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Manifestações pós-coloniais na literatura brasileira: Outremização e Resistência
no conto “Nada contra os caras” de Márcio Barbosa
Elizandra FERNANDES1
Érica ALVES2
Resumo
O objetivo desse artigo é analisar, à luz da teoria pós-colonial, as manifestações de
outremização e revide na literatura brasileira, mais especificamente, no conto “Nada
contra os caras” (2007), de Márcio Barbosa, presente na obra Cadernos Negros. Diante
da constatação de que a literatura pós-colonial tem pouca representatividade no Brasil,
país no qual a não aceitação das diferenças é latente, é que se pensou na dada análise,
que se fundamenta nas teorias de Bhabha (1998), Ashcroft (2001), Fanon (2005), entre
outros. Os resultados desse recorte revelam que os motivos de outremização são, não
raro, baseados na cor da pele, mas que mesmo diante de adversidades várias o sujeito
discriminado tenta resistir a elas.
Palavras-Chave: Outremização. Resistência. Literatura Brasileira.
Abstract
The aim of this paper is to analyze, in the light of the Post-Colonial theory,
manifestations of othering and resistance in Brazilian literature, more specifically, in
the short-story “Nada contra os caras” (2007), by Marcio Barbosa, present in the work
Cadernos Negros. Given the fact that the post-colonial literature has little
representation in Brazil, a country where the non-acceptance of differences is latent, we
thought in the given analysis, which is based on the theories of Bhabha (1998), Ashcroft
(2001), Fanon (2005), among others. The results of this part seek to prove that the
motifs of othering are often based on skin color, but even in the face of several
adversities the discriminated subject tries to resist them.
1 Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá - UEM e professora do Curso de Letras/Inglês
da Universidade Estadual do Centro-Oeste - UNICENTRO – Santa Cruz. Guarapuava/PR. CEP: 85015-
430. E-mail: [email protected].
2 Mestre e Doutoranda em Letras pela Universidade Estadual de Maringá – UEM e professora do Curso
de Letras na mesma instituição. Maringá/PR. CEP: 87020-900. E-mail: [email protected].
Keywords: Othering. Resistance. Brazilian Literature.
O desenvolvimento da teoria pós-colonial se concretizou nos anos 70, focando-
se em contextos variados como a arte, a cultura e a política em uma tentativa de
compreender os efeitos provocados pelo colonialismo e imperialismo nas colônias
estendidas ao redor do mundo. A literatura de caráter pós-colonial, que tem sido
responsável por expor transformações ocorridas no cenário cultural mundial, teve seu
boom desde que escritores oriundos das ex-colônias passaram a retratar as condições
dos indivíduos dessas comunidades. O conceito de Literatura Pós-colonial adotado
nesse artigo reflete a concepção de Ashcroft et al. (1998) para nomear toda a literatura
produzida desde os primórdios da colonização até a contemporaneidade.
Diversas situações conflitantes eclodiram a partir do encontro entre o europeu e
os povos das colônias, tais como, a violência infligida aos povos colonizados, tidos
como inferiores, selvagens e degenerados, a imposição de cultura, costumes e regras
europeias aos povos das colônias que, muitas, vezes, já eram uma sociedade constituída,
sem mencionar o racismo e a exclusão. A literatura pós-colonial, nesse aspecto, opera
como uma fonte geradora de questionamentos e discussões a respeito da problemática
ao redor dos sujeitos envolvidos no processo de colonização ou afetados por suas
consequências.
A crítica pós-colonial originou-se em língua inglesa e angariou espaço na
academia quando autores das ex-colônias britânicas passaram a produzir um número
relevante de obras com teor contra discursivo. Todavia, a literatura sul-americana, bem
como toda a pesquisa no campo dos estudos culturais e suas problemáticas, como o
racismo e a exclusão, pareceram estar relegadas às margens desse turbilhão. Segundo
Van Djik, “o interesse acadêmico pelo estudo do racismo e a luta contra essa prática na
América Latina [...] emergiu pouco a pouco e relativamente tarde” (2014, p. 13).
