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2013 ALBERTO PUCHEU [ mais cotidiano que o cotidiano ]

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livro de poemas de Alberto Pucheu

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2013ALBERTO PUCHEU[ mais cotidiano que o cotidiano ]Coordenao editorialSergio CohnAssistncia editorialEvelyn RochaProjeto grfico e capaTiago GonalvesRevisoEvelyn RochaEquipe AzougueBarbara Ribeiro, Evelyn Rocha, Jlia Parente,Luciana Fernandes, Tiago Gonalves e Welington Portella Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)P973mPucheu, Alberto, 1966-Mais cotidiano que o cotidiano / Alberto Pucheu. - [1. ed., reimpr.] - Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2013. 116 p. ; 18 cm.(Azougue para viagem ; 4)ISBN 978-85-7920-135-61. Poesia brasileira. I. Ttulo. II. Srie.13-06788CDD: 869.91CDU: 821.134.3(81)-101/11/2013 05/11/2013[ 2013 ]Beco do Azougue Editorial Ltda.Rua Jardim Botnico, 674 sala 605CEP 22461-000 - Rio de Janeiro - RJTel/fax 55_21_2259-7712facebook.com/azougue.editorialwww.azougue.com.brazougue - mais que uma editora, um pacto com a culturaSUMRIOAPRESENTAOTOW-INI - preciso aprender a ficar submersoIIII - Tow-inI(III - Into the wavelandIIV - Como eles, mas diferenteCOTIDIANAMENTE zII - Arranjo para tornar o mundo cada dia pior e mais violento (antivoz)zII - Arranjo para tornar o mundo cada dia menos violento (ps-voz)z6III - Cotidianamente (voz)IIV - Poema para ser lido na posse do presidente (antevoz), ESPERA DOS BRBAROSLUIZ CARLOS MARQUES DA SILVA (IO AMOR (EM OUTRAS PALAVRAS (RASCUNHO EM QUARTO DE HOTEL (,IAQUE (PERFIL PARCIAL DE UM PROCEDIMENTO,ESCRITO POR CAIO MEIRATRANSCRIO IPSIS LITTERIS DE UMA FALA EM UMA BANCAK. 6IARRANJO PARA TORNAR O MUNDO CADA DIA PIORE MAIS VIOLENTO, II 6O TESTEMUNHO DA MENINA DA BONECA DE KAFKA 6ANOTAES DE TURISMO E LAZER POEMAS ESCRITOS NO MEIO DO VALE DO SOCAVO ,I,6II - Traduo livre de um fragmento recm-descobertono Vale do Socavo do promio da cosmogonia de Lino,8III - From Gagarins point of view (da tica contempornea)8oIV - Short time8zV - dipo e o enigma8PONTO CEGO (DA FORA E DA FRAQUEZA DE NOSSO TEMPO)8,FECHE OS OLHOS E LEIA8ARRANJO PARA ALEX SUPERTRAMP (NA NATUREZA SELVAGEM)O LIVRO DE HOJE DO AMORII - De pistolas, crucifixos e jasminszII - ArrebentaoIIIIV - Certido6V - No so s palavrasIooVI - O livro de hoje do amorIo6VII - Rabiscos da intimidade anunciadaIoAUTOBIOGRAFIA NO ABISMO DE UM ENJAMBEMENTAPRESENTAO Miguel Sanches NetoApoesiamodernacultuadanocentrodopoderlricoadas runas de linguagem, em que as palavras funcionam como pedras soltas que pouca capacidade tm de comunicar. Renunciando a seu poder de signicao, ela se fez insignicante, em um hermetismo que anula o mundo ao seu redor. So textos que nada dizem alm da autorreferencialidade da linguagem.Paraumpoetacontemporneoquenoqueiraoretornos fontes clssicas do lirismo e que tambm no se reconhea nesta absteno de sentido, resta o difcil caminho de salvar como lite-ratura as linguagens em circulao tumultuadas no agora. isso que faz de Alberto Pucheu um dos poetas mais originais e intensos do Brasil. Da lio modernista, Pucheu reteve a estratgia de retirar poesia de todo e qualquer processo de comunicao. Deixando a estrada segura do lirismo, ele envereda pelos atalhos contemporneos da lngua falada e escrita pelos mais diversos atores. Escutador do ou-tro, com as inmeras e esprias vozes que ele constri seus textos.6ALBERTO PUCHEUTemos aqui uma poesia que se apropria das ferramentas da cr-nica e isto explica o ttulo do livro para penetrar na linguagem viva de uma cidade, o Rio de Janeiro, marcada pelo convvio (mui-tasvezesforado)entreclasses. Tudoentranestapoesia,numa espcie de sujeira social que contamina (e limpa) o idioma lrico. Os poemas que o leitor vai encontrar aqui se comunicam com acrnicanospelalinguagemprosaica,mastambmpelaes-tratgia de composio. O poeta (que pode aparecer na forma de um eu ou de um ele) se deixa povoar por todas as manifestaes de discurso, da fala dos surstas carta de um assassino, do que dizemaspessoasnotremaose-mailsdosamigos,paramontar, como se fosse uma instalao de palavras, os seus poemas. A este procedimento ele d o nome de arranjos. Esta maneira atenta e artstica de potencializar os vrios rudos urbanos convive com as leituras loscas que o poeta faz em seus momentos de isolamento, criando uma sobreposio desses dois universos,odasexperinciascotidianascomaslinguagensem estado de crnica e o dos grandes textos universais. deste contato do popular e do erudito que vem a grande for-a expressiva de um livro que traz uma energia de linguagem to acentuada que torna os temas mais banais em extensos e intensos discursos lricos. Nesteprojetopotico,oancestraldePucheutalvezseja Walt Whitman ou um lvaro de Campos, pois h um idntico desejo de norecuardiantedocontemporneo.Suapoesianonascedos contratos lricos, mas de uma conscincia do poder narrativo do potico, aberto s potencialidades da sugesto. So poemas com um sopro pico, tratando da matria lingustica e existencial do tempo presente de uma maneira ertica.Entre as vrias temticas, sobressai no livro a questo amorosa. No poema-sntese que "O livro de hoje do amor", h a encenao 7MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOdeumavidaconjugallricaedevassa,umaversodoamorem tempos de oferta fcil de sexo. Mas h tambm a presena de vozes mltiplas que contam o amor sem nenhum tipo de falseamento. Mais cotidiano que o cotidiano a celebrao dionisaca da existncianumacidade-linguagememqueasvozes-pessoasse misturam. TOW-INI - PRECISO APRENDER A FICAR SUBMERSO preciso aprender a car submersopor algum tempo. preciso aprender.H dias de sol por cima da prancha, h outros, em que tudo caixote, vaca, caldo. preciso aprender a car submersopor algum tempo, preciso aprendera persistir, a no desistir, preciso, preciso aprender a car submerso, preciso aprender a car l embaixo,no crculo sem luz, no furaco de guaque o arremessa ainda mais para baixo,onde esto os desaadores dos limiteshumanos. preciso aprender a car submerso por algum tempo, a persistir, a no desistir,a no achar que o pulmo vai estourar,a no achar que o estmago vai estourar,10ALBERTO PUCHEUque as veias salgadas como charque vo estourar, que um coral vai estourar os miolos os seus miolos , que voc nunca mais ver o sol por cima da gua. preciso aprender a car submerso, a no falar, a no gritar, a no querer gritar quando a areia cuspir navalhas em seu rosto, quando a rocha soltar britadeiras em sua cabea, quando seu corpo se retorcer feito meia em mquina de lavar, preciso ser duro, preciso aguentar, preciso persistir, preciso no desistir. preciso aprender a car submerso por algum tempo, preciso aprender a aguentar, preciso aguentaresperar, preciso aguentar esperar at se esquecer do tempo, at se esquecer do que se espera, at se esquecer da espera, preciso aguentar car submerso at se esquecer de que