marcelo araujo sobre a ontologia do objetos sociais em searle

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John Searle e a ontologia do mundo social: subsídios para uma teoria acerca do objeto do conhecimento jurídico John Searle and the ontology of the social world: Groundwork for a theory on the object of legal science Marcelo Araujo 1 UERJ-CNPq/UFRJ Resumo: A teoria de Searle sobre a ontologia dos objetos do mundo social permite explicarmos a existência de coisas como “leis” e “direitos” sem recorrermos à suposição de que existam leis ou direitos “naturais”. O objetivo deste artigo é apontar para algumas consequências da teoria de Searle para a filosofia do direito. Como pretendo mostrar, é possível caracterizarmos a teoria de Searle, quando aplicada à ontologia dos objetos do conhecimento jurídico, como uma versão do positivismo legal. Palavras-chave: Searle, direito, positivismo legal, ontologia social, direitos humanos. Abstract: Searle’s theory on the ontology of the social world affords reasons to explain the existence of such things as “laws” and “rights” without the assumption that there are any “natural” rights. In this article, I intend to point out some consequences Searle’s theory has in the field of philosophy of law. As I intend to show, it is possible to describe Searle’s theory as a version of legal positivism. Key words: Searle, law, legal positivism, social ontology, human rights. Filosofia Unisinos 11(2):163-175, mai/ago 2010 © 2010 by Unisinos – doi: 10.4013/fsu.2010.112.04 1 UERJ-CNPq/UFRJ. Rua São Francisco Xavier, 524, 20550-013, Rio de Janeiro, RJ, Brasil./Rua Moncorvo Filho, 8, 20211-340, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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John Searle

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  • John Searle e a ontologia do mundo social: subsdios para uma teoria acerca do objeto

    do conhecimento jurdicoJohn Searle and the ontology of the social world:

    Groundwork for a theory on the object of legal science

    Marcelo Araujo1

    UERJ-CNPq/UFRJ

    Resumo: A teoria de Searle sobre a ontologia dos objetos do mundo social permite explicarmos a existncia de coisas como leis e direitos sem recorrermos suposio de que existam leis ou direitos naturais. O objetivo deste artigo apontar para algumas consequncias da teoria de Searle para a fi losofi a do direito. Como pretendo mostrar, possvel caracterizarmos a teoria de Searle, quando aplicada ontologia dos objetos do conhecimento jurdico, como uma verso do positivismo legal.

    Palavras-chave: Searle, direito, positivismo legal, ontologia social, direitos humanos.

    Abstract: Searles theory on the ontology of the social world affords reasons to explain the existence of such things as laws and rights without the assumption that there are any natural rights. In this article, I intend to point out some consequences Searles theory has in the fi eld of philosophy of law. As I intend to show, it is possible to describe Searles theory as a version of legal positivism.

    Key words: Searle, law, legal positivism, social ontology, human rights.

    Filosofia Unisinos11(2):163-175, mai/ago 2010 2010 by Unisinos doi: 10.4013/fsu.2010.112.04

    1 UERJ-CNPq/UFRJ. Rua So Francisco Xavier, 524, 20550-013, Rio de Janeiro, RJ, Brasil./Rua Moncorvo Filho, 8, 20211-340, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]

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    Filosofi a Unisinos, 11(2):163-175, mai/ago 2010

    Marcelo Araujo

    Introduo

    Embora tenha se destacado nas ltimas dcadas como um dos mais impor-tantes filsofos da linguagem, John Searle, em seus trabalhos mais recentes, vem apresentando importantes contribuies na tentativa de esclarecer a natureza dos objetos do mundo social. Algumas das teses fundamentais de sua ontologia social j haviam sido discutidas em seus primeiros trabalhos, tais como, por exemplo, Minds, Brains, and Science (1984), e Speech Acts (1969), mas em The Construc-tion of Social Reality (1995) que Searle discute de modo mais sistemtico sua teoria sobre a ontologia do mundo social (Searle, 1984, p. 71- 85, 1969, p. 50-53, 175-98). Pretendo discutir aqui os principais argumentos de Searle em favor dessa teoria. Minha inteno destacar como o objeto do conhecimento jurdico pode ser caracterizado, a partir da teoria de Searle, como um construto social, e apenas como um construto social. Uma das consequncias da teoria acerca dos objetos do mundo social, tal como ela defendida por Searle, a constatao de que, na verdade, no h no mundo objetos tais como direitos e leis naturais, mas apenas direitos e leis positivas. Isso no significa, no entanto, que no possamos dispor de nenhum tipo de parmetro moral para avaliarmos a legitimidade a qualidade moral do direito, mas apenas que esse parmetro, por sua vez, tem de ser carac-terizado tambm em termos de construtos sociais.

    Filosofia da sociedade

    Ao apresentar uma teoria sobre a ontologia do mundo social, Searle tem uma pretenso bastante ambiciosa, a saber: a de proporcionar os fundamentos de uma nova disciplina filosfica, a qual denomina filosofia da sociedade (Searle, 2001, p. 15). Segundo Searle, os fundadores das cincias sociais no s-culo XIX, Max Weber, mile Durkheim e Georg Simmel, no dispunham, em seu tempo, de ferramentas conceituais para responder de modo mais satisfatrio as questes mais fundamentais das cincias sociais. Em particular, faltava-lhes ainda uma teoria sobre atos de fala e sobre o conceito de intencionalidade co-letiva (Searle, 1995, p. xii).