Bonnici (2012) acrescenta que foi apenas durante as décadas de 1990 e 2000 que
a teoria pós-colonial de caráter britânico passou a integrar as discussões nos círculos
teórico literários do país:
Os Estudos Pós-coloniais, especialmente no viés da literatura negra e
afro-brasileira, começaram a ser estudados em disciplinas de
graduação e de pós-graduação, enquanto inúmeros trabalhos de
conclusão, dissertações e teses foram escritos analisando a literatura
brasileira sob as teorias pós-coloniais. (BONNICI, 2012, p. 320)
Tais pesquisas realizadas em campo nacional refletem a necessidade de se
repensar a literatura canônica brasileira. Não é escuso questionar onde estão os autores
negros dentro desse cânone e, ainda, como o indígena e o negro inseridos em obras de
renome são caracterizados.
No Brasil, celebra-se a diversidade cultural e étnica em comerciais e programas
televisivos exibidos em horário nobre, entretanto, é possível visualizar em noticiários
problemas relacionados a não aceitação das diferenças existentes nessa mesma
sociedade. Exemplos disso são as discussões acerca da visibilidade dos afro-brasileiros
nas esferas sociais e educacionais das grandes metrópoles. Isso nos leva a questionar se
a diversidade é realmente aceita ou se há uma máscara de aquiescência que esconde o
racismo e o preconceito que permeiam nossas relações com esses grupos ditos
minoritários.
Tendo em vista tal questionamento, procuramos, por meio desse trabalho
analisar como a outremização e a resistência, aspectos da crítica literária pós-colonial,
se alternam no conto “Nada contra os caras” (2007), de Márcio Barbosa, publicado nos
Cadernos Negros. A escolha do conto brasileiro se deve justamente ao fato de que a
literatura brasileira desde os primórdios parece não se focar na figura do negro como um
sujeito tal qual o branco é representado. Contrariamente, o negro desempenha um papel
quase sempre marginal e extremamente estereotipado em nossa literatura (e aqui
retomamos como exemplos os personagens negros d’O Cortiço [1890], de Aluízio de
Azevedo e d’O Bom Crioulo [1895], de Adolfo Caminha).
Os Cadernos Negros, por sua vez, procuram manifestar, desde a sua criação em
1978, que a literatura brasileira tem o papel e o dever de incluir o negro como sujeito
atuante da sociedade. Sobre essa questão, Pereira afirma que:
A Literatura Afro-Brasileira [...] é simultaneamente Literatura
Brasileira que expressa uma visão de mundo específica dos afro-
brasileiros. A dinâmica de tensões e contradições presentes nesse
quadro literário nos ajuda a compreender as atitudes dos autores que
recusam ou que valorizam suas origens étnicas; nos esclarece também
sobre a necessidade de denunciar a opressão social e de evidenciar
uma nova sensibilidade que apreenda esteticamente o universo da
cultura afro-brasileira. (PEREIRA, ONLINE, 2011, s/p, grifos do
autor)
Na análise do conto em questão, procurar-se enfatizar que o fator dérmico é
crucial para a marginalização do personagem do conto. Apesar da falta de motivos para
a humilhação do protagonista negro do conto, ele é aviltado e rebaixado ao status de
objeto pelos policiais que o abordam. Mesmo emudecido pelas circunstâncias dentro do
contexto social em que a obra se configura, o mesmo emprega algumas estratégias de
resistência, como a violência e a ajuda inadvertida aos que o atacaram, a fim de rechaçar
sua objetificação.
Outremização e Resistência: alguma teoria
Embora a apropriação das teorias deterministas pelos colonizadores em sua
tentativa de outremizar os nativos das terras conquistadas tenha acontecido há alguns
séculos e a abolição da escravatura no Brasil tenha sido alcançada no final do século
XIX, as consequências da escravidão e do racismo perduram até hoje. Telles comenta
que o Brasil, embora de forma um pouco distinta de outros países, é permeado pelo
racismo:
Os brasileiros, frequentemente, preferem a noção de cor ao invés da
de raça, porque este termo capta melhor a fluidez das relações raciais.
Mesmo assim, a noção de cor dos brasileiros é equivalente ao conceito
de raça, pois está associada à ideologia racial que hierarquiza as
pessoas de cores diferentes. Independentemente do uso do conceito de
cor ou raça, as pessoas são tipicamente racializadas e seu status
depende de sua categorização racial ou de cor. (TELLES, 2003, p.
