manual de análise do discurso em ciências sociais - lupicinio iñiguez - coordenador

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Qual o alcance - e quais os limites - da incorporate da linguagem, seu papel, sens fimdamentos teoricos, suas dimensoes epistemologicas, metodologicas e politicas nas Ciencias Socials? Se. por um lado, e notorio o interesse despertado pela linguagem e suas implicacoes nas ciencias, por outro lado. falta estabelecer um consenso sobre essas questoes. A abordagem des descortina ao lei tor as perspectivas do debate e a crfticas que import a fazer a Analise do Discurso. somente conhecer os procedimenlos basicos desse t de analise, mas tamhem evitar os jargoes, as imposi ou os dogmatismos, respeitando a pluralidade de de vista, de modo que a significalivo no processo de constioigao da realidad* www.vozes.com.br EDITORA VOZES Uma vlda pelo bom livro [email protected] ISBN 85.326.3004-9 9l | 788532l'630049 - Lupi DlSCURS IENCIA SOCIAIS •EDITORA VOZES

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Page 1: Manual de Análise do Discurso em Ciências Sociais - Lupicinio Iñiguez - coordenador

Qual o alcance - e quais os limites - da incorporate dalinguagem, seu papel, sens fimdamentos teoricos, suasdimensoes epistemologicas, metodologicas e politicas

nas Ciencias Socials? Se. por um lado, e notorio ointeresse despertado pela linguagem e suas implicacoesnas ciencias, por outro lado. falta estabelecer umconsenso sobre essas questoes. A abordagem desdescortina ao lei tor as perspectivas do debate e acrfticas que import a fazer a Analise do Discurso.

somente conhecer os procedimenlos basicos desse tde analise, mas tamhem evitar os jargoes, as imposiou os dogmatismos, respeitando a pluralidade de

de vista, de modo que a

significalivo no processo de constioigao da realidad*

www.vozes.com.br

EDITORAVOZES

Uma vlda pelo bom livro

[email protected]

ISBN 85.326.3004-9

9 l | 7 8 8 5 3 2 l ' 6 3 0 0 4 9

-

Lupi

DlSCURSIENCIA

SOCIAIS•EDITORAVOZES

Page 2: Manual de Análise do Discurso em Ciências Sociais - Lupicinio Iñiguez - coordenador

Este livro tern a intensao deoferecer aos leitores e leitorasque se queiram familiarizarcom o debate sobre o papel dalinguagem nas ciencias sociaisuma introdugao a Analise doDiscurso como perspectivateorico-metodologica e comoferramenta de investigacao.

E interessante apontarsumanamente o contextohistorico e disciplinar no qualeste livro foi escrito: ainterface (ou lugar deencontro) da filosofia, dapsicologia social, da cienciasocial critica, dos estudos dodiscurso e da lingiiistica, daetnologia e da analise daconversasao. Com talenfoque, este manualrepresenta uma relevantecontribuicao para uma visaocritica e discursiva dapsicologia social e para umaanalise aprofundada dasociedade com seus problemasfundamentals sociais, politicose economicos, permeados,muitas vezes, pelareconstrugao ideologica darealidade cotidiana comconsequentes praticas dedomina9ao e exclusao.

MANUAL DE ANALISEDO DISCURSO

EM CIENCIAS SOCIAIS

Page 3: Manual de Análise do Discurso em Ciências Sociais - Lupicinio Iñiguez - coordenador

A800MM BBAMDW DE DfrESGS *B*OOUfKOI

Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacao (CIP)(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Manual de analise do discurso em ciencias sociais /Lupicinio Iniguez (coordenador);tradu^ao de Vera Lucia Joscelyne. - Petropolis, RJ :Vozes, 2004.

ISBN 85.326.3004-9

Varios autores.Titulo original: Analises del discurso : manual

para las ciencias sociales

1. Analise do discurso 2. Ciencias sociais -linguagem I. Iniguez, Lupicinio.

04-1631 CDD-401.41

indices para catalogo sistematico:1. Analise do discurso : Linguagem e comunicacao :

Linguistica 401.41

'

Lupicinio Iniguez(coord.)

MANUAL DE ANALISEDO DISCURSO

EM CIENCIAS SOCIAIS

Tradu^ao de Vera Lucia Joscelyne

2a Edicao

EDITORAVOZES

Petropolis2005

Page 4: Manual de Análise do Discurso em Ciências Sociais - Lupicinio Iñiguez - coordenador

© 2004, Editora Vozes Ltda.Rtia Frei Luis, 100

25689-900 Petropolis, RJInternet: http://www.vozes.com.br

Brasil

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra podera serreproduzida ou transrmtida por qualquer forma e/ou quaisquer

meios (eletronico ou mecanico, incluindo fotocopia e gravacao)ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados

sem permissao escrita da Editora.

Editoragao e org. literdria: Fernando Sergio Olivetti da Rocha

ISBN 85.326.3004-9

Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.Rua Frei Luis, 100 - Petropolis, RJ - Brasil - CEP 25689-900

Caixa Postal 90023 - Tel.: (24) 2233-9000Fax: (24) 2231-4676

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Pi

In

1.

2.col

3.tra

4.so

5.

6.ex;

II

Sumario

Prefdcio - O giro discursive (Teun A.^van Dijk) 7

Introducdo 15

1. O "giro linguistico" (Tomas Ibanez Gracia) 19

2. A linguagem nas ciencias sociais: fundamentos,conceitos e modelos (Lupicinio Iniguez) 50

3. A analise do discurso nas ciencias sociais: variedades,tradi9oes e praticas (Lupicinio Iniguez) 105

4. A analise da conversa9ao e o estudo da interapaosocial (Charles Antaki e Felix Diaz) 161

5. Psicologia discursiva: unindo teoria e metodo com umexemplo (Derek Edwards) 181

6. A fronteira interior — analise critica do discurso: umexemplo sobre "racismo" (Luiza Martin Rojo) 206

7. Praticas discursivas como estrategias degovernamentalidade: a linguagem dos riscos emdocumentos de dominio publico (Mary Jane P. Spink eVera Mincoff Menegon) 258

Glossdrio geral 304

Page 5: Manual de Análise do Discurso em Ciências Sociais - Lupicinio Iñiguez - coordenador

Prefacio

0 giro discursiveTeun A. van Dijk*

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P.P

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Neste livro, apresentado por importantes psicologos so-ciais da Universidade Autonoma de Barcelona, ofere-

ce-se aos estudantes uma excelente introducao ao estudodo discurso. Em muitos aspectos, o "giro linguistico", ini-ciado na filosofia e nas ciencias socials ha varias deca-das, poderia, hoje em dia, ser chamado de "giro discursi-vo" dado o atual^e crescente interesse no estudo das forr

mas do uso da linguagem e de conversagoes e textos, quevem substituindo o estudo do sistema abstrato ou da gra-matica de um idioma.

Enquanto o estudo da gramatica independente dotexto que, em um determinado momento, era proeminen-te, passou a se restringir quase que totalmente a uma pe-quena area da linguistica, vemos que nao so as demais areasdessa disciplina como tambem a maioria das outras disci7

plinas nas humanidades e nas ciencias socials se voltarampara os problemas fascinantes do texto e da conversacaoem interagao, cognigao, contexto social ou cultura.

As contribuigoes para este livro apresentam um retratotanto historico quanto sistematico desse desenvolvimen-

i...

* Universidade Pompeu Fabra. Barcelona, Espanha.

1

Page 6: Manual de Análise do Discurso em Ciências Sociais - Lupicinio Iñiguez - coordenador

Teun A. van Dijk Prefacio

to tao estimulante que comegou mais ou menos na mes-ma epoca, e muitas vezes de forma independente, entre1964 e 1974, na antropologia, na sociologia, na psicologiae na linguistica. Assim, para a linguistica, o giro foi de es-truturas sintaticas abstratas de frases isoladas para o uso dalinguagem, texto; conversagao, atos discursivos, intera-goes e cognigao. Para a filosofia e muitas das ciencias so-ciais, como tambem e mostrado neste livro, o giro foi ain-da mais radical, ou seja, na diregao da linguagem em geral.Na decada de 1960 isso significou, primordialmente, queos cientistas sociais precisaram aprender o basico das gra-maticas formais, que eram entao a unica linguistica dispo-nivel. No entanto, vemos que essas travessias de fronteirasdisciplinares em varias diregoes levaram logo a um inte-resse generalizado na linguagem em uso, ou seja, na lin-guagem usada pelos seus verdadeiros usuarios em situa-goes sociais reais e em formas reais de interagao, em um dis-curso que "ocorria naturalmente". E esse esforgo geral e trans-

f ~disciplinar que e agora chamado de "analise do discurso" -embora o termo mais geral "estudos do discurso" talvez seja

. mais apropriado, ja que ele inclui nao somente a "analise", propriamente dita, mas tambem "teorias", aplicagoes, criti-

cas e outras dimensoes da investigagao academica.

Desde o inicio, a psicologia foi uma das disciplinas-mae dos estudos do discurso. Ja no comego do seculo XX,o famoso F.C. Bartlett buscava descobrir como e que aspessoas decoram historias e, no livro que escreveu poucomais tarde, Remembering (1932), explicou que as pessoasleem, compreendem e decoram historias em tennos da nar-rativa e de outros esquemas de conhecimento de sua propriacultura. Muitos anos mais tarde, e apos a derrota do beha-viorismo por uma critica devastadora de Chomsky sobre avisao behaviorista da linguagem e do aprendizado da lin-guagem segundo Skinner, foi essa ideia basica de Bartlett

Pajin-enfua-fefes-a4ns-

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que viria a ser uma das pedras fundamentals da revolu-gao cognitiva. Assim, a partir da metade da decada de 1970,um campo muito vasto e bem-sucedido do estudo cogniti-vo-psicologico dos processes da produgao e compreensaode textos foi desenvolvido como uma das areas do estudotransdisciplinar do discurso.

Um dos muitos topicos abordados nesse tipo de estu-dos de processamento do discurso foi o papel fundamentaldo conhecimento: hoje sabemos que e impossivel produzif^ou ler um texto, ou participar de uma conversa, sem umagrande quantidade de conhecimento sobre a linguagem,sobre o discurso, sobre a comunicagao, sobre o contextQatual e, de um modo geral, ate sobre o "mundo". Grandeparte desse conhecimento e compartiihado socialmenteentre comunidades sociais, profissionais ou culturais di-ferentes para as quais ele e denominador comum para aagao, a interagao, o discurso e as praticas sociais. \

Vemos tambem, da mesma maneira, que as frases naopodem ser isoladas de seus textos e contextos, e que tambemo processamento do discurso nas mentes dos usuarios dalinguagem nao pode ser isolado nem do verdadeiro uso da lin-guagem em contextos sociais por usuarios da linguagem emsuas comunidades sociais e culturais. A linguagem, o discur-so e o conhecimento sao essencialmente sociais.

E esse insight fundamental que deu origem nao so asociolinguistica, a pragmatica e a etnografia da fala, mastambem a psicologia social do discurso, que forma o panode fundo da apresentagao das varias perspectivas nos estu-dos sobre discurso oferecidas neste livro.

Existem, no entanto, muitos tipos de psicologia sociale, infelizmente, a maior parte deles tern dernonstrado pou-co interesse explicito no estudo do discurso. Assim, a psi-cologia social experimental nos Estados Unidos concen-

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Teun A. van Dijk

trou-se, inicialmente, em atitudes, preconceitos e gerenci-amento da impressao, entre muitos outros topicos, em vezde estudar as maneiras pelas quais elas sao adquiridas dis-cursivamente, expressas, usadas e reproduzidas na socie-dade. Acoinpanhando a revolugao cognitiva na psicolo-gia "individual", essa psicologia "social" tambem tern mui-to pouco que ver com a maneira como a mente, ou os indi-viduos, estao relacionados com a sociedade. Na Europa,varias tradigoes de psicologia social tinham mais interessena dimensao social da vida cotidiana propriamente dita,em temas tais como a identidade social de grupos e as rela-goes grupais, por um lado, e representacoes sociais de co~

f^munidades, por outro. No entanto, embora a identidade so-cial, as relacoes sociais e as representacoes sociais sejamem grande parte administradas pelo discurso, a maioria

•dessas abordagens da psicologia social quase nao esta en-volvida na analise sistematica do discursp, nem teorica-

tente, nem na pratica, nem metodologicamente. Isso signi-fica que Ihes era impossivel oferecer qualquer insight sobreas maneiras como essas identidades, relacionamentos e re~presentapoes grupais sao realmente adquiridas, utilizadas ereproduzidas na socieda'derUmalriterface vasta e complexa- a do discurso - era excluida dessas abordagens.

A partir da metade da decada de 1980, a ESJ£olQgi;a so-cial desenvolvida na Universidadeestudiosos eminentes como Michael BilligfJonathan Pot-ter, Margaret Wetherell e Derek Edwards a quem se junta-ram depois Charles Antaki e outros, ofereceram uma alter-nativa radical quando explicitamente se concentraram notexto e especialmente na "conversagao". Ao levar o discur-so a serio, eles reagiram, assim, tanto contra os psicologos

^sociais norte-americanos como contra outros europeus.

Contra o experimentalismo limitado no laboratorio,eles propuseram o estudo da linguagem real usada em situ-

.10

Prefacio

apoes sociais, isto Q, o discurso ou conversagao natural,que, a seu ver, seriam dados muito mais confiaveis paraestudar a sociedade e seus membros. Contra o mentalismoda psicologia cognitiva, propuseram o estudo do uso ver-dadeiro de termos psicologicos nas conversas cotidianas.E contra o empirismo e o realismo da maior parte de outrastradicoes da psicologia e das ciencias sociais, ofereceramuma alternativa construtivista mais ou menos radical, ins-

irada, por exemplo, em Rom Harre: a

. - - - ,

textoe da conyersacao. £ comc^riao temos acesso direto a"suits menfesTmas somente a seus discursos, e melhor quenos concentremos nesses discursos. E nao apenas comomeras "expressoes" de suas mentes, mas sim por si mes-mos, isto e, como formas de interacao social, com suasproprias variaveis, objetivos, interesses, problemas e es-trategias para fazer sentidcx

Corno tambem vemos neste livro, e por essa razao quegrande parte da psicologia discursJYaJnspiraTse no^estudo.da conversac^ao na emometodologia, ouseja, no estudo dos"metodps"lmpficitos, partilhados sociahnente, que as pes-soas usam na interagao, e dai tambem na conversacao, paraentender, conduzir e fazer sentido de suas vidas cotidianas.

De uma maneira que nos recorda a forma como essesetnometodologistas ou microssociologos rejeitaram as es-trururas abstratas e preestabelecidas da sociologia parso-niana, e se concentraram nos detalhes da acao e da conver-sagao, os psicologos discursivos tambem rejeitaram mui-tas das nogoes preestabelecidas da psicologia cognitiva esocial tradicional e tambem se concentraram nos detalhesdo discurso.

Os tipos diferentes da^giigolggia discursiva e retori-ca desenvolvidos err|^61igEborou^IrtfT^ wr™*™™™ nmJogo encontraram um

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Teun A. van Dijk

eco em outras universidades e em outros paises, especial-mente nos departamentos de psicologia social. Na Espa-nha, isso ocorreu principalmente entre os psicologos so-ciais da Universidade Autonoma de Barcelona, tendo afrente Tomas Ibanez e Lupicinio Iniguez, que tomaram ainiciativa para produzir este livro convidando, para unir-se a eles, Charles Antaki e Derek Edwards, de Loughbo-rough; Felix Diaz e Luisa Martin Rojo, de Madri, e MaryJane Spink e Vera Mincoff Menegon, de Sao Paulo, produ-zindo.assim^mamisrurainteressantissimadeabordagens.

~ No entanto, esses estudiosos nao se limitam unica-mente a uma etnometodologia ou analise de conversa9aoisolada sociopoliticamente; eles se denominam explicita-mente psicologos socials e linguistas "criticos". Com isso,se colocam em uma tradicao de pesquisa critica ampla, es7

pecialmente europeia, que remonta a Escola de Frankfurt,e que tern como seu representante contemporaneo maisilustre Habermas. Essa tradigao aparece tambem no traba-Iho de pensadbres tap diferentes quanta Foucault e Bour-dieu na Franga e muitos outros estudiosos em outras paries,

rdo mundo., Da^p^cy^eresse comum no.discursaa psico-logia social critica tambemestl reiacionlu3al:om a AnaliseCritica do Discurso, na forma em que essa surgiu nos estu-dos de linguistica e de discurso no flm dos anos 1970, como famoso livro Language and Control, de Fowler, Kress,Hodge e Trew, seguido mais tarde p'ela obra de NormanFairclough no Reino Unido, Ruth Wodak em Viena e Lui-

Martin Rojo em Madri, que, portanto, tambem esta repre-^sentada neste volume. Esses g s t u s criticos .de discurso es-lapjnteressado^essencialmente na malieira cornpoDoder.f t » i f f H S i T i ^ ' ^ ^ ^ = ' ? r B i T S i I ' " I'lli*111" — r 1 ' ' L" " nj-'~~''"''~'' j M C f e ^ - "

E interessante esbogar sumariamente esses contextoshistoricps e disciplinares a fim de entender o contexto no

,12

Prefacio

qual este livro foi escrito: a interface (ou lugar de encon-tro) da fllosofla, da psicologia social, da ciencia social cri-tica, dos esrudos de discurso e da linguistica, da etnometo-dologia e da analise da conversacao. Com seu interessnos giros lingiiistico e discursive, e suas contribuicoes parauma analise detalhada do discurso, os autores neste volu-me foram capazes de contribuir de maneira significativapara a renovacao da psicologia social na Espanha e parauma cooperagao (mais) intensa com os analistas do discur-so em outras disciplinas.

Como muitos dos estudantes de doutorado do progra-ma em Barcelona (assim como em outros lugares da Espa-nha) sao da America Latina, e de se esperar que essa visaocritica e discursiva da psicologia social venha fortalecerainda mais essa orienta^ao tambem na America Latina.Dados os problemas fundamentals sociais, politicos e eco-nomicos naquela regiao, uma psicologia, seja ela ou naodiscursiva, que nao fosse capaz de contribuir para umaanalise critica da sociedade seria no minimo irrelevant^.E, e claro, o mesmo se aplica ao resto do mundo.

Isso nao sigmfica que a abordagem "discursiva" e uma; seja na psicologia ou em qualquer outra disciplir

na das humanidades ou das cie~ncias sociais. Embora mui-tos aspectos e problemas da sociedade sejam discursivos,ou possam ser estudados por varias formas de analise dodiscurso, isso nao quer dizer que a sociedade e apenas dis-cursiva, como demonstram a pobreza, a fome, as doen-

, a violencia contra mulheres, o racismo e muitos ou-tros problemas sociais cruciais. No entanto, nosso pensa-mento, nossa interpreta?ao e nossa comunicacao sobre es-ses problemas sao, na maiorparte das vezes, expresses oureproduzidos atraves do texto ou da fala e muitas vezesconstituidos discursivamente. O que a maioria de nos sa-bemos sobre esses problemas sociais fundamentals e o que

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Teun A, van Dijkr

lemos sobre eles no jornal ou em livros ou o que veinos natelevisao, e com isso esse conhecimento e muitos de seusformates sao construidos discursivamente desde o come-co; e o mesrno ocorre com muitas das maneiras que usa-mos para falar sobre eles e agir a seu favor ou contra eles.

A psicologia social critica e sua perspectiva discursivaestao em uma situa$ao ideal para contribuir para nosso en-tendimento desses e de muitos outros problemas sociais.Essas contribuigoes sao eficientes e significativas so quan-do contribuem com aiguma coisa que outras pessoas emoutras disciplinas nao podem oferecer, ou seja, com umaanalise muito detalhada de textos e falas, e sua relagao, porurn lado, com a situapao social e com a sociedade em gerale, por outro, com as muitas dimensoes psicologicas de (gru-pos de) pessoas; dimensoes tais como a maneira como elasveem, definem e vivem sua realidade cotidiana, a maneiracomo elas lutam com suas identidades sociais, os proble-mas da intera?ao e dos conflitos cotidianos emuma socie-dade multicultural, as maneiras como as pessoas se envol-vem na reproducao do machismo ou do racismo e umaquantidade de outros aspectos que exigem a intervengaoespecializada de psicologos sociais.

Tanto para estudantes como para academicos de outrasareas de pesquisa, as contribui96es neste livro mostramem detalhe o historico, as perspectives, os metodos e osobjetivos desse tipo de psicologia social discursiva, daanalise critica do discurso e dos estudos sociais criticosem geral.

Barcelona, setembro de 2003

14

Intro dugao

Este livro tern como objetivo familiarizar seus leitores eleitoras com o debate sobre o papel da linguagem nas

ciencias sociais e com os fundamentos teoricos que justifi-cam esse papel. Mais especificamente, tem tambem a in-tenpao de oferecer-lhes uma introdugao a Analise do Dis-curso como perspectiva teorico-metodologica e como fer-,ramenta de investigagao.

E cada vez maior o interesse que a linguagem despertanas ciencias sociais, um interesse que se manifesta tantoem suas dimensoes epistemologicas quanto nas metodolo-gicas e politicas. Esse e, portanto, o motivo principal paraeste manual, e espera-se que ele contribua para um maiorconhecimento dos antecedentes e da evolufao desse inte-resse pela linguagem.

Nao existe, porem, nenhum consenso - nem sequermajoritario - sobre o alcance e limites da incorpora9ao dalinguagem as ciencias sociais. Portanto, esperamos quenossos leitores e leitoras consigam, gra?as a leitura des-te manual, formar uma opiniao bem fundamentada sobrea questao. Tentaremos fazer com que isso seja possivel,identificando as principais perspectivas que fundamentama inclusao da linguagem nas ciencias sociais; mostrando atrajetoria que pennitiu que essa inclusao abrisse o cami-nho para novas perspectivas teoricas e metodologicas; des-crevendo algumas das principais tendencias e modalida-

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Lupfdnio Iniguez

des da Analise do Discurso, seu alcance e seus limites;e, finalmente, introduzindo alguns procedimentos basicosdesse tipo de analise.

Esperamos estar oferecendo uma quantidade de recur-sos suficientes para uma apropriagao, avaliagao e criticadessas perspectivas e, por sua vez, para a propria aplicacaoda Analise do Discurso. Atraves de uma exposi9ao orde-nada de conteudos, de um esforgo para evitar umjargao de-masiado especifico, e da apresentac. ao de inumeros exem-plos, tentamos fazer com que seja possivel integrar essaspropostas teorica e metodologicamente.

Tentamos tambem evitar qualquer tipo de dogmatis-mo. Nesse sentido, a assertividade com que as varias posi-foes sao apresentadas nao significa que damos menos im-portancia a manuten9ao de uma atitude critica nas praticasda produgao do conhecimento e da investigacao nas cienciassociais, respeitando a pluralidade de perspectivas e de pon-tos de vista, afastando-nos das pretensoes de impor umasperspectivas sobre outras, dando elementos para que o al-cance e os limites das propostas sejam continuamente ava-liados e mantendo viva a reflexao sobre o papel das cienciassociais na permanencia e na mudan?a da ordem social.

O livro, portanto, foi organizado em sete capitulos: oprimeiro, dedicado ao "giro lingiiistico"; o segundo, ao pa-pel da linguagem nas ciencias sociais; o terceiro, as varie-dades, tradi9oes e praticas da analise do discurso nas cienciassociais; o quarto, a Analise da Conversa9ao; o quinto, a Psi-cologia Discursiva; o sexto, a Analise critica do discurso;e o setimo, a Analise da Interanima9ao Dialogica.

O primeiro capitulo tern a fun9ao de emoldurar, teori-ca e epistemologicamente, o papel da linguagem nas cien-cias sociais. Examina a maneira como a reflexao sobre alinguagem foi adquirindo importancia a partir dos anos1960 e o impacto que essas reilexoes tiveram na nossa

16

Intro dugao

concep9ao do conhecimento, em nossos conceitos da rea-lidade - tanto fisica quanto social - e nas estrategias meto-dologicas para sua analise.

0 segundo capitulo apresenta os fundamentos princi-pals que sustentam e legitimam o papel da linguagem nasciencias sociais. Seu argumento principal e que, emborano inicio a presen9a da linguagem nas disciplinas sociaistenha sido introduzida a partir da metodologia, mais tarde,no entanto, ela se converteu em um conjunto de novasperspectivas nas que a "linguisticidade" e o "linguistico"sao centrais. O capitulo examina o giro linguistico, a "Teo-ria dos atos da fala", a Pragmatica, a Etnometodologia ealguns aspectos da obra de Michel Foucault.

O terceiro capitulo foi dedicado a Analise do Discursocomo metodo e como perspectiva nas ciencias sociais.Apesar da arnpla lista de perspectivas e praticas na Analisedo Discurso, aqui serao apresentadas apenas algumas de-las: a sociolingiiistica interacional, a etnografia da comu-nica9ao, a analise conversacional, a analise critica do dis-curso e a psicologia discursiva. A parte final oferecera umadas modalidades da Analise do Discurso que podem ser se-guidas para o esuido de processes sociais. Pondo em praticaa AD, poderemos ver o alcance e os limites que ela tem nacompreensao dos processes sociais e da estrutura social.

Com efeito, os cinco ultimos capitulos apresentamexemplos da Analise do Discurso na pratica. Assim, o ca-pitulo quarto tem como moldura a tradi9ao da Analise daConversa9ao e permite ver como se constroi a delicade-za nas redoes sociais e a importancia e consequenciasque isso pode ter na vida cotidiana. Por sua vez, o capituloquinto se enquadra em uina linha critica das ciencias so-ciais que se identifica com o titulo de "Psicologia Discur-siva", perspectiva que mostrou a revolu9ao que e possivelfazer na conceitualiza9ao teorica de determinados proces-

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Lupicinio Iniguez

sos psicologicos quando esses sao abordados de um pon-to de vista discursivo. O sexto capitulo, enquadrado no mar-co da Analise Critica do Discurso, mostra como o discur-so funciona como pratica de domina9ao e de exclusao.Finalmente, o setimo capitulo, no marco da Interanima-9ao Dialogica, amplia a reflexao sobre dominacao, abor-dando a linguagem dos riscos como estrategia de gover-namentalidade.

18

O ff* -•£•— _. * m • - H ,».rsiS5»4ssS37_ itgiroisUnqmslrcol

iro liriguistico" e uma expressao que esteve em mo-da nos anos 1970 e 1980 para designar uma certa

mudanca que ocorreu na fllosofia e em varias ciencias hu-manas e socials, e que as estimulou a dar uma atencaomajor ao papel desempenhado pela linguagem, tanto nosproprios projetos dessas disciplinas quanto na formagaodos fenomenos que elas costumam estudar.

Normalmente, nao se da a essa expressao nenhum ou-tro significado alem desse que acabamos de mencionar.Um dos primeiros objetivos que podemos atribuir ao pre-sente capitulo e precisamente o de contribuir para que se ad-quira uma consciencia clara do aumento progressivo da aten-cao que foi dada a linguagem no decorrer do seculo XX.

No entanto, o "giro linguistico" teve efeitos e implica-coes que vao bem mais alem do simples aumento da enfa-se dada a importancia da linguagem. Ele contribuiu pargque fossem esbogados novos conceitos sobre a naturezado conhecimento, seja ele o do sentido,comum ou o cienti-fico, para permitir que surgissem novos significados para

* Universidade Aberta da Catalunha.

19

Page 12: Manual de Análise do Discurso em Ciências Sociais - Lupicinio Iñiguez - coordenador

Tomds Ibdnez Gratia

aquilo que se costuma entender pelo termo "realidade" -tanto "social" ou "cultural" quanto "natural" ou "fisica" -e a desenhar novas modalidades de investigate) propor-cionando outro contexto teorico e outros enfoques metodologicos.jPorem, mais que tudo, o "giro linguistico" mo-dificou a propria concepcao da natureza da linguagem.Um segundo objetivo deste capirulo, portanto, seria ensi-nar a discernir quais sao as concepgoes da linguagem quesustentam as varias formulagoes oferecidas pelas cienciashumanas e socials.

For outro lado, o presente capitulo pretende analisarem profundidade a natureza e as hnplicagoes do "giro lin-guistico", dando uma atencao especial a sua genealogia,ou seja, a dimensao historica de sua constituigao progres-siva, as rupturas teoricas que tiveram que ocorrerpara queo giro linguistico pudesse construir e desenvolver seusprojetos, e ao carater plural e as vezes contraditorio de quese revestiram as suas varias formulagoes.

Se o "giro linguistico" realmente constitui, como indi-camos neste capitulo, uma mudanga profunda das concep-goes do mundo, e das concepgoes sobre como interpretaras ciencias humanas e sociais, inclusive a propria filoso-fia, e importante que o leitor e a leitora entendam nao so-mente o alcance e a orientacao dessas mudangas mas tam-bem as razoes que o fizeram surgir. Podemos entao consi-derar que um terceiro objetivo que nos propomos a alcangarneste capitulo seria o de discernir e avaliar essas razoes.

Para esse fim, no entanto, nao e suflciente apenas en-tender e armazenar a informagao proporcionada pelo textoque foi elaborado para este capitulo. Alem disso, e precisopor em pratica um esforgo extraordinario de reflexao pes-soal que permita qualificar a natureza e a forga das suposi-goes a que o "giro linguistico" teve que se sobrepor paraconseguir se desenvolver. Nesse sentido, seria util refletir

20

1. 0"giio linguistico"

sobre nossa propria concepgao da linguagem comparan-do-a com as concepgoes que sao inferidas pelo "giro lin-guistico". Um ultimo objetivo, portanto, consiste em per-rnitir e facilitar essa reflexao.

1. A Linguistica e a filosofia como pontos de parti da

Uma das marcas distintivas do seculo passado foi, semduvida alguma, a enorme importancia que tanto a filosofiaquanto as ciencias humanas e sociais em seu conjunto de-ram ao fenomeno da linguagem.

A atengao crescente que se da ao estudo da linguagemdurante todo o seculo XX teve seu estimulo inicial no cer-ne de uma dupla ruptura ocorrida no despertar do seculo.

De um lado, a ruptura com a antiga tradigaocentrada na comparagao das linguas e no estudo de suaevolugao historica. E, por outro, a ruptura com a total he-gemoma que a filosofia da consciencia exerceu durantemais de dois seculos. —

A primeira dessas rupturas, liderada por Ferdinand deSaussure (1857-1913), instituiu, na verdade, a linguisticamoderna, dotando-a de um programa de alguns conceitose de uma metodologia que viabilizavam o estudo rigorosoda lingua considerada "por si mesma e em si mesma".

A segunda ruptura, iniciada por Gottlob Frege (1849-1925) e por Bertrand Russell (1872-1970), fez com que oolhar da filosofia, ate entao voltado para o mundo interiore privado das entidades mentals, se voltasse para o mundopassivel de ser objetivado e publico das produgSes dis-cursivas. Assentavam-se, assim, as bases para uma novaforma de entender e de praticar a filosofia que, sob a deno-minagao de "filosofia analitica", dominaria o cenario dafilosofia anglo-saxa durante mais de meio seculo. J

Os sucessos alcangados pela linguistica moderna, tan-to no marco da orientagao estruturalista iniciada com as

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contribui?oes de Ferdinand de Saussure, quanto no marcoda orientacao generativa elaborada fundamentalmente porNoam Chomsky (1928-) no final dos anos 1950, tiveramamplarepercussao em vastos setores das ciencias socials ehumanas que viram na linguistica um modelo exemplar aoque podiam recorrer diretamente quando abordavam osobjetos de suas proprias disciplinas.

No entanto, mais alem de esse efeito mimetico extra-ordihario, e a filosofia analitica, em suas varias orienta-9oes e devido tanto a seus fracassos como a seus exitos,que devemos atribuir a expansao do interesse pela lingua-gem nas varias ciencias socials e humanas.

Dificilmente poderemos compreender a aten9ao dadaa linguagem pelo pensamento contemporaneo se nao ana-lisarmos o "giro linguistico" empreendido pelo pensa-mento posterior ao seculo XIX, observando tanto sua ges-tacao como a historia de seu desenvolvimento.

Mas antes de abordar essa questao no proximo capitu-lo, talvez seja util recordar que ja no medievo encontra-mos alguns ingredieBles^ue_teriam podido propiciar um"giro linguistico^/favanr/a/eSre>Trata-se da famosa dis-puta entre os escolasticos a respeito dos "universais". Co-mo bem se sabe, os "nominalistas" sustentam a tese da ine-xistencia fatica dos universais, argumentando que tudoaquilo que existe o faz de uma forma peculiar e que denada adianta buscar referencias existenciais por tras de ca-tegorias gerais. Nao existe nem "o" campones, nem "a" ar-vore, nem "a" mulher, mas sim e apenas, camponeses, ar-vores e mulheres particulares.

Um universal nada mais e do que uma abstragao cujaexistencia so se materializa no amago de nossa linguageme cuja realidade e resultado exclusivamente dos usos quefazemos da linguagem. A partir de considera9oes desse tipo,os nominalistas esbo9avam uma linha de pensamento que

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1. 0 "giro linguistico"

outorgava a linguagem um papel especial na elabora9aode nossa visao do mundo, mas ainda seria necessario espe-rar varios seculos para que essas intui9oes dessem lugar aum auteiitico "giro linguistico".

2. Das ideias as palavras ou do "animal pensante"ao "animal falante"

Q ser humano e um "animal racional". Essa foi umadas formulas mais antigas utilizadas para expressar a dis-tinguibilidade de nossa especie. No entanto, embora a ca-pacidade que o ser humano tem para exercitar o pensa-mento, o raciocinio, a elaboracao e o manejo de ideias te-nha fascinado os filosofos desde os tempos da Grecia Clas-sica, foi, sem duvida, Rene Descartes (1596-1650) que con-tribuiu com maior sucesso para que o olhar filosofico fo-calizasse o interior de nosso mundo mental (a famosaffS

exortando-nos a esquadrinhar nossas ideias pa-ra ficarmos unicamente com aquelas que fossem "cla-ras e distintas". Dessaperspectiva, a linguagem e ceitamen--3

te importante, mas constitui apenas um instrumento paramanifestar nossas ideias, uma simples roupagem com a qualessas se apresentam ao exterior e se tornam visiveis paraos demais. Quando nosso discurso parece ser confuso eporque nossas ideias nao sao suficientemente claras e, in-clusive, algumas vezes acontece de a linguagem dificul-tar a exterioriza9ao de nossas ideias em vez de ajudar-nosa comunica-las aos demais.

A partir de Descartes e durante dois seculos e meio, afilosofia europeia seria uma "filosofia da consciencia"centrada no estudo da interioridade do sujeito e convenci-da de que, para conhecer o mundo exterior, e preciso ins-pecionar minuciosamente as ideias que habitam os espa-905 interiores da subjetividade. No entanto, a partir do mormento em que se aceita a dicotomia entre res cogitans e

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res extensa, e precisamente porque foi tracada essa linhadivisoria, surge imediatamente a pergunta de como se re-lacionam entre si o "interior" e o "exterior" e p misterio daadequagao entre nossas ideias e a realidade.

Durante dois seculos e meio as grandes divergenciasfilosoficas vao se articular ao redor dessas questoes.

i Serios antagonismos se desenvolvem entre aqueles queconsideram que nossas ideias se formam com base em nos-sas experiencias sensoriais (nada esta em nossa mente quenao tenha anteriormente passado por nossos sentidos, di-

<( riam, por exemplo, os empiristas) e aqueles que creem que asideias se constituem com base nas propriedades inatas dares cogitans, ou ainda aqueles que consideram, com Emma-nuel Kant (1724-1808), que as "categorias apriori de nossoentendimento" estabelecem o marco nao empirico a partir

^do qual a experiencia empirica conforma nossas ideias.

Curiosamente, essas profundas divergencias filosofi-cas nascem precisamente porque existe um consenso pre-vio a respeito do carater privilegiado do mundo das ideiase porque se tenta explicar a consciencia a partir da inques-tionavel dicotomia entre a mente e o mundo. Se questio-narmos a dicotomia "interior/exterior", o dificil problemada relac.ao entre ambos se dilui imediatamente, deixandoem evidencia a vacuidade das grandes divergencias filoso-ficas originadas por esse problema.

No entanto, nao e nada facil deixar de lado dois secu-los e meio de consenso filosofico. O fato de que ja trans-correu quase um seculo desde aquele momenta em que co-mefaram a questionar a primazia da "filosofia da cons-ciencia" e que, ainda hoje, temos serias dificuldades paralivrar-nos de suas influencias, indica, sem duvida algu-ma, a magnitude da inovacao que o "giro lingiiistico" su-

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1. 0 "giro lingiiistico'

pos e a originalidade de que seus promotores tiveram quese vangloriar.

3. Os comedos do "giro Linguistico"

A propria expressao "giro linguistico" sugere a ima-gem de um momento precisamente delimitado no qual seproduziu uma mudanca brusca de algo que nao e linguisti-co para o espa90 propriamente linguistico. Pode ate serque alguns dos comentarios feitos acima tenham contribui-do para fomentar essa imagem. Mas a coisa nao foi bem as-sim. O giro linguistico nao e um fato precise e sim um feno-meno que vai se formando progressivamente e que adotavarias modalidades ao longo de seu desenvolvimento.

Em seu comego, o giro linguistico surge de uma preo-cupagao em superar a antiga logica silogistica herdada deAristoteles (385 a.C.-322 a.C) e em inventar umanova lo-gica formal, capaz de dar vida a essa linguagem "ideal" e"perfeita" com que sonhava Leibnitz (1646-1716).

Foi Gottlob Frege (1848-1925) que empreendeu essatarefa ao inventar "a teoria da quantifica9ao" (base da lo-gica moderna) e ao substiruir as velhas nogoes de "sujeito"ejle "predicado" pelas no9oes de "argumento" e de "fun-cao". A nota^ao canonica proposta por Frege permitia trans-formar os enunciados linguisticos em "proposigoes" cujovalor de verdade (proposi^ao verdadeira ou falsa) podia serestabelecido de uma maneira rigorosamente formal.

Da Universidade de Cambridge, Bertrand Russell (1872-1970) colaborou intensamente com Frege para o desen-volvimento da nova logica, dando um impulso decisive aogiro linguistico na filosofia anglo-saxa.

Para o proposito desta disciplina, o que importa nao e,certamente, a compreensao e o conhecimento detalhadodo novo instrumento logico criado por Frege e Russell, e

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sim compreender, por urn lado, quais eram as premissasque orientavam as investigasoes "logicistas" da dupla Fre-ge/Russell e, por outro, captar as repercussoes que essenovo instrumento logico teve para o desenvolvimento dafilosofia da linguagem.

Essas premissas podem ser formuladas da seguinte ma-neira:

a) Muitos dos problemas com que se deparam tanto afilosofia, quanto a comunicacao humana em geral, ocor-rem porque a linguagem cotidiana tem como base uma 16-gica imperfeita, ambigua e imprecisa.

b) As frases construidas nas linguas naturals se apoiam,claramente, em uma estrutura logica, mas essa estruturalogica nao aparece com claridade se nos limitarmos a con-templar exclusivamente a estrutura gramatical das frasesou se as analisarmos com a ajuda da logica aristotelica.

c) A nova logica, baseada em quantiflcadores, permiteque se exiba a autentica estrutura logica dos enunciadoslinguisticos, convertendo-os em proposi?6es dotadas deum valor de verdade.

d) Se conseguirmos estabelecer a estrutura logica dosenunciados poderemos exibir a estrutura do pensamentoexpressado por esses enunciados e, desta maneira, aumen-tar o conhecimento dos processes inferenciais.

e) Se a linguagem e um instrumento para representar arealidade, entao sua analise pode nos informar sobre a na-tureza dessa mesma realidade.

Este conjunto de premissas nos indica varias coisas im-portantes:

Em prirneiro lugar, vemos como se produz um deslo-camento do estudo das "ideias", realizado por meio de umdiscurso mental de carater privado (introspeccao), para o

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1. 0 "giro linguistico"

estudo dos enunciados linguisticos, publicos e objetiya-dos, a fim de evidenciar sua estrutura logica.

Nao e dentro de nossa mente que temos que "olhar"para saber como pensamos, e sim devemos "olhar" paranossos discursos; nao devemos esquadrinhar nosso "in-terior" e, sim, devemos permanecer no "exterior" visivel atodos.

As ideias foram, em uma epoca, os objetos de todo filo-sofar e constituiram o vinculo entre o ego cartesiano e omundo externo a ele [...]. Nas discussoes atuais, o dis-curso publico substituiu o discurso mental. Um ingredi-ente nao questionado do discurso publico e o enunciado[...]. Quine disse que "a tradi9ao de nossos pais e uma fa-brica de enunciados". Os enunciados sao um artefatocognoscitivo nessa fabrica do discurso publico. Talvez,como sugerirei a seguir, sao eles que constituem esse"sujeito cognoscitivo". De qualquer forma, eles sao osresponsaveis pela representa9ao da realidade no corpodo conhecimento. Dessa maneira, parece que os enunci-ados substituiram as ideias [...]. A verdadeira naturezado conhecimento mudou. Nossa situa9ao atual na filoso-fia e uma conseqiiencia daquilo que o conhecimentochegou a ser [...]. Um Descartes jamais teria pensadoque uma teoria e um sistema de enunciados, assim comoQuine jamais teria reconhecido que uma teoria e um es-quema de ideias do seculo XVII (I. Hacking, 191'5. DoesLanguage matter to philosophy? Nova lorque: Cambrid-ge University Press, p. 159-169 [Tradu9ao em espanhol:Buenos Aires, Sulamericana, 1979]).

Em segundo lugar, podemos observar como, em umdeterminado momento, deixa-se de considerar que sao asnossas "ideias" que se relacionam com o mundo, e pas-sa-se a afirmar que sao nossas palavras que se correspon-dem com os objetos do mundo. Ja veremos como essatese, que podemos qualificar de "realista", sera superadanos desenvolvimentos posteriores do giro linguistico, em-

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r

bora tenha, sem duvida, o grande merito de substituir a re-lacao "ideias/mundo" pela relacao "linguagem/mundo",trocando o privado pelo publico e o nao observavel pelomanifesto.

Quanto as repercussoes que o instrumento logico cons-truido por Frege/Russel viria a ter para a filosofia da lin-guagem, basta assinalar aqui que, durante varias decadas,a filosofia analitica adotou a forma tecnica de uma rigo-rosa analise logica das proposicoes filosoficas, recorren-do a teoria da quantificacao..4. 0 estimulo neopositivista ao giro lingiilstico

Seguindo os conselhos de Frege, o jovem LudwigWittgenstein (1889-1951) decidiu ir estudar com Russellem 1911 e, poucos anos mais tarde, publicou um livro, oTratado logico-filosofico (1921), que imediatamente exer-cera uma influencia profunda sobre um grupo de filosofos ecientistas austriacos e alemaes preocupados em dar uma ori-entapao cienn'fica ao pensamento filosofico e em acabar de-finitivamente com as especulacoes meramente metafisicas.

Esses pensadores formam um colegio filosofico - o"Circulo de Viena" - e lancam, em 1929, um manifestoprogramatico fortemente inspirado pela tese de Wittgens-tein. Eles estao convencidos de que a linguagem comum eum pessimo instrumento para expor e discutir assuntos fi-losoficos, e tambem para construir uma visao cientifica darealidade. A seu ver, muitos dos falsos problemas em quese envolvem os filosofos tern origem em um uso pouco ri-goroso da linguagem; grande parte das formulacoes fi-losoficas nao tem sentido devido ao uso de uma lingua-gem insuficientemente formalizada; e ate mesmo os enun-ciados cientificos - inadvertidamente, mas com dema-siada frequencia - caem nas inumeras armadilhas da.lin-guagem cotidiana.

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1. 0 "giro linguistico"

Portanto, o problema que seria conveniente solucionarpara que pudessemos avangar na direcao de uma explica-cao cientifica do mundo e para acabar com a vacuidade dafilosofia herdada e, definitivamente, um probiema de lin-

. Para ter garantias de cientiilcidade e preciso re-formar a linguagem usando todos os recursos tecnicos danova logica e submetendo os enunciados a um exame rigo-roso para avaliar sua consistencia logica, transformando-,os em 'fooposigoes". ,

Como bem se sabe, os positivistas logicos do Circulode Viena postulam que so existem dois tipos de enuncia-dos validos.

— v

De um lado, teriamos os enunciados logico-matema-ticos (enunciados "analiticos"), que sao absolutamente cor-retos quando bem formulados mas que nao nos dizem nadasobre a reaiidade empirica. De outro, estariam os enuncia-dos empiricos (enunciados "sinteticos")., que versam so-bre a realidade mas que so podem ser aceitos como enun-ciados validos se foram veriflcados, escrupulosamente,por experiencias baseadas no "metodo cientiflco". Todosos outros enunciados, que nao sejam estritamente analiti- ,cos ou sinteticos, nao tem sentido. J

Em suma, os positivistas logicos acham que e precisodizer as coisas "bem" (sem ambiguidades nem omissoeslogicas) e que e preciso tambem dizer coisas que estejam"bem" (ou seja, de acordo com a realidade empirica sobrea qual estamos falando).

Apos o estimulo que Ihe foi dado por Frege, Russell,Wittgenstein e os neopositivistas, a importancia da lingua-gem nao parou de crescer do inicio do seculo XX ate a ves-pera da Segunda Guerra Mundial, ocupando o lugar da fi-losofia neo-hegeliana que dominava a Inglaterra e compe-

2 9RAL DE VIQCS

Oentral

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tindo seriamente com o neokantismo e a fenomenologiaenraizadds nos paises de lingua germanica.

Depois da Segunda Guerra Mundial, o giro linguisticose acentuara ainda mais, diversificando suas expressoes,adotando novas modalidades e ampliando sua area de in-fluencia ate atingir os Estados Unidos, onde viria a alcan-9ar um dominio hegemonico no ambito iilosofico.

5. A expansao da filosofia analitica e o auge dacentralidade da Linguagem

A trajetoria propriamente europeia do Circulo de Vie-na durou poucos anos. Muitos dos pensadores que se ti-nham agrupado ao redor de Moritz Schlick (1882-1936)eram judeus e como sua situagao ficou insustentavel dian-te do avanco da barbaric nazista quase todos decidiramemigrar, a maioria para os Estados Unidos.

Naquele pais, Rudolf Carnap (1891-1970), Carl Hem-pel (1905-1997), Hans Reichenbach (1891-1953), KurtGoedel (1906-1978) e outros continuaram suas atividadesem varias universidades, fazendo com que a semente neo-positivista desse frutos em solo americano. Sua influenciafoi tanta, que nos anos 1950 a parte essencial da obra filo-sofica nos Estados Unidos consistia na realizacao de exer-cicios logico-lingiiisticos rigorosos e minuciosos, pondo amargem toda e qualquer referenda a poderosa orienta?ao"pragmatica" que tinha dominado o cenario durante as pri-meiras decadas do seculo gracas as contribuifoes de Char-les Pierce (1839-1914), de William James (1842-1910) ede John Dewey (1859-1952).

Nao ha duvida de que, nesse periodo, a inclinagao dafilosofia para a analise logico-lingxiistica alcancou dimen-soes impressionantes. E preciso nao esquecer que, na In-glaterra, a partir de Cambridge, Bertrand Russell continua-

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1. 0 "giro linguistico"

va a animar um nucleo poderoso de filosofia analitica e quealguns daqueles que viriam a estar entre os filosofos nor-te-americanos de maior prestigio, como Willard Quine(1908), Nelson Goodman (1906), Hilari Putnam (1926) ouWilfrid Sellars (1912-1989), estavam se formando a luz daanalise logica linguistica diretamente sob o magisterio dosfundadores do Circulo de Viena.

No entanto, as dificuldades tecnicas e conceiruais comque se depararam os promotores do empirismo logico, ali-adas as criticas de Karl Popper (1902-1992), bem assimcomo aquelas que seus proprios discipulos, especialmen-te Quine, dirigiam contra os "dogmas do empirismo", ou adura autocritica de Wittgenstein, logo fariam com que aspremissas epistemologicas do Circulo de Viena fossemabandonadas. Com efeito, foi flcando claro que a distincao"analitico/sintetica" era muito mais fragil do que se supu-nha, que os enunciados empiricos nao eram propriamente"resultados de observagoes", que a superagao da metafisi-ca nao podia ser obtida com base na doutrina do Circulo deViena e que o grande sonho de uma linguagem "ideal", va-lida para todas as ciencias, era inviavel.

Finalmente, as premissas epistemologicas do empiris-mo logico desmoronaram e a unica coisa que ficou, dessagrande aventura intelectual, foi o estimulo dado a enfase;

sobre a importancia da linguagem.

6. A preocupa^ao com a linguagem cotidiana

Vimos que Wittgenstein, com seu Tratado logico-filo-sofico, acalentou o sonho de falar uma linguagem idealque permitisse evitar as falacias a que nos leva a lingua-gem cotidiana. Com isso, ele estimulou o desenvolvimen-to de um importante ramo da filosofia analitica que conti-nua extraordinariamente ativa nos dias atuais, embora janao comparta os postulados iniciais do Circulo de Viena.

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O proprio Wittgenstein se desinteressou muito rapi-damente da possibilidade de construir uma linguagemideal e orientou sua reflexao para a linguagem comum,tentando compreender as regras a que ela obedece e aosusos a que satisfaz.

O livfo que reune suas reflexoes, publicado em 1952sob o tittilo'Investigacdesfilosoficas, estimulou o esforcorealizado por um grupo importante de filosofos, ligados,muitos deles, a Universidade de Oxford, para conseguirelucidar as caracteristicas da linguagem em seus usos cotidi-anos, Dessa maneira, Wittgenstein contribuiu tambem parao desenvolvimento de um segundo ramo da filosofia anali-tica que se expandiu na Inglaterra durante os anos 1950, aju-dando a acentuar a importancia que envolve tanto a lingua-gem quanto seu estudo no conjunto das ciencias sociais.

Os "fllosofos de Oxford", entre os quais se destacam,por exemplo, Gilbert Ryle (1900-1976), John Austin (1911-1960), Peter Strawson (1919) ouPaul Grice (1913-1988),concordavamplenamente com Bertrand Russell e com seuscolegas logicistas em Cambridge com rela?ao a um repu-dio total a tradi9ao cartesiana, e tambem a necessidade depassar de uma "filosofia da consciencia" para uma "filo-sofia da linguagem". Mas os pontos de coincidencia naoiam muito mais alem desse aspecto e eram intensas suasdivergencias sobre quase todo o resto.

Os filosofos de Oxford, por exemplo, opunham-se ri-gorosamente nao s6 ao positivismo e ao cientificismo queimpregnavam a corrente logicista, como tambem a preten-sao do logicismo de construir uma linguagem formalmenteinatacavel. Queriam estudar a linguagem nao para demons-trar suas imperfeicoes logicas e corrigi-las e sim, simples-mente, para entender seus mecanismos. Mas opunham-se,sobretudo, a pretensao de reduzir a linguagem a uma merafuncao de descricao e de representacap do mundo.

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1. 0 "giro lingiiistico"

Para eles, a riqueza da linguagem cotidiana ultrapassa-va, em muito, a fungao descritiva, e se diversificava emuma enorme variedade de usos e de funcoes tao importan-tes quanto a propria funcao descritivo-representacional.Nao se tern acesso, portanto, ao funcionamento jd.o pensa-mento humano, analisando tao-somente a estrutura logicasobre a qual se apoiam as linguas naturals e sim e necessa-rio contemplar todos os usos da linguagem se queremos en-tender tanto nossa forma de pensar quanto nossa forma deagir e a maneira como nos relacionamos com as pessoas.

Frege, Russell, o Wittgenstein do Tratado..., Carnap eos filosofos analiticos norte-americanos romperam com a,tradicao cartesiana, fazendo-nos perceber que a lingua-gem nao e um simples veiculo para expressar nossas ideias,nem uma simples roupagem para vestir nosso pensamentoquando o manifestamos publicamente. Ela e a propria conr

digao de nosso pensamento e, para entender esse ultimo,temos que nos concentrar nas caracteristicas da linguagemem vez de contemplar o suposto mundo interior de nos-sas ideias. Nosso conhecimento do mundo nao se radicajnas ideias que dele fazemos; ele se abriga, sim, nos enun-ciados que a linguagem nos permite construir para repre-sentar o mundo.

Os fllosofos de Oxford acentuaram ainda mais o afas-tamento da tradisao cartesiana, ensinando-nos que a lin-guagem faz muito mais do que representar o mundo por-que e basicamente um instrumento para "fazer coisas!'. Alinguagem nao so "faz pensamento" como tambem "fazrealidades".

Assim, por exemplo, John Austin mostraria que a lin-guagem tambem tern propriedades "performativas". Comefeito, certos enunciados constituem literalmente "atos delinguagem" a medida que sua enunciagao e inseparavel damodificacao ou da cria9ao de um estado de coisas que nao

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poderia surgir independentemente dessa enuncia9ao. Forexemplo, o "sim, quero" pronunciado no ato nupcial pro-prio de certos ritos e um elemento necessario para que oIa9o matrimonial seja instituido.

Dessa maneira Austin abriu caminho para o desenvol-vimento da "pragmatica", contribuindo para que o conjun-to das ciencias sociais e humanas se conscientizasse deque a linguagem e urn instrumento ativo na produpao demuitos dos fenomenos que essas ciencias pretendem ex-plorar e que, portanto, seria impossivel deixar de leva-laem considera9ao.

7. 0 impacto do giro Lingulstico nas cienciashumanas e sociais

Assim como o giro lingiiistico nao teve uma origemdefmida, mas foi-se articulando progressivamente, e as-sim tambem como nao se revestiu de uma unica modalida-de, mas foi adotando varias configura?6es, seu impactotampouco ocorreu simultaneamente nas varias ciencias so-ciais e humanas nem as afetou com a mesma intensidadee nem adotou uma expressao uniforme.

Distinguiremos, aqui, tres linfias principals de influen-cia: a) O impacto da linguisticYesuritural; b) O impacto dacorrente analitico-logicista; c) O impacto da corrente ana-litica centrada na linguagem cotidiana.

a) O impacto da linguistica estrutural - O sucesso ob-tido pelo estudo estruturalista da lingua nao demorou aatrair as demais ciencias humanas e sociais. Em poucosanos a linguistica moderna tinha conseguido se constituirem uma disciplina totalmente autonoma, com um objetode estudo proprio, claramente delimitado, dotada de al-guns conceitos claros e rigorosos, e equipada com umametodologia eflcaz, baseada em alguns procedimentos for-mais que asseguravam altos niveis de objetividade.

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1. 0 "giro lingiiistico"

Em suma, a linguistica de inspira?ao saussuriana apre-sentava essa imagem de cientificidade com que tanto so-nhavam as demais ciencias sociais e humanas. Foi assim^que, gradualmente, foi tomando corpo a convicgao de quea linguistica moderna era o modelo que todas as outrasciencias sociais e humanas deveriam tentar copiar, fos-se atraves do estabelecimento de analogias entre seusproprios objetos de estudo e as estruturas lingiiisticas,fosse aplicando os metodos da linguistica para investigaresses objetos.

Talvez a antropologia tenha sido a ciencia em que esseefeito mimetico se manifestou com maior nitidez. Com efei-to, a preocupacao com o fenomeno da linguagem nao eranenhuma novidade em uma antropologia em que os traba-Ihos de Edward Sapir (1884-1939) ou de Benjamin Whorf(1897-1941) ja tinham chamado atenfao sobre o papel quea lingua desempenha na constitui9ao de nossa visao domundo. Mas foram os trabalhos de Claude Levi-StraussTinascido em 1908, especialmente aqueles sobre a estrururados mitos, que estimularam uma grande parte da antropolo7

gia a buscar diretamente sua inspira^ao nos conceitos e nosmetodos da propria linguistica estrutural"

O prestigio alcangado pelas obras de Levi-Strauss ser-viu como um ampliflcador para a influencia exercida pelalinguistica moderna, contribuindo para o desenvolvimen-to de uma corrente de pensamento rigorosa que, sob a de-nominacao de "estruturalismo", durante mais de uma de-cada (de meados dos anos 1950 ate finais dos anos 1960)Jpercorreria as diversas ciencias sociais e humanas, com]incidencia especial no mundo de lingua francesaT

A poderosa critica antiesrruturalista desenvolvida porNoam Chomsky e sua reformula9ao do programa da lin-guistica em termos de "linguistica generativa", longe deatenuar a fascina9ao que a linguistica exercia sobre as cien-

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cias socials e humanas, a fortaleceu ainda mais, proporcio-nando novas metaforas e novas analogias que alcan9ariamespecial relevancia em disciplinas como a psicolinguisti-ca, ou em orientacoes como a psicologia cognitiva.

Paralelamente ao efeito mimetico produzido pelas lin-giiisticas estruturais e generativas, a importancia concedi-da a linguagem se alimentaria tambem de alguns dos de-senvolvimentos da fenomenologia, especialmente da fe-nomenologia heideggeriana. Segundo Martin Heidegger,(1889-1976) somos vitimas de uma traicoeira ilusao ego-centrica quando acreditamos ser donos de nossos discur-sos e quando consideramos a linguagem como simples ins-trumento que se encontra a nossa disposipao para ser mani-pulado a nossa vontade. Na verdade, e a propria linguagemque manda em nos, causando, modelando, constrangendo eprovocahdo nosso discurso, a tal ponto que bem se poderiadizer que e a linguagem que fala atraves de nos.

r Considera9oes desse tipo, somadas a influencia dopensamento estruturalista e a decadencia da filosofia daconsciencia, levariam parte dos pensadores da segundametade do seculo XX a decretar "a mortedo suieito". re-duzindo-o a um simples "efeito"da linguagem". Assim,por exemplo, Michel Foucault (1926-1984), em seu famo-sissimo texto sobre "A ordem do discurso", apontaria paraas conseqiiencias do poder que emana da linguagem e que

\captura seus usuarios em suas redes.

b) O impacto da corrente analitico-logicista — Res-ponsavel pelo inicio do "giro linguistico" na filosofia, essacorrente tem o merito fundamental de ter contribuido paraorientar o pensamento contemporaneo na direfao da pro-blematica da linguagem. Porem, curiosamente, e possiveltambem atribuir-lhe outro merito, que e resultado de seusproprios fracassos mais do que das vitorias que obteve. Naverdade, a malograda inten9ao de demonstrar a validade

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1. 0 "giro linguistico"

dos postulados neopositivistas teve como importante con-sequencia a de permitir certa "liberaliza^ao" das cienciashumanas e sociais. E facil entender o motive para isso: en-quanto perdurava a crenca na unicidade e na validade ab-soluta do "metodo cientifico" teorizado pelas varias vari-antes do positivismo, seria facil deslegitimar qualquer ten-tativa de realizar investigates nas ciencias humanas e so-ciais que nao se ativessem escrupulosamente as regrasestabelecidas pelo credo positivista. A demonstrada inde-fensabilidade desse credo abriu a porta para um pluralis-mo metodologico e teorico que permitiu um enriquecimen-to extraordinario das ciencias sociais e humanas como umtodo, atenuando a pressao exercida pelos fundamentalis-mos cientiilcos.

c) O impacto da corrente analitica centrada na lin-guagem cotidiana — Os fllosofos de Oxford nao so contri-buiram para que se desse mais enfase a aten9ao que sedeve dar ao fenomeno linguistico para que seja possivelcompreender o ser humano e suas produces, como tam-bem provocaram uma reviravolta radical no proprio con-ceito da linguagem, proporcionando um novo status as pro-du9oes linguisticas. Essa reformula9ao conceitual da natu-reza e das fun9oes da linguagem produziu efeitos impor-tantes e duradouros no campo das varias ciencias sociais ehumanas, estimulando-as para que modificassem drastica-mente muitos de seus projetos e de sua maneira de abordaros varies objetos de seus estudos.

Citarernos aqui quatro grandes linhas de influencia:

Emprimeiro lugar, a profunda critica que os fllosofosde Oxford flzeram a concep9ao puramente "representa-cional" e "designativa" da linguagem deu lugar a uma re-considera9ao radical da propria natureza do conhecimen-to, tanto cientifico como ordinario, e tambem a uma refor-

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mulacao darelagao entre conhecimento e realidade, finali-zando por redefinir o proprio conceito de realidade.

" O conjunto dessas reformulagoes contribuiupara o de-senvolvimento de uma importante corrente de pensamen-to que questionou muitas das certezas consideradas indis-cutiveis desde a epoca de Descartes e muito especialmentea certeza de que existiam bases solidas e firmes, e umafundamentagao ultima, sobre as quais se assentaria o co-nhecimento valido. A erosao dessa certeza deixou claro afragilidade dos esforgos para encontrar uma fundamenta-

<^| gao indubitavel, realizados durante seculos, e redirecio-pou o trabalho filosofico para outros assuntos.

De certa forma, seria possivel dizer que a critica oxfor-diana a concepgao "representacionalista" da linguagem seestendeu, atraves da relagao estabelecida entre conheci-mento e linguagem, as concepgoes representacionalistasdo proprio conhecimento e aos criterios de "a verdade"que as acompanhavam, permitindo a revitalizagao do le-gado pragmatista e o auge de uma filosofia neopragrnatis-ta, estimulada, entre outros, por filosofos da categoria deRichard Rorty (1931-).

Como as ciencias sociais e humanas nao sao imper-meaveis as contribuigoes feitas dentro da filosofia e muitoespecialmente dentro da filosofia do conhecimento e daepistemologia, e facilmente compreensivel que em todasessas ciencias tenham desaparecido algumas correntes quetentavam desenvolver suas investigacoes e seus projetosem consonancia com as formulagoes nao representacio-nalistas do conhecimento cientifico.

Em segundo lugar, e paralelamente a critica ao repre-sentacionalismo, a insistencia da escola de Oxford emconsiderar a linguagem em termos de "atividade" (a lin-guagem faz coisas em vez de apenas "representa-las") sem

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1. 0 "giro linguistico"

duvida contribuiu para o desenvolvimento das correntes"construcionistas" que surgiram e se consolidaram em va-rias ciencias sociais e humanas.

De certa maneira, e possivel dizer que as contribuigoesde John Austin com relagao ao carater "performativo" dedeterminadas produgoes lingiiisticas se estenderam, nestecaso tambem, ao conjunto da linguagem, plasmando-se naformula pela qual "dizer e, tambem e sempre, fazer". Alinguagem se instiruia assim como "constirutiva" das coi-sas, mais do que meramente "descritiva" delas, deixandode ser palavra acerca do mundo para passar a ser acao so-bre o mundo, A linguagem nao so nos diz como e o mun-do, ela tambem o institui; e nao se limita a refletir as coi-sas do mundo, tambem atua sobre elas, participando desua constituicao.

O auge da concepgao "ativa" da linguagem teve reper-cussoes importantes em disciplinas como, por exemplo, apsicologia social, onde investigadores como Kennet Ger-gen ou John Shotter estao, arualmente, estimulando umapoderosa corrente socioconstrucionista. ou onde MichaelBillig, Ian Parker ou Johnathan Potter, entre outros, estaodesenvolvendo o prolifico campo da "analise do discur-so". A psicologia evolutiva ou a psicologia clinica nao fi-caram alheias a esse movimento construcionista e discur-sivo, e o mesmo ocorreu no caso da antropologia, da histo-ria ou da sociologia para citar apenas algumas das discipli-nas que fazem parte das ciencias sociais e humanas.

Poderiamos apresentar uma infinidade de exemplospara ilustrar o impacto que essa nova concepcao da lingua-gem teve nas formulagoes mais atuais das varias cienciassociais e humanas, mas nos limitaremos a assinalar a pro-funda renovagao por que passou, por exemplo, o estudo daidentidade ou do "self, pela mao de autores como CharlesTaylor (1931-), entre outros.

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Para Taylor, nossa identidade esta fundamentalmen-te determinada pela linguagem que utilizamos para refe-rir-nos a nos mesmos e para forjar nosso "autoconceito".Nao existe uma realidade subjacente, um "eu" profundo epessoal, suscetivel de ser descrito de varias maneiras, recor-rendo a vocabularies distintos e a distintas expressoes lin-guisticas: o que sim existe e o proprio vocabulario que utili-20 para me descrever a mim mesmo e as expressoes linguis-ticas as quais recorro para faze-lo sao constituintes e consti-tutivas de minha forma de ser; elas nao explicitam ou expli-cam minha maneira de ser, pelo contrario, a conformam.

Em outras palavras, o meu "eu" nao e independente decomo o vivencio quando o interpreto linguisticamente; aocontrario, ele e resultado dessa interpretasao. Outra formade "me dizer" a mim mesmo implica uma outra concepsaode mim mesmo, e isso e importante porque ocorre que mi-nha conceppao de mim mesmo e constitutiva daquilo quesou. Isso tern repercussoes importantes, tanto para a con-ducao de investigacoes sobre a identidade, como para de-finir essa realidade substantiva que e a identidade.

Em terceiro lugar, cabe ressaltar que, tanto quanto"acao sobre o mundo", a linguagem e tambem, e conse-quentemente, "a?ao sobre os demais", chegando, inclusi-ve, a constituir um dos principals instrumentos ao que re-corremos para incidir, com maior ou menor exito segun-do as circunstEincias, sobre nossos semelhantes. Levar emconsideracao essa propriedade da linguagem contribuiupara renovar o interesse que Aristoteles ja tinha demons-trado pela retorica, bem assim como para avivar a sensibi-lidade com relagao aos efeitos sociopoliticos e psicolo-gicos que emanam das varias praticas discursivas, dandouma atengao especial, por exemplo, as constni9oes lin-giiisticas "sexistas", "racistas" ou que estigmatizem de ummodo geral.

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1. 0 "giro Uriguistico"

O renovado interesse pela analise daqueles procedi-mentos retoricos em que se apoiain as diversas producoesdiscursivas, inclusive o discurso cientifico, permitiu de-monstrar, nao so as estrategias argumentativas propriasdos varios tipos de discurso e os efeitos poderosos que seocultam na estrutura discursiva, como tambem os artiflciosretoricos que sao usados para criar realidades diversas.

A sociologia do conhecimento cientifico, por exem-plo, renovou os estudos da ciencia, recorrendo, com Bru-no Latour entre outros, a analises desse tipp,'para expli-car o papel, nada desdenhavel, que desempefiham os pro-cedimentos retoricos na constitm^ao dos proprios "fa-tos" cientificos.

