maria rita teixeira silva koster
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LINGSTICOS E
LITERRIOS EM INGLS
MARIA RITA TEIXEIRA SILVA KSTER
A VISO DO SOBRENATURAL NAS PEAS DE CONOR MCPHERSON
So Paulo 2009
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LINGSTICOS E
LITERRIOS EM INGLS
A VISO DO SOBRENATURAL NAS PEAS DE CONOR MCPHERSON
MARIA RITA TEIXEIRA SILVA KSTER Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos Lingsticos e Literrios em Ingls, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. MUNIRA HAMUD MUTRAN
So Paulo 2009
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A
Klaus, Yuri e Natascha,
com muito amor, pela compreenso e incentivo
em todos os momentos desta caminhada.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo a todos que, direta ou indiretamente, participaram comigo na elaborao
desta dissertao.
Profa. Dra. Munira Hamud Mutran, por sua valiosa orientao, pelas inmeras
leituras do meu trabalho, pela afeio, amizade e incentivo.
Profa. Dra. Beatriz Kopschitz Xavier Bastos pela inspirao, amizade e todo apoio
desde o incio desta jornada.
minha me e familiares pelo apoio e compreenso quando minha ausncia se fez
necessria.
Profa. Dra. Zoraide Rodrigues Carrasco de Mesquita e Profa. Dra. Maria Silvia
Betti pelas sugestes e colaborao na banca de qualificao.
Fabiana Rodrigues Dias pela amizade, companheirismo e preciosas sugestes.
Sandra Mary Stevens pelo incentivo e carinho em todos os momentos.
s amigas Elaine Rodrigues da Silva e Maria Eugnia DEspsito pelas leituras,
reviso e formatao.
Aos colegas do Grupo de Estudos Irlandeses (GEI) e aos membros da Associao
Brasileira de Estudos Irlandeses (ABEI) com os quais tive oportunidade de conviver.
Universidade de So Paulo e ao programa de Ps-Graduao em Estudos
Lingsticos e Literrios em Ingls, pela oportunidade de desenvolver esta
dissertao.
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RESUMO
A presente dissertao examina os diferentes elementos do sobrenatural
encontrados em trs peas do dramaturgo irlands Conor McPherson: St Nicholas
(1997), The Weir (1997) e The Seafarer (2006). Observa-se que o uso do
sobrenatural recorrente em sua obra, embora ele empregue elementos diferentes
em cada uma das peas com o objetivo de retratar as angstias e os problemas
existenciais do homem contemporneo. St Nicholas uma pardia das histrias de
vampiros, em The Weir o autor recorre tradio oral irlandesa do contador de
histrias e em The Seafarer re-escreve a lenda de Fausto.
PALAVRAS-CHAVE
SOBRENATURAL VAMPIRO CONTAR HISTRIAS MONLOGO TEATRO
IRLANDS
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ABSTRACT
The present dissertation examines different elements of the supernatural
found in three plays by the Irish playwright Conor McPherson: St Nicholas (1997),
The Weir (1997) and The Seafarer (2006). The supernatural is a recurrent feature in
McPhersons work, although he makes use of different elements in each of his plays
with the aim of depicting the anxieties and existential problems of contemporary man.
St Nicholas is a parody of vampire stories; in The Weir the author resorts to the Irish
oral tradition of storytelling; and in The Seafarer he rewrites Fausts legend.
KEY WORDS
SUPERNATURAL VAMPIRE STORYTELLING MONOLOGUE IRISH
THEATRE
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SUMRIO
INTRODUO.......................................................................................p.08 CAPTULO 1 St. Nicholas: Um Crtico de Teatro entre Vampiros ...............................p.23 CAPTULO 2 The Weir: O Efeito de Histrias Sobrenaturais ......................................p.46 CAPTULO 3 The Seafarer: O Fausto Contemporneo ............................................. p.70 CONSIDERAES FINAIS...................................................................p.94 BIBLIOGRAFIA.....................................................................................p.104
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INTRODUO
O dramaturgo, diretor e roteirista de cinema Conor McPherson um dos mais
bem sucedidos representantes da mais jovem gerao do teatro irlands. Nasceu
em Dublin em 1971 e em 1988 estudou filosofia e literatura no University College
Dublin (UCD). Escreveu e dirigiu suas primeiras peas para o grupo de teatro
amador Dramsoc da universidade: Taking Stock (1989), Michelle Pfeiffer (1990),
Scenes Federal (1991) e Inventing Fortunes Wheel (1991). Em 1992, iniciou seus
estudos de ps-graduao em filosofia e tica e criou uma companhia de teatro, Fly
By Night com colegas do UCD. Para esse grupo, McPherson escreveu e dirigiu as
peas Radio Play (1992), A Light in the Window of Industry (1993) e The Stars Lose
Their Glory (1994) exibidas no International Bar no centro de Dublin. Embora tenha
recebido elogios, McPherson considera essas primeiras peas como exerccios e
no tem planos de encen-las novamente ou de public-las.
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Seu mestrado em filosofia resultou na dissertao Logical Constraint and
Practical Reasoning: On Attempted Refutations of Utilitarianism (1993), cujo objetivo
seria ilustrar os princpios que levam ao pensamento tico, discutindo teorias e
conceitos ligados justia, moral e virtudes. Quando estive em Dublin no
University College (UCD) tive oportunidade de examinar esse trabalho que possui
ampla bibliografia na rea de tica e utilitarismo.
Embora tenha iniciado sua carreira de dramaturgo aos 17 anos, McPherson
acredita ter encontrado uma maneira prpria de escrever s em seu primeiro
monlogo, Rum and Vodka, encenado em 1992 na universidade em Dublin
(McPHERSON, 1999, p.179) *. Em outubro de 1994, McPherson foi agraciado com
o Stewart Parker Award por The Good Thief (1994), pea apresentada no festival de
teatro em Dublin. Este segundo monlogo tambm foi uma porta de entrada para o
cinema, pois o produtor irlands Robert Walpole e o diretor Paddy Breathnach,
impressionados com o trabalho de McPherson, decidiram convid-lo para escrever o
roteiro de um filme, I Went Down (1997) - o filme foi premiado como melhor roteiro
no festival de cinema em San Sebastian no mesmo ano.
Apesar do sucesso das duas peas, Conor McPherson cita seu terceiro
monlogo - This Lime Tree Bower como sendo o grande impulsionador de sua
carreira (McPHERSON, 2004b, p.211). Primeiramente encenado em 1995 no Crypt
Arts Centre, em Dublin, foi transferido dez meses depois para o Bush Theatre em
Londres, onde recebeu vrios prmios. (Thames TV Award, Guinness/National
Theatre Ingenuity Award e Meyer-Whitworth Award). McPherson tornou-se, ento,
escritor residente do Bush Theatre, onde escreveu e encenou St. Nicholas (1997).
No mesmo ano, publicou seus quatro primeiros monlogos pela editora londrina Nick
Hern Books.
A partir dessa poca, suas peas passam a ser produzidas primeiramente em
Londres e depois transferidas para Dublin e remontadas nos Estados Unidos. The
Weir, por exemplo, teve sua premiere no Royal Court Theatre Upstairs em Londres
em 1997 e foi transferida para o Royal Downstairs em fevereiro de 1998; em julho foi
encenada em Dublin, no Gate Theatre, e em 1999 estreou na Broadway. Todas as
montagens de The Weir foram dirigidas por Ian Rickson, mas o dramaturgo se fez
* But Rum and Vodka is the play with which I think I found my voice. People will always associate me with the success of The Weir, but Lime Tree was where I felt I really hit something. Where it really connected with the audience. That was a huge play for me.
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presente na escolha do elenco, nos primeiros ensaios em Londres bem como em
uma apresentao em Nova York (nesse caso, apenas como espectador). Outras
peas que tambm alcanaram fama internacionalmente so: Dublin Carol (2000),
Port Authority (2001), Come on Over (2001), Shining City (2004) e The Seafarer
(2006). McPherson dirigiu tambm a pea Eden (2001) de Eugene OBrien para o
Abbey Theatre, e os filmes Saltwater (2001), baseado em sua pea This Lime Tree
Bower, Endgame (2001) feito para a srie Beckett on Film do Channel Four e The
Actors (2003) com roteiro baseado numa histria de Neil Jordan cineasta e
dramaturgo irlands, diretor de Michael Collins - O Preo da Liberdade (1996) e
Entrevista com o Vampiro (1994), entre outros filmes de sucesso.
Embora Conor McPherson seja um diretor de teatro e cinema, alm de
roteirista, nosso estudo tem como foco principal suas peas; no nossa inteno
examinar seus filmes em detalhe. At o presente momento, McPherson publicou dez
peas. Seus quatro primeiros monlogos foram includos em Conor McPherson:
Four Plays, em 1999, com um posfcio do autor. Em Rum and Vodka (1992), um
monlogo dividido em duas partes, o narrador relata o que lhe aconteceu nos trs
dias depois de ser despedido por beber durante o expediente. Em The Good Thief
(1994), o protagonista conta o incidente que o levou a cumprir pena de dez anos por
sequestro. J em This Lime Tree Bower (1995), trs narradores se intercalam
expondo os acontecimentos que mudaram suas vidas. Em St. Nicholas (1997), o
protagonista um crtico de teatro que relata a poca em que viveu na casa de
vampiros em Londres.
The Weir (1997) foi a pea de Conor McPherson que recebeu maior ateno
de pblico e crtica at o presente momento ficou dois anos em cartaz em Londres.
Em The Weir, os monlogos assumem mais a forma de storytelling, pois as
personagens o dono de um bar isolado no interior da Irlanda (Brendan), trs
clientes regulares (Jack, Jim e Finbar) e uma mulher (Valerie), que acaba de se
mudar de Dublin para uma casa da regio, contam histrias sobrenaturais enquanto
tomam cerveja.
