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ma das armadilhas mais enganosas no caminho dos marxistas a busca do momento da queda, em que as

coisas tomaram a direo errada na histria do marxismo: ter sido o Engels tardio com sua compreenso mais positi-vista/evolucionista do materialismo histrico? Tero sido o revisionismo e a ortodoxia da Segunda Internacional? Ter sido Lnin?1 Ou o prprio Marx em seu trabalho posterior, depois que abandonou o humanismo da juventude (como certos marxistas humanistas alegaram h algumas dca-das)? Todas essas questes devem ser postas de lado. No h motivo para controvrsia: a queda deve ser inscrita nas prprias origens. (De modo ainda mais claro, essa procura do intruso que infectou o modelo original e colocou em marcha sua degenerao s pode reproduzir a lgica do anti-semitismo.) Isso signifi ca que, mesmo se melhor, es-pecialmente se submetermos o passado marxista a uma crtica implacvel, primeiro teremos de reconhec-lo como

Mao Ts-Tung, Senhor do Desgoverno* marxista

slavoj zizek apresenta

* Quanto expresso Senhor do Desgoverno (Lord of Misrule), cf. nota 32 desta Introduo, no fi nal do volume. (N.T.)

U

8 8 Sobre a Prtica e a CoSobre a Prtica e a Contradiontradio

nosso, assumindo inteira responsabilidade por ele, e no nos livrar-mos confortavelmente do mau resultado das coisas por atribu-lo a um intruso estrangeiro (o mau Engels, demasiado estpido para entender a dialtica de Marx, o mau Lnin, que no compreendeu a essncia da teoria de Marx, o mau Stlin, que estragou os nobres planos do bom Lnin etc.).

A primeira coisa a fazer, portanto, endossar a totalidade do des-locamento na histria do marxismo, concentrado em duas grandes passagens (ou melhor, cortes violentos): a de Marx a Lnin e a de Lnin a Mao. Em cada caso, h deslocamento da constelao original: do pas mais avanado (como esperava Marx) para o relativamente atrasado a revoluo ocorreu no pas errado; de operrios para camponeses (pobres), como o principal agente revolucionrio etc. Da mesma for-ma que Cristo precisou da traio de Paulo para que o cristianismo emergisse como igreja universal (lembrar que, entre os 12 apstolos, Paulo ocupa o lugar de Judas, o traidor, substituindo-o!), Marx pre-cisou da traio de Lnin para levar prtica a primeira revoluo marxista: uma necessidade inerente ao ensinamento original sub-meter-se e sobreviver a essa traio, sobreviver a esse ato violento de ser arrancado de seu contexto original e lanado em cenrio estranho em que se deve reinventar s assim nasce a universalidade.

Com respeito segunda transposio violenta, a de Mao, de-masiado fcil condenar sua reinveno do marxismo tanto por ser teoricamente inadequada quanto por constituir uma regresso, secomparada aos padres de Marx ( fcil mostrar que falta aos campo-neses a subjetividade proletria insubstancial), mas no menos ina-dequado amenizar a violncia do corte e aceitar a reinveno de Mao como continuao lgica ou aplicao do marxismo (baseando-se, como normalmente o caso, na simples expanso metafrica da luta de classes: a luta de classes predominante hoje j no mais entre ca-pitalistas e proletariado em cada pas; ela mudou para Terceiro Mundo versus Primeiro Mundo, naes burguesas versus naes proletrias). O que Mao fez foi temvel: seu nome representa a mobilizao poltica de centenas de milhes de trabalhadores annimos do Terceiro Mun-do, cujo trabalho fornece a invisvel substncia, cenrio do desenvol-

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vimento histrico a mobilizao de todos aqueles que at um poeta da alteridade, Lvinas, rejeitou como o perigo amarelo , como se l naquele que pode ser considerado seu texto mais estranho, O deba-te russo-chins e a dialtica (1960), um comentrio sobre o confl ito sino-sovitico: O perigo amarelo! ele no racial, espiritual. No envolve valores inferiores; envolve estranhamento radical, estranho ao peso do prprio passado, de onde no se fi ltra nenhuma voz ou infl e-xo familiar, um passado lunar ou marciano.2

Isso no faz lembrar a insistncia de Heidegger, nos anos 1930, em que a principal tarefa do pensamento ocidental de ento era defender o avano grego, o gesto de fundao do Ocidente, a superao do universo pr-fi losfi co, mtico, asitico, para lutar contra a renovada ameaa asitica o maior antagonista do Ocidente o mtico em ge-ral e o asitico em particular?3 essa estranheza radical asitica que se mobiliza, politiza, pelo movimento comunista de Mao Ts-Tung.