Finalmente, em quarto lugar, ocorre que, se a lingua-gem e constitutiva de realidades e e um instrumento paraatuarmos sobre o mundo, inclusive sobre nossos semelhan-tes, devemos esperar que ela incida tambem sobre a confor-ma^ao e o desenvolvimento das rela?6es sociais e das prati-cas sociais. Correntes amplas e interessantes da sociologiaforam particularmente sensiveis a esse fato, desde a etno-metodologia, com suas analises minuciosas das conversascotidianas, ate as sociologias qualitativa e interpretativa.

Em suma, no final do seculo XX e comego do seculoXXI, a diversidade e a riqueza das perspectivas nascidastanto do enfoque sobre a linguagem quanto, e sobretudo,da nova compreensao que temos dela, sao, no minimo, im-pressionantes: narratividade, dialogismo, hermeneutica, cons-tru^ao, analise conversacional, analise do discurso, anali-se retorica, etc.

Pouco a pouco, a linguagem foi se tornando um feno-meno que nenhuma das ciencias sociais e humanas podeevitar quando empreende o tratamento de seus objetos es-pecificos. Mas, alem disso, a linguagem aparece tambem

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como um elemento que todas as ciencias humanas e sociaistern que interrogar para estabelecer seu proprio status epis-temologico e para forjar urn entendimento de si mesmas.

8. Perspectives para o amanha

Ja iniciado o seculo XXI, devemos nos perguntar se o"giro linguistico" com o qual teve come90 o seculo passa-do nos reservara alguma surpresa e se as primeiras deca-das do novo seculo acentuarao ainda mais a centralida-de da linguagem ou se, ao contrario, o "giro linguistico"conhecera um periodo de refluxo, sendo substituido pelaemergencia de algum giro novo.

Como nao dispomos, obviamente, de nenhuma bola decristal ilusoria, as reflexoes a seguir devem ser considera-das apenas como conjecturas, timidas e inseguras, que po-derao ser desmentidas pouco tempo depois de terem sidoenunciadas. Mas, enfim, hoje sabemos que nada e seguronem definitive. Nem mesmo o passado esta escrito parasempre, porque, como muito bem observou Dante, para es-creve-lo com seguran9a tambem teriamos que conhecertodo o future. Portanto, podemos apenas arriscar-nos amanifestar algumas consideracoes, que por simples pru-dencia, reduziremos a duas e que indicam a possibilidadede um giro "pos-linguistico".

Em primeiro lugar, os desenvolvimentos extraordina-rios daquilo que alguns chamam de "a nova fisica" mos-tram que nossa linguagem e um instrumento muito gros-seiro para abarcar toda a realidade que somos capazes deconstruir. Com efeito, nos, os seres humanos, formamosnossos idiomas com base em uma determinada "relacaocom o mundo". Essa "relacao com o mundo" estabeleceum espa9o tridimensional habitado por uma variedade de"objetos" cujas propriedades se defmem com base em nos-sos mecanismos sensoriais e perceptivos ampliados por

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1. 0 "giro linguistico"

nossas capacidades de analise, abstra9ao e generaliza9ao.Nesse mundo, o tempo e o espaco constituem realidadesdivididas que correm por leitos separados. Nossos movif*mentos, gestos e agoes sobre essa realidade, que e como eporque nos somos como somos, foi forjando nossos con-ceitos e a estrutura logico-linguistica que os constitui. De-finitivamente, nossa linguagem nasce de uma relacao como mundo feita a medida de nosso corpo e de suas caracte,-risticas e a ela retoma. Por isso temos a ilusao de que ela.descreve o mundo "tal como e"?

Mas as atividades intelectivas do ser hurnano nao seconformaram em explorar o mundo estabelecido apenasatraves de seus mecanismos sensoriais/perceptivos e desuas arua9oes praticas, e se estenderam para fora do mun-do e alem da "escala humana" ate o macrocosmo e ate omicrocosmo. Ambitos esses onde a realidade ja nao podeser construida com base em uma linguagem "natural" sur-gida de coordenadas mesocosmicas, ou seja, a escala docorpo humano.

O resultado disso e que certas constni9oes intelectivas,tais como, por exemplo, a mecanica quantica e, mais pre-cisamente, "a teoria dos campos quanticos" desenham ummundo totahnente obscuro para nossa linguagem e, por-tanto, para nossa arquitetura conceitual.

Trata-se de um mundo onde, por exemplo, "os obje-tos" se convertem em "propriedades dos objetos" (um cor-pusculo pode se transforrnar em puro movimento) e onde aspropriedades dos objetos podem se transforrnar em outrosobjetos (a energia pode se converter em um corpusculo).

No mundo quantico encontratnos objetos que nao es-tao localizados com precisao em nenhum segmento espa-9O-temporal definido, mas que tampouco podem ser con-ceirualizados como ondas porque nao ha nenhum meio emque se propaguem. Isso significa que e nosso proprio con-

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Tomds Ibdnez Gratia 1. 0 "giro lingiiistico"

ceito de objeto que deixa de ter sentido para designar ou^ pensar as entidades que projetamos no universo quantico.

E, apesar disso, essas entidades existem efetivamente, namedida em que podemos operar com elas e sobre elas, eem que elas produzem efeitos praticos que nossas tecnolo-gias utilizam cada vez mais.

Encontramo-nos, assim, diante de entidades que naose deixam "dizer" atraves de nossa linguagem e quando asestudamos temos que transcender nossas categorias lin-giiisticas para poder produzir resultados cientificamentevaliosos e com utilidade pratica. E mais, essas entidadesse constroem como produto de expressoes matematicascomplexas e sao, por assim dizer, a conclusao sobre a qualdesemboca urn puro formalismo matematico.

A realidade subatomica parece ser outra realidade quenossa linguagem nao e capaz de descrever ou de construir.

O giro lingiiistico mostrou claramente o papel que alinguagem desempenha na formagao daquilo que chama-mos de "a realidade"; mas, se construimos certas realida-des (por exemplo, a realidade quantica) usando procedi-mentos que escapam do ambito que a linguagem e capazde abranger, parece que deveriamos abandonar a famosaexpressao de Wittgenstein segundo a qual "os limites daminha linguagem sao os limites de meu mundo".

Esse fato pode possibilitar a emergencia de urn neopi-tagorismo (a crenga na realidade fatica dos numeros, dasexpressoes matematicas e na qual a realidade e, em ultimainstancia, numerologica), permitindo um "giro platonico"que volte a situar o mundo das "ideias" em um lugar privi-legiado, arruinando o esforgo para acabar com esse privile-gio que o "giro linguistico" representou.

Em segundo lugar, parece que a insistencia com a qualSchopenhauer (1788-1860) e, depois dele, Nietzsche (1844-

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1900), deram enfase a importancia do corpo, de nosso cor-po, para o desenvolvimento de nosso pensamento, esta re-cuperando sua importancia. "Minnas ideias melhores", di-zia Nietzsche, "surgem quando caminho". O "giro linguis-tico" contribuiu para o sucesso da afirmagao segundo aqual nosso "ser no mundo" descansa sobre uma dimensaohermeneutica inevitavel. A interpretacao e formativa da7

quilo que somos e nao podemos chegar a ser independen-temente de nossa atividade interpretativa. Essa afirmagao.parece razoavel, mas o giro linguistico" privilegiou o pa-pel que a linguagem desempenha na dinamica da interpre-tacao, enfatizando a centralidade das praticas discursivasno processo hermeneutico.

No entanto, tambem construimos um sentido^iefaveL,tambem nosso corpo opera como gerador de significadosque nao se deixam prender no interior do codigo linguisti-co ou, no minimo, cabe considerar que o que nosso corpovivencia orienta algumas de nossas interpretagoes. Nao sotemos que expandir o campo da hermeneutica para o espa-90 das praticas "nao discursivas" como tambem contem-plar a corporificacao das praticas discursivas.

O redescobrimento da^qrporeidade pelo pensamentodo fim do seculo pode contribuir para possibilitar um novo"naturalismo" que diminua a importancia que o seculo XXconcedeu a linguagem.'

-Essas consideracoes/sobre 'um possivel esgotamento

do "giro hngiistico'^Sevem ser consideradas como umasimples(digressao)que, paradoxalmente, pretende ser iielao esfor?o que o "giro linguistico" acarretou. Aquelesque captaram um dos argumentos basicos dessa parte dar

disciplina sabem que, para que o "giro linguistico" pu-desse surgir, foi necessario um enorme esforgo de ima-ginagao que rompesse com as evidencias herdadas e com,as amarras do pensamento dominante, Para criar o "giro

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linguistico" foi precise pensar contra a corrente, e seusprotagonistas tiveram que "esquecer" uma parte subs-tantial das ideias que tinham nutrido e configurado seuproprio pensamento.

Ja que somos "filhos do seculo XX", temos que tentarpensar contra a corrente do giro linguistico que impregnouo pensamento de nosso seculo. Essa e a condicao para naosermos identicos aqueles que defendiam com toda a naru-ralidade "o mundo das ideias" no mesmo momento emque se comegava a gerar esse "giro lingiiistico" que esgo-taria esse mesmo mundo das ideias.

Sintese

Este capitulo nos ensina como o "giro linguistico" rom-pe, em seus primordios, com uma tradigao secular centra-da no estudo do "mundo das ideias", mundo interior e pri-vado, e orienta a obra filosoficapara o estudo dos enuncia-dosjinguisticos. Isso significa uma profunda modificagaoem nossa concepcao da linguagem, pois essa deixa de serconsiderada como um simples meio para traduzir ou ex-pressar, de melhor ou pior forma, nossas ideias, para ser,considerada um instrumento para exercitar nosso pensa-mento e constituir nossas ideias.

A linguagem e a propria condigao de nosso pensamen-,to, ao mesmo tempo em que e um meio para representar arealidade. O "giro linguistico", portanto, substitui are-lagao "ideias/mundo" pela relagao "linguagem/mundo" e.afirma que para entender tanto a estrutura de nosso pensa-mento quanto o conhecimento que temos do mundo e pre-ferivel olhar para a estrutura logica de nossos discursos emvez de esquadrinhar as interioridades de nossa mente.

Mas este capitulo nos ensina tambem que o "giro lin-guistico" possibilitou, no transcurso de seu proprio"1

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1. 0 "giro linguistico"

volvimento, uma segunda modificagao de nossa conceptgao da linguagem. Essa deixou de ser vista como um meio^para representar a realidade e passou a ser considerada uminstrumento "para fazer coisas". Junto com suas funcoes"descritivo/representacionais" a linguagem iria adquirir,portanto, um carater "produtivo" e se apresentava como,um elemento "formativo de realidades".

O capitulo tenta ilustrar quais foram as varias influen-cias que essas novas concepgoes sobre a natureza da lin-guagem tiveram sobre as concepgoes do conhecimento eda realidade, como tambem, em um piano niais especifico,sobre as orientagoes e os objetos de estudo das varias cien-cias sociais e humanas.

Glossario

Atos de linguagem: expressao cunhada por J.L. Austinpara se referir as expressoes linguisticas que devem serenunciadas explicitamente para que uma realidade de-terminada possa se configurar. Por exemplo, a expres-sao "sim, quero" deve ser pronunciada em determina-dos rituais para que o matrimonio seja estabelecido.

Performatividade: propriedade que determinados enuncia-dos lingiiisticos tern de afetar a construgao de realida-des. Em determinadas concepgoes da linguagem, essapropriedade, inicialmente limitada a um tipo de expres-soes linguisticas, passa a ser considerada generalizavela linguagem como um ttJdo.

Pragmatica: parte da linguistica que se dedica ao estudodos usos da linguagem comum e leva em consideragaotanto os contextos como os efeitos, nao diretamente lin-giiisticos, que envolvem praticas discursivas concretasou que delas resultem.

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Tomds Ibanez Gratia 1. 0 "giro lingiiistico"

Proposicdo: expressao lingiiistica convenientemente for-malizada de acordo com os procedimentos da logicamoderaa para que se possa estabelecer seu "valor deverdade".

Representacionismo: doutrina filosofica que postula umarelagao de correspondencia entre o conhecimento e arealidade que vai mais alem da simples utilidade praticado conhecimento para operar sobre a realidade. Nessadoutrina, sup5e-se que o conhecimento valido represen-ta fielmente a realidade e que e possivel demonstrar acorrespondencia entre conhecimento e realidade.

Bibliografia

AUSTIN, J.L. (1962). Como hacer cosas con palabras.Barcelona: Paidos, 1998.

BRUNER, J. (1990). Actos designificado. Madri: Alianza[1991].

D'ESPAGNAT, B. (1981). En busca de lo real: la visionde unfisico. Madri: Alianza Universidad [1983].

DOMENECH, M. & TIRADO, FJ. (1998). Sociologia si-metrica—Ensayos sobre ciencia, tecnologia e sociedad.Barcelona: Gedisa.

FOUCAULT, M. (1970). El orden del discurso. Barcelona:Tusquets [1973].

ORTOLIS, S. & PHARABAD, J.P. (1984). El cantico dela cudntica. Barcelona: Gedisa [1997].

RORTY, R. (1979). Lafilosofiay el espejo de la naturale-za. Madri: Catedra [1983].

RORTY, R. (1967). El giro lingiiistico. Barcelona: Pai-dos/ICEUAB[1990].

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Leituras complemeritares

BRUNER, J. (1991). Actos designificado. Madri: Alianza.

Escrito por um dos mais eminentes psicologos contempo-raneos, esse livro e uma esplendida ilustrasao do girolinguistico no ambito da psicologia.

DOMENECH, M. & TIRADO, FJ. (1998). Sociologia si-metrica-Ensayos sobre ciencia, tecnologia y sociedad.Barcelona: Gedisa.

Trata-se de uma recopilafao de textos germinais alem deseis desdobramentos da sociologia do conhecimento cien-tifico.

FOUCAULT, M. (1970). El orden del discurso. Barcelo-na: Tusquets.

Esse texto de Michel Foucault foi o discurso inaugural quefez quando foi nomeado professor no College de Fran-ce. Nele pode-se apreciar a importancia das relacoes depoder para a constru9ao de nossas praticas discursivas.

ORTOLIS, S. & PHARABAD, J.P. (1997). El cantico dela cudntica. Barcelona: Gedisa.

Uma obra de divulgapao, muito util para conhecer os de-senvolvimentos e implicacoes da fisica quantica.

RORTY, R. (1983). Lafilosofiay el espejo de la naturale-za. Madri: Catedra.

Esse livro, celebrado como um grande acontecimento nomomento de sua publicacao, constitui uma das analisesmais incisivas sobre os efeitos que o cartesianismo teveem nossa concepgao do ser humano e do conhecimento.

Como e um livro bastante denso, nao estamos sugerindoque seja lido em sua integridade, mas e recomendavelque o proprio leitor selecione alguns capitulos e reflitasobre seu conteudo.

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O papel que alinguagem adquifiuiriasdcieiicias"sociaisnos ultimos anos foi tao relevante e substantive que

nao seria um exagero dizer que foi um papel de protago-nista. O obietivo deste capitulo e examinar os fundamen-tos que sustentam e nutrem esse papel. No decorrer do ca-pitulo e nossa intencao disponibilizar os elementos preci-sos que facilitam a identificasao das principals perspec-tivas que cimentaram essa relevancia. Da mesma forma,fornecermos as chaves que pennitam reconhecer as carac-teristicas principals dessas perspectivas e examinar as con-sequencias que elas tiveram para as ciencias sociais.

O giro linguistico, a "Teoria dos atos da fala", aLin-guistica pragmatica, a Etnometodologia e alguns aspectosda obra de Michel Foucault, sao os cinco eixos representa-tives ao redor dos quais organizamos a exposi9ao e suafundamenta9ao.

• O giro linguistico porque fez surgir a possibilidadede a agao cientifica ser considerada como uma praticasocial equivalente a qualquer outro tipo de a9§o so-

* Universidade Autonoma de Barcelona.

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2. A Unguagem nas ciencias sociais...

cial; e porque deu a ciencia social um ernbasamentoepistemologico do tipo nao-representacionalista.• A " Teoria dos atos da fala" porque ve na "fala" umaacao equivalente a qualquer outra. Ou seja, ela e comouma "manobra" capaz de "fazer coisas".• A Linguistica pragmatica, tambem chamada de Prag-matica, porque fornece o arsenal teorico e metodo!6-gico para a analise da linguagem em seu uso.• A Etnometodologia, porque ve o ser humano comoum "sociologo na pratica" . Ou seja, como uma pessoaque e capaz nao so de atuar em seu contexto social,como tambem de descrever, falar e construir a realida-de. A Etnometodologia sintetiza magistralmente osprincipios basicos que permitem inserir a linguagemcomo um elemento-chave na analise e na compreen-sao da vida e da estrutura social e, alem disso, os leva apratica, teorica e metodologicamente.• Certos aspectos da obra de Michel Foucault, porquepermitem compreender a conexao entre as praticas dis-cursivas e a constnujao e manuten9ao da estrutura so-cial, ao mesmo tempo em que se envolve, de uma ma-neira critica, em uma investigacao social cuja marcacaracteristica e o questionamento constante.

A seleQao desses cinco eixos nao e arbitraria, pois,como iremos detalhar, eles apresentam um fio condutorque da coerencia as inumeras praticas que, sob o titulo de"analise do discurso" ou "perspectiva discursiva", ganhamcada vez mais forpa nas ciencias sociais. No entanto, essenao e o unico fio condutor possivel. Certamente, outrasperspectivas discursivas, a que apenas aludiremos, forma-riam um fio condutor diferente. Entretanto, podemos afir-mar que poucas selecoes teriam a mesma relevancia para oprocesso que essas que aqui assinalamos.

O argumento principal do capitulo e que, inicialmente,o papel que a linguagem teve nas ciencias sociais foi ape-

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nas auxiliar. Em urn primeiro momento, ela tinha umafun^ao de apoio basicamente metodologico'(no sentido deoferecer ferramentas e instrumentos de analise para a in-vestigacao de processes socials), bem assim como de com-plemento a atividade investigadora. No entanto, paulatina-mente, o papel dado a linguagem chegou a configurar umaperspectiva especifica, presente em uma grange variedadede correntes sociologicas e psicossociais, onde a "linguis-ticidade" e o "linguistico" ocupam um lugar central.

Atraves dos elementos e recursos que forein sendo fa-cilitados durante o percurso que delineamos no capitulo,poderemos nos inserir no campo da investigacao socialbaseado na linguagem e explorar.as vertentes oferecidasno texto atraves das referencias que Ihes dao apoio. Damesma forma, o itinerario que propomos permitira identi-ficar a trajetoria mencionada, ou seja, a que vai do uso dalinguagem como ferramenta metodologica ate a constitui-930 discursiva de correntes e perspectivas..r

Consideratoes preliminares

Nos ultimos anos, nas ciencias sociais e humanas vemse produzindo um movimento muito intense, poderiamosdizer que ate mesmo radical, que vamos tentar reproduzirneste capitulo. Uma das caracteristicas principals dessemovimento tern que ver com as mudan?as que podemosobservar no campo da metodologia e da teoria.

Certas opcoes metodologicas e a enfase na linguagemque foram conectando muitos metodos pouco a poucoacabaram por se converter em novas perspectivas teo-ricas em si mesrnas, formando uma proposicao teoricaradicalmente diferente daquela que caracterizou os perio-dos precedentes.

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2. A linguagem. nas ciencias sociais...

Um dos exemplos mais evidentes desse processo e,sem duvida, o da Analise de Discurso (daqui em diante.AD). Esse e um metodo que surgiu na propria estrutura dogiro linguistico, e foi profusamente utilizado. Alem dis-so, a AD e um rotulo comumente usado para definir umagrande quantldade de metodos empiricos que sao utiliza-veis e utilizados para o estudo de uma enorme variedadede temas. A titulo de exemplo, podemos dizer que essestemas cobrem desde o estudo das interac. oes cotidianas facea face ate processos como a memoria, o pensamento e asemocoes e inclusive problemas sociais como a exclusao.social, a diferenciacao de genero e o racismo.

Como metodo, a AD tem tanto semelhanpas quanto di-feren9as com outros enfoques metodologicos que se en-quadram na chamada "metodologia qualitativa" (Denzin& Lincoln, 1994). Como exemplo, podemos citar a analisede conteudo (Bardin, 1977), a analise narrativa (Bruner,1990; Cabruja et al., 2000) e outras formas de analise ba-seadas na lingiiistica (Casmiglia & Tuson, 1999). Porem,o que vamos ressaltar neste capitulo e algo que ocorreue ainda ocorre nas varias disciplinas sociais e humanascomo a Sociologia e a Psicologia. A saber, que alem de seruma alternativa metodologica, a reflexao teorica que deuorigem a AD e que a acompanha em seu desenvolvimentoesta provocando um efeito sumamente interessante. Por-tanto, nos dias de hpje, o que devemos destacar com rela-

a AD nao e sua importancia como metodo e sim o fatoe^a s uma perspectiva a partir da qual podemos ana-

lisar os processos sociais.

Como veremos no capitulo intitulado "A analise dodiscurso nas ciencias sociais", sob o nome de AD existemrotulos, nomes e perspectivas multiplas e muito diferen-tes, com principios, caracteristicas e procedimentos tam-bem diferentes. Tal e sua variedade que nao podemos men-

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ciona-las todas e, portanto, selecionamos algumas daque-las que sao consideradas mais representativas. Vamos exa-minar a AD com o unico objetivo de que, ao final, possa-mos dispor de um amplo panorama desse cenario peculiarque seja suficientemente atraente para estimular os leito-res a se aprofundarem no assunto.

Com esse fim, comecaremos pelo itinerario inicial daAD. Obviamente cada perspectiva na AD apresenta certosfundamentos e descreve certas raizes que nem sempre co--

/-incidem com as descritas em outras perspectivas. Apre-sentaremos quatro contextos de desenvolvimento histori-co, que, em nossa opiniao, comega com a) "Giro lingiiis-

J tico", continua com a b) Teoria dos atos da fala", prosse-| gue com a c) "Pragmatica lingiiistica" e com a d) "Etno-/ metodologia" e podemos conclui-la com e) A obra de Mi-(chel Foucault.

Aqueles que defendem uma ideia de discurso e de ADque seja diferente daquela que apresentaremos aqui diferi-rao, certamente, desse itinerario historico e conceitual eprovavelmente darao enfase a outras tradigoes aqui omiti-das e poderao ate mesmo negar algumas das relacoes quedefendemos. Apesar disso, para a maioria dos estudiosos eestudiosas sera facilmente admissivel que os desenvolvi-mentos aqui expostos exerceram, direta ou indiretamente,uma grande influencia na constiruigao e no desenvolvi-mento da AD.===»1. 0 giro Linguistico

Como o giro linguistico foi apresentado detalhada-mente no primeiro capitulo, aqui nao insistiremos muitoem seus pormenores. Enfatizaremos apenas suas caracte-risticas mais relevantes como uma moldura para a apre-sentagao do papel da linguagem nas ciencias sociais e hu-

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2. A linguagem nas ciencias sociais...

J,

rnanas e, mais concretamente, nas ferramentas anallticascomo a AD.

Um dos aspectos relevantes que merecem ser destaca^dos esta relacionado com a natureza do giro linguistico.Como sempre ocorre quando uma formulagao bem-sucedi-da acaba fazendo parte da bagagem comum em um amploespaco da ciencia,"existe uma certa simplificacao quandonos referimos a ele. Com efeito, costuma-se confundir o girolinguistico com um mero interesse pela linguagem.

No entanto, como vimos no primeiro capitulo, olinguistico e particularmente interessante nao porque prcT-ponha que a linguagem e importante, nem porque sugiTaque a maior parte das acoes humanas sao iinguisticas ou,como airia Wittgenstein, porque tudo e linguagem. Naojpor tudo isso que ele se torna importante. Sua releygnciareside no fato'de que contrapoeTliriguagem cQtidiana(ouseja, o que nos dizemos quando falamos) a linguagem ci-entifica especializada e formal, suscitando a pergunta so-bre se e ou nao necessario elaborar uma linguagem pro-pria, capaz de explicar como e o mund'oT

Esse empreendimento foi, precisamente, a antitese de\outras perspectivas que nas ciencias sociais e humanas in-corporaram o esrudo da linguagem, como, por exemplo, opositivismo. Q que se questiona e se a iinguagem- sim ounao - explica, expoe1 ou reproduz arealidade. Assim, por-tanto, nao e so devido ao interesse pela linguagem, ja queo giro linguistico nunca teve tal repercussao simplesmenteporque as ciencias sociais vieram a se interessar pela lin-guagem. O giro linguistico foi um giro no sentido de tersido uma mudanga radical gragas ao seu questionamentose a linguagem cotidiana e suficiente para explicar o mun-do e a vida real. J

O famoso trabalho de Rorty (1967) que da o nome aesse movimento debate precisamente aquilo que, em um

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determinado momento dos anos I960, estava em plenoapogeu. Ou seja, ele questiona a etnpresa de construir umalinguagem formal que explique o mundo, uma linguagemtao distante quanto possivel da linguagem cotidiana. AposRorty e o giro linguistico, o que temos e uma exaltacao, see que seja possivel dize-lo assim, uma dignificacao da lin-guagem cotidiana que se converte na unica linguagem pos-sivel, com um respective rebaixamento da linguagem formalpara ocupar o espa9o da cotidiana.

As conseqiiencias disso para o itinerario de construgaode um enfoque critico nas ciencias sociais e humanas fo-ram extraordinarias. Alem das que ja foram mencionadasno capitulo "O giro linguistico", sua importancia e crucialporque abre caminho para duas dimensoes fundamentais:

1) para que se converta o trabalho da ciencia em umapratica social a mais, igual a qualquer outra; porque aspessoas que se dedicam a fazer ciencia utilizam a lin-guagem da mesma maneira que as nao cientistas;

2) para a fundamentagao epistemologica mais impor-tante da ciencia social critica que e o trabalho anti-re-presentacionalista de Rorty.

Com efeito, a origem basica do anti-representaciona-lismo de Rorty e essa ideia do giro linguistico. Seu interes-se reside nao tanto no fato de que, a partir daquele momen-to, as ciencias humanas e sociais comecaram a se interes-sar pela linguagem, mas sim no fato de ter^^^^i^^fc)aoperacao da construcao das; linguagcns formais comojsen-do a melhor °ianeirademati'funcao alingua^emcotidiana.

O impacto dessa ideia tao simples no ambito das cien-cias sociais e humanas foi fundamental porque fez desapa-recer, deslegitimou de maneira total, toda a pretensao dachamada linguagem cientifica, e tirou dela qualquer tipo

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2. A linguagem nas ciencias sociais...

de valide'z, iguaiando as praticas das pessoas que se dedi-jcam a fazer ciencia as praticas de qualquer pessoa comumque anda peia rua. A suposta superioridade, adequabilida-[de, reprodutibilidade, capacidade heuristica, etc. das lin-guagens formais desaparecem e fazem com que seja possi-vel pensar que nao precisamos ir mais alem da maneiracomo as pessoas comuns interpretam, fazem e constroemarealidade1.

Pensando nas ciencias humanas e sociais, de maneirageral, uma outra porta se abriu a partir do "giro linguisti-co". Essa porta e a condigao mais digna que se atribui aagao social. Reconhece-se que existem teorias sobre a acao'social em campos disciplinares tradicionais, sobretudo os.sociologicos. E inegavel, entretanto, que em todas elas ha umahierarquia dessas acoes, em que nem todas as acoes dos seres, >humanos ocupam a mesma posicao. O "giro linguistico^trouxe a possibilidade de pensar toda acao humana no mesmopiano. Como isso e possivel? Simplesmente considerando que inao existe operagao de fala que nao sej a tambem uma agao, }compreendida em seu sentido estritq

2. A teoria dos atos da fala

No itinerario basico que estamos percorrendo, outroelemento-chave foi a "Teoria dos atos da fala".

1 Atualmente ainda esta muito enraizada a ideia de que a linguagemcientifica dispoe de recursos que a fazem mais adequada na tentativa:de fazer o mundo que nos rodeia mais inteligivel. Essa ideia esta taopresente entre nos que com muita frequencia chegamos a cair em umaretorica^especialjzada, capaz de criar uma especie de giria que sops,cientistas entendem. O que e interessante na proposta do giro linguisticoe a consideracao de que essa linguagem e precisamente uma giria,igual aquela que um grupo social cria em seu bairro, ao falar de suas.vJ4as e de seus assuntos.

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Quando John L. Austin (1962) propos como objeto deanalise a significacao, baseava-se nas proposigoes do giroJingiiistico. Sua proposta e que, no processo de'significa-gao, o fundamental nao e nem a conexao do significante,com ° significado, nem a maneira pela qual se elabora osignificado. A questao nao e nem como se reproduz o si-nal, nem como se codifica, nem como se decodiilca pro-blemas que estao presentes em todos os debates tipicos dalinguistica tradicional. Segundo Austin, o importante ecomo se fala e, como vimos no capitulo "O giro Hnguisti-co", falar e uma acao equivalente a qualquer outra e, por-tanto, regulada da mesma maneira como estao reguladastodas as agoes dos individuos.

A grande contribuigao de Austin, que abre uma possi-bilidade metodologica para a AD, foi afirmar que quandot'alamos nao estamos expressando um significado e simque estamos fazendo alguma coisa.

Essa sutileza, que forma parte do contexto mais ou me-nos geral ate mesmo da linguistica contemporanea, e a querepresentou, na sua epoca, um giro realmente revoluciona-rio porque, parafraseando Austin, "quando eu digo certascoisas, a agao esta exatamente naquilo que digo".

Essa contribuigao de Austin abre o caminho para a ADe, portanto, sem a "Teoria dos atos da fala", continuaria-mos ainda hoje presos a essa visao representacional da lin-guagem. Nesse sentido, podemos afirmar que o giro lin-giiistico por um lado e a Teoria dog atos da fala, por outro,nos deram a possibilidade de pensar que a linguagem naoe uma janela para saber o que ocorre na cabeca, e sim umaagao em seu proprio direito2.

2 Ja vimos alguns exemplos no capitulo "O giro linguistico". Masconsiderando ainda um outro: "Eu te batizo". Na tradicao crista o batis-mo nao e unicamente derramar agua na cabe?a de alguem, da mesmaforma que tampouco e suficiente que seja feito por um sacerdote. O ba-tisrno acontece quando alguem pronuncia essa frase: "eu te batizo".

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2. A linguagem nas ciencias socials.,.

Austin estabeleceu a diferenga entre expressoes cons-tatativas e expressoes realizativas. As primeiras sao aque-las que descrevem o mundo, ou as coisas que fazem partedo mundo e que, conseqiientemente, podem ser avaliadasem termos de verdade ou falsidade.

As expressoes realizativas, tambem denominadas ora-goes realizativas ou simplesmente realizativos, nas queAustin (1962) focalizou especialmente seus estudos, saoexpressoes que, emitidas nas circunstancias apropriadas,nao se limitam a ser uma mera descrigao ou enunciagaodaquilo que se faz e, sim, rigorosa e diretamente, o fazem,executam ou realizam. Em outras palavras, um realizativoe uma expressao linguistica cuja caracteristica definitorianao e a declaragao nua ou elementar, nem tampouco a sim-ples emissao de uma informagao, verdadeira ou falsa, so-bre alguma coisa. Um realizativo faz alguma coisa no pro-prio falar, em sua expressao se consuma urna agao, quenao e o mero dizer algo.

Como indicamos, as expressoes realizativas nao saonem verdadeiras nem falsas, mas, como diz Austin, po-dem ser mais ou menos bem-sucedidas. Com efeito, comoagoes, essas expressoes nao representam nada em particu-lar, e, portanto, nao podemos determinar se elas sao ounaoapropriadas para uma suposta realidade que estariam re-presentando. No entanto, ao estarem necessariamente de-terminadas por certas condigoes de contexto, o que simpodemos avaliar e seu sucesso ou fracasso na realizagaodaquilo que pretende:

Nao e 0 ritual, nao e a pessoa que o executa, nao sao as condigoes quelegitimam o ato; e a propria expressao do verbo batizar. Insistindodevido a importancia das ideias ja desenvolvidas no capitulo anterior,o importante e que a acao de falar e, ela mesma, uma acao que nao re-presenta nada, nao se pode por no lugar de nada, nao informa nada,Ela e, no sentido estrito, o proprio ato.

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Lupidnio Iniguez 2. A linguagem nas ciencias socials...

Alem de pronunciar as palavras correspondentes ao rea-lizativo, e mister, como regra geral, que muitas outrascoisas andem bem e saiam bem para poder dizer que a3930 foi executada com exito. Esperamos descobrir quaissao essas coisas examinando e classificando tipos de ca-sos nos que algo sai mal e, como resultado disso, o ato -assumir um cargo, apostar, legar, batizar, ou seja o que for— e um fracasso ou, pelo menos, e um fracasso ate certoponto. Podemos dizer, entao, que a expressao lingiiisticanao e, na verdade, falsa e sim, em geral, malsucedida. Foresse motive, chamaremos a doutrina das coisas que po-dem andar mal e sair-se mal, fazendo uso de tais expres-soes, de a doutrina dos Infortunios (Austin, 1962: 55).

As expressoes realizativas podem ser de varies tipos.Austin distinguiu os atos locucionarios (locutionary acts)os atos ilocucionarios (illocutionary acts) e os atos perlo-cucionarios (perlocutionary acts).

Um ato locucionario ou locutivo e aquele que se reali-za ao dizer meramente alguma coisa; ao emitir o som daspalavras. Trata-se de um ato (que incorpora os atos foneti-cos, "faticos" e "reticos") que possui significado.

O ato ilocucionario ou ilocutivo e aquele que se realizaao dizer alguma coisa; e aquele que possui uma certa for-9a ao fazer alguma manifestapao. Dessa forma, realizarum ato ilocucionario e diferente da simples realiza9ao doato de expressar-se: e executar um ato ao dizer algo. Forisso, para determinar que tipo de ato ilocucionario esta-mos realizando e necessario determinar de que maneiraestamos utilizando a locupao. Nesse sentido, Austin (1962)denomina o "sistema" dos tipos diferentes de fun9ao da lin-guagem em tomo aos atos ilocucionarios de "doutrina dasfor9as ilocucionarias".

For ultimo, o ato perlocucionario ou perlocutivo e oque se realiza ao dizer algo. Ou, o que e a mesma coisa, asconseqiiencias ou efeitos que sao produzidos por aquiloque foi dito; o resultado de certos efeitos pelo fato de ex-

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pressar-se. Com efeito, normalmente uma expressao daorigern a certas consequencias ou efeitos sobre os pensa-mentos, e sobre os sentimentos ou a9oes daqueles ou da-quelas a quern se dirige a Iocu9ao, ou, e claro, sobre o pro-prio emissor da expressao. Embora nao seja imprescindi-vel, e possivel que, ao dizer alguma coisa, estejamos agin-do com a inten9ao ou o desejo de produzir tais efeitos. Eprecisamente quando sao produzidas certas consequen-cias ou efeitos que e possivel afirmar que quern emite aexpressao realizou um ato perlocucionario ou uma perlo-cugao, que pode ser descrito fazendo-se uma referencia in-direta (ou nenhuma referencia) a realiza9ao do ato locuci-onario ou ilocucionario.

Em suma, e usando, uma vez mais, as palavras de Aus-tin, entre as expressoes realizativas ou realizativos, e pre-cise estabelecer varias distin9oes que correspondem a exe-cu9ao dos varies atos:

Em primeiro lugar, distinguimos um grupo de coisasque fazemos ao dizer alguma coisa. As agrupamos ex-pressando que realizamos um ato locucionario, ato que,aproximadamente, equivale a expressar certa oracao comum certo sentido ou referencia, o que, por sua vez, e apro-ximadamente equivalente ao "significado" no sentidotradicional. Em segundo lugar, dizemos que tambem re-alizamos atos ilocucionarios, tais como informar, orde-nar, advertir, comprometer-nos, etc., isso e, atos que ternuma certa forca (convencional). Em terceiro lugar, tam-bem realizamos atos perlocucionarios; aqueles que pro-duzimos ou conseguimos porque dizemos algo, taiscomo convencer, persuadir, dissuadir, e, inclusive, sur-preender ou confundir. Aqui temos tres sentidos ou di-mensoes diferentes, senao mais, da expressao "uso deuma oracao" ou "uso da linguagem" (e, por certo, tam-bem existem outras) (Austin, 1962:153).

Assim, portanto, a fala como 3930 coloca em pratica aideia, derivada do giro lingiiistico, segundo a qual a lin-

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guagem nao e representativa da realidade e, sim, produz essarealidade. Austin deslinda os processes atraves dos quaisessa constiruipao e realizada e, portanto, gera as condigoesque possibilitam inserir a linguagem como processo socialde pleno direito e para a propria AD.

3. A Linguistica pragmatica

Linguistica pragmatica ou Pragmatica (Levinson, 1983)sao os nomes que habitualmente recebe o terceiro dosfundamentos da AD. Nos deterernos um pouco mais naPragmatica por ela nao ter sido tratada com a mesma pro-fundidade com que o giro linguistico e a "Teoria dos atosda fala" foram tratados no capitulo "O giro linguistico".

No estudo do signiflcado, a teoria lingiiistica domi-nante e, em qualquer de suas modalidades, a teoria do si-nal, baseadana formulagao de Ferdinand de Saussure (1915)sem grandes variacoes. A Pragmatica, no entanto, e ape-nas relacionada com essa teoria, e apresenta-se como umaalternativa a ela.

Na teoria do sinal tradicional postula-se a existenciado par significante/significado. Segundo essa teoria, a re-lacao entre ambos extremes do par e totalmente arbitraria.Paralelamente, pode-se dizer que ha aqui uma postulagaoimplicita de que os significados mantem alguma relacaocom o mundo, uma relacao que e provavelmente de repre-sentagao e em virrude da qual podernos substituir o objetodo mundo real pela palavra. Com efeito, na lingiiistica tra-dicional, presume-se a existencia de algum tipo de indiceno interior de cada idioma que nos permite chegar do sig-nificante ao significado. Esse indice, que poderia ter o for-mato de um dicionario, deveria ser utilizado por cada umde nos quando quisessemos decodificar, isso e, entenderaquilo que ouvimos e aquilo que nos estao dizendo.

A concepcao propagada pela teoria do sinal foi o fun-damento no qual se basearam e ainda se baseiam muitos es-

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2. A linguagem nas ciencias socials...

tudos sobre processes psicologicos e sociais. Exemplos bas-tante representatives disso sao o estudo do pensamento, daaprendizagem, do processo de comunicacao e, em geral, da in-terpretagao como processo individual e coletivo.

Paralelamente a teoria do sinal encontra-se a teoria dacomunicapao, que tern maior divulgagao e e comumentemais aceita.

De acordo com essa teoria, o emissor difunde ou ex-pressa uma mensagem atraves de um canal que e decodifi-cado pelo(a) ouvinte ou receptor(a).

Nao nos estenderemos mais sobre essas duas teorias jaque sao amplamente conhecidas e voltaremos nossa aten-cao para a Pragmatica.

A questao-chave e que a Pragmatica se opoe tanto asimplica9oes dessa teoria lingiiistica simples, de significantee signiflcado, como tambem a teoria da comunicagao, ofe-recendo um ponto de vista radicalmente distinto de ambos.Com efeito, a Pragmatica esta esrritamente interessada nosprincipios que regulam o uso da linguagem e, em particu-lar, naquelas condicoes que fazem do uso de um enuncia-do concrete uma acao de comunicacao.

No entanto, a Pragmatica nao tem uma unica concep-cao aceita consensualmente. Ao contrario, podemos dizerque ha uma grande variedade de concepcoes pragmaticas.Assim, por exemplo, um dos grupos pragmaticos mais co-nhecidos atualmente e aquele que adota os principios da"Teoria da relevancia" (Sperber & Wilson, 1986). Essae uma orientapao pragmatica marcadamente cognitivistaque considera que o processo de comunicapao e uma tare-fa da pessoa que fala - ou seja, essa "empacota" ou codifi-ca o que quer dizer - e uma tarefa do que recebe, que "de-sempacota" ou decodifica o que quer escutar. Nesse traba-Iho de decodifica^ao ha certas chaves, sendo que a maisimportante delas e a relevancia daquilo que foi dito para ocontexto, que facilita tanto o processo de enuncia9ao como

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o processo de recep9ao. A medida que essa visao da prag-matica concede um papel muito importante ao processo decodifica9ao e de decodificagao, e sendo esse obviamenteum papel eminentemente verbal ou cognitive,

Optaremos por nos referir a uma pragmatica menos in-teressada em discernir a natureza dos processes cognitivosde codificacao e decodificaQao e mais interessada na pra-xis comunicativa. Essa e a pragmatica coerente com osprincipios do giro lingiiistico e da "Teoria dos atos da fala"que vimos anteriormente e que podemos encontrar em au-tores como Grice (1975) ou Levinson (1983). Da perspec-tiva dessa outra concepgao da pragmatica, de tipo nao cog-nitivista, para chama-la de alguma coisa, nao ha nenhumsignificado estavel preexistente ou codificavel de maneiraunivoca; ao contrario, ha um processo de comunica^ao noqual a contextualizacao e que fornece a unica possibilida-de real de compreensao.

A Pragmatica afinna, muito enfaticamente, que deve-mos presumir que, quando algo e dito, ha sempre um sen-tido que vai mais alem do significado que acompanha aspalavras. E dessa forma que podemos interpretar as 39005da fala tanto em termos intencionais como nao intencio-nais. Em termos intencionais quando, por exemplo, al-guem quer dizer algo mais do que esta dizendo, mas nao odiz. Esse e o caso "de ler nas entrelinhas", ou seja, quando,ao ler um texto, vamos buscando b que e que realmente al-gu6m estaria querendo dizer que nao esta dizendo com aspalavras. Em termos nao intencionais, tanto quando, porexemplo, consideramos a maneira como foi estruturadagramaticalmente uma frase ou o tipo de conexoes contex-tuais que ela oferece de um ponto de vista gramatical,como quando consideramos as partes da fala que se refe-rem a situates contextuais - dicticos, que veremos mais afrente - ja que essas sao as condi9oes necessarias paraqualquer compreensao da situa9ao comunicativa.

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2. A linguagem nas ciencias socials...

Podemos afirmar, portanto, que todos os idiomas temesse tipo de artefato e nao podemos abordar uma analisede significado se nao levarmos em considera9ao esses dis-positivos. Por exemplo, se encontrassemos no chao umanota manuscrita com a expressao "volto em 5 minutos",essa frase, se nao temos a nossa disposi9ao o cenario rela-cional, fisico, temporal, etc., e uma frase que carece de sen-tido. Quern vai voltar? Para onde vai voltar? em que dia? aque hora? Ou, no melhor dos casos, os cinco minutos jatranscorreram ou ainda falta algum tempo? Esse exemploilustra muito bem a importancia dos elementos envolvi-dos na significa9ao e na compreensao. As premissas emque se baseia a Pragmatica vao nessa dire9ao.

Da mesma maneira, podemos dizer que a diferen9a en-tre a Pragmatica e o modelo tradicional de comunica9ao seorigina do fato que, mais do que um canal, o que temose um contexto de comunica9ao que precisamos conhecerpara tornar inteligivel aquilo que estamos falando.

A linguagem em uso e, portanto, o que define a Prag-matica, em oposi9ao a outras maneiras de entender a lin-guagem. Nao e possivel se comunicar sem dispor de umaancoragem linguistica nesses contextos fisicos, relacio-nais e sociais e essa opera9ao linguistica tem que ser deco-dificada, porque, se nao se produz essa decodificacao, acompreensao e impossivel.

Nesta apresenta9ao da Pragmatica, nos referiremos par-ticularmente a duas questoes cruciais: a) a dixis e b) as im-plicaturas.

a) A dixis

O termo "dixis" se refere aqueles elementos da estru-tura gramatical que relacionam a linguagem com o con-texto. Como assinala Levinson (1983: 47) "O termo 'di-xis' se origina da palavra grega para assinalar ou indicar,sendo exemplos prototipicos ou principals o uso dos de-

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monstrativds, os pronomes de primeira e segunda pessoa,o tempo verbal, adverbios especificos de tempo e lugarcomo "agora" e "aqui", e varies outros traces gramaticaisligados diretamente as circunstancias da enunciagao".

Os dicticos codificam, portanto, as relacoes da lingua-gem e o cohtexto da enunciacao. E o fazem cumprindo di-versas fungoes tais como assinalar ou indicar lugares e/oucoisas, pessoas, momentos, etc. For isso, os dicticos po-dem ser de tres tipos:

a) pessoal, quando se referem a pessoas e indicam opapel que cada participate desempenha na interagao (fa-lante, ouvinte). "Eu", "nos", "eles", bem assim como vo-cativos tais como "tio/tia" ou "macho" sao exemplos dedicticos de pessoa;

b) de lugar, quando se referem a lugares localizando aspessoas ou objetos aos que se referem na conversacao. "Ponha-oaqui" e um exemplo no qual" aqui" e um dictico de lugar;

c) de tempo, quando se referem aos varies momentosdaquilo que se esta narrando, tomando como ponto de re-ferenda o momento em que se da a conversagao. "Nos ve-mos mais tarde" e um exemplo no qual a expressao adver-bial "mais tarde" opera como dictico temporal.

Esses sao os dicticos descritos mais comumente. Ulti-mamente foram acrescentadas outras categorias (Levin-son, 1983): a dixis do discurso e a-dixis social, a saber:

a) A dixis do discurso refere-se a realizacao de refe-rencias a outras partes do discurso, anteriores ou posterio-res, nas que se formula o enunciado. For exemplo, quandono texto lemos o enunciado "como vimos no capitulo 1"faz-se referenda a urna parte do texto que se encontra tem-poral e espacialmente antes daquilo que se esta lendo.Expressoes como "defmitivamente", "portanto", "no en-tanto" e outras semelhantes tambem tern essa fungao dicti-ca discursiva.

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2. A linguagem nas ciencias socials...

b) A dixis social refere-se a codificagao das distin-goes sociais dos papeis dos participantes na conversa-gao. Em particular, quando indicam a relagao social entreos participantes.

Sao exemplos de dixis social as formulas de tratamen-to "tu", "voce", ou "o senhor/a senhora", pois indicam cla-ramente a posigao dos/das falantes e/ou a relagao entreeles/elas. Assim, quando uma pessoa jovem fala com ou-tra mais velha e comum o uso de '(o senhor/a senhora". Osvocatives "meu bem", "querido/a", por exemplo, ditos porum dos membros de um casal, tern fungao identica.

Toda indicagao contextual, e, por conseguinte, a dixis,tern um ponto de referenda. Na Pragmatica, esse ponto dereferenda e denominado de centre dictico. Existe um cer-to consenso na aceitagao de que a dixis se organiza de ma-neira egocentrica (Levinson, 1983). Ou seja, por um lado, ofalante; por outro, o tempo no qual ele produz seu enuncia-do e, finalmente, o lugar da enunciagao. Em termos da di-xis do discurso, o centre e o lugar discursive no qual se en-contra o falante e, na dixis social, o centre e a posigao socialdo falante a cuja volta giram as de seus interlocutores.

Apesar disso, e para terminar, e precise observar que adixis passa por deslocamentos interessantes come, porexemplo, quando o falante assume o papel do ouvinte, ouquando o passado e convertido pelo falante no centre dic-tico de um relate. E preciso que os participantes entendamesses deslocamentos porque, se isso nao ocorrer, qualquercomunicagao torna-se impossivel.

b) As impLicaturas

Grice (1975) elaborou a nogao de implicatura. Umaimplicatura e uma inferencia que os participantes em uma si-tuagao de comunicagao fazem a partir de um enunciado ou

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de um conjunto de enunciados. Grice distingue entre o quese diz e o que se comunica:

• O que se diz depende das palavras que sao enuncia-das,

• O que se comunica e toda a informacao transmitidapelo enunciado. Essa informafao nao e explicita, naose extrai do significado das palavras; ao contrario, elae implicita e e elaborada dentro da moldura das nor-mas da cohversa?ao e do contexto de interacao.

Grice tambem fez uma distingao entre implicaturasconvencionais e implicaturas nao convencionais. As pri-meiras podem depender do significado convencional daspalavras. No entanto, o mesmo nao ocorre com as segun-das, que dependem das regras contextuais. Quando sao es-sas regras que estruturam a conversacao, falamos de impli-caturas conversacionais. De alguma maneira, as implicatu-ras conversacionais sao uma consequencia dos enunciados.Ou seja, as ora9oes que sao ditas pelos/as falantes, e admitemuma producao de sentido que vai mais alem do significadoconvencional das palavras que sao pronunciadas.

Em alguns cases, o significado convencional das pala-vras usadas determinara o que e que se quis dizer, alemde nos ajudar a identificar o que se disse; Se eu digo(com um gesto de auto-suficiencia) "E um latino; por-tanto e muito temperamental", eu mesmo estou me com-prometendo, certamente, em virtude do significado deminhas palavras, com a ideia de que o fato de ele (a pes-soa em questao) ser muito temperamental e uma conse-quencia (se segue) de ele ser latino. Mas, embora eu te-nha dito que e latino e que e temperamental, eu nao gos-taria de defender a tese de que o que eu disse (no sentidodesejado) foi que o fato de que alguem seja latino signi-fica que e muito temperamental, mesmo que certamenteeu tenha indicado ou implicado isso. Nao pretendo afir-mar que minha escolha da oracao mencionada seja, es-

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2. A Unguagem nas ciencias socials...

tritamente falando, falsa, embora o primeiro nao tenhasido uma consequencia do segundo (Grice, 1975: 515).

Assim, a frase "e um latino, portanto e muito tempera-mental", que Grice propoe na cita9ao, e uma implicaturaconvencional. No entanto,

A: voce viu sua sobrinha ontem?

B: ontem nao sai de casa o dia todo,

e uma interacao na qual a implicatura nao vai associada aspalavras utilizadas. Quando o falante B responde a per-gunta de A, no sentido literal nao esta respondendo se viuou nao sua sobrinha ontem, mas o que disse implica clara-mente que nao a viu.

0 contexto privilegiado das implicaturas e aquilo queGrice chamou de "Principio de cooperacao". O ponto departida e o elemento que caracteriza esse principio sao aconsidera9ao de que conversar exige um desejo de colabo-rar com outra pessoa ou outras pessoas, ou, o que e a mes-ma coisa, necessita objetivos cornpartilhados. Com efeito,as conversas que mantemos nao sao uma mera seqiienciade informacoes, descricoes ou dados desconexos e simconstituem, ate certo ponto, um esfor9o de colabora9ao oureciprocidade no qual os/as interlocutores/as estao envol-vidos. Poderiamos dizer que os/as participantes em umaconversa sao conscientes ou se fazem conscientes de que ointercambio comunicativo do qual participam esta, de al-guma maneira, sustentado por um proposito ou conjuntode propositos comuns, ou, no ininimo, possui uma orienta-9ao aceita mutuamente pelos/as falantes. Esse propositoou orienta9ao pode ser definido desde o come9o da con-versa atraves de recursos distintos, como, por exemplo,planejando urn possivel tema para o dialogo; ou pode ir-setransfigurando no decorrer da conversa. Apesar disso, exis-te tambem a possibilidade de que o tema da conversa este-

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ja totalmente especificado ou que seja tao obscuro quepermita uma flexibilidade quase ilimitada por parte dos/asinterlocutores/as. Essa situacao e muito comum nas con-versas e intercambios que surgem em encontros fugazes einesperados. Apesar disso, seja como for, durante a con-versa, algumas das contribuigoes serao ignoradas por se-rem inadequadas. Defmitivamente, os/as participantes en-volvidos/as em uma conversa aceitarao como preceito querege seus intercambios o principio de cooperapao que, co-mo indica Grice (1975: 515-516), poderia ser formuladodizendo-se:

Contribua para a conversa segundo as exigencias doproposito ou da dire9ao do intercambio que voce mante-nha, no momento em que ela ocorra.Se qualquer um dos falantes nao esta disposto a cumpriresse principio, ou seja, a colaborar, entao o que ocorrera eque o outro ira inferir que ele/ela quer dizer outra coisa.

Ainda, segundo Grice, o principio de cooperacao ternvarias maximas:

1) Maxima de quantidade: faz referenda a quantidadede informacao que se fornega em uma conversa e se rela^ciona com o equilibrio harmonico dessa quantidade no sen-tido de que, na cooperacao, contribua-se com maior ou me-nor quota de informacao.

2) Maxima de qualidade: refefe-se a verdade da con-tribuigao informativa e a credibilidade ou a confiabilidadeque as contribui9oes sejam capazes de despertar e manter.

3) Maxima de relagao (relevancia): consiste em darcontribuipoes pertinentes e diretas que sejam principal-mente sobre o tema central da questao e nao sobre seus as-pectos superficiais.

4) Maxima de rnodo: a diferenga das anteriores, a im-portancia desta maxima reside nao no conteudo, e sim na

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2. A linguagem nas ciencias socials...

maneira como esse conteudo e expressado. Relaciona-sefundamentalmente com a exposi9ao clara, ordenada, con-cisa e precisa.

Grice (1975: 516-517) expressa as maximas que defi-nimos acima e que configuram o principio de coopera9aoda seguinte maneira:

poderiamos distinguir talvez quatro categories a umaou outra das quais pertencerao maximas ou submaximasmais especificas. Dentre todas essas, as seguintes possi-bilitarao resultados que estao de acordo com o PrincipioCooperative. Repetindo Kant, denominarei essas cate-gorias: Categorias de Quantidade, Qualidade, Relacao eModo. A categoria de Quantidade tern que ver com aquantidade de informacao a proporcionar, e a ela perten-cem as maximas"Fa9a com que sua contribui9ao seja tao informativaquanto necessario" (considerando os objetivos da con-versa9ao) e pode ser tambem"Nao fa9a com que sua contribui9ao seja mais informa-tiva do que necessario" [...].A categoria da Qualidade pertence uma supermaxima:"Tente fazer com que sua contribuifao seja verdadeira"e duas maximas mais especificas:"Nao diga aquilo que acredita ser falso"."Nao diga aquilo para o qual nao tenha provas adequa-das" [...].Dentro da categoria Relacao situo uma unica maxima:"Va direto ao assunto" [...].Finalmente, a categoria de Modo, que imagine de uma ma-neira que nao tern nada que ver com o que se diz (comoocorre com as categorias precedentes) e sim com a maneiracomo se diz o que se diz, pertence a supermaxima:"Seja claro", assim como varias maximas:"Evite ser obscuro ao expressar-se"."Evite ser ambiguo ao expressar-se"."Seja desembaracado (e evite ser desnecessariamenteprolixo)"."Proceda com ordem".

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Uma implicatura conversacional ocorre tanto quandoobedecemos a essas maximas quanto quando violamos to-das ou alguma delas. Todas as implicaturas exigem avalia-gao por parte dos/as interlocutores/as, no sentido de que sepresume que os falantes estao respeitando o principio decooperagao. Para que uma implicatura possa ser eonside-rada conversacional (e nao convencional) ela deve poderser inferida. Se nao for possivel essa inferencia, emborapossamos suspeitar que a implicatura esta presente ou quetenhamos alguma intuicao de sua presenga, a implicaturasempre devera ser considerada como convencional; a naoser que a suspeita ou intuicao possa ser substituida por umargumento. For essa razao, para que um ouvinte possa in-ferir que esta diante de uma implicatura conversacional,devera basear-se nos seguintes dados, manipulando-os:

1) o significado convencional das palavras ditas, bemassim como a identidade das referencias implicadas;

2) o principio de cooperagao e suas maximas;

3) o contexto lingiiistico ou extralinguistico no qual aspalavras foram ditas;

4) outras informagoes solidas;

5) o fato, ou suposto fato, de que os/as interlocutores/asconhecem, ou presumem que conhecem, cada um dos deta-Ihes relatados nos paragrafos precedentes, e que esses es-tao a seu alcance.

Como afirma Grice (1975), a formula que perrnite de-tectar a presenga de uma implicatura conversacional podeser sintetizada da seguinte maneira:

Ele disse que p; nao ha nenhuma razao para supor quenao esta observando as maximas, ou, pelo menos, PC;poderia as estar cumprindo se pensasse que q; sabe (esabe que eu sei que ele sabe) que eu percebo a necessida-de da premissa de que pensa que q; nao fez nada para me

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2. A linguagem nas ciencias socials...

impedir de pensar que q; portanto, tem a intengao que eupense, ou pelo menos quer possibilitar-me a pensar, queq; e, por conseguinte, sugeriu que q (Grice, 1975: 521).

Para que sejam conversacionais, as implicaturas de-vem reunir certas caracteristicas que constituem ao mes-mo tempo uma maneira ou procedimento atraves do qualpodemos conhece-las e identifica-las. Segundo Grice (1975),para admitir que uma implicatura conversacional e realmen-te conversacional, e imprescindlvel aceitar que o principiode cooperagao esta sendo cumprido. Apesar disso, pode-mos evitar essa aceitagao. Se a evitarmos, necessariamen-te deveremos cancelar uma implicatura conversacional ge-neralizada em urn caso particular. Para isso, podemos ope-rar da seguinte maneira: a) podemos cancela~la expressa-mente atraves de uma clausula que de a entender, ou quedetermine, que o/a falante esta inclinado/a a nao acatar oprincipio de cooperagao; ou b) podemos cancela-la de for-ma contextual, se a forma verbal expressa que normalmenteacompanha a implicatura conversacional for usada em umcontexto tal que nao deixe qualquer duvida de que o/a fa-lante esta prescindindo do principio de cooperagao.

Da mesma forma, existem outras caracteristicas dasimplicaturas conversacionais que Grice detalha e formulada seguinte maneira:

A medida que, para inferir que estamos diante de umaimplicatura conversacional, seja preciso, alem da infor-magao contextual e de fundo, tao-somente o conheci-mento daquilo que foi dito (ou do compromisso conven-cional do proferimento) e contanto que o modo da ex-pressao nao desempenhe qualquer fungao na inferencia,nao sera possivel encontrar outra forma de dizer a mes-ma coisa, por carecer da implicatura em questao, a naoser que alguma caracteristica especial da nova versaoseja relevante, por si so, para a determinacao de uma im-plicatura (em virtude de alguma das maximas de modo).

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Se dermos a essa caracteristica o nome de "indesligabifi-, dade" e de se esperar que toda implicatura conversacio-nal generalizada que se realize atraves de uma Iocu9aofamiliar, e nada especial, tenha um alto grau de "indesli-gabilidade".Falando de maneira aproximada, ja que, para inferir apresensa de uma implicatura conversacional pressu-poe-se um conhecimento previo da for£a convencionalda expressao cujo proferimento leva consigo a implica-tura, o implicandum conversacional sera uma condicaode nao incluir a primeira especiflcacao da for9a conver-sacional da expressao. Embora possa nao ser totalmenteimpossivel que aquilo que se inicie na vida, por assimdizer, como implicatura conversacional, adquira a natu-reza de implicatura convencional, supor que, em umcaso determinado, isso realmente sucede, exigiria umajustificativa especial. Portanto, pelo menos inicialmen-te, os implicata conversacionais nao sao parte do signifi-cado das expressoes a cujo uso se aderem.Ja que a verdade de um implicatum conversacional nao euma consequencia da verdade daquilo que foi dito (oque se disse pode ser verdadeiro e o que implica pode serfalso), a implicatura nao esta inseparavelmente unida aoque se disse, e sim ao dizer aquilo que se disse ou ao "ex-pressa-lo dessa maneira".Ja que inferir uma implicatura conversacional e inferir o'que se supos para salvaguardar a observancia do Princi-pio Cooperativo, e dado que podem ocorrer varias expli-cacoes especificas possiveis, ficando em aberto a listadessas explicacoes, em tais casds o implicatum conver-sacional sera a disjuncao de tais explicacoes especificas;e se a lista flea em aberto, o implicatum tera o carater deindetermina?ao que muitos implicata reais parecem re-almente possuir (Grice, 1975: 530).

Terminaremos essa parte dedicada a Pragmatica comdois exemplos:

1) Imaginemos que alguem mora em urn quinto andarsem elevador. Quando chega em casa, outra pessoa, com

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2. A Unguagem nas ciencias socials...

que compartilha a moradia, pronuncia a seguinte frase: "Epreciso descer com o lixo".

Veremos que nao se pode fazer uma AD sem a Pragma-tica. Em um certo sentido, estudar AD e estudar a Pragmati-ca, e fazer uma AD e fazer uma analise pragmatica. E esseexemplo, sendo, ao mesmo tempo, uma ilustracao da prag-matica, vai ajudar-nos a entender como se faz uma AD.

Quando alguem disse "E preciso descer com o lixo"poderiamos pensar que se esta verificando uma constata-gao de um fato. Ou seja, que ha lixo que e preciso transpor-tar para que seja coletado. Mas, prestemos atengao no con-texto: uma casa com varias pessoas (por exemplo, uma fa-milia) tarde da noite (por exemplo dez horas da noite), fi-nal de um dia de trabalho, etc. Nessa situacao, se alguemdisser "E preciso descer com o lixo", a maior parte daspessoas vai entender que, na verdade, nao se esta cons-tatando um fato, e sim se esta solicitando, ou inclusive, seesta dando uma ordem de descer com o lixo. Nao ha ma-neira, a nao ser atraves dos ensinamentos da Pragmatica,de entender como ocorre isso. Ou seja, como um falanteconsegue que seu interlocutor entenda que Ihe estao dandouma ordem.

Bern, voltemos ao exemplo "E preciso descer com olixo". E comum que as ciencias sociais facam a seguintecritica a Pragmatica (critica semelhante a que se faz comfreqiiencia a Austin, por exemplo): que (os que defendema Pragmatica) so se preocupam com exemplos curtos, comfrases pequenas e que nao podemos abordar problemas so-ciais a partir da Pragmatica.

No entanto, o reconhecimento dos atos perlocutivos,como aqueles atos de fala que geram efeitos, nos abre urn ca-minho para uma analise mais global a partir da Pragmatica.

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Suponhamos que o enunciado desse exemplo e pro-nunciado em uma casa na qual ha um casal. Podemos an-tecipar quern vai dizer a expressao, porque sabemos quenao vai ser qualquer um dos dois, indistintamente. Queessa a?ao tern que ver com o papel desempenhado. Comoanalistas, quando examinamos uma expressao desse tipo,como nos ensinara a Etnometodologia, nao necessitare-mos ter uma teoria sobre a desigualdade social, porque aobservagao e o registro pontual desse ato 6 informative da-quilo que esta ocorrendo. Com efeito, as conseqiiencias dedizer "E precise" equivalent a uma ordem, ja que alguemefetivamente leva o lixo para baixo, ou protesta porque sen-te que esta sendo repreendido para que o faca. ou se descul-pa, ou se justifica porque j a fez a mesma coisa em variasocasioes. E sabemos tambem que, em um contexto comoesse, nao e qualquer pessoa que pode dar essa ordem.

Esse ato nos informa que existe uma posipao assime-trica, na qual uma das pessoas esta em condicoes de daruma ordem a outra. Nao informa sobre as capacidades deinterpretacao ou de decodifica9ao do casal, que obvia-mente e um sujeito habil em seu idioma e entende todas ecada uma das palavras. Nao e isso, o que nos informa e so-bre a relagao que essas duas pessoas estao tendo.

2) Sentada em volta da mesa de qualquer casa, uma fa-milia-padrao esta almoc. ando. Um dos comensais formulaa seguinte pergunta? "Cade o sal?"

Como no caso anterior, essa nao e uma pergunta parasaber onde se encontra o saleiro. Qualquer pessoa em umasiruasao como essa sabe que, uma vez mais, trata-se deuma ordem para que alguem traga o sal para a mesa.

Nada impede que se de uma ordem direta como "Tragao sal" e, as vezes, isso e o que ocorre; mas isso nao e neces-

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2. A linguagem nas ciencias socials...

sario para que se de origem a ordem, para que alguem tra-ga o sal para a mesa, e para que se constitua e feconstituauma situagao de assimetria obvia entre os varies partici-pantes da cena.

De um ponto de vista convencional podenamos fazeruma antecipacao de qual e o cenario real, quais sao as po-sicoes assimetricas reais a partir das quais uma pessoapode dar uma ordem como essa. Mas nao 6 imprescindi-vel, ou pelo menos nao o e em muitos casos.

Dizer "cade o sal?", da mesma maneira que dizer "Eprecise", comporta a posipao de papel, a posicao de assime-tria, o exercicio do poder, etc., e, como analistas, a unica coi-sa de que necessitamos e ser membros competentes nessecontexto para entender o que ocorre, nada mais. Nao neces-sitamos ter uma teoria sociologica ou psicologica, so pre-cisamos ser membros competentes nessas circunstancias.

4. A etnometodologia

O famoso texto de Garfinkel (1967) Studies in Ethno-methodology comeca com as palavras que se seguem, queconstituem uma das melhores definipoes da etnometodo-logia (daqui por diante, ETN) desde que essa surgiu:

Os seguintes estudos buscam tratar as atividades prati-cas, as circunstancias praticas e o raciocinio sociologicopratico como topicos do estudo empirico e, ao dar as ati-vidades mais banais da vida cotidiana uma atencao quenormalmente so e concedida a eventos extraordinarios,procuram aprender sobre elas por seus proprios meritos.Sua recomenda?ao principal e que as atividades atravesdas quais membros produzem e administram grupos denegocios cotidianos organizados sao identicas aos pro-cedimentos desses membros para fazerem com que es-ses grupos "prestem conta" de suas atividades (Garfin-kel, 1967: 1).

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Com efeito, a ETN deu enfase a analise das atividadespraticas cotidianas, dando-lhes a mesma atengao que, emgrande parte da sociologia oficial, foi dada aos eventos"aparentemente" mais importantes. O foco de interesse daETN sao as pessoas em sua interacao cotidiana e as ativi-dades que elas desenvolvem em seus contextos imediatos.For isso, essa parte da sociologia e situada no ambito dasmicrossociologias, tambem chamadas por alguns autoresde "Sociologias da Situagao" (Diaz, 2001).

Na obra mencionada acima, Garfinkel explica o por-que do termo etnometodologia:

Uso o termo "etnometodologia" para referir-me a inves-tigagao das propriedades racionais de expressoes inde-xadas e outras agoes praticas como realizacoes perma-nentes continuas de praticas engenhosas organizadas davida cotidiana (Garfinkel, 1967: 11).