est aguentando, preciso aguentar car submerso at que o voluntarioso vulco de gua arremesse voc de volta para fora dele.11MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOII - TOW-INNa faculdade, escutei que algum, tempos atrs, teria dito: tudo gua. Quando o jet ski me reboca, largando-me no topo destas ondas anteriormente comeadas e no escolhidas por mim, mquina, mar e eusomos apenas um, a mesma entidade viva respirando uma ausncia qualquer de limites.Sei que posso morrer a cada instante no improviso. Que, perdido no terror de uma mandbula, que, perdido no amor de uma mandbula, sem saber de que lado est a cava nem de que lado, a crista, triturado dentro desta mastigaopor uma avalanche de guas, uma onda pode me matar. Sei que a mquina, com o companheiro a acelerando em vo, igualmente imersa em bolhas, solavancos e espumas muito mais potentes do que ela, ainda pode falhar, no rebocando mais uma vez a minha vida, deixando-a espatifada em algum rochedo prximo ou num coral submerso,de modo que nada mais em mimse distinga jorrando da onda. E quem tem fora para matar sempre muito perigoso. to assustador que acho mesmo que j morri algumas vezes no caldeiro de gua espumante.Renaso, a cada dia, de dentro do caldo do esquecimento e da vala do sono. 12ALBERTO PUCHEUSurfar nem sempre o mais difcil; o mais difcil conseguir sobreviver. Este mar o local em que homens e meninos se distinguem. Em que homens recebem suas medidas sobre-humanas. Em que homens eram menores do que ele, at conseguirem surf-lo. No venham para c se no puderem contarcom seus prprios colhes. E com algo mais.No venham para c, se, pelados pelas ondas,no se garantirem. E, mesmo assim, no venham...No venham para c se no puderem morrer. Se no puderem ser um com o mar. Se no souberem que a prancha que me separa mnima linha no abismo, quilhas e bordas em manobras, cortes, idase vindas sulcando o muro innito , a mesma que me une ao sol de gua:a prancha da coragem e da perciaque, usando a fora para lidar com a fora,me preserva num nmo j lquido de mim.Aqui o nico ambiente em que, nesta porrada animal, enquanto os homens se sentem horrorizados, eu, bicho marinho, me sinto em casa. Aqui o limite entre o prazer, o xtase e a morte. Mesmo com o barulho do motorda mquina martima, do vento forte dicultando tudo ainda mais, da zona de impactonos arrastando submersos na gua geladapor quase 500 metros, do helicptero que espreita com suas cmeras por cima, da prancha vibrando seu impacto 13MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOno estalo repetido contra a superfcie aquticae no ritmo ofegante das batidas do corao, aqui o lugar mais silencioso que existe:escuto a circulao do sangue dos golnhos,tubares e gaivotas, o sistema nervoso das areias, horizontes e cu, a voz rudimentar de algas, ostras, conchas e ourios.Por isso, volto sempre para c, para estas ondas monstruosas em cujos topos me sinto maior do que os penhascos que me espreitam por sobre as cidades e arranha-cus, sabendo que, aqui, o estilo no nada seno o imposto a cada um pela necessidade da vida em seus extremos.Temo os 30 metros que me cobrem(e o bafo que se estende por 100 metros),mas temo, muito mais, as coisas mesquinhas da vida.14ALBERTO PUCHEUIII - INTO THE WAVELANDAqui bem perto, na orla, as ondas quebram,aproximando-se de ns, juntando-se cidade da qual surstas partem para surf-las, vendo e sendo vistos por todos que caminham, dirigem, pedalam, namoram ou tomam sorvetes na calada, na rua, na pedra ou na ciclovia,numa relao em que os do mar e os da cidade misturados cuidam reciprocamente de si,como se pudessem trocar, ao menos uma vez,ou at duas, quem sabe trs, de lugar. Como admiro isso. E admiro, ainda mais, as ondas (e aqueles que as enfrentam) quando so selvagens, sem inteligncia prpria nem de ningum por perto, as ondas que no procuram a cidade ao quebrar por sobre ela, mas que, ao longe, em alto-mar,onde o mar quebra to somente sobre o mar, obrigam os homens a partir para elas, a se partir por sobre elas, a se partir sob elas,a se perder nelas sem qualquer cidadeque os possa, dessa vez, salvar de sua barbrie.15MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOIV - COMO ELES, MAS DIFERENTEEles seguem o conceito polinsio de waterman,que exige do sursta a mesma entregaao oceano e terra, a mesma conana em ambos. Um verdadeiro waterman consegue nadar durante horas nas condies mais adversas, salvar vidas vontade,remar cem quilmetros quando necessrio,resguardar uma dose de tranquilidadepara os momentos em que no tem como saberde que lado est o mar, de que lado a terra,de que lado o fundo, de que lado o cu,e conviver com todas as criaturas do oceano,inclusive, todos os tipos e tamanhos de tubares.Um waterman conhece como ningum seu ambiente,seus humores, reviravoltas, idiossincrasias,e, como proteo instigadora a preservar sua coragem,nem sempre se d conta da medida do perigo que est correndo. Ele sente as mudanas mais sutis do vento, ele sabe como o vento afeta a cada momento a gua,ele consegue navegar se orientando apenaspelas estrelas, ele reconhece que o oceano atua em uma proporo que torna at mesmo as maiores iniciativas do ser humanoinsignicantes. Alm de surfar as ondas, ele sabe como elas funcionam, ele as conhecepor baixo e por cima, por fora e por dentro,usa de todos os sentidos e tecnologias para saberonde elas estaro explodindo em maior escala nos prximos dias. Ele as ama, 16ALBERTO PUCHEUe, em decorrncia desse amor, um waterman demonstra o que de fato sente: um respeito apropriado por seu elemento.Sigo o que eles seguem, mas, embora afeito s guas, meu ambiente outro. s palavras que, acordado ou dormindo, me submeto, elas me traduzem muitas vezes em altos volumes com erros que tomo provisoriamente como direespossveis, e muitos dos nomes dos sentimentos, ou do que quer que seja do que ocorre em mim,so apenas uma maneira a mais de dizer o que no sei que sinto que elas dizem por mim,escuto-as nas muitas mesas vindas de amigosque por elas me lanam entre ideias e corpos,com elas sussurro nas horas de amor e carinhotentando guard-las l dentro do corpo amado, ou, nelas, quem sabe, guard-lo at quando consigam, com elas consolo o desconhecido que passa na rua com os olhos cheios de lgrimas,tentando, tambm com elas, retirar a tristeza do outro e, sempre que ocorre, igualmente de mim, por elas me deixo analisar em busca de um caminho que me livre de algumas repetiesou me faa razoavelmente sereno com elas, com elas escrevo poemas em que, com seus excessos e carncias, a vida est sempre sendo jogada, por elas ganho uma sobrevida e perco o que haveria para ser perdido, com elas ensaio um itinerrio por sobre o que outros traaram, ora copiando-os, ora riscando contornos, desvios e atalhos 17MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOpelos quais sozinho jamais imaginara ir. Por elas, escrevendo de inmeras maneiras e falando diariamente em pblico, no ensinando nada seno a como aprender a conviver mais intensamente com elas,sigo o que eles seguem, apenas em outro ambiente: o conceito de languageman. 