maria rita teixeira silva koster

112
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGÜÍSTICOS E LITERÁRIOS EM INGLÊS MARIA RITA TEIXEIRA SILVA KÖSTER  A VISÃO DO SOBRENATURAL NAS PEÇAS DE CONOR MCPHERSON São Paulo 2009

Upload: joao-gabriel-pontes

Post on 16-Oct-2015

37 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LINGSTICOS E

    LITERRIOS EM INGLS

    MARIA RITA TEIXEIRA SILVA KSTER

    A VISO DO SOBRENATURAL NAS PEAS DE CONOR MCPHERSON

    So Paulo 2009

  • 2

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LINGSTICOS E

    LITERRIOS EM INGLS

    A VISO DO SOBRENATURAL NAS PEAS DE CONOR MCPHERSON

    MARIA RITA TEIXEIRA SILVA KSTER Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos Lingsticos e Literrios em Ingls, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em Letras.

    Orientadora: Profa. Dra. MUNIRA HAMUD MUTRAN

    So Paulo 2009

  • 3

    A

    Klaus, Yuri e Natascha,

    com muito amor, pela compreenso e incentivo

    em todos os momentos desta caminhada.

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a todos que, direta ou indiretamente, participaram comigo na elaborao

    desta dissertao.

    Profa. Dra. Munira Hamud Mutran, por sua valiosa orientao, pelas inmeras

    leituras do meu trabalho, pela afeio, amizade e incentivo.

    Profa. Dra. Beatriz Kopschitz Xavier Bastos pela inspirao, amizade e todo apoio

    desde o incio desta jornada.

    minha me e familiares pelo apoio e compreenso quando minha ausncia se fez

    necessria.

    Profa. Dra. Zoraide Rodrigues Carrasco de Mesquita e Profa. Dra. Maria Silvia

    Betti pelas sugestes e colaborao na banca de qualificao.

    Fabiana Rodrigues Dias pela amizade, companheirismo e preciosas sugestes.

    Sandra Mary Stevens pelo incentivo e carinho em todos os momentos.

    s amigas Elaine Rodrigues da Silva e Maria Eugnia DEspsito pelas leituras,

    reviso e formatao.

    Aos colegas do Grupo de Estudos Irlandeses (GEI) e aos membros da Associao

    Brasileira de Estudos Irlandeses (ABEI) com os quais tive oportunidade de conviver.

    Universidade de So Paulo e ao programa de Ps-Graduao em Estudos

    Lingsticos e Literrios em Ingls, pela oportunidade de desenvolver esta

    dissertao.

  • 5

    RESUMO

    A presente dissertao examina os diferentes elementos do sobrenatural

    encontrados em trs peas do dramaturgo irlands Conor McPherson: St Nicholas

    (1997), The Weir (1997) e The Seafarer (2006). Observa-se que o uso do

    sobrenatural recorrente em sua obra, embora ele empregue elementos diferentes

    em cada uma das peas com o objetivo de retratar as angstias e os problemas

    existenciais do homem contemporneo. St Nicholas uma pardia das histrias de

    vampiros, em The Weir o autor recorre tradio oral irlandesa do contador de

    histrias e em The Seafarer re-escreve a lenda de Fausto.

    PALAVRAS-CHAVE

    SOBRENATURAL VAMPIRO CONTAR HISTRIAS MONLOGO TEATRO

    IRLANDS

  • 6

    ABSTRACT

    The present dissertation examines different elements of the supernatural

    found in three plays by the Irish playwright Conor McPherson: St Nicholas (1997),

    The Weir (1997) and The Seafarer (2006). The supernatural is a recurrent feature in

    McPhersons work, although he makes use of different elements in each of his plays

    with the aim of depicting the anxieties and existential problems of contemporary man.

    St Nicholas is a parody of vampire stories; in The Weir the author resorts to the Irish

    oral tradition of storytelling; and in The Seafarer he rewrites Fausts legend.

    KEY WORDS

    SUPERNATURAL VAMPIRE STORYTELLING MONOLOGUE IRISH

    THEATRE

  • 7

    SUMRIO

    INTRODUO.......................................................................................p.08 CAPTULO 1 St. Nicholas: Um Crtico de Teatro entre Vampiros ...............................p.23 CAPTULO 2 The Weir: O Efeito de Histrias Sobrenaturais ......................................p.46 CAPTULO 3 The Seafarer: O Fausto Contemporneo ............................................. p.70 CONSIDERAES FINAIS...................................................................p.94 BIBLIOGRAFIA.....................................................................................p.104

  • 8

    INTRODUO

    O dramaturgo, diretor e roteirista de cinema Conor McPherson um dos mais

    bem sucedidos representantes da mais jovem gerao do teatro irlands. Nasceu

    em Dublin em 1971 e em 1988 estudou filosofia e literatura no University College

    Dublin (UCD). Escreveu e dirigiu suas primeiras peas para o grupo de teatro

    amador Dramsoc da universidade: Taking Stock (1989), Michelle Pfeiffer (1990),

    Scenes Federal (1991) e Inventing Fortunes Wheel (1991). Em 1992, iniciou seus

    estudos de ps-graduao em filosofia e tica e criou uma companhia de teatro, Fly

    By Night com colegas do UCD. Para esse grupo, McPherson escreveu e dirigiu as

    peas Radio Play (1992), A Light in the Window of Industry (1993) e The Stars Lose

    Their Glory (1994) exibidas no International Bar no centro de Dublin. Embora tenha

    recebido elogios, McPherson considera essas primeiras peas como exerccios e

    no tem planos de encen-las novamente ou de public-las.

  • 9

    Seu mestrado em filosofia resultou na dissertao Logical Constraint and

    Practical Reasoning: On Attempted Refutations of Utilitarianism (1993), cujo objetivo

    seria ilustrar os princpios que levam ao pensamento tico, discutindo teorias e

    conceitos ligados justia, moral e virtudes. Quando estive em Dublin no

    University College (UCD) tive oportunidade de examinar esse trabalho que possui

    ampla bibliografia na rea de tica e utilitarismo.

    Embora tenha iniciado sua carreira de dramaturgo aos 17 anos, McPherson

    acredita ter encontrado uma maneira prpria de escrever s em seu primeiro

    monlogo, Rum and Vodka, encenado em 1992 na universidade em Dublin

    (McPHERSON, 1999, p.179) *. Em outubro de 1994, McPherson foi agraciado com

    o Stewart Parker Award por The Good Thief (1994), pea apresentada no festival de

    teatro em Dublin. Este segundo monlogo tambm foi uma porta de entrada para o

    cinema, pois o produtor irlands Robert Walpole e o diretor Paddy Breathnach,

    impressionados com o trabalho de McPherson, decidiram convid-lo para escrever o

    roteiro de um filme, I Went Down (1997) - o filme foi premiado como melhor roteiro

    no festival de cinema em San Sebastian no mesmo ano.

    Apesar do sucesso das duas peas, Conor McPherson cita seu terceiro

    monlogo - This Lime Tree Bower como sendo o grande impulsionador de sua

    carreira (McPHERSON, 2004b, p.211). Primeiramente encenado em 1995 no Crypt

    Arts Centre, em Dublin, foi transferido dez meses depois para o Bush Theatre em

    Londres, onde recebeu vrios prmios. (Thames TV Award, Guinness/National

    Theatre Ingenuity Award e Meyer-Whitworth Award). McPherson tornou-se, ento,

    escritor residente do Bush Theatre, onde escreveu e encenou St. Nicholas (1997).

    No mesmo ano, publicou seus quatro primeiros monlogos pela editora londrina Nick

    Hern Books.

    A partir dessa poca, suas peas passam a ser produzidas primeiramente em

    Londres e depois transferidas para Dublin e remontadas nos Estados Unidos. The

    Weir, por exemplo, teve sua premiere no Royal Court Theatre Upstairs em Londres

    em 1997 e foi transferida para o Royal Downstairs em fevereiro de 1998; em julho foi

    encenada em Dublin, no Gate Theatre, e em 1999 estreou na Broadway. Todas as

    montagens de The Weir foram dirigidas por Ian Rickson, mas o dramaturgo se fez

    * But Rum and Vodka is the play with which I think I found my voice. People will always associate me with the success of The Weir, but Lime Tree was where I felt I really hit something. Where it really connected with the audience. That was a huge play for me.

  • 10

    presente na escolha do elenco, nos primeiros ensaios em Londres bem como em

    uma apresentao em Nova York (nesse caso, apenas como espectador). Outras

    peas que tambm alcanaram fama internacionalmente so: Dublin Carol (2000),

    Port Authority (2001), Come on Over (2001), Shining City (2004) e The Seafarer

    (2006). McPherson dirigiu tambm a pea Eden (2001) de Eugene OBrien para o

    Abbey Theatre, e os filmes Saltwater (2001), baseado em sua pea This Lime Tree

    Bower, Endgame (2001) feito para a srie Beckett on Film do Channel Four e The

    Actors (2003) com roteiro baseado numa histria de Neil Jordan cineasta e

    dramaturgo irlands, diretor de Michael Collins - O Preo da Liberdade (1996) e

    Entrevista com o Vampiro (1994), entre outros filmes de sucesso.

    Embora Conor McPherson seja um diretor de teatro e cinema, alm de

    roteirista, nosso estudo tem como foco principal suas peas; no nossa inteno

    examinar seus filmes em detalhe. At o presente momento, McPherson publicou dez

    peas. Seus quatro primeiros monlogos foram includos em Conor McPherson:

    Four Plays, em 1999, com um posfcio do autor. Em Rum and Vodka (1992), um

    monlogo dividido em duas partes, o narrador relata o que lhe aconteceu nos trs

    dias depois de ser despedido por beber durante o expediente. Em The Good Thief

    (1994), o protagonista conta o incidente que o levou a cumprir pena de dez anos por

    sequestro. J em This Lime Tree Bower (1995), trs narradores se intercalam

    expondo os acontecimentos que mudaram suas vidas. Em St. Nicholas (1997), o

    protagonista um crtico de teatro que relata a poca em que viveu na casa de

    vampiros em Londres.

    The Weir (1997) foi a pea de Conor McPherson que recebeu maior ateno

    de pblico e crtica at o presente momento ficou dois anos em cartaz em Londres.

    Em The Weir, os monlogos assumem mais a forma de storytelling, pois as

    personagens o dono de um bar isolado no interior da Irlanda (Brendan), trs

    clientes regulares (Jack, Jim e Finbar) e uma mulher (Valerie), que acaba de se

    mudar de Dublin para uma casa da regio, contam histrias sobrenaturais enquanto

    tomam cerveja.