Com efeito, os estudos emometodologicos voltam suaatengao para as atividades diarias nas quais pessoas comonos se veern envolvidas. Essas atividades diarias sao con-cebidas e analisadas como metodos a que as pessoas recor-rem para fazer corn que essas mesmas atividades sejamexplicaveis (accountable): fazendo com que sejam visi-veis, racionais e comunicaveis para todos os objetivos pra-ticos e como organizagoes de todas as atividades comunsde cada dia. Uma das caracteristicas peculiares das agoes ecircunstancias praticas, das estruturas sociais que o senti-do comumproporciona e do raciocinio sociologico praticoe a reflexividade. Assim, a reflexividade e a base para oestudo dessas situacoes porque pennite localizar e exami-nar suas varias ocorrencias.

A ETN nasceu como corrente sociologica nos anos1960. Ao ser postulada como uma perspectiva de investi-gagao e nao como teoria, ela significou uma ruptura extra-ordinaria com os modelos sociologicos dominantes. Na

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estrutura das correntes sociologicas, ela se afifma, entao,como uma clara alternativa contra as versoes que defen-dem a explicagao dos fatos sociais e se manifesta contraaquelas que defendem a compreensao como unica manei-ra viavel de abordar os processes sociais. Os principiosbasicos da ETN sao poucos e, provavelmente, o mais im-portante deles seja a premissa de que todos os membros dasociedade sao "sociologos/as na pratica". Ou seja, quecada pessoa, em sua agao cotidiana, descreve, fala e cons-troi a realidade simultaneamente. Portanto, nao existe umarealidade social independente dos individuos, cujo conhe-cimento so seja possivel a partir de um pensamento teori-co e de uma investigacao alheia ao sentido comum. Aocontrario, o sentido comum e perfeitamente capaz nao sode construir a realidade social, como tambem de conhe-ce-la e de explica-la. Para a ETN, a realidade social nao enunca algo exterior aos individuos, e sim um produto in-cessantemente construido pela atividade de todos os mem-bros de um grupo ou coletividade em sua agao cotidiana.

4.1. Os quatro conceitos-chave da ETN

Destacaremos quatro conceitos-chave da ETN por suarelevancia especiflca para os enfoques discursivos. Essesconceitos sao a) o de competencia; b) o de reflexivi-dade; c) o de indexabilidade\ d) o de explicabilidade (ac-countability).

a) Competencia: a nogao de competencia de associa-gao (membership), ou de membro competente, desenvol-vida pela ETN, refere-se nao a associagao a um grupo oucoletividade e sim ao uso que se faz ou se pode fazer dalinguagem natural. Ao contrario do conceito sociologico epsicologico-social de "pertinencia" a uma sociedade, gru-po ou categoria social, a nogao de associagao se refere agestao e ao uso da linguagem.

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Nesse sentido, ser um membro competente significaser uma pessoa dotada de savoir-faire, capaz de atuar comconhecimento dos procedimentos, metodos.e estrategiasque permitam a adaptagao e um desenvolvimento bem-su-cedido no contexto social em que vive, com capacidadepara criar mecanismos de adaptacao que Ihe ajudem a in-fluenciar o mundo circundante. Mais precisamente, serum membro competente envolve o ingresso em um grupoou instiruicao, nao so pelo desejo de faze-lo, mas atravesda incorporacao ao uso e a utilizagao eficaz da linguagemcomum desse grupo ou dessa instituigao. Isso pressupoeque, uma vez afiliados, desaparece a necessidade de um ques-tionamento sobre o que fazem os outros membros do gru-po, ja que aceitam as rotinas inseridas nas praticas sociaise sabem o que esta implicito em suas condutas3.

Nos termos da ETN, o conceito de membro competen-te, associagao, nao e uma pressuposicao, uma aprendiza-gem ou uma aculturagao dos sistemas de valores e de cren-cas ou das analises da intersubjetividade de um grupo so-cial ou cultural determinado.

Ha uma caracteristica dos relatos de membros que ternpara eles uma relevancia tao singular e permanente quecontrola todas as outras caracteristicas em seu carater es-pecifico como elementos reconhedveis e racionais dasinvestigacoes sociologicas praticas. Essa caracteristicae a seguinte. Com relacao ao carater problematico dasacoes praticas e a adequabilidade pratica de suas investi-gacoes, os membros partem do principio que qualquermembro, desde o comeco, deve "conhecer" o ambienteno qual ele/ela tera de funcionar para que suas praticas

3 Isso ajuda a entender como nossa cultura nao nos parece insolita,nem por que nao nos consideramos uns estranhos e estranhas com re-lapao a ela. No entanto, normalmente, o que demonstramos diante dascondutas ou das perguntas de um/a estrangeiro/a e estranlieza.

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2. A linguagem nas ciencias sociais...

sirvarn como meios de fazer com que elementos especi-ficos, localizados, desses ambientes sejam obviamentetransparentes e explicaveis. Eles consideram como a coi-sa mais normal que os relatos dos membros, de todosos tipos, em todos seus estilos logicos, com todos seususos, e que tenham sido coletados por quaisquer meto-dos, sao caracteristicas constituintes dos ambientes queeles tomam observaveis. Membros sabem, exigem, con-tarn com e fazem uso dessa reflexividade para produzir,realizar, reconhecer ou demonstrar adequabilidade-ra-cional-para-todos-os-objetivos-praticos de seus procedi-mentos e descobertas (Garfinkel, 1967: 8).

A ETN surge por oposigao as teorias da agao vigentesno final dos anos 1960, sobretudo as teorias de Parsons.Nesse sentido, diante dapressuposi?ao de que nosso com-portamento e um comportamento que segue regras, a ETNesta interessada em saber como constituimos essas normasquando estamos interagindo ou agindo. Por isso, na visaoda ETN, a associacao nao e compartilhar esse contexto quenos antecede ou, pelo menos, nao e unicamente isso, e simter a competencia para a acao conjunta e para a intera9ao.

A propria linguagem pode nos servir como exemplo.A questao nao e so saber se cada um de nos Conhece ounao um idioma que nos faria membros competentes dessacomunidade linguistica, e sim ver se somos capazes de fa-lar, o que e completamente diferente. Como bem sabe qual-quer um que tenha tido que aprender um segundo idioma,nao basta conhecer esse idioma, ou seja, conhecer a gra-matica e o vocabulario, porque isso nao da a competencia.Uma associagao e uma competencia sobretudo no uso dalinguagem comum, entendida nao so como palavras, mastambem como contexto das normas e regras que configu-ram a acao social.

b) Indexabilidade: a enunciacao de qualquer palavraou frase se da em um determinado contexto. Esse contexto

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faz com que cada palavra tenha urn significado especificoem cada oportunidade de enunciagao. Compreender umapalavra ou frase implica sempre uma "analise" da situacaoque vai mais alem da informagao efetivamente dada emum momento concreto. Uma palavra ou uma oragao, por-tanto, nao expressa plenamente "o significado"; ela adqui-re esse significado plenamente no cenario concreto de suaproducao. Esse contexto de enunciagao, alem disso, se es-tende a elementos que ultrapassam a situacao imediata,como podem ser os intercambios lingiiisticos previos, arelagao que os/as interlocutores/as mantem entre si ou apropria historia de cada um/a deles/as.

O conceito de indexabilidade, desenvolvido na ETNpor Garfinkel, implica que toda a linguagem natural e in-dexada na medida em que seu significado esta sempre de-pendente do contexto de sua propria producao. Nao ha sig-nificado possivel fora das condigoes de seu uso e do espa-90 social de sua enunciagao.

Cada pessoa, em sua interagao como membro compe-tente, conhece sem problemas os usos e significados das pa-lavras e oragoes que utiliza. A compreensao mutua, assimcomo a inteligibilidade daquilo que ocorre para qualquerobservador potential, torna-se possivel em virtude dessa pro-priedade que chamamos de indexabilidade. Chegamos aoconhecimento do significado concreto e pertinente de umenunciado atraves de nosso conhecimento desse caraterindexicdvel. A ETN, portanto, tem interesse em ver comoutilizamos a linguagem e como, de uma maneira totalmen-te rotineira, somos capazes de dar sentido as palawas.

Propriedades que sao exibidas por relates (por seremcaracteristicas das ocasioes socialmente organizadas deseu uso) sao disponiveis a partir de estudos por especia-listas em logica como propriedades de expressoes inde-xadas e frases indexadas. Husserl falou de expressoescujo sentido nao pode ser definido pelo ouvinte sem que

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2. A linguagem nas ciencias socials...

esse saiba ou presuma, necessariamente, algo sobre a bio-grafia e os objetivos do usuario da expressao, as circuns-tancias do enunciado, o rumo previo da conversa, ou orelacionamento especifico da atual ou potencial intera-cao que existe entre aquele que expressou o enunciado eseu ouvinte (Garfinkel, 1967: 4).

Assim, portanto, todas as circunstancias que rodeiamuma palavra sao as portas de acesso para a a9ao de com-partilhar seu sentido. Cada participante executa uma tare-fa documental, como diria Garfinkel. Como em um arqui-vo, uma coisa leva a outra.

Tomemos como exemplo a analise etnometodologicade uma entrevista. Uma entrevista e uma situa9ao de inter-rogagao mais ou menos pactuada, onde o/a entrevista-dor/a nao tem uma informa9ao que o/a entrevistado/a tem.Ambos estruturam o espago-tempo para que um diga o queo outro quer saber. Analisada etnometodologicamente,essa situagao inclui identificar todas aquelas agoes do in-dividuo que levam a esses espagos que cada participanteconhece. Entao, o que da ideia de uma situagao nao e uni-camente se alguem e ou nao competente e sim, principal-mente, sua indexabilidade: cada coisa que se diz, comocada coisa que se faz, nos poe em contato com algo que estaocorrendo. Qualquer observador/a dessa situagao pode che-gar por si mesmo/a a esse tipo de conclusao. Tudo o queocorre adquire sentido pela estruturagao que se esta dan-do nesse momento especifico e nao unicamente pelascondigoes de partida. Ou seja, se observamos que o en-trevistado responde mal, e facil ver que estamos diantede uma ruptura de uma regra ou de uma norma, nao e ne-cessario saber as condigoes previas da entrevista, fossemelas pactuadas ou nao.

c) Reflexividade (Reflexivity); a propriedade da refle-xividade tem que ver, ao mesmo tempo, com a descrigaode uma situagao e com sua construgao, no sentido de que

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descreve-la e construi-la. Da mesma maneira, a reflexivi-dade se relaciona, simultaneamente, com a compreensaodaquilo que esta acontecendo e com a explicitapao de ditacompreensao. Como afirma Garfinkel (1967), areflexivi-dade pressupoe que as atividades que empreendemos paracriar e operar as situa9oes que se nos apresentam em nossavida cotidiana sao identicas aos procedimentos que utili-zamos para descrever essas mesmas situa9oes.

Em uma situagao determinada, a reflexividade refere-se, simultaneamente, as praticas que a descrevem e a cons-troem, Enquanto interagimos com outras pessoas e fala-mos com elas, produzimos simultaneamente o significa-do, as norrnas e a inteligibilidade do que fazernos. Quandodescrevemos um acontecimento ou uma situacao social,estamos, ao mesmo tempo, construindo essa mesma situa-9ao social ou acontecimento.

E atraves da 3930 de falar, e em virtude da indexabili-dade que ja examinamos, que produzimos o mundo. Naoha um antecedente, nao ha um codigo que, se seguido,configure a realidade social. O que ha e somente a propriapratica que vai instituindo esse codigo a cada momento.

A reflexividade nao e a mesma coisa que reflexao oureflexionar, no sentido de tomar consciencia de algumacoisa. Nao se refere a uma suposta capacidade que teria-mos para gravar e ser consciente de nossas proprias a9oes:

Anteriormente argumentamos que a possibilidade de umacompreensao mutua nao consiste em demonstrar medi-das de conhecimento compartilhado da estrutura social;ao contrario, consiste totalmente no carater obrigatoriodas a9oes em obediencia as expectativas da vida cotidia-na como uma moralidade. 0 saber do sentido comumdos fatos da vida social para os membros daquela socie-dade e um conhecimento institucionalizado do mundoreal. Nao so o sentido comum retrata uma sociedade realpara seus membros, mas, como uma previsao que se rea-

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liza porque foi prevista, as caracteristicas da sociedadereal sao produzidas pela aceita9ao motivada que as pes-soas tern dessas expectativas contextuais (Garfinkel1967:53).

Na ETN, portanto, a reflexividade nao e um concei-to moral. Refere-se mais ao fato de que, quando estamosfazendo alguma coisa, estamos propriamente realizandoum ato de constitui9ao e que um membro competente po-deria ser capaz, alem disso, de prestar contas daquilo queesta fazendo.

;Utilizemos como exemplo uma a9ao banal, como an-dar de bicicleta. Andar de bicicleta e uma 39210 que seconstitui, ela propria, no ato de transportar-se sobre duasrodas. E o movimento do/a condutor/a e a propria maquinaque possibilitam o transporte. Um/a ciclista pode ter a in-ten9ao de fazer com que todos os atos envolvidos em an-dar de bicicleta sejam conscientes e explicitos mas, comosabemos, isso ira faze-lo/a cair. Assim, portanto, para an-dar bem de bicicleta nao e necessario pensar como se andade bicicleta, e portanto podernos dizer que ha uma espe-cie de "conhecimento implicito", um conhecimento que naoe necessariamente consciente e que e esse que esta permi-tindo que andemos de bicicleta, mas que, ao mesmo tem-po, pode ser explicitado. Do momento em que um/a ciclis-ta pode se dar conta da razao pela qual se move e nao cai, epossivel afirmar que para poder manter-se de pe o que e ne-cessario e ser "reflexive", que nao e a mesma coisa que"ser consciente de" ou "estar reflexionando sobre" e simque na estrutura9ao da 3930 os membros que participamdela podem, a cada momento, estar cientes da a9ao que es-tao desenvolvendo.

d) Accountability (Explicabilidade): o ultimo conceitoda ETN que vamos examinar esta relacionado com os an-teriores e, em particular, com a indexabilidade e com a re-

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flexividade. Alguma coisa, uma a9ao, uma situagao, e oproprio mundo, sao accountability4 porque sao acessiveis,porque podemos descreve-los, entende-los, conta-los. Eisso nao e unicamente algo que pode ser feito pelos cien-tistas sociais e pelos/as analistas em virtude de sen proprioconhecimento: e algo que cadapessoa desenvolve e reali-za em suas asoes praticas. O mundo nao preexiste comotal; ele se realiza, se institui em cada 3930 pratica e emcada intera9ao realizada pelas pessoas.

Quando alguem descreve o que faz ou o que esta acon-tecendo, esta, ao mesmo tempo, constituindo o ato ou oevento. Quando fazemos um relate ou proporcionamosuma explicacao, estamos construindo o mundo em que vi-vemos. A ETN se interessa pelos relates e descri9oes, pe-los accounts justamente devido a sua propriedade consti-tutiva da realidade.

Fazer o mundo visivel e fazer minha a9ao compreensi-vel ao descreve-la, porque dou a entender seu sentido aorevelar os procedimentos que utilize para expressa-la (Cou-lon, 1987:49).

As praticas explicativas em que nos vemos envolvidosnormalmente, bem assim como as explica9oes que pro-porcionamos, possuem um carater "reflexive" ou "perso-niflcado". Diz-se que alguma coisa e explicavel (accoun-table) quando os/as participates em uma situa9ao enten-dem que aquilo que "se ve e se diz" sao praticas de obser-vasao e de explica9ao. Mas, da mesma forma, essas pra-ticas se distinguem por seu carater inacabado, continuo e

4 Accountability e um termo ingles de dificil traducao, que significariaalgo semelhante ao sentido que se da a expressao "dar conta de". Apesardisso, preferirnos manter o termo no original em ingles para que os lei-tores possam entender o sentido atraves da explicacao do processo aque se refere.

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contingente, ja que se desenvolvem e ocorrem como acon-tecimentos do cotidiano que essas praticas descrevem masque, simultaneamente, organizam ao se realizarem.

Os participantes e as participantes nessas situa9oes co-tidianas dispoem do conhecimento, possuem a habilida-de e tern o compromisso de colaborar para o cumprimentodessas praticas. Alem disso, existe uma reciprocidade nocompromisso com a situa9ao: presumem e pressupoem acompetencia dos/as outros/as (da qual dependem) e presu-mem e pressupoem sua propria competencia. Essa recipro-cidade proporciona as partes as caracteristicas distintivase particulares de uma situa9ao, embora, da mesma forma,contribua tambem com problemas, recursos e projetos.

Garfinkel enfatiza a Iiga9ao que, em uma determinadasitua9ao, os/as participantes fazem enrre accounts, con-textos de utiliza9ao e a propria utiliza9ao.

Em suma, o sentido reconhecivel, ou fato, ou carater me-todico, ou impessoalidade, ou objetividade de explica-9oes nao sao independentes das ocasiSes socialmenteorganizadas de seu uso. Suas caracteristicas racionaisconsistem naquilo que os membros fazem com os rela-tes, ou fazem dos relates nas ocasioes reais socialmenteorganizadas de seu uso. As explicates dos membrossao reflexivamente e essencialmente ligadas, devido asuas caracteristicas racionais, as ocasioes socialmenteorganizadas de seu uso, porque elas sao caracteristicasdas ocasioes socialmente organizadas de seu uso (Gar-finkel, 1967:

4.2. Implicates da etnometodoLogia

A ETN sugere consequencias muito interessantes paraa pratica da analise sociologica e para a considera9ao dalinguagem nessa pratica.

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4.2.1. 0 manifesto e o oculto

Por mais esclarecedoras que sejam as propostas criti-cas nas ciencias sociais, na maior parte delas permaneceuma dicotomia sistematica: a diferen9a entre o oculto e omanifesto. Ou seja, parece que sempre ha um caminhoatraves do qual a analise de um processo nos permitirachegar a alguma coisa que nao se ve, que esta oculta, que eprecisamente o que importa realmente. A partir da ETNe desse conjunto de argumentos, a proposta e que nao hanada oculto, no ha nada que esteja atras. Ao contrario, oque ha e so e exclusivamente aquilo que esta quando seesta dizendo ou fazendo alguma coisa. Nao ha uma normaou normas que estejam em outro lugar e que precisam serdescobertas. A norma nao e um codigo escrito ou umachave cuja existencia podemos induzir atraves da observa-cao do comportamento das pessoas. A norma e a agao.

Nesse sentido, a ideia de buscar o oculto e irrelevante.A ETN nao esta interessada na busca que deseja encontraro que esta por tras, seja o pensamento das pessoas, seja aacao do individuo ou, ate mesmo, uma estrutura social rei-ficada hipotetica como algo alheio a acao dos individuos.Nao seria possivel identificar a estrutura social atraves daanalise dos relates das pessoas ou da observacao de seuscomportamentos porque essa estrutura nao esta por tras,nao esta nem mais alem, nem mais proxima, nem em qual-quer outro lugar, e sim esta na propria acao. Isso e a ETN.Parafraseando Garfinkel, podemos dizer que o mundo naosera "sempre assim", e sim que se realiza em nossas praticas.

Portanto, nao existe nada disso que chamamos de nor-mas e que supostamente fariam que nosso comportamen-to fosse de uma maneira determinada. Ao contrario, quan-do fazemos alguma coisa, estamos fazendo normas. Nao e

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2. A linguagem nas ciencias sociais...

preciso, portanto, buscar qual e a norma que existe portras, regulando nosso comportamento. O convite da ETN eque basta saber como sao feitas as coisas; ou seja, que o fa-zer e uma forma de dizer. Que o fazer e dizer.

4.2.2. A$ao social e estrutura social

A contribuicao da ETN para a analise da estrutura so-cial e que a 3930 individual, pequena, restrita, cotidiana,irrelevante e insignificante esta efetivamente estruturada, tale qual nos inforrnarn os estudos classicos sociologicos, pelamoldura social na qual se desenvolvem. Mas a inova9ao daETN e que essa mesma estrutura atua, se executa, poe-se emevidencia, literalmente se constroi, em cada acao.

Portanto, quando atribuimos a ETN um certo desinte-resse pela estrutura social quando focaliza seu estudo empequenos extratos de conversas ou em pequenos episodiosde atividade social, estamos sendo extremamente injus-tos. O interesse da ETN por coisas tao pouco interessantescomo a cortesia, o intercambio banal ou uma a9ao espon-tanea, sao somente o interesse por uma pepa minuscula noedificio da estrutura social ja que, toda a a9ao, ate mesmoa mais insignificante, contribui para a constru9ao social.Mas embora sua contribui9ao seja infinitesimal, o que estaclaro e que, se essa acao desaparecesse, nao haveria atuali-za9ao da estrutura social em nenhum momento.

4.2.3. A ETN e a linguagem Jnstitudonat

Muitas vezes pensamos que, por falar da 3930 cotidia-na, a ETN nao esta habilitada para analisar os processosque ocorrem no interior das organiza9oes e institui9oes.No entanto, o enfoque etnometodologico tern outro pontode vista.

Com efeito, a unica diferen9a entre as 39068 que saoexecutadas nas institui9oes e as proprias institui9oes resi-

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de} afmal de contas, no fato de que essas agoes adquiremuma natureza propria do cenario que defmem. Por esse mo-tivo, muitos veem na ETN a unica saida para anaiisar essescontextos, ou seja, a analise da interpelacao espontanea.

Uma pessoa interessada nos ambitos institucionais ternapenas que assumir que esse e um cenario normative, deinteragao peculiar, onde a cotidianidade tambem tern seulugar^ onde a fala as vezes esta marcada por um jargaolinguistico especifico, como ocorre, por exemplo, com osjargoes profissionais.

Em poucas palavras, uma analise de praticas institu-cionais nao e incompativel com a perspectiva emometo-dologica nem com o interesse por algo que va mais alemda cotidianidade. Com efeito, muitos esrudos etnometodo-logicos focalizaram as instituigoes e, em particular, as or-ganizagoes empresariais. Qual poderia ser a diferenca? Doponto de vista da sociologia estrutural, todos nos ja ouvi-mos dizer que devemos separar as normas explicitas dofuncionamento informal, que na realizagao de uma orga-nizagao informal e que no desenvolvimento de uma organi-zacao social e mais importante a organizagao informal quea formal. Pois bem, apenas atraves da analise das conver-sas cotidianas a ETN langa muito mais luz sobre como seestrutura uma organizagao a partir das interacoes concre-tas dos individuos que a conformam. Alem disso, comessa reflexao, oferece uma analise muito mais rica do quequalquer analise estrutural das normas explicitas da orga-nizagao, embora essas normas estejam escritas na entradada organizacao que se esta analisando.

5. 0 enfoque discursive de Michel Foucault:discursos e praticas discursivas

O trabalho de Michel Foucault ultrapassa qualquer in-tengao de encapsulacao em uma moldura diseiplinar e/ou

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2. A linguagem nas ciencias socials...

tematica concreta. Sua obra e, sem duvida, uma das maisinfluentes do passado seculo XX. Qualquer um dos temasque forarn objeto de seu interesse tiveram como conse-quencia uma mudanga radical, mudanga tanto na propriadefinigao do campo, como na abordagem, nas estrategias enas formas de conceirualiza9ao. Tudo isso pode ser dito depelo menos tres de seus interesses: o discurso, o poder e asrelacoes poder/saber e a producao de subjetividade. Ne-nhum deles e hoje analisado e pensado da mesma maneiraque o era antes das propostas de Foucault.

Aqui nos concentraremos em apenas um deles, o dis-curso, para oferecer sua definigao e caracteristicas e paraaproveitar o empenho metodologico e investigador de Fou-cault ja que ele elaborou ferramentas conceituais e metodo-logicas extremamente uteis para completar o panorama daAD. Nesse sentido, ressaltaremos a problematizacao, umadas mais importantes caracteristicas que, segundo Fou-cault, deve acompanhar essas ferramentas, embora ela naose restrinja ao discurso e a AD, fazendo parte de qualqueroutra tarefa que leve a producao de conhecimento.

5.1. A concepc^ao de discurso

Para Foucault, o discurso e algo mais que a fala, algomais que um conjunto de enunciados. O discurso e uma pra-tica, e como no caso de qualquer outra pratica social e pos-sivel defmir as condigoes de sua produgao. Diz Foucault:

Se renunciara, portanto, a ver no discurso um fenomenode expressao, a traducao verbal de uma sintese efetuadapor outra parte; ao contrario, se buscara nele um campode regularidade para varias posigoes de subjetividade. Odiscurso assim concebido nao e a manifestagao, majes-tosamente desenvolvida, de um sujeito que pensa, queconhece e que o diz: e, ao contrario, um conjunto ondee possivel determinar a dispersao do sujeito e sua des-continuidade consigo mesmo. E um espago de exteriori-

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dade onde se desenvolve uma rede de ambitos distintos"(Foucault, 1969:90).

Todo discurso tern um contexto de producao. Essecontexto e a forma?ao discursiva. Foucault a concebe comoum conjunto de relates que articulam um discurso, cujapropriedade definitoria e a de atuar como regulamenta-coes da ordem do discurso atraves da organizaQao de es-trategias, permitindo a colocacao em circulacao de deter-minados enunciados em detrimento de outros, paradefmirou caracterizar um determinado objeto, etc. Nas palavrasde Foucault, uma "formacao discursiva" e:

um conjunto complexo de relacoes que funcionam comoregras: prescreve o que deveria ter sido posto na rela9ao,em uma pratica discursiva, para que essa se refira a talou qual objeto, para que ponha em jogo tal ou qual enun-ciado, para que utilize tal ou qual conjunto, para que or-ganize tal ou qual estrategia. Definir, em sua individua-lidade singular, um sistema de formacao, portanto, e ca-racterizar um discurso ou um grupo de enunciados pelaregularidade de uma pratica (Foucault, 1969:122-123).

Portanto, os discursos sao praticas sociais. E verdadeque, a partir de Foucault (1969), nao se falara mais tantode discursos e mais de praticas discursivas. For praticas dis-cursivas Foucault compreende regras anonimas, constitui-das no processo historico, ou seja, determinadas no tempoe delimitadas no espaco, que, em uma epoca concreta e emgrupos ou comunidades especificas e concretas, vao definin-do as condigoes que possibilitam qualquer enunciacao.

Em nenhum momento Foucault nega que os discursosestejam formados por sinais. Apesar disso, nega que osdiscursos so se sirvam dos sinais para mostrar ou revelarcoisas. Os discursos fazem algo mais que utilizar sinais, eisso os torna irredutiveis a lingua e a palavra (Foucault,1969). Esse sair da prisao dos sinais, esse tratar de desco-

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2. A linguagem nas ciencias sociais...

brir o que ha alem da utilizacao de sinais e precisamenteuma das tarefas que Foucault realiza em seu trabalho ar-queologico. Com maior precisao, a tarefa que deve serproposta com o discurso e que consiste, simultaneamente,do problema a ser resolvido e da estrategia a adotar, deve-ria consistir em tratar os discursos como praticas que for-mam sistematicamente os objetos de quefalam (Foucault1966) e nao mais considerar os discursos como conjuntosde sinais ou elementos sigm'ficativos que sao a representa-cao de uma realidade.

Esse tipo de conceitualizacao do discurso da um senti-do diferente a sua analise. Com efeito, a Analise do Dis-curso da perspective foucaultiana tambem e uma pratica.E uma pratica que permite desmascarar e identificar outraspraticas discursivas. E e tambem, e sobrerudo, umamanei-ra de transforma-las:

As positividades que tentei estabelecer nao devem sercompreendidas como um conjunto de determinasoes quese impuseram do exterior ao pensamento dos individu-os, ou que o habitavam no interior como que por anteci-pa9ao; ao contrario, constituem o conjunto das condi-coes segundo as quais exercemos uma pratica, segundoas quais essa pratica d£ lugar a uns enunciados parcial outotatmente novos, segundo as quais, enfim, pode ser mo-dificada. Trata-se menos dos Hmites colocados a inicia-tiva dos sujeitos que do campo em que se articula (semconstituir seu centro), das regras que utiliza (sem que astenha inventado ou formulado), das rela^oes que Ihe ser-vem de apoio (sem que ela seja seu resultado ultimo ouseu ponto de convergencia). Trata-se de fazer apareceras praticas discursivas em sua complexidade e na sua es-pessura, mostrar que falar e fazer alguma coisa, algumacoisa diferente de expressar o que se pensa, traduzir oque se sabe, distinto de por em jogo as estruturas de umalingua; mostrar que agregar um enunciado a uma seriepreexistente de enunciados e fazer um gesto complicadoe custoso, que implica algumas condicoes (e nao somen-

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te uma situa9ao, um contexto, uns motives) e que com-porta algumas regras (diferentes das regras logicas e lin-guisticas de construcao); mostrar que uma mudan^a, naordem do discurso, nao pressupoe "ideias novas", umpouco de invetHpao e de criatividade, uma mentalidadedistinta, e sim algumas transforma9oes em uma pratica,eventualmente nas praticas que dela se aproximam e emsua articula9ao comum. Nao neguei, longe disso, a pos-sibilidade de mudar o discurso: apenas tirei dele o direi-to exclusive e instantaneo a soberania do sujeito (Fou-cault, 1969: 350-351).

O discurso e uma pratica articulada com outras prati-cas tambem emolduradas na ordem da capacidade discur-siva. Discursos relacionados com outros discursos que seretroalimentam, que se interpelam, que se interrogam; dis-cursos aos quais surpreender, descobrir e saquear; discur-sos produtores e solapadores de outros discursos; discursosque se transformam, mas aos que tambem e posslvel trans-formar. Embora, isso sim, a transforma9ao do discurso sejauma transformacao na ordem do discurso, o que nao deveser interpretado como novidade ou criatividade atraves denovas contribuicoes ou revisao do existente, e sim comoas transformacoes que se produzem na pratica discursi-va. Transforma9oes nos discursos, mudancas do discurso,mas sempre compreendidos como mudanpas e transforma-9oes nas praticas, nunca como a transforma9ao promovi-da por um sujeito que decide, prescreve, executa e orienta aordem do discurso.

Com efeito, os discursos nao emanam do interior de su-jeitos, nem tampouco sao uma inocula9ao ideologica quedetermine o pensamento desses mesmos sujeitos. Os dis-cursos articulam o conjunto de condicoes que pemiitemas praticas: constituent cenarios que passam a facilitar oua dificultar as possibilidades, que fazem surgir regras e man-tern redoes. Defmitivamente, as praticas discursivas dei-

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2, A linguagem nas ciencias socials...

xam claro que falar nao so e algo mais como tambem ealgo diferente de exteriorizar um pensamento ou descre-ver uma realidade: falar e fazer algo, e criar aquilo de quese fala, quando se fala.

5.2. Problematizagao

A problematiza9ao e urn termo que sintetiza o conviteque Michel Foucault faz para darmos a produ9ao do co-nhecimento e do saber um carater transformador e liberta-dor. A problematiza9ao refere-se a totalidade de praticasdiscursivas e nao discursivas que introduz alguma coisano jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como um ob-jeto de pensamento. Porem, mais que tudo, e um metodo eum processo de pensamento. A problematiza9ao poe emdiivida tudo aquilo que se presume ser evidente ou bom,questiona o que esta configurado como inquestionavel, du-vida daquilo que e indubitavel. Foucault levou esse meto-do ao extreme ao problematizar o conceito e o exerciciodo poder, a sexualidade e a Iiberta9ao sexual.

Problematizar nao e somente - seria demasiado facil -conseguir que o nao problematico se torne problemati-co, e algo ainda muito mais importante do que isso, por-que problematizar e tambem, e principalmente, conse-guir entender como e por que alguma coisa adquiriu umstatus de evidencia inquestionavel, como e que algo con-seguiu se instalar, se instaurar, como a-problematico. Naproblematizagao o fundamental e desvendar o processoatraves do qual alguma coisa se constituiu como obvia,evidente e certa (Ibanez, 1996: 54).

A aplica9ao pratica da problematiza9ao mostra em quesentido e possivel orientar e influenciar uma pratica de pro-dugao de conhecimento social, incluindo, especificamen-te, a AD. Em prirneiro lugar, ela deve ser levada em contana abordagem e no planejamento da pratica investigado-ra, sobretudo o convite a problematiza9ao. E, em segundo

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lugar, ela constitui uma forma altemativa do estudo daspraticas sociais atraves de uma AD, no sentido de expan-dir seu campo de agao para mais alem de um conhecimen-to daquele mundo ou daqueles mundos que a linguagemconstroij e dos efeitos provocados por qualquer praticadiscursiva. Um campo no qual o relevante e a diregao quequeremos induzir na transformagao que toda a agao dis-cursiva e toda a agao de analise discursiva terao que pro-vocar necessariamente.

Para terminar, daremos enfase a manutengao de umacerta posicao e uma certa inclinagao a que nos convida-va Foucault:

A curiosidade e um vicio que foi estigmatizado seguida-mente pelo cristianisrao, pela filosofia e ate mesmo poruma certa concep?ao da ciencia. Curiosidade, futilidade.No entanto, eu gosto da palavra curiosidade; ela me su-gere uma coisa totalmente diferente: evoca o "cuidado",evoca a solicitude que se tern com aquilo que existe e po-deria existir, um sentido agugado do real, mas que nuncase imobiliza nele, uma disposicao para encontrar o queha de estranho e singular a nossa volta, uma certa obsti-nagao em desfazer-nos de nossas familiaridades e mirarde outra maneira as mesmas coisas, um certo ardor paracaptar o que sucede e o que passa, uma desenvoltura di-ante das hierarquias tradicionais entre o importante e oessencial (Foucault, 1994: 222).

6. SlnteseNeste capitulo examinamos alguns dos rundamentos

que servem de base ao papel que a linguagem tern atual-mente nas ciencias sociais. A "capacidade linguistica" euma caracteristica da comunicagao humana, sem duvida amais genuina, mas foi nossa intencao mostrar aqui queessa caracteristica nao e somente uma caracteristica dosseres humanos como individuos singulares, mas tairibemdos processos sociais.

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2. A linguagem nas ciencias sociais...

O papel da linguagem nas ciencias sociais foi reconhe-cido inicialmente quando se percebeu que leva-la em con-sideracao poderia ter um grande interesse metodologicopara o desenvolvimento da ciencia e do pensamento so-ciais. Naquele momento, aproveitaram-se das experien-cias acumuladas da linguistica e dos estudos da comunica-930 para completar, e as vezes substituir, o arsenal de tec-nicas e procedimentos metodologicos disponiveis. Surgeassim o uso de metodos como a Analise de Conteudo (so-bre o qual apenas mencionarnos sua existencia) e as variasmodalidades da Analise do Discurso que serao desenvol-vidas no proximo capitulo.

O argumento que desenvolvemos no capitulo foi queaquilo que teve inicio sendo, presumivelmente, um me-todo, ou seja, uma aplicagao dos conhecimentos sobre alinguagem a investiga^ao de processos sociais, acabou seconvertendo em um conjunto de perspectivas genuinas,que ajudaram a transformar nossa concep9ao dos propriosprocessos sociais e da maneira de aborda-los.

Em primeiro lugar, aludimos ao giro linguistico, temaamplamente desenvolvido no capitulo com o mesmo nome,e sintetizamos suas consequencias para esse processo. Aconsequencia principal do giro linguistico nesse terrenofoi dar a linguagem cotidiana a mesma competencia dalinguagem formal por ter capacidade suficiente para expli-car a realidade, justamente por haver negado qualquerpretensao de representatividade e de ter enfatizado o ca-rater construtivo de toda a ac.ao linguistica. Outra conse-quencia essencial foi a de permitir a considera9ao de todaagao social em igualdade de condigoes com qualquer ou-tra ao confirmar que toda enunciagao e uma agao em senti-do pleno.

Em segundo lugar, nos referimos a "Teoria dos atos dafala". Suas consequencias principals se originampelo fato

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de que essa teoria detalhou a maneira como a fala e umaapao de pleno direito. Nesse sentido ela operacionaliza napratica o anti-representacionalismo para confirmar o cara-ter constitutive de cada ato de fala. Uma de suas principalsconsequencias foi, de um lado, possibilitar a conceituali-za9ao da linguagem como algo mais que uma janela deacesso a atividade mental; e, de outro, analisarpormenori-zadamente as agoes de fala como elementos constitutivosda interacao. Ou seja, essa teoria permite inserir a lingua-gem no proprio interior dos processes sociais que interes-saram e interessam as ciencias sociais.

Em terceiro lugar, fizemos uma apresentacao de al-guns dos elementos principals da Pragmatica. A principalconsequencia da Pragmatica foi deixar claro que o signifi-cado e a criacao de sentido proprio da atividade humananao e unicamente um processo resultante da constituicaode cada sinal linguistico, e sim da interacao e do contextono qual a linguagem se desenvolve. Transmitir um signifl-cado e compreende-lo e, do ponto de vista da Pragmatica,algo mais que utilizar palavras.

Em quarto lugar, aludimos a ETN. Essa corrente so-ciologica interessada nos processos microssociais veiocompletar as contribuicoes anteriormente assinaladas deta-Ihando os processos basicos segundo os quais nos cons-truimos o mundo atraves da a?ao.

Finalmente, introduzimos as contribuicoes de Fou-cault tanto para os processos de investigagao como dire-tamente para a concepcao do discurso e da ADF. AposFoucault, pode-se considerar estabelecido que o discurso euma pratica social e, o que e ainda mais interessante, que co-mo pratica social incorpora elementos constitutivos quenao sao puramente linguisticos ja que esses sao os elemen-tos que, condicionados por um contexto historico particu-

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2. A linguagem nas ciencias sociais...

lar e um inventario de regras socialmente elaboradas, cons-tituem os objetos sobre os quais falam.

Como enfatizamos no inicio, seria possivel identiflcaroutros fundamentos para explicitar o papel da linguagemnas ciencias sociais. No entanto, os que aqui assinalamosestao indubitavelmente presentes, totalmente ou em parte,em muitas das correntes que sob o rotulo de "discursivas"estao atualmente em atividade nas ciencias sociais. Noproximo capitulo veremos uma modalidade de cada umadelas e, alem disso, as ilustraremos com exemplos de estu-dos especificos.

Glossario

Para os verbetes "atos de linguagem", "performativi-dade", "pragmatica" e "proposi^ao", ver o glossario do ca-pitulo 1.

Accountability: propriedade das apoes que as fazem visi-velmente racionais e acessiveis ou descritiveis."Fazer o mundo visivel e fazer minha acao compreensi-vel ao descreve-la, porque dou a entender seu sentidoao revelar os procedimentos que emprego para expres-sa-la" (Coulon, 1987:49).

Ato ilocuciondrio (ilocutivo): ato que se realiza ao dizer al-guma coisa.

Ato locuciondrio (locutivo): 3930 da fala que produz signi-ficado.

Ato perlocuciondrio (perlocutivo): ato de fala que produzefeitos ou consequencias.

Competencies, conceito-chave da etnometodologia que serefere a idoneidade de uma pessoa membro de um gru-po no uso e gestao da linguagem. Capacidade de atuar,dispor de conhecimentos, metodos e estrategias para

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adaptar-se e se desenvolver no contexto social em quese vive.

Dictico: assinalador. Marca as pessoas que falam (eu, tu),os objetos do ambiente (este, esse...), o lugar do qual sefala ou de onde se fala (aqui, ali...) e o tempo em queacontece a acao ou o tempo a que se refere a narragao(hoje, amanha...).

Dixis: elemento gramatical que codifica a relacao entre oidioma e o contexto de uso."O termo 'dixis' se origina da palavra grega para assina-lar ou indicar, sendo exemplos prototipicos ou princi-pais o uso dos demonstratives, os pronomes de primeirae segunda pessoa, o tempo verbal, adverbios especificosde tempo e lugar como "agora" e "aqui", e varies outrostra?os gramaticais ligados diretamente as circunstanciasdaenunciasao [...]. A dixis se ocupa de como os idiomascodificam ou transformam em gramatica elementos docontexto ou de evento da fala, tratando tambem de comoa interpretagao dos enunciados depende da analise docontexto da comunicagao" (Levinson, 1983: 47).

Dixis do discurso: expressoes de um enunciado para re-ferir-se a alguma parte anterior ou posterior do mesmoenunciado.

Dixis social: aspectos da linguagem que codificam as iden-tidades socials dos participantes ou a relacao social exis-tente entre eles.

Etnometodologia: corrente da sociologia que estuda as acoescotidianas e os fenomenos, problemas, resultados e me-todos que essas agoes abrangem."A emometodologia tem como objeto de estudo empiri-co as atividades praticas, as circunstancias de cada dia,o raciocinio sociologico que normalmente desenvolve-mos nos assuntos ordinaries" (Wolff, 1979: 111).

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2. A linguagem nas ciencias socials...

Implicatura: significado adicional comunicado pelo fa-lante e inferido pelo ouvinte.

Indexicabilidade: conceito-chave da emometodologia quese refere a propriedade da linguagem segundo a qual osignificado dessa e sempre dependente do contexto desua propria produgao.

Reflexividade (Reflexivity): propriedade das acoes segun-do a qual as praticas descrevem e constroem ao mesmotempo."As descricoes do social se convertem, no momento deexpressa-las, em partes constitutivas daquilo que des-crevem" (Coulon, 1987: 44).

Teoria dos atos da fala: teoria desenvolvida por John Aus-tin que considera que falar nao serve unicamente paradescrever o mundo, mas tambem para fazer coisas.

Leituras recomendadas

AUSTIN, J.L. (1962). Como hacer cosas conpalabras. Bar-celona: Paidos [1998].

Austin deu uma serie de conferencias na Universidade deHarvard em 1995 que foram posteriormente publicadasem 1962. Nessas conferencias ele esbogou a teoria dosatos da fala. Trata-se, portanto, de um texto basico.

COULON, A. (1987). La etnometodologia. Madri: Cate-dra. [1988].E uma excelente introdu9ao a etnometodologia que tema vantagem de ser um porta-voz fiel das ideias de Gar-flnkel e de ser tambem conciso e ameno. No texto deColon sao detalhadas, com inusitada claridade, tanto ascaracteristicas da etnometodologia quanto suas origens,precursores, praticas investigativas e, ate mesmo, as cri-ticas inais comuns que recebeu.

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ESCANDELL VIDA, M.V. (1996). Introduction a lapragmatica. Barcelona: Ariel.

Um excelente manual de pragmatica linguistica.FOUCAULT, M. (1966). Laspalabrasy las cosas. Madri:

Siglo XXLE um livro seminal para entendermos a historia concei-tual em que se baseia nossa visao do mundo, da socieda-de e dos seres humanos na epoca contemporanea. Alemdisso, destaca-se por deixar claro, de uma forrria magis-tral, o papel que as ciencias humanas tiveram na histo-ria. Como foi dito na apresentagao da edi?ao espanhola"o rigor, a originalidade e a inspiragao de M. Foucaultnos trazem um olhar radicalmente novo sobre o passadoda cultura ocidental e uma concep9ao mais lucida daconfusao de seu presente".

— (1969). La arqueologia del saber. Madri: Siglo XXI[1978].Esse texto se apresenta como uma "caixa de ferramentas"para usar o termo que o proprio autor cunhou para refe-rir-se a sua proposta metodologica. E um texto crucialpara entender o papel do discurso nas ciencias sociais.

RORTY, R. (org.) (1967). The Linguistic Turn. Chicago: UCP.Ern 1967, Rorty recopilou um conjunto de ensaios quedebatiam a linguagem e a filosofia da linguagem a partirde multiplas perspectivas e posicoes. E urn texto de ma-xima importancia. Em castelhano, so a Introdufao estadisponivel em RORTY, R. (org.) (1967). El giro linguis-tico. Barcelona: Paidos/ICE-UAB [1990].

Bibliografia

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BARDIN, L. (1977). Andlisis de contenido. Madri: Akal.

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CASAMIGLIA, H. & TUSON, A. (1999). Las cosas del de-cir — Manual de analisis del discurso. Barcelona: Ariel.

COULON, A. (1987). La etnometodologia. Madri: Cate-dra[1988].

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•pesu'Si seOk Jpssi- S^SS^P-r-3 *3 «?&•'* •**

Este capitulo esta dedicado a Analise do Disturso corhometodo e como perspectiva nas ciencias sociais. Ao

longo de suas paginas apresentaremos a Analise do Dis-curso como um meio de colocar em pratica o papel da lin-guagem como eixo de compreensao e estudo dos proces-sos sociais. Atraves das varias sessoes que o configuram,mostraremos e justificaremos por que a Analise do Dis-curso constitui uma das areas que melhor representa a in-clusao da linguagem na compreensao desses processos. Noentanto, e precise, ja neste preambulo, advertir que Dis-curso e Analise do Discurso nao sao termos univocos, esim que ambos tem inumeros sentidos diferentes em cadauma de suas variedades, tradi9oes e praticas.

O capitulo foi estruturado em cinco partes. Na primei-ra, apresentamos as varias orientacoes e tradiQoes da Ana-lise do Discurso, com o objetivo de mostrar a variedade deposi?6es que compartilham esse cenario e para que se pos-sa chegar a identificar varias modalidades da Analise doDiscurso e as caracteristicas basicas de cada uma delas. A

* Universidade Autonoma de Barcelona.

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selecao foi feita considerando-se apenas as modalidadesque estabeleceram umdialogo interdisciplinar (a sociolin-guistica interacional, a etnografia da comunicacao, a ana-lise conversational, a analise critica do discurso e a psico-logia discursiva). Com isso, a inten9ao era deixar claro,identificar e mostrar como a interdisciplinaridade da senti-do e identidade a Analise do Discurso.

Na segunda parte, apresentamos e examinamos variasconcep9oes de discurso, reafirmando, assim, a caracteris-tica plural presente nas varias praticas. Como o reconhe-cimento da diversidade nao deve excluir uma escolha, ofe-recemos uma defini9ao aproximada de "discurso" e de "ana-lise do discurso" que, alem de adotar as premissas principalsque sao utilizadas nessa disciplina, sustenta os fundamen-tos descritos no capitulo anterior. A premissa que serve debase a essa defmi9ao aproximada e a importancia de deli-mitar os componentes basicos que uma defmicao deve in-corporar, nao com o fim de identificar uma essencia ou es-tabelecer uma distin9ao entre o discursive e o nao discur-sivo e sim como uma forma de deixar claro, discursiva-mente, que um discurso constroi aquilo sobre o qual fala.Da mesma forma e em conformidade com o que foi ditoantes, trata-se tambem de poder optar e defender, com anecessaria argumenta9ao, uma concepgao de discurso es-pecifica, extraida de um ample repertorio.

Com esse mesmo interesse em manter aberta e tornarvisivel a maior quantidade possivel de concep9oes, masexplicitando claramente nossas preferencias, detalhamos,na terceira parte, a praxis da Analise do Discurso, seguin-do duas tradi9oes particulars: a anglo-saxa e a francesa.Da mesma forma, abordamos a explica9ao sobre o que sepode fazer com um texto na pratica: a definicao do proces-so social que vamos analisar, a selecao do material rele-vante para a analise seguindo os criterios de representati-

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3. A analise do discurso nas ciencias socials...

vidade e a produgao de efeitos, a materializa9ao do cor-pus, e um detalhe de ferrarnentas especificas de analisecomo a identifica9ao de "atos de fala", implicaturas, estru-turas retoricas, repertorios interpretativos e polaridades. Aintencao nessa parte e proporcionar uma introdu9ao docu-mentada e fundamentada a pratica da analise do discurso.

Na quarta e ultima parte, debateremos a viabilidade daAnalise do Discurso como uma perspectiva nova e frutife-ra das ciencias socials. Nesse sentido, oferecemos uma re-flexao sobre as implicates da pratica analitica discursiva,sobre a importancia da consideragao do contexto socialem que se constroi o discurso e, finalmente, sobre o papeldo discurso na constru9ao, manuten9ao e mudan9a da es-trurura social. Todos esses aspectos deverao ter como re-sultado o conhecimento e a identificacao do alcance e doslimites da Analise do Discurso como pratica.

Consideracoes preliminares

Originalmente a expressao "analise do discurso" de-signava uma area da linguistica. No entanto, apesar de suaorigem, a AD nao e um patrimonio exclusive da linguisti-ca eja contou com as contribui9oes de outras discipli-nas academicas. Com efeito, a antropologia, a sociologia,a psicologia, a comunicagao, a filosofia, etc. todas fizeramsuas contribui9oes e desenvolveram metodos especificosde analise (Van Dijk, 1985).

Essa diversidade de contribuigoes gerou atribui9oes efilia9oes disciplinares heterogeneas, que se traduziram empraticas muito variadas. Essas, por sua vez, tiveram comoresultado concep9oes tambem diferentes - muito diferen-tes umas das outras - embora provavelmente com um de-nominador comum: a consideragao da analise do idiomaem seu uso, seja esse falado ou escrito.

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Assim, por exemplo, Stubbs (1983: 11), um dos maisimportantes especialistas linguisticos em AD, afirma que:

A Analise do Discurso e um termo muito ambiguo. Vouutiliza-lo neste livro para referir-me principalmente aanalise linguistica do discurso, falado ou escrito, que seproduz de modo natural e e coerente. Em linhas gerais,refere-se a intengao de estudar a organizacao da lingua-gem alem da oracao ou da frase e, por conseguinte, deestudar unidades linguisticas maiores, como a conversa-930 ou o texto escrito. Disso se deduz que a Analise doDiscurso tambem se relaciona com o uso da linguagemem contextos socials e, concretamente, com a interagaoou dialogo entre os falantes.

Brown & Yule (1983: 12), outros dois pioneiros da ADno interior da linguistica, afirmam nesse mesmo sentido:

[...] nosso interesse primordial e o objetivo tradicionalda linguistica descritiva: oferecer uma explicagao decomo as formas linguisticas sao usadas na comunicacao.

Ao que acrescentam (1983: 19):A analise do discurso e, por necessidade, a analise doidioma em seu uso. Como tal, nao se pode limitar adescri?ao de formas linguisticas independentemente dospropositos e das funsoes as quais essas formas estao des-tinadas.

Na primeira parte deste capitulo apresentaremos algu-mas abordagens a AD e as diferentes definicoes de "dis-curso" que sao utilizadas nas varias orientagoes e tradi-goes. Mais a frente apresentaremos uma modalidade espe-cifica da AD com o objetivo de incorporar aspectos de va-rias dessas tradigoes e concepgoes a fim de proporcionaruma forma de aproximagao a realidade social, tal comopretendem as ciencias sociais.

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3. A analise do discurso nas ciencias sociais...

1. As varias orientates e tradigoes daAnalise do Discurso

Existem muitas razoes diferentes para que o discur-so tenha se convertido em um objeto de analise, de estu-do e de debate nas ciencias sociais. Entre elas, podemosdestacar tres que, por sua vez, respondem a razoes de or-dem diferente.

Primeiramente, existem razoes de tipo teorico e episte-mologico. Como ja foi arnplamente discutido no capitulo"O giro lingiiistico", nao ha duvida de que os debates nointerior do giro linguistico exerceram uma enorme influen-cia sobre o conjunto das ciencias sociais e humanas.

Em segundo lugar, a transformagao da linguistica des-de sua enfase inicial no estudo da linguagem como pro-priedade dos seres humanos ate sua orientagao para a ana-lise do uso da linguagem nos varios contextos relacionaise de comunicacao tambem influiu enormemente sobre asoutras ciencias humanas e sociais que enfrentam os mes-mos processes a partir de oticas distintas.

Por ultimo, a relevancia que os meios de comunicacaoadquiriram em nosso tempo e, em particular, as novas tec-nologias de comunicacao, colocam em evidencia a centra-lidade desses processes na constituicao, manutencao e de-senvolvimento de nossas sociedades.

Historicamente, as origens desse processo podem re-montar a decada de sessenta do seculo XX. Na Franca, porexemplo, na segunda metade dos anos sessenta, corne-ga-se a esbocar uma tradicao sob esse rotulo, fortemen-te influenciada pelo estruturalismo, pelo marxismo e pelapsicanalise (Pecheu, 1969; Maingueneau, 1987). Dames-ma forma, no ambito anglo-saxao, inicia-se nessa epoca a"Etnografia da comunicacao" (Gumperz & Hymes, 1972;Hymes, 1974).

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Como vimos nos capitulos anteriores, apartir dos anos1970, as concepcoes pragmaticas e interacionistas vao adqui-rindo uma importancia maior, que acabara por estabele-cer a ideia de que a palavra e uma forma de acao, acen-tuando assim a dimensao interativa da comunicacao ver-bal. No entanto, e durante a decada de 1980, quando proli-feram defmitivamente os trabalhos que se autodenomi-nam de "analise do discurso", que, em sua diversidade, es-ses trabalhos representam formas de AD dificeis de defi-nir, ja que se inserem em varias disciplines, desde a lin-giiistica ate a psicologia, a sociologia, a antropologia, a his-toria, etc. (Schiffrin, 1994).

Schiffrin afirma que existem varias tradicoes basicasna AD: a Teoria dos Atos da Fala, a Sociolinguistica In-teracional, a Etnografia da Comunicacao, a Pragmatica, aAnalise Conversacional e a Analise da Variacao.

Obviamente, essas tradicoes nao sao as unicas, e e pos-sivel que a lista pudesse ser ampliada com a inclusao deduas outras que tern, hoje, uma projecao incontestavel: aAnalise Critica do Discurso e a Psicologia Discursiva.

Nesta apresentagao vamos deixar de lado a "Teoriados atos da fala" e a Pragmatica por ja terem sido exami-nadas no capitulo "A linguagem nas ciencias sociais"como parte da base teorica e metodologica da AD. Porisso, neste exame das tradigoes da AD nao as menciona-remos, embora sem esquecer de sua importancia. Faremoso mesmo com a Analise da Varia?ao que, embora ten-do como tema central o aspecto interessante da variacaoe da mudanpa linguistica, de todas as tradifoes e a unicaque se desenvolveu unicamente no interior da linguis-tica, quase sem nenhum contato com outras areas dasciencias sociais, exceto, talvez, com alguma modalida-de da Sociolinguistica.

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3. A analise do discurso nas ciencias sociais...

As tradic-oes'que iremos descrever brevemente sao: a)a Sociolinguistica Interacional; b) a Etnografia da Cpmu-nicagao; c) a Analise Conversacional; d) a Analise Cri-tica do Discurso (daqui em diante, ACD); f) a PsicologiaDiscursiva.

1.1. A sociolingliistica interacional

Essa tradi9ao de AD se origina da antropologia, da so-ciologia e da linguistica. O motive para essa triplice "ma-ternidade" esta em seu interesse pela cultura, pela socieda-de e pela linguagem. A microssociologia de Goffman teveuma grande influencia nessa perspectiva por ter situado alinguagem nas circunstancias concretas da vida cotidiana.No entanto, Gumperz (1982) talvez seja seu representantemais proeminente.

Examinando detalhadamente as contribuic.6es dos doisautores acima e possivel identificar, como faz Schiffrin(1994) com grande perspicacia, a simbiose entre a pers-pectiva microssociologica de Goffinan e as propostas daSociolinguistica de Gumperz. Especialmente relevante e aenfase que ambos autores dao a linguagem e ao contextoem toda sua obra. Tanto para Goffinan como para Gum-perz, a linguagem desempenha um papel central, nao socomo mero meio de comunicayao, mas tambem pela in-fluencia que exerce na construcao de significados, em re-lagao ao contexto em que e utilizada, e pelas aberturas efechamentos que sua utilizapao possibilita. Com efeito,ambos autores partem do principio que o contexto e a di-mensao determinante na constru9ao de significados e re-conhecem a natureza dependente (indexada) da linguagem.Assim, Gumperz sublinha como o ato de compreender asintenfoes de um falante ou a "simples" interpreta9ao deuma informa9ao ou de uma comunica9ao sao inseparaveisdo contexto ern que foram produzidas. De outra perspec-

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tiva, mas insistindo na mesma consideracao contextual,Goffman observa como as interasoes e as institui^oes des-crevem uma moldura contextual que propicia interpreta-9oes e gera significados.

A obra de Gumperz tern como foco a maneira como asinterpreta?6es do contexto sao cruciais para a comunica-9ao da informafao e para que a outra pessoa possa com-preender a intencao e/ou a estrategia discursiva do falan-te; a obra de Goffman tern como foco a maneira como aorganiza?ao da vida social (em instituipoes, intera96es,e assim por diante) fornece contextos atraves dos quaistanto o sentido da conduta do self quanta da comunica-cao com o outro torna-se compreensivel (tanto para osco-presentes na inter^ao como para analistas externos).O trabalho de ambos estudiosos tambem da uma visaoda.linguagem como sendo indexada a urn mundo social:para Gumperz, a linguagem e" um indice para os entendi-mentos do pano de fundo cultural que fornecem um co-nhecimento oculto - mas ainda assim essencial; paraGof&nan, a linguagem e apenas um de um numero de re-cursos simbolicos que fornecem um indice para as iden-tidades e relacionamentos sociais que estao sendo cons-truidos continuamente durante a interacao. Finalmente,ambos estudiosos permitem que a linguagem tenha urnpapel mais ativo na criacao de um mundo do que talvezaquele que e sugerido pelo termo "indice"; a ideia que"dicas" da contextualizacao podem alterar nao so o sig-nificado de uma mensagem mas a propria moldura departicipacao da conversa — de tal maneira que tanto in-tencoes diferentes como selves e "outros" diferentes po-dem ser exibidos atraves de mudan9as sutis na maneiraem que essa moldura fornece um caminho para a comu-nica^ao self-outro - e basicamente semelhante nos doisestudiosos (Schiffrin, 1994: 105-106).

O tema preferido nessa tradicao foi a analise de situa-9oes de intera?ao marcadas por uma situacao assimetri-ca dos/as participantes. Ou seja, situagoes nas quais os/asagentes sociais narelagao sao membros de culturas distin-

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3. A analise do discurso nas ciencias sociais...

tas, de grupos socioculturais diferentes, de status diferen-te, etc. e dos quais pode-se esperar sistemas de valores ecrencas opostas ou distantes que compreendem fonnas dea?ao e de interagao tarnbem diferentes.

1.2. A etnografia da comunicagao

A etnografia da comunica9ao e uma abordagem aodiscurso que se baseia na antropologia e na linguistica. Ainten9ao da etnografia da comunica9ao e tao ampla quan-to a da propria antropologia, mas seu principal foco deinteresse e a competencia comunicativa. O que esse tipode etnografia busca e compreender como o conhecimen-to social, psicologico, cultural e linguistico governa o usoapropriado da linguagem (Schiffrin 1994). A etnografiada comunica9ao entende que a competencia linguisticae apenas mais uma parte dos recursos que e necessariomobilizar para a comunicagao, e a chamam de "competen-cia comunicativa".

Hymes (1974) foi quem deu maior estimulo aessacor-rente e quem introduziu o conceito de "competencia co-municativa". Com efeito, esse conceito origina-se do con-ceito formulado por Chomsky em sua gramatica generati-va para designar a aptidao que os falantes de um idiomatern para produzir e compreender um numero ilimitado defrases que ate entao eram ineditas para eles/as. A essa ideia,Hymes acrescentou um aspecto pragmatico; ou seja, a ap-tidao para administrar, em um contexto particular, as re-gras que permitem que uma pessoa interprete o significa-do do enunciado.

Mais recentemente, tornou-se comum a denomina9ao"antropologia linguistica" (Duranti, 1997) que se definecomo o estudo da linguagem como recurso da cultura e dafala como pratica cultural. Mais concretamente, a "antro-

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pologia linguistica" pode ser caracterizada como uma areafundamentalmente interdisciplinar que:

baseia-se e se desenvolve sobre metodos que pertencema outras disciplinas, especialmente a antropologia e alinguistica, com o fun geral de proporcionar uma com-preensao dos varies aspectos da linguagem em seu papelde moldura de praticas culturais, isto e, como um siste-ma de comunica9ao que permite as representa9oes in-terpsicologicas (entre individuos) e intrapsicologicas(no mesmo individuo) da ordem social, e que contribuipara que as pessoas utilizem essas representacoes pararealizar atos sociais constituintes. [...] Os/as antropolo-gos/as linguisticos/as trabalham, sobre uma base etno-grafica, na producao de relates das estruturas linguis-ticas tal*como aparecem na intimidade de grupos hu-manos em um tempo e espaco determinados (Duranti,1997:21).

Em um nivel teorico, a principal contribui9ao da antro-pologia linguistica foi ter considerado a linguagem comoum conjunto de estrategias simbolicas que sao constitu-tivas da sociedade e que possibilitam a representacao demundos possiveis e reais a seus membros. No piano meto-dologico, sua contribui9ao foi a etnografia, ja que, comoforma de observapao participante, permite dar atencao aoselementos contextuais, historicos e culturais que susten-tam as intera9oes sociais significativas._,.

As vantagens que esse enfoque traz sao obvias, nao sopelos tratamentos que possibilita como tambem pela plu-ralidade tematica e a perspectiva inovadora que abre paraos antropologos e antropologas linguisticos. Com efeito,como indica Duranti (1997), o enfoque da etnografia dacomunica9ao permite estudar temas como as politicasda representa9ao, a conforma9ao da autoridade, a legiti-ma9ao do poder, a mudan9a social, as bases culturais doracismo e do conflito etnico, o processo de socializapao, a

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3. A analise do discurso nas cienrias sociais...

constni9ao social do sujeito, as emocoes, a rela9ao entre aa9ao ritual e as formas de controle social, o dominio espe-cifico do conhecimento e da cogni9ao, as politicas de con-sumo estetico, o contato cultural etc.

1.3. A analise da conversagao

A origem da analise da conversa9ao (a partir daqui,AC) esta nos enfoques da Sociologia da Situa9ao (Diaz,2001) e mais especificamente na etnometodologia (Gar-finkel, 1967). Como vimos no capitulo "A linguagem nasciencias sociais", a etnometodologia se interessa pelos meto-dos que os/as participantes em uma situa9ao social de intera-930 utilizam para interpretar e atuar no interior dos mundossociais que eles/as mesmos/as constroem em suas praticas.

A caracteristica distintiva dessa perspectiva, com rela-930 as outras modalidades da AD, e que as categorias daanalise devem ser, na medida do possivel, as mesmas queos participantes utilizam no momento de compreender aintera9ao. Nesse sentido, o importante para a AC e desco-brir como a sociedade esta organizada e como funciona apartir das proprias a$oes das pessoas que nela interagem.

A AC aborda a linguagem de uma maneira radical-mente diferente de outras perspectivas. Assim, por exem-plo, em outras abordagens linguisticas e sociologicas alinguagem e considerada como portadora de significadose ideias no sentido de que os/as falantes a codificam ouempacotam no interior das palavras, sem levar em consi-dera9ao outros aspectos da expressao tais como a entona-930, etc. Nesse sentido a AC oferece a vantagem de lidarcom os relates das pessoas em seu contexto, aceitando pie-nainente a importancia da mdexa9ao, tal como foi explica-da no capitulo anterior (Antaki, 1994).

A forma drastica do projeto de analise conversacional emuito clara. E unicamente atraves dos proprios meios

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dos participantes se organizarem - argumenta a analiseconversational - que encontraremos bases solidas paranossas afirmagoes analiticas. Aprimeira vista, isso pare-ce eliminar inumeras coisas com as quais os cientistassocials se sentem confortaveis. A mudanga de orien-tacao dos/as analistas para os/as participantes parecequestionar a habilidade dos/as cientistas sociais comohabeis leitores da mente comum e como experimenta-dores/as profissionais de suas proprias teorias sobre ela(Antaki, 1994: 187).

A AC estuda a ordem, a desordem e a organizagao daagao social cotidiana, captando o que dizem, contain oufazem as pessoas e, definitivamente, tudo aquilo tal e quale produzido pelos/as participantes em conversagoes. Nes-se sentido, a tarefa do analista da conversacao e identifi-car, descrever e estudar a ordem que se produz nas conver-sagoes. No entanto, e importante assinalar que a AC exa-mina a linguagem em uso e nao as pre-concepgoes ou es-quemas previos definidos pelos/as analistas.

De forma sintetica, as principals premissas da AC po-dem ser assim resumidas:

1) A ordem e uma organizagao produzida.2) A ordem e produzida pelas partes interessadas in situ.3) As partes se orientam para aquela ordem elas pro-prias; isto 6, essa ordem nao 6 a concepgao de urn analis-ta, nem o resultado do uso de algumas concepgoes teo-ricas pre-formadas ou pre-formuladas a respeito daquiloque a agao deve/tem que/deveria ser, ou baseada em afir-magoes que generalizam ou resumem sobre aquilo que aagao geralrnente/frequentemente/muitas vezes e.4) A ordem e repetivel e recorrente.5) A descoberta, descrigao e analise daquela ordem pro-duzida e a tarefa do analista.6) Questoes sobre a frequencia, a amplitude ou o nume-ro de vezes em que fenomenos especificos ocorrem de-vem ser abandonados se a intengao e descobrir, descre-ver e analisar as estruturas, a maquinaria, as praticas or-

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3. A analise do discurso nas ciencias sociais...

ganizadas, os procedimentos formais, as maneiras pelasquais a ordem e produzida.7) Estruturas de acao social, uma vez reconhecidascomo tal, podem ser descritas e analisadas em termosformais, ou seja, estruturais, organizacionais, logicos,sem conteudo ou tema, consistentes e abstratos (Psathas1995: 2-3).

Ao estudar a linguagem na pratica observam-se certasregularidades. A mais conhecida e a chamada turn-taking(tomara vez): emsituagoes diferentes, extraordinariamen-te cotidianas, os/as interlocutores/as facilmente manipu-lam sua conversa para que cada pessoa tenha sua "vez"de intervengao bem definida, cedendo o lugar a outra quese destaca no momento apropriado e continua a conversa.For exemplo:

A: "Oi, tudo bem?"

B: "Tudo otimo, e contigo?"

A: "Foi bom te ver".

A analise minuciosa desse tipo de regularidades per-mite conhecer a interagao social e como ela e organizada,mantida e administrada. O que as pessoas dizem e consi-derado nao como uma manifestagao direta de um conceitosimples ou nao ambiguo, e sim como um instmmento quepode movimentar a conversa e realizar certas tarefas so-ciais tanto ocultas como obvias. For exemplo, a frase "aporta esta aberta?" pode ser uma pergunta ingenua, mastambem pode ser uma indireta para que o/a interpelado/afeche a porta.