Em Fenomenologia do esprito, Hegel apresenta sua conhecida no-o do feminino como a duradoura ironia da comunidade: o femi-nino ... transforma, pela intriga, o fi m universal do governo em um fi m privado, sua atividade universal no trabalho de algum indivduo particular, e perverte a propriedade universal do Estado em possesso e ornamento para a famlia.4

Em contraste com a ambio masculina, uma mulher quer poder para promover seus prprios e estreitos interesses familiares, ou, o que pior, seus caprichos pessoais, incapaz, como , de perceber a dimenso univer-sal da poltica de Estado. Como deixar de lembrar o argumento de F.W.J. Schelling segundo o qual o mesmo princpio que nos conduz e sustenta em sua inefi cincia bem poderia consumir-nos e destruir-nos em sua efi -ccia?5 Um poder que, mantido no lugar adequado, pode ser benigno e apaziguador transforma-se em seu contrrio radical, na mais destrutiva fria, no momento em que passa a intervir num plano mais alto, que no o seu: a mesma feminilidade que, dentro do crculo fechado da vida fa-miliar, o prprio poder do amor cuidadoso, torna-se um frenesi obsceno quando atua no plano da coisa pblica e dos negcios de Estado...

Resumindo, admite-se que uma mulher proteste contra o poder pblico do Estado em benefcio dos direitos de famlia e do paren-

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tesco; mas a desgraa cair sobre a sociedade em que as mulheres se arvorarem a infl uenciar diretamente as decises relativas a assuntos de Estado, manipulando seus dbeis parceiros masculinos, na verdade emasculando-os... No existir algo similar no terror que se levanta diante da perspectiva do despertar das annimas massas asiticas? Elas so aceitveis se protestam contra sua sorte e nos deixam ajud-las (mediante aes humanitrias em grande escala), mas no quando di-retamente se atribuem poder, para horror dos simpatizantes liberais, sempre prontos a apoiar a revolta dos pobres e despossudos, sob a condio de que se manifestem com boas maneiras?

O admirador secreto de Bourdieu no Cucaso,6 de Georgi M. Der-luguian, conta a extraordinria histria de Musa Shanib, da Abkazia, o principal intelectual daquela turbulenta regio, cuja surpreendente carreira levou, de intelectual dissidente sovitico, passando por re-formador poltico democrtico e senhor da guerra fundamentalista muulmana, condio de respeitado professor de fi losofi a, sempre marcada pela estranha e permanente admirao de Shanib pelo pen-samento de Pierre Bourdieu. Existem duas maneiras de fazer face a tal fi gura. A primeira reao desqualifi c-la como excentricidade local, encarando Musa Shanib com benevolente ironia: Que escolha estra-nha, Bourdieu! O que esse tipo folclrico ver em Bourdieu? A segunda reao afi rmar diretamente o escopo universal de toda teoria: Vejam como a teoria universal: todos os intelectuais, de Paris Chechnia e Abkazia, podem debater as teorias de Bourdieu! A tarefa verdadeira, claro, evitar ambas essas opes e afi rmar a universalidade de uma te-oria como resultado de rduo trabalho terico e de pesada luta terica, luta que no externa teoria: a questo no apenas que Shanib teve de trabalhar muito para vencer as restries de seu contexto local e apropriar-se do pensamento de Bordieu; na verdade, essa apropriao de Bourdieu por um intelectual abkaziano tambm afeta a substncia da prpria teoria, transpondo-a para um universo diferente.