304)
A marginalização do não branco por parte do branco é denominada de
outremização. O termo, frequentemente abordado na crítica literária pós-colonial,
define “as várias formas com que o discurso colonial produz seus sujeitos”
(ASHCROFT ET. AL., 1998, p. 171). Outremizar significa transformar o sujeito (outro)
em objeto, marginalizá-lo. A terminação deriva do conceito Outro/outro resultante da
filosofia existencialista de Sartre da formação de sujeito desenvolvida por Freud e
Lacan. Nessa filosofia, o Outro representa a sociedade em geral, e o outro é cada
indivíduo inserido nesse plano maior. Ao aplicarmos essa teoria ao contexto pós-
colonial, verifica-se que o Outro se refere ao centro e representa o discurso imperial;
em oposição, o outro representa os colonizados, que são marginalizados pelo discurso
imperial, identificados pela sua diferença em relação ao centro (ASHCROFT ET. AL.,
1998).
A prática da outremização do negro por parte do branco é concomitante com o
encontro dos navegadores e exploradores europeus com os nativos das terras
descobertas, fato que não passou despercebido pela literatura. Em Robinson Crusoé
(1719), romance canônico do britânico Daniel Defoe, o personagem Sexta-Feira, nativo
de uma ilha próxima à qual o protagonista Crusoé habita após um naufrágio, é
outremizado por não falar a língua do náufrago, não saber ler, não vestir roupas
adequadas e não ser um devoto da religião cristã, por exemplo. Em A Tempestade, de
William Shakespeare, os nativos da ilha onde o protagonista, Próspero, vai parar após
um naufrágio são expulsos de suas terras ou escravizados.
Em relação à outremização, Spivak (1987) explica que há três maneiras
principais em que ela pode ocorrer: 1) quando há a exploração física do território não
europeu, quando o Outro molda o outro, 2) a degradação do nativo, chamado de
depravado, selvagem, mentiroso etc., 3) o hiato entre o europeu (Outro) e o não
europeu (outro). A partir dessas três premissas, várias outras estratégias de
marginalização do sujeito colonizado se derivaram. Uma delas diz respeito ao racismo
baseado na cor dérmica.
A ideologia de que existiam heranças físicas, biológicas e genéticas diferentes
em meio aos grupos humanos fez nascer, no século XV, o termo racismo (derivado de
raça). A partir dele, iniciou-se o discurso racial, no qual as diferenças, principalmente
no que dizia respeito à cor da pele, sugeriam que alguns grupos humanos eram
superiores em relação a outros. Bonnici Acrescenta que “[o] termo ‘raça’ se
desenvolveu num construto que distingue raças puras e híbridas, tipos humanos
imutáveis, comportamentos, habilidades e hierarquias inatas e diferentes” (BONNICI,
2005, p. 47, aspas simples do autor).
O teórico acrescenta que, por volta do final do século XVII, uma categorização
dos grupos humanos surgiu, dando abertura para uma hierarquização das ‘raças’. Nessa
categorização, os povos superiores eram invariavelmente representados pelos brancos, e
os povos inferiores, representados pelos negros. Desse modo, em uma disposição de
classe, o africano e os indígenas ocupavam o último lugar.
Bhabha (1991, p. 184) comenta que o discurso colonial se “concentra em
construir o colonizado como população do tipo degenerado, tendo como base uma
origem racial para justificar a conquista e estabelecer sistemas administrativos e
culturais”. Assim, quando o colonizador se recusa a reconhecer a alteridade do
colonizado, isto é, quando as diferenças entre ambos tratam-se de características
biológicas, e não intelectuais, ele o outremiza a fim de satisfazer seus intuitos. O autor
ainda reconhece que “a pele no discurso colonial é o significante-chave da diferença
cultural e racial do estereótipo e é o fetiche mais visível, e “[...] Este significante atua
publicamente no drama racial cotidiano das sociedades coloniais” (BHABHA, 1991,
p.196).
Utilizando-se, assim, da diferença existente entre si e o negro, o colonizador
empregou em seu discurso dominante uma série de estratégias excludentes que levavam
o negro a sentir-se “dilacerado e psicologicamente desestruturado” (FIGUEIREDO,
1998, p. 64), muitas vezes, sem condições de esboçar reações de resistência e,
consequentemente, sem subterfúgios para lutar contra a ação dominante e usurpadora do
colonizador.