Em 2004 The Weir foi republicada em uma segunda coletnea sob o ttulo,
McPherson Plays: Two, incluindo tambm as peas: Dublin Carol, Port Authority e a
indita Come on Over, juntamente com um posfcio do autor. Em Dublin Carol
(2000), o agente funerrio John Plunkett conversa com seu assistente Mark e
relembra os funerais de que j participou. John recebe, ento, a visita de sua filha
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Mary forando-o a fazer uma retrospectiva de sua prpria vida, revelando
oportunidades perdidas e promessas no cumpridas. Em seguida, marcam um
encontro para mais tarde, a fim de juntos irem visitar a me de Mary, ex-esposa de
John, que est hospitalizada com cncer em fase terminal. Em Port Authority (2001),
McPherson retorna forma de monlogo com trs narradores que se alternam para
contarem episdios de suas vidas. Kevin, vinte anos, sai da casa dos pais para
morar com uns amigos e sua amiga, Clare, por quem est apaixonado. O segundo
narrador, Dermot, com cerca de trinta e cinco anos, nos primeiros dias de seu novo
emprego, descobre que s obteve o lugar porque seu empregador o confundiu com
outra pessoa. O terceiro narrador, Joe, setenta anos, mora num lar para idosos e
recebe um pacote misterioso, que o faz relembrar uma breve paixo, nunca
declarada, pela mulher de seu vizinho, anos atrs. A ltima pea deste volume
Come on Over (2001), foi encenada para o festival de teatro de 2001 em Dublin
como parte de um espetculo intitulado Three New Irish Plays, juntamente com The
Yalta Game, de Brian Friel e White Horses, de Neil Jordan. Come on Over a
histria de Matthew e Margaret, namorados na adolescncia, que se re-encontram
aos cinquenta anos. Ele um jesuta que investiga milagres para o Vaticano e ela
gerencia uma pousada na zona rural da Irlanda. Matthew enviado para investigar o
corpo de uma menina preservado por 400 anos e, durante sua ltima noite na
pousada de Margaret, trocam carcias ntimas. No incio da pea, os dois atores,
encapuzados, falam diretamente com a platia; a partir da metade da pea at sua
concluso se entreolham e dialogam breve e esporadicamente.
A nona pea de McPherson, Shining City (2004), foi uma co-produo do
Royal Court Theatre, em Londres e do Gate Theatre em Dublin. Sob a direo do
autor, foi encenada primeiramente no Royal Court Jerwood Theatre Downstairs em
julho de 2004 e teve sua premiere no Gate em setembro de 2004. J em maio de
2006, Shining City estreia no Biltmore Theatre em Nova York, sob a direo de
Robert Falls e posteriormente em Chicago no Goodman Theatre, sob a mesma
direo. Em Shining City, estamos em Dublin e John, perturbado pela morte recente
da esposa (Mari), cujo fantasma est vagando pela casa, procura o psiclogo Ian
que - cheio de problemas - tambm busca um novo caminho para sua vida. Ao longo
da pea, encontramos mais duas personagens: Neasa, ex-esposa de Ian e me de
sua filha Aisling, e Laurence, garoto de programa que ir proporcionar a Ian sua
primeira experincia homossexual. Observa-se em Shining City o encontro entre o
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real e o irreal, o medo, o desejo e a culpa, enfim os sentimentos que percorrem os
labirintos da alma numa luta que ir contribuir para definir dois homens - paciente e
terapeuta - e mudar o rumo de suas vidas. No final, depois que John entrega um
presente de agradecimento para Ian e vai embora, o terapeuta permanece em cena
empacotando suas coisas, pois tambm est de partida. Est um tanto escuro, trata-
se de fim de tarde e vemos o fantasma de Mari aparecer por trs de Ian, vestindo as
mesmas roupas descritas por John na primeira cena e tambm com os cabelos
molhados. Ian vira-se, como se pressentisse alguma coisa e apagam-se as luzes.
A mais recente pea de Conor McPherson, The Seafarer, teve sua premiere
em Londres no auditrio Cottesloe do National Theatre em setembro de 2006.
Depois, de fevereiro a maro de 2007, saiu em turn pela Inglaterra com
apresentaes em Brighton, Bath, Cambridge, Coventry, Salford e Newcastle. Em
dezembro de 2007, estreou no Booth Theatre em Nova York e ficou em cartaz at
maro de 2008. E finalmente, em maio de 2008 vai para o Abbey Theatre em Dublin,
numa curta temporada, devendo retornar em dezembro de 2009. A pea se passa
numa casa velha em Baldoyle, que fica na costa norte da cidade de Dublin.
vspera de Natal e Sharky est de volta para cuidar de seu irmo Richard que ficou
cego recentemente. Os amigos Ivan e Nicky aparecem e trazem o estranho senhor
Lockhart para um jogo de cartas. No fim do primeiro ato, somos informados de que
h vinte e cinco anos Sharky e Lockhart j haviam jogado cartas juntos e que agora
Lockhart quer a revanche; descobrimos que a alma de Sharky que est em jogo e
Lockhart seria o demnio, que veio busc-la.
Embora Conor McPherson tenha sido aclamado como um dos mais recentes
gigantes literrios da Irlanda (CUMMINGS, 2000, p.304)*e tenha dez peas
publicadas, muitas delas com duas ou trs montagens em diferentes cidades e
pases, sua fortuna crtica ainda no to ampla. Apesar de muitas resenhas
publicadas em jornais sobre suas peas, os trabalhos acadmicos relacionados
sua obra no so to numerosos. Contudo, podemos dizer que a fortuna crtica do
dramaturgo est se expandindo gradativamente.
Em 2003, foi lanado o primeiro livro inteiramente dedicado ao seu trabalho,
Conor McPherson: Imagining Mischief de Gerald C. Wood. Nesse livro, Gerald
Wood analisa detalhadamente oito peas de McPherson, de Rum and Vodka (1992) * In London and New York, he was, before the age of thirty, Irelands latest literary giant (CUMMINGS, 2000, p.304).
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at Come on Over (2001). As peas Shining City e The Seafarer ainda no haviam
sido escritas. O livro inicia-se com uma cronologia da vida e obra do autor desde seu
nascimento em 1971 at o futuro lanamento de The Actors (2003), filme que no
muito discutido por Wood. Na introduo, o crtico expe brevemente a fase inicial
da obra de McPherson. O segundo captulo dedicado anlise dos quatro
primeiros monlogos: Rum and Vodka (1992), The Good Thief (1994), This Lime
Tree Bower (1995) e St. Nicholas (1997). Cada uma dessas peas vista como
diferente e experimental, revelando a afinidade natural de Conor McPherson com a
figura do tradicional contador de histrias irlands, o Seancha ou shanachee*. No
terceiro captulo, destinado exclusivamente a anlise de The Weir, h uma reflexo
sobre o ttulo e algumas informaes sobre a recepo dessa pea de McPherson.
Em seguida, os filmes I Went Down e Saltwater so discutidos; este captulo tambm
contm uma breve descrio da adaptao que McPherson fez da pea Endgame
para o projeto Beckett on Film e algumas informaes sobre The Actors, ainda em
manuscrito na poca da anlise. No quinto captulo intitulado Recent Plays: Nowhere
Except Towards Each Other, Wood discute Dublin Carol (2000), Port Authority
(2001) e Come on Over (2001), concluindo que estas peas mostram que
McPherson continua experimentando novas formas teatrais como, por exemplo, o
uso de monlogos intercalados em Port Authority, onde so relatadas histrias de
vida diferentes. Wood tambm menciona a temtica do dramaturgo, ele explica que
nas trs peas acima citadas, as personagens do os primeiros passos em direo
responsabilidade perante suas prprias vidas; o que contrasta com os protagonistas
dos dois monlogos iniciais, Rum and Vodka e The Good Thief. Nas peas mais
recentes as personagens j demonstram empatia e compaixo pelas outras,
tambm segundo o autor, algumas aceitam suas limitaes e percebem a
necessidade de buscar ou aceitar ajuda, enquanto outras notam que devem se
cuidar melhor e ajudar seus familiares. No sexto captulo, o crtico procura definir se
podemos considerar McPherson um escritor irlands tpico, comentando que ele faz
parte de um novo tipo de exlio irlands, aquele em que o escritor continua morando
na Irlanda, mas seus trabalhos so lanados em Londres num primeiro momento e
com temas que tambm buscam uma universalidade. Inicialmente, as peas de
McPherson no foram recebidas de braos abertos dentro da Irlanda, pois
* Seancha ou shanachee, denominao dada ao tradicional contador de histrias irlands. (MARCUS, 2007, vii).
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obscenidades, fuga da forma dramtica tradicional - onde a ao se desenrola
principalmente atravs do dilogo entre os protagonistas - e fins inesperados eram
vistos com estranhamento pelo pblico irlands; no entanto, na Inglaterra e nos
Estados Unidos, estes aspectos foram recebidos positivamente como um sinal da
natureza experimental do trabalho de McPherson, que tido como um autor de
comdias dotado de uma viso prpria. Ainda que McPherson faa uso do humor
em suas peas, no acreditamos que as mesmas possam ser rotuladas de
comdias. O aspecto mais importante deste livro dedicado a obra de Conor
McPherson uma entrevista com o dramaturgo realizada em dois momentos, junho
de 2001 e novembro de 2001. Na primeira parte, McPherson discute o processo
criativo de seu trabalho, explica que as ideias para as histrias aparecem como se
fossem um filme. O dramaturgo comenta que se a histria se passa em um s lugar -
como em Dublin Carol e The Weir - ele d preferncia para a forma dialogada, mas
se a histria acontece em ambientes diversos, ele recorre ao monlogo ou mesmo
ao filme. McPherson explica que procura escrever por perodos de no mximo uma
hora; no entanto, entre um perodo e o prximo fica pensando em todos os aspectos
da histria que est sendo trabalhada e costuma revisar seus textos at mesmo
durante os ensaios quando aceita a colaborao dos atores na hora de omitir falas
consideradas desnecessrias.
As soon as actors start saying what I have written, I see how much of
it I dont need. I just know when an actors doing something more naturally
than Ive written. If Ive got good judgement, and I hope I do, I am going to
throw out my precious thing, my precious joke, whatever it is, which no one is
getting. If things are left unsaid, you wonder about them more just as you
wonder about real people. (McPHERSON, apud WOOD, 2003, p.125)
Pode-se observar que o dramaturgo considera seu texto terminado somente depois
do incio da produo da pea; durante os ensaios, falas e cenas so alteradas. A
entrevista prossegue com comentrios sobre as peas Dublin Carol, Port Authority
e Come on Over, bem como sobre seus filmes.
A bibliografia de Imagining Mischief contm artigos publicados em livros,
jornais e revistas sobre a obra do autor. Observa-se que h mais resenhas das
peas do que artigos propriamente ditos e s dois deles haviam sido publicados em
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livros; os livros mencionados so The Full Room: An A-Z of Contemporary
Playwriting de Dominic Dromgoole e Theatre Stuff: Critical Essays on Contemporary
Irish Theatre editado por Eamonn Jordan. No entanto, h um nmero considervel
de resenhas das peas e filmes publicadas principalmente nos jornais: New York
Times, Irish Times, The Times, Times Literary Supplement e The Guardian ou em
revistas, tais como Variety, Village Voice e Time Out New York.