    Em 2004 The Weir foi republicada em uma segunda coletnea sob o ttulo,

    McPherson Plays: Two, incluindo tambm as peas: Dublin Carol, Port Authority e a

    indita Come on Over, juntamente com um posfcio do autor. Em Dublin Carol

    (2000), o agente funerrio John Plunkett conversa com seu assistente Mark e

    relembra os funerais de que j participou. John recebe, ento, a visita de sua filha

  • 11

    Mary forando-o a fazer uma retrospectiva de sua prpria vida, revelando

    oportunidades perdidas e promessas no cumpridas. Em seguida, marcam um

    encontro para mais tarde, a fim de juntos irem visitar a me de Mary, ex-esposa de

    John, que est hospitalizada com cncer em fase terminal. Em Port Authority (2001),

    McPherson retorna forma de monlogo com trs narradores que se alternam para

    contarem episdios de suas vidas. Kevin, vinte anos, sai da casa dos pais para

    morar com uns amigos e sua amiga, Clare, por quem est apaixonado. O segundo

    narrador, Dermot, com cerca de trinta e cinco anos, nos primeiros dias de seu novo

    emprego, descobre que s obteve o lugar porque seu empregador o confundiu com

    outra pessoa. O terceiro narrador, Joe, setenta anos, mora num lar para idosos e

    recebe um pacote misterioso, que o faz relembrar uma breve paixo, nunca

    declarada, pela mulher de seu vizinho, anos atrs. A ltima pea deste volume

    Come on Over (2001), foi encenada para o festival de teatro de 2001 em Dublin

    como parte de um espetculo intitulado Three New Irish Plays, juntamente com The

    Yalta Game, de Brian Friel e White Horses, de Neil Jordan. Come on Over a

    histria de Matthew e Margaret, namorados na adolescncia, que se re-encontram

    aos cinquenta anos. Ele um jesuta que investiga milagres para o Vaticano e ela

    gerencia uma pousada na zona rural da Irlanda. Matthew enviado para investigar o

    corpo de uma menina preservado por 400 anos e, durante sua ltima noite na

    pousada de Margaret, trocam carcias ntimas. No incio da pea, os dois atores,

    encapuzados, falam diretamente com a platia; a partir da metade da pea at sua

    concluso se entreolham e dialogam breve e esporadicamente.

    A nona pea de McPherson, Shining City (2004), foi uma co-produo do

    Royal Court Theatre, em Londres e do Gate Theatre em Dublin. Sob a direo do

    autor, foi encenada primeiramente no Royal Court Jerwood Theatre Downstairs em

    julho de 2004 e teve sua premiere no Gate em setembro de 2004. J em maio de

    2006, Shining City estreia no Biltmore Theatre em Nova York, sob a direo de

    Robert Falls e posteriormente em Chicago no Goodman Theatre, sob a mesma

    direo. Em Shining City, estamos em Dublin e John, perturbado pela morte recente

    da esposa (Mari), cujo fantasma est vagando pela casa, procura o psiclogo Ian

    que - cheio de problemas - tambm busca um novo caminho para sua vida. Ao longo

    da pea, encontramos mais duas personagens: Neasa, ex-esposa de Ian e me de

    sua filha Aisling, e Laurence, garoto de programa que ir proporcionar a Ian sua

    primeira experincia homossexual. Observa-se em Shining City o encontro entre o

  • 12

    real e o irreal, o medo, o desejo e a culpa, enfim os sentimentos que percorrem os

    labirintos da alma numa luta que ir contribuir para definir dois homens - paciente e

    terapeuta - e mudar o rumo de suas vidas. No final, depois que John entrega um

    presente de agradecimento para Ian e vai embora, o terapeuta permanece em cena

    empacotando suas coisas, pois tambm est de partida. Est um tanto escuro, trata-

    se de fim de tarde e vemos o fantasma de Mari aparecer por trs de Ian, vestindo as

    mesmas roupas descritas por John na primeira cena e tambm com os cabelos

    molhados. Ian vira-se, como se pressentisse alguma coisa e apagam-se as luzes.

    A mais recente pea de Conor McPherson, The Seafarer, teve sua premiere

    em Londres no auditrio Cottesloe do National Theatre em setembro de 2006.

    Depois, de fevereiro a maro de 2007, saiu em turn pela Inglaterra com

    apresentaes em Brighton, Bath, Cambridge, Coventry, Salford e Newcastle. Em

    dezembro de 2007, estreou no Booth Theatre em Nova York e ficou em cartaz at

    maro de 2008. E finalmente, em maio de 2008 vai para o Abbey Theatre em Dublin,

    numa curta temporada, devendo retornar em dezembro de 2009. A pea se passa

    numa casa velha em Baldoyle, que fica na costa norte da cidade de Dublin.

    vspera de Natal e Sharky est de volta para cuidar de seu irmo Richard que ficou

    cego recentemente. Os amigos Ivan e Nicky aparecem e trazem o estranho senhor

    Lockhart para um jogo de cartas. No fim do primeiro ato, somos informados de que

    h vinte e cinco anos Sharky e Lockhart j haviam jogado cartas juntos e que agora

    Lockhart quer a revanche; descobrimos que a alma de Sharky que est em jogo e

    Lockhart seria o demnio, que veio busc-la.

    Embora Conor McPherson tenha sido aclamado como um dos mais recentes

    gigantes literrios da Irlanda (CUMMINGS, 2000, p.304)*e tenha dez peas

    publicadas, muitas delas com duas ou trs montagens em diferentes cidades e

    pases, sua fortuna crtica ainda no to ampla. Apesar de muitas resenhas

    publicadas em jornais sobre suas peas, os trabalhos acadmicos relacionados

    sua obra no so to numerosos. Contudo, podemos dizer que a fortuna crtica do

    dramaturgo est se expandindo gradativamente.

    Em 2003, foi lanado o primeiro livro inteiramente dedicado ao seu trabalho,

    Conor McPherson: Imagining Mischief de Gerald C. Wood. Nesse livro, Gerald

    Wood analisa detalhadamente oito peas de McPherson, de Rum and Vodka (1992) * In London and New York, he was, before the age of thirty, Irelands latest literary giant (CUMMINGS, 2000, p.304).

  • 13

    at Come on Over (2001). As peas Shining City e The Seafarer ainda no haviam

    sido escritas. O livro inicia-se com uma cronologia da vida e obra do autor desde seu

    nascimento em 1971 at o futuro lanamento de The Actors (2003), filme que no

    muito discutido por Wood. Na introduo, o crtico expe brevemente a fase inicial

    da obra de McPherson. O segundo captulo dedicado anlise dos quatro

    primeiros monlogos: Rum and Vodka (1992), The Good Thief (1994), This Lime

    Tree Bower (1995) e St. Nicholas (1997). Cada uma dessas peas vista como

    diferente e experimental, revelando a afinidade natural de Conor McPherson com a

    figura do tradicional contador de histrias irlands, o Seancha ou shanachee*. No

    terceiro captulo, destinado exclusivamente a anlise de The Weir, h uma reflexo

    sobre o ttulo e algumas informaes sobre a recepo dessa pea de McPherson.

    Em seguida, os filmes I Went Down e Saltwater so discutidos; este captulo tambm

    contm uma breve descrio da adaptao que McPherson fez da pea Endgame

    para o projeto Beckett on Film e algumas informaes sobre The Actors, ainda em

    manuscrito na poca da anlise. No quinto captulo intitulado Recent Plays: Nowhere

    Except Towards Each Other, Wood discute Dublin Carol (2000), Port Authority

    (2001) e Come on Over (2001), concluindo que estas peas mostram que

    McPherson continua experimentando novas formas teatrais como, por exemplo, o

    uso de monlogos intercalados em Port Authority, onde so relatadas histrias de

    vida diferentes. Wood tambm menciona a temtica do dramaturgo, ele explica que

    nas trs peas acima citadas, as personagens do os primeiros passos em direo

    responsabilidade perante suas prprias vidas; o que contrasta com os protagonistas

    dos dois monlogos iniciais, Rum and Vodka e The Good Thief. Nas peas mais

    recentes as personagens j demonstram empatia e compaixo pelas outras,

    tambm segundo o autor, algumas aceitam suas limitaes e percebem a

    necessidade de buscar ou aceitar ajuda, enquanto outras notam que devem se

    cuidar melhor e ajudar seus familiares. No sexto captulo, o crtico procura definir se

    podemos considerar McPherson um escritor irlands tpico, comentando que ele faz

    parte de um novo tipo de exlio irlands, aquele em que o escritor continua morando

    na Irlanda, mas seus trabalhos so lanados em Londres num primeiro momento e

    com temas que tambm buscam uma universalidade. Inicialmente, as peas de

    McPherson no foram recebidas de braos abertos dentro da Irlanda, pois

    * Seancha ou shanachee, denominao dada ao tradicional contador de histrias irlands. (MARCUS, 2007, vii).

  • 14

    obscenidades, fuga da forma dramtica tradicional - onde a ao se desenrola

    principalmente atravs do dilogo entre os protagonistas - e fins inesperados eram

    vistos com estranhamento pelo pblico irlands; no entanto, na Inglaterra e nos

    Estados Unidos, estes aspectos foram recebidos positivamente como um sinal da

    natureza experimental do trabalho de McPherson, que tido como um autor de

    comdias dotado de uma viso prpria. Ainda que McPherson faa uso do humor

    em suas peas, no acreditamos que as mesmas possam ser rotuladas de

    comdias. O aspecto mais importante deste livro dedicado a obra de Conor

    McPherson uma entrevista com o dramaturgo realizada em dois momentos, junho

    de 2001 e novembro de 2001. Na primeira parte, McPherson discute o processo

    criativo de seu trabalho, explica que as ideias para as histrias aparecem como se

    fossem um filme. O dramaturgo comenta que se a histria se passa em um s lugar -

    como em Dublin Carol e The Weir - ele d preferncia para a forma dialogada, mas

    se a histria acontece em ambientes diversos, ele recorre ao monlogo ou mesmo

    ao filme. McPherson explica que procura escrever por perodos de no mximo uma

    hora; no entanto, entre um perodo e o prximo fica pensando em todos os aspectos

    da histria que est sendo trabalhada e costuma revisar seus textos at mesmo

    durante os ensaios quando aceita a colaborao dos atores na hora de omitir falas

    consideradas desnecessrias.

    As soon as actors start saying what I have written, I see how much of

    it I dont need. I just know when an actors doing something more naturally

    than Ive written. If Ive got good judgement, and I hope I do, I am going to

    throw out my precious thing, my precious joke, whatever it is, which no one is

    getting. If things are left unsaid, you wonder about them more just as you

    wonder about real people. (McPHERSON, apud WOOD, 2003, p.125)

    Pode-se observar que o dramaturgo considera seu texto terminado somente depois

    do incio da produo da pea; durante os ensaios, falas e cenas so alteradas. A

    entrevista prossegue com comentrios sobre as peas Dublin Carol, Port Authority

    e Come on Over, bem como sobre seus filmes.

    A bibliografia de Imagining Mischief contm artigos publicados em livros,

    jornais e revistas sobre a obra do autor. Observa-se que h mais resenhas das

    peas do que artigos propriamente ditos e s dois deles haviam sido publicados em

  • 15

    livros; os livros mencionados so The Full Room: An A-Z of Contemporary

    Playwriting de Dominic Dromgoole e Theatre Stuff: Critical Essays on Contemporary

    Irish Theatre editado por Eamonn Jordan. No entanto, h um nmero considervel

    de resenhas das peas e filmes publicadas principalmente nos jornais: New York

    Times, Irish Times, The Times, Times Literary Supplement e The Guardian ou em

    revistas, tais como Variety, Village Voice e Time Out New York.