Lnin no ter feito mutatis mutandi algo similar com Marx? A mudana de orientao de Mao com relao a Lnin e a Stlin diz respeito relao entre a classe operria e os camponeses: tanto Lnin como Stlin nutriam profunda desconfi ana com relao aos campo-

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neses e viam como uma das principais tarefas do poder sovitico que-brar sua inrcia, seu substancial apego terra, para proletariz-los e, assim, exp-los integralmente dinmica da modernizao em nti-do contraste com Mao, que, em suas notas crticas ao livro Problemas econmicos do socialismo na Unio Sovitica, de Stlin (1958), observou ser o ponto de vista de Stlin ... quase completamente equivocado. O erro bsico no confi ar nos camponeses.7

As conseqncias tericas e polticas dessa mudana de orienta-o so literalmente enfraquecedoras: implicam nada menos que uma rigorosa reconstruo da noo hegeliana de Marx a respeito da posi-o do proletariado como a posio da subjetividade insubstancial, daqueles que esto reduzidos ao abismo de sua subjetividade.

Esse o movimento da universalidade concreta, essa radical tran-substanciao pela qual a teoria original tem de reinventar-se em novo contexto: s quando sobrevive a esse transplante pode a teoria despontar como efetivamente universal. E, claro, a questo no que estejamos lidando aqui com o processo pseudo-hegeliano de alienao e desalie-nao, de como a teoria original alienada, tendo ento de incorporar o contexto estrangeiro, reapropri-lo e a ela o subordinar: o que tal no-o pseudo-hegeliana no prev a forma pela qual esse transplante vio-lento para um contexto estrangeiro afeta radicalmente a prpria teoria original, de tal modo que, quando essa teoria retorna a si mesma em sua alteridade (reinventa-se no contexto estrangeiro), sua prpria substn-cia muda e, mesmo assim, essa mudana de orientao no apenas a reao a um choque externo; ela permanece uma transformao interna da mesma teoria da superao do capitalismo.

nesse sentido que o capitalismo uma universalidade concreta: o problema no isolar o que todas as formas particulares de capita-lismo tm em comum, suas caractersticas universais compartilhadas, mas entender essa matriz como fora positiva em si mesma, como algo que todas as formas particulares concretas tratam de contrabalanar, para conter seus efeitos destrutivos.

O sinal mais confi vel do triunfo ideolgico do capitalismo o virtual desaparecimento da prpria palavra nas ltimas duas ou trs dcadas: dos anos 1980 em diante,

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... virtualmente ningum mais, com exceo de alguns poucos marxistas supostamente arcaicos (uma espcie em extino), refere-se a capitalis-mo. O termo foi simplesmente cortado do vocabulrio dos polticos, sin-dicalistas, escritores e jornalistas bem como dos cientistas sociais, que o condenaram ao olvido histrico.8

Ento o que dizer da rpida ascenso do movimento antiglobali-zao nos ltimos anos? No contradiz ele claramente esse diagns-tico? De forma alguma. Um olhar mais prximo mostra de imediato como esse movimento tambm sucumbe tentao de transformar uma crtica ao prprio capitalismo (centrada nos mecanismos econ-micos, nas formas de organizao do trabalho e na extrao do lu-cro) em crtica ao imperialismo.9 Desse modo, quando se fala sobre a globalizao e seus agentes, o inimigo externalizado (comumente na forma de um antiamericanismo vulgar). A partir dessa perspectiva, segundo a qual a principal tarefa de hoje combater o imprio norte-americano, qualquer aliado bom se for antiamericano.

Assim, o desenfreado capitalismo comunista chins, os violentos antimodernistas islmicos, bem como o obsceno regime de Lukashenko em Belarus (ver a visita de Chvez a Belarus em julho de 2006), podem aparecer como progressistas companheiros de armas da antiglobaliza-o... O que temos aqui, portanto, outra verso da mal-afamada noo de modernidade alternada: em vez da crtica ao capitalismo como tal, que confronte seu mecanismo bsico, temos a crtica aos excessos do imperialismo, que comporta a idia subjacente de mobilizar os mecanis-mos do capitalismo no quadro de uma estrutura mais progressista.

desse modo que se deve abordar aquilo que pode ser considera-do a contribuio central de Mao fi losofi a marxista: suas elaboraes sobre a noo da contradio. No as deveramos descartar como uma regresso fi losfi ca sem valor (que, tal como facilmente demonstrvel, se apia em uma vaga noo de contradio, cujo signifi cado mera luta de tendncias opostas). A tese principal do grande texto de Mao Sobre a contradio, a respeito dos dois aspectos das contradies, a principal e as no principais em um processo, e o aspecto principal e os aspectos no principais de uma contradio, merece leitura mais atenta. A repreenso de Mao aos marxistas dogmticos quanto ao