18ALBERTO PUCHEUV - ARRANJO EM BUSCA DE UM PARADIGMA PARA A RELAO ENTRE O CRTICO LITERRIO E O POETAA parceria talvez o aspecto mais importante em uma equipe de tow-in,porqueasuasobrevivnciadependedasuaoutrametade. Voc no deve fazer tow-in com uma pessoa que no qualicada e tambm no deve pilotar o jet ski para quem no qualicado. Surfar no quer dizer s voc surfar as ondas. Tem aquele lado tambm de voc puxar o cara, ser o piloto do sursta, do seu parceiro. muito adrenalizante, porque o tempo inteiro voc sabe que, alm de surfar aquela onda enorme, de ter de se sair bem, voc tambm tem de puxar bem. Seu amigo depende daquele seu momento de inspirao, de boa pilotagem, de botar ele nas ondas, na posio perfeita, para que tudo d certo, tudo ocorra bem e, no nal, ambos saiam felizes. Quando chegou a minha vez de rebocar, eu falei: Saca s, assim que se pilo-ta, assim que se coloca o seu garoto na onda! Eu coloquei o cara no ponto e disse: Uhuuu, agora sim! O tow-in uma combinao entre surfar e salvar vidas, e a salvao para o sursta o seu anjo motori-zado. Se voc cair, j era. Voc vai precisar de resgate. No tem como sair sozinho. o oceano inteiro se erguendo para cair na sua cabea. So necessrios dois surstas muito experientes em ondas grandes para fazer uma dupla prossional. Ambos devem ser competentes nas duas disciplinas. Voc tem que ser melhor do que jamais imaginou para resgatar algum da zona de impacto. Voc precisa de todos os requisitos necessrios. Os dois devem trabalhar juntos o tempo todo atcaremvontadeemqualquersituao,porqueojetskipode quebrar, e a ambos tero que nadar. uma mquina, ela pode apre-sentar uma falha mecnica ou ainda acontecer um erro humano. Tudo possvel. Enquanto o sursta ganha a glria, o verdadeiro heri o cara que dirige o jet ski. O jet ski coloca o sursta na onda e depois, para o caso de o sursta ser esmagado pela imensido branca, tem de 19MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOcompartilhar atentamente com ele toda a descida. Quando voc sai de uma onda, est a oitenta quilmetros por hora. necessria uma fora de trinta toneladas por metro quadrado para danicar um navio. Uma onda de trinta metros quebrando concentra cem toneladas por metro quadrado e consegue partir um navio pela metade. Ela quebra como uma descarga de escopeta, como uma bomba atmica. como correr quatrocentos metros prendendo a respirao e sendo golpeado por cinco Mike Tysons. como ser atropelado por um carro. como um trem atingindo voc, essa exploso. No se trata de surfar por diverso. surfar ou morrer. Sem a ajuda da outra pessoa a algumas centenas demetros,osurfedeondagigantesuicdio.Ointervaloentreas ondas de dez a vinte segundos e podemos prender a respirao por cerca de trs minutos. Se voc car debaixo da gua por duas ondas, os surstas vo dizer que muito grave; se car preso por trs ondas, a maioria vai dizer que voc vai morrer; se forem quatro ondas, tero certeza de que est morto. O surfe com reboque fez o impossvel ser surfvel. De repente voc est sendo rebocado e uma srie enorme se aproxima. Voc diz: Pode escolher, me coloque onde voc gostaria de ser colocado. E voc vem l detrs, sem saber o tamanho da onda, voc sente que pode ser uma grande e, subitamente, voc pode estar na maior onda de sua vida. Voc pensa em tudo que j fez na vida e na porra do est fazendo ali. S estou chegando a este nvel porque eu tenho sido guiado por esses caras para chegar a este nvel. Eu e Jeff nos tornamos parceiros este ano. Com meu conhecimento e a expe-rincia dele em ondas decidimos que seria um casamento perfeito. Saber rebocar algum para dentro de uma onda grande, saber como posicion-lo... algo tridimensional agora: temos homem, mquina e onda. No surfe de remada, voc depende de suas habilidades, de sua capacidade de julgar a onda para decidir onde se posicionar e qual onda pegar. A partir de uma certa altura, praticamente impossvel, ou realmente impossvel, entrar nas ondas com a remada; ento usamos 20ALBERTO PUCHEUa corda para nos puxar para as ondas gigantes. Na primeira vez, no havia ningum ali. Ningum havia surfado ondas daquele tamanho. Era o desconhecido. Como o espao sideral ou o mar profundo. No sabamosseiramosretornar.Notow-in,vocdeixaseuparceiro escolher a onda. Era um monstro gigante atrs de meu parceiro e ele era apenas um gro de areia diante dessa boca enorme. Se ele olhasse para trs, provavelmente teria desmaiado. Eu o coloquei na onda e chegou o ponto em que eu quase disse: no largue a corda. Quando olhei para trs, ele j a tinha largado.P.S.:Essearranjofoifeitocomasfalasdesurstas,tiradasde diversos lmes e livros.COTIDIANAMENTEI - ARRANJO PARA TORNAR O MUNDO CADA DIA PIOR E MAIS VIOLENTO (antivoz)quero deixar bem claro que eu sou contra as guerras ou quaisquer que sejam os atos de violncia sem motivo justo, e tambm quero deixar bem claro que eu no sou o responsvel por todas as mortes que ocorrero, embora meus dedos sero responsveis por puxar o gatilho. eu era para continuar vivendo, respirando, vendo, ouvindo, sentindo, mas por culpa dos inis eu no poderei mais ver, ouvir, sentir, respirar, por culpa deles minhas funes de ser vivo iro ces-sar, por culpa deles muito em breve estarei morto. mas eu abri mo de minha vida por vocs, irmos. se deus achar que sou merecedor, deus ir me restaurar e colocar uma poro de seu esprito em mim para que eu reviva e nalmente tenha vida eterna. quem sabe serei transformado de mero ser carnal para um ser espiritual, para a vida eterna dos cus. mas, se deus achar que no sou merecedor, se julgar oquezcomodesnecessrio,estoucientedequepermanecerei adormecido na morte por toda a eternidade, mas pelo menos morri 22ALBERTO PUCHEUpelos is e nunca me arrependeria disso. morri para inspirar vocs, irmos, a se defenderem e se fortalecerem. hoje em dia existe a in-ternet, existem sites em que se pode criar comunidades para que os irmos se encontrem, outros sites possuem contedos, ensinando a como fazer bombas, por exemplo. juntos sero muito mais fortes, juntos podero planejar investidas muito maiores contra os inis, juntos podero adquirir fundos para compra de armas, munio e material para fabricao de explosivos. os conservadores precisaro tomar o poder poltico e militar dentro dos prximos 70 anos, seno a nica alternativa ser a continuidade do modelo de bastardizao, muito prximo ao do brasil, onde tem vigorado a miscigenao. es-sas orientaes se mostraram catastrcas. o brasil se estabeleceu como um pas do segundo mundo com um extremo grau de pobreza de coeso social e um eterno conito entre as vrias culturas em competio, da mesma forma que uma mirade de subtribos (ne-gra, mulata, mestia, branca) paralisa qualquer esperana de um dia alcanar o mesmo nvel de produtividade e harmonia encontrado por exemplo