    Em Theatre Stuff: Critical Essays on Contemporary Irish Theatre (2000) o

    artigo de Scott T. Cummings, Homo Fabulator: the narrative imperative in Conor

    McPhersons plays, examina brevemente os monlogos Rum and Vodka (1992),

    The Good Thief (1994), This Lime Tree Bower (1995) e St. Nicholas (1997) e, com

    mais detalhes, a pea The Weir (1997). O principal tpico abordado a importncia

    crucial de histrias nas relaes humanas: as histrias contadas em The Weir, por

    exemplo, tm o poder de consolar em casos de perdas, solido e arrependimentos,

    tornando-se pontes que interligam as vidas das personagens da pea.

    Consideramos o artigo de Cummings de suma importncia na anlise crtica da pea

    The Weir.

    Nicholas Grene cita Conor McPherson na concluso de seu livro The Politics

    of Irish Drama: Plays in context from Boucicault to Friel (1999), explicando que The

    Weir no pode ser vista s como uma pea sobre a Irlanda, embora apresente

    temas que sempre estiveram relacionados ao pas, tais como oposio entre rural e

    urbano, celibato ou casamento tardio entre os homens e a viso da mulher como

    objeto de desejo sexual numa sociedade reprimida. Para Nicholas Grene, tais temas

    e o cenrio da pea, um pub irlands na isolada rea rural, chamam a ateno do

    pblico de Londres, Nova York e at mesmo de Dublin, pois a viso romntica e

    mistificada da Irlanda rural ainda bastante presente para algumas pessoas que

    vivem em grandes centros urbanos. Segundo o crtico, o drama irlands tornou-se

    uma moeda no mercado internacional de entretenimento e esse fenmeno capaz

    de gerar dois tipos de resultados: por um lado, permite que escritores de talento

    como Frank McGuinness, Sebastian Barry e Conor McPherson atinjam sucesso

    rapidamente; por outro lado, faz com que dramaturgos de originalidade duvidosa,

    como Martin McDonagh, alcancem sucesso manipulando essa frmula da pea

    irlandesa que j bem conhecida. No compartilhamos a ideia de que McDonagh

    explore esteretipos irlandeses, com a inteno de vender mais o seu trabalho. A

  • 16

    nosso ver, suas peas retratam a problemtica do individualismo humano de uma

    forma diferente e com uma viso mais pessimista do que McPherson.

    Em artigo publicado no Brasil no livro Kaleidoscopic Views of Ireland, editado

    por Munira Mutran e Laura Izarra em 2003, Nicholas Grene volta a citar McPherson,

    desta vez como sendo o dramaturgo mais comprometido com o monlogo no drama

    irlands contemporneo. Grene avalia como o espao representado no drama

    irlands; comeando com as peas de W.B.Yeats, J.M. Synge e Lady Gregory, onde

    a cottage kitchen ou o pub, no palco, tambm representam uma comunidade ou at

    a nao a Irlanda - ou seja, o particular universalizado. Grene segue

    comentando a representao de um auditrio no palco, como em Faith Healer de

    Brian Friel e em Port Authority, com a rubrica de McPherson, The play is set in the

    theatre a pea se passa no teatro. Aqui no h mais a quarta parede e os trs

    personagens-narradores dirigem-se ao pblico, sem interao entre eles, sem

    movimentos de cena e sem efeitos visuais. O que importa agora a histria a ser

    contada. Para Grene, essas narrativas so como fbulas sobre identidade, amor e

    falta de amor, emoes individuais e universais ao mesmo tempo. O teatro torna-se

    ento o espao onde essas narraes em tom confessional acontecem e, ao invs

    de representarem a comunidade ou nao, essas narrativas se auto-representam.

    No artigo Ireland in Two Minds: Martin McDonagh and Conor McPherson,

    publicado em 2006 num livro sobre a obra de Martin McDonagh*, Nicholas Grene

    traa um paralelo entre a primeira pea de McDonagh, The Beauty Queen of

    Leenane (1996) com The Weir e mostra que as duas peas representam vises

    diferentes e estereotipadas da Irlanda que esto presentes no imaginrio do pblico.

    Num primeiro momento, Grene explica que tanto The Beauty Queen of Leenane

    quanto The Weir mostram a Irlanda rural do ponto de vista da cidade; pois,

    McDonagh e McPherson so autores que vivem em Londres e Dublin e passavam

    as frias escolares no campo, na regio de Connemara, oeste da Irlanda. Para o

    crtico, o tema central de The Beauty Queen of Leenane a relao violenta entre

    me e filha como uma forma de desmistificar a Irlanda rural; segundo ele, este tema

    j foi explorado em peas anteriores com, por exemplo, Bailegangaire (1985) de

    Tom Murphy. Embora no possamos descrever o pub como idlico, The Weir possui

    uma atmosfera bem diferente do tdio e brutalidade expressos na Lennane de

    * CHAMBERS, L. & JORDAN, E. (Eds.).The Theatre of Martin McDonagh: A World of Savage Stories. Dublin: Carysfort Press, 2006, 42-59.

  • 17

    Beauty Queen; a micro-comunidade que encontramos no pub de The Weir gentil e

    acolhedora. Outro ponto destacado no artigo o fato de que as duas peas retratam

    o fim da dcada de 90; porm, os dramaturgos trabalham com a oposio o

    antiquado versus o moderno de maneira diferenciada. Enquanto Beauty Queen est

    centrada no conflito entre o arcaico e o moderno, pois as personagens esto presas

    entre o passado mtico sufocante e as banalidades modernas assistidas pela

    televiso, The Weir procura derrubar essa diferena, ao mostrar que solido,

    abandono, perverso sexual e morte so experincias humanas comuns tanto na

    vida rural quanto na vida urbana, tanto no passado quanto no presente. O terceiro

    ponto mencionado por Grene refere-se oposio entre conflito e consolao.

    Beauty Queen, com toda sua violncia, representa o conflito, ainda to presente

    para muitas pessoas quando se fala em Irlanda. The Weir, no entanto, simula a

    solidariedade encontrada em comunidades pequenas que vivem em lugares

    remotos. Deste modo, Beauty Queen representaria a viso da Irlanda sempre em

    conflito e The Weir a Irlanda pastoral, um lugar a parte, onde se pode encontrar a

    inocncia dos tempos pr-modernos. Grene comenta que o fato destas duas vises

    diferentes ainda serem to presentes, explica a razo do sucesso de duas peas to

    distintas. Para ele, aqueles que apreciam a pea de McDonagh devem achar a de

    McPherson muito sentimental; e os que gostam de The Weir, acham Beauty Queen

    cruel.

    Nicholas Grene no o nico a comparar essas duas peas; Brad Kent, da

    Concrdia University em Montreal, examina as mesmas peas em seu artigo

    intitulado McDrama: The sentimental in Martin McDonaghs The Beauty Queen of

    Leenane and Conor McPhersons The Weir publicado na edio dupla do peridico

    Canadian Journal of Irish Studies em 2003. Para ele, o fato de as peas estarem

    situadas no oeste da Irlanda, regio dos cartes postais e calendrios, terra de mitos

    e fadas e a rea mais procurada por turistas, refora ideias estereotipadas do que

    ser irlands e da Irlanda tida como autntica e sentimental. Kent acredita que ao

    procurar derrubar tais esteretipos, as peas acabam por refor-los e ambas fazem

    sucesso internacionalmente porque os irlandeses, sua terra e sua cultura so tidos

    como mercadorias valiosas no turismo cultural.

    The Weir tambm analisada detalhadamente no artigo de Eamonn Jordan,

    Pastoral Exhibits: Narrating Authenticities in Conor McPhersons The Weir,

    publicado em 2004 no peridico Irish University Review vol. 34 n.2. Eamonn Jordan

  • 18

    considera a pea como meta-pastoral; ele explica que as histrias narradas retomam

    o passado, dando-lhe uma nova coerncia e delineando novas posies as

    personagens na sequncia de suas vidas. Interessante observar que a histria de

    Valerie - personagem vinda da cidade que ir gerar mudana nas outras

    personagens, pois apenas atravs de sua narrativa que os moradores do campo

    enfrentam suas realidades. Eamonn Jordan tambm examina a funo do espao

    narrativo, o bar ou pub, lugar comunitrio e isolado, que se torna um elemento chave

    para promover o relaxamento necessrio a essa troca de experincias pessoais,

    moldadas como narrativas, que representariam portas de entradas para um mundo

    privado e realidades que no seriam acessveis atravs de interaes como o

    dilogo comum.

    Em Critical Moments: Fintan OToole on Modern Irish Theatre (2003), editado

    por Julia Furay e Redmond OHanlon, h uma resenha de The Weir referente noite

    de lanamento em Nova York no Walter Kerr Theatre em abril de 1999. Fintan

    OToole esclarece que no h um enredo complexo, no acontece nada durante a

    pea, as personagens se encontram em um pub, contam suas histrias enquanto

    bebem e saem no final. No entanto, as histrias sobrenaturais criam um caminho

    para explicar os sentimentos diante da perda de um ente querido. Para OToole, o

    eixo central de The Weir a morte e a necessidade de encontrarmos uma

    linguagem apropriada para que possamos expressar os sentimentos que veem

    tona diante dela. Fintan OToole conclui que a pea traz um senso de dignidade

    profundo, mostrando que, as vezes, o que nos assombra no so os fantasmas e

    sim a memria dos que nos deixaram.

    Em Ireland on Stage: Beckett and After (2007), editado por Hiroko Mikami,

    Minako Okamuro e Naoko Yagi, o artigo de Naoko Yagi, Multiple Monologues as a

    Narrative: From Beckett to McPherson, examina o uso do monlogo no teatro de

    Samuel Beckett, Harold Pinter, Brian Friel e Conor McPherson. Em sua anlise, Yagi

    menciona brevemente This Lime Tree Bower (1995) e se atm mais a Port Authority

    (2001), onde as personagens Kevin, Dermot e Joe narram histrias bem particulares

    de suas vidas dentro do teatro - que acaba adquirindo uma conotao quase

    religiosa - com o palco transformando-se num grande confessionrio e o

    pblico/espectadores assumindo o papel de padre/ouvinte. Este artigo til para

    analisarmos a questo do monlogo tambm nas outras peas de McPherson, pois

    pode-se verificar que tais comentrios aplicam-se s demais peas do dramaturgo.