Em Theatre Stuff: Critical Essays on Contemporary Irish Theatre (2000) o
artigo de Scott T. Cummings, Homo Fabulator: the narrative imperative in Conor
McPhersons plays, examina brevemente os monlogos Rum and Vodka (1992),
The Good Thief (1994), This Lime Tree Bower (1995) e St. Nicholas (1997) e, com
mais detalhes, a pea The Weir (1997). O principal tpico abordado a importncia
crucial de histrias nas relaes humanas: as histrias contadas em The Weir, por
exemplo, tm o poder de consolar em casos de perdas, solido e arrependimentos,
tornando-se pontes que interligam as vidas das personagens da pea.
Consideramos o artigo de Cummings de suma importncia na anlise crtica da pea
The Weir.
Nicholas Grene cita Conor McPherson na concluso de seu livro The Politics
of Irish Drama: Plays in context from Boucicault to Friel (1999), explicando que The
Weir no pode ser vista s como uma pea sobre a Irlanda, embora apresente
temas que sempre estiveram relacionados ao pas, tais como oposio entre rural e
urbano, celibato ou casamento tardio entre os homens e a viso da mulher como
objeto de desejo sexual numa sociedade reprimida. Para Nicholas Grene, tais temas
e o cenrio da pea, um pub irlands na isolada rea rural, chamam a ateno do
pblico de Londres, Nova York e at mesmo de Dublin, pois a viso romntica e
mistificada da Irlanda rural ainda bastante presente para algumas pessoas que
vivem em grandes centros urbanos. Segundo o crtico, o drama irlands tornou-se
uma moeda no mercado internacional de entretenimento e esse fenmeno capaz
de gerar dois tipos de resultados: por um lado, permite que escritores de talento
como Frank McGuinness, Sebastian Barry e Conor McPherson atinjam sucesso
rapidamente; por outro lado, faz com que dramaturgos de originalidade duvidosa,
como Martin McDonagh, alcancem sucesso manipulando essa frmula da pea
irlandesa que j bem conhecida. No compartilhamos a ideia de que McDonagh
explore esteretipos irlandeses, com a inteno de vender mais o seu trabalho. A
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nosso ver, suas peas retratam a problemtica do individualismo humano de uma
forma diferente e com uma viso mais pessimista do que McPherson.
Em artigo publicado no Brasil no livro Kaleidoscopic Views of Ireland, editado
por Munira Mutran e Laura Izarra em 2003, Nicholas Grene volta a citar McPherson,
desta vez como sendo o dramaturgo mais comprometido com o monlogo no drama
irlands contemporneo. Grene avalia como o espao representado no drama
irlands; comeando com as peas de W.B.Yeats, J.M. Synge e Lady Gregory, onde
a cottage kitchen ou o pub, no palco, tambm representam uma comunidade ou at
a nao a Irlanda - ou seja, o particular universalizado. Grene segue
comentando a representao de um auditrio no palco, como em Faith Healer de
Brian Friel e em Port Authority, com a rubrica de McPherson, The play is set in the
theatre a pea se passa no teatro. Aqui no h mais a quarta parede e os trs
personagens-narradores dirigem-se ao pblico, sem interao entre eles, sem
movimentos de cena e sem efeitos visuais. O que importa agora a histria a ser
contada. Para Grene, essas narrativas so como fbulas sobre identidade, amor e
falta de amor, emoes individuais e universais ao mesmo tempo. O teatro torna-se
ento o espao onde essas narraes em tom confessional acontecem e, ao invs
de representarem a comunidade ou nao, essas narrativas se auto-representam.
No artigo Ireland in Two Minds: Martin McDonagh and Conor McPherson,
publicado em 2006 num livro sobre a obra de Martin McDonagh*, Nicholas Grene
traa um paralelo entre a primeira pea de McDonagh, The Beauty Queen of
Leenane (1996) com The Weir e mostra que as duas peas representam vises
diferentes e estereotipadas da Irlanda que esto presentes no imaginrio do pblico.
Num primeiro momento, Grene explica que tanto The Beauty Queen of Leenane
quanto The Weir mostram a Irlanda rural do ponto de vista da cidade; pois,
McDonagh e McPherson so autores que vivem em Londres e Dublin e passavam
as frias escolares no campo, na regio de Connemara, oeste da Irlanda. Para o
crtico, o tema central de The Beauty Queen of Leenane a relao violenta entre
me e filha como uma forma de desmistificar a Irlanda rural; segundo ele, este tema
j foi explorado em peas anteriores com, por exemplo, Bailegangaire (1985) de
Tom Murphy. Embora no possamos descrever o pub como idlico, The Weir possui
uma atmosfera bem diferente do tdio e brutalidade expressos na Lennane de
* CHAMBERS, L. & JORDAN, E. (Eds.).The Theatre of Martin McDonagh: A World of Savage Stories. Dublin: Carysfort Press, 2006, 42-59.
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Beauty Queen; a micro-comunidade que encontramos no pub de The Weir gentil e
acolhedora. Outro ponto destacado no artigo o fato de que as duas peas retratam
o fim da dcada de 90; porm, os dramaturgos trabalham com a oposio o
antiquado versus o moderno de maneira diferenciada. Enquanto Beauty Queen est
centrada no conflito entre o arcaico e o moderno, pois as personagens esto presas
entre o passado mtico sufocante e as banalidades modernas assistidas pela
televiso, The Weir procura derrubar essa diferena, ao mostrar que solido,
abandono, perverso sexual e morte so experincias humanas comuns tanto na
vida rural quanto na vida urbana, tanto no passado quanto no presente. O terceiro
ponto mencionado por Grene refere-se oposio entre conflito e consolao.
Beauty Queen, com toda sua violncia, representa o conflito, ainda to presente
para muitas pessoas quando se fala em Irlanda. The Weir, no entanto, simula a
solidariedade encontrada em comunidades pequenas que vivem em lugares
remotos. Deste modo, Beauty Queen representaria a viso da Irlanda sempre em
conflito e The Weir a Irlanda pastoral, um lugar a parte, onde se pode encontrar a
inocncia dos tempos pr-modernos. Grene comenta que o fato destas duas vises
diferentes ainda serem to presentes, explica a razo do sucesso de duas peas to
distintas. Para ele, aqueles que apreciam a pea de McDonagh devem achar a de
McPherson muito sentimental; e os que gostam de The Weir, acham Beauty Queen
cruel.
Nicholas Grene no o nico a comparar essas duas peas; Brad Kent, da
Concrdia University em Montreal, examina as mesmas peas em seu artigo
intitulado McDrama: The sentimental in Martin McDonaghs The Beauty Queen of
Leenane and Conor McPhersons The Weir publicado na edio dupla do peridico
Canadian Journal of Irish Studies em 2003. Para ele, o fato de as peas estarem
situadas no oeste da Irlanda, regio dos cartes postais e calendrios, terra de mitos
e fadas e a rea mais procurada por turistas, refora ideias estereotipadas do que
ser irlands e da Irlanda tida como autntica e sentimental. Kent acredita que ao
procurar derrubar tais esteretipos, as peas acabam por refor-los e ambas fazem
sucesso internacionalmente porque os irlandeses, sua terra e sua cultura so tidos
como mercadorias valiosas no turismo cultural.
The Weir tambm analisada detalhadamente no artigo de Eamonn Jordan,
Pastoral Exhibits: Narrating Authenticities in Conor McPhersons The Weir,
publicado em 2004 no peridico Irish University Review vol. 34 n.2. Eamonn Jordan
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considera a pea como meta-pastoral; ele explica que as histrias narradas retomam
o passado, dando-lhe uma nova coerncia e delineando novas posies as
personagens na sequncia de suas vidas. Interessante observar que a histria de
Valerie - personagem vinda da cidade que ir gerar mudana nas outras
personagens, pois apenas atravs de sua narrativa que os moradores do campo
enfrentam suas realidades. Eamonn Jordan tambm examina a funo do espao
narrativo, o bar ou pub, lugar comunitrio e isolado, que se torna um elemento chave
para promover o relaxamento necessrio a essa troca de experincias pessoais,
moldadas como narrativas, que representariam portas de entradas para um mundo
privado e realidades que no seriam acessveis atravs de interaes como o
dilogo comum.
Em Critical Moments: Fintan OToole on Modern Irish Theatre (2003), editado
por Julia Furay e Redmond OHanlon, h uma resenha de The Weir referente noite
de lanamento em Nova York no Walter Kerr Theatre em abril de 1999. Fintan
OToole esclarece que no h um enredo complexo, no acontece nada durante a
pea, as personagens se encontram em um pub, contam suas histrias enquanto
bebem e saem no final. No entanto, as histrias sobrenaturais criam um caminho
para explicar os sentimentos diante da perda de um ente querido. Para OToole, o
eixo central de The Weir a morte e a necessidade de encontrarmos uma
linguagem apropriada para que possamos expressar os sentimentos que veem
tona diante dela. Fintan OToole conclui que a pea traz um senso de dignidade
profundo, mostrando que, as vezes, o que nos assombra no so os fantasmas e
sim a memria dos que nos deixaram.
Em Ireland on Stage: Beckett and After (2007), editado por Hiroko Mikami,
Minako Okamuro e Naoko Yagi, o artigo de Naoko Yagi, Multiple Monologues as a
Narrative: From Beckett to McPherson, examina o uso do monlogo no teatro de
Samuel Beckett, Harold Pinter, Brian Friel e Conor McPherson. Em sua anlise, Yagi
menciona brevemente This Lime Tree Bower (1995) e se atm mais a Port Authority
(2001), onde as personagens Kevin, Dermot e Joe narram histrias bem particulares
de suas vidas dentro do teatro - que acaba adquirindo uma conotao quase
religiosa - com o palco transformando-se num grande confessionrio e o
pblico/espectadores assumindo o papel de padre/ouvinte. Este artigo til para
analisarmos a questo do monlogo tambm nas outras peas de McPherson, pois
pode-se verificar que tais comentrios aplicam-se s demais peas do dramaturgo.