na escandinvia, alemanha, coreia do sul ou japo. evidente que uma abordagem similar na europa seria devastadora, para no dizer que seria um grave crime contribuir para a aniquila-o, desconstruo e genocdio dos povos nativos que por denio soosnrdicos.nossodeverpreveniraaniquilaodenossas identidades,denossasculturas,denossastradiesedenossos estados naes. o medo irracional de doutrinas nacionalistas est nos impedindo de parar nosso prprio suicdio nacional/cultural. mulumanos,feministas,homossexuais,ambientalistas,ativistas dos direitos animais e outros grupos minoritrios so vistos como virtuosos,enquantooshomenspatriarcascristoseuropeusso vistoscomoodiabo.afeminizaosetornoutoperceptvelque osjornaiserevistasestotodosagrupadosemtornodeumnovo homem feminilizado. o que os homens escandinavos esto fazendo 23MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOa respeito disso, como nos tornamos eunucos covardes, o que acon-teceu aos vikings? as mulheres conseguiram ridicularizar seus lhos suprimindo muitos de seus instintos masculinos. o que as feministas liberais iro fazer quando encararem a gangue agressiva de jovens muulmanos? queimar seus sutis e atirar neles a edio de bolso do monlogos da vagina? como os revolucionrios sociais proclamam, seu propsito destruir a hegemonia dos machos brancos. sabemos que a raiz dos problemas europeus a falta de autoconana cultu-ral. no apenas nosso direito, mas tambm nosso dever contribuir parapreservarnossaidentidade,nossaculturaenossasoberania nacional contra a islamizao em curso. a vitria da populao local ser o total banimento do isl tradicional. se tivssemos executado todos os marxistas e banido suas doutrinas (inclusive seus aspec-tos culturais como internacionalismo, feminismo, igualitarismo, antielitismo e antinacionalismo), no estaramos na situao atual. mais cedo ou mais tarde retornaremos a uma nova sociedade mo-nocultural, extremista, conservadora, em que a famlia nuclear e a cristandade sero os aspectos centrais. antes que nossos sistemas colapsem,essencialquetodossejamapresentadosverdade.a verdade tem de ser conhecida. o tempo para o dilogo acabou. che-gou a hora de realizar substanciosos ataques letais para usar o terror como um mtodo para acordar as massas, ferir sua ideologia e seus propagadores. tenho a mente extremamente forte, mais forte do que a de todos que j conheci. se tivessem descruzados os braos antes, provavelmente o que aconteceu no teria acontecido: eu estaria vivo, todos os que eu matei estariam vivos. que o ocorrido sirva de lio. no deixem que o meu m tenha sido vo. mantenha-me, deus, rme em minha esperada ao. sou um heri da europa, um salvador do nosso povo e da cristandade europeia. minhas sinceras e patriticas lembranas. quem com deus, irmos, f em deus, irmos. amm.24ALBERTO PUCHEUP.S.- Esse arranjo foi feito com as falas de Wellington Menezes de Oliveira, que, no dia 7 de abril de 2011, com 23 anos, invadiu a Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, matando 12 crianas, e do texto 2083 An European Declaration of Independence, escrito porAndersBehringBreivik,que,nodia22dejulhode2011,com 32anos,cometeuumatentadocontraedifciosgovernamentais emOsloe,horasdepois,abriufogocontraumacampamentode jovens organizado pelo Partido Trabalhista Noruegus, em Utoeya, resultando em 77 mortos.25MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOII - ARRANJO PARA TORNAR O MUNDO CADA DIA MENOS VIOLENTO (ps-voz)AnaCarolinaPachecodaSilva,BiancaRochaTavares,Gssica GuedesPereira,KararMustafaQasim,AndreasEdvardsen,Ronja SottarJohansen,EmilOkkenhaug,AstaSoeHellandDahl,Monica Iselin Didriksen, Rune Havdal, Tore Eikeland, Espen Jorgensen, Karin ElenaHolst,AleksanderAasEriksen, VictoriaStenberg,RuthBene-dicte VatndalNilsen,Isabel VictoriaGreenSogn,IdaBeatheRogne, Elisabeth Tronnes Lie, Monica Elisabeth Bosei, Igor Moraes, Havard Vederhus,CarinaBorgund,IngridBergHeggelund,TaraldKuven Mjelde, Porntip Ardam, Andrine Bakkene Espeland, Torjus Jakobsen Blattmann, Jamil Rafal Mohamad Jamil, Tina Sukuvara, Karine Chagas de Oliveira, Larissa dos Santos Atansio, Fredrik Lund Schjetne, Steinar Jessen, Lejla Selaci, Henrik Rasmussen, Thomas Margido Antonsen, Mona Abdinur, Anders Kristiansen, Jon Vegard Lervag, Ida Marie Hill, HanneEkrollLovlie, TamtaLipartelliani,KevinDaaeBerland,Silje Stamneshagen, Hanne Kristine Fridtun, Laryssa Silva Martins, Kjersti BergSand,HakonOdegaard,SondreFursethDale,HenrikAndr Pedersen, Eivind Hovden, Rolf Christopher Johansen Perreau, Sverre Flate Bjorkavag, Eva Kathinka Ltken, Ismail Haji Ahmed, Luiza Paula daSilveiraMachado,MariaMaageroJohannsesen,ModupeEllen Awoyemi, Lene Maria Bergum, Guro Vartdal Havoll, Marianne Sandvik, Andreas Dalby Gronnesby, Sondre Kjoren, Bendik Rosnes Ellingsen, Gizem Dogan, Snorre Haller, Johannes Buo, Sharidyn Svebakk-Bohn, Silje Merete Fjellbu, Hanne A. Balch Fjalestad, Bano Abobakar Rashid, Syvert Knudsen, Diderik Aamodt Olsen, Simon Sabo, Synne Royneland, Anne Lise Holter, Trond Berntsen, Birgitte Smetbak, Margrethe Boyum Kloven, Even Flugstad Malmedal, Gunnar Linak, Tove Ashill Knutsen, Hanna M. Orvik Endresen, Kai Hauge, Mariana Rocha de Souza, Milena dos Santos Nascimento, Rafael Pereira da Silva, Samira Pires Ribeiro. 26ALBERTO PUCHEUIII - COTIDIANAMENTE (voz)No so grandes motores que nos movemcotidianamente, motosserrasa tombarem a seiva em nossas vidas,guindastes nos iando no trabalho,erguendo os pensamentos, os afetos,todas nossas fraquezas e misrias,britadeiras perfurando nossos corposem busca de algo mais que s sintomas,eletrochoques para nos sedarou para nos trazer conscincia,um chamado qualquer da vocaonos transformando desde o mais profundopara chegarmos logo superfcie,alguma divindade nos salvandoou nos lanando de vez para o inferno,uma paixo nos aguardando, pronta,em cada esquina, cheia de futuro,um acontecimento a nos zerar,nos instigando a comear, de novo,do zero, o que jamais queremos,mas uma nova chance de acertarmosou de, de novo, naufragarmos. No,no so grandes motores que nos movemcotidianamente, nenhuma grande investida heroica nem martirizante a favor ou contraseja que causa for, nenhum merecimento, nenhum genocdio, guerra, banimento, nenhuma discriminao, nenhum ato mnimo de violncia por algum motivo 27MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOsupostamente justo, nenhuma pretenso de se ter a mente mais forte do que a de qualquer outra pessoa, nenhum extremismo, nenhuma garantiado pleno funcionamento do sistema,nenhuma tomada de poder poltico,muito menos militar, nenhuma defesadas identidades pessoais ou nacionais,nenhuma ideologia para se viverou para se morrer por ela, nenhuma verdade que possa mesmo por um breve momento querer se estabelecer (a no ser a presenado vazio, da falta, do furo), nenhuma negaoda palavra a querer afugentar, em vo,a fora silenciosa do dilogo. No,no so grandes motores que nos movemcotidianamente, mas aquelesque trabalham em baixa rotao,que quase no se deixam perceberseno quando subitamente engasgame, de repente, esgaram o tecidodo tempo, que aparece em seu limite,em sua negao, em seu mais forado presente, passado e do futuro,fraturado, deixando aparecer,na fratura, um tempo outro, um contratempo,um antitempo, um antetempo, um outrolado do que chamamos como tempo(um tempo morto, no humano, scapim ao vento, s capim sem vento,s vento sem capim, talvez, nem vento,28ALBERTO PUCHEUtalvez, apenas o tempo morto de algum que sobe ou desce uma rua matando o tempo), de onde provm e para onde vaimesmo o tempo, ou do jeito deste elsticode um velho moletom que estou vestindo,ou do tecido deste mesmo joggingcom as tramas vazadas, desadas,rotas, que j no podem ser cosidas.