Embora o processo colonial esteja praticamente esquecido por parte da
sociedade brasileira, o preconceito racial - ou racismo - ainda perdura. Na literatura
universal de caráter pós-colonial observamos isso com distinção, mas, simultaneamente,
vemos que o sujeito objetificado é descrito como resistente. Romances premiados no
âmbito internacional (Foe [1984], do sul-africano J. M. Coetzee, Interpreter of
Maladies [2000], da americana de origem indiana Jhumpa Lahiri, Small Island [2004],
da britânica filha de jamaicanos Andrea Levy, dentre outros) demonstram a luta do
negro contra a sua mudez e invisibilidade, bem como sua procura por uma integração
social.
A pergunta que fazemos é: de que forma pode o sujeito (dito) subalterno resistir
aos mecanismos de depreciação infligidos pela sociedade? Ashcroft comenta que o
sujeito colonizado possui subjetividade e é capaz demonstrar aquilo que lhe desagrada:
Nós não precisamos afirmar que os sujeitos coloniais são totalmente
autônomos para mostrar que, nos aspectos materiais de suas vidas,
eles fazem escolhas, empregam estratégias de auto formação e
produção, às vezes de notável sutileza, as quais os caracterizam como
agentes capazes de ‘resistir’ ao poder cultural, mesmo quando essa
resistência não esteja engajada em qualquer programa político
organizado. (ASHCROFT, 2001, p. 35, grifo do autor)
O teórico acrescenta que a palavra resistência se tornou comum nos discursos
pós-coloniais, podendo significar desde uma revolta armada, até discursos inflamados
contra as animosidades culturais e raciais, conforme ponderam seus trabalhos e os do
filósofo e psicólogo martinicano Frantz Fanon (2005).
Em se tratando de resistência pós-colonial, Fanon (2005) alega que a violência
seria o mecanismo mais apropriado: “[o] colonizado [...] dá uma risada a cada vez que
se descobre como animal nas palavras do outro. Pois ele sabe que não é um animal e,
precisamente, ao mesmo tempo em que descobre a sua humanidade, ele começa a afiar
suas armas para fazê-la triunfar” (2005, p. 59). Observa-se ademais que, para o autor, a
violência se configura como a forma de resgate da origem do colonizado: “A violência
assumida permite, ao mesmo tempo, aos desgarrados e aos proscritos do grupo voltar,
reencontrar seu lugar, reintegrar-se. A violência é assim compreendida como a
mediação real. O homem colonizado se liberta na e pela violência” (2005, p. 104).
Por outro lado, em contrapartida com a resistência violenta, Ashcroft (2001)
defende a chamada resistência pacífica (ou discursiva):
Mas se pensarmos na resistência como qualquer forma de defesa na
qual o invasor é ‘mantido fora’, as formas sociais e culturais sutis e
mesmo silenciosas de resistência são muito mais comuns. Essas
maneiras sutis e generalizadas, formas de dizer ‘não’, são mais
interessantes, pois são as mais difíceis de serem combatidas pelo
poder imperial. (ASHCROFT, 2001, p. 20, grifo no original)
Dentre maneiras sutis de dizer não à outremização, podemos citar ainda a
cortesia dissimulada (BHABHA, 1994), o uso do contra discurso, bem como da
apropriação e ab-rogação do idioma e costumes do colonizado (ASHCROFT, 2001).
Sobre a cortesia dissimulada, Bhabha (1994) comenta que o sujeito oprimido
resiste à marginalização quando finge estar consonante com sua situação, mas que
espera a oportunidade ideal para revertê-la.