    O ponto de partida de Searle consiste em chamar ateno para a diferena entre dois tipos de objetos: objetos que so, por um lado, observer independent (O.I.), e objetos que so, por outro lado, observer dependent ou observer relative (O.R.). Os primeiros existem independentemente da existncia de qualquer instituio humana, ao passo que os segundos existem apenas no contexto de certas institu-ies humanas. Exemplos de objetos do primeiro tipo so: montanhas, planetas, rvores, partculas atmicas, etc. claro que precisamos de algumas instituies humanas para nos referir a tais objetos, pois sem a linguagem no poderamos descrever os movimentos planetrios, nem a estrutura da matria, nem falarmos sobre montanhas. Entretanto, essas coisas continuam existindo, independente-mente do modo como nos referimos a elas. Podemos, por assim dizer, recortar o mundo de diferentes maneiras, dando nomes arbitrrios a diferentes recortes do mundo, mas da no se segue que no exista um mundo ontologicamente indepen-dentemente do modo como nos referimos a ele, ou a diferentes partes dele. Nesse sentido, Searle se compromete claramente com uma concepo realista acerca da natureza do mundo fsico. Por outro lado, h tambm no mundo uma diversidade de objetos cuja existncia depende da existncia de instituies humanas. Exemplos de objetos do segundo tipo so: leis, direitos, o casamento, dinheiro, universidades, Estados, contratos, cartes de crdito, decretos, estatutos, etc. De modo geral, a existncia de objetos que so O.R. depende da existncia de objetos que so O.I.

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    Uma nota de 10 reais, por exemplo, s existe enquanto dinheiro no contexto de certas instituies humanas. Trata-se, portanto, de um objeto O.R. Por outro lado, sua existncia depende tambm de uma espcie de suporte material, como um pedao de papel, ou uma pequena chapa de metal, ou mesmo partculas magnetiza-das sobre um carto de plstico. Esse suporte material, evidentemente, O.I. Para Searle, a distino entre O.I. e O.R. importante, pois a distino entre as cincias naturais e as cincias sociais diz respeito aos tipos de objetos que elas examinam. Os objetos de que se ocupam as primeiras so, de modo geral, O.I., ao passo que os objetos de que se ocupam as cincias sociais so O.R. (Searle, 1999, p. 116. Ver tambm Searle, 1984, p. 79, 84). Do fato de existirem objetos que so O.R. no se segue, porm, que eles no existam de modo objetivo, ou que no possamos ter um conhecimento objetivo acerca desse tipo de objeto (Searle, 1995, p. 9-13. Ver tambm Searle, 2001, p. 17, 1984, p. 78).

    Searle distingue dois diferentes sentidos do termo objetivo e, por extenso, tambm dois sentidos do termo subjetivo: um sentido epistemolgico, e um sentido ontolgico. Em seu sentido epistemolgico, o termo objetivo qualifica proposies, ou frases declarativas. Isso significa dizer que, em seu sentido epis-temolgico, os termos objetivo e subjetivo so usados para qualificarmos o nosso discurso sobre a realidade, e no a prpria realidade. Consideremos as seguintes proposies:

    (a) Monet viveu em Paris = epistemologicamente objetivo(b) Monet foi um pintor magnfico = epistemologicamente subjetivo

    A verdade da primeira proposio no depende de nenhum tipo de atitude ou sentimento de quem a profere. A verdade da segunda proposio, por outro lado, depende de sentimentos, atitudes e, de modo geral, de certas expectativas pessoais que a pessoa que profere a frase tem com relao a um pintor. Por outro lado, em seu sentido ontolgico, os termos objetivo e subjetivo designam uma proprie-dade de entidades ou coisas, por oposio a proposies ou frases declarativas. Nesse caso, objetividade e subjetividade dizem respeito ao modo de existncia dos objetos. Searle se refere a sentenas epistemologicamente objetivas como dizendo respeito a propriedades intrnsecas da realidade. Como ele afirma: Caractersticas intrnsecas da realidade so aquelas que existem independentemente de quaisquer estados mentais, exceto os prprios estados mentais, que so tambm caractersticas intrnsecas da realidade (Searle, 1995, p. 12).2 Consideremos os seguintes exemplos:

    (c) Monte Everest = ontologicamente objetivo(d) Minha dor nas costas = ontologicamente subjetivo

    A existncia do Monte Everest no depende do fato de ele ser observado ou escalado por pessoas, muito embora seja arbitrria a referncia a uma determinada poro de nosso planeta por meio da expresso Monte Everest. Mas a minha dor nas costas existe apenas na medida em que eu tambm existo. H uma relao importante entre esses dois tipos de objetividade, e de subjetividade. Como afirma Searle: [...] podemos fazer afirmaes epistemologicamente subjetivas sobre entidades que so ontologicamente objetivas, e similarmente, podemos fazer afir-maes epistemologicamente subjetivas sobre entidades que so ontologicamente subjetivas (Searle, 1995, p. 8). Podemos, assim, fazer as seguintes combinaes:

    2 Todas as citaes foram por mim traduzidas a partir do original em ingls.

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    Marcelo Araujo

    ontologicamente objetivo

    ontologicamente subjetivo

    epistemologicamente objetivo

    [a] O sol maior que a Terra.

    [b] O paciente tem muita dor.

    epistemologicamente subjetivo

    [c] O sol lindo pela manh.

    [d] A dor do pacien-te mais importante que a minha dor.

