana referencial das instituies disciplinares de

    hierarquia vertical, em prol das redes horizontais de controle, exerce, de

    maneira ainda mais abrangente, o autocontrole disciplinar. Ou seja, cidados deuma democracia liberal como a nossa, devem regular a si mesmos atravs de

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    mecanismos de auto-orientao - formas pelas quais os indivduos vivenciam,

    compreendem, julgam e conduzem a si mesmos (ROSE, 2001b). Como

    comenta Rozental (2005), a subjetividade no mais guiada por mecanismosidentitrios, porm, a imanncia do controle, independente das identidades

    sociais que agora so mveis e flexveis, se tornou ainda mais persuasiva.

    Na sociedade do controle a vida se expe cada vez mais como territrio

    econmico. E, consequentemente, dispe-se, em sua vulnerabilidade, como

    terreno frtil a ser explorado pelas estratgias do mercado. a apropriao da

    dimenso subjetiva do profissional, ou, mais amplamente, o comando da vida do

    trabalhador em todos os seus aspectos (ROZENTHAL, 2005, p. 128).Poderamos dizer que este paradigma de acmulo econmico que configura

    modo de produo capitalista ps-industrial, em meio aos diversos

    acontecimentos que instauram o presente e inscrevem nossa atualidade, em

    torno de ns, e que acontece em ns, nos constitui do ponto de vista da

    produo social da existncia.

    O enfraquecimento do Estado, em favor do mercado e da comunicao

    favoreceu o esvaziamento da poltica, ou ao menos da poltica que se publiciza,em detrimento do alcance da publicidade. Atravs da mdia, a poltica se

    transforma no lugar da corrupo e da sujeira, enquanto a publicidade, o lugar

    da cidadania e da limpeza. O lugar da mentira e o lugar da verdade. Centenas

    de empresa fornecem a democracia ao vivo e em quites, como se os valores da

    democracia, cidadania e ecologia se tornassem forosamente consequncias do

    ato de consumir, consumir individualmente, e no mais um fruto da politizao

    coletiva. (SANTANNA, 2007) inegvel o papel fundamental da comunicao dentro de todo esse sistema

    persuasivo, ela aparece como instrumento fundamental do controle. E devemos

    considerar que a comunicao completamente desterritorializada e se alastra

    rapidamente pelo mundo a favor da subsuno real da sociedade aos interesses

    do capital.

    Sob a gide do capital financeiro, presenciamos tipos de controle tais quais

    modelagens auto-deformantes, em constante mutao e modulaes. Neles, o

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    poder simblico da imagem incorporado construo de subjetividades

    inserindo nas relaes sociais elevados nveis de alienao. Esta produo

    acaba estimulando a transformao dos interesses particulares em estilos devida e distino social enquanto seletividade competitiva, prestgio e futuro

    desejvel (MAGNAVITA, 2010, p. 50). Aumentando assim, o fosso da

    desigualdade social e contribuindo para acentuar a violncia simblica e real

    nas cidades.

    Tais mobilidades, juntamente com seus enredos psicolgicos fascinantes e a

    privatizao da vida, nos impedem de detectar a lgica da feitura das verdades

    daquilo que somos, e a possibilidade de recus-la. Atravs da perspicaz ediode imagens e palavras, reencontramos a blindagem do sujeito asfixiado em si

    mesmo, assim como a inrcia de uma realidade exigindo-nos apenas

    reconhecimento ou identificao. (BAPTISTA, 2010, p. 61). Em tempos de

    totalitarismo fotognico tudo est previsto para ser transformado em imagem.

    Para a salvao dos que no se sentem capazes de tomar sua verdade

    existencial, territrios-padro encontram-se venda. Mapas de formas de

    existncia que se produzem como verdadeiros packs identitrios facilmenteassimilveis, em relao s quais somos simultaneamente produtores-

    espectadores-consumidores. Tais identidades so uma espcie de droga mais

    nociva que os narcticos e desconecta a subjetivao de seu processo intensivo

    vital e anestesia as tenses criando dependncias brutais.

    A ideologia do consumo, como chama Lefebvre, apagou a imagem do homem

    ativo, colocando em seu lugar a imagem do consumidor como razo de

    felicidade, como racionalidade suprema, como identidade do real como o ideal.(LEFEBVRE, 1991, p. 64). O objetivo ou o que acaba por legitimar esta

    sociedade a satisfao. Nossas necessidades satisfeitas. Lefebvre diz que

    esta necessidade se compara a um vazio, mas a um vazio bem definido, a um

    oco bem delimitado. E s o consumo pode fazer com que esse consumidor

    preencha esse vazio. O tempo todo, estimulado, reestimulado, provocado pelas

    mesmas manipulaes. E quando no saciado ele acometido pelo mal-estar

    da insatisfao.