Em relação ao discurso, à apropriação e à ab-rogação, Ashcroft (2001) explica
que a resistência mais efetiva se trata daquela na qual o colonizado não se deixa
absorver pela cultura e costumes do colonizador. Entende-se que o colonizado apropria-
se das influências e cultura do poder colonial alterando-as e transformando-as em
ferramentas para solapar a hegemonia do homem branco e demonstrar um forte senso de
identidade cultural pré-existente à conquista territorial. Quando o colonizado apropria-
se dos aspectos da cultura do Outro, ele abre espaço para resistir ao controle cultural e
político imprimido pela ideologia imperial. A apropriação das normas discursivas
parece ser um dos mais eficazes meios de subverter a hegemonia do branco:
Ao se apropriar da linguagem imperial, suas formas discursivas e os
seus modos de representação, as sociedades pós-coloniais são capazes,
na situação atual, de intervir mais facilmente no discurso dominante,
para interpolar as suas próprias realidades culturais, ou utilizar a
língua dominante para descrever essas realidades a um vasto público
de leitores. (ASHCROFT ET. AL, 1998, 20)
Nas sociedades que angariaram sua independência após anos sob o poder dos
colonizadores, ficaram os resquícios amargos do racismo e discriminação deixados
pelas estratégias de outremização impostas pelo dominante. Assim, os sujeitos que
ainda padecem com tais abusos precisam demonstrar diariamente sua subjetividade por
meio de inúmeras tentativas de rejeição e desmantelamento, muitas delas pautadas na
violência, mas tantas outras calcadas na afirmação do community building,
(ANDERSON, 2008), ou seja, a tentativa de se criar uma sociedade fundamentada no
respeito mútuo e na aceitação das diferenças, por meio da anulação de barreiras do
preconceito.
Diante desse quadro teórico, entendemos que o conto de Márcio Barbosa aborda
a problemática do preconceito baseado na cor da pele (outremização) e disposição do
indivíduo em solapar tais pressupostos (resistência), justificado assim, a análise que se
segue.
Nada contra quem?
Márcio Barbosa é um contista brasileiro nascido na cidade de São Paulo no ano
de 1959 que se dedica não apenas à literatura, mas à indústria editorial. Formado em
Filosofia pela USP, Barbosa é um dos expoentes da Geração Quilombhoje e organiza,
juntamente com a escritora Esmeralda Ribeiro, os Cadernos Negros, coletânea literária
de autores afro-brasileiros que procuram, à sua maneira, representar a vivência do negro
na sociedade brasileira. Márcio Barbosa também se dedica à reflexão sobre o papel da
literatura negra no contexto brasileiro. Segundo ele:
A importância da literatura afro reside na sua capacidade de oferecer
uma visão mais completa do Brasil, pois resgata a humanidade de uma
parcela da população que, de forma às vezes sutil às vezes violenta,
tem sido frequentemente marginalizada. Ela expressa o imaginário da
população negra. Além disso, por ser uma literatura militante, tem
contribuído para uma democratização maior das nossas relações
raciais, ao mobilizar o leitor, tirando-o do conforto das ideias pré-
fabricadas. No aspecto estético, valoriza o ritmo no texto e um
universo de palavras que se ausentam da literatura “oficial” ou
aparecem de forma não-positiva: a própria palavra “negro” e termos
ligados à religiosidade afro, à história e à periferia, por exemplo.
(BARBOSA, online, s/p, 2016)
O texto escolhido para essa análise sinaliza a preocupação do autor frente às
dificuldades diárias enfrentadas pelos afro-brasileiros. Partindo de uma situação
cotidiana vivenciada pelos negros, Barbosa desconstrói o discurso binário de
inferioridade/superioridade promulgado pelo colonizador europeu desde a conquista das
terras brasileiras.
O conto “Nada contra os caras” nos narra a história de um enfermeiro negro que
está parado na calçada à espera do irmão ao ser abordado por policiais e confundido
com um marginal. O leitor, inicialmente, tem acesso apenas à informação de que o
protagonista espera pelo irmão, que lá deveria estar às três horas. Seu nome não é
revelado, denotando a ideia de ser um cidadão comum. A estratégia literária utilizada
pelo autor provoca o efeito de desconfiança do leitor em torno das ações que motivam o
protagonista narrador a estar naquele local, principalmente quando descreve que há
“remédios dentro do bolso” e que “às vezes vê[jo] a morte” (BARBOSA 2007, p. 147).
Entretanto, conforme o desenrolar da trama, percebe-se que o personagem é
abordado pela polícia sem um motivo aparente, o que nos leva levantar a hipótese de
que a abordagem se deve ao fato de ele ser negro e estar parado em uma calçada no
meio da multidão.