    A sentena [a] epistemologicamente objetiva, pois a sua verdade ou falsidade no depende dos sentimentos, atitudes, etc. de quem a profere. Alm disso, ela trata de dois objetos (o sol e a Terra) que existem de modo ontologicamente objetivo. A sentena [b] epistemologicamente objetiva: ela no diz respeito a sentimentos pessoais ou atitudes subjetivas de quem a profere, mas ao fato de uma pessoa ter muita dor. A sentena [c] epistemologicamente subjetiva, pois exprime um senti-mento pessoal de quem a profere, mas ela trata de um objeto cuja existncia no depende da existncia de quem a profere; a existncia do objeto em questo (o sol) ontologicamente objetiva. A sentena [d] epistemologicamente subjetiva, pois exprime uma posio pessoal que aquele que a profere tem relativamente a dois objetos cuja existncia ontologicamente subjetiva (a dor do paciente, e sua prpria dor). Tanto as cincias naturais quanto as cincias sociais erguem preten-so de objetividade epistemolgica. A tese de Searle, no entanto, que o estatuto ontolgico de seus respectivos objetos difere bastante um do outro. Enquanto o objeto das cincias naturais ontologicamente objetivo, o objeto das cincias soci-ais incluindo o direito ontologicamente subjetivo. Vejamos melhor esse ponto.

    Objetos socialmente constitudos

    A teoria de Searle sobre a ontologia do mundo social se articula em torno de trs conceitos bsicos: (i) atribuio de funes; (ii) intencionalidade coletiva; e (iii) regras de constituio. Vejamos como Searle elucida cada um desses conceitos.

    (i) Atribuio de funesSeres humanos tm a capacidade de atribuir funes a objetos que, por si

    s (ou por natureza) no teriam funo alguma. Na verdade, a tese de Searle que no existem funes naturais (Searle, 2001, p. 23. Ver tambm Searle, 1995, p. 14). Mesmo objetos com relao aos quais poderamos ter, em princpio, a impresso de encontrarmos uma espcie de funo natural, na verdade somente adquirem uma funo na medida em que temos certas expectativas com relao a eles. O corao, nesse sentido, constitui um exemplo paradigmtico, pois parece inegvel que sua funo natural seja a de bombear o sangue atravs de uma diversidade de veias e artrias. Por essa razo, assumimos mesmo que certas funes so descober-tas pela cincia, e no que elas sejam simplesmente atribudas pelos cientistas a certos objetos. No entanto, como Searle procura mostrar, funes no podem ser simplesmente descobertas; elas so atribudas a certos objetos ou organismos em virtude de certas expectativas que temos com relao a eles. Como Searle afirma:

    Mas ns descobrimos essas funes [na biologia] apenas sob o pano de fundo da pressuposio de certas normas. Temos de assumir que a vida e a sobrevivncia tm um valor, e a partir da pressuposio da norma, a partir da premissa segundo a qual a vida, a sobrevivncia e a reproduo so valiosas que podemos dizer tais coisas como que a funo do corao bombear sangue (Searle, 2001, p. 23).

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    John Searle e a ontologia do mundo social

    bem verdade que o que descrevemos em termos funcionais poderia tambm ser descrito em termos causais. No entanto, h uma diferena impor-tante entre frases como (i) O corao causa o bombeamento do sangue e (ii) A funo do corao bombear o sangue. O tipo de relao em questo expressa pela primeira frase (uma relao de causalidade) no O.R. Como Searle afirma: Causalidade independente do observador; o que a funo adiciona causalidade a normatividade ou teleologia. Mais precisamente, a atribuio de funo a relaes causais situa as relaes causais em uma teleologia pressuposta (Searle, 1999, p. 122. Ver tambm Searle, 1995, p. 15). apenas em contextos em que o conceito de funo introduzido que podemos avaliar normativamente uma determinada atividade. Enquanto simplesmente assumimos que o corao causa a circulao do sangue, no podemos ainda nos decidir sobre se um determinado corao bom ou no; ou se o corao de um paciente melhor do que o de outro paciente; ou ainda, se uma certa substncia qumica boa ou no para o corao. Uma avalia-o normativa somente possvel se assumirmos que o corao no apenas causa o bombeamento, mas que sua funo seja a de bombear o sangue. Como Searle afirma em The Construction of Social Reality: [...] uma vez que se tenha introduzido a noo de funo, introduz-se a normatividade (Searle, 2001, p. 24). O mesmo ponto enfatizado em outros textos de Searle:

    A atribuio funcional introduz a normatividade. Podemos, por exemplo, falar sobre coraes melhores ou piores, doenas do corao, etc. A normatividade a conse-quncia do fato de a atribuio funcional situar fatos causais em uma teleologia (Searle, 1999, p. 122).

    Assim como atribumos uma funo para o corao, podemos tambm atri-buir uma diversidade de funes para pedras, para cachorros, para rvores, para o ar, etc. Mas isso, evidentemente, depender das expectativas que temos com relao a cada um desses objetos. importante notarmos ainda que, em alguns contextos, a expresso atribuio de funo pode no ser muito adequada. No que atribuamos, por exemplo, a um martelo a funo de cravar pregos na parede, pois um martelo somente existe enquanto martelo na medida em que ele puder ser usado para tais fins. Isso ocorre porque construmos alguns objetos para exercerem de fato tais e tais funes, diferentemente de objetos dos quais nos apropriamos para exercerem essas funes, i.e., diferentemente, por exemplo, de uma pedra que poderamos empregar, no lugar de um martelo, para afixar pregos na parede (Searle, 1995, p. 14). Nesse segundo caso, atribumos pedra a funo de pregar pregos na parede, ao passo que, no primeiro caso, criamos um objeto especfico para desempenhar essa funo. No primeiro caso, a existncia do objeto, enquanto objeto de um determinado tipo, no pode ser desvinculada da funo que ele desempenha. Vejamos agora o segundo conceito-chave para a compreen-so da teoria de Searle acerca dos objetos do mundo social, a saber: o conceito de intencionalidade coletiva.