  • 19

    Em Suspect Cultures, Clare Wallace (2006b) tambm analisa os monlogos

    de McPherson no captulo intitulado Solitary Micronarratives, no qual a autora

    examina mais detalhadamente St Nicholas porque, segundo ela, uma pea que

    levanta questes pertinentes para a compreenso de toda a obra inicial do

    dramaturgo. Wallace investiga o uso do monlogo como recurso para a quebra de

    iluso e lembra que forma e contedo esto entrelaados nas narrativas das peas

    iniciais do autor. Num outro livro editado por Clare Wallace (2006a), Monologues

    Theatre, Performance, Subjectivity, encontramos trs artigos que abordam o uso do

    monlogo e narrativas no teatro irlands da dcada de 1990. Look Whos Talking,

    Too: The Duplicitous Myth of Nave Narrative, de Eamonn Jordan, fornece uma

    explicao muito interessante para a proliferao dos monlogos na Irlanda

    contempornea e identifica quatro tipos diferentes de monlogos nessa dcada,

    exemplificando com algumas peas de McPherson. No segundo artigo intitulado Am

    I Talking to Myself? Men, Masculinities & the Monologue in Contemporary Irish

    Theatre, Brian Singleton discute: Howie the Rookie, de Mark ORowe; Cold Comfort,

    de Owen McCafferty; bem como as peas: Rum and Vodka, This Lime Tree Bower e

    Port Authority de Conor McPherson. O terceiro artigo, significativo para este

    trabalho, Will the Wordy Body Please Stand Up? The Crises of Male

    Impersonation in Monological Drama Beckett, McPherson, Eno, de Eckart Voigts-

    Virchow e Mark Schreiber. Segundo os autores, nas peas de McPherson, a forma

    de monlogo representa uma maneira de compartilhar narrativas entre ator, platia e

    escritor, e a maioria das histrias tem como temtica a crise da masculinidade, pois

    o dramaturgo leva ao palco personagens masculinas perdidas e sem esperanas,

    que precisam desesperadamente dividir suas angstias com o pblico.

    Encontramos breves referncias a Conor McPherson no livro de Christina

    Hunt Mahony, Contemporary Irish Literature: Transforming Tradition (1998) e em The

    Full Room: An A-Z of Contemporary Playwriting (2002) de Dominic Dromgoole

    Ambos consideram o dramaturgo como uma voz promissora no teatro

    contemporneo.

    A apresentao do que j se escreveu sobre Conor McPherson reveste-se de

    importncia porque o dramaturgo ainda pouco conhecido entre o pblico brasileiro;

    esperamos com este trabalho proporcionar possibilidades para futuros estudos e

    tradues de sua obra.

  • 20

    Cinco das dez peas de Conor McPherson publicadas at o presente

    momento tm elementos do sobrenatural; todavia, nenhum artigo lido trata tal

    aspecto em profundidade. Alm disso, The Seafarer ainda no recebeu ateno da

    crtica. Portanto, por se tratar de um recurso to recorrente na obra do dramaturgo e

    ainda pouco abordado por crticos e estudiosos, escolhemos como foco de nossa

    pesquisa a viso do sobrenatural na obra de Conor McPherson.

    O termo sobrenatural utilizado para designar algo que foge do padro,

    inusitado, capaz de gerar medo ou estranhamento por ser incomum; as pessoas

    costumam temer o que no conhecem e por isso algo considerado fora do comum

    pode ser to espantoso. Segundo Marie Mulvey-Roberts (1998), em The Handbook

    to Gothic Literature, esse termo engloba todas as reas alm do mundo natural,

    sendo geralmente usado para nomear criaturas fantsticas e foras demonacas que

    possam existir em dimenses paralelas s foras que regem nossa existncia fsica.

    A crena no sobrenatural parece ser uma caracterstica de praticamente todas as

    sociedades; embora o significado possa diferir de uma comunidade para outra,

    existe um consenso de que as criaturas e foras sobrenaturais possuem algumas

    habilidades especficas, tais como atravessar a fronteira entre a vida e a morte,

    transcender os limites entre o tempo e o espao, mover entre o visvel e o invisvel,

    viajar entre o mundo espiritual e material. Ainda, segundo a autora, os seres do

    mundo sobrenatural possuem muitos poderes e so capazes de se manifestar para

    os seres humanos por sua prpria vontade ou se forem invocados. Essas foras

    invadem o mundo real o plano humano ou terreno em forma de acontecimentos

    espantosos, horripilantes ou mesmo como milagres. Portanto, podem ser foras

    satnicas - representantes do Mal - ou foras do Bem: como anjos ou guias

    espirituais.

    Ao falar em sobrenatural, lembramos da chamada fico gtica, que

    despontou no sculo XVIII, na Inglaterra, com a obra The Castle of Otranto, de

    Horace Walpole, publicada em 1764, e que tinha como subttulo a expresso: A

    Gothic Story. Os principais elementos dos contos gticos seriam ambientes sombrios

    como runas e castelos medievais e seus respectivos pores, criptas e passagens

    secretas, habitados por fantasmas, demnios, esqueletos e outras criaturas

    sobrenaturais; bem como personagens enigmticas e misteriosas, sendo que

    geralmente as personagens femininas encontravam-se em apuros para serem

  • 21

    salvas pelo heri. Outros autores frequentemente associados ao gnero gtico so:

    Ana Radcliffe, Mathew Gregory Lewis e Mary Shelly. Jeffrey N. Cox observa que o

    drama gtico, embora no to estudado quanto os romances, tambm era popular

    no fim do sculo XVIII e Horace Walpole escreveu a primeira pea considerada

    gtica, The Mysterious Mother (1768). No entanto, a maioria das peas gticas eram

    adaptaes dos romances e contos; durante a dcada de 1790, o foco na

    personagem heri-vilo - aristocrata carismtico, torturado e violento - oferecia um

    tipo diferenciado de tragdia, pois mesclava o drama srio com outras formas como

    a comdia, o romance e a pera (COX, 1998, p. 75). Segundo Massaud Moiss,

    considera-se o fim do perodo ureo da fico gtica a narrativa Malmoth the

    Wanderer, publicada em 1820, do irlands Charles Robert Maturin (2004, p.212);

    esta obra uma mistura de Fausto com a legendria figura do Judeu Errante.

    W. J. McCormack (1992), em Irish Gothic and After, observa que Charles

    Robert Maturin (1782-1824), Joseph Sheridan Le Fanu (1814-73) e Bram Stoker

    (1847-1912) so sempre lembrados como os trs maiores representantes da

    literatura gtica irlandesa; no entanto, o estudioso refuta a ideia de que exista na

    Irlanda uma tradio gtica nos mesmos moldes da literatura gtica da Inglaterra.

    Ele acredita que na Irlanda, alguns escritores abordaram certas situaes que

    historicamente eram especficas do pas, utilizando-se de elementos gticos em

    seus trabalhos, como por exemplo, a apario de fantasmas, vampiros, fadas ou

    outros seres do mundo sobrenatural.

    Parte desse mundo sobrenatural pode ser visto nas peas de Conor McPherson.

    Ao longo de nossa pesquisa foi recorrente a pergunta: com que intuito o dramaturgo

    usa to largamente o sobrenatural no fim do sculo XX e incio do XXI, era da

    cincia e tecnologia? A escolha de nosso estudo recaiu em trs peas nas quais os

    elementos sobrenaturais predominam e permeiam a trama: St. Nicholas (1997), The

    Weir (1997) e The Seafarer (2006).

    Depois de ter escolhido as trs peas, nossa proposta foi identificar os diferentes

    elementos do sobrenatural nelas presentes, buscando em textos literrios ou do

    folclore irlands as fontes de McPherson. Acreditamos que o dramaturgo no tenha

    por objetivo a recuperao da tradio de contar histrias, mas sim que ele se utiliza

    de narrativas com a presena de seres sobrenaturais para chamar a nossa ateno

  • 22

    para temas que afligem a humanidade, como por exemplo, a solido, o medo da

    morte e as crises existenciais do homem contemporneo.

    No captulo 1 examinaremos St. Nicholas, com reflexes sobre o uso do tema

    do vampiro nessa pea e utilizando o conceito de pardia na definio de Linda

    Hutcheon e Afonso Romano SantAnna. O captulo 2 investigar o efeito das

    histrias sobrenaturais nas personagens de The Weir, conjeturando sobre a

    tradicional figura do contador de histrias na Irlanda e as possveis ligaes com

    narrativas do folclore irlands. No captulo 3 analisaremos a pea The Seafarer,

    refletindo sobre as fontes empregadas pelo dramaturgo para compor seu Fausto

    contemporneo; para tanto, utilizaremos o conceito de intertextualidade sugerido por

    Julia Kristeva citado por Sandra Nitrini e Leyla Perrone-Moiss.

  • 23

    CAPTULO 1

    St. Nicholas: Um Crtico de Teatro entre Vampiros

    There was life before the vampires and life after the vampires.

    Ben Brantley*

    Das peas escolhidas para o presente estudo, St Nicholas a primeira em que

    aparecem elementos do sobrenatural. Ela foi escrita durante o perodo em que o

    dramaturgo era escritor residente do Bush Theatre em Londres. Em suas peas

    iniciais, Conor McPherson quase no faz uso de rubricas, talvez porque ele mesmo

    tenha dirigido todas as primeiras montagens. As duas nicas rubricas de St Nicholas

    indicam que o palco est totalmente vazio e que a personagem um homem de

    cerca de sessenta anos, cujo nome ns nem sabemos. Entretanto, o autor explica no

    posfcio que, enquanto estava escrevendo a pea, tinha sempre em mente o

    escocs Brian Cox para represent-la; e que havia at retirado de uma revista uma

    foto do ator e colado-a na pasta que usava durante o processo criativo. Na poca da

    escolha do protagonista, McPherson conversou longamente com o diretor artstico

    * BRANTLEY, Ben. Theater Review: A Most Dramatic Drama Critic. New York Times, 18/03/1998. Disponvel em:. Acesso em: 21/10/2008.

  • 24

    Mike Bradwell antes de decidirem enviar o script para Brian Cox, que estava fazendo

    um filme em Hollywood na poca. Ambos achavam que seria quase impossvel um

    ator to ocupado aceitar o papel; ficaram surpresos quando Brian ligou para acertar

    as datas dos ensaios (McPHERSON, 1999, p.188). Brian Cox, com ajuda de um

    especialista, trabalhou muito para reproduzir o sotaque irlands e St Nicholas foi bem

    recebida pelo pblico e pela crtica. Na maioria das resenhas, como em The London

    Times, foi mencionada a apropriada escolha do ator que, alm de ser uma presena

    forte no palco, soube ressaltar o lado humorstico da obra.

    Brian Cox has the audience in the palm of his hand. Not for a moment

    does he or the play let our attention drop. St. Nicholas has mystery,

    mischief, humour, suspense, surprise... wholly riveting*!

    A narrativa, um monlogo de um nico ator num palco vazio, muito simples.

    Um crtico de teatro, mal-intencionado, pouco srio, detestado e temido pelas crticas

    custicas que escreve antes mesmo do trmino dos espetculos; apaixona-se pela

    atriz Helen que faz o papel principal numa encenao de Salom no Abbey Theatre.