O rapaz questiona o motivo da abordagem, mas não recebe uma resposta
plausível e, em virtude disso, resiste à violência imposta pelos policiais. O fim do conto
parece ser providencial, tendo em vista que nenhuma solução surge em prol do rapaz:
uma forte tempestade se aproxima e um raio atinge cidadãos que estão assistindo à cena
grotesca; a confusão se instaura e os policiais o esquecem. Ao invés de fugir, como seria
esperado se o protagonista fosse um bandido, ele permanece no local para ajudar os
feridos, pois se trata de um enfermeiro.
O título do conto soa bastante ambíguo. Ao lê-lo, podemos pensar em várias
situações, mas destacamos uma: é comum negarmos o preconceito sobre alguma pessoa,
situação ou grupo quando logo no início do discurso começamos com a frase Não tenho
nada contra..., mas..., e aí vem a evidência do preconceito arraigado em nossa mente.
Seria sintomático se alguém estivesse se referindo aos negros de modo geral, se os
caras representassem os negros. Nenhuma novidade. Entretanto, a frase parte de um
negro contra policiais. Seria talvez pelo fato de que negros são frequentemente
abordados injustamente por eles? Seria, talvez, pelo fato de que os negros são tão
marginalizados em nossa sociedade que não lhes restam muitas alternativas, a não ser se
tornarem foras da lei e, consequentemente, qualquer negro é confundido com um fora
da lei?
Telles (2003) argumenta que, na hierarquia social no Brasil, o negro, não
incomum, ocupa a posição inferior. Traçamos, então, um paralelo com as teorias sobre
raça e racismo delineadas no final do século XVII, quando a classificação humana foi
estabelecida e nativos e negros figuravam na posição menos privilegiada:
A raça é um fator marcante para a exclusão social, criando uma
estrutura de classes na qual os negros são mantidos em níveis mais
baixos. A classe e a raça se tornam, então, conscientemente,
determinantes de status na sociedade. Hierarquias raciais ou de classe
são codificadas em regras informais de interação social e são
consideradas naturais. Nelas o status de uma pessoa ou sua posição na
hierarquia garantem maiores direitos e privilégios. (TELLES, 2003, p.
309)
Se aplicarmos essa premissa ao conto, vemos que o personagem negro é aquele
que ocupa posição inferior, ao passo que os policiais representam a superioridade e, ao
mesmo tempo, o abuso dela. A outremização e, consequentemente, a injustiça, parte dos
policiais, os quais, conforme a legislação nacional, deveriam ser responsáveis por
preservar o respeito e invocar a proteção e o equilíbrio na sociedade. Utilizando a
prepotência e a violência, os policiais abordam o rapaz negro sem apresentar um motivo
para tal. Ao mesmo tempo, o rapaz negro resiste abertamente:
- Cadê os documentos?
[...]
- Por que eu?
[...]
- A gente pediu pra você – um agarrou meu braço esquerdo. Resisti.
O outro veio pela direita e chutou minhas pernas. Perdi o equilíbrio, vi
o chão aproximar-se como um poço sem fundo, mas algum espírito de
capoeirista me tomou e levantei num pulo. Tossi, engasguei:
- Por que essa discriminação? – gritei. (BARBOSA, 2007, p. 147-
148).
É inegável a discriminação embutida na abordagem policial, bem como a
resistência do rapaz, que percebe estar sendo interpelado não por se tratar de um
suspeito ou um bandido, mas por sua cor. O personagem é adjetivado negativamente
pelos representantes da lei durante o desenrolar da ação, além de ser ameaçado a todo o
momento em que questiona a situação:
- Folgado! – um exclamou, apertando meu braço.
[...]
- Esse neguinho é muito folgado.
[...]
- Você vai morrer, neguinho. Vai morrer. (BARBOSA, 2007, p. 148-
149, grifos nossos)
A expressão neguinho - utilizada pelos opressores - denota o caráter racista da
aproximação policial, pois percebemos que o personagem é estereotipado e distinguido
apenas por sua cor. Em sua maioria, os sujeitos negros são vistos em blocos, sem
individualidade, como afirmam Ashcroft et al.: “o essencialismo é a pressuposição de
que grupos, categorias ou classes de objetos têm uma ou várias características
determinantes exclusivas a todos os membros daquela categoria” (ASHCROFT ET AL,
1998, p. 77). Durante a luta que se desenrola, o rapaz constata isso ao pensar: “Eu não
tinha voz, não tinha nome, mas tinha cor. Era o neguinho [...] E o ‘neguinho’ é uma
ameaça (BARBOSA, 2007, p. 149, grifo do autor).