Essas caracteristicas, alem de outros aspectos comple-mentares como o alcance da AC na analise social, podemser vistas claramente no exemplo que Charles Antaki e Fe-lix Diaz apresentam no proximo capitulo.

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1.4, A Analise Critica do Discurso

Para sermos justos, seria preciso dizer que a AnaliseCritica do Discurso (daqui por diante, ACD) nao e exata-mente uma modalidade da AD e sim uma perspectiva dife-rente. Essa diferenga da-se sobretudo na maneira em queas duas confrontam a teoria e a analise. Com efeito, comoafirmam Rojo & Whitaker (1998), a ACD constitui umaestrategia para abordar os discursos segundo a qual a teo-ria nao pre-configura nem determina a maneira de enfocaras analises, nem delimita o campo da indagafao e da ex-ploracao. Ao contrario, a teoria e utilizada como uma cai-xa de ferramentas que permite formar e abrir novas vi-soes e novos enfoques e onde o/a analista se converteem artifice gra9as a seu envolvimento com aquilo que es-tuda. Obviamente, essas novas visoes, essas novas for-mas de indagar, essas novas formas de focalizar os obje-tos de estudo pressupoem uma mudan9a de perspectiva nainterrogasao, e pressupoem tambem prescindir da ideia deque tudo e dado, e, defmitivamente, a adocao de umapos-tura que problematize as questoes, permitindo assim abrirnovas perspectivas de estudo e fazendo surgir novos obje-tos de investiga?ao.

A ACD deu enfase ao estudo daquelas acoes sociaisque pomos em pratica atraves do discurso, como o abusodo poder, o controle social, a dominagao, as desigualdadessociais ou a marginalizagao e exclusao sociais.

Aqueles que adotam uma perspectiva critica tern a inten-9ao de deixar bem claro o papel-chave desempenhadopelo discurso nos processes atraves dos quais sao exer-cidas a exclusao e a dominacao, assim tambem comoa resistencia que os sujeitos oferecem contra ambas. Emais, os investigadores na ACD nao so consideram odiscurso como uma pratica social, mas tambem achamque sua propria tarefa - revelar como atua o discursonesses processes - constitui uma forma de oposicao e de

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3. A analise do discurso nas ciencias sociais...

social com a qual tenta-se despertar uma atitudecritica nos falantes, especialmente naqueles que se depa-ram, mais frequentemente, com essas formas discursi-vas de domina?ao. Trata-se, portanto, de incrementar a"consciencia critica" dos sujeitos com relatjao ao usolinguistico e, alem disso, de Ihes proporcionar um meto-do do tipo "faca-o voce mesmo", com o qual enfrentar aprodu9ao e a interpreta9ao dos discursos (Martin Rojo &Whittaker, 1998: 10).

Para a ACD, o discurso e sobretudo uma pratica social,ja que nao e contemplado como uma 'representa9ao' oureflexo dos processos sociais; ao contrario, seu caraterconstitutive e que e ressaltado. De acordo com isso, aACD e considerada uma "pratica tridimensional" (MartinRojo & Whittaker, 1998), no sentido de que a pratica ana-litica opera, simultaneamente, emtres dimensoes: a) o dis-curso enquanto texto (o resultado oral ou escrito de umaprodu9ao discursiva); b) o discurso como pratica discursi-va engastada em uma situa9ao social concreta; c) o discur-so como um exemplo de pratica social que nao so expressaou reflete identidades, praticas e redoes, como tambemas constitui e configura.

A ACD presume, tambem, que o discurso nao so estadetenninado pelas instituigoes e estrutura sociais, mas quee parte constitutiva delas. Ou seja, que o discurso constroio social (Fairclough & Wodak, 1997).

Ja que, no capitulo 6, Luisa Martin Rojo nos da umexemplo da ACD segundo as caracteristicas descritas aci-ma, nao daremos aqui mais detalhes de outros aspectosdesse tipo de analise.

1.5. A psicologia discursiva

Embora tenha o nome de "psicologia" essa tradi9aopode ser justificadamente considerada um movimento in-

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terdisciplinar. Ja que, no capitulo 5, Derek Edwards apre-senta as caracteristicas principals dessa perspectiva eilustra, com um exemplo, seu alcance no estudo de pro-cesses psicossociais, nao a apresentaremos detalhadamen-te neste capitulo.

Do ponto de vista da psicologia discursiva, a fala econstruida por atores e atrizes socials, razao pela qual a3930 que se desenvolve na fala (e obviamente, tambem naescritura) passa a ser considerada a medula que^articulaessa perspectiva. Com efeito, e na atencao a construgao doconhecimento no discurso que a psicologia discursiva fo-caliza seu interesse. Por isso, os psicologos e as psicologasdiscursivos/as tentam procurar explicar como se produz oconhecimento, como a realidade e o proprio processo deconhecer torna-se "legivel" e, finalmente, como se cons-tr6i a interpreta9ao da "realidade". Nesse sentido, o que ecurioso, tanto para os/as analistas como para os/as partici-pantes em uma relacao nao e a configuragao e articulacaodas redoes e sim a maneira como as intera9oes discursi-vas que instauram as relacoes criam e adquirem sentido. Eo fazem, nao por ser expressao de estados subjerivos dos/as falantes, e sim por sua construcao de uma situa9ao (eem uma situagao) que e onde se constroi o significado, osentido e sua interpreta9ao, na medida em que o que secompoe e uma acao social. Adotando a tradigao etnometo-dologica e os principios da AC, a posifao metodoI6gica dapsicologia discursiva enfatiza o exame das redoes e dascrengas na fala, tal e qual essa e usada pelos participantesem uma interagao social qualquer.

O foco da psicologia discursiva £ a orientafao a acao dafala e da escrita. Tanto para os participantes como paraos analistas, a questao primordial sao as acoes sociais,ou o trabalho interacional, que esta sendo realizado nodiscurso. Mas, ao inve"s de concentrar-se nas preocupa-9oes norrnais da analise social interacional, tais como re-

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3. A analise do discurso nas ciencias sociais...

lacionamentos sociais e intergrupais sao administrados(atraves da maneira como as pessoas se dirigem umas asoutras, acomoda^ao da maneira de falar, etc.) ou como"os atos da fala" podem ser identificados, o interesseprincipal (neste livro) e epistemologico. Estamos preo-cupados com a natureza do conhecimento, da cognicao eda realidade: com a maneira como os eventos sao descri-tos ou explicados, como relatorios faetuais sao construi-dos, como estados cognitivos sao atribuidos. Esses saodefmidos como topicos discursivos, coisas que as pes-soas selecionam como topicos ou para os quais se orien-tam, ou sugerem em seu discurso. E em vez de ver essasconstni9oes discursivas como expressoes dos estadoscognitivos subjacentes dos falantes, elas sao examina-das no contexto de sua ocorrencia como constni9oes si-tuadas e ocasionais, cuja natureza exata faz sentido, tan-to para os participantes como para os analistas, em ter-mos das a?oes sociais que aquelas descrigoes realizam(Edwards & Potter, 1992: 2-3).

Uma das principals contribui9oes da psicologia dis-cursiva foi o desenvolvimento de investiga9oes sobre osaspectos construtivos da linguagem na interagao social.Segundo Potter & Wetherell (1987), a AD nao consisteunicamente na analise das fm^oes da linguagem, mas simem revela-las atraves da analise de sua variabilidade. Ouseja, das perspectivas cambiantes e variadas de seu mundoque os proprios participantes em uma rela9ao nos propor-cionam em sua intera9ao e intercambios linguisticos. Aorienta9ao do discurso para fun9oes especiflcas e um indi-cador de seu carater construtivo.

O termo constru?ao e apropriado por tres razoes. Em pri-meiro lugar, ele guia o analista para o lugar.onde o dis-curso se fabrica a partir de recursos linguisticos preexis-tentes com caracteristicas proprias. Em segundo lugar,nos lembra que entre os muitos recursos linguisticosdisponiveis, alguns foram utilizados e outros nao. Emterceiro lugar, a nocao de construcao enfatiza, uma vez

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mais, que o discurso esta orientado para a acao: ele ternconsequencias praticas. Em um sentido profiindo, por-tanto, pode-se dizer que o discurso "constroi" nossa rea-lidade vivida (Wheterell & Potter, 1996: 66).

2. A no^ao de discurso

O breve exame que fizemos acima de algumas tradi-9oes da AD demonstra, sem qualquer duvida, que "dis-curso" e urn conceito extraordinariamente polissemico.Como esperamos tenha ficado claro, existem tantas defi-ni9oes de discurso quantos sao seus autores, autoras e tra-dicoes de analise. Por isso, aqui nos limitaremos a exami-nar algumas das nocoes de discurso que sao mais comu-mente utilizadas nas ciencias sociais, sem deixar de levarem considera9ao as tradi^oes teoricas ou disciplinares queIhes sao caracteristicas. Nao abordaremos nocoes que ul-trapassem esses limites e, em particular, nos referiremosas no9oes de discurso que se apoiam, primordialmente, emtres1 tradipoes:

1) A tradi^ao lingiiistica e, mais geralmente, a tradifaoda filosofia linguistica associada a Escola de Oxford;

2) A tradicao que tem sua origem na obra de MichelFoucault;

3) A tradi9ao da pragmatica franeesa e da analise dediscurso francesa (Maingueneau, 1987; 1991).

1 Poderiamos fazer referenda tambem a "Escola Espanhola deAD". Se nao a incorporamos a triade que apresentamos nao e porqueela nao seja suficientemente interessante, e sim porque esta distantedas tradicoes expostas no capitulo "A linguagem nas ciencias so-ciais". Essa distancia se explica pela enfase que a escola da as orienta-coes psicanaliticas e marxistas, como tambem por possuir urn caraterdecididamente semantico, distante das conceppoes pragmaticas quedefendemos aqui.

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3. A analise do discurso nas ciencias sociais...

Essa simplifica9ao obedece unicamente ao interesseque temos de fornecer uma interpreta9ao equivalente aostermos na discussao. Mesmo nesses casos, nao apresenta-remos uma revisao exaustiva e apenas examinaremos ra-pidamente as no9oes mais comuns.

Dependendo da no9ao de discurso que se utilize, aconcep9ao de AD adquirira significados bastante dife-rentes. Por isso, pretender estabelecer uma no9ao comuma certa precisao e uma tarefa muito pertinente, a naoser que queiramos adotaruma defini^ao pronta, de conve-niencia ou auto-referente, como por exemplo definir o dis-curso como aquilo que estudam seus analistas, ou concei-tos semelhantes.

Sem pretender uma classifica9ao completa, a tipolo-gia sintetica que oferecemos a seguir resume algumas dasconcep9oes mais comuns de discurso, pelo menos comose expressam nas ciencias humanas e sociais:

a) Discurso como enunciado ou conjunto de enuncia-dos efetivamente falados por um/a falante.

b) Discurso como conjunto de enunciados que cons-troem um objeto.

c) Discurso como conjuntos de enunciados falados emum contexto de intera9ao - nesta concep9ao ressalta-se opoder de 3930 do discurso sobre outra ou outras pessoas, otipo de contexto (sujeito que fala, momento e espa9o, his-toria, etc.).

d) Discurso como conjunto de enunciados em um con-texto conversacional (e, portanto, normative).

e) Discurso como conjunto de restates que explicama produ9ao de um conjunto de enunciados a partir de umaposi9ao social ou ideologica especifica.

f) Discurso como conjunto de enunciados em que e pos-sivel definir as condi9oes de sua produ9ao.

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Lupicinio Iniguez

A ultima concepgao surgiu na escola francesa de Ana-lise do Discurso (Maingueneau, 1991)e deve muito a obrade Foucault. Ao referir-se as condigoes de produgao dosenunciados, essa nogao permite a distinc. ao entre enuncia-do e discurso de uma maneira mais nitida que as demais.Assim, a definicao de "enunciado" e conceitualizada comoa sucessao de frases emitidas entre dois brancos semanti-cos; e a defmigao de "discurso" se concebe como o enun-ciado considerado do ponto de vista do mecanismo discur-sivo que o condiciona. Com efeito, nessa nogao, o enun-ciado e concebido como resultado, ou seja, como algo quepossui memoria, pois leva consigo a marca de suas pro-prias condigoes de produgao. Essa possibilidade de distin-gao faz com que essa ultima concepgao de discurso seja amais apropriada, pelo menos temporariamente.

Contudo, as diferentes nocoes da classificacao expostanao sao, verdadeiramente, a manifestacao de concepgoesincompativeis. Mais do que incompatibilidade, o resulta-do de sua analise mostra que unias nogoes podem ser su-perpostas a outras.

Uma possivel diregao de superposigao e a dos diversosniveis de analise, que iriam desde o mais puramente inte-rindividual ate o mais claramente estrutural. Na verdade,reproduzem a sequencia que vai desde a defmigao simplesem termos de fala, ate as conseqiiencias da teoria dos atosda fala, passando pela tradigao etnometodologica, a maisapropriada da Analise Conversational, ou as mais comunsem uma tradigao pos-estruturalista.

Da rnesma forma, devemos considerar que essas va-rias nogoes tampouco sao exclusivas, ja que freqiiente-mente achamos elementos de varias delas em conceituali-zagoes ou em praticas de AD. Na verdade, elas reunem emsua totalidade, ou em parte, aspectos presentes em algu-

124

3. A analise do discurso nas ciencias socials...

mas delas, como, por exemplo, as posigoes apresentadasno capitulo anterior. •

2.1. Tentativa de defim'gao de AnaLise do Discurso

Como mostramos, existem varias defmicoes da Anali-se do Discurso. Por isso, nenhuma delas deveria ter a pre-tensao de se estabelecer como a deflnitiva ou concluden-te. Cada uma delas satisfaz as proprias preocupagoesdos/as distintos/as autores/as e enfatiza aspectos diferen-tes. Enquanto que na orientagao linguistica sao citadas de-finigoes orientadas linguisticamente, como por exemploas estabelecidas por Levinson (1983) ou Stubbs (1983),nas ciencias sociais sao citadas definigoes orientadas parao psicossocial (Potter & Wetherell, 1987). O que vamos pro-por aqui e seguir um caminho que se situe entre os interes-ses e as demandas das varias orientagoes.

Seguindo Iniguez e Antaki, optaremos pela seguintedefinigao:

Um discurso e um conjunto de praticas linguisticas quemantem e promovem certas relagoes sociais. A analiseconsiste em estudar como essas praticas atuam no pre-sente, mantendo e promovendo essas relacoes: e trazeraluz o poder da linguagem como uma pratica constituintee reguladora (Iniguez & Antaki, 1994: 63).

3. A pratica da AnaLise do Discurso

Os fundamentos expostos no capitulo "A linguagemnas ciencias sociais" servem de base para as praticas deAD que vamos desenvolver neste capitulo. Esses.funda-mentos podem ser agrupados em duas categorias diferen-tes das quais surgem tradigoes de trabalho tambem distin-tas que} talvez corn uma certa ousadia, vamos tentar co-nectar aqui.

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Lupicinio Iniguez

A primeira categoria agrupa, por urn lado, o giro lin-giiistico, a "Teoria dos atos da fala" e a Pragmatica, quepodem serrelacionados com a filosofia linguistica associ-ada a Escola de Oxford na Gra-Bretanha e ao pragmatismonorte-americano; e, por outro lado, a ETN, que tradicio-nalmente e vinculada a fenomenologia e ao interacionis-mo simbolico.

A segunda categoria relaciona-se com o trabalho de-senvolvido na Europa Continental, vinculado a uma tradi-gao com maior orienta9ao politica e sociologica e, particu-larmente, a obra de Michel Foucault.

3.1. A tradigao angLo-saxa da Analise do DiscursoA concepcao2 de que a linguagem pode afetar a reali-

dade social - nas palavras de Austin, a ideia de que se pode"fazer coisas com palavras" - e o antecedente que mais in-fluenciou a primeira tradicao. A influencia sobre a AD seexerceu principalmente atraves da maneira como a Prag-matica e a ETN adotaram essa concepfao.

O que ha de mais importante nessa influencia e o fatode que essas concepgoes pressupoem o fortalecirnento deuma visao da linguagem e da pratica linguistica como ca-pacidade de fazer alguma coisa. Alem disso, elas defen-dem a ideia de que o/a analista pode observar a intera9ao efazer interpretafoes justamente sobre aquilo que a lingua-gem esta fazendo. Essas perspectivas significam abando-nar duas imagens comuns, ou seja, a visao da linguagemcomo uma serie estatica de descri9oes e do/a analista comomero/a coletor/a de dados neutros.

Da mesma maneira, essa concep9ao da linguagem afir-ma que a atividade investigadora iguala-se a qualquer ou-

2 O leitor pode encontrar uma exposi9ao mais detalhada dessa questaono capitulo 2, "A linguagem nas ciencias sociais".

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3. A analise do discurso nas ciencias sociais...

tro tipo de atividade'social, seja ela realizada na mais coti-diana das situa9oes, ou dentro da formalidade da ciencia.Tudo isso representa uma nova forma de entender a ativi-dade cientifica e o papel do investigador, o que constituium novo ponto de partida para as ciencias sociais.

No entanto, como podemos facilmente deduzir, o pro-cesso de interpreta9ao nao consiste em uma mera compre-ensao hermeneutica ou em uma pura captagao do sentido.Para entender em que consiste a interpreta9ao e precise,antes de qualquer outra coisa, analisar o papel da lingua-gem. Michael Billig abordou essa questao especificamen-te em uma das obras de maior influencia dos ultimos anos,o seu Arguing and Thinking (Billig, 1987). Nela ele afir-ma, entre outras questoes, que a argumenta9ao e a retoricasao a pr6pria essencia da linguagem.

Da perspectiva de Billig, qualquer mensagem e ambi-gua, e todas exigem um esforgo interpretative do/a inves-tigador/a. Nesse sentido, o papel do investigador nao con-siste em seguir diregoes de analise que conduzam a um ob-jetivo predeterminado e sim interagir com os argumentosinerentes aquilo que dizem as pessoas e, usando toda a gamade ferramentas analiticas a seu dispor, trazer a luz tudoaquilo que nao esta explicitado. O investigador e, em umcerto sentido, um professional cetico, encarregado de es-crutar a realidade social atraves da interroga9ao da lingua-gem que as pessoas usam.

No entanto, a obra que mais fielmente sintetiza as pre-missas que apresentaremos a seguir e o livro Discourseand Social Psychology: Beyond attitudes and behaviourescrito em 1987 por Jonathan Potter e Margaret Wetherell.A influencia que esse trabalho exerceu e continua a exer-cer nas concep9oes e praticas atuais da AD nas cienciassociais e extraordinaria.

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Lupicinio Iniguez

O autor e a autora adotam a tradigao da linguistica,mas insistem em considerar a palavra como uma forma deagao, captando os ensinamentos da Etnometodologia e daAnalise Conversacional. O principle basico em que se ba-seia sua proposta e que a linguagem pode ser compreendi-da por seu uso: nao e bom tratar as palavras ou frases comomanifestacoes em branco de algum significado semanticoneutro; ao contrario, deveriamos ver como a linguagem eusada por falantes em conversas cotidianas e tambem olharmais acima do nivel da palavra ou da frase.

3.2. A tradigao francesa da AnaLise do Discurso

Na segunda tradigao, desenvolvida fundamentalmen-te na Franca (Maingueneau, 1987; 1991), estao mais pre-sentes as contribuicoes de Foucault (que ja vimos no ca-pirulo "A linguagem nas ciencias sociais"), os trabalhosda escola russa (Bakhtin, 1982) e a "teoria da enuncia-gao", uma forma de pragmatica desenvolvida sobretudona Franga.

A mudanga de uma concepcao que considera a lingua-gem como uma janela dos significados para uma outra quea ve como conjunto de instrumentos que podem regula-mentar as relagoes sociais implica, obviamente, um desen-volvimento complexo que apenas esbogamos aqui. No en-tanto, ele nos serve como base para comegar a descrevercomo devemos proceder para realizar uma AD.

Para qualquer pratica de AD sao necessarias tres ope-ragoes: a diferenciacao texto-discurso, a distingao locutor/a-enunciador/a e a operacionalizagao do corpus.

3.2.1. Texto

Tendo defmido o que e o discurso, o primeiro proble-ma com que nos deparamos e saber que tipo de textos o

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3. A analise do discurso nas ciencias sociais...

configuram. A diferenga fundamental reside na considera-cao do texto como conjunto de enunciados transcritos, sejaqual for sua origem, ou em uma especificagao maior daqui-lo que sao autenticamente textos. Ou, formulado como umapergunta, "qualquer texto constitui um discurso?"

Evidentemente, nem todos os textos podem ser con-siderados discursos. Para que um texto seja efetivamenteum discurso e necessario que cumpra certas condigoes.Assim, constituirao um texto aqueles enunciados que tive-rem sido produzidos no marco de instituigoes que restrin-jam fortemente apropria enunciagao. Ou seja, enunciadosa partir de posigoes determinadas, inscritos em um contex-to interdiscursivo especifico e reveladores de condigoeshistoricas, sociais, intelectuais, etc.

Nao sao todos os conjuntos de enunciados que cum-prem essas condigoes: so o fazem aqueles que possuemvalor para uma coletividade, que envolvem crengas e con-vicgoes compartilhadas. Ou seja, os textos que claramenteincluem um posicionamento em uma estrutura discursiva.Nas palavras de Foucault (1969: 198), o texto nao e consi-derado em si mesmo, e sini como parte de uma instituigaoreconhecida que "define para uma area social, economica,geografica ou linguistica dadas as condigoes de exercicioda fungao enunciativa". A relagao com um lugar de enun-ciagao permite identificar aquilo que esse mesmo autor de-finiu como formagao discursiva:

um feixe complexo de relagoes que funcionam como re-gras: prescreve o que deveria ter sido relacionado, emuma pratica discursiva, para que esta se refira a tal ouqual objeto, para que ponha em jogo tal ou qual enuncia-do, para que utilize tal ou qual conjunto, para que orga-nize tal ou qual estrategia. Definir em sua individualida-de singular um sistema de formagao e, portanto, caracte-rizar um discurso ou um grupo de enunciados pela regu-laridade de uma pratica (Foucault, 1969: 122-123).

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Lupicinio Iniguez

3.2.2. Sujeito (enunciador)

Outra das conseqiiencias que se origina do ponto devista que estamos mostrando e aquela relacionada com otipo de sujeito que constroi. Efetivamente, a origem do emm-ciado, quem enuncia, nao e considerada necessariamentecomo uma forma de subjetividade e sim como um lugar.Nesse lugar de enuncia9ao, os/as enunciadores/as sao subs-tituiveis e intercambiaveis. Uma vez mais, nas palavrasde Michel Foucault (1969),

descrever uma formulae enquanto enunciado nao con-siste em analisar as relates entre o autor e aquilo quediz (ou quis dizer, ou disse sem querer); e sim em deter-minar qual e a posi<?ao que pode e deve ocupar qualquerindividuo para ser o sujeito (p. 160).

O sujeito assume o status de enunciador que define ao discursiva na qual se encontra. Isso nao signifi-

ca, no entanto, que cada formacao discursiva so tenha umlugar de enunciacao. Com efeito, distintos conjuntos de enun-ciados que se referem a um mesmo posicionamento po-dem se distribuir por uma multiplicidade de generos dediscurso. A heterogeneidade de generos de uma formagaodiscursiva contribui para definir sua identidade.

Com efeito, faz-se uma distincao entre o locutor - oemissor material - e o enunciador - o autor textual. O.enunciador e, logicamente, diferente do locutor, ja queesse e uma realidade empirica e o enunciador uma cons-tni9ao textual. O enunciador 6 o autor logico e responsavelpelo texto, mas tambem foi construido por ele, e ambos as-pectos sao inseparaveis.

Os lugares de enunciacao pressupoem institui9oes es-peciflcas de produgao e de difusao do discurso. No entan-to, nao devemos entender por "instituisao" unicamente es-trururas formais como a Igreja, a justica, a educa9ao ououtras semelhantes. Trata-se de considerar como institui-

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3. A analise do discurso nas ciencias socials...

930 todo aquele dispositive que delimite o exercicio daftui9ao enunciativa, o status do enunciador e dos/as desti-natarios/as, os tipos de conteudos que podem ser ditos, ascircunstancias de enuncia9ao legitimas para tal posiciona-mento. Como se conclui atraves daquela a que chamamosde "Escola Espanhola" (Ibanez, 1979; 1985), a compreen-sao desse aspecto facilita enormemente a realiza9ao de ana-lises dos processes sociais de construe da intersubjetivi-dade, do poder, da ordem social e da transforma9ao social.

3.2.3. Materializa$ao do texto: o corpusCoino enfatizou a Escola Francesa, qualquer tipo de

produ9ao discursiva pode constituir um corpus, embora osaspectos que sao mais enfatizados pelas distintas praticasde analise variem. Em principio, considerando-se a baseda transmissao, qualquer enunciado grafico ou transcritopode se constituir em corpus, tenha ou nao sido produzidograficamente. Essas produces podem ser mais ou menosdependentes do contexto. Ou seja, os enunciados pode-riam ter sido dirigidos a um sujeito presente na situacao daenuncia9ao ou a outros sujeitos localizados em outros con-textos. Por ultimo, os enunciados podem estar mais ou me-nos imersos em uma estrutura; por exemplo, um discur-so muito formalizado, muito padronizado, pode pressuporuma estrutura institucional especifica, na qual se pro-duz uma forte restri9ao tematica, uma grande estabilidadede formulas, etc.

De forma sucinta, podemos dizer que o corpus cornomaterializa9ao do texto admite urna grande diversidade deformulas. Assim, sao possiveis conversa9oes transcritas,intera9oes institucionais transcritas, entrevistas transcri-tas. Ou seja, enunciados totalmente orais ou textos previa-mente escritos como artigos, documentos, informes, comu-nicados, estudos, formularios, etc.

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Lupicinio Iniguez3. A analise do diseurso nas ciencias socials....

3.3. Como fazer uma Analise do Diseurso?

Para realizar uma AD que ponha em pratica as pautasda versao anglo-saxa, e precise percorrer as seguintes eta-pas: a) defmigao do processo que se quer analisar; b) sele-gao do material relevante para a analise; c) analise propria-mente dita. Vejamo-las em detalhe:

3.3.1. Definigao do processo que se vai anah'sar

Qualquer investigador ou investigadora precisa for-mular, em primeira instancia e como tarefa previa, umapergunta que Ihe permita estabelecer o foco da analise.Como e facil de compreender, toda investigacao estafortemente condicionada pelas perguntas que formu-larmos e, com isso, podemos afirmar que, para realizaruma boa investigagao, e preciso que tenhamos formula-do uma boa pergunta.

Que fenomeno social estamos tentando elucidar, com-preender ou esclarecer? Que relagoes socials queremosexplicar? Essas poderiam ser algumas das perguntas pas-siveis de serem formuladas. Para a realizagao de uma AD,o estabelecimento do foco da analise implica perguntarque relagoes sociais mantidas e divulgadas atraves da lin-guagem estamos querendo explicar.

As possibilidades, obviamente, sao quase infinitas. Comoobservamos, a linguagem e de tal forma parte constitutivade nossa vida, de nossas relacoes e de nossa cultura que setorna dificil, para nao dizer impossivel, imaginar algumarelagao social que se produza fora da linguagem.

Tomemos como exemplo ilustrativo desse fenomenodois casos aparentemente remotos: de urn lado, uma sirua-gao fortemente ritualizada, como uma cerimonia religio-sa; de outro, uma interacao cotidiana de qualquer grupo deamigos, por exemplo, um bando de adolescentes. No pri-

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esSi-

meiro caso, nos vemos diante de um diseurso formalizadoe protocolizado; no segundo, os intercarnbios evoluemseinuma estrutura aparente ou seguindo a espontaneidadedas relagoes do grupo. Embora paregam extremas, as dife-rengas entre ambos sao, no entanto, so aparentes. Na ver-dade, o diseurso dos/as jovens tern que seguir certas re-gras, embora essas nao estejam totalmente explicitadas ouestabelecidas; e elas podem ser tao complexas e prescriti-vas quanto as dadas na Igreja. E mais, as pessoas na rua,como esse grupo de jovens que imaginamos, enfrentamdificuldades maiores para aprender essas regras ja que, aocontrario daqueles que participam de uma missa ou dequalquer outra cerimonia religiosa, para eles pode nao exis-tir um aprendizado formal3.

Segundo as premissas amplamente assinaladas ante-riormente, o ponto de partida da AD tern como base a pre-missa de que a relagao social que o/a analista examina naoesta somente intermediada pela linguagem, e sim tambemcontrolada por ela. Em suma, a relagao social e, simulta-neamente, constituinte e constitutiva.

Essa fungao de controle nao parece, a priori, tao obvia,mas e possivel ve-la claramente se nos detivermos paraexaminar as leis e as regras explicitas. As leis afetam nos-so comportamento, o codificam e o prescrevem. Quandoespecificam o que esta proibido, deiinem, como comple-mento, o que estapermitido. Emtodas as organizagoes exis-

3 Uma situacao de interagao extrema nesse sentido e o que acontecenos chats da Internet. Embora ainda nao tenhamos muitos trabalhosemptricos sobre essas novas formas de comunicacao, podemos dizerque se trata de um espago social onde, aparentemente, existe um va-zio normative. No entanto, qualquer participante habitual dessas con-versas responderia com inumeros exemplos das conseqiiencias pro-duzidas pela ruptura de normas de varias indoles (de cortesia, de par-ticipacao, etc.).

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te um "livro de normas e procedimentos". O exercito, porexemplo, tern um codigo proprio que se aplica aos milita-res e esses tern que obedece-lo custe o que custar; a Igreja,igualmente, tern suas proprias normas, leis e mandamen-tos que limitam e regulamentam a vida e o comportamen-to de todos aqueles que se identificam com seu dogma ecrencas e que, inclusive, exercem influencia sobre os quedizem explicitamente nao serem crentes ou adeptos; a uni-versidade tern seus proprios estatutos e normas de proce-dimento que, embora muitas vezes nao sejam conhecidospela comunidade universitaria, estao incorporados a orga-niza9ao de suas proprias vidas academicas e as vezes atedas nao academicas. Esses "codigos" existem literalmentecomo especificapoes formais, pela "forca da lei" definin-do e construindo as identidades e comportamentos de to-dos/as os/as que caem sob sua jurisdicao.

Talvez ainda mais poderosos que os codigos formaissejam os codigos informais, os nao escritos, aqueles queestao inseridos em nossa vida social. Com efeito, alem dasregras formais existem outros discursos menos explicitos,mas nao por isso menos constrangedores e orientadores denossas vidas. Qualquer estudante pode nos dizer quais saoas regras de sua faculdade, e seria perfeitamente capazde elaborar uma boa lista de conven?oes nao escritas quedirigem, regulamentam e determinam seu comportamen-to. Essas normas nao costumam ter forca formalmente le-gal, mas atuam como se a tivessem ao explicitarem regrasdo tipo: "nao te aproximes dos/as professores/as fora dafaculdade", "nunca entre em contato com o/a professor/aem sua propria casa", "os/as alunos/as devem sempre agircomo inferiores aos/as professores/as", etc. E, e claro, oprofessorado tern um numero semelhante de regras quelimitam seu proprio comportamento, embora de forma cer-tamente menos rigida: "nunca flertar com os/as alunos/as",

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d-

0 " 3. A analise do discurso nas ciencias socials...

"deve-se tratar todos/as os/as alunos/as de maneira iden-tica", etc.

Todas essas regras, as que sao explicitas e as que nao osao, sao consrruidas e mantidas pelo discurso. No exemplode uma instiruic. ao como a universidade, tanto os/as alunoscomo o corpo docente utiliza esse discurso. Mas na cons-trucao dessas regras tambem desempenha um papel im-portante o discurso implicito que mantem suas propriasidentidades sociais como alunos/as e professores/as - porexemplo, o discurso da universidade, da sociedade que per-mite e privilegia essa educacao, o pensamento rational, orespeito as pessoas mais velhas e mais qualificadas, etc.Esse aspecto nos leva a uma questao-chave: nao existe ne-nhum discurso que seja independente dos demais, um dis-curso nunca existe por si mesmo sem estar ancorado emalgum outro. Em quase todas as correntes discursivas acei-ta-se a ideia de que cada discurso esta relacionado com ou-tros. Esse fenomeno e conhecido pelo termo "intertextua-lidade" e e uma caracteristica importante do material comque se realiza uma AD.

3.3.2. Selegoo do material reievante para a analise

A busca de um material reievante para a analise come-c. a assim que o/a analista escolheu a relagao social que pre-tende analisar, considerando que se encontrara diante deuma multiplicidade de discursos que se enrrecruzam, aquiloque definimos como intertextualidade.

Para ilustrar esse passo, usaremos o exemplo da identi-dade. A primeira coisa que temos que fazer sao perguntassobre o problema que e objeto de nossa analise.

Qual e o problema que vamos investigar? Poderiamoslevar em consideragao as tensoes que passam por qualquersentido de identidade: a autonomia diante da dependen-

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cia. Por um lado, como individuos singulares, buscamosmanter uma ideia basica de autonomia; por outro, consta-tamos a dependencia que temos de outras pessoas. Comoutras palavras, se por um lado devemos ser diferentes,dignos, independentes, por outro somos iguais aos demais,semelhantes a eles em quase tudo e dependentes deles/de-las. Como manter essa contradigao? Como as praticas so-ciais mant^m e propagam as enormes diferencas que estaoa base da relagao social?

Definidos esses extremos, ja podemos buscar o mate-rial que exemplificara os discursos que se relacionam coma construcao da identidade. Esses materials podem ser mui-to variados: de textos e documentos tecnicos ou profissio-nais que falain sobre identidade, as biografias e autobio-grafias, as hist6rias de vida, etc., ate as transcricoes deconversas informais entre varias pessoas em ambientescotidianos (entrevistas, discussoes de grupo, etc.). A regrade ouro consiste em saber que o texto deve, de certa ma-neira, deixar claro a construgao, a experiencia e o relato daidentidade perse.

1) Que significa dizer que os/as representantes sejam"representatives" de grupos?

Normalmente "representatividade" e um conceito in-terpretado em um sentido estatistico. Ou seja, refere-se aos/as componentes de uma amostra que foram extraidos deuma populacao segundo um determinado procedimentoe que, por isso, a "representam" no sentido de que aquiloque se descreve ou se conhece para a amostra e generaliza-vel para o conjunto da populacao. Na AD, "representati-vo" nao significa que o/a participante e estatisticamenterepresentativo/a da populacao considerada, ou que estejaproximo a media em idade, status socioeconomico, etc.Ao contrario, significa que o/a participante esta atuando

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3. A analise do discurso nas ciencias socials..

como se estivesse no "papel" no sentido de que o que e im-portante sobre essa pessoa em concrete que participa deuma interagao nao sao suas qualidades pessoais e sim ofato de que e membro de um grupo ou coletivo.

Imaginemos uma situagao pratica. Devido a conflituo-sidade atribuida a distintos contextos sociais (trabalho, es-cola, ocio, etc.), a presenca de grupos de pessoas proce-dentes de culturas e comunidades muito diferentes, proli-feram, em algumas ocasioes, as comissoes e os grupos en-carregados de assessorar instituigoes; em outras, aquelasdedicadas a propor solu?6es para varios problemas; exis-tem tambem algumas encarregadas de servir de mediado-ras entre grupos em conflito, etc. A casuistica e muito va-riada. Quando se trata, por exernplo, de questoes relativasa escolarizagao infantil, pode ocorrer que a comissao este-ja composta por pessoas que representam as instituicoeseducativas, colegios ou escolas concretos,'grupos e asso-ciagoes de emigrantes, etc. Presumivelmente, essas pes-soas atuam nessa comissao com o mandate dos grupos ouinstituicoes que representam, com independencia da posi-gao pessoal que cada uma delas tenha sobre a questao ob-jeto de debate. Cada pessoa pode ter suas proprias prefe-rencias ou gostos, suas proprias inclinacoes, seus varioshabitos, etc., mas nao participant da comissao por isso esim na qualidade de representante de algum grupo. Por-tanto, suas caracteristicas individuais nao sao importantesnem relevantes. Cada pessoa especifica participa da co-missao como procuradora ou delegada do grupo ou coleti-vo que representa e o investigador ou investigadora deveconsidera-la como tal. Poderia ocorrer que uma pessoa fi-zesse parte da comissao, por exemplo, por pertencer a umainstituicao educativa e que sua condicao grupal ou culturalfosse a de um grupo concrete de emigrantes. Pois bem, oque importaria seria o fato de essa pessoa "estar no papel"

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de representante de uma instituicao, nao o fato de perten-cer a um grupo etnico especifico.

2) Os efeitos discursivos

O segundo criterio que nos permite identificar se o tex-to e ou nao um discurso e o fato de que, para que seja umdiscurso, o texto deve ter efeitos discursivos.

Neste contexto, por "efeitos" nao devemos entender os"resultados" ou as "conseqiiencias" do discurso-sobre o/aouvinte ou o/a falante; como por exemplo repercussoespsicologicas como a persuasao, ou o desencadeamento deum determinado estado emocional. Os textos podem terefeitos independentes da percep9ao que uma audienciapode ter de uma mensagem: podem estar isentos, inclusiveda propria inten9ao de quem fala. Sao esses ultimos efei-tos os que interessam ao analista, ja que ele se encontra di-ante de deriva9oes discursivas no sentido de que sao veicu-lados certos significados, certos sentidos, certos olhares,certas ordens do mundo ou de uma parcela do mundo, etc.

Tomemos como exemplo os efeitos de usar imagens demulheres nuas em anuncios. Uma fotografia de um cor-po de mulher utilizada como omamentafao de um carropode provocar um grande numero de reacoes no/a lei-tor/a: indiferensa, excitacao, pesar, atracao [...]. Essasrea?6es serao importantes para a compreensao da cor-respondencia entre a imagem e a.rela9ao social? Em umcerto sentido, seja qual for a rea9ao de cada pessoa aimagem, ela e irrelevante se considerarmos o fato dequeessa representacao necessariamente - logicamente, sepreferirmos — associa uma certa visao da sexualidade aum produto e a todo um conjunto de imagens que seidentificam com o poder, com a masculinidade e com aagressividade. A equacao da mulher como objeto sexual(indicado por sua nudez) e o carro como objeto de con-sumo masculine (indicado pelo fato de que a imagemaparece em um anuncio que supostamente ajudaria avender o modelo mostrado) e o que 6 importante para o/a

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3. A analise do discurso nas ciencias socials...

analista, e isso nao depende da rea9ao particular a ele(Iniguez & Antaki, 1994: 66-67).

Portanto, os "efeitos discursivos" sao aqueles que ope-ram em um nivel superior ao individual. Ao ler os textos,devemos buscar os efeitos que o material gera por si mes-mo, que nao e outro senao aquele que o/a leitor/a e capazde captar. O trabalho analitico consiste em examinar cui-dadosamente os textos, buscando todas as possiveis leitu-ras, e identificar os efeitos majs conectados com a rela9aosocial que queremos elucidar. Nao ha duvida de que outrasleituras tambem sao possiveis, ja que todo texto e ambiguoe difuso, mas o que a analise deve fazer e identificar osefeitos principals, ou os mais importantes em fun9ao dapergunta que o/a analista se faz.

3.3.3. A anatise propriamente dita

Os recursos tecnicos que a AD mobiliza sao extraordi-nariamente variados e provem das tradi9oes que mencio-namos no capirulo "A linguagem nas ciencias sociais",bem assim como dos desenvolvimentos das varias escolasa que nos referimos no mesmo capitulo. No entanto, agorairemos mostrar uma pequena gama desses metodos paraque seja possivel apreciar o procedimento a seguir e o al-cance da AD como instrumento de investiga9ao.

Um principio que e preciso observar sem exce9oes eque, independentemente da ferramenta que seja utilizada,essa deve ser usada na totalidade do corpus. A prepara9aodo corpus e necessariamente muito trabalhosa no caso deuma AD. Assim, por exemplo, quando os materials saodocumentais, e essencial realizar sua cataloga9ao sistema-tica e sua colocacao em um formato manipulavel (comofotocopia ou arquivo informatizado). Quando os materialstern fontes verbais, como entrevistas, reunioes de grupo ouconversas cotidianas, deve ser transcrito com o maior de-

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talhe possivel para que qualquer interacao sutil, incidenciaou circunstancia possa ser identificada. Nesse sentido, atranscricao deve incluir, alem das palavras emitidas, as in-terrupgoes, as respiragoes, as pausas, etc. Ha uma grandediferenca entre essas varias versoes, por exemplo :

"Nao da para acreditar"."Pois...hum...eu...eunao...hum...naodaparaacreditar".

"Nao da para acreditar!"

"Nao! ...Nao da para acreditar!"

O uso das ferramentas informaticas, tanto para o regis-tro dos materials como para sua catalogagao e transcri-gao, e sumamente util. Como ja haviamos mencionado,sao inumeros os procedimentos analiticos que podem serutilizados. Com efeito, analistas diferentes podem legiti-mamente optar por niveis diferentes de analise e pelo usode procedimentos tambem diferentes.

1) Atos de fala

Uma das maiores contribute, oes para a AD e a nogao de"atos de fala" como ja vimos. Para a "Teoriados atos da fala",as expressoes sao produtoras de efeitos que as transcen-dem. Ou seja, sao capazes de "fazer coisas". Por exemplo:

- "Amanha, sem falta, eu trago" (promessa).

- "E eu os declare marido e mulh6r" (sancao).

Esses exemplos ilustram simplesmente como os atosde fala aparecem constantemente em nossa conversa coti-diana e como geram efeitos socialmente significativos. Napratica, e facil reconhecer que muitas coisas como "com-prometer-se", "jurar", "desculpar-se" so podem se realizaratraves do uso de alguma formula lingiiistica.

4 Ver as indicates contidas no apendice do capitulo 4, "A Analiseda Conversagao e dos processes socials" (pagina 179).

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; 3. A analise do discurso nas ciencias sociaisi..

2) Pragmdtica - .

O uso da pragmatica e comum no tipo de AD que esta-mos mostrando. No capitulo "A linguagem nas cienciassociais", seus principios e procedimentos ja foram especi-ficados. Muitos/as analistas do discurso se concentramnas conversas cotidianas e as analisam de um ponto de vis-ta pragmatico; ou seja, buscando os significados exata-mente como sao assinalados pela informagao contextualque os/as falantes assumem em publico. Vejamos o queocorre atraves de um exemplo:

Pergunta: "Voce comprou o jornal?"

Resposta: "Olha na minha bolsa".

A resposta "Olha na minha bolsa" nao diz diretamenteque sim, comprou o jornal, mas, no sentido que vimos nocapitulo "A linguagem nas ciencias sociais", implica quesim. Podemos afirmar que o/a falante confia na capaci-dade do/a ouvinte de interpretar as consequencias daquiloque disse.

Esse nivel de analise pragmatica e perfeitamente ade-quado para identificar efeitos de implicagao, mas tambemserve para identificar o tipo de conhecimento que o/a fa-lante presume ser compartilhado pela audiencia e, separa-damente, para reconhecer o efeito que certas expressoestem em funcao de sua forma linguistica. Vejamos algunsexemplos disso:

a) Nossas afeigoes por alguem sao polissemicas. Porum lado, requer estar a par das preferencias e sentimentospositives ou negativos que - por exemplo - os/as profes-sores/as possam ter com relacao a seus alunos/as. Mas,alem disso, e precise saber que o favoritismo e a discrimi-nacao nao sao adequados porque, em tal relacao, o que eprecise potencializar e um comportamento neutro e equili-brado com relapao a todos/as eles/elas.

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b) No seguinte exemplo, vemos tres maneiras distintasde responder a mesma pergunta:

(i)A: Que tal foi o filme?

B: Interessante!

(ii)A: Que tal foi o filme?

B: 6timo!

(iii)

A: Que tal foi o filme?

B: Uma droga!

Qualificar um filme dessas tres maneiras distintas im-plica dar uma resposta completamente diferente. Em (i)"interessante" poderia ser facilmente interpretado comose o filme nao tivesse sido bom, ou ate tivesse sido ruim.Em (ii), no entanto, a resposta implica que realmente foibom e que o falante gostou realmente. Em (iii) podemos fa-cilmente compreender que ele/a nao gostou do filme e que,provavelmente, o filme nao e bom, isso dito de uma manei-ra mais contundente do que em (i). Os tres casos implicamum conhecimento compartilhado por parte dos falantes.

c) Tambem se requer um conhecimento da estruturagramatical e das formas linguisticas como fica claro, porexemplo, nesses casos:

(i) Bern, cala essa boca de uma vez por todas!

(ii) Bern, voce vai ou nao vai calar a boca de uma vezpor todas?

(iii) Quando e que voce vai calar a boca?

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3. A analise do discurso nas ciencias socials...

Embora suas formas gramaticais sejam completamen-te distintas, as tres expressoes, no final, significam a mes-ma coisa.

3) Retorica

A estrutura argumentativa e formal de um texto tam-bem pode ser levada em consideracao. Billig (1987), porexemplo, defende o uso das possibilidades analiticas da re-torica e, em particular, a identificagao de tipos argumenta-tivos, figuras retoricas, seqiiencias taticas de temas e todasas formas estilisticas que ajudem a persuasao.

A proposta de Billig e especialmente util para analisara credibilidade e a legitimidade que um texto transmite.Alem disso, permite identificar linhas de coerencia de umargumento que possam ficar ocultas sob uma fachada apa-rentemente desconexa.

4) Repertories interpretativos

"Repertorio interpretativo" e um conceito introduzidopor Potter & Wetherell (1987). Esses autores constatavamque um tema de conversacao pode variar em funcao dasdemandas locais da situacao de interagao.

Os repertories podem ser vistos como elementos essen-ciais que os falantes utilizam para construir versSes dasagoes, processes cognitivos e outros fenomenos. Qual-quer repertorio determinado esta constituido por umagama restrita de termos usados de uma forma estilisticae com uma gramatica especifica. Normalmente essestermos produzem uma ou mais metaforas-chave, e a pre-senca de um repertorio muitas vezes esta assinalada porcertos tropos ou figuras do discurso (Wetherell & Potter,1996: 66).

A utilidade dos repertories baseia-se no fato de quepermitem ver como os/as falantes confrontam as conver-sacoes e como definem pianos atraves da colocagao estra-tegica de temas.

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5) Polaridades e desconstruqaq .

Todo texto apresenta polaridades de forma implicita ouexplicita. Parker (1988) sugere que busquemos os jogos deoposicoes no desenvolvimento de uma narrativa particular.No exemplo dado anteriormente sobre a identidade, algu-mas polaridades poderiam ser "singular/multipla", "cons-ciente/inconsciente" ou "dependencia/independencia".

3.4. A legitimidade da Analise do Discurso

Como podemos observar, qualquer que seja o recur-so utilizado, todos os procedimentos de analise sao clara-mente interpretativos. Para muitas pessoas que trabalhamnas ciencias sociais e humanas isso representa um proble-ma insuperavel que invalida a AD. Consideremos entao,para terminar esse capitulo, a questao da validade da AD.

A visao da linguagem fundamentada na filosofia e nalingiiistica e a vantagem principal da AD, sobretudo devi-do a centralidade que a linguagem ocupa em nossa vidasocial. Nas ciencias sociais, ao contrario de outras abor-dagens mais restritivas, a AD nao considera a linguagemcomo uma simples marca de um grupo social (como ocor-re as vezes na sociolingiiistica) ou como um recurso paraconhecer a percep9ao individual, embora ambos proces-ses possam realmente ocorrer e fazer com que seja interes-sante elucida-los. A AD tampouco estabelece a linguagemcomo uma janela que permita ver ou ter acesso as ideiasque as pessoas tern na mente, como o faz, por exemplo, apsicologia; e muito menos considera a linguagem comoum conjunto de simbolos cuja distribuicao estatistica emuma popula^ao, como um traco peculiar, seja, por si mes-ma, significativa.

Segundo a AD a linguagem e simultaneamente um in-dicador da realidade social e uma forma de criar essa reali-

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3. A analise do discurso nas ciencias sociais...

dade. Ela defende o uso dinamico da linguagem e e sensi- -vel a seus efeitos, nao no sentido de uma rea9ao mental oude um efeito psicologico, e sim como um efeito da propriaforma linguistica.

Para a AD, a linguagem nao esta "na cabega" e sim nomundo. De acordo com as premissas do giro linguistico,analisadas no capitulo "O giro linguistico", a linguagem evista mais como uma forma de construsao que como umadescri9ao de nos mesmos/as e de nosso mundo. A AD en-tende que o mundo em que vivemos e um mundo onde afala tern efeitos; ou seja, onde nao e a mesma coisa refe-rir-se a alguem como "soldado", "guerrilheiro/a" "terro-rista" ou "defensor/a da liberdade"; ou denominar um gru-po como "etnico" ou como "rapa"; ou uma organizafaocomo "terrorista" ou "revolucionaria".

A legitimidade da AD como metodo se origina preci-samente dessa visao da linguagem, ja que, em sua a9ao in-vestigadora, a unica coisa que ela faz e utilizar as mesmasferramentas que sao utilizadas em qualquer contexto de

social. Portanto, o/a analista deve estabelecer uma re-ativa com os/as leitores/as de seu trabalho e tentar mos-

trar como realizou sua leitura do texto. Dessa forma, a ADse converte em um exercicio mais de negocia9ao do quede exposi9ao, no sentido de estar sempre aberta ao debatee a discussao das interpreta9oes realizadas.

O/a analista de discurso deve assegurar-se de que o/a lei-tor/a compreenda o que esta sucedendo: por que e neces-sario escolher textos; como esses textos devem ser lidos;por que essa leitura e preferivel aquela outra; e o que eque, no mundo exterao aos textos, ajuda a dar um senti-do aos discursos que cont^m. Achamos que esse desafioe estimulante (Iniguez & Antaki, 1994: 73).

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4. A Analise do Discurso como perspective nasciencias humanas e sociais

Ate aqui oferecemos uma visao do discurso e da AD.Essa visao nao procura substituir outras e sim, como j a dis-semos, apresentar um conjunto de perspectivas e posipoesque bebem de fontes especificas mas que nao esgotam todoo conjunto de visoes complementares.

4.1. A AnaLise do Discurso como pratica

Como vimos na parte final da subdivisao anterior, umadas consequencias mais importantes da visao da AD queestamos mostrando e a do papel do/a analista. Como di-zem Michael & Condor (1990: 389-390):

A ideia que queremos sublinhar e que existem inumeroscontextos que sao apropriados a uma determinada pe^ade discurso, e a maneira como damos sentido a uma fun-9ao discursiva e um reflexo do contexto ou da configura-9ao de contextos ja pressupostos analiticamente (e poli-ticamente).

O temor de reconhecer que toda pratica cientifica sofrea influencia das condipoes sociais em que ocorre - ou seja,que esta determinada pelo contexto social, politico e ideo-logico no qual se desenvolve - ja nao existe mais. Aqui,uma questao de particular relevancia e a que se refere acomo reconciliar um compromisso politico com os afaze-res profissionais de cientistas sociais.

Essa preocupa?ao era dificil de canalizar na moldurada ideologia cientifica* moderna em que muitos/as cientis-tas sociais se formaram. Os agitados anos sessenta e seten-ta do seculo XX anteciparam aquilo que, no final, se co-nhece como "pos-modemidade" e que, ao contrario do quemuitos/as pensam, abriu caminho para a constituifao deciencias sociais de orientafao critica. Essas perspectivas

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3. A analise do discurso nas ciencias sociais...

criticas estao preocupadas em orientar suas praticas cien-tificas em uma diregao emancipacionista.

Como interpretar a AD de modo que ela possa contri-buir para essa empresa? A resposta para isso encontra-se,basicamente, nas propostas de Foucault. Todo discurso euma pratica social. De acordo com essas propostas, dire-mos que nao estaremos falando tanto de discursos e maisde praticas discursivas que, como ja observamos, sao re-gras anonimas, historicas, determinadas temporal e esga-cialmente. Essas regras defmiram, em uma epoca determi-nada, para comunidades concretas, as condi9oes de qual-quer enuncia?ao daquilo que pode ser dito. Nessa mesmadirecao, diremos tambem que a AD e uma pratica e e umapratica que nao so desmascara ou identifica outras praticasdiscursivas, como tambem - e sobretudo - abre todo urncaminho para sua transforma9ao.

4.2. 0 contexto

Todo enunciado colocado em um discurso do idiomapor parte de um sujeito e histonco e esta historicamen-te condicionado. Por essa razao, a AD deve considerar suaanalise a partir dessa perspectiva. Nesse sentido a enuncia-9ao, sua pratica, e o contexto imediato do enunciado.

Como se propoe na AD feita por aquela que poderia-mos chamar de "tradi9ao espanhola" (Ibanez, 1991), aanalise da enuncia9ao nos permite relacionar as estruturasda linguagem com as estruturas sociais. Ou seja, possibili-tar a compreensao do social a partir da analise e da inter-preta9ao do discurso.

Essa proposta nem sempre e compreensivel quando sepratica uma AD inspirada na linguistica, na pragmatica ena sociologia da situa9ao como estamos explicando aqui.Resta sempre a questao de qual seria o papel que a analise

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estritamente linguistica deve desempenhar na AD. Embo-ra muitos/as analistas da tradigao linguistica veem nestaanalise a forma de captar o social, outros/as muitos/as con-sideram que a analise linguistica nao e um procedimentosuficiente para essa tarefa.

4.3. Sobre o discurso e a estrutura social

Trata-se portanto de conectar teoricamente e de algu-ma maneira as praticas da AD com o estudo da estruturasocial. Esse seria o objetivo principal de uma AD comopratica analitica pertinente socialmente, Nesse sentido, parafundamentar uma proposta dessa indole, e precise desen-volver um marco no qual a estrutura social e o discurso fl-quem conectados de tal forma que os aspectos discursivos,lingiiisticos e de significado se relacionem com os proces-sos de construgao e de rnanutengao da estrutura social.

Isso faz com que seja necessario especificar nao so-mente a nogao de discurso com que estamos trabalhando,algo que ja explicitamos anteriormente, mas tambem a no-gao de estrutura que estamos utilizando.

Sem negar as outras inumeras concepgoes, podemosdistinguir pelo menos quatro tradicoes na conceitualiza-cao de "estrutura social" (Porpora, 1989). A saber, a estru-tura social:

• como modelos de conduta agrupados atraves do tem-po (proveniente de Homans);• como sistemas de redoes humanas entre posigoessociais (de ascendencia marxista);• como regularidades que govemam a conduta social(proveniente da sociologia estrutural);• como regras coletivas que estruturam o comportamen-to (relacionada com a etnometodologia, o interacionis-mo simbolico, etc.).

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3. A analise do discurso nas cienrias sociais...

Essa ultima e, a priori, a que parece mais adequadapara enquadrar os tres topicos com que estamos lidandoagora: estrutura, pratica social e discurso. E facil acrescen-tar a essa concepcao certas contribuigoes de Giddens e deFoucault, bem assim como algunias derivacoes extraidasda obra de Wittgenstein. A proposta inicial poderia sermais ou menos a que se segue.

Giddens (1984) distingue entre estrutura, sistema e es-truturagao. A estrutura se refere as regras e/ou conjuntosde relacoes de transformapao organizadas como proprie-dades dos sistemas sociais. Sistema se refere as relagoes,reproduzidas entre atores/as ou coletivos, organizadas comopraticas sociais regulares. Estruturagao se refere as condi-goes que regem a continuidade ou transmutagao de estru-turas e a reprodugao dos sistemas sociais.

Para incorporar o discurso nesse esquema temos querecorrer a obra de Fairclough (1989; 1992), que contribuiumuito para esclarecer essa questao ao analisar a conexaoentre discurso e as variaveis macrossociais.

Com efeito, em primeiro lugar e uma questao de admi-tir totalmente a distingao entre linguagem e discurso. 0discurso e a linguagem enquanto pratica social determina-da por estruturas sociais (as regras e/ou conjuntos de re-lagoes de transformacao organizadas como propriedadesdos sistemas sociais). Ao aceitar essa premissa, estamosaceitando tambem que a estrutura social determina, dessaforma, as condicoes de produpao do discurso.

Ora, o discurso esta determinado por ordens de discur-so socialmente construidas. Por ordens de discurso enten-demos os conjuntos de convengoes associados as institui-coes sociais (assim, as ordens de discurso estao ideologi-camente formadas por relagoes de poder nas instituigoessociais e na sociedade como um todo).

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Em virtude da dualidade da estrutura, no sentido deGiddens, o discurso afeta as estruturas sociais e, ao mesmotempo, esta detenninado por elas. Por conseguinte, o discur-so contribui tanto para a manutencao como para a mudan9asocial. Se isso e verdade, uma AD das praticas discursivasnos informa tanto sobre a construcao e reconstrucao da es-trutura social como sobre a configuracao dos sujeitos.

Essa descric. ao das conexoes entre discurso e estruturasocial necessita varias observa9oes para ter validade comoproposta.

a) Em primeiro lugar, que o discurso e linguagem comoprdtica social determinada por estruturas sociais signifi-ca que:

• a linguagem e uma parte da sociedade e nao algo ex-terno a ela;• e um processo social;• e um processo condicionado social e historicamente,no mesmo sentido que isso ocorre com outras partesou processes nao linguisticos.

Com efeito, nao ha uma relagao externa "entre" lin-guagem e sociedade, e sim uma relapao intema e de duali-dade estrutural. A linguagem e uma parte da sociedade; osfenomenos linguisticos sao fenomenos sociais e os fenome-nos sociais sao (em grande parte) fenomenos linguisticos.

b) A segunda observapao e mais direta. Defender que aestrutura social sao regras e conjuntos de relacoes nao sig-nifica compartilhar a hipotese do situacionismo meto-dologico (as explica9oes descritivas adequadas dos feno-menos sociais em grande escala podem ser extraidas daanalise da pratica social em siruacoes concretas). Comefeito, como deixou claro, entre outros, Knorr-Cetina (1988),a essa hipotese podemos opor uma outra: que a ordem ma-crossocial e, antes de tudo, uma ordem de representa9ao,

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3. A analise do discurso nas ciencias sociais...

ou seja, a soma de referencias presentes e extraidas demicrossituacoes.

Essa posifao e claramente discutivel, mas suas con-sequencias para uma considera9ao da linguagem nas cien-cias sociais sao obvias. Sua importincia reside no fatode que ela permite diferenciar os/as analistas do discursodos/das analistas da linguagem e da intera9ao imedia-ta, alem de permitir nossa conexao com posicionamentosconstrutivistas, pelo menos com um construtivismo socialcomprometido.

A pertinencia social dos estudos sociais baseados naAD nao e algo que possa ser deduzido automaticamente.Para isso e precise refletir, como estamos fazendo, sobreas praticas em que os/as varios/as analistas se veem envol-vidos. Na verdade, se um profissional se visse envolvido,por exemplo, em uma situa9ao enormemente problernati-ca ou de conilito social, as perguntas que ele deveria for-mular a partir de uma posi9ao como a que acabarnos deprecisar seriam:

• que posi9ao ocupamos e como podemos intervirnela?mais que qual e o melhor procedimento para estudaresse processo?;• como contra-arrestar o discurso do poder? mais queo procedimento analitico foi o correto?

Se, para voltar ao que ja foi dito, a analise de um dis-curso particular nao vai ser nada mais que um exercicioacademico, o tema perde o interesse, tornando-se uma dis-cussao bizantina. Mesmo que tenha predominado a aceita-cao da oposi9ao entre falar e fazer que se contrapoe ao fa-lar com o fazer ou pratica real nao deve implicar a renun-cia a fala como forma privilegiada de transforma9ao so-cial. Nesse contexto, como vimos argumentando, a AD porsi mesma constitui simultaneamente uma ferramenta para

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a compreensao e para a transforroacao. E preciso tambemressaltar que a AD como praxis social nao pode ser outracoisa senao um ato de comunicacao. A atividade cientifi-ca, e a AD, como exercfcio contemplative, como atividadeiniciatoria priva a ciencia social de urn meio privilegiadopara a acao.

Como diz Michel Foucault (1969: 350-351):

Temo que o senhor esteja cometendo um erro duplo: aproposito das praticas discursivas que tratei de definir ea proposito da parte que o senhor mesmo reserva a liber-dade humana. As positividades que eu tentei estabelecernao devem ser compreendidas como um conjunto de de-terminacoes que se impuseram do exterior sobre o pen-samento dos individuos, ou que o habitam no interior ecomo que a priori; elas constituent, sim, o conjunto dascondifoes segundo as quais exerceraos uma pratica, se-gundo as quais essa pratica da lugar a alguns enuncia-dos parcial ou totalmente novos, segundo as quais, en-fim, pode ser modificada, Trata-se menos dos limitescolocados a iniciativa dos sujeitos que do campo em quese articula (sem constituir seu centra), das regras que uti-liza (sem que as tenha inventado nem formulado), dasrelacoes que Ihe servem de apoio (sem que ela seja seuresultado ultimo nem seu ponto de convergencia). Tra-ta-se de fazer aparecer as praticas discursivas em suacomplexidade e em sua densidade; mostrar que falar efazer algo, algo diferente do que-expressar o que se pen-sa, traduzir o que se sabe, diferente de por em jogo as es-truturas de uma lingua; mostrar que agregar um enuncia-do a uma serie preexistente de enunciados e fazer umgesto complicado e custoso, que implica algumas condi-9oes (e nao somente uma situa9ao, um contexto, algunsmotivos) e que comporta algumas regras (diferentes dasregras logicas e lingiiisticas de construcao); mostrarque uma mudanca, na ordem do discurso, nao pressupoe"ideias novas", um pouco de inven9ao e de criativida-de, uma mentalidade distinta, e sim algumas transfor-

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3. A analise do discurso nas ciencias socials...

rha9oes em uma pratica, eventualmente nas praticas pro-ximas e em sua articula9ao comum. Eu nao neguei, lon-ge disso, a possibilidade de mudar o discurso: so Ihe tireio direito exclusive e instantaneo a soberania do sujeito.

5. Sintese

Neste capitulo apresentamos a Analise do Discursocomo uma forma de levar a pratica a importancia da lin-guagem na compreensao e nos estudos dos processes so-ciais. Discurso e Analise do Discurso nao sao, no entanto,termos univocos e sim cheios de sentidos diferentes emcada uma de suas variedades, tradicoes e praticas.

Portanto, em primeiro lugar, tentamos reproduzir essavariedade de posi9oes fazendo um rapido exame daquelasorienta^oes e tradi9oes da Analise do Discurso que ternum carater transdisciplinar mais evidente, tais como a so-ciolingiiistica interacional, a etnografia da comunicagao, aanalise conversacional, a analise critica do discurso e a psi-cologia discursiva.

Em segundo lugar, mostramos varias defiru^oes de "dis-curso" que repetem essa caracteristica plural presente nasvarias praticas. Visto que o reconhecimento da diversi-dade nao deve excluir a defesa de uma posicao, oferece-mos uma defini9ao tentativa de "discurso" e de "analise dodiscurso" que e coerente com os fundamentos descritosno capitulo 2.

Com essa mesma preocupacao de manter em aberto ede tomar visivel a maior quantidade possivel de concep-goes, embora explicitando claramente nossas preferen-cias, detalhamos, em terceiro lugar, a praxis da Analise doDiscurso. Essa foi apresentada segundo duas tradigoes es-pecificas, a anglo-saxa e a francesa. Explicamos entao oque e possivel fazer com um texto na pratica: a defini9aodo processo social que vamos analisar, a selecao do mate-

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rial-relevante para a analise segundo os criterios de repre-sentatividade e produgao de efeitos, a materializacao docorpus e um detalhe de ferramentas especificas de analisecomo a identificagao dos "atos de fala", implicaturas, estru-turas retoricas, repertories interpretativos e polaridades.

Em quarto lugar, debatemos a viabilidade da Analise doDiscurso como uma perspectiva nova e frutifera nas cien-cias sociais. Nesse sentido, oferecemos uma reflexao sobreas implicagoes da pratica analitica discursiva, sobre a im-portancia da consideracao do contexto social em que se cons-troi o discurso e, finalmente, sobre o papel do discurso naconstrucao, manutencao e mudanca da estrutura social.

GLossario

Analise Conversational: metodo de analise que poe empratica os principios da etnometodologia. Estuda a or-dem e a organizagao da acao social cotidiana atraves daanalise rigorosa das conversacoes.

Analise Critica do Discurso: modalidade da AD que, atra-ves do uso de procedimentos e tecnicas de varias tradi-c.oes, estuda as acoes sociais que sao postas em praticaatraves do discurso e que implicam abuso de poder, afir-magao do controle social, dominacao, desigualdade so-cial, marginalizacao e exclusao sociais.

Analise do Discurso: estudo das praticas linguisticas paraesclarecer as relapoes sociais estimuladas e mantidaspelo discurso.

Corpus: qualquer conjunto de enunciados em um meiomaterial. Pode se tratar de transcri9oes de enunciadosorais, reprodugoes de elementos graficos e textos pre-viamente escritos.

Discurso: conjunto de praticas linguisticas que mantem eestimulam relagoes sociais.

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3. A analise do discurso nas ciencias sociais...

Enunciador: lugar a partir do qual o enunciado e produzi-do - autor textual. Pode ou nao coincidir com o locutor- o emissor material de um enunciado.

Etnografla da comunicaqao: tradigao da AD provenienteda antropologia e da lingiiistica cujo objeto de analise ea "competencia comunicativa". Ou seja, o conhecimen-to social, psicologico, cultural e linguistico que rege ouso apropriado da linguagem.

Psicologia discursiva: perspectiva nascida no contexto dapsicologia e que se apoia na etnometodologia e na AC.Enfatiza o exame das relacoes e das crencas na fala exa-tamente como essa e usada pelos participantes em umainteracao social.

Sociologia interacional: tradigao da AD proveniente daantropologia, da sociologia e da lingiiistica que tern co-mo objeto de analise a interagao caracterizada por umarelagao assimetrica dos participantes.

Texto: conjunto de enunciados produzidos em contextossociais a partir de posicoes de enunciacao.

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157

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Lupicinio Iniguez

tativos. In: GORDO, A. & LINAZA, J. (orgs.). Psicolo-gias, discursos y poder (PDF). Madri: Visor.