    (ii) Intencionalidade coletiva Searle define o conceito de intencionalidade nos seguintes termos: [...] in-

    tencionalidade, para repetir, o termo geral para todas as vrias formas pelas quais a mente pode ser direcionada a, ou ser sobre, ou de, objetos e estado de coisas no mundo (Searle, 1999, p. 85). O conceito de intencionalidade discutido por Searle de modo bastante sistemtico em sua obra de 1983, Intentionality. Mas, em tra-balhos posteriores, Searle defende uma tese mais controversa acerca do fenmeno da intencionalidade, pois assume que existe no apenas intencionalidade individual, mas tambm intencionalidade coletiva. O fenmeno da intencionalidade coletiva

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    ilustrado por Searle atravs do exemplo de uma orquestra tocando uma determinada composio. Durante o tempo em que a orquestra toca, ocorre o fenmeno da inten-cionalidade coletiva, pois os msicos no esto simplesmente tocando individualmente com o fim de chegar execuo coletiva de uma composio. No tambm por obra do acaso que, tocando uns independentemente dos outros, os msicos executam uma sinfonia. O comportamento de cada msico, tomado individualmente, s pode ser explicado a partir de um fenmeno mais bsico, que seria o fato de eles estarem participando de um empreendimento cooperativo. Searle distingue comportamento genuinamente cooperativo de comportamento que apenas calha de ser coordenado com o comportamento de outras pessoas (Searle, 2001, p. 24). A tese de Searle que a intencionalidade coletiva no pode ser reduzida intencionalidade individual. Com outras palavras, a tentativa de se explicar we-intentionality (ns-intencionali-dade) em termos de I-intentionality (eu-intencionalidade) envolve um problema que ele denomina o problema das crenas mtuas. A dificuldade que o recurso ideia de crenas mtuas envolve poderia ser ilustrada atravs do exemplo de um empreendimento cooperativo simples como o de duas pessoas A e B empurrando conjuntamente um carro. Isso que A e B esto fazendo poderia ser explicado, em princpio, do seguinte modo: A acredita que B tem a inteno de empurrar o carro; B acredita que A tem a inteno de empurrar o carro; A acredita que B acredita que A tem a inteno de empurrar o carro; B acredita que A acredita que B tem a inteno de empurrar o carro. Searle, no entanto, rejeita esse tipo de explicao. Sua tese que, nessas circunstncias, a we-intentionality um fenmeno mais bsico do que a I-intentionality. Como ele afirma:

    A forma irredutvel da intencionalidade em minha cabea, quando estamos fazendo algo coletivamente, ns-intecionamos. E eu no tenho de reduzir isso a um eu-intenciono e um conjunto de crenas mtuas. Pelo contrrio, eu tenho o eu-intenciono que tenho precisamente porque tenho um ns-intencionamos (Searle, 2001, p. 26).3

    A mesma tese defendida em outros textos: Quando quer que vejamos pes-soas cooperando, temos intencionalidade coletiva [...] Quero dizer, isso o funda-mento de todas as atividades sociais (Searle, 1999, p. 120). E, em The Construction of Social Reality, Searle afirma o seguinte com relao a esse ponto:

    O elemento crucial na intencionalidade coletiva um senso de se estar fazendo (que-rendo, acreditando, etc.) alguma coisa em conjunto, e a intencionalidade individual que cada pessoa tem derivada a partir da intencionalidade coletiva que elas com-partilham (Searle, 1995, p. 24-25).

    A maior parte dos conflitos humanos, por paradoxal que possa parecer, envolve, de algum modo, um certo nvel de cooperao, i.e., de intencionalidade coletiva (Searle, 1999. p. 120). Duas pessoas brigando, ou dois pases em guerra, por exemplo, so tipos de atividades nas quais os participantes se engajam em termos de ns-intencionalidade: ns estamos brigando, ns estamos em guerra, etc. Qualquer fato social envolve, segundo Searle, intencionalidade coletiva. Contudo, importante notarmos agora que o conceito de fatos sociais no deve ser confundido com o conceito de fatos institucionais. Trata-se de uma importante distino, pois apenas no contexto de instituies que podemos falar em objetos do mundo social. A mera existncia de relaes sociais, por si, ainda no garante a existncia de objetos sociais:

    3 Ver tambm Searle (1995, p. 23ss.) e Fotion (2000, p. 182).

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    John Searle e a ontologia do mundo social

    Por estipulao usarei daqui em diante a expresso fato social para me referir a qualquer fato envolvendo intencionalidade coletiva. Assim, por exemplo, o ato de duas pessoas sarem para caminhar juntas um fato social. Uma subclasse especial dos fatos sociais so fatos institucionais, fatos envolvendo instituies humanas. As-sim, por exemplo, o fato de essa folha de papel ser uma nota de 20 dlares um fato institucional (Searle, 1995, p. 26).