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19
Em Suspect Cultures, Clare Wallace (2006b) tambm analisa os monlogos
de McPherson no captulo intitulado Solitary Micronarratives, no qual a autora
examina mais detalhadamente St Nicholas porque, segundo ela, uma pea que
levanta questes pertinentes para a compreenso de toda a obra inicial do
dramaturgo. Wallace investiga o uso do monlogo como recurso para a quebra de
iluso e lembra que forma e contedo esto entrelaados nas narrativas das peas
iniciais do autor. Num outro livro editado por Clare Wallace (2006a), Monologues
Theatre, Performance, Subjectivity, encontramos trs artigos que abordam o uso do
monlogo e narrativas no teatro irlands da dcada de 1990. Look Whos Talking,
Too: The Duplicitous Myth of Nave Narrative, de Eamonn Jordan, fornece uma
explicao muito interessante para a proliferao dos monlogos na Irlanda
contempornea e identifica quatro tipos diferentes de monlogos nessa dcada,
exemplificando com algumas peas de McPherson. No segundo artigo intitulado Am
I Talking to Myself? Men, Masculinities & the Monologue in Contemporary Irish
Theatre, Brian Singleton discute: Howie the Rookie, de Mark ORowe; Cold Comfort,
de Owen McCafferty; bem como as peas: Rum and Vodka, This Lime Tree Bower e
Port Authority de Conor McPherson. O terceiro artigo, significativo para este
trabalho, Will the Wordy Body Please Stand Up? The Crises of Male
Impersonation in Monological Drama Beckett, McPherson, Eno, de Eckart Voigts-
Virchow e Mark Schreiber. Segundo os autores, nas peas de McPherson, a forma
de monlogo representa uma maneira de compartilhar narrativas entre ator, platia e
escritor, e a maioria das histrias tem como temtica a crise da masculinidade, pois
o dramaturgo leva ao palco personagens masculinas perdidas e sem esperanas,
que precisam desesperadamente dividir suas angstias com o pblico.
Encontramos breves referncias a Conor McPherson no livro de Christina
Hunt Mahony, Contemporary Irish Literature: Transforming Tradition (1998) e em The
Full Room: An A-Z of Contemporary Playwriting (2002) de Dominic Dromgoole
Ambos consideram o dramaturgo como uma voz promissora no teatro
contemporneo.
A apresentao do que j se escreveu sobre Conor McPherson reveste-se de
importncia porque o dramaturgo ainda pouco conhecido entre o pblico brasileiro;
esperamos com este trabalho proporcionar possibilidades para futuros estudos e
tradues de sua obra.
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Cinco das dez peas de Conor McPherson publicadas at o presente
momento tm elementos do sobrenatural; todavia, nenhum artigo lido trata tal
aspecto em profundidade. Alm disso, The Seafarer ainda no recebeu ateno da
crtica. Portanto, por se tratar de um recurso to recorrente na obra do dramaturgo e
ainda pouco abordado por crticos e estudiosos, escolhemos como foco de nossa
pesquisa a viso do sobrenatural na obra de Conor McPherson.
O termo sobrenatural utilizado para designar algo que foge do padro,
inusitado, capaz de gerar medo ou estranhamento por ser incomum; as pessoas
costumam temer o que no conhecem e por isso algo considerado fora do comum
pode ser to espantoso. Segundo Marie Mulvey-Roberts (1998), em The Handbook
to Gothic Literature, esse termo engloba todas as reas alm do mundo natural,
sendo geralmente usado para nomear criaturas fantsticas e foras demonacas que
possam existir em dimenses paralelas s foras que regem nossa existncia fsica.
A crena no sobrenatural parece ser uma caracterstica de praticamente todas as
sociedades; embora o significado possa diferir de uma comunidade para outra,
existe um consenso de que as criaturas e foras sobrenaturais possuem algumas
habilidades especficas, tais como atravessar a fronteira entre a vida e a morte,
transcender os limites entre o tempo e o espao, mover entre o visvel e o invisvel,
viajar entre o mundo espiritual e material. Ainda, segundo a autora, os seres do
mundo sobrenatural possuem muitos poderes e so capazes de se manifestar para
os seres humanos por sua prpria vontade ou se forem invocados. Essas foras
invadem o mundo real o plano humano ou terreno em forma de acontecimentos
espantosos, horripilantes ou mesmo como milagres. Portanto, podem ser foras
satnicas - representantes do Mal - ou foras do Bem: como anjos ou guias
espirituais.
Ao falar em sobrenatural, lembramos da chamada fico gtica, que
despontou no sculo XVIII, na Inglaterra, com a obra The Castle of Otranto, de
Horace Walpole, publicada em 1764, e que tinha como subttulo a expresso: A
Gothic Story. Os principais elementos dos contos gticos seriam ambientes sombrios
como runas e castelos medievais e seus respectivos pores, criptas e passagens
secretas, habitados por fantasmas, demnios, esqueletos e outras criaturas
sobrenaturais; bem como personagens enigmticas e misteriosas, sendo que
geralmente as personagens femininas encontravam-se em apuros para serem
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salvas pelo heri. Outros autores frequentemente associados ao gnero gtico so:
Ana Radcliffe, Mathew Gregory Lewis e Mary Shelly. Jeffrey N. Cox observa que o
drama gtico, embora no to estudado quanto os romances, tambm era popular
no fim do sculo XVIII e Horace Walpole escreveu a primeira pea considerada
gtica, The Mysterious Mother (1768). No entanto, a maioria das peas gticas eram
adaptaes dos romances e contos; durante a dcada de 1790, o foco na
personagem heri-vilo - aristocrata carismtico, torturado e violento - oferecia um
tipo diferenciado de tragdia, pois mesclava o drama srio com outras formas como
a comdia, o romance e a pera (COX, 1998, p. 75). Segundo Massaud Moiss,
considera-se o fim do perodo ureo da fico gtica a narrativa Malmoth the
Wanderer, publicada em 1820, do irlands Charles Robert Maturin (2004, p.212);
esta obra uma mistura de Fausto com a legendria figura do Judeu Errante.
W. J. McCormack (1992), em Irish Gothic and After, observa que Charles
Robert Maturin (1782-1824), Joseph Sheridan Le Fanu (1814-73) e Bram Stoker
(1847-1912) so sempre lembrados como os trs maiores representantes da
literatura gtica irlandesa; no entanto, o estudioso refuta a ideia de que exista na
Irlanda uma tradio gtica nos mesmos moldes da literatura gtica da Inglaterra.
Ele acredita que na Irlanda, alguns escritores abordaram certas situaes que
historicamente eram especficas do pas, utilizando-se de elementos gticos em
seus trabalhos, como por exemplo, a apario de fantasmas, vampiros, fadas ou
outros seres do mundo sobrenatural.
Parte desse mundo sobrenatural pode ser visto nas peas de Conor McPherson.
Ao longo de nossa pesquisa foi recorrente a pergunta: com que intuito o dramaturgo
usa to largamente o sobrenatural no fim do sculo XX e incio do XXI, era da
cincia e tecnologia? A escolha de nosso estudo recaiu em trs peas nas quais os
elementos sobrenaturais predominam e permeiam a trama: St. Nicholas (1997), The
Weir (1997) e The Seafarer (2006).
Depois de ter escolhido as trs peas, nossa proposta foi identificar os diferentes
elementos do sobrenatural nelas presentes, buscando em textos literrios ou do
folclore irlands as fontes de McPherson. Acreditamos que o dramaturgo no tenha
por objetivo a recuperao da tradio de contar histrias, mas sim que ele se utiliza
de narrativas com a presena de seres sobrenaturais para chamar a nossa ateno
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para temas que afligem a humanidade, como por exemplo, a solido, o medo da
morte e as crises existenciais do homem contemporneo.
No captulo 1 examinaremos St. Nicholas, com reflexes sobre o uso do tema
do vampiro nessa pea e utilizando o conceito de pardia na definio de Linda
Hutcheon e Afonso Romano SantAnna. O captulo 2 investigar o efeito das
histrias sobrenaturais nas personagens de The Weir, conjeturando sobre a
tradicional figura do contador de histrias na Irlanda e as possveis ligaes com
narrativas do folclore irlands. No captulo 3 analisaremos a pea The Seafarer,
refletindo sobre as fontes empregadas pelo dramaturgo para compor seu Fausto
contemporneo; para tanto, utilizaremos o conceito de intertextualidade sugerido por
Julia Kristeva citado por Sandra Nitrini e Leyla Perrone-Moiss.
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CAPTULO 1
St. Nicholas: Um Crtico de Teatro entre Vampiros
There was life before the vampires and life after the vampires.
Ben Brantley*
Das peas escolhidas para o presente estudo, St Nicholas a primeira em que
aparecem elementos do sobrenatural. Ela foi escrita durante o perodo em que o
dramaturgo era escritor residente do Bush Theatre em Londres. Em suas peas
iniciais, Conor McPherson quase no faz uso de rubricas, talvez porque ele mesmo
tenha dirigido todas as primeiras montagens. As duas nicas rubricas de St Nicholas
indicam que o palco est totalmente vazio e que a personagem um homem de
cerca de sessenta anos, cujo nome ns nem sabemos. Entretanto, o autor explica no
posfcio que, enquanto estava escrevendo a pea, tinha sempre em mente o
escocs Brian Cox para represent-la; e que havia at retirado de uma revista uma
foto do ator e colado-a na pasta que usava durante o processo criativo. Na poca da
escolha do protagonista, McPherson conversou longamente com o diretor artstico
* BRANTLEY, Ben. Theater Review: A Most Dramatic Drama Critic. New York Times, 18/03/1998. Disponvel em:. Acesso em: 21/10/2008.
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Mike Bradwell antes de decidirem enviar o script para Brian Cox, que estava fazendo
um filme em Hollywood na poca. Ambos achavam que seria quase impossvel um
ator to ocupado aceitar o papel; ficaram surpresos quando Brian ligou para acertar
as datas dos ensaios (McPHERSON, 1999, p.188). Brian Cox, com ajuda de um
especialista, trabalhou muito para reproduzir o sotaque irlands e St Nicholas foi bem
recebida pelo pblico e pela crtica. Na maioria das resenhas, como em The London
Times, foi mencionada a apropriada escolha do ator que, alm de ser uma presena
forte no palco, soube ressaltar o lado humorstico da obra.
Brian Cox has the audience in the palm of his hand. Not for a moment
does he or the play let our attention drop. St. Nicholas has mystery,
mischief, humour, suspense, surprise... wholly riveting*!
A narrativa, um monlogo de um nico ator num palco vazio, muito simples.
Um crtico de teatro, mal-intencionado, pouco srio, detestado e temido pelas crticas
custicas que escreve antes mesmo do trmino dos espetculos; apaixona-se pela
atriz Helen que faz o papel principal numa encenao de Salom no Abbey Theatre.
Para atra-la, diz que escreveu uma crtica favorvel pea, embora tenha feito o
oposto, e com isso tenta encant-la. Embora seja casado, tenha um casal de filhos e
more numa casa confortvel em Dublin, decide abandonar a famlia e ir para Londres,
onde a atriz se apresentaria por duas semanas. Em Londres, conhece William, um
vampiro que mora numa casa velha e decadente no subrbio com cinco mulheres,
tambm vampiras. O narrador ento contratado por William para atrair jovens;
passa as noites indo a festas e bares procurando mais vtimas para seu mestre. Em
uma de suas andanas, re-encontra-se com a atriz Helen e a leva para casa de
William. Vendo-os juntos decide salv-la e volta para esposa e filhos. Entretanto, o
protagonista-crtico comenta que o mais importante dessa experincia que agora
ele tinha uma histria para contar.