Leituras recomendadasBILLIG, M. (1987). Arguing and Thinking: A Rethorical

Approach to Social Psychology, Cambridge: Cambrid-ge University Press.Nesse liwo o leitor encontrara nao so uma maneira deaplicar analiticamente a retorica mas tambem uma pro-posta para a re-conceitualizagao de processes psicosso-ciais e sociologicos a partir de uma perspectiva retorica.

CASAMIGLIA, H. & TUSON, A. (1999). Las cosas delde-cir - Manual de Andlisis del Discurso. Barcelona: Ariel.Essas autoras oferecem nesse manual urn amplo inven-tario de recursos analiticos para a pratica da analise dodiscurso.

EDWARDS, D. & POTTER, J. (1992). Discoursive Psycho-logy. Londres: Sage.Um livro que nos permite aprotundar-nos na perspecti-va da "Psicologia Discursiva".

MARTIN ROJO, L. & WHITTAKER, R. (1998). Poder-de-cir o el poder de los discursos. Madri: Arrecife/ Uam.Livro altamente recomendavel para um panorama detrabalhos na orienta9ao critica da.-analise do discurso.

POTTER, J. & WETHERELL, M. (1987). Discourse andSocial Psychology: Beyond attitudes and behaviour. Lon-dres: Sage.Poucas vezes uma obra conseguiu produzir no interiorde uma disciplina um impacto tao grande como o quefoi produzido por esse livro no seio da psicologia social.E uma obra imprescindivel para todos aqueles e aquelasque queiram fazer valer o papel da linguagem nas cien-cias sociais.

158

3". A analise do discurso nas ciencias sociais...

SACKS, H. (1992). Lectures on conversation. CambridgeMass.: Blackwell.Sacks e o principal promoter da Analise Conversacio-nal. Entre suas multiplas peculiaridades. esta o fato dehaver sido um professor magnifico. Embora nao sejapossivel dizer que, em vida, tivesse escrito uma obra demagnitude, seus alunos colecionaram suas classes e es-sas foram publicadas em 1992 por^Gail Jefferson comuma introdugao de E.A. Schegloff. E um texto muito ex-tenso e altamente especializado, mas e tambem uma re-ferenda basica para qualquer pessoa que busque umaintrodugao a AC. Nao existem traducoes em castelhano,mas existem dois artigos seus muito interessantes na re-copilagao de Felix Diaz (2000). Sociologias de la situa-tion. Madri: La Piqueta.

SCHIFFRIN, D. (1994). Approaches to Discourse. Oxford:Blackwell.Esse texto e um dos melhores manuals disponiveis so-bre o discurso e sobre a Analise do Discurso. Emboraesteja claramente orientado para um publico especiali-zado em linguistica, qualquer cientista social pode tirardele um proveito extraordinario.

VAN DDK, T. (org.) (2000). Estudios del discurso. 2 vol.Barcelona/Buenos Aires: Gedisa.Trata-se de uma recopilacao essencial para conhecer asvarias orientacoes da Analise do Discurso, sens variesmetodos e campos de aplicagao. Uma obra de referendabasica.

VAYREDA, A. (1995). Una aproximacion al Analisis deldiscurso desde la teoria de la enunciacion. Revista dePsicologia Aplicada, vol. 5, n. 1/2 [s.n.t.].Nesse trabalho o leitor encontrara uma sintese da esco-la francesa da AD, a que apenas aludimos neste ma-nual, aplicada a um estudo especifico dos discursos so-bre o aborto.

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Lupicinio Iniguez

WETHERELL, M. & POTTER, J, (1992). Mapping thelanguage of racism. Londres: Harvester Wheat Sheaf,O melhor exemplo de como aplicar a AD. A partir doconceito de repertorio interpretative, os autores anali-sam o discurso no caso do racismo e das condi9oes deexclusao da populagao maori, na Nova Zelandia.

160

Psicologos, sociologos e outros cientistas sociais sem-pre tiveram um enorme fascinio pelas relacoes interpes-

soais. Nao faltam pesquisas academicas sobre o assunto e oestudioso as encontrara em muitas disciplinas, sob muitostitulos e com uma variedade de abordagens teoricas.

O que normalmente falta na pesquisa cientifica sociale um exame de como, exatamente, alguem demonstra seu"relacionamento" com outras pessoas - ou como esse rela-cionamento muda de um momento para outro. A psicolo-giaj por exemplo, envolve-se com frequencia em pesqui-sas que exigem que as pessoas preencham questionariossobre seus relacionamentos, e os pesquisadores acreditamque as pessoas serao capazes de se lembrar das coisas, deresumi-las de forma adequada e de serem razoavelmentesinceras em suas respostas.

* Loughborought University.** Universidade de Castela, La Mancha.

161

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Charles Antaki e Felix Diaz

Existem inumeras razoes bastante conhecidas para queduvidemos de metodos de investigacao como questiona-rios e testes, pelo menos como registros precisos daquiloque realmente ocorreu no fenomeno original. Aqui nao e olugar para dar inicio a uma discussao comparativa (veja omaterial no capitulo 3). Ha, e claro, muitos metodos alter-natives a nossa disposicao e, de um modo geral, este livrofornece ao leitor uma variedade estimulante dos produtosem oferta. Neste capitulo, escolhemos concentrar-nos "nolugar onde esta a a^ao". Ou seja, nao comecaremos comteorias sobre o que deveria ser importante nas relacoespessoais das pessoas e sim com aquilo que elas fazem umascom as outras, obviamente ate o ponto em que pudermoscaptar o que ocorre.

Um bom lugar para comepar a procurar e na lingua-gem, j a que existe um bom motivo para afirmar que ela e omeio principal e primordial que as pessoas tern para se fa-zerem conhecer pelos outros. Quando falamos em "lin-guagem" nao queremos dizer linguagem-no-abstrato, ouexemplos que nos mesmos inventamos. Queremos dizera linguagem em uso, quando as pessoas estao realizandosuas tarefas cotidianas e vivendo suas vidas. Desde a deca-da de I960, a facilidade de acesso aos gravadores, e o fatode que gravacoes podem ser escutadas varias vezes, fize-ram com que psicologos e outros cientistas pudessem pelaprimeira vez estudar atentamente o que as pessoas fazem.No entanto, o maior progresso surgiu com o trabalho pio-neiro de um sociologo norte-americano, Harvey Sacks,que, junto com colaboradores, descobriu aquilo que hojeja se transformou em uma disciplina madura e estabeleci-da em seu proprio direito: a Analise Conversacional.

Basicamente, a Analise Conversacional (AC) pode serrealizada de duas maneiras. Uma delas, a mais basica, eexpandir nosso conhecimento sobre como as conversas "ope-

162

4. A analise da conversacao...

ram" - o que e que as pessoas fazem com sua fala para se-rem entendidas umas pelas outras, e para produzir "a vidacotidiana" como a conhecemos. Quanto mais pudermosfazer isso, mais seremos capazes de chegar ao outro uso daAC, que e aplicar todo esse conhecimento a algum dadoespecifico e ver o que ele nos diz.

Ambas tecnicas sao igualmente validas. A escolha de-pende da pergunta feita pela pesquisa. Se voce for urn/apesquisador/a "basico" pode se sentir atraido/a pela tarefamais basica de destrinchar uma conversa para ver comofunciona e o que faz. For outro lado, se voce ja tern interes-se em um determinado fenomeno - tao amplo quanto "in-teragao familiar" ou tao restrito quanto, digamos, "a nia-neira como medicos transmitem o diagnostico a seus pa-cientes" - nesse caso voce pode coletar dados especificosaquele fenomeno e, a seguir, aplicar-lhes a AC.

Nos dois casos, o pesquisador vai querer trabalhar comuma transcripao de boa qualidade daquilo que foi realmen-te dito originalmente. E, a medida que as tecnicas vao sedesenvolvendo e a tecnologia vai ficando mais facil demanipular, e provavel que queiramos ter tambem um gra-vador de videos alem de um gravador de som, para quepossamos ter uma impressao mais completa daquilo que real-mente aconteceu. E claro, qualquer registro sera sempreparcial, mas vendo e ouvindo o video e as grava96es po-deremos pelo menos nos aproximar daquilo que ocorreu na-quele momento.

A analise relatada neste capitulo esta a meio caminhoentre uma exploragao "pura" de como alguma coisa e fei-ta e um interesse mais "aplicado". Isso ocorre porque am-bos autores ha muito tempo tern um interesse investigati-ve em um tipo de interacao especifico (a entrevista sobreassistencia na saude) e descobrimos que a AC identifi-

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cou algumas complexidades ocultas nessa area. Basica-mente, achamos que a AC revela a "humanidade" ate naentrevista mais rigida e e por isso que podemos fazer comque os dados a seguir falem sobre a questao de "relacoesinterpessoais".

1. Analise

No que se segue, construiremos uma serie de passa-gens de um grande corpus1 e come9aremos a buscar pa-droes na maneira em que os falantes usam as palavras e asimplicapoes que isso tern.

Comecemos com um exemplo. A primeira coisa quepodera vir a mente do leitor e que o texto e complicado de-vido a alguns simbolos que normalmente nao encontra-mos em registros escritos de conversas, nem mesmo empublicac/oes especializadas. Esses simbolos sao utilizadospara tehtar capturar o som das palavras quando elas foramfaladas originalmente. E claro, a representa^ao nao e per-feita, mas, uma vez mais, e melhor que a memoria de al-guem, que certamente tera falhas, ou ate as anotacoes fei-tas na hora da conversa. A explicacao para os simbolosesta no Apendice 1.

MFE esta respondendo a uma pergunta sobre o efeitode um certo remedio. Observe como FE a seguir faz suapergunta nas linhas 4 a 8.

1 Os dados sao de entrevistas realizadas pelo segundo autor para umprojeto de pesquisa financiado pela Comunidad Autonoma de Maori.Gostariamos de agradecer aos fimcionarios do Service de Oncologia Medi-cano hospital "La Paz" em Madri, e os entrevistados (todos eles pa-cientes do Service) por sua colaboracao na coleta dos dados.

164

4. A analise da conversagao.

{1} MF Unidades de texto 153-163 [15.3]2

1 MFE: Normal, pero por lo demta2 (2.0)3 MFE: perfecto todo4 -» FE: y eso es facilde:: de::mh

de notar la relation?5 -> (.2)6 ->• >(o sea=se-) se nota

mu:cho no? el cambio:7 -» (1.0)8 —> FE: [cuando llegan esos cuatro

o cinco dtias detratamtiento?

9 MFE: Leh::10 MFE: hombre tsi, si ehm yo

pues por ejemplo me lovan a

11 dar hoy i,no? pues12 bueno, pues a partir de

manana por la tarde yaempiezo .

2 Neste capitulo, como na maioria dos textos de AC, damos tirulosaos trechos de dados para identificar de onde vieram, se por acaso ou-tro pesquisador desejar ter acesso a eles. Nesse caso, o trecho 1 vemde uma entrevista com MF e pode ser localizado nas se9oes 153-163da fita transcrita e na posicao 15.3 do mostrador do gravador. Maistarde o leitor vera trechos com a etlqueta "Holt"; esses sao originariosde um corpus coletado e transcrito por outras pessoas, que tern suasproprias conve^oes de etiquetagem.Observe, alias, que, na medida do possivel, as transcricoes normalmente saoanonimas (com o uso de pseudonimos, etc.) a nao ser no caso de trans-cri9oes feitas de dados publicos, tais como transmissoes radiofonicas.

3 NT - por razoes obvias o dialogo nao pode ser traduzido no pro-prio texto. MFE: Normal, mas tudoperfeito demais. FE: e isso efacilde...de...hwn de notar, a relagao? ou seja, se nota muito a mudanqaquando chegam esses quatro ou cinco dias de tratamento? MFE: ei,cara, sim, sim, eu, pois, por exemplo, vao me dar hoje, nao? Pois mui-to bem, pois a partir de amanhd a tarde jd comedo,

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Depois de ter lido a transcribe e familiarizado com asconverges da transcri9ao, observe especialmente as li-nhas com setas. FE faz uma pergunta aparentemente sim-ples na linha 4. O que e que voce acha sobre a demora -pequena, mas perceptivel, antes de ele voltar a falar na li-nha 6? ou a demora maior (um segundo complete) antesde ele completar a pergunta reiterada na linha 8? A princi-pio, essas podem parecer questoes triviais, mas sao impor-tantes para a significacao de suas palavras (e, em uma es-cala mais ampla, para a atitude que ele esta comunicando aseu ouvinte). Agora podemos pedir ajuda ao conhecimen-to sobre a AC que temos.

2. Historico

Duas das coisas fundamentals descobertas pela AC sao,em primeiro lugar que, quando as pessoas falam, elas se or-ganizam de tal maneira que, normalmente, so uma pessoafala de cada vez. Isso, e claro, e uma questao de simples ob-servacao. Quando falam, as pessoas raramente sao interrom-pidas ou causam uma superposicao de falas. A questao, en-tao, e saber o que ocorre quando ha silencio. Como e que sa-bemos que e nossa vez de falar, ou se a pessoa que estava fa-lando por ultimo ainda "esta com a palavra"?

Parte da resposta e que o ultimo falante pode ter utili-zado alguma deixa ou indicagao bem clara de que e a vezde outra pessoa. Ha muitas maneiras de fazer isso, mas aque nos interessa no momento e aquilo que chamam de"pares adjacentes" (um termo inventado no final da de-cada de 1960 pelo ftmdador da AC, Harvey Sacks). Isso esimplesmente umpar de enunciados que "vao juntos" comouma pergunta e sua resposta, uma chamada e sua respos-ta, uma saudacao e outra sauda£ao em retorno. Esses sao ele-mentos bastante comuns de nossa linguagem e uma das coisas

, 166

4. A analise da conversagao.,.

que fazem e deixar claro que o atual falante acabou de falare que, portanto, e a vez de alguma outra pessoa. Fazer umapergunta significa que alguem tern que responder.

A segunda coisa que a AC descobriu e que a formacomo as pessoas respondem na segunda parte de "paresadjacentes" e essencial para o significado daquilo quedizem. Um atraso de uns poucos decimos de segundo aoresponder a um convite, por exemplo, diz ao mundo queprovavelmente voce nao vai aceitar. Compare essas duasmaneiras que um falante pode usar para responder a umconvite:

{2} Holt: 1988 Sem data. Lado 2: Chamada 1 (dados originaisem ingles)

1. Les: [.hhhhhh So we wondered if you'd like to meetus.hh

2. Am: Yes certainly.

{3}Holt: Outubro 1988: Lado 1: Chamada 11 (dados originaisem ingles)

1. Skip: [Uh:m (.) would Sunday be alrirght h.h.

2. (0.2)

3. Joy: eh Ye:s (as far as I:kno:w?

Observe que ha uma diferenca formal entre as respos-tas nos dialogos 2 e 3. No primeiro caso a resposta e rdpidae enfatica. No segundo, e precedida por uma pausa minimae por um pequeno som, "eh". Por menores que sejam esseselementos sinalizam que no exemplo 3 a resposta nao e a

4 NT - Les: Nos estavamos querendo saber se voce gostaria de en-contrar conosco. Arn: Logico,Skip: Domingo esta bem? Joy: hm ta, pelo que sei no momento.

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que seria de se esperar ou a normal (a resposta "esperada"no jargao da AC, embora isso nao queira dizer preferenciapsicologica). Nao temos nenhum problema em ouvir a res-posta de Am no trecho 2 como sendo um consentimento ouaceitacao sem qualiflcagoes, enquanto que na resposta deJoy, no trecho 3, ouvimos que ha pelo menos alguma quali-fica?ao na aceitacao, se nao uma rejeigao total.

A vantagem de um sistema como esse, onde uma pau-sa pode significar que o respondente nao vai dar a respostapreferida, e que a comunicacao pode ser implicita em vezde explicita. Uma vantagem e que quern faz a questao ou oconvite pode agir rapidamente se ele ou ela ouve uma pau-sa, e consertar a situagao mudando a pergunta ou o convi-te, e talvez ate mesmo, como no caso abaixo, imaginandouma resposta negativa:

{4} Holt:88U:l:8:7. (Dados originals em ingles)1. Gordon:.tch Are you gonna drive in. Cz I n-1 know there wz2. some rumour about it,3. (0.5)4. Gordon: .hhhh Or not.5. (0.5)6. Dana: No but I'll be downtown (0.2) at nineforty five5.

Gordon trata o silencio de Dana na linha 3 como umaindicasao de que o que vira nao sera a resposta esperada.Sabemos que a conversa humana esta organizada de ma-neira tal que a resposta esperada - a resposta rapida, enfa-tica - normalmente e positiva (um consentimento, uma

5 NT: Gordon: Voce vai levar o carro? Houve um boato a esse res-peito. Gordon: Ou nao. Dana: Nao, mas eu estarei no centra as novee quarenta e cinco.

168

4. A analise da conversagao...

aceita£ao, uma aquiescencia e assim por diante), portantoparece que Dana esta se preparando para dar uma respostanegativa. Gordon deixa que o silencio continue por meiosegundo antes de continuar com uma altemativa (.hhh Ornot) que interpreta o silencio e imagina a priori o queDana ira dizer. Dana ainda deixa outro meio segundo an-tes de responder, confirmando que, na verdade, sua res-posta e a resposta negativa que nao era a esperada.

3. 0 que e que isso nos diz sobre nossosproprios dados?

Ha uma grande possibilidade de que aquilo que nos vi-mos acontecer no trecho 1 seja algo muito semelhante aoque esta acontecendo acima. Isto e, que FE tenha pergun-tado algo que espera uma resposta e quando ha um silen-cio (mesmo o mais breve dos silencios) e uma indicagaode que a resposta esperada nao vem.

Certamente a pergunta de FE no trecho 1 nao e umconvite (que espera uma aceitapao) nem e um pedido (queespera uma aquiescencia) mas, apesar disso, e uma per-gunta e uma pergunta espera algum tipo de resposta. Mui-tas vezes, e claro, a resposta nao vira rapida e enfatica-mente, como no caso abaixo:

(5}BR Text Units 172-197: [16.9]

1. FE: >Pero en general tienes una red de apoyo pareceser, £no?=

2. BR: =>Si no no <extraordinaria, no a ese nivtel,o sea, tengo <-una red impresionante .

6 NT - FE: Mas, em geral, voce tern uma rede de apoio, nao e isso?BR: Sim, nao, nao extraordinaria, nao chega a esse nivel, ou seja, eutenho uma rede respeitavel.

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Pode ocorrer que a resposta preferida poderia ate im-bricar-se com sua pergunta, como no caso a seguir:

{6} MR Text units 50-60:[6.6]

1 FE (tsk) > o sea ya- ya estaban <ablando de2 la posibilidad de un tuimor o al [go asi.3 MR: |_>si si no

notya-<(y)=ya

4 daban por hecho que tenia un tumor .

Mas vimos que a resposta nao foi dada com tanta rapidezcomo no trecho 1. Houve um atraso. Vejamos outra vez:

{7, repeti^ao parcial do trecho 1}

4. FE: y eso es facil de::de:: mh de notar la relacion?5. (.2)6.-* >(o sea=se-) se nota mu:cho no? el cambio:7. (1.0)8. FE: Icuando Ihegan esos cuatro o cinco dTias de

tratamtiento?9. MFErLeh::8.

A pergunta sim/nao de FE espera uma resposta de MF,e, dada a expectativa geral de que as respostas serao positi-vas, a pergunta esta destinada a ser respondida facilmentepor um "sim". Mas esse sim nao vem imediatamente. FEnao pennite que o silencio dure tanto tempo quanto Gor-

7 NT - FE: Ou seja, ja estavam falando de um possivel tumor oualgo parecido. MR: Sim, Sim, Nao, Nao, ja davam coino certo que eutivesse um tumor.

8 FE: e nao e facil perceber a relacao? Isto e, a mudanca e muito per-ceptivel? Quando chegam esses quatro ou cinco dias de tratamento?MFE: eh.

170

4. A analise da conversagao...

don permitiu no exemplo 3 acima (onde o silencio duroumeio segundo), mas entra de uma maneira razoavelmenteimediata em apenas .2 de um segundo. Mais com demorasuficiente para que a falta de resposta sej a notada, e para au-torizar FE a oferecer uma alternativa. Com efeito, ele mudaa orientacao da pergunta para fazer com que agora sej a inaisfacil responde-la de forma contraria, isto e, "nao muito".

Mesmo havendo uma pausa, e uma pausa longa dessavez (1 segundo), FE uma vez mais entra, embora dessa vezao mesmo tempo que MF, que comeca a dizer algo (comum som como (eh::' que sabemos e sinal de uma respostanao preferida). Uma vez mais, FE interpreta o silencio comosendo resultado de algum problema que MF esta tendo coma pergunta. Pode ser que a expectativa de FE fosse que MFentendesse que o que se queria era uma comparacao entrecomo ele se sentia antes e depois de tomar o remedio. Aoredesenhar a pergunta, ele a toma muito mais explicita. Issoajudaria MF a ver que tipo de resposta era desejada. E, naverdade, MF agora responde positivamente.

{7a contumacao de 7}

10. MFE hombreTsi, si, ehm yo pues por ejemplo melo van a dar hoy

11. £,no? Pues bueno, pues a partir de manana porla tarde ya empiezo .

4. Construindo mais casos

Vejamos se nos e possivel obter mais exernplos do mes-mo corpus. Talvez possamos esbosar um padrao. Se con-seguinnos, talvez possamos ter algo a dizer a respeito de

9 MFE: Cara, sim, sim, eh, eu, pois, por exemplo, vao me dar hoje.Nao. Pois bem, pois a partir de amanha a tarde ja cornego.

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como FE lida com seus respondentes (pelo menos em al-guns aspectos) e teremos uma fonte de evidencia seguraem que basear nossas propostas - isto e, aquilo que real-mente aconteceu (oupelo menos segundo o que foi captadopela transcricao).

{8} AJ Text Units 25-35:[3.2]

1, FE: mh (.2)::: en el momento de la operation (.)le habian:: (.2) diagnosticado ya>cualera=el<problema?f(.2) (°O SI::°)L(Si bueno - bueno claro antes habia esta:do

2.

3.3. AJ:

(.2) antes de estar alii Qclaro10

Uma vez mais FE perguntou alguma coisa a seu inter-locutor, portanto temos novamente um par de adjacenciade pergunta-resposta. Dessa vez, o respondente respondede imediato, mas podemos ver que sua resposta imbrica-secom uma pequena pausa. FE deixou 0.2 de segundo antesde tentar uma alternativa - talvez, por via das duvidas, seAJ nao respondesse.

Considere mais esse trecho (9). Aqui FE faz uma per-gunta sim/nao na linha 1, obviamente prevendo uma res-posta com sim ou com nao. A resposta nao vem com rapi-dez (ha uma pausa de 0.4 de segundo naJinha 2. Ele conti-nua (linha 3) mas o faz de tal forma que deixa claro queesta expandindo ou esclarecendo sua pergunta.

10 FE: hum e no momento da opera?ao ja tinham diagnosticadoqual era o problema? ou se AJ: Sim, bem, bem, claro antes ja tinha es-tado, antes de estar ali, claro.

1721

4. A analise da cohversagao...

{9} BR Text units 85-103 [9.4]

1. FE: Puede venir de-de las verteb°ra::s?2. (.4)3. FE: O sea de:: de la °( )de-que:: Qosea que

tienes?4. (-2)5. FE: o:6. BR: eh lode:: fde la ade lnopatia:=7. FE: Lo es independiente J

Observe que FE "tropec.a" quando profere sua expan-sao na linha 3; ele a desenha para que nao saia com fluidez.Isso da mais tempo para que BR possa responder, diga-mos, sem nenhuma sugestao, para mostrar que ele sabe oque Ihe estao solicitando. Mas BR nao o faz. FE deixa umaoutra pausa de 0.2 segundos antes de lancar uma terceiratentativa a questao (linha 5) um o:: prolongado. E nessemomenta, na terceira tentativa, que BR entra com a res-posta. Curiosamente, nao e uma resposta direta a questao,e sim uma pergunta em si mesma, checando ao que e queFE esta se referindo. Isso tambem diz algo sobre a diflcul-dade inicial da pergunta feita antes, na linha 1. Portanto te-mos as duas partes exibindo sensapao de que alguma coisaestranha esta acontecendo.

O mesmo padrao flea visivel no ultimo dos trechos queveremos. Observe uma vez mais que FE diz alguma coisa(na linha 2) que exige uma resposta. E colocado como umaafirmasao. (Solo no has venido nunca.) Mas ouve-se comose estivesse exigindo pelo menos uma confirmacao. Essanao vem imediatamente - linhas 4 e 5 novamente mostramo padrao de FE que deixa um espafo para o interlocutor

11 NT-FE: Pode vir das vertebras? Isto e, da... de que, isto e, o quevoce tern? BR: eh, o de [da ade] nopatia: FE: [ou e independente].

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responder, mas que entra de uma maneira razoavelmenterapida quando esse nao responde.

{10}BR text units 172-197: [16.9]

1. BR: Estoy©.4) muy protegido, muy apoyado, muyarropado, muy: -(6)

2. FE: Solo no has venido nunca.

3. (.2)

4. FE: 0 si=

5. BR: =>Bueno, (a'ra) a<lo mejor circunstancialmente(he venido 6. alguna solo fiie-).(.2)

7. FE: mhhm

8. BR: Pues no se, por° que°: (.4) no se(.)>Poralgun<motivoT ()pero

9. FE: L si por lo que

10. fuera 12

Na linha 5, FE modifica a altemativa (de nunca parasi) em uma tentativa de dar a BR uma altemativa a qualpossa ser dada uma resposta rapida. BR entra rapidamen-te, na verdade tao rapidamente que e possivel ate que elenao esteja realmente respondendo a essa nova altemativa(ele mal teria tido tempo de ouvi-la) e,na sua resposta, naslinhas 5 e 6, da o tipo de relate qualificado que e tipico derespostas nao preferidas.

12 NT - BR: Estou: muito protegido, com muito apoio, muito aga-salhado, muito. FE: Sozinho voce nao veio nunca. Ou sim BR: Bern,e possivel, que circunstancialmente tenha vindo alguma so foi FE:hum BR: Pois, nao sei por que. Nao sei. Por algum motivo, mas FE: Sim,pelo que fosse.

174

4. A analise da conversagao...

5. "Delkadeza"?

Agora que temos urn padrao da organizagao seqiien-cial desses pares adjacentes, podemos come9ar a fazer no-vas perguntas sobre eles como grupo. Ha alguma coisa,talvez, na natureza da pergunta que FE faz todas as vezesque provoca essa falta de uma resposta rapida por parte deseus interlocutores? Comecando com exemplo 1, FE per-guntou sobre: se foram notados os efeitos de um remedio;a diagnose do problema do paciente; se o paciente tinhaquaisquer conflitos com o pessoal medico; a possivel loca-lizasao do problema medico nas vertebras; e se o pacienteja tinha ido ao hospital sozinho.

A principio, nao parece haver nada especifica e obvia-mente sensivel acerca de todas essas perguntas, considera-das como um todo. No entanto, elas ocasionam um "pro-blema" na maneira como sao captadas pelo respondente. Ee urn problema que faz FE agir muito rapidamente paraneutralizar. E ai que temos a evidencia de que isso e "deli-cado". Nao no conteudo das perguntas, porque nao sabe-mos (e nao podemos saber, apenas adivinhar) se elas sao"realmente" constrangedoras ou especialmente sensiveise assim por diante. Mas podemos ver que, a partir do mo-mento que ele entra rapidamente com alternativas e escla-recimentos, FE as estd tratando como se fossem trazerproblemas para seus respondentes.

6. Comentarios a guisa de conclusao

O objetivo deste capitiilo foi demonstrar o que a Anali-se Conversacional (AC) pode oferecer como um instru-mento para a pesquisa da linguagem e processes sociais. AAC traz a tona qualquer coisa que uma pessoa pode fazerem interasao com outras, e aqui usamos um caso especifi-co para demonstrar como um falante pode exibir "delicade-za" em sua fala. Como o capitulo associado sobre Psicolo-gia Discursiva (que e parente proxima da AC) a abordagem

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Charles Antaki e Felix Diaz

neste capitulo se concentrou na maneira como as pessoas naverdade elaboram sua fala em uma conversa real. A carac-teristica especifica em que nos concentramos foi o "par deadjacencia", o forte relacionamento que a voz de uma pes-soa em uma conversa tem com aquilo que vem a seguir.

Comec.amos nos perguntando o que e que a AC pode-ria nos dizer sobre um fenomeno tao amplo e aparente-mente "macro" quanto as redoes socials. Esperamos queo que fizemos conseguiu mostrar que o "macro" pode seranalisado atraves do "micro" e que talvez nao haja essadistincao. Tivemos algumas coisas a dizer sobre o relacio-namento de FE com seus interlocutores, baseado em umtipo de evidencia muito solida, ou seja, a evidencia de umatranscrigao dos intercambios entre eles. Isso e um tipo deprova bastante diferente daquela que encontrariamos emevidencias como (por exemplo) um questionario sobre asatitudes de FE ou uma entrevista que depende de sua me-moria ou de suas proprias teorias e reflexoes (que seriamapenas uma outra fonte de dados a serem analisados).

E claro, o que fizemos mal chegou a arranhar a superfl-cie. Apesar disso, vimos que ha um significado social atemesmo em uma caracteristica da fala aparentemente taoinsignificante como um atraso de dois decimos de um se-gundo em uma resposta. Isso pode sinalizar o nao apareci-mento de uma resposta esperada e, em nossos trechos, pa-rece ter feito corn que FE agisse para evitar algumas desuas implicates possiveis - que sua pergunta era inade-quada, inoportuna, ininteligivel, e assim por diante. Em ou-tras palavras, vimos o cuidado que ele dedicou a "delicade-za" - para usar uma palavra ampla - em seus intercambioscom as pessoas, e talvez, portanto, a humanidade da situa-9ao em que ele e seus interlocutores se encontravam.

Glossario

Analise Conversational: o estudo da linguagem em uso -como as pessoas agem nos intercambios orais.

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4. A analise da conversagao...

Par de adjacencia: uma das estruturas basicas da lingua-gem em uso - um enunciado (por exemplo, uma pergun-ta) prediz fortemente que um certo tipo de enunciadosera produzido como resposta (por exemplo, respostas).

Preferencia: enunciados que sao a segunda parte de umpar de adjacencia podem ser de dois tipos: o tipo breve,rapido, sem marcas (que tendem a ser concordancia,consentimento, etc.) e o tipo "nao preferido" que sao as-sinalados com pausas, evasivas, alguma falta de fluen-cia e o fornecimento de um relate (e tendem a ser recu-sas, discordancia, etc.).

Transcrigao: a reproducao de fala gravada tao fielmentequanto possivel. AC desenvolveu uma notacao especialpara captar as caracteristicas da conversa que a orto-grafia comum ignora (por exemplo, entona9ao, volume,imbricagao) porque essas podem ser (e muitas vezes re-almente sao) significantes para a compreensao daquiloque o falante esta fazendo.

Leituras recomendadas

A maior parte das fontes basicas, e grande parte do tra-balho de pesquisa sobre a AC ja publicado, sao em ingles(embora o trabalho seja feito internacionalmente, comcontribuicoes substanciais dos Estados Unidos, Gra-Bre-tanha, Paises Baixos, Japao, Finlandia, Canada e muitosoutros paises, inclusive a Espanha). Em ingles, as introdu-goes longas a AC mais acessiveis sao os seguintes livros:

HUTCHBY, W. & WOOFFITT, R. (1998). ConversationAnalysis. Cambridge, RU: Polity Press.

NOFSINGER, R.E. (1991). Everyday Conversation. New-bury Park: Sage.

TEN HAVE, P. (1998). Doing Conversation Analysis. Lon-dres: Sage.

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Charles Antaki e Felix Diaz

E possivel tambem encontrar alguns capitulos sobre oassunto em manuals de metodologia, especialmente aque-les que se concentram em metodos qualitativos. Entre osmais recomendaveis estao:HERITAGE, J. (1997). Conversation analysis and insti-

tutional talk: Analysing data. In: SILVERMAN, A.D.(org.). Qualitative Research: Theory, Method and Prac-tice. Londres: Sage.

O caminho mais direto possivel para a AC encontra-senos escritos do proprio Sacks. A referenda classica e atranscricao de suas palestras dos anos 1960 e 1970, publi-cadas postumamente.SACKS, H. (1992). Lectures on conversation. Vol. I e II.

Oxford: Basil Blackwell [Organizadas por G. Jefferson].

Parte desse material esta disponivel agora, pela pri-meira vez, em castelhano, no livro organizado por Diaz,abaixo. Ambos os textos listados sao relevantes para aqui-lo que fizemos neste capitulo e sua leirura Ihes dara umavisao inestimavel do pensamento e metodo de trabalho

• de Sacks.

SACKS, H. "Sobre muestreo y subjetividad" e "La maqui-na de hacer inferencias". In: DIAZ, F. (org.) (2000). So-ciologias de la Situacion. Madri: La Piqueta.

Em catalao, o seguinte livro, embora nao na mesmatradicao da Analise Conversacional que os anteriores, podeser um ponto de comparacao bastante util.

TUSON, A. (1995). L'andlisi de la conversa. Barcelona:Empuries.

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4. A analise da conversacao...

Em castelhano, o seguinte livro podera ser util coino urnpano de fundo mais geral para a Analise Conversacional:

COULON, A. (1988). La etnometodologia. Madri: Catedra.

Bibliografia

ATKINSON, J.M. & HERITAGE, I (orgs.) (1984). Struc-tures and Social Action: Studies in Conversation Analy-sis. Cambridge: Cambridge University Press.

Apendice 1 - Converges da nota^aoNenhum registro impresso do som pode ser mais do

que uma versao imperfeita daquilo que os ouvintes real-mente vivenciam. Apesar disso, a Analise Conversacionaltenta representar graflcamente a linguagem comum escri-ta de tal maneira que possa sugerir mais completamente oque os sons teriam sido, com a ressalva de que o resultadopossa ser razoavelmente legivel e nao exija nada mais doque simbolos encontrados nas fontes da maioria dos pro-cessadores de textos (ou no menu "simbolos"). A lista abai-xo inclui a maioria das caracteristicas desenvolvidas porGail Jefferson trabalhando com Harvey Sacks e outrosna fundagao da AC. Para o sistema mais complete, vejaAtkinson & Heritage, 1984, p. ix-xvi).

(0.3) (2 segs) exemplos de pausas marcadas exatamenteno relogio

.hh,hh respectivamente a inspira9ao e a expiracao do fa-lante

hehh, hahh silabas do riso com algum esforgo para cap-tar 'cor'

pal(h)avra (h) denota *riso' no meio da palavra(suspiro) uma descrigao em parenteses indica um som

que nao e propriamente fala

pa um travessao indica um corte agudo de uma palavraou som anterior

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Charles Aritaki e Felix Diaz

pailavra dois pontos indicam que o falante prolongou aletra ou som anterior. Quanta mais dois pontos, maior oprolongamento.

(palavra) material entre parenteses representa a suposi-cao do transcritor em uma parte da gravacao que naoesta clara.

corre= o sinal de 'igual' assinala material associado quevai continuar

setas indicam o come?o de uma mudanga na entona-9ao para cima ou para baixo

? indica urh torn que se eleva

. indica um fim 'natural'

, indica uma pausa igual a de uma virgula

sob sublinhado indica enfase

MAIUSCULAS letras maiusculas indicam uma fala cla-ramente mais alta que as circundantes.

°macio° Sinais de grau indicam falas claramente mais sua-ves que as circundantes. Sinais de grau duplos indicamuma suavidade ainda maior.

>rapido<

<lento> 'Maior que' e 'Menor que' indicam que a fala queeles abrangem foi produzida de uma maneira mais rapi-da ou mais lenta do que a fala circundante.

imbriTcagao

[imbricafao parenteses quadrados entre linhas adjacen-tes de fala concorrente indicam o comeco de fala im-bricada.

— > seta lateral indica ponto de interesse especial no tre-cho, a que se referiram no texto.

[...] indica que algum material nao foi incluido no trecho.

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Osob]etivb"delle capitulo'e dar?ao* leTtoTTim coMeci-•> f - _ . - . . - . - .,. - , . -.mento basico sobre o que e Psicologia Discursiva,

suas origens especificas e perspectiva teorica, seus temasprincipals de investiga?ao e como ela aborda a analise em-pirica da conversa?ao e do texto. Sucintamente, a PD 6 oestudo de como conceitos psicologicos do senso comumsao usados no discurso cotidiano. Nas conversas e textosdo senso comum, os temas psicologicos (percep96es, me-morias, entendimentos, emofoes, etc.) sao tratados rela-cionando-os as descri^oes de eventos e de acoes no mun-do extemo. A PD e a analise de como esses tipos de concei-tos sao utilizados nas agoes sociais e no trabalho retoricoque o discurso desempenha. O capitulo faz um esboco dosprincipios metodologicos mais importantes da PD, e apre-senta uma analise que ilustra como palavras emocionaissao utilizadas em dois trechos curtos de conversa duranteaconselhamento. Finalizamos com um breve glossario dostermos usados na PD.

* Universidade de Loughborough.

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Derek Edwards

1; Origens da Psicologia Discursive

A Psicologia Discursiva e o estudo de como as ques-toese conceitos psicologicos sao usados.na conversacao eno texto. O foco principal e sobre o discurso cotidiano, so-bretudo ideias do "senso comum" ou da "psicologia popu-lar" acerca de estados mentais e de caracteristicas pessoaisque usamos em nossas vidas cotidianas. Usamo-las quan-do falamos com outras pessoas, quando lemos romances ejornais, quando contamos historias, ou mesmo trabalhan-do em ambientes institucionais - enfim, em qualquer lugaronde nos envolvamos em conversa e com textos. A PDtambem pode ser aplicada a usos especializados de termospsicologicos, inclusive os vocabularies, teorias e praticasda psicologia academica. Ate certo ponto, a psicologia ofi-cial nao e unicamente uma abordagem rival, mas tambemum topico potencial para a investigacao. Este capitulo, noentanto, concentra-se no discurso cotidiano. Comecamosexaminando a PD em relacao a outros tipos de psicologia ea outras abordagens ao discurso.

Uma das diferencas entre a PD e outros tipos de psico-logia e o fato de que ela estuda o discurso cotidiano. A psi-cologia experimental oficial geralmente parte do principiode que a "psicologia popular" e errada, inexata, ilogica, in-consistente e, de varias maneiras, uma reflexao inferiorsobre a verdadeira natureza dos estados psicologicos. Oobjetivo da psicologia e substituir o senso comum por umvocabulario melhor, uma melhor teoria que se origine deum estudo cientifico cuidadoso sobre o funcionamento ver-dadeiro das mentes e das pessoas. Ao contrario, a PD naofaz esse tipo de juizo sobre a adequabilidade ou a precisaodos conceitos que as pessoas usam em suas vidas cotidia-nas. Pelo contrario, acreditamos que esses conceitos ternsua realidade propria, suas proprias maneiras de funcio-nar, simplesmente porque sao os meios reais e empirica-

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5. Psicologia discursiva...

mente disponiveis atraves dos quais as pessoas explicam asi mesmas. Registramos e analisamos como as pessoasusam realmente as descricoes psicologicas como parte desuas vidas. Para alguns contrastes entre "abordagens cog-nitivas" discursivas e oficiais a psicologia, veja Edwards(1997), Edwards & Potter (1992), Edwards et al (1992) eHarre&Gillett(1994).

Com rela9ao a outras abordagens ao discurso, a PD de-pende principalmente da Analise Conversacional ("AC":veja capitulo 4 deste volume), da retorica e da filosofia con-ceitual. Darei maiores detalhes em cada um desses topicos.

A AC nos da o melhor modelo para examinar o que aspessoas dizem de uma maneira empiricamente rigorosa,assim como no desempenho das 39068 sociais. Essa e umacaracteristica essencial tanto da AC como da PD. Em ter-mos psicologicos, isso significa que nao podemos consi-derar as coisas que as pessoas dizem simplesmente comoexpressoes de seus pensamentos, atitudes, cognisoes, me-morias, crengas etc. Ao conrrario, examinamos o que aspessoas dizem como acoes de desempenho de varios tiposno contexto em que as coisas sao ditas, especialmente nocontexto da conversa circundante. Se estivernios exa-minando materiais de entrevista, por exemplo, em vez detratar os dados como uma colepao de "Visoes" oferecidaspelo/a entrevistado/a, que e muitas vezes o objetivo do/aentrevistador/a, examinamos a entrevista como uma inte-ra9ao social na qual rudo que e dito, pelas duas partes, eexaminado no contexto de sua producao, por aquilo quefaz. O que e feito pode incluir aQoes tais como: rejeitar umconvite; responder a uma critica; construir a identidade dofalante como uma testemunha confiavel e racional; produ-zir uma versao de eventos que e factual, que resiste ser ne-gligenciada por ser supostamente o resultado do preconcei-to ou envolvimento emocional do relator. Veja Edwards

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Derek Edwards

& Potter (1992) e Potter (1996) sobre como "relates factu-ais" sao elaborados. Um bom exemplo de como analisardados de entrevistas como interacao social pode ser en-contrado em Widdicombe & Wooffitt (1995).

A retorica e importante parcialmente porque a PD es-tuda tanto o texto escrito quanto as conversas gravadas.Ou seja, quando as pessoas fornecem descri9oes, rela-tos, opinioes ou afirmacoes sobre o mundo, elas geralmen-te estao respondendo a contrapropostas que podem ser po-tenciais ou nao faladas ou que podem realmente estar pre-sentes nas conversas circundantes. A natureza retorica dodiscurso nao e apenas uma observa9ao da natureza da con-versa e do texto, e sim tambem um principio metodolo-gico. Durante a analise de discurso, e muitas vezes pro-dutivo perguntar: "Que possivel contraversao esta sendoabordada aqui?" 0 colaborador mais significative a abor-dagem retorica ao discurso e a psicologia e Michael Billig(1987; 1991).

A analise conceitual e a filosofia da linguagem associa-da com Ludwig Wittgenstein, Gilbert Ryle e John Austin.Sua contribuicao para a PD e a enfase que da a maneiracomo descobrimos o significado das palavras, nao atravesde um exame das coisas a que elas se referem, mas simexaminando como sao usadas. A fim de entender termosda psicologia cotidiana como "cren9a",""compreensao", "sa-ber", etc., a melhor maneira de proceder nao e comecarpor investigar o que "crengas" (etc.) realmente sao, e simaveriguar as formas de uso da palavra "crenca" como partedo discurso cotidiano. Filosofos conceituais produziramimportantes insights sobre os usos de termos psicologicosimaginando os cenarios em que eles estao sendo usadosadequadamente. Psicologos discursivos fazem o mesmo,mas, de um modo geral, baseiam suas analises em materiaisempiricos. Tratamentos uteis de analise conceitual e de psi-

184

5. Psicologia discursiva..1.

cologia podem ser encontrados nos varies escritos de JeffCoulter (1990) e Rom Harre (Smith et aL, 1995).

A Psicologia Discursiva, portanto, tern como objetivoestudar como temas psicologicos de varies tipos sao con-ceitualizados na conversacao e no texto e administra-dos interativamente. Outras afirmacoes sobre as funda-9oes teoricas e metodologicas da PD podem ser encontra-das em Edwards (1997) e Potter (1997; 1997a).

2. PsicoLogia Discursiva: conteudos principals

Normalmente a PD focaliza as descri9oes de pessoas eeventos em conversas ou textos e as inferencias sobre am-bos. Nossa preocupa9ao principal e com a rela9ao entredescri9oes factuais ou relates e as caracteristicas psicolo-gicas das pessoas envolvidas, tanto das pessoas descritasquanto das pessoas que estao fazendo as descri9oes. O in-teresse nas "descri9oes factuais" tem como base o fato deque, ao produzi-las, os participantes geralmente lidamcom as caracteristicas psicologicas do senso comum daspessoas descritas - seus motivos, desejos, cre^as e assimpor diante. Falantes tambem normalmente se referem a suasproprias caracteristicas psicologicas, sobre como souberamo que realmente aconteceu ou por que creem ou achamque foi assim. Operam contra a possibilidade de que seurelate possa nao ser aceito ou tratado como crivel e quepossa ate ser negligenciado por ter side considerado fru-to de fatores psicologicos, tais como preconceito, investi-mento emocional, desentendimento, memoria fraca, etc.Da mesma maneira, os falantes normalmente fazem usodesses mesmos tipos de categoria psicologica com o obje-tivo de contrapor ou solapar o status factual de um relatoalternative.

Essa rela9ao intima entre descri9oes factuais ou histo-rias e os estados psicologicos de atores e de falantes e um

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tema importante e muito frequente do discurso cotidiano.Ela participa da PD como maneiras de falar do senso co-mum dos participantes ou como os meios que eles usampara construir ou solapar o status factual de urna versao deeventos, ao mesmo tempo em que se preocupam com os ti-pos de pessoa que devemos achar que eles sao, ou com oestado de espirito que devemos achar que eles tern. Essasrelacoes entre describees factuais e estados psicologicosficarao mais claras na proxima se?ao deste capitulo, quandoanalisarmos alguns exemplos especificos. For enquanto,podemos observar como essas relacoes sao importantes,nao so nas conversas cotldianas mas tambem em locais es-pecializados, tais como tribunals, interrogatories policiais,jornalismo investigative, salas de aula e situa9oes de tera-pia, onde questoes de "o que realmente aconteceu" e "porque" sao representadas em termos de realidade e imagina-cao, fato e erro, verdade e preconceito.

A PD desenvolveu tres tipos principals de investiga-cao, embora normalmente esses sejam combinados na pes-quisa, nos livros e artigos publicados.

1) Topicos comuns da psicologia sao transformadosem (ou redescobertos como) praticas de discurso. Por exem-plo, a psicologia cognitiva de "memoria" passa a ser a ana-Use de como as pessoas falam sobre eventos passados. Apsicologia social de "atribuifao causal" passa a ser o estu-do de como causas e explica9oes sao produzidas em re-lates de eventos cotidianos. A psicologia da emocao setransforma no estudo de como usamos termos emocionais,ou como os toraamos relevantes, etc., no discurso cotidia-no. Essa forma de desenvolver a PD produziu novos tiposde analises e de descobertas, e tambem perspectivas criti-cas sobre a psicologia oflcial. Exemplos desse tipo de tra-balho incluem: Edwards et al. (1992) sobre memoria e re-cordacoes; Edwards & Potter (1993) sobre atribui?ao cau-

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5. Psicologia discursiva...

sal; Billig (1987) e Potter & Wetherell (1987) sobre atitu-des e psicologia social; Edwards (1997; 1999) e Harre &Gillett (1994) sobre emocoes. De um modo geral, re-tra-balhar dessa forma conceitos padroes da psicologia terncomo resultado um conjunto muito diferente de limites aoredor dos fenomenos relevantes, tais como uma forte co-nexao entre as areas tradicionalmente separadas da "me-moria" e "atribuicao causal" e a introdugao de topicos no-vos tais como "a construcao de fatos" (Edwards & Potter,1992; Potter, 1996).

2) A PD tambem estuda o discurso psicologico do sen-so comum em si mesmo, sem nenhuma referenda especi-fica a psicologia academica. Examinamos como as pes-soas usam termos como "zangado", "ciumento", "conhe-cer", "crer", "sentir" e assim por diante - um grupo enormede palavras em qualquer idioma. Estamos interessados emsaber como essas palavras sao usadas, com que fun9ao asusamos e como elas sao usadas ern alternacao ou contrastecom ourras palavras, na construcao de relates de pessoas ede suas 39068. Um exemplo que focaliza palavras emocio-nais sera apresentado na proxima 86930 deste capitulo.

3) E comum que as pessoas presumam que a unica pre-ocupacao da PD sao conversas abertas sobre estados men-tals, mas isso nao e verdade. Examinamos tambem comoos "negocios psicologicos" do senso comum sao maneja-dos e adminisrrados mais indiretamente, sem o uso de pa-lavras obviamente psicologicas como "zangado" ou "co-nhecer" ou "preconceito". Por exemplo, a intencionalida-de, responsabilidade, subjetividade, preconceito, honesti-dade, motiva9ao etc. de uma pessoa pode ser manejada(sugerida, construida, neutralizada) atraves da maneiracomo suas a?oes e circunstancias sao descritas. Uma vezmais, estamos examinando o relacionamento no discursoentre a mente e a realidade, entre os estados mentais "in-

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ternos" ou caracteristicas pessoais e o mundo "externo". Eimportante enfatizar que essas nogoes de mundos "inter-no" e "externo" fazem parte da PD como modos de falardos participates, dispomveis atraves de analise conceitu-al e empirica, e nao como a propria teoria psicologica daPD; nao estamos argumentando a favor, nem endossando,nem examinando qualquer nogao do tipo "funcionamentointerno da mente". Exemplos desse tipo de analise inclu-em estudos sobre como o preconceito e negado (Edwards,2003) e como a intengao ironica ou o investimento emo-cional podem ser transmitidos falando de maneira "extre-ma" (Edwards, 2000). Esse tipo de analise e caracteristi-ca da maior parte dos trabalhos da Psicologia Discursi-va, assim como dos estudos da etnometodologia e da ACsobre como relatorios factuais sao reunidos e solapados(Lynch & Bogen, 1996; Pollner, 1987; Potter, 1996; Wo-offitt, 1992).

Na PD, nao pretendemos estabelecer qualquer distin-gao clara entre teoria, metodos e descobertas. Descobertassao produzidas pelo metodo e elas formam a teoria e saopor ela formadas. Descobertas importantes podem tornar-se parte da teoria e do metodo. Por exemplo, no momen-to em que fica claro que a conversa "factual" e organizadade forma a construir e administrar o "interesse" do falante(Edwards & Potter, 1993), podemos comecar a usar essasdescobertas para construir uma compreensao teorica geraldo discurso e comegar a usar as mesmas ideias analiticaspara descobrir novos fenomenos, tais como as maneirascomo as pessoas contain historias umas sobre as outras naterapia familiar. Nao consideramos esse relacionamentointimo entre teoria, descobertas e metodo como uma con-fissao condenatoria de impropriedade cientifica. Ao con-trario, achamos que e uma caracteristica de novos cam-pos de estudo e de como geralmente eles se desenvolvem.

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5. Psicologia discursiva...

Uma das origens historicas da PD foram os estudos so-ciais da ciencia, um campo ou pesquisa que minou a cla-ridade dessas diferengas em qualquer tipo de ciencia (ex.:Latour, 1987).

Na PD, o principle retorico, por exemplo, sao todas es-sas tres coisas: descoberta empirica, teoria e metodo. Euma afirmagao empirica de que as pessoas falam retorica-mente de maneiras destinadas a contrapor versoes alterna-

, tivas e a se defender de tais ataques. E tambem uma abor-dagem teorica ao discurso que contrasta com outras abor-dagens tais como as da psicologia cognitiva e da teoriade cogni?ao social, em que a linguagem e tratada como"se nao fizesse nada", como se fosse apenas a expressaodos estados mentais dos falantes, uma especie de janela damente. Isso e muito diferente da abordagem da PD em queestados mentais participam como topicos e negocios dalinguagem e nao como sua fonte ou causa. Terceiro, comoja observamos, a retorica tambem e metodo, uma ferra-menta analitica. Para qualquer trecho de conversa ou detexto, normalmente e produtivo indagar o que e que ele foidestinado a negar ou a contrapor.

3. Metodos

Os metodos de analise da PD comegam com a coletade um conjunto de materials textuais ou conversacionais,preferivelmente que "ocorreram naturalmente". Materiais"que ocorreram naturalmente" sao aqueles que ocorremsem qualquer relagao com o fato de que estamos fazendoalguma pesquisa. A preferencia por esse tipo de materiaisem vez de, digamos, conversa coletada nas entrevistas dapesquisa, baseia-se na ideia de que a conversa desernpe-nha acoes situadas (Potter, 1997b). Entrevistas de pesqui-sas podem ser analisadas, e grande parte da psicologia dis-cursiva ate o momento concentrou-se em dados de entre-

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vistas. Mas estamos normalmente interessados em acoesda vida cotidiana, e nao em 39068 relacionadas com a par-ticipacao em nossa pesquisa! O melhor metodo para a trans-crigao de gravaQoes de conversas sao as normas inventa-das por Gail Jefferson para a AC (veja o capitulo sobreAC). Uma vez mais, isso ocorre porque queremos analisarcomo a conversa desempenha a9oes sociais. As conven-9oes normais do texto escrito nao foram elaboradas comesse objetivo e nossa familiaridade com elas obscurece ofato de que podem tanto impor quanto eliminar muita coi-sa quando utilizadas na transcri9ao de conversas.

Analise

• Nao pergunte que estado de espirito a conversa/textoexpressam, nem que situa9ao do mundo eles refletem,e sim que 3930 esta sendo realizada quando coisas es-tao sendo ditas daquela maneira,• Examine os interesses dos participantes: suas catego-rias, seus conceitos, as coisas de que estao tratando.Examine como usam conceitos psicologicos ou "se ori-entam" com rela9ao a interesses psicologicos. A PD co-me9a trabalhando de uma forma indutiva, nao testandohipoteses. E em nenhum momento estamos procurandoevidencia para processes psicologicos subjacentes.• Se por acaso voce, como analista, quiser introduziralguma questao nos dados, tente "tematiza-la" primei-ro. Ou seja, tente ver ate que ponto essa questao e algoque os proprios participantes (em seu discurso) mani-pulam ou tratam de alguma maneira. Se nao estiver nodiscurso como um interesse dos participantes, pergun-te-se por que razao voce a esta introduzindo!• Nos nos concentramos em redoes sujeito-objeto(rela9oes mente-mundo). Examine como as descri9oesdas pessoas e de seus estados mentais estao ligadas

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5. Psicologia discursiva...

as descri9oes de a9oes, eventos e objetos no mundoexterno ou ate sugeridas por eles.• Examine como o atual falante/escritor se dedica, deforma reflexiva, a suas proprias questoes sujeito-obje-to: suas razoes para saber das coisas, como eles lidamcom a possibilidade de que nao creiam neles, ou de se-rem considerados preconceituosos, ou envolvidos emo-cionalmente, etc.• Para qualquer conteudo da conversa, pergunte comoe dito e nao por que e dito. Pergunte "o que e que elefaz e como o faz?" Perguntas do tipo "Por que?" saoanaliticamente perigosas quando dependem de pre-missas pre-analiticas sobre a mente, a linguagem e osambientes sociais. Seria melhor se a maior parte dasperguntas "por que?" fossem transformadas em per-guntas "como?" Portanto, em vez de perguntar "porque X disse isso?" podemos perguntar "o X falouaquilo de alguma maneira que leva em considera9aoseus possiveis motives ou razoes para dizer o que dis-se?" A pergunta "como?" se conecta com perguntasadicionais que podemos fazer.• Analise retoricamente. Pergunte: "o que esta sendonegado, contrariado, sonegado, etc. quando a pessoafala dessa maneira?"• Analise semioticamente. Isso significa perguntar "oque e que nao esta sendo dito aqui, que poderia ter sidodito usando palavras ou expressoes rigorosamente se-melhantes?" O principio e que a linguagem e um "sis-tema de diferen9as" de tal forma que todas as pala-vras, todos os detalhes tern significados porque exis-tem alternativas. A sele9ao de uma palavra ou expres-sao especifica e essencial, e podemos chegar a ela ana-liticamente se imaginarmos alternativas plausiveis, etambem examinando os dados para ver que descri9oesalternativas podem estar realmente em jogo.

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• Analise sequencialmente. Para qualquer trecho deconversa, examine a fala imediatamente anterior e ime-diatamente posterior, ou os turnos da conversa, paraver com o que e, exatamente, que o conteudo do turnoatual esta lidando e o que e que ele/ela esta tornandorelevante. Esse e o principio mais importante da AC ee um ingrediente essencial na PD pelas mesmas ra-zoes. O que estamos analisando nao e uma cole9ao depensamentos de falantes^expressos empalavras, comocitacoes retiradas de uma entrevista, e sim uma se-qiiencia de acoes sendo realizadas de uma maneira se-qiiencialmente relevante.• Quando voce encontrar padroes que se repetem namaneira como as coisas sao ditas e feitas, procure as"excecoes" que sao exemplos que nao parecem se en-caixar na analise que voce esta desenvolvendo e vejase e a analise que precisa ser mudada, ou o fenomenoredefinido. Uma vez mais, isso e um principio impor-tante na AC, desenvolvido principalmente por Ema-nuel Schegloff.

4. Um exemplo: emocoes, roteiros e dlsposigoes

A seguinte analise ilustra alguns - mas obviamentenao todos - interesses e principles da PD. Examinamosdois trechos curtos extraidos de sessoes de aconselhamen-to em relacionamentos, nas quais os casais vem ver um"conselheiro" para ajuda-los a resolver suas dificuldades.O foco e sobre como categorias emocionais sao usadas emrelates de narrativa, como sao usados retoricamente e deforma performatica em uma seqiiencia de intera?ao.

No trecho 1 Mary, cujo marido, Jeff, tambem estapre-sente, comecou a dizer ao terapeuta por que eles procura-ram aconselhamento, e ela chegou no ponto em que (se-gundo sua historia) decidiu contar a seu marido um caso

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5. Psicologia discursiva...

que havia terminado recentemente com um outro homem.A palavra "you" na linha 2 refere-se ao Jeff. As conven-poes da transcricao sao as mesmas usadas na Analise Con-versacional.

Trecho 1

1 Mary U::m (l.O)and then::, (.) obviously

2 you went through you'r a:ngry stage,

3 didn't you?

4 C)

5 Ve::ry upset obviously, .hh an:d uh, (0.6)

6 • we: started arguing a lot, an:d (0.6)

7 just drifted awa:y

Esse e um trecho curto, que escolhemos para mostrar aimportancia de pequenos detalhes. Mary nos da uma des-crigao dos sentimentos de seu marido, Jeff, quando eleouve sobre o caso dela. Ele estava "angry" (zangado) (li-nha 2) e "very upset" (muito transtornado) (linha 5). Obser-ve primeiramente que essas descricoes caracterizam a rea-cao de Jeff como sendo de raiva em vez de, digamos,como tendo chegado a um iuizo condenatorio das a?6es edo carater de sua esposa. Portanto, ela caracteriza a rea-930 dele como sendo emocional era vez de cognitiva, e umtipo especifico de emofao. Assim, e uma descri9ao ape-nas, em vez de um grupo de possiveis descri9oes que po-deriam ter sido usadas. E ela estabelece varias possibilida-des que nao teriam sido sugeridas no caso de um "juizo"

1 NT - Mary: Hum e entao, obviamente, voce passou por sua fasezangada, nao foi? Muito transtornado, obviamente, e ah, comecamosa discutir muito e fomos nos distanciando um do outro.

193

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me e possivel apresentar todos os dados aqui para demons-trar como eles abordam tudo isso. O que estamos fazendo

194

O detaihe especifico "your angry stage" (sua fase zan-gada) e interessante. Ele comepa a explorar a no9ao de rai-va como um estado temporario que tem suas ocasioes edura9oes adequadas. E uma descri9ao que sugere uma es-pecie de "roteiro" (uma seqiiencia esperada e rotineira deeventos - veja o glossario) para as rea9oes emocionais.Por exemplo, embora reconhecendo que a raiva de Jeff eapropriada naquele lugar, a ideia de uma "fase" zangadadesenvolve a sugestao de que nao deveriamos esperar queela dure por um tempo despropositadamente longo. Por-tanto Mary cria um espa90 retorico aqui para algo que elarealmente continua a desenvolver (nao ha espa9o suficien-te para incluir toda a transcri9ao aqui), que e a no9ao deque as rea9oes de Jeff estao come9aniio a se transfonnarno "problema" que eles tem em seu relacionamento. A du-ra9ao de sua rea9ao emocional esta come9ando a ser otema no qual o aconselhamento deve se concentrar - ossentimentos inadequados de Jeff e nao a infldelidade deMary. Em contraste, para Jeff, sao as 39068 de sua esposa eos sentimentos que ela ainda tem pelo outro homem quesao os problemas do relacionamento. Uma vez mais, nao

nificado ira depender daquilo que Mary e Jeff vao dizer aseguir, porque e a significancia que elas tem para eles queestamos tentando descobrir.

conceituais e retoricas nesse momento da analise. Seu sig-tativa de que ela se modifique. Essas sao possibilidades

juizo podem (normativamente) ser mais duradouros queuma reacao emocional tal como a raiva, e ha menos expec-

nal, por exemplo, o que evitaria que flzessemos inferen-cias sobre Mary e nos concentrassemos mais no estado deespirito de Jeff. Da mesma forma, uma visao, opiniao ou

curso emocional). Uma rea9ao emocional pode ser irracio-o o era 3 &

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namento, evitando que focalizemos seu caso extraconju-gal e fazendo com que nos voltemos para as dificuldades

195

dele ja devia ter passado. A dire9ao geral do relate deMary, produzida atraves de seus detalhes especificos, edesviar nosso entendimento dos problemas do relacio-

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Observe tambem como a descri9ao se encaixa em umaseqiiencia narrativa. A proxima coisa que Mary diz em suanarrativa (e, por implica9ao, portanto, nao somente aquiloque da continuidade a frase anterior, mas que da continui-dade a partir das reagoes de Jeff), e como "we started ar-guing a lot, and just drifted away" (linhas 6-7) (come9a-mos a discutir muito e apenas fomos nos distanciando umdo outro). Portanto seus problemas agora sao comuns,discussoes, e uma especie de "apenas fomos nos distan-ciando" que da a impressao de ser nao-agenciado, e cujaculpanao pode ser atribuida aninguem. A "fase" de Jeffja esta no tempo passado ("you went through your angrystaee. didn't vou?") (voce passou por sua fase zangada,

j um periodo limitado.

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I zado em Jeff e, ao mesmo tempo, evita que Mary o culpeabertamente. Realmente, o termo "sua" fase zangada, ao

| lado na no9ao normativa de "fase" e a expressao "obvia-

pressao da compreensao mental que Mary tem dele (suasideias expressas em palavras). Ao contrario, fiincionapara definir o problema que eles tem, como sendo locali-

A expressao "sua fase zangada", portanto, e retorica eperformatica. Ou seja, nao e apenas descritiva de Jeff(como um objeto no mundo), nem meramente uma ex-

racional maior.

ii1 e concentrar-nos em um trecho bem pequeno, o que ele| contem, o que ele faz, no contexto de uma seqiiencia inte-

5. Psicologia discursiva...

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Derek. Edwards

emocionais persistentes que seu marido esta tendo de lidarcom essa infidelidade.

Os pontos basicos de PD a serem observados aqui sao:1) "Raiva" e "transtorno", como quaisquer outros rotulospsicologicos, sao descri9oes selecionadas entre um grupode alternativas potentials. For exemplo, elas constroem asrea9oes como sendo reacoes, e como sendo reacoes emo-cionais. em vez de, digamos, serem consideradas uma con-clusao ou uma opiniao a que alguem chegou; 2) Descri-coes de estados psicologicos nao sao apenas observagoessoltas que as pessoas fazem, e sim versoes localizadas, re-toricas, performaticas que estao conectadas a outros deta-Ihes dos relates narratives.

O trecho 2 e de um outro casal (Connie e Jimmy) e seuconselheiro. Ele nos da uma vaga ideia da flexibilidade dodiscurso psicologico. Estados emocionais tais como "rai-va" nao sao necessariamente descritos nos termos que Maryutiliza, como fases normativas pelas quais podemos pas-sar em rea9ao a eventos. No trecho 2 Connie esta contandoao conselheiro um evento no qual ela e seu marido tiveramuma briga seria, que fez com que finalmente ele a deixasse"walking out" (saisse de casa).

Trecho 2

1 Connie: At that poi:nt, (0.6) Jimmy ha-(.) my-

2 Jimmy is extremely jealous. Ex- extremely

3 jealous person. Has ailways 4been, from

4 the da:y we met. Y'know? An* at that point

5 in time, there was an episo:de, with (a) a

6 bloke, (.) in a pub, y'know? And me: having

7 a few drinks and messin'. (0.8) That was it.

196

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1 5. Psicologia discursiva...i| 8 0.4) Right? And this (o.4) got all out of

i 9 hand to Jimmy according to Jimmy I was

! 10 a:lwavs doin' it an' .hhh v'know a:lwavsf ' . ... /I 1 1 aggravating him. He was a jealous person

12 I: aggravated the situation, .h And he walked

13 out that ti:me, to me it was (.) totally

14 ritdiculous the way he (0.81 goes o:n. (0.4^)

'• 15 through this probilem that he ha:s. (U21

16 And [(he) ( )]

{ 17 Conselheiro: [Is that ] the time that you left.

| 18 ((Aparentemente para o J.))

19 Connie: He left the:n that was- [nearljy two vears ago.

20 Jimmy: [°Yeh.°]

i 21 Connie: He walked out then. Just (.) literallywalked out2.

Connie define o "ciume" de Jimmy nao apenas comouma reacao pela qual ele possa passar em ocasioes especi-ficas, mas como uma caracteristica permanente dele, algo

2 NT - Naquela altura, Jimmy ti, meu Jimmy e extremamente ciu-mento. Uma pessoa extremamente ciumenta, Sempre foi, desde o diaem que nos conhecemos. Sabe? E naquela altura, houve uma historia,com um cara, em um pub, sabe? E eu tomei uns copos e perdi as estri-beiras. Foi isso. Certo? E isso foi a gota d'agua; segundo o Jimmy euestava sempre fazendo isso, voce sabe, sempre irritando ele. Ele euma pessoa ciumenta, eu piorei a situacao. E ele saiu de casa daquelavez, para mim foi totalmente ridiculo a maneira como ele fica falan-do, por causa desse problema que ele tern. E ele Conselheiro: Foiessa a vez que voce saiu de casa. Connie : Ele saiu de casa naquela vez— quase dois anos atras. Jimmy: EConnie. Ele saiu de casa. Simplesmente, literalmente, saiu de casa.