*Uma noite gostosa com uma linda celebridade televisiva, uma dana em xtase embalada pela msica eletrnica,uma fotograa peculiar tirada recentemente,melhorada por um dos muitos programas de computadorfacilmente baixados na Internet, uma conferncia bem-sucedida em Braslia, para mais de trs mil pessoas,num congresso de Direito Esportivo,os efeitos explosivos de uma viagem,ou outra viagem, com suas compras enfastiadas,com suas centenas de clichs enfastiados, como a grande maioria das que habitualmente so feitas...Todos sabemos que hoje normal viver uma experincia qualquer para, em seguida, poder cont-la em um bar a algum amigo mais prximo ou, por e-mail e outras vias, a quem esteja mais distante. Da mesma maneiraque, j h algum tempo, para muitos, o melhor da viagem , no retorno,o narrar a viagem, hoje, todos sabemosque o contar da experincia talvez seja mais importante29MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOdo que a prpria experincia, ou que, talvez, sem o seu contar,a experincia se abata, se rebaixe, se enfraquea, suma.Assim como a morte abrupta de um lho quando repetidamente compartilhada pela mena rede social, com breves suplcios escritos e sucessivas fotos douradas, parece ter sua dor minimizada,assim como um terrorista ou um assassino de crianas,jovens ou de quaisquer pessoasdivulga ao pblico seu manifesto de uma razo totalitria,assim como os paparazzi insistem em coibir a intimidademuitas vezes com o consentimento da estrela da vez em ascenso,um amor pode subitamente acabar, ou pelo menos ser profundamente abalado,por uma postagem inconsequente e inesperada.Todos sabemos que hoje essas coisas so normais,e certo que seja mesmo bom que seja assimj que nenhum passo pode nem deve ser dado para trs,e certo que todas essas coisas e muitas outras nos concernemde perto e nos interessam. Enquanto, entretanto, continuam por a divulgando os melhores ou piores momentos de suas vidas repletas dos mais excitantes ou acabrunhantes acontecimentos,enquanto continuam por a divulgando os inmeros momentos normais, banais, de suas vidas, enquanto continuam por a divulgando o que quer que seja em busca de um sentido qualquer de suas vidas ao pass-las a limpo, enquanto continuam por a divulgando o vivido de que, a cada momento, so capazes, e que s por isso j merecem ser ouvidos por todos ns,persigo o que no por uma questo moral ,de to cotidiano, no se consegue facilmente postar, o que no por uma questo moral , de to cotidiano,no se consegue facilmente enviar, o que 30ALBERTO PUCHEU no por uma questo moral , de to cotidiano, no se consegue facilmente divulgar, persigo o que,de to cotidiano, s se pode viver no paradoxo de um no vivido,o que, s assim, de to cotidiano, com o mais esgaradodo cotidiano, com o mais engasgado, fraturado, vazado,desado e roto do cotidiano, com o cotidianoem baixssima rotao (naquela rotao que,de to baixa, parece ser possvel cham-lade o informe do cotidiano ou do mais cotidiano enquanto informe), persigo o que, com um muito mais cotidianoque o habitualmente chamado cotidiano,no consegue ser facilmente compartilhado.Admirando e certamente compactuando com tudo o que cada um de ns pode compartilhar, persigo mesmo o que, escapando, no se conseguepropagar, o que, fugindo, no se consegue comunicar,esta impotncia, que persigo, mostrando-a ao menos um pouco e muito mais aindano que dela nem d para aparecer.31MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOIV - POEMA PARA SER LIDO NA POSSE DO PRESIDENTE(antevoz)Ando pela calada da rua em que moro,em direo Cobal, por exemplo,onde diariamente compro alguma coisaapenas para descansar um pouco do trabalho cotidiano que fao em casa, e, ao passar por uma pessoa, sou para ela o que ela para mim: algum que sobe ou desce uma rua, nada mais. Talvez, neste momento, eu seja tambm para mim e ela tambm para elao que somos um para o outro: algumque se esquece de onde est vindoe aonde est indo, de seu nome, de seu trabalho, algum que sobe ou desce uma rua, nada mais. Ou algo mais, ou menos, no sei, que vai comendo o nome, o trabalho, o parentesco, as demandas que recaem sobre ns,largando-os pouco a pouco pelas latas de lixo penduradas nos postes, deixando-os cair ao meio-o, por entre as rodas dos carros, cumprindo o destino comum de todos dejetos.Andando pelas caladas, subindo-as ou descendo-as, indo ou voltando no importa para onde ou de onde, enquanto andamos, desta vez no temos um encontro marcado com ns mesmos. Mais persistentes ou mais ausentes, mais barulhentas ou silenciosas,diversas vidas vm e vo em um s corpo,32ALBERTO PUCHEUaparecendo sempre alguma quando alguma requisitada. Mas h momentos em que, entre a casa e os ofcios da cidade, entre qualquer compra, por exemplo, na Cobal,e o uso da compra ao chegar em casa,antes de qualquer contrato, de qualquer direito, de qualquer conveno, do livre arbtrio, do estado civil, antes do tamanho dos ossos, do formato da orelha, das impresses digitais dos dedos, das extenses do rosto, da fotograaem 3X4 ou em 5X7, das fotograas de frente e de perl, antes das imagens exclusivas da ris e das retinas e dos escaneadores 3D, das cmeras que nos gravam nos bancosou pelas ruas, antes dos DNAs guardadosem algum arquivo nacional, antes da belezae da feira, do cdigo de barras na nuca com o qual sonhei ontem disponibilizando os corpos a uma mquina que teimasse em reconhec-los por um nmero qualquerpelo qual jamais nos reconheceramos,antes desses e milhares de outros modosde sermos apreendidos, os cios vazios de um corpo abandonado (uma vida nua ou um posto de pura distraoem que os viventes se fazem esquecidos, ou quase isto) sobem e descem uma rua, nada mais. So corpos matveis, comoao m de uma partida de futebol,como durante um assalto, como na lade um hospital, como por bala perdida33MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOou certeira da polcia e dos tracantes, como por acidentes, pelas drogas, pela fome...So corpos gloriosos, como duranteuma partida de futebol, como duranteuma semana de carnaval, como em um show de rock, em uma mesa de bar com amigos,em um mergulho diurno ou noturno no mar,como quando fazem amor