    Para atra-la, diz que escreveu uma crtica favorvel pea, embora tenha feito o

    oposto, e com isso tenta encant-la. Embora seja casado, tenha um casal de filhos e

    more numa casa confortvel em Dublin, decide abandonar a famlia e ir para Londres,

    onde a atriz se apresentaria por duas semanas. Em Londres, conhece William, um

    vampiro que mora numa casa velha e decadente no subrbio com cinco mulheres,

    tambm vampiras. O narrador ento contratado por William para atrair jovens;

    passa as noites indo a festas e bares procurando mais vtimas para seu mestre. Em

    uma de suas andanas, re-encontra-se com a atriz Helen e a leva para casa de

    William. Vendo-os juntos decide salv-la e volta para esposa e filhos. Entretanto, o

    protagonista-crtico comenta que o mais importante dessa experincia que agora

    ele tinha uma histria para contar.

    Mas por que no fim do sculo XX mais uma pea sobre vampiros?

    impossvel no relacionar William, o vampiro de St Nicholas, com a famosa

    personagem criada pelo escritor irlands Bram Stoker no romance Dracula (1897).

    *Resenha publicada em The London Times. Disponvel em : http://www.matrixtheatre.com/shows/stnicholas.html. Acesso em: 10/11/2009.

  • 25

    Esta obra representa um ponto alto na tradio da fico sobrenatural irlandesa, mas

    vampiros podem ser encontrados na literatura antes mesmo de Drcula.

    Em O Vampiro antes de Drcula, Martha Argel e Humberto Moura Neto (2008)

    apresentam um longo histrico de aparies do vampiro na prosa, na poesia e no

    teatro e explicam que o conto do ingls John William Polidori (1795-1821), The

    Vampyre, publicado em 1819 pode ser considerado como o ponto de partida da

    prosa vamprica. Antes deste conto, s se conhecia o vampiro folclrico que era visto

    como um monstro repugnante com unhas compridas, barba malfeita, boca e olhos

    esbugalhados, rosto vermelho e inchado, sempre envolto em sua mortalha. Polidori

    criou o vampiro aristocrata, o nobre satnico, sedutor e elegante, um ser que convivia

    em sociedade, frequentava festas e viajava por diversos pases escolhendo suas

    vtimas. Conta-se que Polidori usou como base de seu conto um fragmento de uma

    histria sobrenatural escrita pelo poeta britnico Lord Byron. Em junho de 1816, uma

    tempestade prolongada manteve um grupo de amigos isolados numa casa alugada

    por Byron na Sua. Deste grupo faziam parte alm de Byron e Polidori - na poca,

    secretrio e mdico particular de Byron - o tambm poeta Percy Bysshe Shelley, sua

    futura esposa, Mary Wollstonecraft Godwin, e a meia-irm desta, Claire Clairmont.

    Para passar o tempo, eles liam em voz alta histrias sobrenaturais. Certa noite foi

    proposto que cada um escrevesse uma histria de fantasmas. Percy Shelley

    comeou um conto que no chegou a terminar e Claire parece no ter escrito nada.

    J Mary, deu incio a um conto que depois se transformaria no romance Frankenstein

    (1818). Polidori comeou uma histria sobre uma mulher que teve sua cabea

    transformada em caveira depois de espiar por um buraco de fechadura, e Lord Byron

    escreveu o relato da morte repentina e inexplicvel de um amigo chamado Augustus

    Darvell. Polidori apropriou-se desta narrativa e criou o vilo de seu conto Lord

    Ruthven imagem e semelhana do poeta Byron. O conto foi um grande sucesso

    pois, por engano ou m-f, foi publicado com autoria falsamente atribuda a Byron e,

    apesar dos protestos tanto de Byron como de Polidori, a histria continuou por muito

    tempo sendo tratada como obra de Byron. Interessante observar que a partir de uma

    brincadeira entre amigos tenham sido criadas duas importantes obras da literatura

    sobre o sobrenatural: Frankenstein (1818), de Mary Shelley e o conto The Vampyre,

    que estabeleceu de uma vez por todas o prottipo do vampiro na fico, no teatro e

    posteriormente no cinema. (ARGEL & MOURA NETO, 2008, p. 28). O vilo Lord

    Ruthven do conto de Polidori serviu de inspirao para outras obras, especialmente

  • 26

    na Frana e na Inglaterra, entre elas, podemos mencionar uma adaptao para o

    teatro francs feita em 1820 por Charles Nodier Le Vampire - que muito contribuiu

    para a popularizao da figura do vampiro na poca.

    Por outro lado, na Irlanda, em 1872, segundo Peter Tremayne, em Irish

    Masters of Fantasy (1979), uma imagem mais inovadora para o vampiro foi

    apresentada pelo escritor irlands de contos sobrenaturais, Sheridan Le Fanu (1814-

    1873), com o lanamento de seu conto Carmilla, que incorpora a crena em vampiros

    a um ambiente gtico. Na narrativa de Le Fanu uma srie de mortes dizima as moas

    de uma regio prxima do castelo onde vive a narradora Laura, depois que Carmilla

    passa a morar com ela. No decorrer da histria percebe-se que Carmilla (anagrama

    de Mircalla) a condessa Mircalla de Karnstein, morta h mais de um sculo e

    enterrada a meia lgua do castelo. A vampira no suporta os cantos fnebres e

    religiosos, no faz suas oraes antes de dormir e, alm disso, ela capaz de sair de

    seu quarto sem abrir portas ou janelas. Como no come, ela constantemente

    acometida de languidez, tem caninos pontiagudos e assume a forma de um gato

    monstruoso. Quando suga o sangue de uma pessoa deixa uma marca azulada e no

    momento em que o General Spielsdorf, cuja filha ela matou, ataca-a com um golpe

    de machado, ela desaparece numa nvoa.

    O renomado escritor irlands Bram Stoker (1847-1912) inspirou-se tambm

    nos trabalhos de Polidori e Le Fanu para compor sua mais famosa personagem - o

    Conde Drcula um predador aristocrtico, sado do tmulo, que hipnotiza,corrompe

    e se alimenta do sangue de lindas moas. Entre as inovaes, o vampiro Drcula tem

    a necessidade de repousar num caixo com solo nativo, no pode entrar nas casas

    sem ser convidado e sua imagem no se reflete em nenhum espelho. O romance foi

    publicado em 1897, no entanto Stoker escreveu o conto Draculas Guest, publicado

    postumamente em 1914 por Florence Bram Stoker, numa coleo de contos

    intitulados Draculas Guest and Other Weird Stories. No prefcio explica-se que tal

    conto havia sido suprimido do romance pelos editores, que acharam o manuscrito

    original muito extenso. Existem semelhanas entre Carmilla e essas obras de Stoker.

    Em Draculas Guest surge um lobo muito estranho, que no parece ser um simples

    animal e na histria de Le Fanu a herona se v frente a frente com um enorme gato,

    que mais parece um lobo. J em Dracula, o vampirlogo Abraham Van Helsing,

    quando est ensinando a seus amigos tudo o que preciso saber sobre os vampiros,

    esclarece que tal criatura precisa nutrir-se do sangue dos vivos, no se alimenta

  • 27

    como os homens e possui uma fora extraordinria, podendo transformar-se em lobo

    ou em morcego e quando se aproxima de algum, geralmente est envolto numa

    bruma gerada por ele mesmo. O alho e a cruz de ouro so mencionados como

    objetos que tiram o poder do vampiro.

    Bram Stoker faleceu em 1912, mas Drcula s alcanou fama no final da

    dcada 1920, em decorrncia do sucesso de uma adaptao do romance para o

    teatro e posterior transposio para o cinema, com o filme Dracula (1931) da

    Universal Studios, dirigido por Tod Browning e com Bela Lugosi no papel do vampiro.

    Argel e Moura Neto (2008, p.307) explicam que houve alguns filmes anteriores

    baseados em Dracula. Embora um deles, o filme mudo alemo Nosferatu (1921),

    dirigido por F.W. Murnau seja considerado um clssico atualmente, nenhum deles

    teve grande impacto na disseminao da obra e do mito junto ao pblico. A aparncia

    do ator Bela Lugosi, suas maneiras distintas e o sotaque hngaro fizeram com que

    seu desempenho fosse ao mesmo tempo assustador e memorvel para a poca.

    Segundo J. Gordon Melton, em O Livro dos Vampiros, o filme de Browning

    estabeleceu a imagem visual do vampiro que se tornou padro: uma figura

    aristocrtica sinistra, de maneiras elegantes, sotaque estrangeiro e que se veste para

    a noite de maneira formal, com uma longa capa esvoaante (2003, p.13).

    O sucesso cinematogrfico atingiu as massas ao redor do mundo e permitiu

    que o vampiro invadisse nossas vidas atravs de todos os tipos de mdia que se

    desenvolveram nos sculos XX e XXI. Eles podem ser encontrados nas histrias em

    quadrinhos, em romances para adolescentes, desenhos animados, televiso, jogos

    de RPG, vdeo games e em diversos sites da Internet. Desde sua origem, o vampiro

    passou por muitas transformaes: da figura monstruosa do folclore, passando pela

    figura do nobre do conto de Polidori que conquistou a Europa at a figura do conde

    Drcula que conquistou o mundo.

    Em St Nicholas, poderamos perguntar: que mudanas esse monlogo imps

    figura do vampiro? Alm do mais, St Nicholas foi escrita em 1997, ano de

    comemorao do centenrio do romance de Bram Stoker que suscitou eventos nos

    Estados Unidos, no Canad, na Gr-Bretanha e na Irlanda; cada um desses pases

    at lanou um selo comemorativo com Drcula. Estaria Conor McPherson parodiando

    a figura do vampiro em St Nicholas?

    Segundo Linda Hutcheon, a pardia pode ser definida como a inverso

    irnica, nem sempre s custas do texto parodiado, ou seja, uma repetio com

  • 28

    distncia crtica, que marca a diferena em vez da semelhana (1985, p.17). Para

    Afonso Romano SantAnna, a pardia a inverso do significado e tem o seu

    exemplo mximo na apropriao, que se situa no conjunto das diferenas, com fora

    crtica (2004, p.48). SantAnna complementa que a pardia seria como um espelho

    invertido, ou mesmo uma lente: exagera os detalhes de tal modo que pode converter

    uma parte do elemento focado num elemento dominante, invertendo, portanto, a

    parte pelo todo, como se faz na charge e na caricatura (2004, p.32). Estamos,

    portanto, falando de um conceito que supe distanciamento, inverso do sentido com

    efeito irnico e crtico.

    O Dracula de Stoker foi o tema da Dissertao de Mestrado de Valdemar

    Francisco de Oliveira Filho A Suspenso Momentnea da Ordem e Hierarquia em

    Dracula, de Bram Stoker (2005) sob a orientao da Profa. Dra. Laura Patrcia

    Zuntini de Izarra, da Universidade de So Paulo. Neste trabalho, o autor sugere que

    podemos considerar a estada de Jonathan no castelo de Drcula como um ritual de

    iniciao necessrio, um rito de passagem da inocncia para a maturidade. Segundo

    Oliveira Filho, os ritos de passagem possuem uma estrutura trifsica - separao,

    iniciao e retorno. Primeiro h um perodo de separao, quando o iniciado dever

    afastar-se do dia-a-dia e por algum tempo ir ser uma pessoa no-normal que vive

    num tempo no-normal. Geralmente o iniciado mantido num espao fechado e sem

    acesso s pessoas do seu convvio comum; submete-se a uma srie de prescries

    e de proibies que podem ser sobre comida, vestimenta e movimentos; quando

    termina este perodo, ele retornar sociedade normal assumindo seu novo papel.