Mas por que no fim do sculo XX mais uma pea sobre vampiros?
impossvel no relacionar William, o vampiro de St Nicholas, com a famosa
personagem criada pelo escritor irlands Bram Stoker no romance Dracula (1897).
*Resenha publicada em The London Times. Disponvel em : http://www.matrixtheatre.com/shows/stnicholas.html. Acesso em: 10/11/2009.
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Esta obra representa um ponto alto na tradio da fico sobrenatural irlandesa, mas
vampiros podem ser encontrados na literatura antes mesmo de Drcula.
Em O Vampiro antes de Drcula, Martha Argel e Humberto Moura Neto (2008)
apresentam um longo histrico de aparies do vampiro na prosa, na poesia e no
teatro e explicam que o conto do ingls John William Polidori (1795-1821), The
Vampyre, publicado em 1819 pode ser considerado como o ponto de partida da
prosa vamprica. Antes deste conto, s se conhecia o vampiro folclrico que era visto
como um monstro repugnante com unhas compridas, barba malfeita, boca e olhos
esbugalhados, rosto vermelho e inchado, sempre envolto em sua mortalha. Polidori
criou o vampiro aristocrata, o nobre satnico, sedutor e elegante, um ser que convivia
em sociedade, frequentava festas e viajava por diversos pases escolhendo suas
vtimas. Conta-se que Polidori usou como base de seu conto um fragmento de uma
histria sobrenatural escrita pelo poeta britnico Lord Byron. Em junho de 1816, uma
tempestade prolongada manteve um grupo de amigos isolados numa casa alugada
por Byron na Sua. Deste grupo faziam parte alm de Byron e Polidori - na poca,
secretrio e mdico particular de Byron - o tambm poeta Percy Bysshe Shelley, sua
futura esposa, Mary Wollstonecraft Godwin, e a meia-irm desta, Claire Clairmont.
Para passar o tempo, eles liam em voz alta histrias sobrenaturais. Certa noite foi
proposto que cada um escrevesse uma histria de fantasmas. Percy Shelley
comeou um conto que no chegou a terminar e Claire parece no ter escrito nada.
J Mary, deu incio a um conto que depois se transformaria no romance Frankenstein
(1818). Polidori comeou uma histria sobre uma mulher que teve sua cabea
transformada em caveira depois de espiar por um buraco de fechadura, e Lord Byron
escreveu o relato da morte repentina e inexplicvel de um amigo chamado Augustus
Darvell. Polidori apropriou-se desta narrativa e criou o vilo de seu conto Lord
Ruthven imagem e semelhana do poeta Byron. O conto foi um grande sucesso
pois, por engano ou m-f, foi publicado com autoria falsamente atribuda a Byron e,
apesar dos protestos tanto de Byron como de Polidori, a histria continuou por muito
tempo sendo tratada como obra de Byron. Interessante observar que a partir de uma
brincadeira entre amigos tenham sido criadas duas importantes obras da literatura
sobre o sobrenatural: Frankenstein (1818), de Mary Shelley e o conto The Vampyre,
que estabeleceu de uma vez por todas o prottipo do vampiro na fico, no teatro e
posteriormente no cinema. (ARGEL & MOURA NETO, 2008, p. 28). O vilo Lord
Ruthven do conto de Polidori serviu de inspirao para outras obras, especialmente
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na Frana e na Inglaterra, entre elas, podemos mencionar uma adaptao para o
teatro francs feita em 1820 por Charles Nodier Le Vampire - que muito contribuiu
para a popularizao da figura do vampiro na poca.
Por outro lado, na Irlanda, em 1872, segundo Peter Tremayne, em Irish
Masters of Fantasy (1979), uma imagem mais inovadora para o vampiro foi
apresentada pelo escritor irlands de contos sobrenaturais, Sheridan Le Fanu (1814-
1873), com o lanamento de seu conto Carmilla, que incorpora a crena em vampiros
a um ambiente gtico. Na narrativa de Le Fanu uma srie de mortes dizima as moas
de uma regio prxima do castelo onde vive a narradora Laura, depois que Carmilla
passa a morar com ela. No decorrer da histria percebe-se que Carmilla (anagrama
de Mircalla) a condessa Mircalla de Karnstein, morta h mais de um sculo e
enterrada a meia lgua do castelo. A vampira no suporta os cantos fnebres e
religiosos, no faz suas oraes antes de dormir e, alm disso, ela capaz de sair de
seu quarto sem abrir portas ou janelas. Como no come, ela constantemente
acometida de languidez, tem caninos pontiagudos e assume a forma de um gato
monstruoso. Quando suga o sangue de uma pessoa deixa uma marca azulada e no
momento em que o General Spielsdorf, cuja filha ela matou, ataca-a com um golpe
de machado, ela desaparece numa nvoa.
O renomado escritor irlands Bram Stoker (1847-1912) inspirou-se tambm
nos trabalhos de Polidori e Le Fanu para compor sua mais famosa personagem - o
Conde Drcula um predador aristocrtico, sado do tmulo, que hipnotiza,corrompe
e se alimenta do sangue de lindas moas. Entre as inovaes, o vampiro Drcula tem
a necessidade de repousar num caixo com solo nativo, no pode entrar nas casas
sem ser convidado e sua imagem no se reflete em nenhum espelho. O romance foi
publicado em 1897, no entanto Stoker escreveu o conto Draculas Guest, publicado
postumamente em 1914 por Florence Bram Stoker, numa coleo de contos
intitulados Draculas Guest and Other Weird Stories. No prefcio explica-se que tal
conto havia sido suprimido do romance pelos editores, que acharam o manuscrito
original muito extenso. Existem semelhanas entre Carmilla e essas obras de Stoker.
Em Draculas Guest surge um lobo muito estranho, que no parece ser um simples
animal e na histria de Le Fanu a herona se v frente a frente com um enorme gato,
que mais parece um lobo. J em Dracula, o vampirlogo Abraham Van Helsing,
quando est ensinando a seus amigos tudo o que preciso saber sobre os vampiros,
esclarece que tal criatura precisa nutrir-se do sangue dos vivos, no se alimenta
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como os homens e possui uma fora extraordinria, podendo transformar-se em lobo
ou em morcego e quando se aproxima de algum, geralmente est envolto numa
bruma gerada por ele mesmo. O alho e a cruz de ouro so mencionados como
objetos que tiram o poder do vampiro.
Bram Stoker faleceu em 1912, mas Drcula s alcanou fama no final da
dcada 1920, em decorrncia do sucesso de uma adaptao do romance para o
teatro e posterior transposio para o cinema, com o filme Dracula (1931) da
Universal Studios, dirigido por Tod Browning e com Bela Lugosi no papel do vampiro.
Argel e Moura Neto (2008, p.307) explicam que houve alguns filmes anteriores
baseados em Dracula. Embora um deles, o filme mudo alemo Nosferatu (1921),
dirigido por F.W. Murnau seja considerado um clssico atualmente, nenhum deles
teve grande impacto na disseminao da obra e do mito junto ao pblico. A aparncia
do ator Bela Lugosi, suas maneiras distintas e o sotaque hngaro fizeram com que
seu desempenho fosse ao mesmo tempo assustador e memorvel para a poca.
Segundo J. Gordon Melton, em O Livro dos Vampiros, o filme de Browning
estabeleceu a imagem visual do vampiro que se tornou padro: uma figura
aristocrtica sinistra, de maneiras elegantes, sotaque estrangeiro e que se veste para
a noite de maneira formal, com uma longa capa esvoaante (2003, p.13).
O sucesso cinematogrfico atingiu as massas ao redor do mundo e permitiu
que o vampiro invadisse nossas vidas atravs de todos os tipos de mdia que se
desenvolveram nos sculos XX e XXI. Eles podem ser encontrados nas histrias em
quadrinhos, em romances para adolescentes, desenhos animados, televiso, jogos
de RPG, vdeo games e em diversos sites da Internet. Desde sua origem, o vampiro
passou por muitas transformaes: da figura monstruosa do folclore, passando pela
figura do nobre do conto de Polidori que conquistou a Europa at a figura do conde
Drcula que conquistou o mundo.
Em St Nicholas, poderamos perguntar: que mudanas esse monlogo imps
figura do vampiro? Alm do mais, St Nicholas foi escrita em 1997, ano de
comemorao do centenrio do romance de Bram Stoker que suscitou eventos nos
Estados Unidos, no Canad, na Gr-Bretanha e na Irlanda; cada um desses pases
at lanou um selo comemorativo com Drcula. Estaria Conor McPherson parodiando
a figura do vampiro em St Nicholas?
Segundo Linda Hutcheon, a pardia pode ser definida como a inverso
irnica, nem sempre s custas do texto parodiado, ou seja, uma repetio com
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distncia crtica, que marca a diferena em vez da semelhana (1985, p.17). Para
Afonso Romano SantAnna, a pardia a inverso do significado e tem o seu
exemplo mximo na apropriao, que se situa no conjunto das diferenas, com fora
crtica (2004, p.48). SantAnna complementa que a pardia seria como um espelho
invertido, ou mesmo uma lente: exagera os detalhes de tal modo que pode converter
uma parte do elemento focado num elemento dominante, invertendo, portanto, a
parte pelo todo, como se faz na charge e na caricatura (2004, p.32). Estamos,
portanto, falando de um conceito que supe distanciamento, inverso do sentido com
efeito irnico e crtico.
O Dracula de Stoker foi o tema da Dissertao de Mestrado de Valdemar
Francisco de Oliveira Filho A Suspenso Momentnea da Ordem e Hierarquia em
Dracula, de Bram Stoker (2005) sob a orientao da Profa. Dra. Laura Patrcia
Zuntini de Izarra, da Universidade de So Paulo. Neste trabalho, o autor sugere que
podemos considerar a estada de Jonathan no castelo de Drcula como um ritual de
iniciao necessrio, um rito de passagem da inocncia para a maturidade. Segundo
Oliveira Filho, os ritos de passagem possuem uma estrutura trifsica - separao,
iniciao e retorno. Primeiro h um perodo de separao, quando o iniciado dever
afastar-se do dia-a-dia e por algum tempo ir ser uma pessoa no-normal que vive
num tempo no-normal. Geralmente o iniciado mantido num espao fechado e sem
acesso s pessoas do seu convvio comum; submete-se a uma srie de prescries
e de proibies que podem ser sobre comida, vestimenta e movimentos; quando
termina este perodo, ele retornar sociedade normal assumindo seu novo papel.