    Existem vrios tipos de animais que so capazes de cooperarem entre si de tal maneira que a cooperao mtua, entre eles, envolve um determinado grau de intencionalidade coletiva. A produo de fatos sociais, nesse sentido, no exclusividade de seres humanos. No entanto, apenas seres humanos so capazes de criar instituies sociais. O conceito de fatos institucionais j examinado por Searle em uma de suas primeiras obras, Speech Acts, onde ele faz uma distino entre fatos brutos e fatos institucionais (Searle, 1969, p. 50-53). Fatos brutos so ontologicamente objetivos. A existncia de fatos brutos, assim, no est subordinada a um sistema de regras institucionalizadas. Fatos institucionais, por outro lado, so constitudos atravs do que Searle denomina regras de constituio (Searle, 1969, p. 52). Essas regras tm a seguinte forma geral: X conta como Y no contexto C. Searle elucida o significado dessa regra nos seguintes termos: [...] tal-e-tal conta como tendo o status disso-ou-daquilo [...] Assim, no contexto do jogo de xadrez, tal-e-tal movimento por parte de uma certa pea com essa forma conta como um movimento do cavalo (Searle, 1999, p. 124. Ver tambm Searle, 1969, 33ss.). O conceito de regras de constituio fundamental para a compreenso do modo de existncia dos objetos do mundo social. Vejamos melhor esse ponto.

    (iii) Regras de constituioRegras de constituio so diferentes das regras que regulam a conduta

    das pessoas. Regras de trnsito, por exemplo, servem para regular a conduta das pessoas no trnsito, mas elas no criam o trnsito, compreendido como um fluxo de automveis sobre uma determinada via. Como afirma Nick Fotion: Enquanto regras reguladoras nos do alguma coisa nova a partir do que j existe, regras de constituio parecem nos dar algo novo a partir do nada (Fotion, 2000, p. 188). As regras de trnsito tornam o fluxo de automveis mais eficaz, tendo em vista o fim compartilhado de nos deslocarmos em nossos veculos do modo mais seguro e mais rpido possvel. As regras de trnsito, assim, no so anteriores ao prprio trnsito. As regras do jogo de xadrez, por outro lado, so bem diferentes: elas so regras de constituio. Nesse caso, as regras no servem para regular uma atividade que j existiria anteriormente criao das prprias regras. Com efeito, as regras criam (ou constituem) a prpria atividade em questo. Como Searle afirma:

    [...] a prpria possibilidade de jogarmos xadrez depende da existncia das regras do xadrez, pois jogar xadrez consiste em agir de acordo com pelo menos um certo sub-conjunto de regras do xadrez. [...] Regras de constituio tambm regulam, mas elas fazem mais do que regular; elas constituem a prpria atividade que elas regulam no modo que eu sugeri. A distino entre fatos brutos e fatos institucionais, eu sustentei e continuo sustentando aqui, somente pode ser explicada integralmente em termos de regras de constituio, pois fatos institucionais somente existem no contexto de sistemas de tais regras (Searle, 1999, p. 123).4

    4 Ver tambm Searle (1995, p. 28) e Fotion (2000, p. 185).

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    Dessa forma, regras de constituio, atribuio de funo e intenciona-lidade coletiva constituem os principais conceitos em torno dos quais se articula a teoria social de Searle. Vejamos agora, mais precisamente, de que modo Searle procura mostrar como esses trs conceitos se inter-relacionam em sua explicao acerca da existncia dos objetos do mundo social, i.e., objetos tais como leis, de-cretos, dinheiro, casamentos, etc.

    Instituies sociais

    Inicialmente, Searle examina o modo como indivduos atribuem funes a diversos objetos do mundo natural. Um indivduo pode, por exemplo, utilizar um pedao de tronco como alavanca. desnecessrio dizer que um pedao de tronco somente existe como alavanca se houver algum que o use para esse fim. O que ocorre nesse contexto uma atribuio de funo. O passo seguinte consiste em pensarmos no apenas em um indivduo, mas alguns indivduos utilizando em conjunto um mesmo pedao de tronco como alavanca. Este empreendimento cooperativo somente possvel atravs da intencionalidade coletiva (Searle, 2001, p. 29). Como Searle afirma: E se um indivduo pode atribuir funo usando intencionalidade individual, no difcil imaginar que vrios indivduos possam atribuir funes coletivamente (Searle, 1999, p. 124). importante notarmos que, at aqui, no h razo ainda para falarmos em instituies sociais, muito embora a cooperao com vistas utilizao coletiva de um tronco como uma alavanca possa ser considerada um fenmeno social.

    Em seguida, Searle considera um outro caso de atribuio de funo e inten-cionalidade coletiva. O exemplo ao qual ele se refere o de um muro, construdo para proteger alguns indivduos das incurses de um outro grupo de indivduos. A proteo proporcionada pelas propriedades fsicas A (altura) e L (largura) do muro. importante notarmos que as propriedades A e L, por si s, no so suficientes para descrevermos o objeto em questo como sendo um muro, pois um outro objeto que contenha as propriedades A e L contar como um muro somente em contextos em que indivduos o utilizem para separar uma determinada regio em duas partes distintas. Suponhamos agora, como sugere Searle, que, gradualmente, o muro se decomponha a ponto de restar dele apenas uma marca linear no cho, onde antes se via um muro. A marca no cho, evidentemente, no possui as propriedades A e L, i.e., as propriedades que, antes, impediam que um grupo de indivduos interferisse na vida de um outro grupo de indivduos. No entanto e esse passo agora deci-sivo para o argumento de Searle os indivduos podem, em algumas circunstncias, continuar se comportando como se a linha sobre o cho estivesse no lugar do muro. Com outras palavras, eles podem aceitar ou reconhecer a linha no cho como uma fronteira separando duas reas diferentes. A marca no cho exerce a mesma funo que o muro, sem, no entanto, possuir as propriedades fsicas A e L do muro. Como Searle afirma: [...] ns imaginamos que o muro continua desempenhando sua fun-o, mas no mais em virtude de sua estrutura fsica. Ele desempenha sua funo em virtude do fato de que ele tem um certo status reconhecido (Searle, 2001, p. 30. Ver tambm Searle, 1999, p. 125). O que est em questo nesse contexto a aplicao de uma regra de constituio: X (uma linha no cho) conta como Y (uma fronteira) em C (no contexto dos dois grupos em questo). Como Searle afirma:

    Esta linha de pedras, que tudo que restou do muro, agora conta como uma fron-teira. Ela tem um status dentico, ela agora conta como uma forma de poder, que ela exerce no em virtude de sua estrutura fsica, mas em virtude de atribuio de funo (Searle, 2001, p. 30).