Duas questões são pertinentes nesse âmbito: em primeiro lugar, qual a ameaça o
negro representa?; em segundo lugar, quem realmente é a ameaça nessa situação? Em
determinado momento, o protagonista verifica que ele não se configura como alguém
relevante na sociedade e que, em razão disso, não é respeitado pelos policiais, os quais
trabalham para a elite:
Nada contra eles, mas fechei os punhos. Os caras são trabalhadores.
Só que trabalham para os poderosos. Protegem a elite.
[...]
Eu, sem carro, sem relógio caro no pulso, sem cartão de crédito, sem
cheque especial ... (BARBOSA, 2007, p. 149)
Essa diferença muito bem marcada pelo discurso do protagonista representa o
binarismo inscrito na sociedade brasileira. Ashcroft et al. (1998) afirmam que os signos
adquirem significado pela diferença entre si e a oposição binária é a forma de
diferenciação mais extrema possível. O discurso imperialista dos europeus articulou
amplamente nas colônias e também nas metrópoles uma tendência ocidental que vê o
mundo em termos de oposições binárias que estabelecem a relação de dominação.
Distinções entre centro/margem, colonizador/colonizado, civilizado/primitivo,
branco/negro representam de forma eficiente a violenta hierarquia na qual o
imperialismo está baseado e se perpetua. Percebendo que através do binarismo é
possível realizar a marginalização do outro, o colonizador emprega-o a fim de excluir o
colonizado das esferas sociais e culturais, demarcando a maneira como o sujeito
colonizado deveria se comportar em sua própria sociedade.
Em se tratando do conto de Barbosa, é perceptível que o negro sofre dos
resquícios dessa estratégia de outremização. Por um lado, quando os policiais abordam
o protagonista sem motivos e o agridem verbalmente e fisicamente, compreendemos
que o binarismo se faz presente. Por outro lado, o personagem não se abate diante dessa
situação degradante e vexatória.
Enquanto o protagonista está sendo injustamente abordado e vilipendiado pelos
policiais, ele procura se defender e resistir. Primeiramente, ele questiona o porquê de ser
abordado sem nenhum motivo, em seguida, pergunta o motivo da discriminação pela
qual está passando, até que é agarrado pelos policiais e inicia uma espécie de luta
corporal contra eles, quando questiona sua prisão: “- Me levar? Pra onde? Não fiz nada
– afirmei, enquanto me debatia” (BARBOSA, 2007, p. 149). Em determinado momento,
quando nota que suas ações não surtem efeito contra a violência, o rapaz acusa os
policiais de racismo gritando: “- Racistas” (BARBOSA, 2007, p. 149).
Durante a luta contra os policiais, o protagonista nota que os transeuntes param
para observar a cena e tira conclusões de que aquilo é um espetáculo: “Têm certeza de
que sou culpado, embora nesse momento também me adorem, pois eu lhes proporciono
divertimento, uma fuga à rotina” (BARBOSA, 2007, p. 148). A comparação utilizada
pelo autor para aproximar a situação a um espetáculo remonta ao passado de sofrimento
dos negros durante a escravidão, quando seus proprietários podiam divertir-se às custas
de seu sofrimento e angústia.
Por outro lado, da mesma maneira que o público exerce o papel de expectador
extasiado, também representa a voz da denúncia: o protagonista chega a pensar que a
polícia não irá cometer nenhum crime contra ele, pois há muitas pessoas observando ao
redor: “Gritos, xingamentos, ameaças ao redor. Intuía que ali não iriam fazer nada
extremado. Muita gente” (BARBOSA, 2007, p. 149).
A dedução aqui expressa denota outra verdade presente em nossa sociedade, a de
que os policiais exercem o abuso de autoridade e poder às escondidas, e que os negros
brasileiros, principalmente aqueles das classes menos favorecidas, estão habituados a
esse tipo de ação.