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Derek Edwards

que "he has always been from the day we met" (ele semprefoi desde o dia em que nos conhecemos) (linhas 3-4). Se-gundo sua esposa, Jimmy possui uma predisposigao enrai-zada, parte de sua personalidade (nao apenas ciumento,mas uma pessoa ciumenta) que e tanto excessiva quantopermanente. Datando-a "from the day we met" (do dia emque nos conhecemos), ela coloca essa predisposigao antesde quaisquer dificuldades conjugais que eles estao tendoagora. Colocando-a dentro de Jimmy, como uma predis-posigao de longo prazo da parte dele, desvia a atencao dequalquer possibilidade de que o ciume dele possa ter sidocausado pelo comportamento dela, razao pela qual ele pre-sumivelrnente estaria enciumado. Portanto, ao rotular Jimmycomo uma (tpessoa profundamente ciumenta", Connie tam-bem fornece uma explicacao para o fato de que a versao deJimmy dos eventos relatives a "historia" com o cara nopub e diferente da dela - o ciume dele fez com que ele ti-vesse uma reacao exagerada. Com efeito, Jimmy realmen-te continua e produz uma versao diferente daqueles even-tos (veja Edwards, 1995, para a versao de Jimmy, e parauma analise mais aprofundada desse trecho e de outros tre-chos relacionados).

Embora eu nao esteja incluindo a versao de Jimmyaqui, vestigios dela estao visiveis na fala de Connie. Naslinhas 9-12 Connie refere-se a historia "according to Jimmy"(segundo o Jimmy). A historia dela e especificamente des-tinada a desmentir isso. Segundo Jimmy, Connie tern o ha-bito de flertar com outros homens, especialmente quandoesta em um pub tomando uns copos. Em seu relate, o seuciume e verdadeiro, mas tern duas qualidades importantes:1) e uma reagao compreensivel diante do comportamentocoquete de sua esposa; 2) ja que seu ciume e excessive, euma parte previsivel de sua personalidade, entao Conniedeveria prever que iria acontecer, levar isso em conside-ragao, e evitar que acontecesse. Portanto ela e culpada nosdois casos.

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5, Psicologia discursiva...

Observe a colocagao seqiiencial especifica da descri-gao que Connie faz de Jimmy no trecho 2. Connie comegaa se envolver em sua propria historia (linha 1) "At thatpoint Jimmy ha" (Naquela altura o Jimmy) e interrompepara inserir essa descrigao dele como "an extremely jea-lous person" (uma pessoa extremamente ciumenta). Essadescrigao, inserida no comego de sua narrativa, serve comouma especie de moldura explanatoria para aquilo que viraa seguir, para como devemos entender o que ocorreu na-quela noite. Uma vez mais, o argumento basico da PDaqui e que a descrigao de Connie, "extremely jealous per-son" nao e meramente uma reflexao daquilo que Jimmyrealmente e, nem mesmo daquilo que ela pensa, ou ja notouque ele e, que pode ou nao ser verdadeiro. Seja qual for suabase na realidade, ou na mente de Connie, aqui essa descri-gao funciona discursivamente para estabelecer uma sen-sagao especifica e contenciosa dos eventos, de como e porque o casal teve uma briga naquela noite, e para, retorica-mente, ja minar os esforgos de Jimmy para reivindicar quesua reagao foi provocada pelo mau comportamento dela.

Uma das maneiras de lidar com estados psicologicose caracteristicas pessoais no discurso e falar sobre aqui-lo que as pessoas fazem regular ou repetidamente. Cha-mei esse tipo de descrigao de "uma formulagao de roteiro"(Edwards, 1995; veja o glossario). E parte de um racioci-nio cotidiano, de senso comum. Podemos dizer que alguempossui uma atitude, crenga, predisposigao ou carater especi-ficos porque essa pessoa regularmente age de determina-das maneiras. E a fungao de relates narratives sobre aque-la pessoa mostrar que ela age daquela maneira. Nao explo-rei muito isso aqui, mas vestigios disso podem ser vistosnos dois trechos. A descrigao que Mary faz da "fase zan-gada" de Jeff depende de uma especie de roteiro emocio-nal, segundo o qual podemos esperar que as pessoas ajam

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e reajam.de certas maneiras em certas circunstancias. Oquadro que Connie faz de Jimmy como uma "pessoa ciu-menta" depende de uma serie de observagoes que ela podefazer sobre o jeito dele agir e reagir regularmente; a natu-reza de "roteiro" de sua reagao e, ao mesmo tempo, evi-dencia e produto de sua tendencia ou predisposi9ao a terataques de ciume violentos e a nao entender o comporta-mento dela. O argumento da PD neste caso e que essassao, como tudo o mais, formas de falar e formas de fazercoisas com as palavras. Nao queremos dizer com isso queo mundo esteja realmente "escrito em um roteiro" dessamaneira, mas sim que a natureza "escrita em um roteiro"das acoes de uma pessoa depende da maneira como es-sas apoes sao descritas e narradas e o mesmo ocorre comas implicagoes psicologicas construidas a partir daquelasdescri9oes. A PD e o estudo de como as pessoas cons-troem, montam, solapam (etc.) relates que descrevem e in-vocam estados e caracteristicas psicologicas.

Comentarios finais

O que a PD faz e um exame minucioso de conversas ede texto, buscando descobrir como as coisas psicologicassao desenvolvidas e manipuladas como parte das acoesque o discurso realiza. Os dados que examinamos incluemconversacoes cotidianas, conversas em ambientes institu-cionais e textos escritos. Em alguns ambientes institucio-nais tais como escolas e terapia, ha uma preocupa9ao ofi-cial clara com as questoes da "mente", com a maneira comoas pessoas sentenvpensam, conhecem e compreendem. Masas questoes psicologicas estao entremeadas em todos os ti-pos de discurso e interacao social devido a relevancia ge-ral de intenQoes, motivos, ideias, pianos, memorias, etc.para a explicagao da vida.

200

5. Psicologia discursiva...

Alem do trabalho que se auto-intitula PD, tambem en-contramos temas psicologicos em um grupo muito am-plo de abordagens que incluem a Analise Conversacional(AC), a emometodologia e a Analise Discursiva Critica,mesmo quando esses estudos estao interessados em ques-toes sociologicas mais do que psicologicas. Exemplos in-cluem o estudo classico de Pollner (1987) sobre como as"disjuncoes da realidade" sao resolvidas nos tribunais detransito; a analise feita por Weider dos motivos e entendi-mentos em relates sobre a obediencia a regras por um gru-po de narcotraficantes; o estudo de analise conversacionalfeito por Heritage (1984) sobre como a expressao "Oh" eusada para assinalar a recepcao de novas informacoes; e osestudos de Lynch & Bogen (1996) sobre os'usos da "niemo-ria" e do "esquecimento" pelo Presidente Reagan e por Oli-ver North nas audiencias de testemunhas do caso Ira-Contras.As maneiras atraves das quais o discurso categoriza e atri-bui estados mentais, inclina9oes, carater, sentimentos, cren-935, motivagoes, etc., sao parte do tecido da transparenciapublica. O projeto da Psicologia Discursiva e estudar comoisso funciona, ao lado de pesquisas relacionadas que abor-dam o discurso como uma area de agao social.

Glossario

Analise conceitual. a analise filosoflca dos significadosda palavra, segundo seus usos localmente adequados.Veja Coulter (1990).

Categorias dos participantes: conceitos usados, sugeri-dos ou tornados relevantes pelos participantes. Sao ele-mentos de peda9os reais de discurso e interagao social,nao algo que os participantes supostamente levam emsuas mentes.

Construqao defato: as maneiras pelas quais as descri9oespodem ser produzidas como reflexes objetivos do mun-

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Derek Edwards

do exterrio. Ha uma variedade de artificios para fazerisso: veja Potter (1996). Veja tambem "participa?ao einteresse" neste glossario.

Expressao ativa (active voicing): ocorre quando um falan-te fala como se estivesse citando as palavras verdadeirasde uma outra pessoa, ou suas proprias palavras ou pen-samentos anteriores, as vezes assumindo uma qualidadede voz especial para mostrar como as palavras foram di-tas. Veja Wooffitt( 1992).

Formulacdo de roteiro: a descricao das acoes das pessoascomo se elas seguissem padroes rotineiros ou repetiti-vos. Isso se relaciona corn a atribuigao de "predisposi-96es". Veja Edwards (1995; 1997).

Normative: relacionado a normas. Essas sao a9oes ou even-tos que sao tratados pelos participantes como sendo es~perados, normais, ou que deveriam ter ocorrido.

Participacao e interesse (stake and interest): esses sao ospossiveis motives ou ganhos que um falante tem parareivindicar uma determinada versao dos fatos como sen-do a verdadeira. Mostrar a participagao ou interesse do/a falante pode solapar o status factual daquilo que ele/ela diz. Por outro lado, estabelecer urna versao dos even-tos como sendo factual pode exigir que o falante negue,ou contradiga que ele/ela tem uma participagao ou uminteresse naquela versao. Veja Edwards & Potter (1992),e Potter (1996).

Predisposigdo (disposition): o estado de espirito ouperso-nalidade de uma pessoa que, no raciocinio do senso co-mum, faz com que ela aja de uma certa maneira. O ter-mo vem da filosofia linguistica de Gilbert Ryle. Na PDas predisposicoes sao relacionadas com "formulagoesde roteiro". Veja Edwards (1995; 1997).

202

5. Psicologia discursiva...

Relativismo metodologico: a PD adota uma posi?ao neutrasobre a verdade ouprecisao daquilo que os participantesdizem. Deixamos que essas questoes sejam tratadas pe-los proprios pacientes em seu discurso, que e exata-mente o que a analise tem a intencao de revelar. VejaEdwards (1997).

Retorica: discurso que e elaborado e construido de forma alevar em consideracao versoes ou pontos de vista alter-natives ou opostos. Veja Billig (1987).

Roteiro: uma sequencia de acao reconhecida, rotineira. Napsicologia cognitiva, presume-se que as pessoas possu-em conhecimento dos eventos sociais rotineiros que osajudam a reconhecer situagoes e eventos familiares. APD focaliza as "formula9oes de roteiros".

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Nesie capiElo^apreseritanibs nao^so osprincipios'basi-cos de uma das mais dinamicas perspectivas atuais da

analise do discurso, a analise critica do discurso (ACD),como tambem algumas das tecnicas de analise desenvol-vidas nessa area. Nessa perspectiva, os discursos e ate apropria tarefa do analista sao considerados situados social-mente e Ihes atribuimos um papel na (re)construgao e re-produgao recursiva e recorrente das estruturas e da organi-zagao social. Dessa forma, podemos dizer que os discur-sos e tambem as analises que deles fazemos sao considera-dos praticas sociais. For isso, nessa apresentagao teorica ena pratica de analise que oferecemos. selecionamos dis-cursos socialmente relevantes e relacionados com confli-tos sociais. Trata-se de discursos autorizados sobre imi-gragao, produzidos pelos meios de comunicagao e nos de-bates parlamentares e que exercem uma clara influen-cia sobre nossa linguagem cotidiana. Os usos e as formasque neles aparecem para se referirem aos imigrantes e para

Departamento de Lingiiistica, Universidade Autonoma de Madri.

206

6. A frdnteira interior...

descrever suas atividades e formas de vida contribuempara criar uma imagem quase sempre negativa dessas pes-soas, atribuindo-lhes, em alguns casos, o papel de vitima.For sua vez, essas imagens podem serutilizadas parajusti-ficar as atuais politicas de imigracao e as condigoes demarginalidade em que vivem essas pessoas e, de qualquerforma, contribuem para fomentar uma experiencia negati-va e conflitante da diversidade.

Entre os objetivos deste capitulo temos, em primeirolugar, nosso interesse em mostrar como, atraves de recur-sos linguisticos e das estrategias discursivas, incorpora-seao discurso a presenpa do falante (enunciador), de seuspontos de vista, de suas atitudes e valores e de seus obje-tivos na enunciagao/interagao. Assim, nos, os falantes, cons-truimos no discurso uma representacao especifica dos acon-tecimentos, das relagoes sociais e de nos mesmos.

Dessa forma queremos estimular a reflexao sobre aspossiveis implicagoes sociais desse processo de constru-gao discursiva. Com esse fim, selecionamos discursos so-cialmente relevantes (nesse caso de jornais e de parlamen-tares) sobre a imigracao, e a partir deles nos perguntare-mos ate que ponto eles podem contribuir para a continui-dade das diferengas sociais e do funcionamento de estrutu-ras e mecanismos de exclusao e de dominagao.

A concepcao do discurso que apresentamos e carac-teristica das correntes de analise com que nos ocupamosaqui, chamada de analise critica do discurso (daqui em di-ante ACD). Para explica-la, examinamos quais sao seusobjetivos, seu metodo e as tecnicas de analise. Dessa for-ma prop ore ionamos ao leitor os recursos e ferramentasde analise e um modelo para a reflexao, com os quais serapossivel realizar uma leitura critica de discursos proprios ealheios. Em ultimo lugar, trata-se de explorar se esta ana-lise nao so contribuiria para que, com maior freqiiencia, os

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Luiza Martin Rojo

discursos e representagoes das pessoas de origem estran-geira viessem a tona, como tambem para estimular repre-senta?oes distintas dessas pessoas e do fenomeno migrato-rio, podendo, assim, criar obstaculos para a interiorizacaode discursos dominantes.

Com isso, assumimos um dos objetivos mais freqiien-tes desse tipo de analise: conscientizar os falantes da im-portancia das praticas discursivas, incrementando, assim,aquilo que foi chamado de "a consciencia critica do uso lin-guistico".

1. 0 discurso, um novo campo do saber

O interesse atual pelo discurso fica claro tanto na aten-930 que a ele dedicam as disclplinas tradicionais - taiscomo a filosofia, a sociologia, a psicologia e, nao sem al-guma controversia, a linguistica - como no surgimento eenraizamento de novos campos interdisciplinares do saberque se especializam em seu estudo - como a Analise doDiscurso. Neste capitulo explicamos que a atencao quehoje se dedica ao discurso e resultado de dois movimentosconsecutivos e relacionados com o pensamento ocidentaldo ultimo quarto do seculo XX: o giro linguistico e o au-mento da reflexividade social. Para os quais, alias, a aten-cao ao discurso tambem veio contribuir.

Com o giro linguistico, inicia-se um processo pelo quala linguagem torna-se o referente principal e determinantede todo o ambito mental, representative e de conhecimen-to. Se o primeiro giro linguistico, o chamado giro logicis-ta, da inicio ao processo, e o giro pragmatista (um girocontra o giro: veja o capitulo 1 de Tomas Ibanez) que pas-sa a ser mais relevante para nossa exposicao ja que, comele, o interesse pela linguagem ja nao pode se dissociar desua compreensao progressiva enquanto/?ratfca (presen-te tanto nos conceitos de uso linguistico como de discur-

208

6. A fronteira interior...

so); ou seja, como uma atividade que se realiza na socieda-de e esta socialmente regulada; um modo de 39210, que nospermite atuar sobre nos mesmos, sobre os demais e sobre omundo ao redor. Os desenvolvimentos posteriores, quepoderiamos entender como uma terceira etapa do giro lin-guistico - o giro discursive -, deixou claro o potencial ex-traordinario dessa pratica. Assim, os estudos da intera9ao(por exemplo, na sociolinguistica interacional, na antro-pologia linguistica) mostraram como, atraves das praticasdiscursivas, se realizam outras praticas sociais. Assim,para fazer uma reclama9ao, para ensinar, para julgar a umreu, e precise que os atores sociais produzam discursos.Essa visao e dominante na tradi^ao da linguistica sistemi-ca funcional e na antropologia linguistica, que deram en-fase especial ao estudo dos ' asos do(s) codigo(s) linguisti-co(s) no desenvolvimento da vida social" e permitiram acompreensao da linguagem como parte integrante "deuma atividade e de uma forma de vida", isto e, como umaforma de trabalho humano (Duranti, 1988). O estudo vol-ta-se, entao, para o exame do processo comunicativo emsituacjlo1. Enquanto que os desenvolvimentos da analisedo discurso deram enfase ao fato de que a linguagem, aogerar representa9oes de outras praticas sociais, ao mesmotempo constitui essas praticas. Como resultado da enfaseno potencial discursive, a pratica da analise tambem semodificou. Como j a observava Foucault, o objetivo e, en-tao, explorar o poder gerador do discurso como uma prati-

1 "Estamos tao acostumados com a comunicasao atraves da lingua-gem, na conversa9ao, que temos a impressao de que o que e essencialnela e que o outro capte o sentido de minhas palavras — o que e umaatividade mental; como se ela as introduzisse em sua mente. E se, en-tao, ele faz algo mais com elas, nao consideramos que isso seja partedo objetivo imediato da linguagem" (Wittgenstein, 1958: 363; vejatambem Wittgenstein, 1974: 193).

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ca que nao so designa os objetos a que se refere, mas tam-bem os constitui2 (vlsao hoje dominante em todas as abor-dagens discursivas, da linguistica textual, passando pelaescola francesa de AD ate os desenvolvimentos criticos desinal ou estrutura diferentes).

A atengao sobre o poder gerador do discurso nos re-mete, igualmente, ao segundo movimento a que nos refe-riamos no primeiro paragrafo desta introducao, ou seja,a reflexividade; e, nesse caso, a reflexividade social. Eevidente que as atuais "guerras linguisticas" (Cameron,1995; LakofF, 2000), das quais participam tanto os movi-mentos sociais como as instiruigoes, atraves de campa-nhas a favor de usos linguisticos menos sexistas ou menosracistas, ou com a cria9ao de Observatories da comunica-9&o (como o Observatorio Europeu do Racismo, da Xe-nofobia e do Anti-semitismo3), mostram como vivemosem sociedades que "monitorizam" de uma forma cada vezmais reflexiva suas praticas discursivas. Esse monitora-mento chega a tal ponto que os analistas do discurso decla-ram como um de seus objetivos a vontade de incrementare canalizar essa reflexividade social, desenvolvendo fer-ramentas de analise que permitam aos falantes, seguindoum metodo do tipo "faca-o voce mesmo", analisar os dis-cursos proprios e alheios e seus efeitos (essa finalidade

2 Nas palavras de Foucault "tache que consiste a en pas - a en plustrailer les discours comme des ensembles de signes (d1 elements sig-nificants renvoyants a des contenues ou a des representations) maiscomme des practiques qui forment systematiquement les objects dontils parlent. Certes, les discours sont fais des signes; mais ce qu'ilsfont, c'est plus que d'utiliser ces signes pour designer des choses.C'est plus, que les rend irreductibles a la langue et a la parole. C'estplus qu'il faut faire apparaltre e qu'il faut decrire" (L 'archeologie dusavoir, p. 66-67).

3 Para conhecer as atividades desse centre dependente da Uniao Eu-ropeia, visite o portal http://www.eumc.eu.int

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6. A fronteira interior...

da analise e muito relevante^na corrente sobre a qual fala-mos neste capitulo, conhecida como "analise critica dodiscurso", ACD)4.

For ultimo, cabe assinalar que, como mostra o presentevolume, o interesse pelo discurso, compartilhado por va-rias disciplinas, deu lugar a uma proliferacao de aborda-gens diferentes e nem sempre facilmente conciliaveis. To-das elas contribuiram para gerar novos conhecimentos so-bre o discurso. Conhecimentos que nao se referem unica-mente aos aspectos formais do discurso, como sua estrutu-ra e textura, ou como os tipos e generos, mas tambem aosrecursos e estrategias atraves das quais sao construldas re-presentagoes dos acontecimentos e da ordem social. E, emultimo caso, conhecimentos sobre quais sao os efeitos so-ciais e politicos dos discursos e qual e o valor que social-mente se Ihes atribui (ordem social dos discursos). (Den-tro da perspectiva da ACD, que examinamos aqui, da-seespecial relevancia a esse ultimo aspecto). Para cobrir to-dos esses campos a interdisciplinaridade tomou-se um re-quisite obrigatorio5.

Esse processo, atraves do qual o discurso se constituiuem objeto de um campo de saber, teve como corolario adefini9ao e tipiflcagao do discurso como tal objeto, a de-termina9ao dos objetivos da analise e a defmigao dos pro-

4 Veja a afirma^ao de Fowler, Hodge, Trew e Kress, no prologo deseu livro inaugural Lenguaje y control: "acreditamos que o aparato(de analise de discurso apresentado no livro) e suflcientemente sim-ples e coerente para ser aplicado por nao linguistas em uma linguisti-ca critica de textos do tipo 'faca-o voce mesmo' que seja de seu inte-resse profissional ou pessoal" (1979: 5).

5 Sobre a vinculacao entre o desenvolvimento desse campo, o girolinguistico e a reflexividade, e sobre as diferen^as entre as varias cor-rentes da analise, pode-se consultar L. Martin Rojo (2001). "New de-velopments in Discourse Analysis: discourse as social practice". Fo-lia Linguistica.

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cedimentos e das tarefas do analista. A partir deste mo-mento, nos concentraremos nesses aspectos, embora ape-nas do ponto de vista de uma das multiplas correntes quecoexistem nesse campo.

2. A analise critica do discurso

Essa e uma das correntes mais ativas da Analise doDiscurso que, como veremos a seguir, distingue-se sobre-tudo pela maneira como concebe a tarefa do analista e porlevar em considera9ao as implica9oes da propria analise.Precisamente, o desejo de intervir na ordem discursiva pelomenos expandindo a consciencia critica dos falantes e deproporcionar-lhes ferramentas para a analise de discursosproprios e alheios 6 o que mais distingue essa corrente.

A corrente adota uma visao tridimensional do discursoproposta qriginalmente por Fairclough e posteriormentedesenvolvida e fundamentada (Martin Rojo, 2001)-

pratica social

pratica discursiva

pratica textual

Fonte: N. Fairclough (1992). Discourse and Social Change. Cambrid-ge: Polity Press.

• O discurso como pratica textual. A contribuicao dalinguistica estrutural norte-americana e, mais tarde, da lin-giiistica de texto, foram essenciais para o desenvolvi-mento dessa concepgao do discurso como unidade linguis-

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6. A fronteira interior...

tica, superior a ora^ao, coesa e dotada de coerencia, cons-truida a partir de determinados materiais linguisticos. Daraten9ao a essas dimensoes do discurso pressupoe explicaras regras de produgao textual, a forma como o texto e teci-do e como adquire sua textura: isto e, um estudo da orga-nizapao da rnformac. ao, da coerencia e da coesao textuais.No entanto, sua compreensao como pratica pressupoe tam-bem a existencia de um agente que nao so produz o texto,mas que tambem adota uma atitude favoravel ou desfavora-vel com relacao aquele que o enuncia, e isso, por sua vez,pressupoe recuperar e desenvolver o estudo daquilo que sedenominou modalidade ("e verdade que o Iraque tem armasde destruicao ern massa" em vez de "poderia ser Verdadeque o Iraque tem armas de destruicao em massa").

• O discurso como pratica discursiva. A visao do dis-curso como pratica textual pode ser associada a um dospostulados centrais da linguistica contemporanea, em par-ticular a linguistica funcional e a pragmatica: todo discursose enquadra em uma situa9ao, em um tempo e espa9o deter-minados e, por esse motivo, o termo discurso nos referetambem uma pratica discursiva que permite a realiza9ao deoutras praticas sociais (julgar, classificar, informar).

Essa compreensao do discurso explica a rela9ao queexiste entre o texto e seu contexto. Pois, embora o discursose adapte e se submeta a regula9ao da a?ao social e aos im-peratives de um tempo e de um espa90 social determina-dos, simultaneamente, ele nao so estrutura a a9ao social eIhe da significado, como produz e reproduz-mas tambemmodifica - aqueles contextos sociais nos quais surge, as-sim como os atores sociais e suas redoes.

Nesse caso, nos movimentamos no nivel meso, e issonos faz dirigir a analise ao estudo da regula9ao da produ-930 e da recep9ao do discurso dentro da situa9ao comuni-cativa, por exemplo, nos varies contextos institucionais:

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nos tribunals, em consultas medicas, nas salas de aula, etc.Nesse caso, o estudo tem como objetivo a sele9ao dos ele-mentos linguisticos ou discursivos, como o registro, o dia-leto social, o genero; e dos componentes comunicativosem t\in9ao da situa9ao comunicativa e de como essa se re-gula socialmente. Voltamo-nos tambem para a analise dasdinamicas e da negocia9ao conversacional que os falantesrealizam e procuramos descobrir em que medida eles pro-duzem, reproduzem ou modiflcam esse contexto. Assim,por exemplo, como demonstrou a sociolinguistica intera-cional, as intera9oes nos senses sociais sao essencial-mente assimetricas (pense, por exemplo, em uma consul-ta medica). Essa assimetria e ainda maior quando os quedemandam os servi9os desconhecem o idioma veicular, osprocedimentos norniais, os usos cotidianos, etc. No entan-to, durante a intera9ao, essa assimetria pode aumentar oudiminuir, dependendo do uso emblematico que os interlo-cutores fazem dos recursos linguisticos (por exemplo, di-minuira se o medico deixar que o paciente fale e se mos-trar solidario).

Por essa razao, nao e possivel encontrar duas intera-9oes identicas emummesmo contexto. Dessaposi9ao teo-rica, a passagem para o terceiro nivel e inevitavel; se con-tinuarmos com o exemplo anterior, a assimetria nessesservi9os publicos nao so se explica pelp contexto institu-cional imediato, como tambem pelas estruturas e pela or-dem social e pelo fato de que os recursos economicos, sim-bolicos e linguisticos sao administrados em fun9ao dessasmesmas estruturas e da ordem social.

• O discurso como pratica social. A partir da escolafrancesa de analise do discurso e, mais tarde, da chamadalinguistica critica, foi dada uma enfase especial a terceiradimensao que hoje e incorporada a defmi9ao de discurso.Nesse caso, aponta-se para a rela9ao dialetica que existe

214_ . I , Iflqi ^

6. A fronteira interior...

entre as estruturas e as relates socials que, se por um ladoconfiguram o discurso, por outro sao por ele influencia-das, consolidadas ou questionadas. Trata-se, portanto, deuma pratica social, com origeni e efeitos sociais, e com umadimensao reprodutiva e outra construtiva, Se retornarmoso exemplo anterior da interacao nos servigos publicos, com-provaremos que quando o provedor do servi9o - geralmen-te um profissional que pertence a comunidade receptoraque conhece o procedimento e o sisterna e que tem a capa-cidade de impedir o acesso de outros as prenogativas e aosservi9os - aumenta a assimetria nas relacoes com seu in-terlocutor, esta, alem disso, construindo uma representa-cao determinada da condicao de cidadania, da relagao en-tre o cidadao e as institui9oes, do trabalho do estado, dasredoes interetnicas, entre outras. Como, por exemplo,um professor que, com sua maneira de dirigir-se a um alu-no de origem estrangeira, corrigindo, por exemplo, sua pro-nuncia equatoriana, reproduz uma ideologia na qual a "in-tegra9ao" se compreende como um processo de pura assi-milacao, na qual os que se incorporam terao de mudar ateo ponto de nao mais se diferenciarem. A analise nessecaso deve ocupar-se da regulapao social da produpao, re-cepgao e circulagao dos discursos em funcao do contex-to sociopolitico, o que pressupoe considerar quais sao asimplicacoes sociais e politicas das ideologias e das repre-senta9oes dos acontecimentos e dos atores sociais que ema-nam do discurso6.

As varias dimensoes do discurso, como pratica social,como pratica discursiva e como pratica textual, nao podem,

6 Van Dijk (1997) adota um conceito de discurso tambem tridimen-sional entendido como: a) uso lingiiistico; b) comunicacao de crencas(cogni9ao); c) inte^ao em uma situacao social. E atraves de (b) e (c)que o discurso e uma pratica social, com implicacoes sociais, concre-tamente atraves do desenvolvimento da cognicao social.

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Luiza Martin Rojo r -portanto, dissociar-se: os elementos linguisticos que apa-recem em um discurso concrete, as palavras que o inte-gram, o estilo ou o idioma a que pertencem, as vozes queneles sao evocadas, tudo isso contribuira para a realiza?aode uma tarefa determinada, para atuar em sociedade e, aomesmo tempo, para criarumarepresentacao especifica- enao qualquer outra - dos acontecimentos. E essa represen-tacao, por sua vez, reforcara ou questioriara, fara com quese tornem naturais ou pora em questao certas visoes dosacontecimentos e da ordem social e nao quaisquer outras,certas ideologias e nao outras, que poderao beneficiar ouprejudicar os interesses dos varies grupos, classes socialse generos.

Os objetivos que a ACD estabelece para si mesma seoriginam dessa concepgao tridimensional do discurso. Tra-.ta-se de saber como e realizada essa construcao discursivados acontecimentos, das relapoes sociais e do proprio su-jeito, a partir da analise dos aspectos lingiiisticos e do pro-cesso comunicativo em um tempo e lugar determinados.Paralelamente, trata-se de revelarquais sao as implicagoessociais desse processo de construsao. Assim, os ja nume-rosos trabalhos de ACD estudaram o papel do discurso natransmissao persuasiva e na legitimacao de ideologias, va-lores e doutrinas - ideologias ou fragmentos de ideologiassexistas ou racistas; doutrinas a respeito daquilo que e"normal" ou "essential" no momento de defuiirum gruposocial: assim aparecem e reaparecem afirmacoes enraiza-das e prestigiadas que sao citadas e reelaboradas constan-temente, do tipo "a essencia do feminino e a maternidade".

Com isso empreendeu-se o estudo do papel desempe-nhado pelos discursos na manutengao e fortalecimento daordem social, ou seja, na sobrevivencia do status quo —impedindo, por exemplo, que circulem ou sejam ouvidosem determinados contextos os discursos dissonantes da

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6. A fronteira interior...

maioria. Dessa forma, impede-se o acesso aos meios decomunicacao tanto dos grupos mmoritarios ou dissidentescomo dos imigrantes, ou se impoem restrigoes discursivaspara o acesso a determinados circulos e praticas sociais,como, por exemplo, quando a mera apresentagao de umasolicitacao exige, obrigatoriamente, o uso de determina-dos recursos linguisticos. Dessa perspectiva, estuda-se tam-bem o papel do discurso na sobrevivencia das desigualda-des sociais - consolidando ou aumentando tais desigual-dades - e na implementagao de estruturas e mecanismosde dominagao (procedimentos de exclusao social atravesdo discurso). E, fmalmente, e talvez como uma elaboragaosofisticada dos anteriores, trata-se de anuir a construcaoda identidade e de determinados modelos de subjetiva9ao("eu" unitario, sem fissuras) atraves dos discursos (sujei-tos divididos que se sabem excluidos ou que se autodisci-plinam; ou individuos que sao apresentados como nao-su-jeitos, privados de toda agenda, de toda vontade e poderde decisao).

E, pior, vivemos em sociedades reflexivas, nas que osfalantes observam e atuam com base em suas proprias pra-ticas discursivas, e o fazem guiados pela certeza de que aprodupao das ciencias sociais tambem foi baseada nessaspraticas. Assim e que os falantes nao s6 controlam, de for-ma reflexiva, o que dizem e fazem, mas essa tarefa e tam-bem parte intrinseca daquilo que fazem e dizem. O fato deque os analistas do discurso sao politizados e tempresentea reflexividade social aumenta seu interesse pelos efeitosda investigacao e abre caminho para as tentativas de inter-vir nas praticas discursivas ou modifica-las, devido a es-ses efeitos. Isso e precisamente o que e propriamente ca-racteristico da ACD, o desejo de intervir na ordem social ediscursiva, aumentando a reflexividade dos falantes, sua cons-

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ciencia das repercussoes do uso linguistico, e dando-lhesas ferramentas necessarias para analisar e modificar seususos, criando, alem disso, atraves das analises, a possibili-dade de que surjam visoes e representagoes alternativasdos acontecimentos. E o mesmo se da comrelagao aos de-senvolvimentos teoricos, ja que a considera^ao dos efeitosque os discursos possam ter contribui para uma compreen-sao especifica da relagao entre discurso, poder, saber e odesenvolvimento de urn conjunto de objetivos e ferramen-tas de analise7.

A partir desses objetivos esbo<pam-se duas areas de in-vestigacao:

1) For um lado, o estudo de como os discursos orde-nam, organizam e instituem nossa interpreta9ao dos acon-tecimentos e da sociedade e incorporam, alem disso, opi-nioes, valores e ideologias. Esse estudo se concentra naconstruc.ao discursiva de representagoes sociais.

2) For outro, o estudo de como esse poder gerador dosdiscursos e administrado socialmente, de como os discur-sos sao distribuidos socialmente, do como Ihes atribui-mos um valor diferente na sociedade dependendo de quernos produza e onde sejam difundidos. Isso e a ordern socialdo discurso.

A fim de desenvolver ambos campos de trabalho, fo-ram estabelecidas varias ferramentas de analise.

7 Para uma introducao sobre os fundamentos teoricos dessa cor-rente, veja o esplendido livro de Chouliaraki, L. & Fairclough, N.(1999). Discourse in Late Modernity -Rethinking Critical DiscourseAnalysis. Edinburgh, Edinburgh University Press. E para os aspectosaqui considerados, veja tambem L. Martin Rojo (2001). "New deve-lopments in Discourse Analysis: discourse as social practice". FoliaLingitistica.

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6. A front'eira interior...

Com relagao a analise dessa constni9ao discursiva dase das representa9oes sociais, os analistas ate o mo-

mento concentraram-se na:a) Constni9ao de representagoes dos atores sociais: paraseu estudo sao analisados, antes de tudo, as formas dedesignagao, os atributos e a9oes que Ihe sao atribuidos;assim como aprodu9ao de dinamicas de oposicao e pola-rizagao entre os grupos sociais ("nos" ante "eles").b) A representa9ao dos processes e, em particular, a quernse atribui a responsabilidade por eles e sobre quern saoprojetadas suas consequencias (por exemplo deno-minar um processo de "crise" em vez de "guerra"; ou"guerra" em vez de "invasao"). Para o estudo desses as-pectos tern especial relevancia a maneira como sao ad-ministrados os papeis semanticos, especialmente a queparticipantes se atribui a responsabilidade sobre as 39068,positivas e negativas ou a agenda (por exemplo: "Os EUAcausam milhares de vitimas").c) A recontextualizagao das praticas sociais em ter-mos de outras praticas (por exemplo a representagaoda guerra seguindo os principios e restri9oes da prati-cajornalistica, com limitagoes de acesso ao campo debatalha e dependendo das partes militares).d) A argumenta9ao posta emjogo para persuadir a po-pula9ao da veracidade ou da pertinencia de uma deter-minada representa9ao e para justificar 39068 e compor-tamentos (por exemplo, invocando a razao de estado).e) A projegao das atitudes dos falantes para com oenunciado, incluindo nao somente seus pontos de vis-ta, mas tambem se eles expressam sua posi9ao de for-ma moderada ou intensa.f) A Legitima9ao e deslegitimagao das representa9oesdiscursivas dos acontecimentos, dos atores sociais, dasrelagoes sociais e do proprio discurso (por exemplo,deslegitimando a consideragao de uma guerra comoinjusta, apresentando essa posigao como oportunista).

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Como assinala Ruth Wodak (2000), cada uma dessasacoes discursivas e acompanhada por distintas estrate-gias discursivas (compreendendo estrategia como umpiano de agao, mais ou menos intentional, que e adotado

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com um fim) . O inventario, se seguirmos o esquema inte-rior, incluiria:

a) Estrategias de referenda e nominacao (por meio derecursos de categorizacao, inclusive metaforas e me-tonimias);b) Estrategias predicativas (atraves da atribuicao este-reotipada e valorativa de caracteristicas positivas e ne-gativas, de foraia explicita ou implicita);c) Estrategias de argumentacao e fontes de topoi quejustifiquem as arribuicoes realizadas;d) A perspectiva ou enquadramento e as representa-9oes discursivas (por meio do envolvimento do falan-te no discurso);e) Estrategias de intensifica9ao e atenuacao;f) Estrategias de Iegitima9ao das agoes e dos propriosdiscursos.

3) Para o estudo da ordem do discurso e precise ter emmente que o poder e a autoridade de quem produz os dis-cursos se projetam sobre os demais e provocam a desi-gualdade entre os interlocutores9. Assim, e possivel des-

8 Para uma exposi9ao mais detalhada, podem consultar R. Wodak(2000). "<,A sociolinguistica necesita una teoria social? Nuevas pers-pectivas en el Analisis Critico del Discurso. In: Discursoy Sociedade2, p. 123-147. Embora sem considerar as estrategias de legitimagao,sao incluidas referencias sobre essas ultimas mais a frente.

9 Sobre esse conceito da ordem social do discurso, podem consultarL. Martin Rojo (1997). "El orden social de los discursos". Discurso,21/22, p. 1-37. Ou entao voltar a origem desse conceito em Foucault,M. (1971). L'ordreduDiscourse, Paris: Gallimard.

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6. A fronteira interior...

cobrir uma "ordem .social dos discursos" que se baseia,por conseguinte, em um principio de desigualdade. Issoexplica por que, ao lado de discursos autorizados, encon-tramos discursos desautorizados\ diante de discursos legi-timados, discursos deslegitimados; diante de discursos do-minantes ou majoritdrios, discursos minoritarios. Mas, alemdisso, e como consequencia do poder gerador de saber queos discursos tern, os conflitos de interesse entre os variesgrupos sociais se projetam tambem sobre a ordem discur-siva. Os varios grupos competem entre si para intervir naprodu9ao, recepcao e circulacao dos discursos, com o fimde molda-los para que sirvam a seus proprios interesses.Essa competi9ao converte a area discursiva em um ambitode luta (sites of struggle) para controlar, ou ate mesmoapropriar-se desse capital simbolico, ja que, como obser-vamos anteriormente, as praticas discursivas contribuempara esrrururar, exercer e reificar as rela9oes de domina9aoe subordina9ao entre grupos e classes sociais e entre os ge-neros. A regulapao da produ9ao, recep9ao e circula9ao dosdiscursos estabelece, por conseguinte, que tipo de discur-sos podem ser produzidos em que contextos; quais as ca-racteristicas que fazem com que eles sejam apropriados; equais os desqualificam ou os impedem de circular. Essaregula9ao articula-se sobre os seguintes eixos:

A) A produ9ao dos discursos e controlada todas as ve-zes que os grupos que tern a autoridade necessaria paraisso conseguem impor o uso de determinados idiomas, dia-letos, registros e usos retoricos e linguisticos, aos quais nemtodos os grupos sociais tern acesso. Como observa Bour-dieu, em sua descri9ao do mercado linguistico, o fato deque, em determinados contextos, sejam exigidos determi-nados usos, restringe e dificulta o acesso desses grupose individuos a contextos socialmente relevantes como,por exemplo, a escola, os meios de comunica9ao, o dialo-

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go com as instituicoes, etc. Um exemplo claro disso e o Re-gulamento para a aplica^ao da Lei de Asilo.

1) A solicitac.ao sera formalizada atraves do preenchi-mento e assinatura do formulario correspondente pelosolicitante que devera expor de forma detalhada os fa-tos, dados e alegacoes em que fundamenta sua preten-sao. Junto com a solicita9ao devera incluir uma fo-tocopia de seu passaporte ou documento de viagem eesse tera que ser entregue se a solicitacao for admitidapara expedi^ao, assim como quantos documentos deidentidade pessoal ou de outra indole que Ihe pare9ampertinentes em apoio a solicita9ao. Se o solicitante naotrouxer nenhum tipo de documentacao pessoal deverajustificar a causa dessa omissao.

Esse preenchimento, que e realizado no comissariadoe em um idioma que Ihe e estranho, cria problemas comose observa no fragmento 2.

2) Nao utilizar o formulario oficial para expressar osmotivos da petigao ja que o espaco e insuficiente e em-bora seja possivel acrescentar mais folhas, o primeiroimpulso do solicitante e se limitar ao espa?o previsto eabreviar excessivamente (Diez de Aguilar, 1995:562).

B) A circulacao dos discursos e controlada todas as ve-zes que alguns grupos sociais tenham meios para permitirou para limitar a circulagao de determinados discursos.Assim, se observarmos o que ocorre nos meios de comu-nica?ao ou em outros contextos socialmente relevantes,como o Congresso, comprovaremos que neles sao repro-duzidos os discursos que sejam dominantes, autorizadosou legitimados. Isso permite que esses discursos estejamna origem de outros atos enunciativos que os retomam etransformam (intertextualidade). Enquanto isso, os discur-sos que se distanciam dos discursos hegemonicos sao si-

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6. A fronteira interior...

lenciados. E, se por acaso isso nao ocorre, as reacoes saoimediatas, como vemos no exemplo a seguir:

3) Permitam-me que Ihes diga mais coisas sobre aque-les que favorecem ou nao um clima propicio a xenofo-bia. Incomoda-me muitissimo que uma pessoa na ile-galidade desrespeite a legislacao de meu pais, porqueisso ja e o fim. Aqui se pode estar falando de falta deliberdade e, ao mesmo tempo, um imigrante ilegal, queesta ilegalmente na Espanha, pode aparecer em qual-quer meio de comunica?ao exigindo que se mude a Leide Imigra9ao ou que se modifique qualquer lei, alemde desrespeita-la (Didrio das Sessoes do Parlamento9/12/1995; Intervencao do Ministro Socialista Jose LuisCorcuera).

C) O controle do poder dos discursos ocorre atraves daneutralizacao do mesmo, seja deslegitimando a fonte queos produziu (questionando sua autoridade e legitimida-de, por exemplo), seja deslegitimando as representagoes eideologias que sao transmitidas atraves deles (questionan-do sua veracidade e objetividade, por exemplo), seja des-legitimando a forma e a adequabilidade dos discursos (apre-sentando-os como vulgares e inapropriados).

3. A pratica da analise

A partir deste momento, poremos em pratica a tecni-ca e as ferramentas de analise introduzidas. Para isso,examinaremos alguns discursos sobre a imigra9ao, cujaanalise foi realizada em detalhe no decorrer dos ultimosoito anos. Foi precisamente esse trabalho previo que nospermitiu identificar as duas posi9oes fundamentais quearticulam a maioria dos discursos sobre imigra9ao pro-duzidos hoje na Espanha. Essas posi9oes se reprodu-zem com frequencia nos meios de comunicacao, nas assem-bleias municipals e estatais, nos discursos produzidos pe-

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las ONGs e pelos movimentos sociais, mas tambem nosdiscursos cotidianos10.

• Assim, alguns setores de nossa sociedade parecemconsiderar a imigragao como um "problema" de am-bito policial e juridico, que, portanto, exigiria solugoespoliciais, leis restritivas e politicas de controle. Tam-pouco poderia ser tratado de forma independente, sen-do determinado pelos tratados protecionistas da UE.Nesse caso, os discursos se concentram no fenomenoda chegada e de como controla-la.• Outra posigao, ainda incipiente, situa o fenomeno emuma moldura sociopolitica, ou seja, na moldura da po-litica e da coexistencia interna que exigem o desafioda implementagao de politicas sociais e educativas in-tegradoras. Nesse caso, os discursos voltam-se maispara a convivencia e para as politicas de integragao.

Dadas as tres dimensoes do discurso (social, discursi-va e textual) a que nos referimos acima, a opgao por umaou por outra das posicoes costuma implicar a selegao cor-relativa de detenninados recursos lingiiisticos e estrate-gias discursivas extraidas do repertorio que os falantes terna sua disposicao (seja no lexico, em particular nas formasde designagao, na gestao dos papeis semanticos e nas cons-trugoes semanticas e sintaticas). Como nao nos e possivelexaminar todos esses elementos ern-detalhe, pois isso ocu-

10 Identifiquei esses dois tipos de discurso em Martin Rojo (2000a)e Martin Rojo (2000b). Outros trabalhos que apresentam uma dife-ren^a semelhante sao, no Parlamento, M. Ribas BisBall (2000). Dis-curs parlamentari i representacions socials. Tese de doutorado. Uni-versidade de Barcelona. E, no prelo, M. Rodrigo Alsina e M, Mar-tinez Nicolas (1997). "Minories etniques i premsa europea d'elit".Analisi 20. No entanto, e preciso assinalar que nos dois ultimos anosos discursos sobre imigracao estao mudando muito. Pode-se consul-tar Banon (2001) para ver as configuracoes dominantes atualmente.

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6. A fronteira interior...

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paria muito mais espago do que o que temos a nosso dis-por, nos concentraremos apenas ern alguns deles: aquelesque denominamos de a) estrategias de referencia e nomea-gao; b) estrategias predicativas; c) estrategias de argumen-tagao; d) estrategias de legitimagao das agoes e dos pro-prios discursos.

3,1. Estrategias de referenda e nomeagao: palavrasque unem e palavras que separam

Nos, os seres humanos, organizamos a percepgao domundo que nos rodeia por meio de categorias. E todos nospodemos ser classificados segundo uma ou outra dessascategorias por meio de nomes. Assim, por exemplo, al-guem pode ser ao mesmo tempo taxista, turolense (nasci-do em Teruel), atleta e doador de sangue. Apesar disso,nem o significado denotativo, nem as conotagoes - associa-goes de ideias - que trazem consigo um ou outro dessesnomes, uma ou outra dessas classes, sao iguais.

Com efeito, quando estudamos os nomes com que saodesignados os imigrantes nos discursos produzidos noparlamento e nos meios de comunicagao, observamos quedeles emana uma linha de demarcagao que separa um"nos" (o endogrupo ou grupo de dentro) de "eles" (o exo-grupo ou grupo de fora). No entanto, embora essa separa-gao ou fronteira aparega de forma insistente, os termos quecontribuem para evoca-la possuem conotagoes distintas.Ao mesmo tempo, embora com menor intensidade, come-ga a difundir-se o uso de terrnos que a questionam, poten-cializando a percepgao das semelhangas11.

11 Uma obra essencial para estudar a forma de representa9ao dosatores sociais no discurso e o artigo de T. van Leeuwen (1996) "Therepresentation of social actors". ln\ Caldas-Coulthard, R. & Coul-thard, M. Texts and Practices. Readings in Critical Discourse Analy-sis. Londres, Routledge.

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3.1.1. Formas de designa^oo do "eles"

Formas que separam* O nome "imigrante"-Essa fonna de designa^ao que

comecou a ser utilizada no inicio da decada de 1990 e que hoj ese generalizou e cristalizou nao categoriza as pessoas emvirtude de sua ocupacao (trabalhador), nem de sua origemetnica ou geografica (magrebino), nem de sua condi9aohumana (pessoa) nem de sua situa9ao socioeconomica(pessoa sem meios economicos), nem de sua condi9ao po-litica (refugiado, cidadao), nem tampouco por ter abando-nado seu lugar de origem (emigrante), e sim o faz em fun-cao do fato de essa pessoa ter vindo - ou ter tentado - ins-talar-se em "nosso" pais. Certamente, como mostrou JosePorto les (1997), se compararmos os dois termos emigran-te/imigrante comprovaremos que implicam a adofao depontos de vista diferentes a respeito de pessoas que se des-locam ("nos" somos emigrantes, os "outros" sao imigran-tes)12. Enquanto que o primeiro permite identificar-se esolidarizar-se com aquele que emigra, o segundo apresen-ta a pessoa como alguem que irrompe em um territorio quenao so e alheio a ele, como tambem e o nosso. Alem disso,tanto nos meios de comunica9ao como na fala cotidiana, ouso desse termo para designar a todos aqueles que se des-locam para ir a Uniao Europeia (o que mostra que ja hauma consciencia europeia) ja se generalizou: "Imigrantesromenos chegam as costas italianas". Alem disso, o termocostuma ser combinado com adjetivos que aumentam suasconota96es negativas, tais como "ilegal" (assim, enquantoque se presume que o emigrante seja trabalhador e honra-do, o mesmo nao ocorre com o imigrante).

12 Para as conota9oes desses termos, consultem J. Portoles (1997)."Nombres, adjetivos y xenofobia". Discurso, 21/22, p. 133-151.

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6. A fronteira interior...

• O nome "estrangeiro" tarnbem empregado com fre-quencia marca a fronteira, a separa?ao e a diferen9a entre"nos" e "eles" a partir do momento em que se aponta paraa origem diferente. O mesmo papel e desempenhado pelosgentilicos que, alera do mais, especificam a origem estra-nha. Alem disso, se observarmos os usos cotidianos e os dosmeios de comunica9ao, veremos que tanto "imigrante"quanto "estrangeiro" sao utilizados hoje de forma restriti-va para referir-se, quase sempre, a pessoas sem meios eco-nomicos e provenientes de paises pobres.

Formas que unem

Entre as formas de designa9ap que dimumem a separa-930 entre "nos" e "eles" estao:

• O nome "pessoa" com o qual se apaga a fronteira entreo endogrupo e o exogrupo. E, realmente, sua presen9a de-sempenha um papel essencial na argumenta9ao nos discur-sos politicos que exigem uma politica mais solidaria, deapoio e de direitos, e nao de controles policiais e expulsoes:

(4) Senhor Ministro, estamos diante de uma situa?ao-li-mite, insustentavel e indigna. Limite porque na semanapassada houve sete mortos e 18 desaparecidos nas aguasdo Estreito, dado que totaliza ja 200 mortos em noveanos por naufragios de embarca9oes. Por trds desses da-dos existem rostos, ha nomes e sobrenomes, emboranunca vamos chegar a conhece-los na Espanha, mas naoestamos falando de pessoas sem rosto e sim de pessoasque morreram por tentar, simplesmente, chegar a outropais. Uma situa9ao insustentavel pelas proprias condi-9oes de vida dos acampamentos de Calamocarro e Gran-ja, de Ceuta e Melilla, nos quais estao amontoados, emcondi9oes deploraveis, vivendo simplesmente como ani-mais, e uma situa9ao indigna pelas proprias condi9oesde vida e de trabalho dos que conseguem chegar, enfren-tando mil dificuldades e arriscando sua vida, a Peninsu-

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la. For conseguinte, queremos declarar que nao estamosdispostos a conviver com essa realidade, que nos rebela-

• mos diante dela [...] (Meyer Pleite, porta-voz de IU-IC,24-09-1997).

• For ultimo, o nome "cidadao" e nao so inclusivecomo tambem integrador, ja que confere as pessoas quepassaram a viver na Espanha a condifao de cidadaos e,portanto, merecedores dos mesmos direitos. No entanto,na linha predominante, que e a de assinalar as diferencas,come9aram a usar o sintagma "novos cidadaos" para se re-ferir aqueles que, apesar de terem os papeis de residenciaregulamentados, ou ate mesmo a nacionalidade, continuamsendo vistos como diferentes ou como cidadaos sem ple-nos direitos. Nesse caso o adjetivo "novo" e o que uma vezmais acentua a diferen9a.

4.2. Estrategias predicativas e as imagenssimplificadoras de "eles"

Nesta segao estudamos a atribui9ao estereotipada e va-lorativa de tra9os positives e negatives, atraves da impu-ta9ao de atributos (adjetivos) e de a9oes (descri9ao das

e atribui9ao de papeis semanticos).

4.2. 1. Co-apari$des textuais

. Se observarmos quais sao os termos que com maiorfrequencia acompanham as designa9oes anteriores, se iraconfigurando, com a maior nitidez, qual e a representa9aodominante desse coletivo. Nesse caso, nos limitaremos asimultaneidade dentro de um mesmo sintagma (denomi-nada co-apari9ao ou "coloca9ao").

a) Lugar de origem: africanos: o estudo das coloca-coes textuais nos discursos parlamentares, da imprensa eda fala cotidiana mostra como uma das caracteristicas que

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6. A fronteira interior...

mais se enfatiza no momento-de designar o exogrupo e aorigem etnica ou geografica. O uso do gentilico (seja comoadjetivo: "um imigrante marroquino"; ou como nome:"um marroquino") indica que, de todas as caracteristicasque possui uma pessoa, a mais importante e o fato de elater uma origem determinada (no exemplo, o fato de sermarroquino ou alemao). Dessa forma, o termo destaca aimagem estereotipica que se tenha desse grupo. Essas ima-gens costumam ser simplificadoras e dependem de um con-junto de caracteristicas que supostamente definiriam a ca-tegoria e seriam atribuidas a todos os membros do grupo.Assim, por exemplo, se existe uma imagem estereotipicados marroquinos, segundo a qual a todos eles, sem distin-930, sao atribuidas algumas caracteristicas deterrninadas,o uso do gentilico trara a tona os preconceitos que ele in-clua, que serao acrescentados as conota9oes ja negativasdo termo "imigrante".

O uso dos gentilicos contribui ainda mais para criaruma imagem negativa, quando evoca preconceitos etni-cos. Considerem as diferen9as, assinaladas por Portoles(1997), que podem ser observadas no seguinte exemplo:

(5) a. E um alemao. Temos que expulsa-lo da Espanha.b. E um bombeiro alemao. Temos que expulsa-lo daEspanha.c. 6 um bombeiro. Temos que expulsa-lo da Espanha.

Mesmo que nos tres exemplos estivessemos referin-do-nos a mesma pessoa, seria bem mais facil encontrar al-guem que concordasse com (5 a), teriamos muita dificul-dade em encontrar alguem que concordasse com (5 b) emais diflculdade ainda no caso de (5 c).

Com efeito, o estudo dos discursos produzidos pelosmeios de comunica9ao, dos discursos politicos e dos deuso cotidiano, mostra que os gentilicos praticamente sosao utilizados no caso de cidadaos de origem africana, ma-

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grebinos e subsaariarios: "imigrante subsaariano", "pes-soas argelinas", "pessoas subsaarianas" (em espanhol, ve-mos um uso muito estranho do termo pessoas, que rara-mente e utilizado seguido de um adjetivo). Esse fato deixaclaro como existe uma imagem estereotipada do "imigran-te" na Espanha. Magrebinos e subsaarianos (designasaoque foi cunhada recentemente e para referir-se a questoesmigratorias) parecem encarnar o prot6tipo do imigrante,imagem que simplesmente nao corresponde as estatisticasja que o numero de pessoas de origem europeia e lati-no-americana que vem para a Espanha e muito maior queos de origem africana. Como ja foi observado inumerasvezes pelo coletivo IOE, na Espanha ha uma tendencia aexagerar o numero dos estrangeiros nap europeus, ao mes-mo tempo em que se minimiza o dos europeus, que, alias,no caso dos cidadaos de paises da UE, nao sao considera-dos, nem legal nem popularmente, imigrantes.

b) Situaqao policial ejuridica: ilegais: Em consonan-cia com o tratamento ainda predominante da imigragaocomo sendo um "problema" policial-judicial, temos ob-servado que os meios de comunica?ao e os discursos par-lamentares focalizam, quase que de forma exclusiva, aspessoas que ainda nao regularizaram sua situagao, as quaisse costuma chamar de "ilegais". As criticas ao uso dessetermo sao cada vez mais frequentes na Espanha, tanto pelodeslocamento semantico que envolve (so as 39068 podemser "ilegais", nao as pessoas), como por sua contribuipaopara a criminalizacao dos imigrantes. Apesar disso, naoforam impostos uses alternatives - tais como *'sem docu-mentos" ou "nao regularizados" - nem a imprensa, nem aoParlamento espanhol. Segundo Ribas (2000) isso nao ocor-re no Parlamento da Catalunha; e mesmo no ambito espa-nhol, alguns meios de comunicapao ja comecam a subs-tituir o termo "ilegais" pelo termo "irregulares" ou "semdocumentos".

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6. A fronteira interior...

Em alguns casos, documentamos o uso do termo "ile-gais" (osjlegais) ate mesmo como substantive, recategori-zagao que aumenta as conotacoes negativas do termo (oindividuo riao aparece como "ilegal" por ser "imigrante" esim em todas as dimensoes de sua pessoa).

c) Quantificaqao: uma multiddo: a quantificacao e umaspecto relevante na apresentacao dos imigrantes. Nes-se sentido, encontramos frequentemente uma quantifica-930 generica e ate mesmo ambigua e hiperbolica, que pro-duz um efeito de multidao: "podemos ter entre 550.000 a600.000 imigrantes legais". Para esse compute hiperboli-co contribuem tambem as metaforas de uso comum e queexageram o numero de pessoas que chegam a nbsso pais,ao associar sua presen^a a catastrofes naturais e a massasde agua incontrolaveis como "grande onda", "aluvioes","mare", "inunda9ao humana". Cria-se assimum nucleo fi-gurativo que revela e estrutura a compreensao e a repre-sentacao global do fenomeno em termos de como flui aagua e evocando, ao mesmo tempo, uma imagem de amea-ca, diante da qual sera precise se defender, tanto pelas di-mensoes do fenomeno quanta pela falta de controle e ocaos que evocam (trata-se de urn mecanismo de objetifica-930 que intervem na constni9ao de uma representa9ao).

Muitas vezes, na imprensa e no Parlamento, os imigran-tes sao "numeralizados", ou seja, em noticias e discursospassam a nao ser nada mais que numeros, nesse caso quo-tas: "S6 a provincia de Almeria reclama de 7.000 a 10.000..."Esses exemplos mostram uma tendencia a despersonaliza-9ao e a abstra9ao, frequente sobretudo nos discursos go-vemamentais, que assim apresentam 39068 que afetam mi-Ihares de pessoas como procedimentos administrativosou burocraticos, e, portanto, assepticos, e de acordo com alegislacao, sem a implica9ao de violencia.

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For tudo o que vimos acima, podemos concluir quea selegao/categorizagao lexica e as colocagoes textuaismostram que, especialmente nos discursos goveraamen-tais, mas em menor medida tambem nos dos parlamenta-res e nos meios de comunicagao, focaliza-se a atengao emapenas alguns aspectos dos imigrantes - tais como suacondigao de estrangeiros e de diferentes - e se os apresen-ta como um numero elevado de africanos, principalmente,nao integrados e nao regularizados ("ilegais"). Essa ten-dencia se documenta tambem com relativa freqiiencia nosdiscursos cotidianos, sobre os quais, obviamente, os dis-cursos autorizados e legitimados exercem uma influenciaextraordinaria, convertendo-se, portanto, em um discursohegemonico. Em contrapartida, nao se costuma dar aten-gao aos motives economicos e politicos que obrigaram es-sas pessoas a emigrar. For outro lado, homogeneiza-se ocoletivo e se simplifica e fere sua imagem. Dessa maneirae mais dificil que as pessoas do pais de acolhida se identi-fiquem com elas. Ao contrario, produz-se um distancia-mento entre "eles" e "nos" que facilmente pode transfor-mar-se em repudio.

4.2.2. Representagao dos atores socials atravesde suas agoes

Existem outros procedimentos lingiiisticos que tam-bem podem contribuir para criar unia imagem negativa oupositiva dos atores sociais: a atribuigao de determinadasagoes e a descrigao que delas se faz. Nesse caso, foram as-sinaladas pelos analistas criticos tanto a selegao lexicapara descrever as agoes como a gestao diferente da agen-cia, no momento de atribuir a responsabilidade sobre essasacoes: por exemplo, destacam a maneira como uma pes-soa ou um grupo de pessoas realizaram determinadas agoese nao destacam ou ate esquecem de mencionar sua parti-cipagao em outras.

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6. A fronteira interior...

Com respeito a gestao dos papeis semanticos e, con-cretamente, a agencia, e precise assinalar que, senipre quetemos um processo, teremos varios pafticipantes desem-penhando um papel ein sua realizacao. Se-o processo con-siste em uma agao realizada por um participante e que afe-ta outro/a participante, aquele/a que realiza delibera-damente a agao e, portanto, e responsavel por ela, e o/aAGENTE, e o/a outro/a participante que e afetado/a oumodificado/a pela agao e o/a PACIENTE. Quando fala-mos, podemos ressaltar a responsabilidade de um/a par-ticipante pela agao (indicando, assim, que ele/ela e o/aagente da agao) ou, ao contrario, atenuar, ou ate mesmo ig-norar essa responsabilidade. A questao tern relevancia es-pecial na construgao discursiva da imagem, ja que as agoespodem ser consideradas socialmente negativas ("matar","roubar", "golpear", etc.) ou positivas ("trabalhar", "in-tegrar"). De maneira que, se, no caso de se tratar de umaagao considerada negativa, indicamos com clareza quern eo/a agente dessa agao, isso repercutira negativamente so-bre a imagem que se tern desse/a participante (por exem-plo, "o exercito aliado assassina mulheres e criangas inde-fesas") enquanto que, se atenuarmos essa responsabilida-de ("alguns atribuiram o assassinato de mulheres e de cri-angas indefesas ao exercito aliado") ou a eliminamos porcompleto ("unia nova matanga de mulheres e criangas in-defesas foi perpetrada ontem na regiao X"), a imagem des-se/a participante nao se ressentira da mesma maneira13.

O estudo da apresentagao que os meios de comwiica-gao fazem dos imigrantes nos mostrou que, com freqiien-

13 Pensemos em uma fotografia de uma prisao e comprovemoscomo o discurso permite que se focalize o olhar. Qual seria sua des-cricao daquilo que esta ocorrendo?: A policia (AGENTE) deteve osimigrantes (PACIENTE), Os imigrantes (PACIENTES) foram deti-dos, Detidos os imigrantes (PACIENTE) ou Deten?ao de imigrantes(PACIENTE) na costa.

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cia, enfatiza-se sua responsabilidade nas agoes'negativas,assinalando a origem etnica diferente, como se isso se tra-tasse de urn detalhe relevante ou ate mesmo explicativodaquela atuagao. Nesse caso, encontramos estruturas sin-taticas ativas, nas quais'os imigrantes desempenham opapel de agente: "Magrebino assalta..."; "Bando deperua-nos roubava..."

Nesta segao estudamos como se constroi uma repre-sentacao dos imigrantes a partir das acoes que Ihes sao atri-buidas na interagao e do papel que a eles se atribui. Dividi-mos essa segao em duas partes, a fun de observar se essaestrategia discursiva e utilizada de maneira diferente nasrepresentagoes do exogrupo e do endogrupo.

No que se refere a populacao de origem estrangeira,destacam-se as seguintes tendencias:

1) Em primeiro lugar, a tendencia de apresentar os "imi-grantes" como agentes de processes avaliados negativa-mente, seja de acoes violentas e reprovaveis, que os crimi-nalizaria, seja de acoes que se apresentam como ameagasa comunidade, tais como sua mudanga para a peninsula.Certamente, este ultimo caso e o mais freqiiente. Quando,na Espanha, fala-se de imigragao, os discursos costumamfocalizar aquelas pessoas que acabam de chegar. Nessecaso se confere aos imigrantes o papel de agentes de ver-bos de movimento, especialmente de "chegar", "irrom-per", "vir" e sobretudo "sair" que, uma vez mais, evocama diferenga entre nosso territorio e o territorio "deles". Issoreduz a questao da imigragao ao ambito de chegada, o quefavorece uma visao policial e juridica, associada ao con-trole das "chegadas" e afasta-se a questao de medidas deintegragao e de convivencia,

Essa tendencia a assinalar a responsabilidade dos imi-grantes em atos violentos, atraves de expressoes como"resistir", "causar lesoes com navalha em policiais", "cau-

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6. A fronteira interior...

sar lesoes em si proprio" e frequentemente reforgada nosdiscursos dos representantes do governo e instituicoes,como o diretor geral da Policia nas suas visitas ao Parla-mento espanhol. 0 uso dessas expressoes contribui paracriar uma imagem dos imigrantes como pessoas "violen-tas" e "agressivas" e, por conseguinte, os faz responsaveisultimos pelas agoes repressivas que se fariam necessariaspara neutraliza-los.

A indicacao da agencia costuma vir acompanhada daprecisao da origem etnica (cujos valores ja comentamos)como vemos no exemplo a seguir:

(6) Tres marroquinos tentaram sequestrar a camareira deum bar para abusar dela. Um companheiro da jovemconseguiu reter os individuos at6 que a polioia de Carta-gena os prendesse (La Verdad de Murcia, 6/9/1995).

So lendo o texto da reportagem descobriremos que apessoa que evitou o rapto (agao positiva) era da mesma na-cionalidade dos seqiiestradores, ou seja, marroquino. Por-tanto, fica claro que a origem etnica pode ser esquecida nocaso das acoes positivas e enfatizadas no caso das agoesnegativas, o que contribui muito eficazmente para reforcara imagem negativa "deles". A isso podemos acrescentar ofato de que sao raras as vezes em que se menciona as con-digoes de vida dos imigrantes, sua marginalizagao e ex-ploragao, enquanto que, pelo contrario, sao ressaltadas suavinculagao com delitos, com violencia ou transgressoes dalei. As vezes essa associagao e feita de maneira sutil, comonas seguintes manchetes, onde nao encontramos estrutu-ras sintaticas transitivas que atribuam aos colombianos opapel de agente, mas que, apesar disso, os associam ao deli-to: "Uma ordem da Policia coloca sob suspeita 157.000imigrantes da Colombia e do Equador" (El Pais, 25/10/2001); "Detidos 5 colombianos em Lanzarote apos o assas-sinate de um marroquino" (El Mundo, 02/12/2002); "De-

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sarticulado um bando colombiano especializado no roubode chales" (El Mundo, 30/01/2002).

Nestes casos, a sele^ao lexica reforca a apresenta9aodessas acoes como violentas. O mesmo ocorre, por exem-plo, na primeira convoca9ao ao Parlamento do Ministrodo Interior Mayor Oreja, devido a polemica expulsao de103 imigrantes. Em seu discurso, o ministro descreve asa9oes dos imigrantes com termos negatives que evocama violencia, tais como "desordem publica", "incendio", "vio-lento", "destmi9ao", "altera9ao da ordem publica", "atitudeamea9adora", "armados com pedras, paus e garrafas", "ma-xima gravidade", etc. Ou seja, o estilo lexico do texto refor-93 a opiniao do ministro de que os imigrantes eram violen-tos e pressupunham uma amea9a para outras pessoas, nessecaso, NOS, na tentativa de justificar a agao do governor

(7) O Ministro do Interior, diante desses graves aconte-. cimentos que punham em grave risco a ordem publica epressupunham uma grave altera9ao da seguran9a doscidadaos, tinha a obrigacao inevitavel de proceder, emnossa opiniao, a expulsao ou devolusao dos imigrantesilegais (Diario de Sesiones del Parlamento, 29/07/1996;p. 848; convoca9ao ao Parlamento do Ministro conser-vador Jaime Mayor Oreja).

Tambem sao minoritarios, no Parlamento e nos meiosde comunica9ao, os discursos em que se atribui a esse co-letivo o papel de agente de a96es que ressaltam sua deter-mina9ao e vontade de escapar de uma situa9ao de pobre-za, e seu valor ao "ultrapassar mil dificuldades" e "arriscarsua vida" (esse e o caso de Meyer Pleite, porta-voz da IU eIniciativa pela Catalunha).