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fato de eles no compreenderem que precisamente na particularida-de da contradio que reside sua universalidade:

Por exemplo, na sociedade capitalista, as duas foras em contradio, o pro-letariado e a burguesia, formam a contradio principal. As demais con-tradies, como aquelas entre a classe feudal remanescente e a burguesia, entre a pequena burguesia camponesa e a burguesia, entre o proletariado e a pequena burguesia camponesa, entre os capitalistas no-monopolistas eos capitalistas monopolistas, entre a democracia burguesa e o fascismo bur-gus, entre pases capitalistas e entre o imperialismo e as colnias, todas so determinadas ou infl uenciadas por essa contradio principal. ...

Quando o imperialismo lana uma guerra de agresso contra um pas assim, todas as suas vrias classes, exceo de alguns traidores, podem temporariamente unir-se em guerra nacional contra o imperialismo. Nes-sa ocasio, a contradio entre o imperialismo e o pas afetado torna-se a contradio principal, ao passo que todas as contradies entre as vrias classes sociais dentro do pas (includa a que era a principal, vale dizer a contradio entre o sistema feudal e as grandes massas do povo) fi cam temporariamente relegadas a posio secundria e subordinada.10

Este o argumento fundamental de Mao: a contradio principal (universal) no se sobrepe quela que deveria ser tratada como a con-tradio dominante numa situao particular a dimenso universal literalmente reside nessa contradio particular. Em cada situao con-creta, uma contradio particular diferente a predominante, no sen-tido preciso de que, para vencer a luta pela resoluo da contradio principal, devemos tratar uma contradio particular como a que pre-dominante, qual todas as outras lutas deveriam estar subordinadas.

Na China sob ocupao japonesa, a unidade patritica contra os japoneses era o elemento predominante, posto que os comunistas que-riam vencer a luta de classes qualquer foco direto na luta de classes na-quelas condies iria de encontro prpria luta de classes. (Nisto talvez resida a caracterstica principal do oportunismo dogmtico: insistir na centralidade da contradio principal no momento errado.) O ou-tro ponto-chave refere-se ao aspecto principal de uma contradio. Por exemplo, no que diz respeito contradio entre as foras produtivas e as relaes de produo:

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... as foras produtivas, a prtica e a base econmica em geral desempe-nham o papel principal e decisivo; quem negar isso no materialista.

Mas tambm foroso admitir que, em certas condies, aspectos tais como as relaes de produo, a teoria e a superestrutura manifestam-se por sua vez no papel principal e decisivo. Quando impossvel para as for-as produtivas desenvolverem-se sem uma transformao das relaes de produo, ento a transformao das relaes de produo desempenha o papel principal e decisivo.11

O interesse poltico desse debate decisivo: o objetivo de Mao afi rmar o papel principal, na luta poltica, daquilo a que a tradio marxista comumente se refere como o fator subjetivo a teoria, a superestrutura. Isso o que, segundo Mao, Stlin negligenciou:

O livro de Stlin [Problemas econmicos do socialismo na Unio Sovitica], do comeo ao fi m, nada diz sobre a superestrutura. No se preocupa com as pessoas; considera as coisas, e no as pessoas... [Ele fala] somente das relaes de produo, e no da superestrutura ou da poltica, ou do papel do povo. O comunismo s pode ser alcanado se houver um movimento comunista.12

Alain Badiou, que procede no caso como um verdadeiro maosta, aplica esse modo de pensar constelao atual, evitando o foco na luta anticapitalista, at mesmo ridicularizando sua forma principal hoje (o movimento antiglobalizao), e defi nindo a luta de emancipao em termos estritamente polticos como a luta contra a democracia (libe-ral), a forma poltico-ideolgica agora predominante. Hoje o inimi-go no se chama imprio ou capital. Chama-se democracia.13 O que atualmente impede o questionamento radical do prprio capitalismo precisamente a crena na forma democrtica da luta contra o capita-lismo. A posio de Lnin contra o economicismo e contra a poltica pura mostra-se crucial hoje, no que diz respeito atitude dividida em relao economia na esquerda (ou no que dela restou): por um lado, os polticos puros, que abandonam a economia como espao de luta e interveno; por outro, os economicistas, fascinados pelo fun-cionamento da economia global, que excluem qualquer possibilidade de interveno poltica apropriada.