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    As empresas de marketing alcanaram uma visibilidade nunca imaginada, e

    agora so o instrumento do controle social por excelncia. Diferente da

    disciplina, o controle exercido a curto prazo, em alta velocidade, de formacontnua e ilimitada. O homem no est mais trancafiado, mas endividado e

    envolvido. Mas, apesar de todas as mutaes sofridas pelo capitalismo que

    temos observados nos ltimos tempos, h ainda uma constante: a produo de

    misria da maior parte da humanidade, pobres demais para se endividarem e

    numerosos demais para encerr-las (DELEUZE, 1996, p. 284).

    Uma barreira imaginria separa os habitantes dos mundos s margens do

    universo teoricamente assegurado pelo capitalismo mundial integrado. Aconsistncia prpria dos seres humanos tem sido ignorada e encoberta por

    identidades-estigma, imagens fantasmagricas pelas quais so representados.

    Onde a misria material se confunde com misria subjetiva e existencial, e, mais

    ainda, com esta suposta identidade que fixa. Mapas geopolticos, cartografias

    de cores de pele, estilos de vida, cdigos de comportamento, classes de

    consumo, lnguas, sotaques, faixas de frequncia cultural, etc. (ROLNIK, 2003,

    p. 1-2). Fronteiras abstratas que so capazes de dirigir os desejos e os

    processos de subjetivao que fazem com que produzamos ns mesmos e

    nossas relaes com os outros atravs destas imagens.

    Atravs da lente embaada desta nova ordem, as redes que nos conectam com

    as potncias do mundo se tornam opacas e at invisveis. E, do que se

    consegue enxergar, s vemos em parte o que nos permitido, midiatizado, e de

    uma forma ou de outra, pertinente s redes que o poder constitui. Como

    poderia o Imprio atual manter-se caso no capturasse o desejo de milhes depessoas? Como se expandiria se no vendesse a todos a promessa de uma

    vida invejvel, segura e feliz? (PELBART, 2009, p. 20)

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    1.3 Do sujeito cotidiano

    Em 68, Lefebvre lanava seu livro chamado A vida cotidiana no mundo modernoe nos orientava sobre uma possvel cibernetizao da sociedade, onde a vida se

    organizaria como resultado de uma ao combinada em que as foras polticas

    e formas sociais convergem na orientao de consolidar, estruturar e tornar o

    cotidiano funcional. E para tanto, era necessrio atingir o ambiente urbano que

    era ento adaptado para esta programao.

    Segundo Lefebvre, enquanto a urbanizao se estendia, a cidade tradicional

    explodia e se buscava uma reconstituio prtica de uma espcie de unidade. Eos homens responsveis por esta sntese - socilogos, arquitetos, urbanistas,

    economistas, e demais tecnocratas - acabavam por apostar numa programao,

    e mesmo sem que fosse reconhecvel, uma robotizao da vida. Podendo

    prever-se as necessidades e deline-las, investindo na organizao do espao e

    do tempo e na vida dos homens, onde o desejo fosse encurralado (LEFEBVRE,

    1991).

    Segundo o autor, em sua banalidade, o cotidiano se constitui de repeties,gestos dentro e fora do trabalho, movimentos mecnicos (das mos, do corpo,

    de peas, dispositivos), horas, dias, semanas, meses, anos. Se constitui

    tambm das produes e das reprodues, dos recomeos, das retomadas, ou

    das transformaes. O homem cotidiano corre o risco de se fechar em suas

    trivialidades, seus afazeres, suas propriedades, seus bens e suas satisfaes, e

    algumas vezes se arrepende.

    A supresso do homem cotidiano pelas limitaes da rotina, da acomodao e

    da satisfao pe em risco a potncia de vida enquanto fora de inveno. A

    nossa potncia, enquanto fora de inveno, aquilo que convocado em

    nossos corpos quando se produz um certo tipo de paradoxo quando os planos

    que compem nossa subjetividade reagem entre si, entre o visvel e o invisvel,

    entre o plano das referncias decodificveis e o diagrama flexvel das

    sensaes.

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    Esta tenso entre os planos acaba estimulando o rompimento dos contornos

    das formas estabelecidas e impulsiona a subjetividade a reconfigur-los. Este

    o movimento de readequao temporria s novas formas que permanecem emnossa pele at que o processo de criao finalize. At que haja um novo

    paradoxo. Tudo isto o modo pelo qual constitumos nosso processo vital de

    subjetivao que, a cada vez, vai organizando e estabilizando novos contornos,

    enquanto desestabiliza e desfaz outros tantos.

    Apesar desta nossa capacidade de inveno, temos sido constantemente

    solicitados pelo mercado para a criao de territrios onde a formao esteja

    dissociada do processo pelo qual foi produzido, do substrato vital que haviaconvocado aquela fora, e passa a ter como princpio organizador a produo

    de mais-valia, que sobrecodifica o processo (ROLNIK, 2002). Esta a base do

    aparelho homogeinizador que produz o consenso, imprescindvel ao mercado.