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    John Searle e a ontologia do mundo social

    Searle denomina status function esse tipo de funo que existe unicamente porque reconhecemos ou aceitamos que um determinado objeto (uma linha no cho) tenha o status de um outro objeto (um muro). Esse conceito, fundamental em sua ontologia da realidade social, definido de modo mais preciso nos seguintes termos: Uma status function uma funo que uma entidade desempenha no em funo de sua estrutura fsica apenas, mas em virtude da imposio ou reconhe-cimento da entidade em questo como tendo um certo status (Searle, 1999, p. 125; Araujo, 2009a). A existncia de status function fundamental para a existncia de instituies sociais: Onde instituies humanas esto em jogo, a funo, resu-mindo, uma status function (Searle, 1999, p. 126). Essa distino entre objetos que tm, de fato, propriedades do tipo A e L e objetos que so reconhecidos como se tivessem tais propriedades tambm fundamental para o modo como Searle distingue as cincias naturais das cincias sociais: As cincias sociais so, de modo geral, sobre os vrios aspectos da intencionalidade (Searle, 1984, p. 82).

    Dois aspectos de instituies sociais

    Searle procura ento chamar ateno para dois aspectos inter-relacionados da realidade institucional. O primeiro deles a intercambialidade dos termos da regra de constituio; o segundo diz respeito interconexo entre os fatos do mundo institucional.

    (i) Intercambialidade de X e Y J vimos que a forma bsica da regra de constituio : X conta como Y em

    C. No entanto, o que conta como Y em um dado contexto C1, pode contar como X em um contexto C2. Consideremos, por exemplo, o seguinte esquema:

    X conta como Y Em C

    uma sequncia de sons

    proposio1em lngua

    portuguesa

    proposio1 promessa1em almoo de negcios

    promessa1 suborno

    em pases que probem legalmente promessa1

    Uma determinada sequncia de sons conta como a proposio Joaquim, vou lhe dar uma garrafa de usque no contexto da lngua portuguesa. No contexto de uma outra lngua, a mesma sequncia de sons no contaria como uma proposio.5 Essa mesma proposio, quando proferida, por exemplo, em um almoo de negcios, passa a contar como uma promessa. E essa promessa, quando feita, por exemplo, com o objetivo de obter ilegalmente algum tipo de benefcio, conta como um caso de suborno. interessante notar ainda que essa sobreposio de atribuies de

    5 bem verdade que, mesmo sem saber, por exemplo, chins, eu poderia inferir que uma sequncia de sons, quando emitida por um chins, uma proposio da lngua chinesa. Eu reconheceria, portanto, um objeto X (uma sequncia de sons) como Y (uma proposio). Mas, nesse caso, eu no sou capaz de compreender a proposio, o que me impede, portanto, de excluir a possibilidade de o chins, na verdade, estar emitindo uma sequncia aleatria de sons sem sentido.

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    Marcelo Araujo

    funes, nesse exemplo relativamente simples, ocorre em um contexto em que j se apresentam outras atribuies de funes. Certos tipos de substncias contam como alimentos para determinados seres vivos. E certos alimentos, consumidos em determinados locais e em determinados horrios do dia, contam como almoo; e um almoo, quando realizado em companhia de outras pessoas, tendo em vista deter-minados fins, conta como um almoo de negcios ou reunio. Como Searle afirma:

    [...] a estrutura X conta como Y em C pode ser iterada [iterated]. Podemos acumular uma status funcion sobre outra. O termo X em um nvel pode ter sido um termo Y em nvel anterior, e podemos continuar transformando repetidamente os termos Y em termos X que contam, por sua vez, como um outro Y sobre cada um deles. Alm disso, em sociedades complexas, o termo C (contexto) tipicamente um termo Y de um estgio anterior (Searle, 1999, p. 129).

    Objetos do mundo social tais como promessas, crimes, almoos de negcios, etc. no existem independentemente da existncia de certos fatos brutos (protenas, sais minerais, rudos passveis de serem percebidos e interpretados por seres humanos, etc.), mas eles podem, ainda assim, ser conhecidos de modo epistemologicamente objetivo. Segundo Searle, sua teoria acerca da realidade do mundo social elucida tambm de que modo coisas como direitos e obrigaes passam a existir. No exemplo sugerido acima sobre a constituio de uma fronteira entre dois grupos , alguns indivduos poderiam passar a reconhecer a existncia de uma fronteira, demarcada atravs de uma linha de pedras onde antes existia um muro, como se fosse ainda o mesmo muro dividindo as duas regies. Nesse caso, j est presente de modo bastante claro a vigncia de certas ideias normativas. Com efeito, a fronteira representa para os dois grupos uma norma que, mesmo que no seja formulada de modo explcito, exprime algumas coisas que eles podem, e algumas coisas que eles no podem fazer. Na tentativa de garantir que a fronteira demarcando as duas regies no seja ultrapassada por membros de um ou outro grupo, os dois grupos podem, em vez de reedificar o antigo muro, criar uma nova instituio, a saber: eles podem criar leis que probem que a fronteira seja cruzada, e punies (pena de morte, por exemplo) para aqueles que a atravessam. Nesse novo contexto, um fato bruto a interrupo da vida de uma pessoa passa a contar como uma punio. Searle chega mesmo a sustentar que toda realidade institucional envolve, de um modo ou outro, a utilizao de poder (Searle, 1999, p. 133. Ver tambm Searle, 1995, p. 94-99).