2) A segunda tendencia que observamos e a utiliza9aoda forma passiva. O tratamento da agencia nao costumaser o mesmo quando, nos meios de comunica9ao e no Par-lamento, faz-se referenda as atua9oes da administra9ao,da policia ou dos cidadaos espanhois: se essas atua9oes fo-

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6. A fronteira interior...

'rem negativas ou polemicas, tende-se a eliminar a respon-sabilidade dos agentes que pertencem a "nos". A elimina-pao desses agentes e realizada atraves da Utiliza9ao de es-truturas sintaticas tais como as ora9oes passivas, as passi-vas reflexivas, as substantiva9oes3 etc.:

(8) Expulsos 32 imigrantes que entraram em bando pelafronteira de Melilla (El Pats, 11/08/1998).

Essa manchete nao nos permite saber nem quern foiresponsavel pela expulsao (a administra9ao, a policia, oexercito, etc.) dos 32 imigrantes nem de que maneira issofoi realizado.

Com isso, os imigrantes sao apresentados como sujei-tos passives das a9oes dos outros. Essa tendencia predo-minanos discursos das autoridades governamentais, espe-cialmente quando se trata de a9oes negativas, policiais (oque dilui a responsabilidade das autoridades em acoes co-ercivas ou de expulsao): os imigrantes "foram detidos","foram instalados em dependencias", "foram levados parao Centre de Interna9ao".

Essa manipula9ao dos papeis semanticos costuma virassociada com a sele9ao lexica. Assim, nos discursos go-vernamentais estudados, sobretudo naqueles pronuncia-dos no Parlamento espanhol pelo entao Ministro do Inte-rior Mayor Oreja, prevalece a tendencia de descrever as39068 oficiais com termos neutros, formais, positives oulegitimadores e recorrendo a palavras que sao caracteristi-cas dos registros burocraticos, legais ou medicos: "proce-de-se a comprova9ao da sirua9ao", "cumprir tramites","garantir a seguran^a dos cidadaos", "inevitavel obriga-930 de proceder", "cumprimento da lei", "respeitar alei", alem de descri9oes de diversas 39668 legais: "expediros processes judiciais", "assistencia letrada", etc. Assim,quando se fazmen9ao de medidas coercivas, as descri9oesnao envolvem o emprego da violencia, como e o caso de"devolu9ao", "ingressar", "distribuir", "trasladar" ou "sub-

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ministrar". Todas essas a9pes sao consideradas como "me-todos (ou procedimentos) habituais"14.

(9) A seguir, procedeu-se ao cumprimento das negocia-9oes posteriores para a expulsao e, em seu caso, devolu-530, do territorio nacional daqueles, na aplica^ao da Leide Imigrafao vigente e da regulamenta9ao que a desen-volve [...] (Diario de Sesiones del Parlamentoy 29/0771996, p. 848; convocacao ao Parlamento do Ministro con-servador Jaime Mayor Oreja).

Tanto a burocratiza9ao do discurso e o uso de um jar-gao autorizado contribuem para as estrategias de legitima-gao que incidem na legalidade, corre^ao nas atuafoes, au-torizagao e normalidade.

Essa tendencia a apresentar os imigrantes como serespassives aparece tambem com freqiiencia nos discursos go-vemamentais, quando se trata de agoes positivas ou de inte-gragao (Ministro do Trabalho): "ajudados", "atendidos","expulsos", "enviados" etc.; algo muito semelhante ocorrecom as acoes negativas das mafias, de quern o govemo vaiproteger a popuia9§o. O carater de passividade do sujeito serealiza atraves de construfoes sintaticas passivas, ou atra-ves de substantiva9oes, que nao so o fazem passive comotambem, muitas vezes, tiram dos imigrantes o papel deagentes: "integra9ao/regulariza9ao dos imigrantes", etc.

3) Em terceiro lugar, destaca-se a tendencia a apresen-ta-los como experimentadores de uma situagao pela qualnao sao responsaveis e na qual nao parecem poder inter-ferir. O EXPERIMENTADOR e outro papel semantico.Trata-se de um partlcipante que nao e responsavel pela rea-

14 Um estudo detalhado da convocagao do Ministro Mayor Orejapode ser vista em Martin Rojo, L. & van Dijk, T. (1998). "Habia umproblema y se ha solucionado". A legitimacao da expulsao de imi-grantes "ilegais" no discurso parlamentar espanhol, em Martin Rojo,L. & Whittaker, R. (orgs.). Poder-decir o el poder de los discursos,Madri, Arrecife, 1998, p. 169-234.

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6. A fronteira interior...

lizacao da agao, mas que experimenta processos inenfais depercep9ao/afeic.ao/cogni9ao, vivenciando fenomenos comover, sentir, pensar, que nao estao sob seu controle ("Vi Juanpela ma"; "Pepe sabia a resposta"; "Gosto de cinema"). Atendencia a apresentar os imigrantes como experimentadoresnao esta muito distante da tendencia anterior, na medida emque envolve tambem uma cerfapassiviza<;do. Porem, na me-dida em que nao objetifica e sim humaniza, despertando, porum lado, a solidariedade de todos e mostrando as injusti9as so-ciais que essas pessoas enfrentam, esta terceira tendencia sedistancia da anterior. Em conrrapartida, ela pode envolver cer-ta redu9ao a condicao de vitima, em vez de apresentar os imi-grantes como pessoas que contribuem para a vida do pais eque podem, ate certo ponto, solucionar seus proprios proble-mas e sua situa9ao. Essa tendencia predomina nos discursosda oposi9ao no Parlamento e muito especialmente de um dosentao porta-vozes da IU-IC no Parlamento espanhol, MeyerPleite Meyer que, muitas vezes, apresenta os imigrantescomo experimentadores de 39068 e situa9oes terriveis: "vive-rem amontoados", "padecer uma situa9ao injusta", etc. Maisque uma visao positiva e enriquecedora da diversidade, en-contramos aqui um apelo a compaixao nesses discursos que,as vezes, pode ser confundido com pateraalismo15.

15 Insistir na dificuldade e na pobreza nao e, em si, negative, emborafosse positive ressaltar a contribui9ao cotidiana dessas pessoas para avida, cultura e economia do pais receptor. Ou seja, discursos mais volta-dos para a vida na Espanha do que para a chegada. Ou reproduzir a ex-pressao de suas proprias experiencias. Poemas como o que citamos a se-guir recolhem essa visao da propria experiencia migratoria. Uma possi-vel ilustracao pode ser o poema El Azote (fragmento): jQue lejos esta lacosta! Y el Estrecho, ique lejos!/Pero, i,a donde vas? i,A donde vas? /Losbrazos se cansan y hay marejada/El traficante se llevo el dinero./Y sequedo con los remos./Y la patera se esta hundiendo. [...] No estoysolo/Ni soy um extranjeroVSoy um ciudadano azotado,/y um cuchillohiere mis manos./Mi tierra es fertil,/fertil para las fieras./Mi sol res-plandece/y mis mares rebosan. Autor Nas al Guiwan. Tradu9ao parao espanhol de Mustafa Boutaher e Gonzalo Fernandez Parrilla. Ex-

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Nao deixa de se tornar preocupanteja que ela impede que os trabalhadores estrangeiros e suasfamilias sejam vistos como cidadaos que participam davida do pais e contribuem para seu funcionamento, contri-buindo para sua cultura e enriquecendo-a e gerando ativi-dade economica.

4.3. Argumentagao

Nao podemos tratar com profundidade urn aspecto taocomplexo quanto o da argumentasao, principalmente emcasos como este em que, por um lado, a condenagao do ra-cismo, em termos abstratos, frequentemente coexiste como repudio a imigra9ao e com uma experiencia controversada diversidade . Por isso, nos discursos tenta-se, muitasvezes, justificar atuafoes e versoes polemicas de aconteci-mentos controversos (como o fechamento de fronteiras ouas expulsoes) e sao obrigados a manipular os argumentoscuidadosamente para nao despertar a suspeita de racismo.Para esse fim, e muitas vezes preciso recorrer a varies ar-gumentos, tais como os principios morais gerais ou "fa-tos" sobre os quais nao pode haver controversia; e tambeme preciso nao expressar explicitamente outros fatos quepoderiam ser considerados vergonhosos.

traido de: Martin Rojo, L. et al. (orgs.) (1994). Hablary dejar hablar.Sobre racismo y xenofobia. Madri: Universidad Autonoma de Madri,p. 245. (NT - Que longe esta a costa!/ E o Estreito, que longe!/ Masaonde vais? Aonde vais?/ Os brac.os se cansam e o mar esta agitado/ Otraficante levou o dinheiro/ e ficou com os remos/ e a embarcacao seafunda. [...] Nao estou so/ Nem sou um estrangeiro/ Sou um cidadaoasoitado/ e uma faca me fere as maos/ Minna terra e fertil/ fertil para asferas/ Meu sol resplandece/ e meus mares transbordam).

16 Para a argumentapao, pode-se esrudar, entre outros, C. Antaki,(1994). Explaining and Arguing — The social Organization of 'Accounts.Londres: Sage. E para a argumenta^ao dos discursos racistas torna-semuito esclarecedor o livro de van Dijk, Communicating Racism,

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6. A fionteira interior...

Assim, por exemplo, na convoca9ao ao Parlamento doantigo Ministro Mayor Oreja, antes citado, a forma ele-mentar da argumentacao produz-se em oragoes complexasnas quais a primeira oragao refere-se a uma agao oficial e asegunda, quase sempre subordinada, remete-se a existen-cia de razoes suficientes para tal acao.

(10) Neste caso, podia-se proceder a sua expulsao, jaque se tratava da execucao de uma ordem ja expedida(Diario de Sesiones del Parlamento, 29/07/1996, p. 849;convocasao ao Parlamento do Ministro conservador Jai-me May or Orej a).

Nesse caso, a primeira oracao expressa uma opiniaoque serve de conclusao a um argumento, do qual a segun-da oracao funciona como premissa (objetiva): e necessa-rio uma decisao legal para a expulsao. Essa e simplesmen-te uma condicao necessaria, nao suficiente, ja que nem to-das as decisoes legais acerca da sirua9ao (ilegal) dos imi-grantes acabam em sua expulsao. Para que esse breve ar-gumento seja um silogismo, a premissa geral implicita se-ria: "Sempre que um juiz tome uma decisao (sobre a situa-cao ilegal de um imigrante) o imigrante sera expulso". Jaque Mayor Oreja emprega "podia-se proceder a sua expul-sao" sua formula9ao e formalmente correta. No entanto, amera possibilidade legal da expulsao nao e o que esta emjogo aqui, ja que, na verdade, os imigrantes ja foram expulsos.Evidentemente, a frase causal e o argumento implicito e suasbases legais sao uma forma de "argumentar a favor da" ex-pulsao e assim legitima-la.

Na argumenta9ao dos discursos cotidianos, as narrati-vas e as pequenas historias desempenham um papel-cha-ve. Em primeiro lugar, essas pequenas historias quase sem-pre relatam experiencias vividas por outros, e que podemter sido vivenciadas por qualquer um, mas sobre as quais o

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locutor nao tern responsabilidade, e algo que Ihe foi conta-do por uma fonte fidedigna, alguem que, alem disso, eigual a mim e a voce. O conteudo dessas narrativas costu-ma concentrar-se em atuagoes dos imigrantes. A historiarefere-se a uma/s pessoa/s em particular mas, apesar disso,delas costuina-se extrair uma conclusao que e generaliza-da para todos os fepresentantes da categoria. Sao do tipo:"minha prima tinha uma faxineira de X, que e pessima nalimpeza, voce sabe como e, para eles a limpeza nao impor-ta muito". Assim, as historias terminam em uma avaliacaona qual se realiza essa generalizacao17.

(11) —»/ ou seja, o unico que consegui dizer foi que pou-co homem voce e e segui adiante/ ou seja fazer isso emum grupo de amigos diante de uma m09a que vai passan-do nao e alguma coisa da qual temos que dizer ->/ sdouns bobos/totalmente idiotas os espanhois (Narrativascoletadas por Adriana Patino, 2003).

4.5. Legitimagao

Nesta secao, focalizaremos as estruturas e estrategiasda legitimapao. Embora seja possivel encontrar essas es-trategias em qualquer discurso, nesta secao as estudare-mos em relafao aos processes politicos e com os discursose a intera9ao parlamentar. Em primeiro lugar, nos referire-mos aos procedimentos rotineiros que o estado utiliza aoadministrar uma crise (nesse caso, quando se produz umquestionamento de sua legitimidade) e como isso da lugara um discurso politico de justificativa. Assim comprova-

17 Para o papel das historias breves na criasao das minorias etnicasnos paises receptores, pode-se consultar o Trabajo de Investigationde A. Patino Santos. "Vivir para contar: a narrativa de experienciapersonal como justification de prejuicios extendidos entre colombia-nos residentes en Espana". Universidad Autonoma de Madri, 2003.

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_6. A fronteira interior...

remos como, muitas vezes, nao se trata unicamente de en-frentar ou "resolver um problema" (relacionado com a imi-gra9§o ou com um conflito belico), mas tambem de resol-ver um problema discursivo e sociopolitico, que tern como ce-nario o Parlamento ou os meios de comunicacao. Com fire-quencia, a maneira pela qual se tenta solucionar esse con-flito discursivo envolve silenciar e deslegitimar os detrato-res de determinadas atuagoes (como as expulsoes de traba-Ihadores estrangeiros em avioes militares ou o bombardeioda popula9ao civil), persuadir a oposi^ao de que a atua9aofoi legitima e assim obter o apoio parlamentar naquilo quemuitos tinhampodido consideraruma viola9ao dos direitoshumanos fundamentals. Como exemplo, usaremos a expul-sao dos 103 imigrantes, algemados e narcotizados a bordode avioes militares e depositados em paises africanos dife-rentes dos seus, no verao de 1996, e o discurso com queMayor Oreja fez frente a crise no Parlamento18.

O poder politico e a legitimidade estao constantementeem perigo. Podem ser questionados por rivais politicos,institui9oes civis, tais como a imprensa e as organiza9oesnao-govemamentais (ONGs), ou ate pela popula9§o emgeral. Em uma crise assim, os atos de Iegitima9ao sao fun-damentals. Nesse caso, tanto os questionamentos como aposterior Iegitima9ao sao em grande parte discursivos e,portanto, torna-se relevante analisar esses discursos. E

18 Tomamos esse exemplo que estudamos junto com Teun van Dijk(Martin Rojo, L. & van Dijk, T. (1998). "Habia un problema y se hasolucionado". A legitima^ao da expulsao de imigrantes "ilegais" nodiscurso parlamentar espanhol, em Martin Rojo, L. & Whittaker,R. (orgs.). Poder-decir o elpoder de los discursos. Madri, Arrecife,1998, p. 169-234. O leitor pode, paralelamente, fazer um exerciciosemelhante com um acontecimento que o preocupe neste momento,como a Guerra do Golfo, ou qualquer outro conflito parlamentar oumidiatico.

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claro que essa legitimate discursiva tern sua funcao e seinsere em um processo mais geral de legitimagao social epolitica, no qual estao em jogo as instituigoes que contro-lam o poder. o Estado, a lei, os valores compartilhados e aordem social.

As estrategias discursivas e politicas de legitimagaotern muitas facetas, e por isso so nos referiremos a algu-mas delas. Distinguiremos tres niveis diferentes emborainterdependentes de legitimagao discursiva: a) um ato prag-matico de justificativa de agoes e politicas controversas;b) uma construcao semantica dapropria versao dos suces-sos como verdadeira e confiavel; c) uma autorizacao so-ciopolitica do proprio discurso legitimador.

a) No que se refere a como se legitima uma agao con-troversa em si (a expulsao) encontramos que a justificativaconsiste em uma explicagao discursiva de agoes passadascujo objetivo e o de persuadir a um publico critico de quetais agoes eram aceitaveis dentro da ordem normativa, ouseja, que estavam de acordo com a lei, com as normas so-ciais em vigor e com outros principios normativos de con-duta social adequada. Em todos os niveis do discurso po-dem ser utilizadas estrategias para obter essas versoes per-suasivas. Assim, no discurso de Mayor Oreja, encontra-mos estrategias semanticas globais que tern como objetivoafirmar a aceitabilidade da expulsao, isto e, sua legalida-de, o respeito que teria tido pelos procedimentos legais eburocraticos, sua execucao cuidadosa, sua autorizacao pororganismos estatais e profissionais apropriados e as cir-cunstancias especiais como uma suposta ameaga a ordempublica. Essas estrategias implicam, ao mesmo tempo, umadicotomia entre a apresentacao positiva de si mesmo e a apre-sentagao negativa do outro, na qual "nossas" agoes e poli-ticas foram corretas e beneficas e as acoes "deles" anormais

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6. A fronteira interior...

e uma ameaga para o pais. Assim, a condicao rundamentalpara a legitimagao politica das praticas governamentais eque essas sejam legais. Portanto, no caso concrete de MayorOreja, esse se esforga por fazer referenda as leis relevantesdurante o discurso e insiste que a expulsao ocorreu "estrita-mente" de acordo com aquelas leis:

(12) [...] medidas essas que se adotam com o carater demedidas governamentais e em cumprimento estrito dodisposto na Lei Organica Reguladora dos Direitos e Li-berdades dos Estrangeiros na Espanha, conhecida habi-tualmente como "Ley de extranjeria" {Diario de Sesionesdel Parlamento, 29/07/1996, p. 848; convocacao ao Par-lamento do Ministro conservador Jaime Mayor Oreja).

Em outros momentos de crise, sao outras leis ou reso-lupoes de instituicoes intemacionais que sao invocadas.

b) Enquanto que as estrategias anteriores concentram-senos acontecimentos e em sua justificativa moral e legal, alegitimagao tambem requer uma formulagao dos fatos queseja digna de confianga, isto e, uma descrigao ou "versao"oficial em cujos termos seja possivel aceitar a tal justifica-tiva discursiva. Essa construcao semantica tera de apre-sentar a propria representagao ou versao subjetiva ou par-cial dessa agao e de seus protagonistas, como verdadeira econfiavel (em contraste com as versoes, por exemplo, daimprensa ou das ONGs).

Para tal fim, serao mobilizados todos os recursos queestivemos examinando, as estrategias de substantivagao epredicagao, a argumentagao, etc., de maneira tal que, doconjunto delas, emane uma imagem negativa dos imigran-tes que justifique a agao governarnental, nesse caso a ex-pulsao nos termos em que foi realizada.

(13) O Ministro do Interior, diante desses graves aconte-cimentos que punham em grave risco a ordem publicae pressupunham uma grave alteracao da seguranga dos

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cidadaos, tinha a obriga^ao inevitavel de proceder, emnossa opiniao, a expulsao ou devolucao dos imigrantesilegais (Diario deSesiones delParlamento, 29/07/1996,p. 848; convoca?ao ao Parlamento do Ministro conser-vador Jaime Mayor Oreja).

No entanto, isso nao quer dizer que nem nesse, nemem outros casos, o falante manipule seu discurso de formaconsciente e utilize os recursos e estrategias discursivas deuma maneira premeditada para tal fim. O que signiflca eque, como em todo discurso e como com todo falante, nes-se caso, o falante selecionou os recursos lingiiisticos de quedispunha, de acordo com seu ponto de vista. Nesse proces-so ele/a e guiado/apor seu conhecimento tacito da lingua edo uso que dela se faz em sua comunidade. Pois bem, tam-bem e certo que, no caso do discurso parlamentar, geral-mente nos deparamos com discursos mais preparados doque o normal, que foram escritos com uma certa anterio-ridade por falantes com experiencia na arte de persuadire de atuar e sobre os quais se refletiu longamente, quasesempre em equipe.

c) A terceira faceta da legitimacao inclui um aspectoao qual nao demos a atencao suficiente: a autorizagao so-ciopolitica do proprio discurso legitimador, que no exem-plo aqui discutido seria o proprio discurso ministerial quee apresentado como sendo apropriado e autorizado. A ma-neira como os falantes dao legitimidade ao proprio discur-so e deslegitimam ou invalidam outros que os contradizeme, sem duvida, uma questao de grande importancia.

Nesse sentido, podemos destacar tres procedimentos:

1) A enfase nas diferencas de poder, status e autorida-de, como procedimento de legitimafao, de forma que a au-toridade e a legitimidade das instituigoes se transfiram aofalante e a seu discurso. Dessa forma se legitima a fonte do

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discurso, ao mesmo tempo em que pode ser deslegitimadaa fonte de outros discursos que questionam o primeiro, oucujo conteudo se quer deslegitimar. Assim, por exemplo,o fato de que Mayor Oreja refere a si proprio na terceirapessoa e como "Ministro do Interior" contribui para que aautoridade da instituicao que ele representa se transfirapara seu discurso. O mesmo efeito produzirao os que evo-carem outras fontes autorizadas: tal e como ordena a Lei,de acordo com a sentenga do juiz, etc. No exemplo que sesegue, no entanto, comprovamos como o Ministro Corcu-era deslegitima as reivindicagoes dos imigrantes, apresen-tando-os como ilegais, enquanto que o "nos" ve-se legiti-mado pelo respeito do outro e da legislacao:

(14) mas como e possivel que um cidadao, ao qual deve-mos respeito, ao qual devemos tratar da melhor formapossivel, que entrou ilegalmente, que esta em uma situa-$ao ilegal na Espanha, nao somente fafa manifestafoes- o que realmente faz - mas que tambem nos diga comotemos que promulgar as leis {Diario de Sesiones del Par-lamento, 9/12/1995; Interven9ao do Ministro Jose LuisCorcuera).

2) A apresentafao do proprio discurso como um refle-xo da realidade, isto e, atraves de um processo de obje-tivacao, enquanto que outros discursos sao apresentadoscomo deformagoes, constitui um segundo processo de le-gitimacao do proprio discurso. Dessa forma, se estabele-ce uma distincao enrre discursos verdadeiros (o proprio) eversoes subjetivas ou distorcidas (o alheio) como vemosno exemplo que se segue:

(15) Eu quis serfiel a rela$ao dosfatos, quis agir com amajor transparencia possivel, quis tratar de transmitir,mais que a busca, como dizia antes, da opera9ao modelo,o con/unto de inexatidoes e deformagoes que se foramproduzindo e que distorceram a realidade da mesma.Essa era minha obriga9§o e nesse sentido estou eviden-

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temente a disposi9ao das interven?6es dos varios grupos(Diario de Sesiones del Parlamento, 29/07/1996, p. 848;convocacao ao Parlamento do Ministro conservador Jai-me Mayor Oreja).

3) For ultimo, com o fim de legitimar o proprio discur-so, cabe evocar o conjunto de regulamentos e de preconcei-tos linguisticos que estao a base da ordem social dos dis-cursos e que permitem controlar sua produ9ao, sua circu-13930 e o acesso a eles. Em todas as comunidades da-se umprocesso de exclusao e inclusao atraves do qual sao esta-belecidas normas e regulamentos que fazem com que de-tenninados discursos sejam aceitaveis, enquanto que ou-tros modos de expressao e outros discursos sao desacredi-tados e desvalorizados e sua circula9ao restrita.

Sao precisamente esses valores e essas restri9oes quepodem ser evocados no momento de legitimar o discurso.Assim, o uso dejargoes autorizados, como o jargao medi-co, o legal e o de variedades e registros linguisticos deprestigio, tais como o registro burocratico, ou as varieda-des proprias das classes ricas, legitimam e prestigiam oproprio discurso. Enquanto que as normas e as institui9oesque fomentam os preconceitos linguisticos e desqualifi-cam as formas que se afastem dessas formas de prestigionao so invalidam essas formas como tambem as excluemde determinados circulos deslegitimando-as tanto em ter-mos de seus aspectos formais quanto em termos de seuproprio conteudo. No exemplo que se segue, vemos comoo Ministro Mayor Oreja recorre a essas formas de presti-gio, para dar autoridade a seu discurso, e a ele contrapor odiscurso nao autorizado das associa9oes de imigrantes edas organiza9oes nao-governamentais.

(16) Nesse momento, solicitou-se ao Exercito do AT quepusesse a disposi9ao um contingente de avioes, a fim detransportar as forfas de seguranfa necessarias para con-

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frontar a siruacao de emergencia (Diario de Sesiones delParlamento, 29/07/1996, p. 848; convoca?ao ao Parla-mento do Ministro conservador Jaime Mayor Oreja).(17) Nao e verdade, portanto, que se tenha produzido umprocesso de narcotiza9ao e que se tivesse drogado osimigrantes. Quero lembrar-lhes de que nao houve nemdroga nem narcoticos e sim que se fez uso de uma espe-cialidade farmaceutica autorizada (Diario de Sesionesdel Parlamento, 29/07/1996, p. 848; convocacao ao Par-lamento do Ministro conservador Jaime Mayor Oreja).

Confluem, portanto, a Iegitima9ao da 3930, da repre-senta9ao dos acontecimentos e do proprio discurso. Comefeito, essa ultima parece imprescindivel para a consecu-930 das outras.

A Iegitima9ao das representa9oes que os falantes cons-troem no discurso a respeito dos varios acontecimentos eagentes sociais e um movimento discursive que desempe-nha um papel essencial na transmissao persuasiva e na im-planta9ao das representa9oes sociais. Essa transmissao per-suasiva contribui para que sejam consideradas apropria-das determinadas 39068 ou politicas, de acordo com umadeterminada interpreta9ao dos acontecimentos.

Conclusao

O que vimos ate o momento nos mostra como nossamaneira de falar, a sele9ao dos recursos e estrategias dis-cursivas de que dispomos que fazemos ao produzir discur-sos, reflete a nossa interpreta9ao dos acontecimentos, que,por sua vez, reflete e obedece a nossa situa9ao e posi9aosocial. Obedece tambem a seja qual for nossa participa9aoem tais acontecimentos, a seja qual for o grupo a que per-tencemos, a sejam quais forem nossos interesses, a sejaqual for nosso posicionamento com rela9ao as ideolo-gias, valores, discursos hegemonicos, etc. Isso nao signi-fica que nossos discursos e posi9oes sejam sempre identi-

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cos ja que, dependendo de nossos interlocutores e de mui-tos outros fatores, poderemos modificar nossa posi9ao. Noentanto, podemos, sim, encontrar em nossos discursos tra-905 dos discursos dominantes ou majoritdrios que repro-duzimos ou repudiamos em determinados contextos.

Uma vez produzidos, esses discursos incidem, por suavez, sobre os mesmos aspectos que desempenharam umpapel relevante em sua producao, podendo assim reprodu-zir, refor9ar ou questionar a ordem social e as representa-coes e valores dominantes. Assim, esses discursos que seoriginam na sociedade tern, por sua vez, conseqiiencias so-ciais, podendo contribuir, como no caso examinado, paraperpetuar situa9oes sociais que sao discriminatorias ou ne-gativas para determinados grupos.

Com efeito, as conseqiiencias do contraste de acoes ede agentes que vimos, entre o "nos" e o "eles", vao maisalem da crisujao de imagens distintas. Elas projetam umavisao da sociedade polarizada e em permanente conflito, oque fomenta uma experiencia negativa da diversidade e daconvivencia com pessoas procedentes de outros lugares.Esse contraste envolve, alem disso, uma cadeia de simpli-ficadores: eles/as aparecem freqiientemente como um co-letivo homogeneo ("todos sao iguais") associado a delin-quencia, violento, nao racional, e que, em determinadasocasioes, busca aproveitar-se do "nosso" bem-estar eco-nomico (exigindo cuidados, alojamento, emprego, etc.) en-quanto que o "nos" e apresentado como nao racista, demo-cratico, solidario, civilizado e normal. As duas imagens saoclaramente interdependentes.

Esse poder gerador de conhecimento que os discursostern explica que esses se tornem objetos de disputa e depolemica. Por isso existe uma regulamenta9ao e uma or-dem social dos discursos que estabelece restriQoes, de ma-

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6. A fronteira interior...

neira tal que fiquem limitados o acesso e a circula9ao dedeterminados discursos em determinados contextos. O ca-pital simbolico do discurso se encontra nao somente na ca-pacidade de 3930 que representa mas tambem na capacida-de de gerar representa9oes das praticas sociais e da socie-dade como um todo.

GLossarioArgumenta$ao: uso que se faz do idiomaparajustificar ou

refutar uma determinada posi9ao com o fim de obter aconformidade com rela9ao aos pontos de vista (EEMEREN,F.H. et al. Argumentacion. In: VAN DIJK, T. (comp.)(1999). Estudios do Discurso, vol. 1. Barcelona: Gedisa.)

Discurso: este conceito adquiriu varios sentidos que se su-perpoem. Da perspectiva da ACD propoe-se uma visaodo discurso como pratica, isto e, como uma atividadesocialmente regulada. Incorpora-se, alem disso, uma vi-sao tridimensional: todo discurso constitui, ao mesmotempo, uma pratica textual, uma pratica discursiva euma pratica social. Pratica textual: chamamos discursoa uma unidade linguistica, superior a ora9ao, coesa e do-tada de coerencia, consrruida a partir de determinadosmaterials linguisticos. Pratica discursiva: todo discursotern como moldura uma situa9ao, em um tempo e espa-90 detemiinados, e por esse motive damos o nome dediscurso a uma produ9ao discursiva que permita a reali-za9ao de outras praticas (julgar, classificar, informar),que se enquadra e adapta a regulamenta9ao social des-sas e ao mesmo tempo as estrutura e da significado. Pra-tica social: o discurso se encontra configurado pelas si-tua9oes, estruturas e redoes sociais, pela ordem e es-trutura social; mas, por sua vez, tambem configura to-das essas coisas e incide sobre elas, seja consolidan-do-as, seja questionando-as; trata-se, portanto, de uma pra-

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tica social, com origem e efeitos socials (FAIRCLOUGH, N.(1992). Discourse and social change. Cambridge: PolityPress).

Estrategias discursivas: entende-sepor estrategias discur-sivas um piano de agao, mais ou menos intencional, queo falante adota como um objetivo discursivo, por exem-plo, apresentar um determinado participante, e que reu-ne um conjunto amplo de recursos linguisticos (porexemplo, estrategias de designagao). Esse conceito naoesta isento de problemas, embora queira-se separa-locompletamente da nocao de intencionalidade.

Legitimacdo discursiva: processo pelo qual tenta-se asse-gurar a legitimidade dos poderes e das instituigoes, dalei, dos valores compartilhados e da ordem social, atra-ves de meios discursivos; e claro, essa legitimacao dis-cursiva tem sua funcao e se insere dentro de um proces-so mais geral de legitimagao social e politica. Distin-guimos tres niveis de legitimacao discursiva: a) um atopragmatico de justificativa de agoes e politicas contro-versas; b) uma construcao semantica da propria versaodos sucessos como verdadeira e confiavel; c) uma auto-rizagao sociopolitica do proprio discurso legitimador.

Ordem social dos discursos: com esse conceito nos referi-mos a maneira como as diferengas de status e de autori-dade projetam-se sobre o universo-discursivo estabele-cendo um principio de desigualdade: ao lado de discur-sos autorizados, encontramos discursos "desautoriza-dos "; diante de discursos legitimados, discursos "des-legitimados "; diante de discursos dominantes ou majo-ritdrios, discursos "minoritarios". Essas diferengas naavaliacao social dos discursos sao tambem um reflexodas tentativas, por parte dos distintos grupos sociais, decontrolar a producao, circulagao e recepcao dos discur-sos, devido a seu poder gerador; e da imposigao, por

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parte desses grupos, dos criterios de produgao e avalia-gao (MARTIN ROJO, L. (1997). El orden social de losdiscursos, Mexico. Discurso, 21-22: 1-37).

Papeis semdnticos: os varios participates podem desem-penhar papeis distintos na realizagao do processo. Notexto so nos referimos a tres papeis: Agente: partici-pante animado, ativo, que controla e e responsavel pelaagao verbal. Paciente: participante inativo, nao controlaa agao, mas se ve afetado ou modificado pela agao ver-bal. Experimentante (experimentador): participante ani-mado, que vivencia o processo mas nem o controla neme responsavel por ele (com os processos mentais: ver,sentir, pensar).

Processos: os processos sao categorias semanticas que ex-plicam em termos muito gerais como os fenomenos quenos rodeiam sao representados pelos falantes atraves deestrururas lingiiisticas. A moldura geral dessa represen-tagao e compostapor: o processo em si (freqiientementerealizado por um grupo verbal); os participates do pro-cesso (freqiientemente representados por um grupo no-minal); e as circunstancias associadas a esse processo(freqiientemente uma frase preposicional, um adverbio,etc.): "Pepe (participante/G.Nominal) bate (Processo/G.Verbal) em sua mulher (Participante/G.Nominal) comfreqiiencia (circunstancia/Frase preposicional)". Hal-liday distingue varios tipos de processos: Material: (agao;criativo; acontecimentos); Mental (percepgao/ afeigao/cognigao) (ver; sentir; pensar); Verbal; Relacional: in-tensiva (atributivo/equitativo), circunstancial (relagoesde tempo, lugar, etc.); possessao; Existenciais (haver,aparecer, ocorrer). Cada um desses tipos seleciona par-ticipantes diferentes e Ihes atribui papeis no processo(papeis semanticos) (HALLIDAY, M.A.K., 1994 [1985].An introduction to functional grammar. Londres: Arnold).

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Recursos lingiiisticos: e o conjunto de formas lingiiisticas,pertencentes a todos os niveis do idioma (sejam sons,morfemas, palavras, construcoes sintaticas, ou caracte-risticas e estruturas semanticas, processes de inferencia,etc.) que os idiomas poem a disposicao dos falantes.

Variedades lingiiisticas: Maneiras de falar que surgem co-mo resultado dos processes - inerentes e constantes - devariacao que sao observados nos idiomas, devido a dife-renpas sociais (idade, genero, grupo, classe social, cas-ta, origem rural ou urbana), ou devido a divisao socialdo trabalho e do conjunto de praticas nas quais o idio-ma desempenha um papel relevante. Classificam-se em:Socioletos (dialetos sociais): "o que voce fala (habitual-mente) irifluenciado por aquilo que voce e (regiao socialde origem e/ou adogao); expressam diversidade na es-trutura social". E registros ou estilos: "o que voce fala(em um momento determinado) influenciado pelo quevoce faz (natureza da 3930 que realiza); expressam di-versidade nos processos e na vida social (divisao so-cial do trabalho)" (definipao extraida de HALLIDAY,M.A.K. (1978). El lenguage como semiotica social. Ma-dri: Fondo de Cultura Economica).

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Este capitulo tern como objetivo geral apontar para aimportancia da analise de documentos de dominio pu-

blico, compreendidos como praticas discursivas que sus-tentam estrategias de governamentalidade. Como exem-plo abordaremos uma arena especifica de govemo das re-lac, oes cotidianas: a gestao da vida por meio da pratica dacomunicac. ao sobre riscos, contrastando os usos da lingua-gem dos riscos em tres dominios de saber fazer - a saudepublica, o esporte aventura e o campo da reproducao hu-mana assistida.

* Uma versao preliminar deste texto, sob o titulo Psicologia social,governamentalidade e linguagem dos riscos na vida cotidiana, foi apre-sentada no IX Simposio da ANPEPP (Associate Nacional de Pesquisae Pos-graduacao em Psicologia), realizado em agosto de 2002.* * Programa de Estudos Pos-graduados em Psicologia Social, PUC-SP.

* Programa de Estudos Pos-graduados em Psicologia Social, PUC-SP.

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Os discursos sobre risco defmem territories linguisti-cos que demarcam campos de gestao. Nesses campos de-senvolvem-se maneiras especificas de falar sobre riscos.Assim, ao nos referirmos a linguagem dos riscos, emborausando o singular, nao estamos propondo a existencia deuma linguagem unitaria. Estamos sugerindo que no interi-or de cada campo desenham-se formas de falar sobre ris-cos que Ihe sao especificas e que estao presas a tres tradi-9oes de discursos sobre riscos por nos identificadas em es-tudos anteriores: o govemo de cpletivos, a disciplinariza-pao da vida privada e a aventura (Spink, 2000a; 2001).

De modo a melhor detalhar nossa proposta e situar oque estamos entendendo por linguagem dos riscos faz-senecessario explicitar o conceito de linguagem a que esta-mos nos referindo. Essa questao e particularmente rele-vante dado que utilizamos uma abordagern de analise dis-cursiva que trabalha de forma concomitante os micropro-cessos de produgao de sentidos no aqui-e-agora das intera-poes sociais e a circulac.ao de repertories linguisticos emgeral, incluindo ai seu uso em documentos de dominio pu-blico tornados como praticas discursivas que sustentamestrategias de governamentalidade (Spink, 1999).

O estudo dos microprocessos de produ9ao de sentidosse alia as correntes pragmaticas da filosofia da linguagem.Ja a compreensao dos repertories interpretativos requeruma visao mais estrutural (ou minimamente, mais normati-va) que permita entender as regras de constru^ao sem, no en-tanto, perder de vista a singularidade do uso em distintos con-textos. A tensao entre aspectos performativos e estruturaisda linguagem sera discutida na primeira parte do texto.

Na segunda, nos apoiando em Michel Foucault e Mi-khail Bakhtin, discutiremos uma proposta de linguagemque atenda a essa dupla exigencia - trabalhar corn a pro-cessualidade do cotidiano e entender os discursos sobrerisco como uma linguagem social expressa emgeneros defala proprios aos diversos dominios de saberes e fazeres.

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Adentrando mais especificamente na linguagem dosriscos, na terceira parte do texto, apresentaremos as trestradicoes de discursos sobre risco propostas em trabalhosanteriores (Spink 2001; Menegon, 2003). E no jogo entresemelhancas e diferencas entre essas tradigoes que se tor-na possivel conciliar sistemas linguisticos e a polissemiado uso dos repertories sobre risco. Se pensarmos que cadatradigao discursiva gera uma moralidade caracteristica, aanalise dos generos de fala e importante para compreenderas estrategias de gestao de relacoes sociais, cabendo a per-gunta sobre a possibilidade de comunicagao transversalentre essas tradicoes.

De modo a explorar essas diferen9as contrastaremos,na parte final do texto, formas discursivas empregadas emdiferentes campos: dos esportes radicais (tradigao aventu-ra), da prevengao de agravos a saude (tradigao do governode coletivos) e dos programas de reprodugao humana as-sistida (entrelacamento de duas tradigoes: disciplinariza-cao da vida privada e aventura).

1. Da interioridade das ideias a exterioridade dalinguagem: a virada linguistica

Pica dificil entender o debate contemporaneo sobre lin-guagem sem situa-lo, primeiramente, na filosofia e nas rup-turas que ocorreram nas relacoes estabelecidas na filosofiaclassica entrepensamento, linguagem e as coisas do mun~do. As questoes contemporaneas da filosofia da linguagem,segundo Ludwig (1997), sao de tres ordens: o que e compreen-der uma mensagem linguistica, qual o sentido de uma pa-lavra ou frase e o que 6 uma significagao.

Essas perguntas pressupoem um posicionamento quan-to a relagao entre tres elementos: a) os sons e as palavras;

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7. Praticas discuisivas...

b) os estados da alma; c) as coisas do mundo1. As relagoesentre esses elementos suscitaram duas questoes majorita-rias para a filosofia classica.

1) As teorias classicas da comunicacao voltavam-seao poder das palavras de refletir fielmente nossos pen-samentos e a codificagao de nossas representacoes men-tais em um meio exterior de modo a toma-las acessi-veis a uma outra pessoa. Tal postura focalizava os vin-culos que \msmpensamento e linguagem^ inauguran-do uma primeira via de acesso aos problemas da signi-ficagao: o estudo da significagao a partir da ftmcao ex-pressiva da linguagem. Nessa diregao, as palavras naoteriam outro signiflcado alem das ideias que sao co-municadas e seu poder de representagao derivaria to-talmente dos estados do espirito.2) Mas seria possivel focalizar tambem a relagao en-tre linguagem e as coisas das quais elas tratam: gragasa linguagem, podemos descrever as coisas e modifica-las (com ordens, ameagas etc.). Nessa diregao pode-setomar a significagao como uma relagao direta entre aspalavras e as coisas, privilegiando assim afun$ao derepresentagao da linguagem.

Na filosofia classica a abordagem dessas questoes tomacomo base pressupostos ontologicos e epistemologicosrealistas, que fazem com que a linguagem assuma o pa-pel de mediagao entre mente (interna) e mundo (externo).Foram necessarias varias inversoes para que ocorressea virada lingufstica, entre elas: o deslocamento do focoda cognigao (ou da filosofia da consciencia, no periodoclassico) para a comunicagao; o deslocamento do foco nopensamento (ou ideias) para a linguagem exteriorizada -

1 Esses tres elementos ja estavam presentes na reflexao filosoficadesde que Aristoteles escreveu o texto Da Interpretaqao.

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Mary Jane P. Spink e Vera Mincoff Menegon

a linguagem em uso - e o deslocamento da lingua comoestrutura (la langue) para o foco na produ9ao de sentidos{la parole).

Desses varies elementos, e o deslocamento do foco dainterioridade da mente para a exterioridade do uso quepropicia o solo para ancoragem da proposta de estudar alinguagem dos riscos, incorporando anogao de formacoesdiscursivas e praticas discursivas.

Das relagoes entre pensamento e linguagem: as basesda teoria classica sobre linguagem

A teoria de linguagem que dominou o pensamento fi-losofico por muitos seculos tern por fiindamento o pressu-posto que a significacao e essencialmente a relacao entrepensamento e palavras. Nessa teoria, na formulacao dadapor Hobbes, "o uso geral da palavra e de transformar nos-so discurso mental em discurso verbal, e o encadeamento denossos pensamentos em urn encadeamento de palavras"2.Como a representa9ao mental tern prioridade sobre a repre-sentacao linguistica (ou discurso publico), a teoria classi-ca repousa duplamente sobre uma teoria dos signos e umateoria das ideias*. Nessa perspectiva, saber o que quer di-zer uma palavra e conhecer a ideia da qual a palavra e signo(a ideia a qual esta convencionalmente associada) e enten-der o significado de um grupo de palavras, e conhecer asideias associadas a cada palavra e a Iiga9ao que as associa.

2 Em Leviathan, 1,4, segundo Ludwig, 1997.

3 Para os classicos a no?ao de signo traz uma relacao natural de sig-nificasao (relativa aos signos naturais: por exemplo, a fumaca e sinaldo fogo) ao lado do qual ha tambem uma relacao convencional (sig-nos de instituicao: por exemplo, por conver^ao a palavra cao denotaum certo animal embora nao haja uma rela9§io intrinseca entre a pala-vra e o animal). Se a nofao de signo domina a semantica dos classi-cos, a nogao de ideia atravessa toda sua epistemologia, constituindoseu principal conceito teorico (Ludwig, 1997: 13).

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7. Praticas discuisivas...

Esse reducionismo e problematico, pois deixa de foraa rela9ao entre ideias e palavras e as coisas do mundo.Como entao explicar a rela9ao entre ideias e coisas? A res-posta comum, nos seculos XVII e XVIII, segundo Ludwig(1997), era que "as ideias representam diretamente as coi-sas porque elas sao suas imagens", ou seja, porque se asse-melham as coisas que representam. A exemplo da repre-senta9ao efetuada pela pintura e fotografia, a presen9a deuma imagem no espirito do locutor garantiria o elo intrin-seco da representaQao mental com o objeto representado.

Contudo, nao ha associa9ao de imagens com todas aspalavras de uma lingua, por exemplo, com termos abstra-tos, com os conectores (ou, e) ou com os pronomes. Parapoder ancorar a significa9ao das palavras, as representa-9oes mentals - diferentemente das imagens - teriam quecompartilhar algumas de suas propriedades. Elas teriamque ter um conteudo proposicional e, assim como nas fra-ses, serem suscetiveis de comprova9ao e falsifica9ao, cons-truidas observando as regras da sintaxe e que representemrela9oes e propriedades abstratas. Decorre dai a hipotesede uma linguagem do pensamento, ou mentalais. A emer-gencia das ciencias cognitivas contemporaneas pressupoe,em certo sentido, a hipotese da existencia de uma lingua-gem do pensamento, sendo a metafora do espirito-compu-tacional (esprit-ordinateur) o elo de uniao entre as dife-rentes disciplinas (Psicologia Cognitive, Linguistica, Inte-ligencia Artificial). Ou seja, tal como os computadorespossuem sua linguagem-maquina, nosso cerebro teria umcodigo proprio: as mentalais.

Mas, se pensamento e linguagem estao intimamenterelacionados, passa a ser importante determinar quem temprioridade: pensamento ou linguagem. E a linguagem quetorna o pensamento possivel ou, vice-versa, a linguagem etao-somente o meio de comunicar nossos pensamentos? Aresposta a essa pergunta tende a ficar conceitualmenteembaralhada: afmal, o que entendemos por linguagem? Se

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Mary Jane-P. Spink e Vera Mincoff Menegon

linguagem e o conjunto de simbolos com certas proprieda-des das linguas de cada comunidade, entao ela depende so-mente das regras internas de funcionamento das linguas enao do pensamento. Em contraste, se o uso das linguas de-pende dos estados mentais do locutor, para se comunicar epreciso se comportar de forma determinada e intencional.Nesse caso, o uso da linguagem pressupoe o pensamento,pelo menos no que diz respeito a intencao de comunica^ao.

A primeira fase da virada linguistica: de Frege afilosofia anah'tica

Seguindo a discussao feita por Tomas Ibanez no pri-meiro capitulo deste livro, a primeira fase da virada lin-guistica, associada as teorizapoes de Gottlob Frege(1848-1925) e Bertrand Russell (1872-1970), leva a dois deslo-camentos importantes em relagao a teoria classical

1) Do estudo das ideias, compreendido como discursomental e caracterizado pela introspeccao, para o estu-do dos enunciados lingiiisticos e publicos que eviden-ciam sua estrutura logica. Nessa perspectiva, a lingua-gem cotidiana e vista como problematica por se estabe-lecer sobre uma logica imperfeita, ambigua e imprecisa.2) Dos espa9os intemos da mente para os externos,deixando de considerar que sao nossas ideias que es-tao em rela?ao com o mundo para afirmar que sao nos-sas palavras que correspondem aos objetos do mundo.

Com esses deslocamentos, a linguagem passa a repre-sentar os fatos que compoem a realidade, ou seja, e toma-da como instrumento codificador e transmissor de infor-magao sobre o mundo. Historicamente, essa abordagemda significa^ao se opoe a teoria classica, segundo a qual asleis da logica nada mais sao do que descri9oes de regulari-dades psicologicas; generalizafoes, portanto, da maneiracomo cada individuo raciocina. Frege e Russell, ao contra-

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rio, postulam a objetividade e universalidade das leis logi- 'cas, defendendo uma abordagem objetiva da significa9ao.

A proposi^ao da linguagem como meio de representara realidade parte de uma teoria naive da significa$ao, se-gundo a qual as palavras tern como essencia representarcoisas. Compreender uma palavra e conhecer o que ela re-presenta; compreender uma frase e conhecer a que agenci-amento de coisa ela corresponde: ou seja, coiiecer suascondi9oes de verdade. Em suma, a teoria naive da signifi-ca9ao anda de par com uma visao representacionista dalinguagem: uma frase comunica uma informagao comosua representante. O que a frase representa nao e a repre-senta9ao mental do locutor, mas um aspecto da realidade,portanto algo objetivo (umaproposi$ao).

Sob influencia de Russell, a maioria dos filosofos con-temporaneos voltados a filosofia analitica associa o senti-do das expressoes com os conceitos que elas conotam eque permitem, por sua vez, identifkar de forma unica seusreferentes. Trata-se de uma analise que se presta admira-velmente as describes.

A descri$ao, todavia, vai de par com uma concep9aocartesiana de significa9ao das palavras: conhecer o senti-do de uma palavra e possuir um conceito, ou uma repre-senta^ao mental que seja aplicavel. A compreensao e, por-tanto, uma opera9ao interna do espirito. Por exemplo, umlocutor compreende o sentido da palavra dgua se conhecersuas condi9oes de aplica9ao. Ou seja, possui uma descri-9ao precisa que identifique a extensao do termo - liquidoincolor que estanca a sede.

A preocupagao com a Linguagem cotidiana

Interessar-se pela linguagem implica focaliza-la tam-bem em sua utiliza9ao e nao apenas em sua essencia. E

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Mary Jane P. Spink e Ver'a Mincoff Menegon

este caminho que leva ao interesse pela linguagem ordina-ria e fenomerios da comunicagao.

Historicamente, esse interesse caracteriza-se como re-agao a abordagem logica da linguagem que dominou o pen-samento dos fundadores da filosofia da linguagem contem-poranea: Frege e Russell. Para a filosofia que se mitre daescola da logica, a unidade linguistica fundamental e a fra-se afirmativa que permite descrever um fato, veicular umainformagao ou exprimir um conhecimento. Todavia uma fra-se e um objeto abstrato e suscetivel de multiplas realizagoesno espago e no tempo.

Ao considerar a frase como unidade fundamental dasignificacao esta passa a ser um fenomeno independentedo contexto e das circunstancias de seu uso. Mas quandonos debrugamos sobre as acoes efetuadas na pronuncia dasfrases, a imagem classica da comunicagao se complica.Lembremos que, na concepgao classica, a fungao primeiradas palavras e comunicar uma informagao factual que con-cerne diretamente os pensamentos do locutor e, indireta-mente, os fatos sobre os quais remetam tais pensamentos.Nessa acepgao, a propriedade essencial dos sinais lingiiisti-cos e sua capacidade de corresponder ou nao a realidade.

Os filosofos da linguagem comum opoem-se violenta-mente a essa doutrina que revela, segundo John Austin(1962), uma ilusao descritiva, e buscam mostrar que osenunciados nao veiculam apenas informagoes factuais, masveiculam tambern informagao sobre o tipo de ato que elespermitem efetuar. Veiculam, pois, alem de conteudo pro-posicional, uma indicagao do ato que desejam efetuar.

Nomeando esses atos de performatives Austin argu-menta que esses enunciados permitem transformar a reali-dade, e nao apenas descreve-la. Eles nao tern significadosenao no interior da rede de papeis que uma comunidade

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7. Praticas discursivas...

social dada define. Nessa perspectiva, que parte do ato deenunciagao e nao somente da frase, e necessario estudarnao apenas os conteudos da frase, mas tambem a forma eas circunstancias de utilizagao. Isso fica mais claro quan-do focalizamos a comunicagao como empreendimento co-letivo, pois e necessario, de um lado, aceitar certas regrase, de outro, ser capaz de ter em conta os pensamentos e in-tengoes dos parceiros a fim de antecipar suas agoes.

Em suma, a flexibilidade da linguagem utilizada na co-municagao parece ser extraordinaria: segundo o contexto,as mesmas palavras podem comunicar um numero infmitode mensagens. Esse e o enquadre linguistico da analise daspraticas discursivas quando focalizamos os processes deprodugao de sentidos nas interagoes face a face.

2. Da conciliacao possivel entre linguagem em usoe aspectos estruturais da Linguagem situada

Nosso desafio, conforme enunciamos anteriormente,esta na conciliagao da perspectiva da linguagem em uso,com a outra vertente de nosso trabatho sobre praticas dis-cursivas, voltada a genese e circulagao dos repertories so-bre risco, em que identificamos tres tradigoes discursivasdistintas: governo de coletivos, disciplinarizagao da vidaprivada (via disciplina dos corpos) e aventura. Na buscade subsidies para trabalhar dialeticamente (mas nao con-traditoriamente) com essa dupla face nos discursos sobrerisco, deparamo-nos com dois caminhos: o enquadre fou-caultiano de formagoes discursivas e a proposta teorica degeneros de fala de Mikhail Bakhtin.

Um primeiro caminho: as formagoes discursivasfoucaultianas

No capitulo intitulado "Formagoes discursivas", do li-vro Arqueologia do saber, publicado em 1969, Michel

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Mary Jane P. Spink e Vera MincoffMenegon 1. Praticas discursivas...

Foucault (1987) problematiza a possibilidade de pensai aunicidade dos discursos a partir das relagoes entre enunci-ados. Busca integrar regularidades e sistemas de disper-soes, denunciando a paradoxal integra9ao do mesmo e dadiferenca das formasoes discursivas.

Nesse afa, descarta paulatinamente quatro hipoteses so-bre as bases da rela9ao entre enunciados: a referenda a ummesmo objeto (por exemplo, risco); a constancia no estilo(ou o carater constante da enuncia9ao); o sistema de con-ceitos em jogo, a identidade e a persistencia dos temas.Descarta essas hipoteses, pontuando as diferencas, os des-vios e as transformacoes historicas em cada elemento po-tencialmente integrador, propondo que se estude os prin-cipios de individualizagao do discurso justamente em seuspontos de dispersao e nao de integracao.

Foucault define asformacdes discursivas precisamen-te por meio da imbrica9ao entre sistemas de dispersao e re-gularidades discursivas.

No caso em que se puder descrever, entre um certo nu-mero de enunciados, semelhante sistema de dispersao, eno caso em que entre os objetos, os tipos de enuncia$ao,os conceitos, as escolhas tematicas, se puder definir umaregularidade (uma ordem, correlafSes, posi9oes e fun-cionamentos, trans forma9oes) diremos, por convencao,que se trata de umaforma$ao discursiva - evitando, as-sim, palavras demasiadamente carfegadas de condicoese conseqiiencias, inadequadas, alias, para designar se-melhante dispersao, tais como "ciencia", ou "ideolo-gia", ou "dominio de objetividade". Chamaremos de re~gras deformaqao as condicoes a que estao submetidosos elementos dessa reparti^ao (objetos, modalidade deenunciacao, conceitos, escolhas tematicas) (Foucault,1987:43).

O olhar se desloca, assim, da ordem ao controle; das re-gularidades per si aos procedimentos, que tern por fun9ao

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controlar os perigos do discurso e domar sua aleatorieda-de. Volta-se, portanto, asprdticas discursivas mais do queas regras intemas de seu funcionamento e sao essas fun-9oes de controle do discurso como pratica discursiva queFoucault utiliza como tema de sua aula inaugural no Col-lege de France, em 1970: A Ordem do Discurso. Nessa aula,Foucault parte da hipotese que

[...] em toda sociedade a produ9ao do discurso e ao mes-mo tempo controlada, selecionada, organizada e redis-tribuida por certo numero de procedimentos que tern porfuncao conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acon-tecimento aleatorio, esquivar sua pesada e temivel mate-rialidade (Foucault, 2002: 8).

Nessa apresenta9ao, aborda os procedimentos de ex-clusdo que operam do exterior sobre o discurso: a interdi-9ao (a palavra proiblda), a separa9ao (como no caso daloucura) e a vontade de verdade. Discute, tambem, os con-troles internes sobre o discurso - o comentario (as formu-las e rituais), o autor (como foco de coerencia) e as disci-plinas (e seu jogo de regras e defini9oes) - assim como ascondicoes de utilizaqao que defmem os individuos que po-dem, legitimamente, entrar na ordem do discurso (o ritual,as sociedades de discurso, a doutrina e as formas de apro-pria9ao social dos discursos).

Tomando por foco o jogo complexo e qui9a paradoxalentre a ordem e a desordem dos discursos, propoe, para oestudo das forma96es discursivas, que sejam tomadas umaserie de decisoes metodologicas: a inversao, a desconti-nuidade, a especificidade e a exterioridade.

Por inversao, Foucault se refere ao deslocamento dasfiguras tradicionais da analise - autor, disciplina ou vonta-de de verdade - em dire9§o ao "jogo negative de um recor-te e de uma rarefa9ao do discurso" (2002: 52), deixando,poiss de considera-las instancias fundamentals e criado-

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ras! Ja o principle de descontinuidade trata os discursoscomo praticas descontinuas que por vezes se cruzam,mas tamb6m, por vezes, se ignoram. Ou seja, nao se bus-ca por detras delas "uma realidade mais fundamental dodiscurso" (p. 79).

Quanto ao principio da especificidade, trata-se de naotransformar o discurso em "um jogo de significacoes pre-vias", como se o mundo tivesse uma face legivel que cabeao discurso decifrar. Foucault propoe que se conceba "odiscurso como uma violencia que fazemos as coisas, comouma pratica que Ihes impomos [...]" (p. 53). Finalmente,quanto a regra de exterioridade, propoe que nao passemosdo discurso para um suposto nucleo escondido: o amagode um pensamento ou de uma significagao. Devemos, apartir de sua regularidade, buscar as suas condigoes exter-nas de possibilidade,"[...] aquilo que da lugar a serie alea-toria desses acontecimentos e fixa sua fronteira" (p. 53).

Tais posicionamentos metodologicos fogem da descri-gao da estrutura interaa dos discursos e sao compativeiscom a virada linguistica, apesar de Foucault ter chegado aeles por caminhos singulares, refletindo sobre poder (as-sociado ao saber) e subjetividade, mais do que sobre lin-guagem propriamente dita. Suas pesquisas focalizam ascondigoes de emergenciados sistemas de conhecimento (aarqueologia) e as condigoes de funcionamento na perspec-tiva do poder (a genealogia).

Entretanto, a proposta de estudo da Hnguagem dos ris-cos prende-se a relacao entre estrategias de governamen-talidade e as posicoes de pessoa que tais estrategias defi-nem (ou tornam possiveis). Assim, ao nosso ver, falta naproposta foucaultiana de analise das praticas discursivaso lugar da pessoa: da interatividade e dialogicidade quemarca os processes cotidianos de produgao de sentidos. Ena reflexao de Bakhtin sobre generos defala que encon-

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tramos subsidies para trazer as formagoes discursivas fou-caultianas para o espa^o das interagoes cotidianas.

Um segundo caminho: Mikhail Bakhtin e o conceitode generos de fala

Com referenda a Bakhtin, vale pontuar que a preocu-pa9ao aqui nao e com a obra (que, no caso desse autor, erica e complexa) e sim um texto muito especifico - Theproblem of speech genres - publicado originalmente em1952-1953.

Para Bakhtin a unidade basica da comunica9ao e oenunciado. Este, entretanto, nao pode ser entendido isola-damente: "Qualquer enunciado e um elo em uma correnteformada de maneira muito complexa por outros enuncia-dos" (1994: 69). Os enunciados, na perspectiva de Bakh-tin, implicam presen9a de interlocutores, presentes, passa-dos e futures, inserindo-se assim, de maneira concomitan-te, em uma teoria da Hnguagem e uma teoria da comunica-9ao. Esse posicionamento fica claro ao considerarmos asno9oes de enderegamento e de vozes.

O endereqamento refere-se a presenga do outro, ha-vendo dois aspectos importantes. De um lade, a proprianogao de enunciado j a denuncia essa presenga, dado queas fronteiras de um enunciado sao deflnidas pela mudan-ga de locutor (presente ou imaginado). De outro lado, acompreensao da comunicagao e, ela mesma, perpassadapor responsividade: ao compreender a mensagem, o in-terlocutor assume automaticamente uma atitude respon-siva para com ela. Mesmo tratando-se da compreensaosilenciosa, Bakhtin a posiciona como uma forma de dia-logo; ele diz: "A compreensao e uma forma de didlogo;ela esta para a enunciagao assim como uma replica estapara a outra no dialogo. Compreender e opor a palavra do

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locutor urna contrapalavra" (Bakhtin, 1929/1995: 132 -Enfase do autor).

Mas e a no^ao de vozes que nos permite maior aproxi-ma9ao com o foco deste texto que visa discutir a possibi-lidade de integra9ao de uma perspectiva mais estrutural(ou normativa) e da dialogicidade das praticas discursi-vas orais. Nossos discursos sao produzidos por uma voz -the speaking personality. Como tal, um enunciado e sem-pre falado ou escrito a partir de um ponto de vista (Wertsch,1991: 51). Mas esse ponto de vista e simultaneamente re-sultado da criatividade do ato singular (do estilo indivi-dual) e do tipo de enunciados a que pertence. "Natural-mente, se visto de maneira isblada, cada enunciado e indi-vidual, todavia, cada campo em que a linguagem e utiliza-da desenvolve enunciados tipicos e relativamente cons-tantes. A estes chamamos generos defala" (Bakhtin, 1994:60 - Enfase do autor).

E essa dinamica, entre formas estaveis de enunciados eos usos singulares que deles sao feitos, que propicia o en-quadre para pensar a relacao entre linguagem dos riscos,tradicoes discursivas e usos especificos de enunciados so-bre risco. Essa rela9ao dialetica entre normatividade e sin-gularidade e abordada por Daniel Fa'ita (1997) em textopublicado em obra comemorativa dos cem anos de Bakh-tin (Brait, 1997). Diz o autor:

Com efeito, o individuo dispoe, certamente, de formasidenticas as de qualquer outro membro da comunidade,mas nenhuma forma, no entanto, isto &, nenhuma abstra-cao pode ser transmitida a quern quer que seja a nao serna concretude da relafao, com todas as nuan9as ou colo-ra9oes sociais, psicologicas ou simplesmente afetivaspelas quais e nas quais se perfilam os sujeitos singulares.A dimensao criadora das atividades pertencentes a dife-rentes areas, por um lado, em niimero maior ou menorconforme os individuos, nao se inscreve numa mesma

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ordem de coisas. A normatividade se exprime nas com-bina9oes que o enunciado realiza, enquanto sua indivi-dualidade resulta da Hvre concep9ao, pelo locutor de$Q\iprojeto discursivo (Faita, 1997: 171).

Essa rela9ao dialetica entre conhecimento situado e dia-logicidade, de um lado, e o solo mais normative em que seprocessa a comunica9ao e trabalhada por Bakhtin pormeio das no9oes de linguagem social e generos de fala.Esses conceitos possibilitam a integra9ao entre propos-tas aparentemente irreconciliaveis: unique speech events(enunciados singulares produzidos por vozes singulares) etipos de speech events (tipos de enunciados produzidospor tipos de vozes),

As linguagens sociais sao discursos peculiares a estra-tos especificos da sociedade (grupos profissionais, etarios,campos de conhecimentos distintos etc.), num determi-nado sistema social e numa determinada epoca. SegundoWertsch,

Ao empregar a no9ao de linguagem social, Bakhtin podeidentificar e estudar principios organizadores da comu-nica9ao discursiva concreta. Seu empenho ancorava-seno pressuposto de que nao ha logica em examinar unida-des que "a ninguem perten9am e a ninguem sao endere-9adas" para formular principios que generalizam enun-ciados da comunica9ao humana (1991: 59).

Em suma, as linguagens sociais nao existem no vacuo.Segundo Bakhtin, um locutor sempre invoca uma lin-guagem social ao produzir um enunciado, mas faz isso seapropriando desta e povoando-a com suas proprias inten-9oes e estilo. Portanto, a linguagem e sempre uma constru-930 hibrida - um atravessamento de vozes, estilos e tiposde enunciados.

Se a no9ao de linguagem social remete a posi9ao depessoa (estrato social, profissao etc.) a partir do qual fala o

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Maty Jarie P. Spink e Vera Mincoff Menegon

locutor, os generos defala sao caracterizados, sobretudo,por temas e situagoes tipicas de comunicagao. Bakhtinafirma que "urn genero de fala nao e uma forma de lingua-gem, mas uma maneira tipica de enunciado; assim, ao serexpresso, o genero carrega uma tipicidade que Ihe e ine-rente" (1994: 87). Isso se aplica tanto as comunicagoescorriqueiras do cotidiano, como as diversas formas de co-municagao cientifica e generos literarios. Para o autor, ariqueza e diversidade dos generos de fala (escritos e orais)sao ilimitadas "porque as possibilidades da atividade hu-mana sao inesgotaveis e porque cada uma dessas esferascontem seu repert6rio de generos de fala que se diferen-ciam a medida que essa atividade se desenvolve e se tornamais complexa" (1994: 60).

Mesmo fazendo distincoes analiticas entre linguagenssociais e generos de fala seus limites sao dificeis de seremdemarcados porque o estoque social linguistico dispomvelvive na constancia de repertories prototipicos encadeadosna tipicidade de diferentes generos de fala, ao mesmo tem-po em que sao atualizados infmitamente, por meio de dife-rentes praticas discursivas.

Os generos de fala, como tipos de enunciados, nos per-mitem tambem fazer a ponte entre passado e presente, oque vem ao encontro da perspectiva temporal por nos ado-tada no estudo das praticas discursivas (Spink & Medrado,1999). Segundo Bakhtin, os "enunciados e suas formas ti-picas, isto e, os generos de fala, sao as correntes transmis-soras (drive belts) da historia da sociedade para a historiada linguagem" (1994: 65). Faita parece concordar comisso ao afirmar:

[...] e a introdugao naproblematica do processo historicode constituicao do sentido que nos parece estabelecerum marco importante. Esse processo tern dupla implica-gao, por assim dizer, pois nao so a evolucao do dialogo

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7. Praticas discursivas...

produz uma circulagao, um movimento tematico trans-formando a cada instante os valores em referenda aosquais os sentidos das palavras se reconstituem, comotambem este ultimo (ou a "significagao real" nessa etapado pensamento de Bakhtin) esta ainda parcialmente de-terminado por essas "vozes" anteriores as quais respon-demos sem explicitar, ou que nos esforcamos por igno-rar (Faita, 1997: 162).

Ainda nos apoiando nas consideragoes de Faita a res-peito das teorizagoes de Bakhtin sobre generos de fala, e asoma de varias contradigoes que asseguram a motricidadedo dialogo no processo paradoxal de produgao de senti-dos. Primeiramente, a contradigao entxe a individualidadeda produgao e a dimensao social do ato. Em segundo lu-gar, a contradigao entre "a pregnancia incontornavel dasnormas e a liberdade do projeto discursive". Em terceirolugar, a contradigao "entre a liberdade da criagao e a impli-cagao de todo sujeito na relagao triadica entre si mesmo, ooutro, e estas vozes que se exprimiram antes ou se expri-mem em outros lugares, em paralelo" (Fai'ta, 1997: 173).

E tambem a partir da argumentagao de Bakhtin de quequalquer enunciado (oral ou escrito) implica a presenga deinterlocutores, presentes, passados e futuros, que se mate-rializam nas nogoes de vozes e de enderegamento, que po-demos compreender os textos escritos como praticas dis-cursivas e acatar o principio de que toda linguagem e dia-logica. Nessa perspectiva, as praticas discursivas sao asmaneiras pelas quais se articulam as linguagens sociaisexistentes e os generos de fala, produzindo singularidadesde uso e hibridizagoes discursivas, como nos rnostra o es-tudo do uso da linguagem social dos riscos.