ou quando,mesmo sem o fazerem, se amam ao longo da vida ou por apenasalguns instantes. So corpos dbios,quando danam o funk sob a mirados AR-15, quando fogem dos tirossaltando atleticamente por telhados,caixas dgua, correndo por becos,quando se explodem na terra ou no arcontra o concreto de um edifcio ou quando se jogam das alturas do mesmo edifcio. So corpos funcionais, como nas caixas lotadas dos supermercados, dentro das britadeiras fritados sobre o asfalto do sol, dentro da cozinha da minha casa, ao meu ouvido, na central de telemarketing. So corpos... So corpos que, em algum momento, esquecidos, annimos, sobem e descem uma rua, nada mais. Subindo ou descendo uma rua,atestamos ento este hiato de desconhecimento entre o corpo abandonado e as diversas vidasque o tentam colonizar, entre a vida nuae as vestimentas vivas que a recobrem,entre a vida crua e o que dela pode ser cozido,34ALBERTO PUCHEUentre a vida aberta e a vida vivida. Atestamos a fenda deste hiato, uns emigrantes da distncia neste hiato de que no podemos nos afastar, uns estrangeiros, uns viajantes, uns forasteiros, uns gringos, uns brbaros neste espao que se serve das palavras para falarem uma lngua estrangeira, uns ndiosneste espao, nesta picada, nesta clareira,uns berberes e o vo do deserto esgarandoos berberes, uns esquims e o vazio da neveampliando os esquims, uns pescadoresdispersos pela luz, tragados por este espaodiludo entre a areia e os sis dos Lenis,o espao em que o explosivo queimaentre a genitlia e a cueca do nigerianono avio. Atestamos este espao das palavras que se servem das palavras para falar. Aptridas, no temos por ptria a lngua portuguesa nem outra nos seria natural. Nascemos sem lngua, abertos a qualquer jargo que em ns quisesse se desdobrar, nascemossem povo, abertos a qualquer bando que em ns quisesse se desdobrar, nascemos sem lei, uns bandidos, uns canhotos, uns vndalos, uns lobisomens, uns burros, uns jumentos, umas vacas, umas piranhas, uns veados, umas guas, umas antas, uns porcos,umas mulas, umas bestas, umas baleias, umas cachorras, uns tubares, uns animais, uns ratos, uns bichos, umas bichas, umas feras, uns selvagens, uns fora-da-lei 35MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOabandonados a qualquer lei que nos pudesse governar, abandonados a qualquer lei que tivssemos de desregrar. Sobreviventes, descendemos de uma classede pocas perigosas praticamente esquecidas,exilada da cidade dentro da cidade,e, mesmo que ser, estar, saudade, cidade, oresta, rio, mar, serto, naturezae outras palavras nos digam intimamente respeito,navegamos, aptridas, a abertura, o sem, ono, o nem, o a- que no nos largam. Por mais que no queiram, trazemos conosco os espaos vazios a distorcerem as possibilidades que cotidianamente se oferecem do que ns somos, do que a gua do rio, do mar, da cidade, do pas, do mundo, e, por mais que no queiram,nossa saliva o suor das palavras no ditas,e, por mais que no queiram, misturamos o separado, trazemos conosco a cidade e a natureza ferina, a poesia do dedo que falta na mo do presidente. ESPERA DOS BRBAROSOs brbaros de ontem, quando chegam,falam a mesma lngua que falamos,e, quando no este o caso, h pessoasa traduzi-los para ns e a nos traduzirempara eles, de modo que, ao menos,o passvel de consenso seja comunicado. A pompa para receb-los a mesma, os cerimoniais, se outros, pouco diferem dos de antes, mas, agora, com os jornais noticando tudo, nem preciso o povoesper-los no aeroporto, na praa principalou mesmo no palcio do governo. hbito apenas que cada um folheie, o mais rapidamente, a informao j esquecida pela notcia subsequente: se, antes, era preciso a espera dos brbarospara se saber que no havia mais brbaros,hoje aprendemos a viver sem eles.38ALBERTO PUCHEUA no ser que algum remanescente deles ecloda desgurado, sem rosto,do meio da multido do prprio pas, lanando avies contra arranha-cus, metralhando balas contra escolas ou bombas contra uma praa qualquer.LUIZ CARLOS MARQUES DA SILVAe, apontando com o dedo, ele me falava de um lugar chamado o fundo do poo. um lugar sem lugar, porque, aonde quer que fosse, ofundodopoooesperavasuafrente,eaindaoperseguia.no fundo do poo havia faca, bala, porrada, e o mais que havia, como fome, doena, trapos, era feito nos moldes da falta. quando se livrava aqui de uma delas, era para encontr-la de novo ali, sem demora, espera, mas to s claras que nem emboscada havia. e ele me falava que, no fundo do poo, s havia amizade ao preo de uma guimba de cigarro, de um trago de cachaa, de uma ponta de po mesmo que dormida, fora disso, sem um preo a ser pago, nada de amizade havia, j que a prpria amizade s havia na durao do preo que a pagava, no mais do que isso. era do fundo do poo que ele me falava.eelemefalavaque,nofundodopoo,eraprecisomanter adignidade,manteramenteemseudevidolugar,saberapanhar sem querer revidar, saber dormir onde quer que fosse (chegando a tanto fazer se seria l ou aqui que iria sonhar), aprender a se camu-ardefumaa,asfalto,lixo.e,comseubafodenicotinaetabaco, acrescentando que cada um tem sua cruz, ele, a dele, eu, a minha, 40ALBERTO PUCHEUele me falava que, no fundo do poo, pouco importava a j mnima vontade, mas o nico e exclusivo gesto, o de amar ao ponto de no sesentirincomodadoemterseufundodopoocontrabandeado para esse evento na cobertura em que estvamos, onde iria dormir no cho, ao lado do artista que o trouxe, de frente para o mar, na qual, trazendo-nos o fundo do poo, do qual jamais saa, ele me falava.O AMOReraoamorqueeuacreditavahabitaremmim,mas,como qualquerumquehabitaumapartamento,eleentravaesaade mim,comoumhomementraesaideseuapartamento.oamor nopertenceaumcorpo,comoumhomemnopertenceaum apartamento. por isso, o amor pode sair de um corpo que est, por exemplo, no banheiro fazendo a barba, mergulhar na pia, escorrer pela gua, agarrar-se musculosamente no ralo, escalar a loua contra a enxurrada que cai, pular como um atleta ou feito um felino para o cho, sair deslizando por debaixo da porta do apartamento, descer pela escada ou pelo elevador, esgueirar-se pelas grades do prdio e ganhar as ruas, atravessar o trnsito, continuar passeando pela lagoa, pelas praias, exatamente como faz aquele que o acreditava ter em seu corpo. o amor sabe encontrar a brecha por onde fugir de um corpo, materializar-se a si mesmo fora de qualquer corpo, corporicar-se independentemente de qualquer pessoa. ganhando sua autonomia, ganhando seu prprio corpo, ainda que no muito visvel para os muitos que passam apressados, s, ento, o amor comea por fazer no mais o que, subjugado, queriam que ele zesse quando no corpo 42ALBERTO PUCHEUde um algum qualquer, mas s ento, enquanto um algum, ele se sente apto enm para fazer o que ele mesmo quer, o que ele mesmo pode,esbarrandoporaesporadicamenteempessoasque,quase sem o ver, que quase sem o perceber, subitamente o sentem feito umsopronomeiodarua,semnemmesmosaberemoqueesto sentindo, sem