    (ii) Interconexo entre fatos institucionaisOs fatos do mundo institucional no existem isoladamente uns dos outros,

    nem isoladamente de fato brutos (Searle, 1999, p. 130). O ponto para o qual Searle chama ateno aqui que fatos brutos no constituem apenas uma espcie de su-porte para a emergncia de fatos institucionais. Como ele afirma: Estamos falando sobre uma estrutura cujo ponto central no consiste apenas em conferir poder a outras estruturas institucionais, mas em controlar a realidade bruta (Searle, 2001, p. 33-34). Por essa razo, no faria sentido assumirmos que fatos institucionais possam existir de modo isolado de fatos brutos.

    A questo da normatividade

    Como podemos ver, o objetivo de Searle oferecer uma anlise adequada da ontologia do mundo social. Fazem parte do mundo social coisas como: direitos, obrigaes, leis, contratos, promessas, punies, etc. Esses tipos de objetos foram tradicionalmente investigados no contexto da filosofia poltica, da tica e da filosofia

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    John Searle e a ontologia do mundo social

    do direito. Mais especificamente no mbito da filosofia do direito, o jusnaturalismo (ou doutrina do direito natural) foi tradicionalmente concebido como um tipo de teoria que assumiu que haveria alguns fatos brutos que teriam um carter nor-mativo, a saber: leis e direitos naturais. No entanto, a suposio de que, na verdade, no existem objetos como leis e direitos naturais, mas apenas leis e direitos positi-vos (leis e direitos criados em contextos sociais especficos) contribuiu para que o objeto da cincia do direito passasse a ser compreendido como um exame acerca das circunstncias institucionais que tornam possvel a existncia de leis e direitos, deixando em aberto a questo sobre o modo como leis e direitos poderiam ser moralmente avaliados. Esse modo de compreenso do objeto prprio da cincia do direito, como se sabe, bastante caracterstico do que se convencionou denominar de positivismo legal. Para o positivismo legal, assim, a questo sobre o que torna possvel a existncia do direito deveria ser conceitualmente separada da questo sobre as condies que tornam o direito legtimo. Mas poderamos nos perguntar por que, a partir de uma determinada poca na tradio do pensamento jurdico, pareceu importante dissociar uma questo da outra?

    A questo sobre o estatuto ontolgico do direito foi dissociada da questo acerca da moralidade do direito porque o parmetro para a avaliao moral do direito positivo foi, durante muito tempo, tradicionalmente compreendido em termos de leis e direitos naturais. Seria por apelo ideia de direitos e leis naturais que o direito positivo deveria ser moralmente avaliado. Mas como o conceito de direitos e de leis naturais envolve uma srie de dificuldades epistemolgicas e metafsicas, pareceu relevante, ento, dissociar a pergunta sobre o que o direito da pergunta sobre o que torna legtimo o direito. Para alguns representantes cls-sicos do positivismo legal, a existncia do direito deveria ser explicada unicamente como um fato social criado seja atravs de um comando (John Austin); seja atravs de uma Grundnorm ou norma fundamental (Hans Kelsen); seja atravs de uma regra de reconhecimento (H.L.A. Hart) (ver por exemplo Araujo, 2007, 2009b). Nesse sentido, Searle poderia tambm ser visto como um representante do positivismo legal, mesmo reconhecendo que sua teoria acerca da ontologia do mundo social no seja uma teoria jurdica. Sua teoria mais ampla do que uma teoria jurdica porque sua inteno no se limitar a explicar o modo de existncia do direito, mas de todos os objetos do mundo social, incluindo, evidentemente, o prprio direito. Por outro lado, justamente por ser uma teoria mais ampla, a teoria de Searle nos permite tambm estabelecer quais so as condies que tor-nam legtimo o direito positivo, pois essas condies, por sua vez, so igualmente explicadas em termos de instituies sociais.

    Searle poderia ser visto como um positivista legal no que concerne sua aceitao irrestrita da tese segundo a qual no existem leis e direitos naturais. Leis e direitos so sempre positivos, i.e., so criaes humanas. Por outro lado, para Searle, a mesma teoria que explica a existncia do direito positivo explica tambm a existncia dos parmetros morais por meio dos quais poderamos avaliar o direito positivo. A moralidade, com efeito, para Searle uma instituio social, da mesma forma que o direito tambm uma instituio social. A tese de Searle, assim, que mesmo o conceito de direitos humanos o principal parmetro moral de que dispomos para a avaliao do direito positivo deve ser compreendido em termos de status func-tion, e no em termos de entidades do mundo natural. Como ele afirma:

    Talvez a forma mais impressionante de status-function seja a criao de direitos huma-nos. Anteriormente ao Iluminismo na Europa, o conceito de direitos tinha aplicao apenas em uma estrutura institucional especfi ca direito de propriedade, direito marital, droit de seigneur, etc. Mas de alguma forma a ideia segundo a qual seria possvel termos uma status-function unicamente em virtude do fato de sermos um

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    ser humano veio a ser coletivamente aceita [...]. Ultimamente tem havido at mesmo um movimento de reconhecimento do direito dos animais. Tanto direitos humanos quanto direito dos animais so casos de imposio de status-function atravs de intencionalidade coletiva (Searle, 1995, p. 93).