    Assim, Jonathan isolado do convvio dos seres humanos normais, defronta-se com

    o mundo dos vampiros no castelo de Drcula, consegue escapar e retorna

    sociedade com o conhecimento necessrio para ajudar os caadores a exterminarem

    o Conde Drcula. Ainda, segundo o autor, Drcula o doppelgnger* de Jonathan,

    isto , o conde Drcula seria o outro Jonathan, o seu duplo, conceito muito comum

    na literatura fantstica, como por exemplo, Dr. Jekyll e Mr. Hyde ou Dorian Gray e

    seu retrato. Esse outro representa um eu adorado e odiado ao mesmo tempo.

    * Doppelgnger, segundo as lendas germnicas de onde provm, um monstro ou ser fantstico que tem o dom de representar uma cpia idntica de uma pessoa que ele escolhe ou que passa a acompanhar. Ele imita em tudo a pessoa copiada, at mesmo suas caractersticas internas mais profundas. O nome Doppelgnger se originou da fuso das palavras alems doppel (significa duplo, rplica ou duplicata) e gnger (andante, ambulante ou aquele que vaga). Disponvel em: Acesso em: 22/11/2008.

  • 29

    Drcula, o outro Jonathan, que se liberta, e livre, prepara-se para trazer o caos

    vida de Jonathan.

    Logo percebemos a semelhana entre o rito de passagem de Jonathan em

    Dracula com os acontecimentos relatados em St Nicholas; ao afastar-se do seu dia-a-

    dia em Dublin, indo para Londres e convivendo com o mundo dos vampiros um

    determinado tempo, o protagonista escapa e, transformado, volta a conviver em

    sociedade. H, porm, muitas diferenas entre o narrador de St Nicholas e a

    personagem do romance de Stoker. Jonathan um rapaz jovem, solteiro que viaja a

    trabalho, para levar os papis da propriedade que Drcula adquiriu em Londres para

    serem assinados. O protagonista de St Nicholas um homem de quase sessenta

    anos, casado, com dois filhos, que abandona emprego e famlia para ir Londres em

    busca de uma paixo por uma jovem atriz. No incio era egosta, no se comunicava

    bem com a famlia, bebia muito e no produzia nada importante. Embora tivesse

    grande habilidade de conectar as palavras, no tinha ideias para escrever suas

    prprias histrias, s se limitava a criticar o trabalho de outros. Ao sair da casa do

    vampiro, ter uma segunda chance de retomar sua vida com esposa e filhos e

    finalmente ter uma histria para ser contada. O protagonista-crtico no um heri

    dos contos gticos e da era vitoriana, mas sim o heri do nosso mundo, dos dias de

    hoje. Mora numa casa confortvel na melhor rea de Dublin; sua esposa est fora de

    forma e, assim como ele, bebe muito; sua filha est na faculdade e parece gostar de

    escrever contos e poemas e seu filho no faz nada - sustentado pelo pai. Portanto,

    esse narrador um tpico homem de meia-idade bem sucedido financeiramente, mas

    infeliz com sua prpria vida e as relaes que o cercam. A vida que levava antes do

    convvio com os vampiros no tinha muito sentido para ele; o final da pea sugere um

    estilo de vida melhor. O rito de passagem de Jonathan em Dracula marca a mudana

    da adolescncia para a vida adulta; para o crtico o rito de passagem diferente, no

    est somente ligado idade, mas tambm maneira como ele encara o mundo e o

    legado que ir deixar. No incio de seu monlogo, ele explica que podia sentir que o

    tempo estava passando e ele no havia feito nada ainda - as mesmas ansiedades

    que acometem o homem contemporneo.

    A epgrafe deste captulo reproduz o incio da resenha de St Nicholas que Ben

    Brantley escreveu para o New York Times, sugerindo que, embora o protagonista

    tenha dividido sua vida em antes e depois do convvio com os vampiros, na verdade

    ele j seria uma espcie de vampiro, mesmo antes de ter tido contato com eles.

  • 30

    Quando o narrador entra em contato com o mundo do vampiro William, ele percebe

    no vampiro, no outro, aquilo que ele mesmo no quer ser. As mesmas crticas que

    ele faz ao vampiro so os aspectos negativos de sua prpria personalidade.

    Lembramos aqui que assim como Drcula o doppelgnger de Jonathan, William

    seria o duplo do protagonista. O crtico de teatro se alimenta da arte dos outros da

    mesma maneira que o vampiro se nutre do sangue alheio; afinal, sangue e arte so

    smbolos da vida. Alm disso, ele tambm gosta do poder que exerce sobre os

    artistas atravs do medo, uma vez que uma crtica ruim poder arrasar qualquer

    carreira. Estamos diante de uma metfora, o protagonista-crtico visto como um

    vampiro e quando ele percebe que os vampiros so seres sem conscincia, ele

    prprio toma conscincia de como deve agir, voltar a ter contato com as coisas

    (p.177). Entende que durante a vida toda foi um ser que afastava as pessoas e viveu

    como um vampiro; porm, agora ele quer o poder de tocar as pessoas. Este poder

    ir se concretizar na histria a ser contada.

    Observamos que o ttulo da pea - St Nicholas - faz aluso ao Bispo de Myra,

    no sul da Turquia, tambm conhecido por Santa Claus, e famoso por sua piedade

    perante os menos favorecidos, protegendo e presenteando sempre as crianas e

    tambm praticando a castidade. Nenhuma semelhana com o nosso protagonista. Ao

    escolher tal ttulo McPherson estaria usando de ironia. Segundo Douglas Colin

    Muecke, em Ironia e o Irnico a definio de ironia no dizer uma coisa e dar

    entender o contrrio, mas sim dizer alguma coisa de uma forma que ative no uma,

    mas uma srie infindvel de interpretaes subversivas (1995, p.48). Alm de o

    narrador ser o oposto do Bispo de Myra em termos de personalidade, St Nicholas

    tambm uma aluso ao Natal, tempo de recomeo, exatamente o que poder

    acontecer depois que o protagonista-crtico consegue escapar dos vampiros.

    Notamos tambm que antes de ter trabalhado para os vampiros ele se sentia como o

    protetor das massas contra os artistas charlates que tentavam roubar o dinheiro do

    povo (p.138)*. Mais uma irnica referncia ao Bispo que protegia os menos

    favorecidos. Enquanto o narrador convive com os vampiros, ele tenta escrever sobre

    os momentos em que ele se importava com os seus e lembra-se dos filhos pequenos

    na vspera do Natal. Percebe-se que o Natal uma imagem recorrente na pea.

    Alm de St Nicholas, McPherson faz referncias ao Natal em duas outras peas:

    * Todas as citaes de St Nicholas so desta edio: McPHERSON, Conor. McPherson: Four Plays London: Nick Hern Books, 1999.

  • 31

    Dublin Carol (2000) e The Seafarer (2006) que so ambientadas na vspera do

    Natal, data que simboliza o renascimento e a esperana de uma nova oportunidade,

    com novos sonhos e perspectiva de harmonia entre os homens. The Seafarer ser

    discutida no terceiro captulo.

    Nota-se que, em St Nicholas, o dramaturgo faz uso de ironia para construir

    essa personagem que retrata as ansiedades e preocupaes do homem

    contemporneo e, ao invs de contar a histria desse crtico de teatro de forma

    realista, McPherson utiliza-se do sobrenatural, mais precisamente da figura do

    vampiro. Uma vez que o conceito de pardia sugere inverso do sentido com efeito

    irnico e distanciamento crtico, temos que observar quais os desvios entre St

    Nicholas e as histrias tradicionais de vampiros.

    Na primeira parte da pea, na noite em que o protagonista-crtico oferece uma

    carona para Helen, aparecem os primeiros indcios de elementos do sobrenatural.

    I couldnt sleep.

    I sat in my study with the windows open. That summer breeze.

    And I thought about killing myself. I could imagine the cast reading the

    review Id actually given them, talking about what a complete cunt I was. And

    then theyd find out I was dead and theyd feel rotten. That they hadnt taken

    into account the integrity you know? The mystery that I was. But I was too

    chicken for that.

    Instead I lay on the sofa and things crawled all over me till it got

    bright.

    Well, I wasnt the same after that.

    Atravs desse excerto, observamos que o protagonista j teria tido contato

    com coisas estranhas que poderiam ter entrado pela janela aberta, como Drcula,

    que em forma de morcego, adentra pela janela do quarto de Lucy. Alm disso, o

    narrador menciona que as mos de Helen estavam geladas quando eles se

    despediram, fato que tambm pode ser associado com mortos e vampiros.

    Percebemos que os elementos sobrenaturais presentes na primeira parte da pea

    funcionam como indcios do que o narrador encontrar na segunda parte. Como se

    McPherson preparasse o leitor para a possibilidade do convvio do crtico com os

    vampiros e ao mesmo tempo oferecesse uma hiptese para explicar o sobrenatural

    a de que o protagonista estivesse apenas sonhando.

  • 32

    Outro aspecto interessante a maneira como William aproximou-se pela

    primeira vez do protagonista, bem semelhante apario dos vampiros estudados

    nos contos j mencionados e em Dracula: ele estava num parque isolado, j havia

    escurecido e teve a impresso de ter visto um cachorro bem grande. Eu vi algo se

    movendo, pensei que fosse um cachorro grande Era um homem (p.156). E mais

    adiante mencionado que, embora estivesse escuro, ele conseguia ver os olhos de

    William brilhantes como os de um gato. O vampiro possua, portanto, caractersticas

    de animais como as do lobo, do cachorro e do gato, os mesmos animais citados nos

    contos Carmilla e Draculas Guest, bem como no romance de Stoker. Para explicar

    como so os vampiros, o narrador fala do poder que eles tm de fazer com que as

    pessoas queiram o mesmo que eles. E quando est na presena deles, ele no

    capaz de ponderar sobre um assunto, de usar a razo, vive mais por instinto. Os

    vampiros teriam ento o poder de afastar o protagonista da razo e faz-lo conviver

    por algum tempo no mundo dos instintos, semelhana dos animais irracionais. Tal

    convivncia far com que o protagonista-crtico reveja sua maneira de encarar a vida

    e seus relacionamentos.

    A casa de William poderia ser descrita como uma velha casa gtica, ou seria

    uma aluso ao interior do castelo de Drcula; Pilares imponentes. rvores altas

    Nas paredes, painis feitos de madeira escura. Carpetes de um vermelho bem vivo.

    (p.158). A cor vermelha sugere o sangue; ao invs de caixes individuais para os

    vampiros dormirem, a casa revestida de madeira, como se fosse um grande caixo.