Assim, Jonathan isolado do convvio dos seres humanos normais, defronta-se com
o mundo dos vampiros no castelo de Drcula, consegue escapar e retorna
sociedade com o conhecimento necessrio para ajudar os caadores a exterminarem
o Conde Drcula. Ainda, segundo o autor, Drcula o doppelgnger* de Jonathan,
isto , o conde Drcula seria o outro Jonathan, o seu duplo, conceito muito comum
na literatura fantstica, como por exemplo, Dr. Jekyll e Mr. Hyde ou Dorian Gray e
seu retrato. Esse outro representa um eu adorado e odiado ao mesmo tempo.
* Doppelgnger, segundo as lendas germnicas de onde provm, um monstro ou ser fantstico que tem o dom de representar uma cpia idntica de uma pessoa que ele escolhe ou que passa a acompanhar. Ele imita em tudo a pessoa copiada, at mesmo suas caractersticas internas mais profundas. O nome Doppelgnger se originou da fuso das palavras alems doppel (significa duplo, rplica ou duplicata) e gnger (andante, ambulante ou aquele que vaga). Disponvel em: Acesso em: 22/11/2008.
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Drcula, o outro Jonathan, que se liberta, e livre, prepara-se para trazer o caos
vida de Jonathan.
Logo percebemos a semelhana entre o rito de passagem de Jonathan em
Dracula com os acontecimentos relatados em St Nicholas; ao afastar-se do seu dia-a-
dia em Dublin, indo para Londres e convivendo com o mundo dos vampiros um
determinado tempo, o protagonista escapa e, transformado, volta a conviver em
sociedade. H, porm, muitas diferenas entre o narrador de St Nicholas e a
personagem do romance de Stoker. Jonathan um rapaz jovem, solteiro que viaja a
trabalho, para levar os papis da propriedade que Drcula adquiriu em Londres para
serem assinados. O protagonista de St Nicholas um homem de quase sessenta
anos, casado, com dois filhos, que abandona emprego e famlia para ir Londres em
busca de uma paixo por uma jovem atriz. No incio era egosta, no se comunicava
bem com a famlia, bebia muito e no produzia nada importante. Embora tivesse
grande habilidade de conectar as palavras, no tinha ideias para escrever suas
prprias histrias, s se limitava a criticar o trabalho de outros. Ao sair da casa do
vampiro, ter uma segunda chance de retomar sua vida com esposa e filhos e
finalmente ter uma histria para ser contada. O protagonista-crtico no um heri
dos contos gticos e da era vitoriana, mas sim o heri do nosso mundo, dos dias de
hoje. Mora numa casa confortvel na melhor rea de Dublin; sua esposa est fora de
forma e, assim como ele, bebe muito; sua filha est na faculdade e parece gostar de
escrever contos e poemas e seu filho no faz nada - sustentado pelo pai. Portanto,
esse narrador um tpico homem de meia-idade bem sucedido financeiramente, mas
infeliz com sua prpria vida e as relaes que o cercam. A vida que levava antes do
convvio com os vampiros no tinha muito sentido para ele; o final da pea sugere um
estilo de vida melhor. O rito de passagem de Jonathan em Dracula marca a mudana
da adolescncia para a vida adulta; para o crtico o rito de passagem diferente, no
est somente ligado idade, mas tambm maneira como ele encara o mundo e o
legado que ir deixar. No incio de seu monlogo, ele explica que podia sentir que o
tempo estava passando e ele no havia feito nada ainda - as mesmas ansiedades
que acometem o homem contemporneo.
A epgrafe deste captulo reproduz o incio da resenha de St Nicholas que Ben
Brantley escreveu para o New York Times, sugerindo que, embora o protagonista
tenha dividido sua vida em antes e depois do convvio com os vampiros, na verdade
ele j seria uma espcie de vampiro, mesmo antes de ter tido contato com eles.
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Quando o narrador entra em contato com o mundo do vampiro William, ele percebe
no vampiro, no outro, aquilo que ele mesmo no quer ser. As mesmas crticas que
ele faz ao vampiro so os aspectos negativos de sua prpria personalidade.
Lembramos aqui que assim como Drcula o doppelgnger de Jonathan, William
seria o duplo do protagonista. O crtico de teatro se alimenta da arte dos outros da
mesma maneira que o vampiro se nutre do sangue alheio; afinal, sangue e arte so
smbolos da vida. Alm disso, ele tambm gosta do poder que exerce sobre os
artistas atravs do medo, uma vez que uma crtica ruim poder arrasar qualquer
carreira. Estamos diante de uma metfora, o protagonista-crtico visto como um
vampiro e quando ele percebe que os vampiros so seres sem conscincia, ele
prprio toma conscincia de como deve agir, voltar a ter contato com as coisas
(p.177). Entende que durante a vida toda foi um ser que afastava as pessoas e viveu
como um vampiro; porm, agora ele quer o poder de tocar as pessoas. Este poder
ir se concretizar na histria a ser contada.
Observamos que o ttulo da pea - St Nicholas - faz aluso ao Bispo de Myra,
no sul da Turquia, tambm conhecido por Santa Claus, e famoso por sua piedade
perante os menos favorecidos, protegendo e presenteando sempre as crianas e
tambm praticando a castidade. Nenhuma semelhana com o nosso protagonista. Ao
escolher tal ttulo McPherson estaria usando de ironia. Segundo Douglas Colin
Muecke, em Ironia e o Irnico a definio de ironia no dizer uma coisa e dar
entender o contrrio, mas sim dizer alguma coisa de uma forma que ative no uma,
mas uma srie infindvel de interpretaes subversivas (1995, p.48). Alm de o
narrador ser o oposto do Bispo de Myra em termos de personalidade, St Nicholas
tambm uma aluso ao Natal, tempo de recomeo, exatamente o que poder
acontecer depois que o protagonista-crtico consegue escapar dos vampiros.
Notamos tambm que antes de ter trabalhado para os vampiros ele se sentia como o
protetor das massas contra os artistas charlates que tentavam roubar o dinheiro do
povo (p.138)*. Mais uma irnica referncia ao Bispo que protegia os menos
favorecidos. Enquanto o narrador convive com os vampiros, ele tenta escrever sobre
os momentos em que ele se importava com os seus e lembra-se dos filhos pequenos
na vspera do Natal. Percebe-se que o Natal uma imagem recorrente na pea.
Alm de St Nicholas, McPherson faz referncias ao Natal em duas outras peas:
* Todas as citaes de St Nicholas so desta edio: McPHERSON, Conor. McPherson: Four Plays London: Nick Hern Books, 1999.
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Dublin Carol (2000) e The Seafarer (2006) que so ambientadas na vspera do
Natal, data que simboliza o renascimento e a esperana de uma nova oportunidade,
com novos sonhos e perspectiva de harmonia entre os homens. The Seafarer ser
discutida no terceiro captulo.
Nota-se que, em St Nicholas, o dramaturgo faz uso de ironia para construir
essa personagem que retrata as ansiedades e preocupaes do homem
contemporneo e, ao invs de contar a histria desse crtico de teatro de forma
realista, McPherson utiliza-se do sobrenatural, mais precisamente da figura do
vampiro. Uma vez que o conceito de pardia sugere inverso do sentido com efeito
irnico e distanciamento crtico, temos que observar quais os desvios entre St
Nicholas e as histrias tradicionais de vampiros.
Na primeira parte da pea, na noite em que o protagonista-crtico oferece uma
carona para Helen, aparecem os primeiros indcios de elementos do sobrenatural.
I couldnt sleep.
I sat in my study with the windows open. That summer breeze.
And I thought about killing myself. I could imagine the cast reading the
review Id actually given them, talking about what a complete cunt I was. And
then theyd find out I was dead and theyd feel rotten. That they hadnt taken
into account the integrity you know? The mystery that I was. But I was too
chicken for that.
Instead I lay on the sofa and things crawled all over me till it got
bright.
Well, I wasnt the same after that.
Atravs desse excerto, observamos que o protagonista j teria tido contato
com coisas estranhas que poderiam ter entrado pela janela aberta, como Drcula,
que em forma de morcego, adentra pela janela do quarto de Lucy. Alm disso, o
narrador menciona que as mos de Helen estavam geladas quando eles se
despediram, fato que tambm pode ser associado com mortos e vampiros.
Percebemos que os elementos sobrenaturais presentes na primeira parte da pea
funcionam como indcios do que o narrador encontrar na segunda parte. Como se
McPherson preparasse o leitor para a possibilidade do convvio do crtico com os
vampiros e ao mesmo tempo oferecesse uma hiptese para explicar o sobrenatural
a de que o protagonista estivesse apenas sonhando.
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Outro aspecto interessante a maneira como William aproximou-se pela
primeira vez do protagonista, bem semelhante apario dos vampiros estudados
nos contos j mencionados e em Dracula: ele estava num parque isolado, j havia
escurecido e teve a impresso de ter visto um cachorro bem grande. Eu vi algo se
movendo, pensei que fosse um cachorro grande Era um homem (p.156). E mais
adiante mencionado que, embora estivesse escuro, ele conseguia ver os olhos de
William brilhantes como os de um gato. O vampiro possua, portanto, caractersticas
de animais como as do lobo, do cachorro e do gato, os mesmos animais citados nos
contos Carmilla e Draculas Guest, bem como no romance de Stoker. Para explicar
como so os vampiros, o narrador fala do poder que eles tm de fazer com que as
pessoas queiram o mesmo que eles. E quando est na presena deles, ele no
capaz de ponderar sobre um assunto, de usar a razo, vive mais por instinto. Os
vampiros teriam ento o poder de afastar o protagonista da razo e faz-lo conviver
por algum tempo no mundo dos instintos, semelhana dos animais irracionais. Tal
convivncia far com que o protagonista-crtico reveja sua maneira de encarar a vida
e seus relacionamentos.
A casa de William poderia ser descrita como uma velha casa gtica, ou seria
uma aluso ao interior do castelo de Drcula; Pilares imponentes. rvores altas
Nas paredes, painis feitos de madeira escura. Carpetes de um vermelho bem vivo.
(p.158). A cor vermelha sugere o sangue; ao invs de caixes individuais para os
vampiros dormirem, a casa revestida de madeira, como se fosse um grande caixo.