Quando o protagonista parece perder suas esperanças de sair daquela situação,
outro policial se aproxima, um policial negro. O rapaz o olha e parece encontrar nele um
olhar de cumplicidade, mas ele se engana ao escutá-lo: “- Fica quieto. Você está
envergonhando nossa raça” (BARBOSA, 2007, p. 150). É nesse mesmo instante que o
protagonista desiste de lutar e se entrega completamente:
Nesse momento achei tudo inútil. Nada contra os caras, mas ali os
odiei com um ódio que não sabia que existia em mim. Anestesiado,
minhas últimas forças eram levadas pela chuva, que começou a cair
pesada, repentinamente. Inútil lutar, fechei os olhos e comecei a sentir
a força das águas e dos rugidos que vinham do céu. (BARBOSA,
2007, p.150)
Sem encontrar apoio em alguém que provavelmente lidava com a discriminação
racial tanto quanto ele, o protagonista não-nomeado se entrega ao pessimismo, sem
chances de combater os mecanismos de discriminação que permeiam a sociedade em
que está inserido.
O final do conto desconstrói a ideologia racista e essencialista, que busca sempre
promulgar a noção de que os negros são todos iguais. Quando um raio atinge cidadãos
presentes, o público fica desnorteado e apavorado e, nesse momento, o protagonista tem
a chance de fugir, mas decide ficar e cuidar dos feridos, pois é um enfermeiro.
O final irônico criado pelo autor solapa o julgamento precipitado dos policiais
[que parecem representar a sociedade brasileira, em geral], quando abordam o jovem
negro com base em um preconceito cotidiano na maioria das sociedades. A cor da pele
do protagonista o confina a um estereótipo formado há muito tempo, mas que até hoje
perdura, cabendo, ainda, somente a ele (aqui, também de forma geral, tomado como
representante do negro) contradizer tal estereótipo por meio da resistência, mesmo não
sabendo se essa se mostrará efetiva.
Considerações finais
Schwarcz (1993) argumenta que as teorias a respeito de raça e das diferenças
biológicas (tais como o positivismo, evolucionismo e o darwinismo) só foram
introduzidas no Brasil por volta dos anos 1870, mas que tiveram relativa aceitação por
parte da população:
É possível dizer, no entanto, que os modelos deterministas raciais
foram bastante populares, em especial no Brasil. Aqui se faz uso
inusitado da teoria original, na medida em que a interpretação
darwinista social se combinou com a perspectiva evolucionista e
monogenista. (SCHWARCZ, 1993, p. 65)
Cabe salientar que a questão racial é bastante delicada em nosso país, mesmo
que se afirme o contrário. Não é raro encontrar situações em nosso cotidiano que
revelam que o racismo está escondido sob um véu fino de aceitação e respeito ao negro,
o qual se esfacela à mínima desconfiança que um sujeito negro parado na esquina pode
suscitar, como mostra o conto de Barbosa.
Sobre isso, Telles afirma que: “[e]mbora as teorias de superioridade da raça
branca, que ganharam status no século XIX, tenham sido, desde então, desacreditadas,
continuam firmemente enraizadas no pensamento social” (2003, p. 301). A situação
enfrentada pelo personagem negro do conto demonstra que as influências dessas teorias
são mais difíceis de serem expurgadas do que se possa imaginar. Por outro lado,
demonstra também que o negro é capaz de questionar tais pressupostos e lutar contra
eles. A questão que permanece é: Até quando a sociedade carregará e perpetuará o
racismo?
A literatura brasileira pouco aborda essa questão, mas, aos poucos,
especialmente nos últimos anos, a partir de pesquisas e debates sobre a periferia da
literatura pós-colonial no cenário nacional, o cenário brasileiro literário começa a
mudar. Bonnici pondera que
A crítica brasileira tem contribuído (embora jamais com o
reconhecimento merecido) para a crítica pós-colonial e ainda tem em
si um grande potencial para isso. [...] São necessários uma contínua
busca, uma grande visão política e um aprofundamento da crítica pós-
colonial para que a literatura brasileira continue a voltar-se sobre si
mesma e encontrar histórica e esteticamente sua alteridade e diferença.
(BONNICI, 2012, p. 334)
O conto de Barbosa figura como parte de uma preocupação que alguns autores
contemporâneos têm tido em desnudar a inexistência de um Brasil arraigado em
preceitos marginalizantes em relação ao sujeito negro. A perspectiva é que, da mesma
forma como a literatura pós-colonial em língua inglesa já ganhou espaço no âmbito
internacional, a literatura brasileira conquiste o mesmo status em um futuro não muito
distante.
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