3. A linguagem dos riscos e suas diferentes tradigoes

O programa de pesquisa voltado a gestao dos riscos namodernidade tardia desenvolvido no ambito do Nucleo de

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Mary Jane P. Spink e Vera Mincoff Menegon

Estudo e de Pesquisa em Praticas Discursivas e Producaode Sentidos (PUC/SP)4, desde 1996, assenta-se em algunsapontamentos;

1) A palavra risco tornou-se de uso corrente nas lin-guas indo-europeias por volta do seculo XIV, em umperiodo em que havia se tornado possivel pensar o fu-turo como passivel de controle;2) A formalizacao do risco como conceito fundamen-tal para a gestao de coletivos sustenta-se no desenvol-vimento de uma tecnologia especifica: o calculo deprobabilidades;3) A analise dos riscos, a partir de meados do secu-lo XX, assenta-se em tres pilares: o calculo do risco, aperceppao do risco pelo publico e a gestao dos riscos(que envolve, mais recentemente, a comunicacao do ris-co para o publico);4) A analise dos riscos e palco de acirrados debatesque confrontam posturas objetivistas e socioculturais quedesembocamno consenso (pouco confortavelparauns)que a definicao do que vem a ser riscos esta imbricadacom valores e ordens morals que extrapolam a racio-nalidade do calculo do risco;5) Esse debate, na modernidade tardia, desloca-se daesfera dos valores para a esfera do calculo, ponderan-do que os riscos manufaturados tendem a ser impon-deraveis;6) Finalmente, sejam os riscos calculaveis ou impon-deraveis, na medida em que afetam os coletivos, elessao obrigatoriamente objetos de gestao publica. Ouseja, a gestao dos riscos e tarefa central no governodas populates, seja nos microcontextos de cada cida-de, estado, nagao, ou no macrocontexto da sociedade

4 O Nucleo e o programa de pesquisa estao sob a coordena9ao deMary Jane Spink e incluem Projetos Integrados do CNPq assim comoprojetos desenvolvidos por mestrandos e de doutorandos.

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7. Praticas discursivas...

globalizada. Riscos associados a falencia economicaao terrorismo internacional, a destruigao ambiental acontaminate por agrotoxicos entre outros, ao empre-go de novas tecnologias na saude, assim como os ris-cos do cotidiano urbano precisam ser calculados, se-gurados e gerenciados.

As formas de controle dos riscos possibilitam, portan-to, entender as modernas estrategias de governamentali-dade, conceito desenvolvido por Foucault em escritos va-riados, sobretudo em texto homonimo da aula proferida noCollege de France em 1° de fevereiro de 1978 (Foucault,1995). Optamos pelo conceito de governamentalidade porevitar reduzir o problema da gestao dos riscos a esferado Estado, inserindo-o na questao mais abrangente de umamentalidade de governo.

O conjunto constituido pelas institui9oes, procedimen-tos, analises e reflexoes, calculos e taticas que permitemexercer esta forma bastante especifica e complexa de poderque tern por alvo a populasao, por forma principal de sa-ber a economia politica e por instrumentos tecnicos es-senciais os dispositivos de seguransa (Foucault, 1995:291).

Ou seja, o governo nada mais e que a fusao das ativida-des de cada um de nos, cabendo a Psicologia Social umaimportante contribuigao na compreensao dos sentidos dosriscos na vida cotidiana. Trazendo essa proposta para o en-quadre da psicologia discursiva que se desenha no ambitodo movimento construcionista, o foco se desloca das es-trategias regradas para as formas de falar sobre riscos emdiferentes instancias da vida cotidiana5.

5 Haviamos explorado, em pesquisas anteriores, as diversas manei-ras em que circulam os repertories sobre risco. Com esse objetivo, de-senvolvemos pesquisas na midia (Spink et al,, 2002), em alguns cam-pos disciplinares (Psicologia e Educacao em Saude) e exploramos ossentidos do risco no espago de vida de pessoas de diferentes segmen-tos da sociedade (Spink et al.}.

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Continuando a reflexao acerca do estatuto teorico dalinguagem dos riscos, retomamos a pergunta: como traba-Ihar a contradigao entre os aspectos mais permanentes dasmaneiras de falar sobre risco na moderaidade (a normati-vidade da linguagem dos riscos), as especificidades dosdiscursos em diferentes setores de atividade que tern ris-cos como aspectos intrinsecos (os generos de fala) e a po-lissemia dos sentidos dos riscos nas praticas discursivascotidianas (a dialogicidade)?

Comegando com o pressuposto de existencia de umalinguagem social dos riscos, o que estamos propondo eque desde que os riscos puderam ser pensados na perspec-tiva da gestao, formataram-se certas constancies discursi-vas que nos permitem falar da existencia de uma lingua-gem dos riscos. Barbara Adam e Joost Van Loon refe-rem-se a esta nos seguintes termos:

A linguagem dos riscos esta tradicionalmente associadaao mundo economico das trocas e das apolices de segu-ros, ao mundo medico na rela9ao entre profissionais dasaiide e seus pacientes, aos esportes radicals e as pessoasque "arriscara" suas vidas por outros. Nessas situacoestradicionais de risco, as pessoas calculam o risco poten-cial de certas 39068 e tomam decisoes fazendo escolhas aluz de suas avalia9oes. Riscos especificos sao concebi-dos e relacionados as pessoas, as familias e as nagoes, noque se refere ao bem-estar fisico, mental, social e/oueconomico. A linguagem dos riscos, entretanto, e e sem-pre foi inescapavelmente social. A percepcao de riscopressupunha uma relagao particular com um fiituro es-sencialmente desconhecido, cuja probabilidade de ocor-rer podia, todavia, ser calculada tomando como base fre-qiiencias passadas: uma resposta sociocultural calculadaem antecipacao a acontecimentos potenciais. 0 calculodo risco e esse tipo de comportamento 6 uma questao dematematica que independe do risco ser calculado de ma-neira explicita ou implicita. [...] Nessa perspectiva, o

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7. Praticas discursivas...

mundo do calculo de riscos pressupoe diferenciacoes niti-das entre o que e seguro e perigoso, entre verdadeiro e falsoe entre passado e futuro (Adam e & Van Loon, 2000:7).

O foco da reflexao de Adam e Van Loon e o ordena-mento do risco na moderaidade tardia. Sendo os riscos namodernidade tardia6 mais desordenados (messy) e menospropensos ao calculo, Adam e Van Loon argumentam afavor da necessidade de mudar o genero prevalente quearticula riscos e perigos com base no calculo (que obedeceuma logica binaria), para outro genero mais relacionadocom a reflexao que leve em conta os sentidos que sao atri-buidos a risco em diferentes contextos. Ou seja, postulamser necessaria uma nova linguagem.

Ja a nossa proposta, mais proxima a teoria linguisticade Bakhtin, e que jamais apagamos as vozes que falam apartir de outras linguagens sociais, por mais inadequadasque possam vir a ser. Alem do mais, a linguagem dos ris-cos que se fonnata no decorrer dos seculos, desde que ris-co se tornou objeto de gestao, se expressa de formas dife-rentes quando usada em contextos distintos, por exemplo,no ambito das tres tradicoes discursivas por nos propostas(Spink, 2001): o governo de coletivos (nas questoes desaude, tecnologia, ambiente), a disciplinarizagao dos cor-pos e a aventura.

A primeira tradigao, o governo de coletivos, relacio-na-se a crescente necessidade de governar populates, apartir da modernidade classica. Referenda, portanto, me-didas coletivas, destinadas a gerenciar relagoes espaciais- a distribuigao e o movimento de pessoas nos espagos fi-sicos e sociais. Nessa tradigao discursiva a metafora mais

6 Modernidade tardia compreendida segundo a teorizaQao de UlrichBeck (1992) sobre a sociedade de risco.

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utilizadaparaposicionar as pessoas comrelacao aos riscose estar em risco (Spink, 2000a; 2001).

A segunda tradi9ao sustenta processes de disciplinari-zacao da vida privada das pessoas, disciplina essa em queo proprio corpo e alvo de controle, sendo a educa9ao suaestrategia central (Foucault, 1995). A disciplinarizacao daspessoas contempla duas etapas. Na primeira, a disciplinado corpo esta na higiene, vinculada ao movimento higie-nista do final do seculo XIX e a moral da preven9ao: hi-giene pessoal, higiene do lar e higiene moral. No decorrerdo seculo XX, com o aumento da expectativa de vida, porcausa do controle de doenc. as infecciosas e da melhoria dascondic.6es sociais, as doencas cronicas tornam-se preo-cupacoes centrais da saude publica. Progressivamente, osconhecimentos medicos definem novos padroes de con-trole. Uma pessoa devidamente informada e responsavelpelo autogerenciamento de sua saude. O estilo de vida co-mo forma de autocontrole e a face mais famosa dessa reorga-niza9ao (Spink, 2000a). "E nessa esfera que vemos emergiruma das mais potentes metaforas sobre os comportamentosperante riscos: correr riscos" (Spink, 2000b: 163). No que serefere a preven9ao, a logica e evitar os riscos.

A terceira tradi9ao, que aproxima os campos da Eco-nomia e dos Esportes, herda a positividade da aventuraapresentando especificidades discursivas quanto a logicada governamentalidade. Assim, um conjunto de repertori-os sobre risco que, de certa maneira, escapa a governa-mentalidade, exibe conota9oes que fazem do correr riscosuma pratica necessaria para alcan9ar determinados ga-nhos. Essa perspectiva e reinterpretada na modernidadepela Economia. Correr riscos, monitorado por taxas pro-babilisticas, e elemento intrinseco desse dominio. Algunsdos repertories proprios da aventura tomaram-se parte in-tegral do campo da Economia, imprimindo singularidades

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7. Praticas discursivas...

na abordagem de riscos nesse campo de saber: coragem,adrenalina, medo e ate mesmo o risco de falencia ou desincope cardiaca (Spink, 2000a; 2001). O cotidiano do pre-gao da bolsa de valores e elucidative desse genero discur-sivo sobre risco.

O que esta em jogo na abordagem da Economia sobreriscos e o grau de satisfa9ao ou descontentamento associa-do a uma possivel a9ao ou transa9ao. Nessa perspectiva etotalmente irrelevante se um dano e significado como pra-zeroso ou catastrofico: arelevancia esta na satisfa9ao sub-jetiva perante potenciais consequencias e nao numa lis-ta predefinida de efeitos indesejaveis. Assim, o denomi-nador comw^satisfacaopessoal e que permite a compara-930 direta entre riscos e beneflcios, a partir de um leque deop9oes (Renn, 1992).

A aventura, que parece ser parte da condi9ao huma-na, e ressignificada na modalidade das emocoes radicals.Certos esportes radicais sao domesticados e, ate certo pon-to, reintegrados a vertente da governamentalidade, postoque se apoiam em regras e equipamentos de seguran9a.Nessas modalidades busca-se manter viva a tradi9ao defortalecimento de carater. Mas, em oposi9ao a aventurapresa a regras, encontra-se um crescente numero de moda-lidades de aventura sem resgate., por exemplo, a demandapor reservas narurais onde pessoas adentram sem expecta-tiva de resgate em caso de acidente. As peculiaridades dis-cursivas da tradi9ao aventura (considerando aqui o mundodos negocios e dos esportes) mostram ser necessario reco-nhecer que as teoriza9oes sobre risco precisam incorpo-rar o sentido do risco desejado (Machlis & Rosa, 1990). Ametafora e correr o risco desejado.

Nos processes de socializa9ao herdamos tensoes de-correntes da maneira como certas constancias discursivas

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Mary Jane P. Spink eVera Mincoff Menegon

sobre risco foram formatadas na sociedade industrial ousociedade moderna: 1) tensao entre uma perspectiva cole-tiva de gerenciamento de risco - apoiada na legislacao - euma perspectiva mais individualista de introje?ao da dis-ciplina; 2) tensao entre as visoes de leigos e de especialis-tas - os especialistas mais apoiados na quantifica?ao dosriscos enquanto os leigos lansam mao da informa?ao dis-ponivel; 3) tensao entre o imperative da prevencao dos ris-cos e a percep9ao de que correr risco ajuda a formar o ca-rater ou a liberar a criatividade (Spink, 2000a).

Em suma, essas tensoes e diferencas emergemnos dis-tintos generos de fala utilizados em campos variados. Embo-ra preservando a ideia de controle baseado em calculo, alinguagem dos riscos assume conot^oes singulares e usosespecificos, ficando colorida pelos generos de fala tipicosdas praticas discursivas nas diferentes arenas de atividade.Buscaremos, no restante deste texto, ilustrar essas diferen-cas e, paralelamente, apontar que se tratam de generos defala que tern interlocupao corn a linguagem social forma-tada no afa de falar sobre o controle dos riscos: a lingua-gem dos riscos.

4. Estrategias de governamentalidade: contrastes ediferencas entre tradic.oes discursivas

Como referimos anteriormente, um dos nossos desafi-os, ao estudar o uso da linguagem dos riscos como formade gestao das relaQoes sociais, tem sido trabalhar a duplaface da compreensao dos microprocessos de producao desentidos no aqui-e-agora das intera9oes sociais e da anali-se mais voltada a circula9ao de repertories linguisticos.

Peter Spink, reconhecendo a necessidade de ampliar asfontes de pesquisa, tradicionalmente utiiizadas no campo daPsicologia Social como entrevistas, questionarios e discus-soes de grupo, argumenta sobre a riqueza de fontes como ar-

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7. Praticas discursivas...

quivos, diarios oficiais e registros, jornais e revistas, anun-cios, publicidade, dentre outros. Compreendendo esses do-cumentos como produtos sociais tornados publicos e confe-rindo-lhes a condicao de praticas discursivas, ele diz:

Os documentos de dominio publico refletem duas prati-cas discursivas: como genero de circula9§o, como arte-fatos do sentido de tornar piiblico, e como conteudo, emrela9ao aquilo que esta impresso em suas paginas. Saoprodutos em tempo e componentes significative s do co-tidiano; complementam, completam e competem com anarrativa e a memoria. Os documentos de dominio pii-blico, como registros, sao documentos tornados publi-cos, sua intersubjetividade e produto da intera9ao comum outro desconhecido, porem significative e frequen-temente coletivo. Sao documentos que estao a dispo-si9ao, simultaneamente tra?os de apao social e a propriaa9ao social. Sao publicos porque nao sao privados. Suapresenca reflete o adensamento e ressignifica^ao do tor-nar-se publico e do manter-se privado; processo que temcomo seu foco recente a propria constni9ao social do es-pa90 publico (Spink, 1999: 126).

Neste texto, ao analisarmos documentos de domi-nio publico compreendendo-os como praticas discur-sivas, avan9amos na compreensao da linguagem em usoao propor que os repertories sobre riscos se integram emuma linguagem social e sao expresses nos diferentes cam-pos em que se fala sobre risco por meio de generos defalaque Ihes sao especificos.

Tomando como material de analise documentos de do-minio publico, apresentaremos tres usos da linguagemdos riscos, ressaltando os contrastes e as diferen9as entreas tradi9oes discursivas acima descritas: 1) risco e saudepublica: a campanha de preven9ao ao cancer de colo deutero; 2) risco como aventura: a Expedi9ao Mata Atlanti-ca; 3) risco e beneficio: programas de reprodu9ao huma-na assistida.

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As duas primeiras ilustragoes tomam como base a anali-se realizada por Spink (2002) em texto apresentado ao Gru-po de Trabalho da ANPEPP, sob o titulo Psicologia social,governamentalidade e linguagem dos riscos no, vida cotidi-ana. A terceira ilustra^ao foi extraida da pesquisa realizadapara a tese de doutorado intitulada Entre a linguagem dosdireitos e a linguagem dos riscos: os consentimentos infor-mados na reproducdo humana assistida (Menegon, 2003).

A primeira ilustracao trata de uma campanha na areade saude publica que se dirige ao publico-alvo a partir datradigao coletiva de governamentalidade. A segunda refe-re-se a chamada para a quinta edifao de uma corrida deaventura, inserindo-se, portanto, na tradicao do risco-aven-tura. Nessas duas primeiras ilustrasoes, de modo a destacaras diferen9as discursivas, analisou-se uma mesma modali-dade de texto: a que faz um apelo por voluntaries.

Finalmente, a terceira ilustra9ao foca o uso da lingua-gem dos riscos (risco e beneficio) em documentos desti-nados a obter o consentimento informado (e vohmtario)de pessoas que buscam a tecnologia de reprodufao huma-na assistida.

Risco e saude publica: a campanha de prevengao aocancer de coLo de utero

O texto do Jornal da Associa9ao, Medica Brasileira(JAMB) tern por titulo Campanha contra o cancer de colode utero e foi publicado na 86930 "Brasil Medico" do nu-mero 1318, ano 43, de mar9o de 20027. Trata-se de exem-

7 O texto analisado foi obtido na Internet, em consulta realizada em4/8/2002. Utilizou-se a Homepage de uma instituipao importante naarea da saude: a Associacao Medica Brasileira (http://amb.connect-med.com,br). Realizou-se consulta on-line a revista oficial da entida-de, o Jomal da Associacao Medica Brasileira, JAMB. Utilizou-se so-mente material de livre acesso, portanto, de dominio publico.

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plo prototipico da linguagem dos riscos, embora atraves-sado pelo genero de fala especifico das relacoes entre pro-fissionais e pacientes. O argumento, nesse texto, esta or-ganizado em tres partes, havendo entre elas diferen9assubstantivas quanto ao uso da linguagem.

A primeira consiste em uma introdu9ao que situa acampanha: o periodo em que sera realizada; os objetivos;o publico-alvo e a infra-estrutura disponivel. Sao trequen-tes as alusoes numericas: em numero de dias (dura9aoda campanha), em idade (do publico-alvo) em centenas emilhoes (para falar do numero de funcionarios envolvi-dos, do nurnero de laboratorios, de polos cirurgicos e deCentros de Alta Complexidade). Trata-se, poderlamosproper, de um uso numerico de carater arirmetico, lem-brando aqui da distin9ao feita por Foucault entre a aritme-tica e a geometria:

Recordemos aqui, apenas a titulo simbolico, o velho prin-cipio grego: que a aritmetica pode bem ser o assunto dascidades democraticas, pois ela ensina as relacoes de igual-dade? mas somente a geometria deve ser ensinada nasoligarquias, pois demonstra as proporfoes na desigual-dade (Foucault, 2002: 17).

A aritmetica, no caso, faz o apelo retorico da compe-tencia e, ao mesmo tempo, democratiza as informa9oes(senao a propria a9ao de preven9§o).

A segunda parte do texto situa o problema que levaa organiza9ao da campanha: o cancer de colo de utero.Aqui, a enfase e na propo^ao e na probabilidade do risco enao causa espanto que tenha por subtitulo chances decura. Nao bem geometria, mas a ardilosa linguagem pro-babilistica do calculo do risco. Estamos, assim, no cerneda linguagem dos riscos: o calculo para fins de gestao.Obviamente que, para calcular, e precise que tenhamos se-

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ries historicas dos efeitos do risco e sao esses registros queorganizam a segunda parte do texto:

• Segundo as estimativas publicadas anualmente peloInca, em 2001 foram registrados 16.270 novos casosdesse cancer. De 1979 a 1998, o numero de obitos cres-ceu 29%.• De acordo com o Inca, o cancer de colo de utero e maisfreqiiente na regiao norte [...].• Nos ultimos 20 anos, a taxa de mortalidade por esta do-enca esteve muito alta, o que levou o governo brasileiroa assumir o compromisso [...] de desenvolver um pro-grama em ambito nacional.

Ou seja, tendo sido fornecidas as informacoes consi-deradas necessarias, organizadas em series historicas porpais, regiao etc., defmem-se medidas para fazer face aoproblema. Mas o controle da doen9a e dificil, nao pelo em-penho do ministerio - vejam-se os dados apresentados naintrodu9ao do texto; mas por tudo aquilo que diz respeito apopulacao-alvo: as mulheres.

Atualmente o controle da doen?a e dificultado, sobretu-do por fatores culturais, socials e economicos, com o ini-cio da atividade sexual antes dos 18 anos de idade; plu-ralidade de parceiros sexuais; fumo; falta de higiene euso prolongado de contraceptivos orais.

Essa e a ponte para a terceira parte do texto, intituladaprevengao. Nesta, o foco e a mulher a quern se destinaa campanha e a preven?ao e o profissional que a atende.Aqui, a acao nao e mero compromisso (como nas acoesgovernamentais de gestao do cancer de colo de utero), masum dever.

• Toda mulher com vida sexual ativa deve submeter-se aexame preventive periodico [...].

• Inicialmente, o preventive deve ser felto a cada tres anos.

• Em mulheres gravidas, deve-se evitar a coleta endo-cervical.

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7. Praticas discursivas...

• Para garantir a eficacia dos resultados, a mulher deveevitar ter relafdes sexuais um dia antes do exame [...].

Em suma, identificado o problema (a alta porcentagemdesse tipo de cancer) e definidas as responsabilidades pu-blicas (a rede de atendimento e a campanha), a responsabi-lidade pela eficacia da estrategia e transferida as mulheres,ja identificadas, no texto, como fatores que dificultam osucesso. Cabe a mulher se disciplinary^ controlar o ris-co de cancer. ,

Mesclam-se no texto uma linguagem social - a lingua-gem dos riscos, permeada de repertories sobre gestao - egeneros de fala que sao importados da relacao clinica entremedicos e pacientes.

Risco como aventura: a Expedicao Mata Atlantica

No site da Expedigao Mata Atlantica (EMA)8, as in-formagoes estao organizadas em tres partes: o historicodas corridas de aventura e da EMA; os dados sobre a corri-da em sua quinta edigao e os procedimentos de inscricao,Em nenhum desses topicos encontram-se informagoes so-bre riscos.

O historico contem tres subtopicos: introdugao, corri-da de aventura e projeto socioambiental. Na introducao, aretorica e a da tradicao. EMA esta em sua quinta edicao;suas origens estao presas a participacao de seu idealizadorem uma corrida de aventura realizada na Nova Zelandia

8 O texto analisado foi obtido na Internet, em consulta realizada em04/08/2002. Optou-se pela Homepage de uma institui9ao reconheci-da no campo da aventura: a Sociedade Brasileira de Corridas deAventura (www.EMA.com.br). No site da Sociedade Brasileira deCorridas de Aventura optou-se pela chamada recente para inscripaode equipes na Expedicao Mata Atlantica, de livro acesso.

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que o levou a criar, no Brasil, a Associagao Brasileira deCorridas de Aventura. Na descri9ao da modalidade de es-porte denominada corrida de aventura busca-se dupla-mente caracterizar esse tipo de corrida e situa-la no con-texto internacional dos ralis humanos. O terceiro subto-pico retoma a tematica do projeto socioambiental que daa essa modalidade de esporte sua especificidade numcontexto de progressiva invenpao de modalidades de ris-co-aventura.

Sao, portanto, duas as retoricas: a da tradi^ao, sendo aEMA uma reedicao nacional de corridas de aventura rea-lizadas em outras partes do mundo, e a da alian?a entre oprazer do esporte e um novo estilo de vida que Integra ho-mem e natureza.

• [...] este novo projeto que alia o prazer do esporte auma nova visao, um novo estilo de vida que integra o ho-mem a natureza, ao esporte e a conscientizacao da ne-cessidade de preservagao ambiental (Introdugao);• [...] EMA, cujo conceito e unir o esporte, a aventurae a preocupa9ao com a conscientizasao ambiental (Intro-ducao);• A Expedisao Mata Atlantica e um evento que interagecom o meio ambiente atraves do respeito e conhecimen-to pela natureza, nao se restringindo aos atletas que delaparticipam. Os projetos socioambientais tern como obje-tivo conscientizar colaboradores de toda sorte e, princi-palmente, a comunidade proxima ao percurso da prova(Projeto Socioambiental).

Nao se fala em riscos, mas ha mencao de exigencia desuperacao de limites e de correr contra o tempo, condi9oesque propiciam riscos.

• A Corrida de Aventura e uma competicao da qual parti-cipam atletas agrupados em equipes de ambos os sexos,dispostos a cumprirem regras para alcancarem um objetivo

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no menor tempo, exigindo o maximo de suas resistenciasfisica e mental (Corrida de Aventura);• Durante a Expedicao Mata Atlantica, todos aliam a es-trategia de uma corrida contra o tempo a solidariedade,consciencia e rigidas regras ambientais. E quando os limi-tes de um evento esportivo sao ultrapassados...

Na segunda parte do texto, voltado a descri?ao da quin-ta edicao da corrida, sao fomecidos dados gerais sobre a or-ganiza9ao do evento: as equipes, o transporte dos equipa-mentos, as modalidades usuais e o valor da premiacao (R$62.000 para o primeiro lugar; R$ 30.000 para o segundo eR$ 18.000 para o terceiro), Usa-se, aqui, uma linguagemcategorica autoritaria: as equipes serao mistas; os equipa-mentos deverao estar em caixas a serem transportadas pelaorganizacao; a integra9ao da equipe sera essencial para sechegar ate o final; os atletas deverao ser polivalentes.

A terceira parte do texto explicita as condicoes parainscri9ao. Mais uma vez, usa-se um estilo categorico auto-ritario que pertence ao genero de fala dos contratos comer-ciais: o nome da equipe deverd ser informado no ato dainscri9ao; a documenta9ao completa deverd ser entregueate 31/12/2002; o valor da inscri9ao devera ser pago da se-guinte maneira; a organiza9ao da prova exigird a apresen-tacao dos seguintes documentos [...]. Incluem-se informa-9oes sobre os certificados e atestados exigidos e defme-sea politica de desistencia, sendo que a equipe deverd infor-mar a desistencia por escrito, ficando a organiza9ao deso-brigada de ressarcir as parcelas ja pagas.

Sao tres os documentos essenciais para validar a ins-cri9ao: a ficha de inscri9ao, a ficha medica e o termo deresponsabilidade. Destes, e, sobretudo, o Termo de Res-ponsabilidade que nos informa que estamos lidando com

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um genero de fala que se inscreve no ambito mais geral dalinguagem sobre risco. Assim, o item 2 informa:

2) Os riscos de acidentes nas atividades desenvolvidasnesta competicao sao significativos e envolvem possibi-lidade de afogamento, deslocamentos, luxacoes, fratu-ras, queimaduras, mordidas, picadas de animais, insetos,contato com plantas venenosas, acidentes nas modalida-des de canoagem, tecnicas verticals, ciclismo, marcha,natagao e rafting, risco de possivel paralisia permanentee morte. Apesar de regras especificas, equipamentos edisciplina poderem reduzir os perigos inerentes, o riscode serios danos existe;3) EU RECONHEgO E ASSUMO LIVREMENTE TODOSOS RISCOS, CONHEODOS OU NAO, mesmo os origi-nados por negligencia dos organizadores ou outros, eassume total responsabilidade pela minha participacao(caixa alta, conforme o original do Termo de Respon-sabilidade).

Em suma, nessa tradigao discursiva, os riscos sao in-corridos voluntariamente pelo prazer do esporte. Os riscossao tidos como inerentes a atividade, embora possam serminimizados pela boa conduta (seguindo regras, por meioda disciplina e da competencia tecnica) e uso do equipa-mento adequado. Se incorridos voluntariamente, a respon-sabilidade por eventuais danos e de quern optou por correrriscos. Cabe aos promotores do evento se protegerem de pos-siveis acoes judiciais em caso de ocorrencia de acidentes.

Risco e benefkio: consentimentos informados parareprodugao humana assistida

A comunicagao de possiveis riscos e beneficios e trata-mentos altemativos associados ao emprego de tecnologiasna area da saude e um aspecto relevante na agenda do quedeve ser informado para a obtengao do consentimento in-

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formado de usuarias(os). Subjacente ao uso da linguagemdos riscos nesse tipo de documento, na area da saude demaneira geral, esta a nocao de que e possivel decidir pormeio de um equilibrio entre os riscos e os beneficios quesao comunicados sobre o tratamento proposto.

Na pesquisa da qual extraimos os exemplos aqui utili-zados foram analisados vinte e sete textos de formulariospara obter consentimento informado, por escrito, das pes-soas que procuram a tecnologia para reproducao humanaassistida. O uso dos formularios foi devidamente autoriza-do pelas clinicas9.

Em termos gerais, a analise mostrou que os consenti-mentos sao textos hibridos, com destaque para o entrela-gamento de duas linguagens sociais, a linguagem dos di-reitos, compreendida no dialogo entre Direito e FilosofiaMoral, com suas variacoes entre direitos e deveres, e a lin-guagem dos riscos, compreendida tanto na especificidadebiomedica como nas abordagens tecnico-cientificas sobrerisco. Esses documentos exibem um entrela9amento de di-ferentes generos de fala: da relagao medico-paciente, dasexplicagoes tecnico-cientificas, de acordos contratuais, den-tre outros. O genero contratual, entretanto, acaba forma-tando a maioria desses consentimentos, como exemplificao trecho abaixo:

9 Desenvolvida no Nucleo, a pesquisa, intitulada Entre a linguagemdos direitos e a linguagem dos riscos: os consentimentos informadosna reproduqao humana assistida, utilizou como estudo de caso a re-producao humana assistida. Tendo como foco analitico a versao do-cumental do consentimento, buscou entender as linguagens sociais aipresentes, com aten?ao especial a linguagem dos riscos e implica-c.oes para a relac.ao entre os professionals da saude e os clientes des-sa tecnologia. Os textos analisados foram produzidos por oito clini-cas que oferecem esse tipo de assistencia, localizadas no municipiode Sao Paulo.

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Ihiciodo documento; Pelo presente instrumento, n6s (nome,idade e nacionalidade), conjuges, consentimos aps me-dicos a prestarem senses que constarao de exames cli-nicos e laboratoriais, tratamento ambulatorial e/ou hos-pitalar, procedimentos clinicos e cinirgicos, tudo confor-me as necessidades [...].Final do documento'. Por terem sido informados e esta-rem de acordo, firmam o presente marido, esposa e res-ponsavel pela clinica (Menegon, 2003: 204).

A formulagao dos textos apresenta um encadeamentode frases e de palavras que transita entre afirmagoes cate-goricas e afirma^oes abertas10. As declaraqoes ou afirma-$oes categoricas buscam nao deixar margem a duvidas. Aocontrario, exprimem certeza e controle da situa?ao, apro-ximando-se, por vezes, de formas autoritarias. A assertivi-dade das frases, os tempos verbais (no indicativo pre-sente ou future do presente) e o uso do verbo dever sao al-guas elementos presentes na estrutura dos enunciados. Porexemplo, o trecho abaixo e assertive para falar de procedi-mentos tecnicos.

Nos casos de FIV/ICSI/Prost, a terceira etapa sera reali-zada no laboratorio. Aqui se completara a maturacao dosodcitos, apos o que serao inseminados ou injetados comespermatozoides do marido, ou cornpanheiro, os quaispreviamente serao incubados em um meio de cultura ade-quado para preservar e aumentar sua capacidade de ferti-liza?ao (Menegon, 2003: 229).

As afirma9oes categoricas sao usadas tambem para fa-lar de deveres e de compromissos envolvidos no consenti-mento dado para participar do programa proposto.

Declaramos, atraves deste consentimento informado queaceitamos participar do programa de reproducao assisti-

10 Segundo o analista de discurso Norman Fairclough (2001; 2003),a analise de modalidades textuais possibilita entender afirma^oes queexpressam certeza, diivida e incerteza.

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da e doar os ovulos excedentes para outra mulher, deacordo com a resolucao do Conselho Federal de Medi-cinan° 1358 de!992. [...] (Menegon, 2003:236-Enfasenossa).[...] Estamos cientes e concordamos em que:Nunca procuraremos identificar a doadora, bem comotambem a doadora nao deverd ser avisada de nossa iden-tidade (Menegon, 2003: 224 - finfase nossa).

No que se refere as declaraqoes ou afirmaqdes aber-tas, o encadeamento de frases e palavras falam do possivele da incerteza. As sentencas caracterizam-se pelo empre-go de substantives (como probabilidade e possibilidade) edo verbo poder, no sentido de ser possivel. Ao relacionar alinguagem dos riscos a essa forma estrutural das fra-ses (declaracoes nao-categoricas) observa-se a estreita in-ter-rela9ao} no que refere ao jogo entre o possivel e o pro-vavel, e a possibilidade de duvida. Nos textos, esse uso estaassociado a comunica9ao de possiveis resultados ou des-dobramentos da interven9ao.

Ha possibilidade de ocorrer descpnforto respiratorio, ab-dominal e hiperestimulagao ovariana, os quais obriga-riam receber medicacoes especificas para os respectivostratamentos (Menegon, 2003: 209 - Enfase nossa).Entendemos e aceitamos que nao existe certeza de queuma gravidez resultara destes procedimentos, uma vezque as taxas de sucesso variam entre 15 a 52% (Mene-gon, 2003: 209 - Enfase nossa).Os contratados tambem nao se responsabilizam pelosriscos inerentes ao tratamento. Estes riscos podem inclu-in a ocorrencia de gestacoes multiplas (gemeos, trige-meos ou quadrigemeos); casos de estimula9ao ovarianaexagerada; [...] (Menegon, 2003: 250).

Na racionalidade do consentimento informado, a co-munica9ao de riscos e beneficios deveria permitir deci-soes esclarecidas e conscientes. Essa racionalidade exibeelos com a abordagem tecnica da Economia sobre riscos,

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segundo a qual o indicador satisfagao pessoal e um orien-tador da decisao. A metafora em pauta e correr ou nao osriscos comunicados. Como ja discutimos, essa potente me-tafora integra tambem a tradigao discursiva sobre a disci-plinarizagao das pessoas. No caso do consentimento a ges-tao e feita por meio de escolhas, pois, teoricamente, a pes-soa nao tem controle sobre os riscos comunicados - e pe-gar ou largar.

O maior beneficio de um programa de reprodugao as-sistida e ter um bebe. Nos textos, esse beneficio e informa-do com repertories como probabilidades de sucesso, pos-sibilidades de obter uma gravidez, taxas de sucesso etc.Assim, a taxa de sucesso para uma gestagao, numa deter-minada clinica, pode estar ao redor de 35%; e 28% parauma gestagao a termo. Logo, a probabilidade de nao en-gravidar e de 65% e da gestagao nao chegar a termo de72%. O risco de nao engravidar nao e, entretanto, comuni-cado em porcentagens, mas em expressoes como: nao hdgarantia, nao existe certeza, [a clinica tem] obrigagao demeios e nao de resultados, gestacao pode nao ocorrer enao se responsabiliza pelo exito.

Comunicam-se tambem riscos traduzidos como in-sucessos, falhas, acidentes e danos que, alem de cumpriro papel de informacao sobre o tratamento, promovem adistribuigao de responsabilidades, sejam elas causas res-ponsaveis:

[...] inumeras sao as causas que podem ser responsaveispor este fato [nao gravidez], entre as mais comuns po-dem ser citadas:• insucesso no processo de estimulagao ovariana;• ausencia de ovulos apos a aspiracao dos foliculos ova-rianos;• falha total da fertilizacao dos ovulos em laboratorio,geralmente devido a obten^ao, neste ciclo, de gametas(ovulos e ou espermatozoides) de baixa qualidade, fatoque pode ocorrer em aproximadamente 15% dos casos.

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7. Praticas discursivas...

Sejam responsabilidades e nao-responsabilidades daordem moral, civil ou legal.

Titulo: Contrato para o casal receptor de oocitos doados[...] Pelo presente documento, firmamos compromissolegal de nao interpelar a clinica de nenhuma forma pre-sente na lei, caso a gestasao resultante deste metodo te-nha complicacoes ou problemas de qualquer naturezapara a mae ou para a(s) crian9a(s) durante o parto, oucaso a(s) crianca(s) seja(m) portadora(s) de malforma-?6es fisicas e/ou retardo mental, nao passivel de previ-sao, prevengao ou controle (Menegon, 2003: 255).

A racionalidade do consentimento informado na areada saude, ao se pautar pela comunicagao de riscos e bene-ficios, promove o entrelapamento de aspectos de pelo me-nos duas das tradigoes discursivas: da disciplinarizagaoe da aventura. Entretanto, como ressaltamos ao longo dotexto, essas tradicoes recebem especiflcidades de seu usosituado. Assim, na disciplina do estilo de vida a metaforacorrer riscos deve ser invertida: evitar correr riscos consi-derados nocivos a saude. Em contraste, no campo da re-producao assistida correr riscos e uma forma de buscar obebe desejado: os riscos comunicados nao sao passiveis decontrole, pelo menos por parte das(os) usuarios.

5. Dando o no em tramas abertas: algumasconsideragoes

O objetivo deste capitulo foi apontar para a importan-cia da analise de documentos de dominio publico, com-preendidos como praticas discursivas que sustentam estra-tegias de governamentalidade. Utilizamos como ilustra-gao uma arena especifica de governo das relacoes cotidia-nas: a gestao da vida por meio da pratica da comunicagaosobre riscos, contrastando os usos da linguagem dos riscosem tres dominios de saber fazer- a saude publica, o espor-te aventura e o campo da reprodugao humana assistida.

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Pressupondo a existencia de uma linguagem social dosriscos7 o texto teve como principal proposta teorica a pos-sibilidade de conciliapao entre os aspectos mais estrutura-dos das maneiras de falar sobre risco na modernidade (anormatividade da linguagem dos riscos), as especificida-des dos discursos em diferentes setores de atividade quetern riscos como aspectos intrinsecos (os generos de fala) ea polissemia dos sentidos dos riscos nas praticas discursi-vas do cotidiano (a dialogicidade face a face).

Reportando as tres ilustra^oes, sao tres as perguntas aserein respondidas: 1) em que medida os textos discutidosnas tres ilustrapoes podem ser considerados como in-tegrantes de uma mesma linguagem social, a linguagemdos riscos; 2) em que medida essa linguagem se expressaem generos de fala distintos; 3) como as diferentes tra-dipoes discursivas contribuem para a distribuigao de res-ponsabilidades.

Retomando a definipao de linguagem dos riscos fome-cida por Adam e Van Loon, verifica-se que as condicoeslistadas sao de fato satisfeitas nas tres ilustra?oes.

A linguagem dos riscos esta tradicionahnente associadaao mundo economico das trocas e das apolices de segu-ros, ao mundo medico na relafao entre profissionais dasaude e seus pacientes, aos esportes radicals e as pessoasque "arriscam" suas vidas por oujros. Nessas situacoestradicionais de risco, as pessoas calculam o risco poten-cial de certas a$oes e tomam decisoes, fazendo escolhasa luz de suas avalia?6es (2000: 7).

Entretanto, ha diferen9as substantivas na maneira comose fala sobre riscos. No texto da Jamb, o risco e o contextonecessario da a9ao: a campanha contra o cancer de colo deutero. Nesse contexto, o risco e apenas negative: remete adoen^a e possivel morte. O risco preexiste a 3930 e seucontrole e possivel desde que as partes envolvidas (profls-

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7. Praticas discursivas...

sionais e mulheres em certa faixa etaria) assumam suasresponsabilidades como participes de programas preven-tives que, em essencia, sao dirigidos a elas. A linguagemautoritaria separa os locutores, dividindo a responsabili-dade entre quern calcula e propoe 39065 e quem deve sub-meter-se as acoes. Cabe a mulher conscientizar-se dos ris-cos e responder adequadamente ao compromisso assumi-do pelo governo. Em ultima instancia, a mulher teria o po-der de controlar os riscos de cancer de colo de utero.

O risco, no caso da EMA, vem associado ao prazer (doesporte e da potencial mudanQa de estilo de vida pelo con-tato com a natureza). O risco nao e abordado nos textos in-trodutorios que enfatizam muito mais o prazer da competi-930 em situa9oes que poem a prova os limites fisicos ementals dos integrantes das equipes. O teor autoritario doenunciado flea depositado num outro tipo de contrato: ode cunho comercial. O risco fica evidenciado apenas nostermos de responsabilidade que, prendendo-se ao generodos contratos comerciais, busca explicitar as responsabili-dades das partes. Cabe aos participantes inteirar-se e pro-teger-se dos riscos, assumindo-os como parte intrinsecada atividade contratada.

Nos consentimentos informados para reprodu9ao as-sistida, aceitar os riscos comunicados e urna inaneira debuscar o prazer de engravidar. A metafora em pauta e cor-rer ou ndo os riscos comunicados. Exceto riscos associa-dos ao estilo de vida, que se postula devam ser evitados,correr riscos, na area matemo-infantil aproxima-se da no-9ao de veneer obstaculos no campo da aventura. Em gerala mulher nao e incentivada a correr riscos no campo dosesportes ou da aventura, mas correr riscos para fins de ma-temidade e culturalmente aceito e ate incentivado (Lup-ton, 1999). Nessa perspectiva, ao levar adiante uma gravi-dez de risco ou veneer as adversidades da reprodu9ao as-

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sistida, principalmente o risco de nao conseguir a gravideztao sonhada, a metafora correr riscos pode adquirir o senti-do de ato heroico.

As informapoes sobre riscos e beneficios tern, todavia,outra funcao: acarretam distribuicao de responsabilidades.Na logica do consentimento informado, o profissional terno dever de comunicar possiveis riscos, beneficios e trata-mentos alternatives. Ao cumprir esse dever as responsabi-lidades sao transferidas para quern recebeu as informagoese assinou consentindo a interven9ao.

Independente das especifrcidades das duas situates- a busca do prazer pelo esporte e a busca de realizar osonho de ter um bebe -, os consentimentos informadosemergem como estrategias de gestao de risco, com enfasena defini9ao de responsabilidades e nao-responsabilida-des. Assim, alem do pressuposto de que o consentimentoinformado e lima forma de garantir o respeito pela autono-mia do paciente ou do consumidor, esse documento escri-to e assinado emerge como uma protefao aos profissionaisda saude e aos prestadores de senses de maneira geral,como no caso da EMA.

Para alem dos conteudos especificos, as tres ilustra-coes prestam-se admiravelmente bem aos objetivos destecapitulo. Permitem argumentar a favor da analise de docu-mentos de dominio publico como praticas discursivas quesustentam estrategias de governamentalidade. Possibili-tam, tambem, exemplificar a diversidade de generos defala em que se expressa a linguagem dos riscos e, nesseafa, permitem ainda argumentar a favor da concilia9ao en-tre os aspectos mais estruturados das linguagens sociais(no caso a linguagem dos riscos) e a polissemia dos senti-dos do risco que emerge quando essa linguagem e coloca-da em movimento nas praticas discursivas de diferentesdominios de saberes e fazeres.

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7. Praticas discursivas...

Glossario

Documentos de dominio publico: nomea^ao utilizada parareferir a documentos variados como atas, arquivos di-versos, diarios oficiais e regisrros, prontuarios, consen-timentos informados, jornais e revistas, anuncios, publi-cidade, manuais de instrufao, relatorios etc. Esses docu-mentos, como afirma Peter Spink (1999: 126), articulamdiferentes praticas discursivas: "como genero de circu-lacao, como artefatos do sentido de tornar publico, e comoconteudo, em relacao aquilo que esta impresso em suaspaginas". Exibem, portanto, de maneira simuitanea, "tra-gos de a9ao social e a propria 39210 social".

Governamentalidade: expressao cunhada por Michel Fou-cault (1986) em texto homonimo, para se referir as es-trategias de governo, cujas rela^oes sao'caracterizadaspela circula9ao difusa de poder, e que escapam dos limi-tes dos poderes atribuidos a esfera do Estado.

Interanimagao dialogica: a compreensao dessa expressaoapoia-se nos estudos de Bakhtin (1994), que postulamser a linguagem inerentemente dialogica. Assim, qual-quer enunciado sera sempre uma resposta a um enuncia-do que o precedeu. Nessa perspectiva, interanimacao di-alogica e o entrelagamento de n vozes, estejam elas pre-sentes ou mesmo ausentes. Os enunciados so podem exis-tir na inter-rela9ao entre autores e destinatarios.

Linguagem social: tomando Bakhtin (1994) como referen-da, linguagens sociais sao discursos peculiares forrna-dos em esferas sociais especificas: categoria profissio-nal, faixa etarra, genero, campos de conhecimento dis-tintos, comportamentos tipicos de um grupo, linguagensde diferentes gera9oes e grupos, linguagens que expres-sam tendencias, linguagens de autoridades e circulos va-riados, linguagens da moda, linguagem que serve a propo-sitos sociopoliticos, especificos de uma epoca.

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Linguagem dos riscos: utilizada no mundo economico dastrocas e das apolices de seguros, nos esportes radicals eno campo medico, essa linguagem exibe a permanenciade repertorios prototipicos como calculo, probabilidadee possibilidade (Adam & Van Loon, 2000), associados,por sua vez, a outros vocabulos como indices, taxas eporcentagens de sucesso, de chance, de danos, de peri-gos, de falhas, cie insucesso etc. Na abordagem de prati-cas discursivas, e compreendida como uma linguagemsocial que permite falar da aspiracao de governo e con-trole future de riscos, num jogo entre eventos passadose proje9oes futuras, agregando repertorios e sentidos pro-duzidos em esferas sociais especificas (Spink, 2002; Me-negon, 2003).

Prdticas discursivas: as maneiras pelas quais as pessoasexplicam, compreendem e dao sentido ao mundo e a si mes-mas. As praticas discursivas tern como elementos constitu-tivos: a dinamica (flnalidade, enderesamento e a dialo-gia, dada por vozes presentes ou ausentes); os generosde fala, speech genres (Bakhtin, 1994); os conteiidos, ex-presses pelos repertorios lingiiisticos interpretativos, osquais, nas permanencias e continuidades discursivas, for-matam diferentes linguagens sociais, com seus conjuntosde repertorios prototipicos (Spink, 1999).

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y BriBJJOrV-G\ CENTRAL - UFVf

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Glossario geral

Accountability: propriedade das apoes que as fazem visivelmenteracionais e acessiveis ou descritiveis. "Fazer o mundo visivel efazer minha a^ao compreensivel ao descreve-la, porque dou a-entender seu sentido ao revelar os procedimentos que empre-go para expressa-la" (Coulon, 1987: 49).

Active Voicing (expressao ativa): ocorre quando um falante falacomo se estivesse citando as palavras verdadeiras de uma outrapessoa, ou suas proprias palavras ou pensamentos anteriores, asvezes assumindo uma qualidade de voz especial para mostrarcomo as palavras foram ditas. Veja Wooffitt, 1992.

Analise Conceitual: a analise filosofica dos significados das pala-vras, segundo seus usos apropriadamente situados. Veja Coul-ter, 1990.

Analise Conversational: metodo de analise que poe em pratica osprincipios da etnometodologia. Estuda a ordem e a organiza?aoda acao social cotidiana atraves da analise rigorosa das con-versa^oes. O estudo da linguagem em uso - como as pessoasagem nos intercambios orais.

Analise Critica do Discurso: modalidade da AD que, atraves douso de procedimentos e tecnicas de varias tradi9oes, estuda asacoes sociais que sao postas em pratica atraves do discurso e queimplicam abuso de poder, afirma?ao do controle social, domi-na^ao, desigualdade social, marginalizacao e exclusao sociais.

Analise do Discurso: estudo das praticas linguisticas para esclare-cer as relacoes sociais estimuladas e mantidas pelo discurso.

Argumentacao: uso que se faz do idioma para justificar ou refutaruma determinada posi9ao, com o objetivo de conseguir a confor-midade com relacao a determinados pontos de vista (EEMEREN,

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' Glossario geral:

F.H. et al. Argumentation. In: VAN DlJK, T: (comp.) (1999).Estudios del Discurso. Vol. 1. Barcelona: Gedisa).

Ato ilocuciondrio (ilocutivo): ato que se realiza ao dizer algumacoisa.

Ato locuciondrio (locutivo): 3930 da fala que produz significado.

Ato perlocuciondrio (perlocutivo): ato de fala que produz efeitosou consequencias.

Atos de linguagem: expressao cunhada por J.L. Austin para se referiras expressoes linguisticas que devem ser enunciadas explicita-mente para que uma realidade determinada possa se configurer.Por exemplo, a expressao "sim, quero" deve ser pronunciada emdeterminados rituais para que o matrimonio seja estabelecido.

Categorias dos participantes: conceitos usados, sugeridos ou tor-nados relevantes pelos participantes. Sao elementos de trechosreais de discurso e interacao social, nao algo que os participan-tes supostamente levam em suas mentes.

Competencia: conceito-chave da etnometodologia que se refere aidoneidade de uma pessoa membro de um grupo no uso e gestaoda linguagem. Capacidade de atuar, dispor de conhecimentos,metodos e estrategias para adaptar-se e se desenvolver no con-texto social em que se vive.

Corpus: qualquer conjunto de emmciados em um meio material.Pode se tratar de transcri9oes de enunciados orais, reprodu9oesde elementos graficos e textos previamente escritos.

Dictico: assinalador. Marca as pessoas que falam (eu, tu), os obje-tos do ambiente (este, esse...), o lugar do qual se fala ou de ondese fala (aqui, ali...) e o tempo em que acontece a a9ao ou o tem-po a que se refere a narrafao (hoje, amanha...).

Discurso: esse conceito adquiriu varios sentidos que se imbri-cam. Da perspectiva da ACD propoe-se uma visao do discursocomo pratica, isto e, como uma atividade socialmente regulada.Incorpora-se, alem disso, uma visao tridimensional: todo dis-curso constitui, ao mesmo tempo, uma pratica textual, uma pra-tica discursiva e uma pratica social. Pratica textual: chamamos-discurso a uma unidade linguistica, superior a oracao, coesa e do-tada de coerencia, construida a partir de determinados materialslingiiisticos. Pratica discursiva: todo discurso tem como moldu-

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Manual de andlise...

ra uma situa?ao, em um tempo e espago determinados, e poresse motive damos o nome de discurso a uma produ9ao discur-siva que permita a realiza?ao de outras praticas (julgar, classi-ficar, informar), que se enquadra e adapta a regulamentacaosocial dessas e ao mesmo tempo as estrutura e da significado.Prdtica social: o discurso se encontra configurado pelas si-tua9oes, estruturas e redoes sociais, pela ordem e estruturasocial; mas, por sua vez, tambem configura todas essas coisase incide sobre elas, seja consolidando-as, seja questionando-as; trata-se, portanto, de uma pratica social, com origem e efeitossociais (FAIRCLOUGH, N. (1992). Discourse and social change.Cambridge: Polity Press).

Discurso(2): conjunto de praticas linguisticas que mantem e pro-movem as redoes sociais.

Disposition (predisposicdo): o estado de espirito ou personalidadede uma pessoa que, no raciocinio do senso comum, faz com queela aja de uma certa maneira. O termo vem da filosofia lingiiis-tica de Gilbert Ryle. Na PD as predisposicoes sao relacionadascom "formulasoes de roteiro". Veja Edwards, 1995; 1997.

Dixis: elemento gramatical que codifica a relacao entre o idioma eo contexto de uso. "O termo 'dixis1 se origina da palavra gre-ga para assinalar ou indicar, sendo exemplos prototipicos ou prin-cipais o uso dos demonstratives, os pronomes de primeira e segun-da pessoa, o tempo verbal, adverbios especificos de tempo e lu-gar como *agora' e *aqui', e varios outros tra9os gramaticais li-gados diretamente as circunstancias da enuncia9ao [...]. A dixisse ocupa de como os idiomas codificam ou transformam em gra-matica elementos do contexto ou do evento da fala, tratando tam-bem de como a interpreta9§o dos enunciados depende da analisedo contexto da comunica9ao" (Levinson, 1983: 47).

Dixis do discurso: expressoes de um enunciado para referir-se aalguma parte anterior ou posterior do mesmo enunciado.

Dixis social: aspectos da linguagem que codificam as identidadessociais dos participantes ou a rela9ao social existente entre eles.

Documentos de dominio publico: nomea9ao utilizada para referira documentos variados como atas, arquivos diversos, diarios ofi-ciais e registros, prontuarios, consentimentos informados, jomaise revistas, anuncios, publicidade, manuals de instru9ao, relato-

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Glossario geral

rios etc. Esses documentos, como afirma Peter Spink (1999:126),articulam diferentes praticas discursivas: "como genero de circu-lacao, como artefatos do sentido de tornar publico, e como conteu-do, em rela9ao aquilo que esta impresso em suas paginas". Ext-bem, portanto, de maneira simultanea, "tracos de a9ao social e apropria 3930 social".

Enunciador: lugar a partir do qual o enunciado e produzido - au-tor textual. Pode ou nao coincidir com o locutor- o emissor ma-terial de um enunciado.

Estrategias discursivas: entende-se por estrategias discursivas umpiano de a9ao, mais ou menos intencional, que o falante adotacomo um objetivo discursive, por exemplo, apresentar um de-terminado participante, e que reiine um conjunto amplo de re-cursos linguisticos (por exemplo, estrategias de designa9ao). Esseconceito nao esta isento de problemas, embora queira-se sepa-ra-lo completamente da 00930 de intencionalidade.

Etnografia da cotnunicacao: tradi9ao da AD proveniente da antro-pologia e da linguistica cujo objeto de analise e a "competen-cia comunicativa", Ou seja, o conhecimento social, psicologico,cultural e linguistico que rege o uso apropriado da linguagem.

Etnometodologia: corrente da sociologia que estuda as acoes coti-dianas e os fenomenos, problemas, resultados e metodos queessas a9oes abrangem."A etnometodologia tem como objeto de estudo empirico as ati-vidades praticas, as circunstancias de cada dia, o raciocinio so-ciologico que normalmente desenvolvemos nos assuntos ordi-naries" (Wolff, 1979: HI).

Fact construction (constru9ao de fato): as maneiras pelas quais asdescri9oes podem ser produzidas como reflexes objetivos domundo externo. Ha uma variedade de artificios para fazer isso:veja Potter, 1996. Veja tambem "participa9ao e interesse" nesteglossario.

Implicatura: significado adicional comunicado pelo falante e infe-rido pelo ouvinte.

Formulagao de roteiro: a descri9ao das 39005 das pessoas como seelas seguissempadroes rotineiros ou repetitivos. Isso se relacio-na com a atribuigao de "predisposi9oes". Veja Edwards, 1995;1997.

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Manual de andlise.*

Governamentalidade: expressao cunhada por Michel Foucault (1986)em texto homonimo, para se referir as estrategias de governo,cujas relacoes sao caracterizadas pela circulacao diiusa de po-der, e que escapam dos limites dos poderes atribuidos a esfera

do Estado.Indexicabilidade: conceito-chave da etnometodologia que se refere

a propriedade da linguagem segundo a qual o significado dessa esempre dependente do contexto de sua propria producao.

Interanimacao dialogica: a compreensao dessa expressao apoia-se nos estudos de Bakhtin (1994), que postulam ser a linguageminerentemente dialogica. Assim, qualquer enunciado sera sem-pre uma resposta a um enunciado que o precedeu. Nessa pers-pectiva, interanimasao dialogica e o entrelacamento de n vozes,estejam elas presentes ou mesmo ausentes. Os enunciados so po-dem existir na inter-relasao entre autores e destinatarios.

Legitimacao discursiva: processo pelo qual tenta-se assegurar alegitimidade dos poderes e das instituicoes, da lei, dos valorescompartilhados e da ordem social, atraves de meios discursi-vos; e claro, essa Iegitima9ao discursiva tern sua funcao e se in-sere dentro de um processo mais geral de Iegitima9ao social epolitica. Distinguimos tres niveis de legitima?ao discursiva: a)um ato pragmatico de justificativa de ac.6es e politicas contro-versas; b) uma construcao semantica da propria versao dos su-cessos como verdadeira e confiavel; c) uma autoriza^ao socio-politica do proprio discurso legitimador.

Linguagem social: tomando Bakhtin (1994) como referenda, lin-guagens sociais sao discursos peculiares formados em esferassociais especificas: categoria profissional, faixa etaria, genero,campos de conhecimento distintos, comportamentos tipicos deum grupo, linguagens de diferentes geragoes e grupos, lingua-gens que expressam tend6ncias, linguagens de autoridades e cir-culos variados, linguagens da moda, linguagem que serve a pro-positos sociopoliticos, especificos de uma epoca.

Linguagem dos riscos: utilizada no mundo econdmico das trocas edas apolices de seguros, nos esportes radicals e no campo medi-co, essa linguagem exibe a permanencia de repertories prototi-picos como calculo, probabilidade e possibilidade (Adam &Van Loon, 2000), associados, por sua vez, a outros vocabuloscomo indices, taxas e porcentagens de sucesso, de chance, de

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1(1986)

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danos, de perigos, de falhas, de insucesso etc. Na abordagem depraticas discursivas, e compreendida como uma linguagem so-cial que permite falar da aspiracao de governo e controle futurede riscos, num jogo entre eventos passados eprojegoes futures,agregando repertories e sentidos produzidos em esferas sociaisespecificas (Spink, 2002; Menegon, 2003).

Normative: relacionado a normas. Essas sao 39068 ou eventos quesao tratados pelos participates como sendo esperados, normais,ou que deveriam ter ocorrido.

Ordem social dos discursos: o conceito refere-se a maneira comoas diferencas de status e de autoridade projetam-se sobre o uni-verse discursive estabelecendo um principle de desiguslda-de: ao lade de discursos autorizados, encontramos discursos"desautorizados "; diante de discursos legitimados, discursos "des-legifimados":, diante de discursos dominantes ou ma/oritdrios, dis-cursos "minoritdrios ". Essas diferencas na avaliagao social dos dis-cursos sao tambem um reflexo das tentativas, por parte dos dis-tintos grupos sociais, de controlsr a produ9ao, circulacao e re-cepgao dos discursos, devido a seu poder gerador e da imposi-cao, por parte desses grupos, dos criterios de produ9ao e avalia-9ao (MARTIN RO-JO, L. (1997). El orden social de los discur-sos. Discurso, 2\! 22, p. 1-37. Mexico [s.e.]).

Papeis semanticos: os varios participantes podem desempenhar pa-peis distintos na realiza?ao do processo. No texto so nos referimosa tres papeis: Agente; participante animado, ativo, que controla ee responsavel pela 3930 verbal. Paciente: participante inativo, naocontrola 3 acao, mas se ve afetado ou modificado pela a^ao ver-bal. Experimentante (experimentador): psrticipsnte animado, que vi-vencia o processo mas nem o controla nem e responsavel por ele(com os processes mentais: ver, sentir, pensar).

Par de adjacencia: uma das estruturas basicas da linguagem emuse - um enunciado (por exemplo, uma pergunta) prediz forte-mente que um certo tipo de enunciado sera produzido como res-posta (por exemplo, respostas).

Participac,ao e interesse (stake and interest): esses sao os possiveismotives ou ganhos que um falante tern para reivindicar uma de-terminada versao dos fatos como sendo a verdadeira. Mostrar aparticipagao ou interesse do/a falante pode solapar o status fac-tual daquilo que ele/ela diz. Por outro lado, estabelecer uma

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versao dos eventos como sendo factual pode exigir que o falan-te negue, ou contradiga que ele/ela tern uma participasao ou uminteresse naquela versao. Veja Edwards & Potter (1992), e Pot-ter (1996).

Performatividade: propriedade que determinados enunciados lin-guisticos tern de afetar a constni9ao de realidades. Em determi-nadas concep9oes da linguagem, essa propriedade, inicialmentelimitada a um tipo de expressoes lingiiisticas, passa a ser consi-derada generalizavel a linguagem como um todo.

Pragmdtica: parte da linguistica que se dedica ao estudo dos usosda linguagem comum e leva em consideracao tanto os con-textos como os efeitos, nao diretamente linguisticos, que envol-vem praticas discursivas concretas ou que delas resultem.

Prdticas discursivas: as maneiras pelas quais as pessoas explicam,- compreendem e dao sentido ao mundo e a si mesmas. As praticas

discursivas tern como elementos constitutivos: a dinamica (fmali-dade, endere9amento e a dialogia, dada por vozes presentes ouausentes); os generos de fala, speech genres (Bakhtin, 1994); osconteudos, expresses pelos repertories linguisticos interpretati-vos, os quais, nas permanencias e continuidades discursivas, for-matam diferentes linguagens sociais, com seus conjuntos de re-pertories prototipicos (Spink, 1999).

Preferencia: enunciados que sao a segunda parte de um par de ad-jacencia podem ser de dois tipos: o tipo breve, rapido, semmarcas (que tendem a ser concordancia, consentimento, etc.) eo tipo "nao preferido" que sao assinalados com pausas, evasi-vas, alguma falta de fluencia e o fornecimento de um relate (etendem a ser recusas, discordancia, etc.).

Processes: os processes sao categorias semanticas que explicamem termos muito gerais como os fenomenos que nos rodeiamsao representados pelos falantes atraves de estruturas linguis-ticas. A moldura geral dessa representa9ao e composta por: oprocesso em si (freqiientemente realizado por um grupo ver-bal), os participantes do processo (freqiientemente representa-dos porum grupo nominal) e as circunstancias associadas a esseprocesso (frequentemente uma frase preposicional, um adver-bio, etc.): "Pepe (participante/G.Nominal) bate (Processo/ G.Ver-bal) em sua mulher (Participante/G.Nominal) com frequencia

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Glossario geral

umpot-

lin-flii-enteinsi-

plicam.team

(circunstancia/Frase preposicional)". Halliday distingue variestipos de processes: Material: (acao; criativo; acontecimentos);Mental (percep9ao/afei9ao/ cognicao) (ver; sentir; pensar); Ver-bal; Relational: intensiva (atributivo/equitativo), circunstan-cial (relacoes de tempo, lugar, etc.), possessao; Existenciais(haver, aparecer, ocorrer). Cadaum desses tipos seleciona par-ticipantes diferentes e Ihes atribui papeis no processo (pa-peis semanticos) (Halliday, MAK., 1994 [1985]. An introduction toJunctional grammar. Londres: Arnold).

Proposicao: expressao linguistica convenientemente formalizada deacordo com os procedimentos da logica modema para que sepossa estabelecer seu 'Valor de verdade".

Psicologia discursiva: perspectiva nascida no contexto da psico-logia e que se apoia na etnometodologia e na AC. Enfatiza oexame das relacoes e das cren9as na fala exatamente como essae usada pelos participantes em uma intera9ao social.

Recursos linguisticos: e o conjunto de formas linguisticas, perten-centes a todos os niveis do idioma (sejam sons, morfemas, pala-vras, constru9oes sintaticas, ou caracteristicas e estruturas se-manticas, processes de inferencia, etc.) que os idiomas poem adisposi9ao dos falantes.

Reflexividade (Reflexivity): propriedade das a9oes segundo a qualas praticas descrevem e constroem ao mesmo tempo."As descricoes do social se convertem, no memento de expres-sa-las, em partes constitutivas daquilo que descrevem" (Coulon,1987: 44).

Relativismo metodologico: a PD adota uma posi9ao neutra sobre averdade ou precisao daquilo que os participantes dizem. Deixa-mos que essas questoes sejam tratadas pelos proprios pacien-tes em seu discursOj que 6 exatamente o que a analise tern a in-ten9ao de revelar. Veja Edwards, 1997.

Representacionismo: doutrina filosofica que postula uma rela^aode corresponddncia entre o conhecimento e a realidade que vaimais alem da simples utilidade pratica do conhecimento paraoperar sobre a realidade. Nessa doutrina, supoe-se que o co-nhecimento valido representa fielmente a realidade e que e pos-sivel demonstrar a correspondencia entre conhecimento e reali-dade.

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Mary Jane P. Spink e Vera Mincoff Menegon

Retorica: discurso que e elaborado e construido de forma a levarem considera?ao versoes ou pontos de vista alternatives ou opos-tos.VejaBillig, 1987.

Roteiro: uma seqiiencia de acao reconhecida, rotineira. Na psico-logia cognitiva, presume-se que as pessoas possuem conheci-mento dos eventos sociais rotineiros que os ajudam a reconhe-cer situa^oes e eventos familiares. A PD focaliza as "formula-coes de roteiros".

Sociologia interacionah tradi9ao da AD proveniente da antropo-logia, da sociologia e da linguistica que tern como objeto de ana-lise a interacao caracterizada por uma relacao assimetrica dosparticipantes.

Teoria dos atos da fala: teoria desenvolvida por John Austin queconsidera que falar nao serve unicamente para descrever o mun-do, mas tambem para fazer coisas.

Texto: conjunto de enunciados produzidos em contextos sociais apartir de posi?6es de enunciacao.

Transcrigao: a reproduce de fala gravada tao fielmente quantopossivel. AC desenvolveu uma notacao especial para captar ascaracteristicas da conversa que a ortografia comum ignora (porexemplo, entona9ao, volume, imbrica9ao) porque essas podemser (e muitas vezes realmente sao) significantes para a compreen-sao daquilo que o falante esta fazendo.

Variedades lingiiisticas: maneiras de falar que surgem como resulta-do dos processes — inerentes e constantes - de varia9ao que saoobservados nos idiomas, devido a diferencas sociais (idade, ge-nero, grupo, classe social, casta, origem rural ou urbana), ou de-vido a divisao social do trabalho e do conjunto de praticas nasquais o idioma desempenha um papel relevante. Classificam-seem: Socioletos (dialetos sociais): "o que voce fala (habitual-mente) influenciado por aquilo que voce e (regiao social de ori-gem e/ou adofao); expressam diversidade na estrutura social".E registros ou estilos: "o que voce fala (em um momento deter-minado) influenciado pelo que voce faz (natureza da a9ao querealiza); expressam diversidade nos processes e na vida so-cial (divisao social do trabalho)". (definicao extraida de Halliday,M.A.K. (1978). El lenguage como semiotica social. Madri: Fon-do de Cultura Economica).

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Os sete capitulos do manualaprofundam os temas centralspertinentes a relagao entreAnalise do Discurso e cienciassocials: o primeiro capituloelucida, teorica eepistemologicamente, o papelda linguagem nas cienciassocials. 0 segundo apresentaos fundamentos que legitimamo papel da linguagem nasciencias, sobretudo, atravesdos conceitos de"linguisticidade" e"lingiiistico". O terceiroanalisa o discurso comometodo e como perspectivanas ciencias sociais,abordando praticas como asociolinguistica interacional, aetnografia da comuiiicacao, aanalise critica etc. Os quatroultimos capitulos abordam,atraves de exemplos, adelicadeza, a importancia e asconseqiiencias que a praticada Analise do Discurso podeter na vida cotidiana, e arevolucao que e possivel fazerquando a conceitualiza9aoteorica e abordada de umponto de vista discursive.