O narrador tambm se refere cozinha como sendo confortvel e aquecida, mas
observa que no se via nenhuma comida, provando que os vampiros no se
alimentam como os homens. Tal fato nos faz lembrar que Drcula oferecia jantares
para Jonathan s que ele mesmo nunca comia. Alm do mais, no castelo de Drcula,
Jonathan encontra um trio de vampiras e o vampiro William convive com seis
mulheres tambm vampiras. Nos dois casos, elas so instrudas a no perturbarem
os hspedes e nas duas histrias essas regras so quebradas. No romance de
Stoker, certa noite, as vampiras invadem o quarto de Jonathan que, sem foras para
reagir, precisa ser salvo por Drcula, que aparece no momento crucial, expulsando-
as do aposento. No caso de St Nicholas, uma das mulheres consegue subjugar o
narrador que acaba se entregando e acorda com a camisa e as calas
ensanguentadas. Havia sangue na minha camisa. Nas minhas calas. Meu nico
consolo que ela iria ficar com uma tremenda ressaca, que a derrubaria por dias. Ela
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havia mordido o homem errado (p.175). Como se v, Conor McPherson usa do
humor para descrever praticamente a mesma cena de herosmo em Drcula. Alm
disso, como o protagonista estava bbado, seria bem provvel que ele estivesse
imaginando ou tendo alucinaes. No incio da segunda parte da pea, quando
William est mostrando a casa, o narrador chega a mencionar que queria acreditar
que ainda estivesse sonhando*. Outra vez temos a hiptese do sonho como provvel
explicao para o sobrenatural.
O humor tambm usado para salientar outras diferenas entre William e os
outros vampiros literrios. O alho, por exemplo, no tira seu poder - ele s no gosta
porque d mau-hlito. Acreditamos que este aspecto foi citado na pea para tornar
William um vampiro mais prximo do homem contemporneo, preocupado com a
aparncia. Nada mencionado com relao a crucifixos, outro modo de afastar os
vampiros, mas o narrador encontra em seu quarto uma Bblia e indaga se o vampiro
no se importa com tal livro. William responde: A natureza fez ambos (p.159). O que
nos leva a crer que William no se abala com os smbolos do cristianismo.
Comentando sobre o que o afeta, William fala de uma tradio no leste da Europa de
colocar arroz no parapeito das janelas para afastar os vampiros. Dizem que arroz
tambm simboliza fertilidade, fartura e prosperidade. Os vampiros seriam compelidos
a contar todos os gros de arroz at o amanhecer. Para William esta lenda tem um
fundo de verdade porque ele teria um desejo incontrolvel de saber quantos gros
h em um punhado de arroz (p.160). O interessante o protagonista-crtico observar
que o vampiro achava que isso era um trao de sua nobreza e no uma compulso,
ele transformava seus defeitos em virtudes (p.160). graas a esta compulso que
o protagonista consegue escapar da casa de William. A forma como Jonathan escapa
do castelo de Drcula, correndo pelos corredores sombrios, fugindo das trs
vampiras e descendo pela torre do castelo, difere da maneira cmica pela qual o
narrador escapa da casa de William, eu disse para deix-la em paz e juro por Deus
que os olhos dele brilhavam feito fogo... Ento, ajudei Helen a descer as escadas.
* I wanted to believe I was still dreaming p.158 Nossa pesquisa nos levou a uma lenda semelhante: In parts of the West Indies, country folk believe that they can protect themselves against a supernatural being that drinks blood by sprinkling grains of rice close to windows and doors. The legend goes that before the creature can attack it must pick up every grain - by that time it should be dawn and, as everybody knows, by cock-crow, all vampires must return to the safety of their lair. Disponvel em: http://www.lastrefuge.co.uk/data/articles/bats/Vampire_Bat_article_page1.html Acesso em: 22/11/2008.
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Ele no nos seguiu e no sei por que me deixou ir embora (p.177). Ele acaba no
levando Helen, e deixa-a dormindo no sof da sala ao lado de um dos amigos dela,
que tambm acordar de ressaca. Portanto, o poder que o vampiro teria sobre ele foi
facilmente quebrado, sem grandes lutas como as dos heris dos romances gticos.
Outra hiptese para explicar o sobrenatural seria a possibilidade de o
protagonista ter passado por um colapso nervoso; ele prprio refere-se a esta
probabilidade quando est saindo da casa do vampiro: Eu andei pela rua pensando
no que as pessoas iriam dizer... Voltando de meu colapso (p.177). Neste sentido, a
histria que est sendo contada no palco no seria bem o que aconteceu
realmente, o narrador poderia ter imaginado tudo. Mas este perodo de sua vida e a
suposta convivncia com os vampiros foi crucial para sua transformao.
O fato de sabermos mais sobre as personagens envolvidas com a poca em
que ele convive no mundo dos vampiros em Londres do que sua vida em Dublin, j
demonstra a importncia desta poca para o narrador. Praticamente conhecemos os
nomes da maioria das personagens da histria: o vampiro chama-se William, Helen a
atriz, o diretor da pea Peter Hamilton, as outras atrizes amigas de Helen chamam-se
Cliona Leeson e Sheila Kilmeady e uma das vtimas de William Dominique.
Entretanto, no sabemos o nome do protagonista e nem de sua esposa e filhos. Ao
que parece, s as personagens que fazem parte da histria relacionada aos vampiros
so nomeadas e no as pessoas que fazem parte da vida real do protagonista.
Talvez uma maneira de Conor McPherson destacar a importncia da histria que
est sendo narrada no palco. Vale lembrar que quando o narrador fala de seu
passado como crtico, marido e pai, as lembranas so sempre aleatrias e no
lineares - fatos que veem memria do protagonista de forma desordenada; j os
acontecimentos depois do encontro com William so relatados de forma linear,
mesclando aes e emoes; aspectos importantes ao se contar uma histria, o que
demonstra uma organizao literria.
A importncia de se ter uma histria tambm pode explicar o fato de a pea ter
sido escrita em forma de monlogo. Conor McPherson comeou a escrever
monlogos em 1992, apesar de ter usado o dilogo em algumas peas anteriores,
essas no foram publicadas. St Nicholas, seu quarto monlogo, foi escrito e
encenado na dcada de 90, poca em que, segundo Eamonn Jordan (2006, p.125),
os monlogos tornaram-se uma caracterstica importante no drama irlands. Jordan
explica que enquanto no teatro internacional havia a preocupao com produes
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estilizadas e em grande escala, no teatro irlands houve uma proliferao de peas
em forma de monlogos, escritas principalmente por homens para personagens
masculinas, geralmente um nico ator no palco, sem recursos cnicos, simplesmente
contando uma histria. Os quatro primeiros monlogos de Conor McPherson tm
essas mesmas caractersticas: atores num palco vazio narrando histrias diretamente
para os espectadores. Como em St Nicholas, nas peas Rum and Vodka (1992) e
The Good Thief (1994) h somente um ator no palco relatando suas desventuras
para a platia. Em This Lime Tree Bower (1995), embora as trs personagens
masculinas estejam presentes ao mesmo tempo no palco, no h quase nenhuma
interao entre elas e seus monlogos visam claramente platia como ouvinte.
Com o objetivo de descobrir qual a funo e o efeito do monlogo em St
Nicholas, seria importante verificar a diferena dos termos monlogo, solilquio e
aparte. primeira vista, monlogo e solilquio parecem ser sinnimos perfeitos e, se
analisarmos as palavras etimologicamente, veremos a equivalncia dos dois
vocbulos: monos corresponde a solus, que seria nico, sozinho, e logos
corresponde a loqui, palavra, discurso, falar. Os termos, ento poderiam ser definidos
como falar s. No Dicionrio de Termos Literrios, Massaud Moiss (2004, p. 431)
confirma a equivalncia etimolgica dos dois vocbulos e comenta que o solilquio
, acima de tudo, uma conveno teatral... consiste na situao em que a
personagem est sozinha no palco e profere em voz alta os seus pensamentos: fala
para si prpria, de modo a tornar-se sujeito e objeto da ao verbal. Para Moiss, o
monlogo uma pea de teatro em torno de uma s figura, como o Monlogo do
Vaqueiro (1502) de Gil Vicente, e difere de um terceiro termo monlogo dramtico
(Dramatic Monologue) que consiste num poema destinado declamao e que
revela dramas internos da personagem, ou do eu potico; citando como exemplo
My Last Duchess, de Robert Browning. J o aparte - tambm uma conveno teatral -
seria o recurso em que a personagem manifesta brevemente seus pensamentos em
voz baixa, geralmente contrrios aos que so transmitidos ao seu interlocutor, de tal
forma que s a platia oua - transformando-a em confidente. No aparte, outras
personagens tambm podem estar presentes no palco; o ator que o profere na
maioria das vezes afasta-se dos demais e muda de entonao. J Patrice Pavis
(1999, p. 247 e 366), em seu Dicionrio de Teatro, define tanto monlogo quanto
solilquio como sendo um discurso que a personagem faz para si mesma e a pea
como monlogo seria somente um dos tipos de monlogo. Outro tipo de monlogo
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citado com freqncia o Interior Monologue, ou monlogo interior, que segundo
Pavis (1999, p.248) so fragmentos de frases que passam pela cabea do recitante e
so emitidas sem preocupao com lgica ou censura; pois o efeito desejado o da
desordem emocional e cognitiva da conscincia que mostra o que ocorre na mente
da personagem. Como exemplo do uso do monlogo interior no teatro, Peter Szondi
(2001, p.155) menciona a pea Estranho Interldio (1928), drama de nove atos de
Eugene ONeill, [que] no esboa apenas os dilogos de seus oito heris, mas
tambm, e continuamente, seus pensamentos ntimos... Esse tipo de monlogo
mais comum na prosa e muitos estudiosos ressaltam sua ligao com o conceito de
fluxo da conscincia stream of consciousness. Segundo Massaud Moiss (2004)
fluxo da conscincia um conceito de natureza psicolgica, que nomeia os mltiplos
aspectos da atividade mental, enquanto que o monlogo interior seria uma tcnica
literria, de apreenso e apresentao do fluxo da conscincia.
Um dos trabalhos mais completos que encontramos sobre o monlogo teatral
foi a Tese de Doutorado de Alcides Joo de Barros apresentada Escola de
Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo em 1985 sob a orientao da
Profa. Dra. Clia Berrettini. Nesse trabalho, foi ressaltada a dificuldade de se chegar
a um consenso sobre a definio de monlogo e solilquio. Barros explica que em
portugus usamos o vocbulo monlogo para indicar tanto uma pea de um s ator,
quanto para designar cenas grandes em que a personagem fala consigo mesma, que
poderiam ser classificadas como solilquios tambm. O autor decidiu usar o termo
monlogo para designar toda e qualquer passagem em que uma personagem fala
consigo mesma, embora o pblico seja o receptor obrigatrio. (BARROS, 1985, p.