nem mesmo saberem o porqu de estarem sentindo o que no momento, enquanto brisa, esbarra em suas peles, querendo saltar por dentro de seus poros, at, enquanto bala, at, enquanto saraivada de balas, de novo invadi-las. EM OUTRAS PALAVRAShavia se passado oito ou dez anos desde a data em que diziam ele ter nascido, ainda que isso no zesse, ento, qualquer sentido para ele, nem agora, quase quarenta anos depois. ele havia sentido diversas vezes o que s conseguia expressar pela palavra esquisito (e com nenhuma outra), mas, quando se lembra disso, lembra-se de ter dito a palavra sua me na garagem do prdio em que moravam, entre carros, azulejos, um vo central, alumnios e lmpadas uores-centes. no era uma palavra mgica, sua me no entendia o que ele se esforava em dizer. era uma palavra insuciente, equivocada, que no funcionava, que ele sabia no dar minimamente conta do que estava sentindo, da mesma maneira que nenhuma outra serviria a tal m, inclusive as que vieram mais tarde, e ainda vm, carregadas de peso, como ausncia, nada, vazio, angstia, morte... em algum lugar, ele intua a verdade, e ainda hoje a conrma: nenhuma palavra pode expressar isso que, uma vez sentido, no deixou de retornar, imprevisvel e incansavelmente, encontrando-o at no mais o lar-gar, at se tornar seu cotidiano, at se tornar um mais cotidiano que o habitualmente chamado cotidiano, isso para o que nunca houve 44ALBERTO PUCHEUum antes nem um depois, sendo por fora do que se costuma chamar de tempo, isso para o que ele no tem nem nunca teve nem jamais ter nenhum acesso, nenhuma lngua, nenhuma traduo, nenhuma gramtica.diantedaimpossibilidadequelhecomparecia,acatou que a nica sada para ser el partilha do acontecimento era tra-lo, tra-lo amorosamente. a soluo encontrada foi falar por sobre isso, em torno disso, com isso sendo uma espcie de buraco negro para todo o dito, que sofria sua atrao irresistvel. quem sabe um dia, ao menos, um quanto qualquer dessa fora deixaria um vestgio, peque-no que fosse, no dito. ele permaneceu bem ali, no meio, entre uma experincia para a qual no havia palavras e palavras desprovidas de toda e qualquer experincia, entre no dizer nada e falar o que pu-desse, como a memria paradoxal desse esquecimento das palavras que, sabendo de cor, lhe concernia mais que todo o resto. talvez, o melhor que ele conseguisse fazer fosse um murmrio indecifrvel de todas as frases soando juntas, homogeneamente montonas, ao fundo de cada palavra que no quisesse se sobrepor s suas vizinhas. talvez seja isso que ele tenha passado a vida buscando, explico, no exatamente a palavra que dissesse enm o impossvel de ser dito, mas uma tranquilidade qualquer com o inacessvel, um poder estar vontade com a ignorncia do que, nele, sem deixar de ser o mais estranho, sempre foi e o mais ntimo.RASCUNHO EM QUARTO DE HOTELasmarcasdeumavidaqueseexilaempalavras,que,desdeo tempo presente, para ofert-lo ao outro, o abandona, transforman-do-aumavidanumasintaxe,nummurmrio,numresqucio depaisagensmaisoumenosesperadasdeafetosepensamentos cruzados, so nervos expostos, so coraes expostos, uns pedaos do cotidiano expostos, de tal maneira que haja ali (ou talvez por isso tudo seja mesmo melhor dizer logo aqui) a pulso de uma vida diria, de uma alegria diria, de uma melancolia diria, a mensagem de um amigo denominado ou annimo, tanto faz, d no mesmo, a minha mensagem, a de um eu, denominado ou annimo, tanto faz, d no mesmo, para um amigo que me escreveu, uma trepada de um amor denominado ou annimo, tanto faz, d no mesmo, umas palavras erticas ou polticas ou quaisquer que sejam que se mostram fora de sua provenincia, a radicalidade de um esporte que no se sabe a que nvel foi de fato feito, se que foi feito, tudo, enm, est ali, ou talvez por isso mesmo seja logo melhor dizer que tudo enm est aqui, ou talvez que o ali e o aqui no precisam se encontrar, que melhorquenoseencontrem,quemelhorquesemantenham 46ALBERTO PUCHEUirreconciliados, que mantenham sua fresta, seu fosso, sua distncia, para que nenhum dos dois queira se tornar uma condio preponde-rante sobre a outra, para que seus resduos sobrevivam disparatados, para que inclusive voc que me acompanha, para que voc que est aqui comigo agora, possa estar tambm, a um s tempo, como eu posso dizer que estou, aqui e ali, ou em um intervalo qualquer entre o aqui e o ali, mesmo que eu nem saiba muito bem onde seja este aqui e esse ali,IAQUEH dias em que eu gostaria de saltar para uma lngua estrangeira, como quem mergulha na Baa de Halong. Vietnamita, dinamarqus, turco, tupi, tibetano ou mesmo japons. H dias em que eu gostaria de nadar em uma lngua estrangeira como uma orca nas guas ge-ladas da Antrtica. H dias em que eu gostaria de falar de mim em umalnguaestrangeira,emque,detoestranha,eunopudesse antecipar afetos, cores, pensamentos, estradas, amores que ela fosse provocando em mim ao falar at mesmo de mim. H dias em que eu gostaria que falar de mim fosse falar de paisagens estrangeiras em uma lngua jamais ouvida que eu tivesse de falar subitamente pela primeira vez. H dias em que eu gostaria de falar de mim com a sensao de um iaque ao atravessar um despenhadeiro do Hima-laia. H dias em que eu gostaria de no me reconhecer em nada na lngua em que falo.PERFIL PARCIAL DE UM PROCEDIMENTO, ESCRITO POR CAIO MEIRAComoocorrecomfrequncianosnaisdesemana,emesmo entre as teras e quintas, Alberto Pucheu saiu da cidade. Como disse um amigo, ele a nica pessoa que conhecemos que tem dois ns de semana na mesma semana. Dessa vez, ele est de frias e no deveria estar escrevendo, mas, h alguns anos, ento que ele mais escreve poemas. No momento, ele no est, entretanto, escrevendo nada. Nem ensaios. Nem poemas. Ele est de frias. No h motivo para trabalhar durante as frias. A tarde comea a escurecer. Um cachorro late. A primeira estrela aparece diante da varanda. Eu no estou com ele, mas sei que essas coisas esto acontecendo. Quando vier a noite, ele tomar um vinho. No faz muito tempo, saiu da piscina. Tomou banho. Fez a barba. At pensou em escrever, mas mudou de ideia. Dispersou-senatrocadeumaououtrapalavracomalgumque passava. Fez uma pequena caminhada sozinho at o rio prximo. Voltou. Buscou pela memria. Pouco adiantou. No estando com sua carteira de trabalho, no se lembrava exatamente do ano em que deu aulas na Gama Filho. Lembra-se apenas que as duas vezes em que trabalhou nessa universidade acabaram por constituir alguns dos 50ALBERTO PUCHEUpiores momentos de sua vida. Que eu saiba e como seu amigo eu sei muita coisa sobre Alberto Pucheu , houve apenas uma coisa que durante tais perodos foi importante. O trem. O trem foi um marco em sua vida por causa de um pequeno incidente. Na primeira vez em que lecionou (deve ter sido por volta de 1992), ele no tinha carro e seu horrio de trabalho era pela manh e pela noite. No sobrava dinheiro nem mesmo para ele almoar, seno o sanduche preparado em casa por sua mulher