    O narrador tambm se refere cozinha como sendo confortvel e aquecida, mas

    observa que no se via nenhuma comida, provando que os vampiros no se

    alimentam como os homens. Tal fato nos faz lembrar que Drcula oferecia jantares

    para Jonathan s que ele mesmo nunca comia. Alm do mais, no castelo de Drcula,

    Jonathan encontra um trio de vampiras e o vampiro William convive com seis

    mulheres tambm vampiras. Nos dois casos, elas so instrudas a no perturbarem

    os hspedes e nas duas histrias essas regras so quebradas. No romance de

    Stoker, certa noite, as vampiras invadem o quarto de Jonathan que, sem foras para

    reagir, precisa ser salvo por Drcula, que aparece no momento crucial, expulsando-

    as do aposento. No caso de St Nicholas, uma das mulheres consegue subjugar o

    narrador que acaba se entregando e acorda com a camisa e as calas

    ensanguentadas. Havia sangue na minha camisa. Nas minhas calas. Meu nico

    consolo que ela iria ficar com uma tremenda ressaca, que a derrubaria por dias. Ela

  • 33

    havia mordido o homem errado (p.175). Como se v, Conor McPherson usa do

    humor para descrever praticamente a mesma cena de herosmo em Drcula. Alm

    disso, como o protagonista estava bbado, seria bem provvel que ele estivesse

    imaginando ou tendo alucinaes. No incio da segunda parte da pea, quando

    William est mostrando a casa, o narrador chega a mencionar que queria acreditar

    que ainda estivesse sonhando*. Outra vez temos a hiptese do sonho como provvel

    explicao para o sobrenatural.

    O humor tambm usado para salientar outras diferenas entre William e os

    outros vampiros literrios. O alho, por exemplo, no tira seu poder - ele s no gosta

    porque d mau-hlito. Acreditamos que este aspecto foi citado na pea para tornar

    William um vampiro mais prximo do homem contemporneo, preocupado com a

    aparncia. Nada mencionado com relao a crucifixos, outro modo de afastar os

    vampiros, mas o narrador encontra em seu quarto uma Bblia e indaga se o vampiro

    no se importa com tal livro. William responde: A natureza fez ambos (p.159). O que

    nos leva a crer que William no se abala com os smbolos do cristianismo.

    Comentando sobre o que o afeta, William fala de uma tradio no leste da Europa de

    colocar arroz no parapeito das janelas para afastar os vampiros. Dizem que arroz

    tambm simboliza fertilidade, fartura e prosperidade. Os vampiros seriam compelidos

    a contar todos os gros de arroz at o amanhecer. Para William esta lenda tem um

    fundo de verdade porque ele teria um desejo incontrolvel de saber quantos gros

    h em um punhado de arroz (p.160). O interessante o protagonista-crtico observar

    que o vampiro achava que isso era um trao de sua nobreza e no uma compulso,

    ele transformava seus defeitos em virtudes (p.160). graas a esta compulso que

    o protagonista consegue escapar da casa de William. A forma como Jonathan escapa

    do castelo de Drcula, correndo pelos corredores sombrios, fugindo das trs

    vampiras e descendo pela torre do castelo, difere da maneira cmica pela qual o

    narrador escapa da casa de William, eu disse para deix-la em paz e juro por Deus

    que os olhos dele brilhavam feito fogo... Ento, ajudei Helen a descer as escadas.

    * I wanted to believe I was still dreaming p.158 Nossa pesquisa nos levou a uma lenda semelhante: In parts of the West Indies, country folk believe that they can protect themselves against a supernatural being that drinks blood by sprinkling grains of rice close to windows and doors. The legend goes that before the creature can attack it must pick up every grain - by that time it should be dawn and, as everybody knows, by cock-crow, all vampires must return to the safety of their lair. Disponvel em: http://www.lastrefuge.co.uk/data/articles/bats/Vampire_Bat_article_page1.html Acesso em: 22/11/2008.

  • 34

    Ele no nos seguiu e no sei por que me deixou ir embora (p.177). Ele acaba no

    levando Helen, e deixa-a dormindo no sof da sala ao lado de um dos amigos dela,

    que tambm acordar de ressaca. Portanto, o poder que o vampiro teria sobre ele foi

    facilmente quebrado, sem grandes lutas como as dos heris dos romances gticos.

    Outra hiptese para explicar o sobrenatural seria a possibilidade de o

    protagonista ter passado por um colapso nervoso; ele prprio refere-se a esta

    probabilidade quando est saindo da casa do vampiro: Eu andei pela rua pensando

    no que as pessoas iriam dizer... Voltando de meu colapso (p.177). Neste sentido, a

    histria que est sendo contada no palco no seria bem o que aconteceu

    realmente, o narrador poderia ter imaginado tudo. Mas este perodo de sua vida e a

    suposta convivncia com os vampiros foi crucial para sua transformao.

    O fato de sabermos mais sobre as personagens envolvidas com a poca em

    que ele convive no mundo dos vampiros em Londres do que sua vida em Dublin, j

    demonstra a importncia desta poca para o narrador. Praticamente conhecemos os

    nomes da maioria das personagens da histria: o vampiro chama-se William, Helen a

    atriz, o diretor da pea Peter Hamilton, as outras atrizes amigas de Helen chamam-se

    Cliona Leeson e Sheila Kilmeady e uma das vtimas de William Dominique.

    Entretanto, no sabemos o nome do protagonista e nem de sua esposa e filhos. Ao

    que parece, s as personagens que fazem parte da histria relacionada aos vampiros

    so nomeadas e no as pessoas que fazem parte da vida real do protagonista.

    Talvez uma maneira de Conor McPherson destacar a importncia da histria que

    est sendo narrada no palco. Vale lembrar que quando o narrador fala de seu

    passado como crtico, marido e pai, as lembranas so sempre aleatrias e no

    lineares - fatos que veem memria do protagonista de forma desordenada; j os

    acontecimentos depois do encontro com William so relatados de forma linear,

    mesclando aes e emoes; aspectos importantes ao se contar uma histria, o que

    demonstra uma organizao literria.

    A importncia de se ter uma histria tambm pode explicar o fato de a pea ter

    sido escrita em forma de monlogo. Conor McPherson comeou a escrever

    monlogos em 1992, apesar de ter usado o dilogo em algumas peas anteriores,

    essas no foram publicadas. St Nicholas, seu quarto monlogo, foi escrito e

    encenado na dcada de 90, poca em que, segundo Eamonn Jordan (2006, p.125),

    os monlogos tornaram-se uma caracterstica importante no drama irlands. Jordan

    explica que enquanto no teatro internacional havia a preocupao com produes

  • 35

    estilizadas e em grande escala, no teatro irlands houve uma proliferao de peas

    em forma de monlogos, escritas principalmente por homens para personagens

    masculinas, geralmente um nico ator no palco, sem recursos cnicos, simplesmente

    contando uma histria. Os quatro primeiros monlogos de Conor McPherson tm

    essas mesmas caractersticas: atores num palco vazio narrando histrias diretamente

    para os espectadores. Como em St Nicholas, nas peas Rum and Vodka (1992) e

    The Good Thief (1994) h somente um ator no palco relatando suas desventuras

    para a platia. Em This Lime Tree Bower (1995), embora as trs personagens

    masculinas estejam presentes ao mesmo tempo no palco, no h quase nenhuma

    interao entre elas e seus monlogos visam claramente platia como ouvinte.

    Com o objetivo de descobrir qual a funo e o efeito do monlogo em St

    Nicholas, seria importante verificar a diferena dos termos monlogo, solilquio e

    aparte. primeira vista, monlogo e solilquio parecem ser sinnimos perfeitos e, se

    analisarmos as palavras etimologicamente, veremos a equivalncia dos dois

    vocbulos: monos corresponde a solus, que seria nico, sozinho, e logos

    corresponde a loqui, palavra, discurso, falar. Os termos, ento poderiam ser definidos

    como falar s. No Dicionrio de Termos Literrios, Massaud Moiss (2004, p. 431)

    confirma a equivalncia etimolgica dos dois vocbulos e comenta que o solilquio

    , acima de tudo, uma conveno teatral... consiste na situao em que a

    personagem est sozinha no palco e profere em voz alta os seus pensamentos: fala

    para si prpria, de modo a tornar-se sujeito e objeto da ao verbal. Para Moiss, o

    monlogo uma pea de teatro em torno de uma s figura, como o Monlogo do

    Vaqueiro (1502) de Gil Vicente, e difere de um terceiro termo monlogo dramtico

    (Dramatic Monologue) que consiste num poema destinado declamao e que

    revela dramas internos da personagem, ou do eu potico; citando como exemplo

    My Last Duchess, de Robert Browning. J o aparte - tambm uma conveno teatral -

    seria o recurso em que a personagem manifesta brevemente seus pensamentos em

    voz baixa, geralmente contrrios aos que so transmitidos ao seu interlocutor, de tal

    forma que s a platia oua - transformando-a em confidente. No aparte, outras

    personagens tambm podem estar presentes no palco; o ator que o profere na

    maioria das vezes afasta-se dos demais e muda de entonao. J Patrice Pavis

    (1999, p. 247 e 366), em seu Dicionrio de Teatro, define tanto monlogo quanto

    solilquio como sendo um discurso que a personagem faz para si mesma e a pea

    como monlogo seria somente um dos tipos de monlogo. Outro tipo de monlogo

  • 36

    citado com freqncia o Interior Monologue, ou monlogo interior, que segundo

    Pavis (1999, p.248) so fragmentos de frases que passam pela cabea do recitante e

    so emitidas sem preocupao com lgica ou censura; pois o efeito desejado o da

    desordem emocional e cognitiva da conscincia que mostra o que ocorre na mente

    da personagem. Como exemplo do uso do monlogo interior no teatro, Peter Szondi

    (2001, p.155) menciona a pea Estranho Interldio (1928), drama de nove atos de

    Eugene ONeill, [que] no esboa apenas os dilogos de seus oito heris, mas

    tambm, e continuamente, seus pensamentos ntimos... Esse tipo de monlogo

    mais comum na prosa e muitos estudiosos ressaltam sua ligao com o conceito de

    fluxo da conscincia stream of consciousness. Segundo Massaud Moiss (2004)

    fluxo da conscincia um conceito de natureza psicolgica, que nomeia os mltiplos

    aspectos da atividade mental, enquanto que o monlogo interior seria uma tcnica

    literria, de apreenso e apresentao do fluxo da conscincia.

    Um dos trabalhos mais completos que encontramos sobre o monlogo teatral

    foi a Tese de Doutorado de Alcides Joo de Barros apresentada Escola de

    Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo em 1985 sob a orientao da

    Profa. Dra. Clia Berrettini. Nesse trabalho, foi ressaltada a dificuldade de se chegar

    a um consenso sobre a definio de monlogo e solilquio. Barros explica que em

    portugus usamos o vocbulo monlogo para indicar tanto uma pea de um s ator,

    quanto para designar cenas grandes em que a personagem fala consigo mesma, que

    poderiam ser classificadas como solilquios tambm. O autor decidiu usar o termo

    monlogo para designar toda e qualquer passagem em que uma personagem fala

    consigo mesma, embora o pblico seja o receptor obrigatrio. (BARROS, 1985, p.