30) Tal definio ser adotada neste trabalho. Quanto ao termo aparte, indicar
aquelas falas rpidas, ditas na presena de uma ou mais personagens, mas ouvidas
convencionalmente somente pelos espectadores. No decorrer da pesquisa
observamos que Conor McPherson possui peas inteiras em forma de monlogo
onde um ou mais atores relatam suas histrias diretamente para a platia e que
tambm faz uso de monlogos em peas onde o dilogo predominante.
J de posse de uma definio de monlogo, procuramos definir quais as suas
funes essenciais no teatro. Barros estabelece uma classificao fundada com base
no teatro greco-latino, que poder contribuir para nossa anlise. Ele elucida que o
monlogo de exposio pode ocorrer no incio ou durante a pea, e sua funo
fornecer ao pblico dados sobre a ao que ir acontecer no palco, caractersticas
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das personagens e acontecimentos anteriores que o espectador deve conhecer para
melhor acompanhar a ao. Por outro lado, o monlogo de anncio explica
acontecimentos futuros que ocorrero dentro ou fora do palco. Outra categoria o
monlogo de comentrio que explana uma ao que j ocorreu, normalmente com o
uso de ironia. Esse tipo de monlogo permite a interferncia do autor que, atravs de
uma personagem, expe sua ideologia. H ainda o monlogo de deliberao que
informa sobre o rumo que uma personagem deve seguir. Este tipo bastante
prximo do monlogo de anncio. J o monlogo de caracterizao tem a funo de
caracterizar o locutor/personagem. O monlogo de moralizao seria um comentrio
edificante a respeito de alguma passagem da pea e, finalmente, o monlogo de
comicidade que explora as confuses criadas no palco com o objetivo de fazer o
pblico rir.
Sem desconsiderar os sete tipos de monlogos apresentados acima, Barros
tambm prope uma classificao diferente, baseada em certas caractersticas que
gerariam dois tipos fundamentais de monlogos o autntico e o convencional. O
monlogo autntico caracteriza-se pelo seu contedo potico, revela os sentimentos
da personagem, subjetivo, presta-se expresso do fluxo da conscincia e
interrompe a ao da pea. Semelhante a um poema, no gera reaes a respeito de
sua verossimilhana e tem por funo acentuar o contedo dramtico, enriquecendo
a pea. J o monlogo convencional no possui contedo potico, a personagem
comenta algum aspecto da pea ou fornece informaes objetivas que ajudaro o
espectador a acompanhar a ao. esse monlogo que costuma ser rejeitado como
artificial e inverossmil e pode acrescentar muito pouco ao valor esttico da pea.
Quais as semelhanas e diferenas na funo do monlogo entre peas de
diversas pocas ao longo da histria do teatro e St Nicholas? Nesta pesquisa, a tese
de Alcides Joo de Barros (1985) tambm se mostrou bastante significativa porque
traz um panorama do monlogo desde o teatro grego at o teatro no sculo XX e
mostra-nos que tanto no teatro grego quanto no teatro romano j existiam monlogos
nas tragdias e nas comdias. Segundo Barros, na tragdia grega, a presena do
monlogo est ligada ao coro e, como no h lugar para a linguagem corriqueira do
cotidiano, tais passagens eram essencialmente lricas. Muitas vezes os prlogos das
tragdias assumiam a funo de monlogos de exposio e, por seu teor potico,
podiam ser chamados de monlogos autnticos. J nas comdias observa-se o
domnio do monlogo convencional; no entanto, h alguns monlogos em linguagem
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solene que, isolados de seu contexto, poderiam funcionar como monlogos
autnticos. Como exemplo, na comdia grega As Aves, de Aristfanes, quando o
corifeu se dirige ao pblico para falar sobre as vantagens de ter asas, tais
comentrios podem levar o espectador reflexo, crtica e certamente interrompem
a ao. No teatro romano, as tragdias de Sneca possuem grande quantidade de
monlogos pelo fato de ser um teatro destinado leitura, no representao.
No perodo medieval, continua Barros, os monlogos so bastante numerosos,
tanto no teatro religioso quanto no profano. No teatro religioso, apresentado dentro
da prpria igreja, h exemplos de monlogos poticos e solenes. J no profano, um
teatro mais popular, encontramos mais monlogos convencionais, pardias de
sermes sobre tipos sociais e polticos e sobre supersties. Nessa poca, os
monlogos assumiam um carter de pregao, como se fossem um sermo vindo do
plpito. Nas peas de Gil Vicente podem ser encontrados exemplos de monlogos
convencionais e autnticos, mas quase sempre com a funo de pregao. Nessas
peas, anjo e diabo falam alternadamente, mas sem dialogar, dirigindo-se platia
com monlogos em forma de orao. interessante observar que nesse perodo
apareceram vrias peas em forma de monlogos, de carter cmico-satrico.
Nos sculos XVI e XVII, ainda segundo Barros, o teatro recupera a grandeza
alcanada no teatro grego com alguns dramaturgos importantes: na Espanha,
Cervantes, Caldern e Lope de Vega; na Inglaterra, Shakespeare e na Frana, Pierre
Corneille, Racine e Molire. O teatro dessa poca no voltado s religio e nem
essencialmente popular, mas o monlogo continua bem presente. Na tragdia,
monlogos autnticos servem para embelezar e elevar o nvel artstico da pea. Um
exemplo mencionado com frequncia o monlogo de Hamlet, ser ou no ser. No
entanto, os monlogos convencionais, mais numerosos que os autnticos, so
empregados tanto nas tragdias quanto nas comdias e, na maioria das vezes, com
a funo de facilitar a elaborao da pea e no de melhorar a qualidade da obra.
Quanto aos dramaturgos do sculo XVIII, continuam empregando monlogos
na mesma proporo e com as mesmas funes dos autores do perodo anterior.
Entretanto, surge nesse perodo outra funo, o monlogo de protesto contra as
autoridades. Em O Casamento de Fgaro, de Pierre de Beaumarchais (1732-1799),
por exemplo, sob o pretexto de comentar o desenrolar da ao, a personagem ironiza
a arrogncia e os privilgios da classe dominante francesa. No caso, o monlogo
torna-se um meio de propagar as idias revolucionrias do autor.
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No sculo XIX, o teatro tambm influenciado por importantes movimentos
artsticos como o Romantismo, o Realismo e o Naturalismo. Victor Hugo, o principal
terico do romantismo, propunha que a ao deveria ser mostrada ao pblico e no
narrada como na tragdia clssica. Contudo, no teatro romntico, os monlogos
convencionais e at mesmo os apartes, embora condenados, no desaparecem de
cena e os monlogos autnticos adquirem a funo de mostrar o interior das
personagens, ou melhor, seus pensamentos.
Por ser considerado artificial e inverossmil, o monlogo foi praticamente
abolido do teatro naturalista. No entanto, reapareceram as peas de uma nica
personagem, encontradas na Idade Mdia. Um exemplo interessante a pea de
Tchekhov, Os Malefcios do Tabaco, na qual o dramaturgo contorna o problema da
verossimilhana dando pea o formato de uma conferncia. Muitos desses
monlogos representavam a negao da vida. J no sculo XX, multiplicam-se as
peas de uma nica personagem, mostrando que o ser humano est solitrio. Em
muitas dessas peas, percebe-se certo negativismo que ir levar ao aniquilamento da
personagem. Samuel Beckett, por exemplo, escreve Solo (1979), fragmentos de uma
histria sobre nascimento, morte e principalmente solido e Cadeira de Balano
(1980), onde uma mulher escuta a gravao de sua prpria voz enquanto se despede
da vida sentada na mesma cadeira em que sua me morreu. Alguns dramaturgos
passam a usar o monlogo amplamente e agora com a funo de desfazer a iluso
da quarta parede, precisamente para lembrar ao pblico que o teatro uma
conveno, isto , manter o espectador consciente de que o teatro uma
representao dos problemas da vida, da realidade, e que precisamos estar alertas e
crticos. Para Brecht, o monlogo torna-se um dos meios de afastar a iluso que a
representao possa causar, cria um distanciamento. Em A Alma Boa de Setsuan
(1943), por exemplo, existem vrios monlogos e momentos em que os atores falam
diretamente com a platia, com a inteno de fazer o pblico no esquecer que est
no teatro.
Jean-Pierre Ryngaert comentando sobre o dilogo e o monlogo, menciona
Pirandello e lembra que por uma conveno tcita, admite-se no teatro que todo o
discurso das personagens ao falada, ou, em outros termos, que falar fazer
(1996, p.103). Portanto a fala ao, o prprio fato de falar constitui a ao da pea.
Exatamente o que presenciamos no monlogo St Nicholas, nada acontece
diretamente no palco, entretanto a fala da personagem est repleta de ao. Ainda
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assim, St Nicholas estaria mais prximo de um monlogo autntico, pois, revela os
sentimentos do protagonista praticamente o tempo inteiro; contudo no interrompe a
ao uma vez que a fala constitui a prpria ao nesta pea. A nosso ver, St
Nicholas no simula a negao da vida, como nos monlogos de Beckett, mas sim
um perodo de turbulncia na vida do protagonista que o faz rever seus conceitos e
sua posio frente aos caminhos tomados at aquele momento e querer retomar sua
prpria vida de outra maneira. Voltando de um colapso nervoso. Tomando contato
com as coisas. Falando Com Minha Esposa. Dando Conselhos Aos Meus Filhos*
(p.177). Interessante notar as letras maisculas nestas frases, como se tratassem de
ttulos para novas histrias, afinal, ter uma histria essencial para a personagem.
Eu tinha minha sade. Eu tinha soluo. Mas, acima de tudo, o mais importante. Eu
tinha uma histria (p.177). Possivelmente, para criar o mesmo efeito no palco,
imaginamos que o narrador teria que fazer gestos indicando manchetes de jornal,
pois no h nenhuma rubrica que mencione gestos para o narrador durante a pea
inteira. Segundo Clare Wallace, em seu livro Suspect Cultures, McPherson privilegia
os elementos lingusticos e no os visuais, as palavras que devem fazer o
trabalho e no o espetculo do cenrio ou as aes das personagens (2006b, p.59).
Embora St Nicholas no tenha a funo de um monlogo de protesto, o fato
de Conor McPherson ter escolhido um crtico de teatro para contar sua histria, ao
invs de um ator ou mesmo outro profissional ligado ao teatro, no deixa de ser uma
crtica atuao desse profissional, que como um vampiro, precisa do outro para
sobreviver. Para escrever seu texto, o crtico precisa sugar a arte do outro.
Alm da ques