    A reconstruo que Searle sugere acerca do conceito de direitos humanos poderia parecer inadequada, pois o conceito de direitos humanos parece justamente sugerir que esses seriam direitos que seres humanos teriam, no por fora dessa ou daquela instituio social, mas pelo simples fato de serem humanos. Como afirma, por exemplo, Derrick Darby, em referncia teoria de Searle: De fato, a ideia central subjacente doutrina dos direitos humanos que eles so tipos de direitos que se tm meramente pelo fato de sermos humanos. Suspeito que muitos especialistas em tica veriam direitos humanos como fatos brutos, e no como fa-tos institucionais (Darby, 1996, p. 719). No entanto, o que significa dizermos que direitos humanos so fatos brutos? Faz realmente sentido dizermos que direitos humanos existem da mesma forma que planetas, tomos, rvores, etc. existem? Que tipo de faculdade cognitiva estaria em questo em nosso conhecimento dos denominados direitos humanos, se admitirmos que eles so fatos brutos? A meu ver, o que podemos realmente dizer que aceitamos que os denominados direitos humanos so to importantes para o modo como estabelecemos certos limites ao exerccio da autoridade poltica, que importante acreditarmos, no m-bito de nossas prticas polticas e sociais, que eles existem como se fossem objetos naturais, como se tivessem o mesmo estatuto de fatos brutos. No entanto, disso no se segue, evidentemente, que direitos humanos existam, de fato, como fatos brutos. Direitos humanos so, na verdade, construtos sociais. Independentemente da existncia de instituies humanas, a rigor, no faz sentido falarmos da existn-cia de tais entidades entidades que existiriam unicamente pelo fato de existirem seres humanos. Com relao a esse ponto, Fotion procura mostrar, tendo em vista a teoria de Searle, que se os Estados fossem abolidos, perderamos evidentemente nossos direitos como cidados. Mas se, ainda assim, insistssemos na reivindicao de direitos mais fundamentais do que os direitos que temos como cidados, tais como direitos humanos, deveramos reinterpretar tais reivindicaes em termos de aspiraes a direitos. Como Fotion afirma:

    Os direitos das esposas na cerimnia de casamento vo lado a lado com a instituio do casamento. Se a instituio do casamento fosse abolida, seus direitos tambm seriam abolidos. Os direitos dos cidados desapareceriam, de modo similar, se uma revoluo abolisse o governo e as outras instituies na sociedade que mantiveram os cidados juntos at o momento. Em um cenrio catico como esse, os cidados se transformariam em um simples aglomerado de pessoas, ou talvez mesmo em uma turba [rabble].Nesse ponto, poder-se-ia perguntar se, segundo a teoria de Searle, ainda restaria s pessoas algum direito. Mesmo se perdessem todos os seus direitos enquanto cidados, teriam perdido tambm seus direitos enquanto humanos? Certamente no, se fosse o caso de sustentarmos uma viso clssica de direito em termos de direitos naturais.[...]Mas Searle no um realista em tica, do mesmo modo que ele um realista em sua teoria sobre o mundo fsico. [...] Falando de modo rigoroso, ento, se pessoas disses-sem que nossos direitos estariam sendo violados durante esse perodo de caos, elas estariam proferindo sentenas com condies infelizes de satisfao. Simplesmente no seria verdade que seus direitos estariam sendo violados. Segundo a teoria de Searle sobre construo social, se elas continuassem a dizer nossos direitos esto sendo violados, elas estariam talvez apenas dizendo algo como queremos nossos direitos de volta (Fotion, 2000, p. 209-210).

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    John Searle e a ontologia do mundo social

    Essa interpretao do modo como deveramos explicar a existncia de direitos humanos, sem, porm, nos comprometermos com as dificuldades epistemolgi-cas e metafsicas que a teoria do direito natural envolve, torna a posio de Searle bastante similar posio defendida por Bentham em Anarchical Fallacies, no final do sculo XVIII. Em um hipottico estado de natureza, segundo Bentham, no teramos direitos naturais; o que, de fato, teramos, seria o interesse em criarmos uma instituio o governo no contexto da qual passaramos a ter tais direitos. Direitos naturais, por outro lado, insiste Bentham so: rhetorical nonsense, non-sense upon stilts (Bentham, 1987, p. 53). Tanto Bentham quanto Searle procuram redescrever ideias normativas tais como direitos, leis, contratos, etc. em termos de instituies humanas, e no como entidades do mundo natural.

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    BENTHAM, J. 1987. Anarchical Fallacies. In: J. WALDRON (ed.), Nonsense upon Stilts: Bentham, Burke and Marx on the Rights of the Man. London, Methuen, p. 46-76.

    DARBY, D. 1996. The construction of social reality (book review). Mind, 105(420):716-719.

    FOTION, N. 2000. Philosophy of society and other matters. In: N. FOTION, John Searle. Teddington, Acumen, p. 175-230.

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    SEARLE, J. 1999. The structure of the social universe: how the mind creates an objec-tive social reality. In: J. SEARLE, Mind, Language and Society: Doing Philosophy in the Real World. London, Weidenfeld & Nicolson, p. 111-134.

    SEARLE, J. 1995. The Construction of Social Reality. London, Penguin, 241 p.SEARLE, J. 1984. Prospects for the social sciences In: J. SEARLE, Minds, Brains, and

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    Submetido em: 14/04/2010Aceito em: 18/05/2010