    30) Tal definio ser adotada neste trabalho. Quanto ao termo aparte, indicar

    aquelas falas rpidas, ditas na presena de uma ou mais personagens, mas ouvidas

    convencionalmente somente pelos espectadores. No decorrer da pesquisa

    observamos que Conor McPherson possui peas inteiras em forma de monlogo

    onde um ou mais atores relatam suas histrias diretamente para a platia e que

    tambm faz uso de monlogos em peas onde o dilogo predominante.

    J de posse de uma definio de monlogo, procuramos definir quais as suas

    funes essenciais no teatro. Barros estabelece uma classificao fundada com base

    no teatro greco-latino, que poder contribuir para nossa anlise. Ele elucida que o

    monlogo de exposio pode ocorrer no incio ou durante a pea, e sua funo

    fornecer ao pblico dados sobre a ao que ir acontecer no palco, caractersticas

  • 37

    das personagens e acontecimentos anteriores que o espectador deve conhecer para

    melhor acompanhar a ao. Por outro lado, o monlogo de anncio explica

    acontecimentos futuros que ocorrero dentro ou fora do palco. Outra categoria o

    monlogo de comentrio que explana uma ao que j ocorreu, normalmente com o

    uso de ironia. Esse tipo de monlogo permite a interferncia do autor que, atravs de

    uma personagem, expe sua ideologia. H ainda o monlogo de deliberao que

    informa sobre o rumo que uma personagem deve seguir. Este tipo bastante

    prximo do monlogo de anncio. J o monlogo de caracterizao tem a funo de

    caracterizar o locutor/personagem. O monlogo de moralizao seria um comentrio

    edificante a respeito de alguma passagem da pea e, finalmente, o monlogo de

    comicidade que explora as confuses criadas no palco com o objetivo de fazer o

    pblico rir.

    Sem desconsiderar os sete tipos de monlogos apresentados acima, Barros

    tambm prope uma classificao diferente, baseada em certas caractersticas que

    gerariam dois tipos fundamentais de monlogos o autntico e o convencional. O

    monlogo autntico caracteriza-se pelo seu contedo potico, revela os sentimentos

    da personagem, subjetivo, presta-se expresso do fluxo da conscincia e

    interrompe a ao da pea. Semelhante a um poema, no gera reaes a respeito de

    sua verossimilhana e tem por funo acentuar o contedo dramtico, enriquecendo

    a pea. J o monlogo convencional no possui contedo potico, a personagem

    comenta algum aspecto da pea ou fornece informaes objetivas que ajudaro o

    espectador a acompanhar a ao. esse monlogo que costuma ser rejeitado como

    artificial e inverossmil e pode acrescentar muito pouco ao valor esttico da pea.

    Quais as semelhanas e diferenas na funo do monlogo entre peas de

    diversas pocas ao longo da histria do teatro e St Nicholas? Nesta pesquisa, a tese

    de Alcides Joo de Barros (1985) tambm se mostrou bastante significativa porque

    traz um panorama do monlogo desde o teatro grego at o teatro no sculo XX e

    mostra-nos que tanto no teatro grego quanto no teatro romano j existiam monlogos

    nas tragdias e nas comdias. Segundo Barros, na tragdia grega, a presena do

    monlogo est ligada ao coro e, como no h lugar para a linguagem corriqueira do

    cotidiano, tais passagens eram essencialmente lricas. Muitas vezes os prlogos das

    tragdias assumiam a funo de monlogos de exposio e, por seu teor potico,

    podiam ser chamados de monlogos autnticos. J nas comdias observa-se o

    domnio do monlogo convencional; no entanto, h alguns monlogos em linguagem

  • 38

    solene que, isolados de seu contexto, poderiam funcionar como monlogos

    autnticos. Como exemplo, na comdia grega As Aves, de Aristfanes, quando o

    corifeu se dirige ao pblico para falar sobre as vantagens de ter asas, tais

    comentrios podem levar o espectador reflexo, crtica e certamente interrompem

    a ao. No teatro romano, as tragdias de Sneca possuem grande quantidade de

    monlogos pelo fato de ser um teatro destinado leitura, no representao.

    No perodo medieval, continua Barros, os monlogos so bastante numerosos,

    tanto no teatro religioso quanto no profano. No teatro religioso, apresentado dentro

    da prpria igreja, h exemplos de monlogos poticos e solenes. J no profano, um

    teatro mais popular, encontramos mais monlogos convencionais, pardias de

    sermes sobre tipos sociais e polticos e sobre supersties. Nessa poca, os

    monlogos assumiam um carter de pregao, como se fossem um sermo vindo do

    plpito. Nas peas de Gil Vicente podem ser encontrados exemplos de monlogos

    convencionais e autnticos, mas quase sempre com a funo de pregao. Nessas

    peas, anjo e diabo falam alternadamente, mas sem dialogar, dirigindo-se platia

    com monlogos em forma de orao. interessante observar que nesse perodo

    apareceram vrias peas em forma de monlogos, de carter cmico-satrico.

    Nos sculos XVI e XVII, ainda segundo Barros, o teatro recupera a grandeza

    alcanada no teatro grego com alguns dramaturgos importantes: na Espanha,

    Cervantes, Caldern e Lope de Vega; na Inglaterra, Shakespeare e na Frana, Pierre

    Corneille, Racine e Molire. O teatro dessa poca no voltado s religio e nem

    essencialmente popular, mas o monlogo continua bem presente. Na tragdia,

    monlogos autnticos servem para embelezar e elevar o nvel artstico da pea. Um

    exemplo mencionado com frequncia o monlogo de Hamlet, ser ou no ser. No

    entanto, os monlogos convencionais, mais numerosos que os autnticos, so

    empregados tanto nas tragdias quanto nas comdias e, na maioria das vezes, com

    a funo de facilitar a elaborao da pea e no de melhorar a qualidade da obra.

    Quanto aos dramaturgos do sculo XVIII, continuam empregando monlogos

    na mesma proporo e com as mesmas funes dos autores do perodo anterior.

    Entretanto, surge nesse perodo outra funo, o monlogo de protesto contra as

    autoridades. Em O Casamento de Fgaro, de Pierre de Beaumarchais (1732-1799),

    por exemplo, sob o pretexto de comentar o desenrolar da ao, a personagem ironiza

    a arrogncia e os privilgios da classe dominante francesa. No caso, o monlogo

    torna-se um meio de propagar as idias revolucionrias do autor.

  • 39

    No sculo XIX, o teatro tambm influenciado por importantes movimentos

    artsticos como o Romantismo, o Realismo e o Naturalismo. Victor Hugo, o principal

    terico do romantismo, propunha que a ao deveria ser mostrada ao pblico e no

    narrada como na tragdia clssica. Contudo, no teatro romntico, os monlogos

    convencionais e at mesmo os apartes, embora condenados, no desaparecem de

    cena e os monlogos autnticos adquirem a funo de mostrar o interior das

    personagens, ou melhor, seus pensamentos.

    Por ser considerado artificial e inverossmil, o monlogo foi praticamente

    abolido do teatro naturalista. No entanto, reapareceram as peas de uma nica

    personagem, encontradas na Idade Mdia. Um exemplo interessante a pea de

    Tchekhov, Os Malefcios do Tabaco, na qual o dramaturgo contorna o problema da

    verossimilhana dando pea o formato de uma conferncia. Muitos desses

    monlogos representavam a negao da vida. J no sculo XX, multiplicam-se as

    peas de uma nica personagem, mostrando que o ser humano est solitrio. Em

    muitas dessas peas, percebe-se certo negativismo que ir levar ao aniquilamento da

    personagem. Samuel Beckett, por exemplo, escreve Solo (1979), fragmentos de uma

    histria sobre nascimento, morte e principalmente solido e Cadeira de Balano

    (1980), onde uma mulher escuta a gravao de sua prpria voz enquanto se despede

    da vida sentada na mesma cadeira em que sua me morreu. Alguns dramaturgos

    passam a usar o monlogo amplamente e agora com a funo de desfazer a iluso

    da quarta parede, precisamente para lembrar ao pblico que o teatro uma

    conveno, isto , manter o espectador consciente de que o teatro uma

    representao dos problemas da vida, da realidade, e que precisamos estar alertas e

    crticos. Para Brecht, o monlogo torna-se um dos meios de afastar a iluso que a

    representao possa causar, cria um distanciamento. Em A Alma Boa de Setsuan

    (1943), por exemplo, existem vrios monlogos e momentos em que os atores falam

    diretamente com a platia, com a inteno de fazer o pblico no esquecer que est

    no teatro.

    Jean-Pierre Ryngaert comentando sobre o dilogo e o monlogo, menciona

    Pirandello e lembra que por uma conveno tcita, admite-se no teatro que todo o

    discurso das personagens ao falada, ou, em outros termos, que falar fazer

    (1996, p.103). Portanto a fala ao, o prprio fato de falar constitui a ao da pea.

    Exatamente o que presenciamos no monlogo St Nicholas, nada acontece

    diretamente no palco, entretanto a fala da personagem est repleta de ao. Ainda

  • 40

    assim, St Nicholas estaria mais prximo de um monlogo autntico, pois, revela os

    sentimentos do protagonista praticamente o tempo inteiro; contudo no interrompe a

    ao uma vez que a fala constitui a prpria ao nesta pea. A nosso ver, St

    Nicholas no simula a negao da vida, como nos monlogos de Beckett, mas sim

    um perodo de turbulncia na vida do protagonista que o faz rever seus conceitos e

    sua posio frente aos caminhos tomados at aquele momento e querer retomar sua

    prpria vida de outra maneira. Voltando de um colapso nervoso. Tomando contato

    com as coisas. Falando Com Minha Esposa. Dando Conselhos Aos Meus Filhos*

    (p.177). Interessante notar as letras maisculas nestas frases, como se tratassem de

    ttulos para novas histrias, afinal, ter uma histria essencial para a personagem.

    Eu tinha minha sade. Eu tinha soluo. Mas, acima de tudo, o mais importante. Eu

    tinha uma histria (p.177). Possivelmente, para criar o mesmo efeito no palco,

    imaginamos que o narrador teria que fazer gestos indicando manchetes de jornal,

    pois no h nenhuma rubrica que mencione gestos para o narrador durante a pea

    inteira. Segundo Clare Wallace, em seu livro Suspect Cultures, McPherson privilegia

    os elementos lingusticos e no os visuais, as palavras que devem fazer o

    trabalho e no o espetculo do cenrio ou as aes das personagens (2006b, p.59).

    Embora St Nicholas no tenha a funo de um monlogo de protesto, o fato

    de Conor McPherson ter escolhido um crtico de teatro para contar sua histria, ao

    invs de um ator ou mesmo outro profissional ligado ao teatro, no deixa de ser uma

    crtica atuao desse profissional, que como um vampiro, precisa do outro para

    sobreviver. Para escrever seu texto, o crtico precisa sugar a arte do outro.

    Alm da ques