    O capitalismo contemporneo se nutre e se intensifica por nossa fora de

    inveno, mas tambm pelo constante estado de tenso que dele decorre,

    estimulando cada vez mais novas reconfigurao em altssima velocidade.

    Nesse regime, no entanto, o estmulo a esta tenso no favorece a criao deterritrios singulares que se compatibilizem com os processos vitais. E nossa

    fora de inveno capturada pelo sistema que a utiliza a servio de seus

    interesses. Nossas vidas sobrecodificadas, tornam-se o combustvel de luxo do

    capitalismo mundial contemporneo, seu protoplasma (ROLNIK, 2002).

    Nunca se presenciou uma sistemtica to acentuada capaz de articular tantas

    conjunes praticamente ilimitadas entre as foras do homem e os diversos

    mini conjuntos do seu universo ambiente, e ao mesmo passo, nunca se viveuto encerrado no cotidiano, no limitado e no precrio que envolve um

    sucateamento to hostil da humanidade (ORLANDI, 2007).

    A liberao do homem tornou-se tambm a liberao do prprio sistema

    econmico. De repente os aspectos mais humanos do homem, seu potencial,

    sua criatividade, sua interioridade, seus afetos, tudo isso que ficava fora do ciclo

    econmico produtivo, e dizia respeito ao ciclo reprodutivo, torna-se matria-

    prima do prprio capital, ou torna-se o prprio capital (PELBART, 2009).

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    Inclusive a potncia que diferencia o artista do operrio passa a ser solicitada

    pelo capital.

    A nova ordem requer cada vez mais espaos dedicados ao cuidado de si eincentiva novas sensibilidades, novos prazeres, e cada vez mais as exigncias

    sobre si mesmo so multiplicadas: a valorizao do corpo, a proteo do copo,

    o cuidado do corpo, a segurana do corpo, o controle do corpo, o auto-controle

    do corpo. A cada dia surgem novas terapias, novos remdios, novas incises,

    tudo para reabilitar este corpo e torn-lo adequado ao trabalho e ao prazer.

    Torn-lo adequado a compartilhar os territrios do mercado. a valorizao

    extrema do corpo e tambm a sua decadncia. Observamos um sucateamentoda humanidade e de suas formas de existncia e coexistncia.

    Alm do mais, o trabalho do ser humano, dentro do capitalismo, tambm

    sempre envolveu algum grau de precariedade, a depender das conjunturas

    polticas e das relaes de poder dominantes. Segundo o economista italiano

    Andrea Fumagalli, quando o crebro e a vida do ser humano se integram em

    favor do trabalho, a noo entre o tempo de vida e o tempo de trabalho se

    perde. O autor ainda complementa: da que o individualismo contratual,transborda na subjetividade dos prprios indivduos, condiciona seus

    comportamentos e se transforma em precariedade existencial (FUMAGALLI,

    2008, p. 272).

    Dentro do corpo social, a condio precria de trabalho se converte numa

    postura individualista que tem como base de suas aes o fazer s suas custas

    e contra os outros e no descrdito de qualquer modo de proteo social no-

    individual. Ademais, quando a produo se socializa, qualquer servio social cobrado de ns mesmos e o individualismo como filosofia social torna-se

    hegemnico (FUMAGALLI, 2008: 278).

    A precariedade atinge tambm as relaes salariais. Quando no regime fordista,

    o salrio era o que caracterizava a remunerao, no capitalismo

    contemporneo, o que se manifesta uma remunerao de vida, uma renda de

    existncia. O que importa no a briga por altos salrios, mas a garantia da

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    continuidade da renda. Mesmo que no haja garantias nem acertos contratuais

    para uma relao de trabalho.

    Devemos ter em conta que ao mesmo passo que o corpo, juntamente com suapotncia de inveno, posto em evidncia e supervalorizado pelo mercado -

    desde que seja posto a trabalhar em favor de mais submisso - a apropriao

    de sua fora criativa pelo trabalho, e sua precariedade enquanto objeto de

    consumo impulsiona a colocao de territrios pr-programados para dentro de

    nossas vidas como um objeto qualquer. Ou seja, esta perda de si e a

    precarizao de si incentiva a busca por referncias exteriores para suprir as

    necessidades de reconhecimento pessoal enquanto ser integrado ao sistema devalores que se cr. E cobre-se de cinza e brilho a fora de inveno que

    capaz de nos fazer mover.

    Como sugere Lefebvre (1991), preciso que questionemos toda a

    cotidianidade. O homo sapiens, o homo faber, o homo ludens se transformaram

    em homo quotidianus, e nisso perdem at sua qualidade de homo. Ser o

    quotidianus ainda um homem? Ele virtualmente um autmato. Para que

    possamos repensar as nossas prticas como acontecimentos capazes de fazercom que ele reencontre a qualidade e as propriedades do ser humano, e

    reinaugure os processos subjetivos singulares e sensveis preciso que supere

    o cotidiano, d