da poca. Nos primeiros meses, ele tentou car o dia inteiro na faculdade, nadando e estudando na biblioteca durante o intervalo devastador, mas logo viu ser isso insuportvel para ele. Ele detestava estudar em bibliotecas. Nunca conseguiu ler em mesas. Acabou por preferir as longas horas em nibus e trem, duasvezesaodia.Essaoponoeramelhordoqueaoutra.Na Central, escutava o chamado pelas caixas de som, dizendo a hora exata da partida e a plataforma na qual o veculo se encontrava. Em uma das idas dirias, pegava o trem no horrio de maior pico, repleto depessoas.Conseguirumlugarparasentareraprivilgiocasual. Quase nunca acontecia. Na maior parte das vezes, ele ia mesmo em p. Daquela vez foi diferente. Havia um espao vazio, no qual ele se sentouepdeabrirojornal.Porentreossacolejosebarulhos,as vozes repetidas dos vendedores ambulantes se faziam presentes, de tal maneira que se destacavam com fora dos altos rudos da mqui-na. Sua cabea continuava inclinada, na leitura do jornal. No, no bem isso, no foi bem assim que as coisas se sucederam, ele no estava lendo o jornal e jamais o lia nos trens. Ele estava simplesmente sentado no pequeno espao vago encontrado para se espremer. A verdade que ele lia o jornal que o homem ao lado dele trazia aberto e estava lendo. Ele lia o que dava no tempo de leitura de seu vizinho. Issooajudavaapassarotempo.Otempoqueeleperdianotrem parairtrabalhar.Eleliaojornaleaspalavrasquelianofaziam sentido para ele, mas assim mesmo ele lia as palavras no jornal. Ali 51MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOno trem, indo para o trabalho, isso o parecia distrair. No mais do que isso. Eram palavras que se soltavam da pgina e entravam em sua cabea e saam de sua cabea sem o menor sentido. As frases altas e inndveis dos ambulantes se misturavam com as do jornal, de tal maneira que eram frases tambm sem sentido para ele, eram frases das quais s recebia as palavras que eram ditas, nada mais, s as palavras, no o que com as palavras era vendido. S recebia o peso das palavras. O peso ou a leveza, no faz diferena. No caso, os adjetivos so metafricos, ento, tanto faz um ou outro. Ou seria melhor no ter nenhuma metfora. preciso acabar com as met-foras e at com as imagens. Subitamente, s havia as palavras dos vendedores e do jornal sua volta. Todo o trem parecia se resumir a essas palavras. Foi quando tirou uma caneta e um papel da pasta que carregava com os livros e comeou a reproduzir elmente tais frases, as que lia no jornal e as que escutava no trem. Umas misturadas s outras no tempo real de leitura e escuta. Foi assim que comeou o que depois Alberto Pucheu passou a chamar de arranjos, e eu disse um dia a ele em um bar que com esses arranjos ele inventara algo como um ele lrico. Talvez fosse melhor dizer que ele inventara algo como uns eles lricos. Mas naquele momento no havia esse nome, no havia esse conceito. Havia apenas as palavras lidas e as palavras ouvidaseaspalavrasreproduzidasnaescrita.Aindanotrem,no meio de todo o burburinho, as palavras do jornal perderam o seu interesse. No olhava mais para o que seu vizinho lia. Apenas ouvia o que os ambulantes berravam. Ouvia e anotava. Era o som do trem. Era o som de um tipo de poesia que ele estava ouvindo ali. A cidade agora passava a se dizer pela voz de seus prprios cidados. Quem quiserlerisso,sveroltimopoemadeseuprimeirolivro,na cidadeaberta,de1993.Depois,vocsjsabemoqueaconteceu. Elevoltouaosarranjos,semsaberaindadessenomequedaria, quando o programa do Ratinho chegou televiso. Ele cou ali um 52ALBERTO PUCHEUdia,assistindooprograma,anotandofrasesdispersasditaspelo apresentador e pelas pessoas que participavam daquilo, publicando esse arranjo com o ttulo de Poema para maior audincia do pas, apesar de ningum ter lido o poema, a no ser seus quatro ou cinco amigos mais ntimos. A confuso mesma comeou quando, depois de o m de A vida assim, em que fez arranjos com e-mails que os amigos enviavam para ele, com conversas de chats da Internet e com pedaos de conversas ouvidas de transeuntes, depois mesmo daquele livro louco que ele fez s com arranjos e que, quando pron-to,antesdepublic-lo,envioupore-mailamuitosamigosecom as respostas dos amigos fez o arranjo do posfcio de J que no h cabea nem lugar para o que passa (tudo na vida passatempo), ao qual chamou de A crtica dos arranjos como arranjo da crtica, teve a ideia de usar os e-mails dos amigos mais ntimos justamente os nossos , falando sobre nossas experincias erticas pela noite do Rio,parafazerumarranjoquechamoumaravilhosamentede O livrodehojedoamor.Separaesforamcausadas,nsmesmos, os amigos mais ntimos, brigamos entre ns, e, como resultado, o arranjo foi proibido de ser publicado. Fico pensando o que, passado tanto tempo, as pessoas diriam hoje dele e dos outros que vieram antes e depois, como o que fez com as repostas que obteve quando escreveu para seu catlogo de endereo eletrnico pedindo que as pessoas enviassem as 15 primeiras frases que passassem por suas cabeas,nummomentoemquecrticoscomoMarjoriePerloff eKenethGoldsmith,mesmoelesatrasadosemrelaoaAlberto Pucheu,comeamafalardessesprocedimentosnocriativos,de gnio no original e outros termos interessantes.TRANSCRIO IPSIS LITTERIS DE UMA FALA EM UMA BANCASe eu quisesse ser consequente com todo o trajeto da orientao, eusilenciariaagora.Talvezeuprecisasseenvelhecermaispara conseguir, neste momento, me silenciar por completo. Eu poderia silenciar, mas eu no quero. Eu no quero silenciar porque, muitas vezes,osilncioecoamaisfundoquandoditoempalavras.As palavras esto aqui, minha fala est aqui, para fazer o meu silncio ser ouvido. Quero preservar o que a Aline disse, que voc teve um orientadorqueorientousilenciando.Silenciandocompalavras, tentandosilenciarcompalavras,euacrescentaria.Hmuitos orientadores nesta Banca, h muitos orientadores seus nesta mesa, h muitos orientadores em cada um dos orientadores aqui presen-te, h muitos orientadores em mim, h tantos orientadores em mim quantoonmerodeorientandosquemepedemorientao.Eu no sei orientar, eu s sei orientar orientando. Uma vez, uma orien-tanda ento recente me procurou com uma folha de caderno, toda rabiscadamo,dizendoquetinhaaliosumriointeirodesua tese, mas que no estava conseguindo escrever sequer uma linha. Notivedvidas:tireiopapeldesuamo,rasgueiopapelelhe 54ALBERTO PUCHEUdissequeelapodiairescrever.Poucosmesesdepois,elavoltou com mais de setenta pginas escritas. Cada orientando nos deman-da de um modo singular, ao qual respondemos improvisadamente. Vocsabequevocumorientandosingular,todosaquisabem que voc um orientando singular. Todos, aqui, na Defesa, viram que voc um orientando singular. Voc comeou sua apresenta-o dizendo, afetuosamente, que, de modo geral, eu sou chamado de Pucheu, que voc mesmo me chama de Pucheu, mas que hoje voc queria se dirigir ao Alberto, que hoje voc queria se dirigir a mim de forma mais ntima. Voc estava certo: h pessoas que me chamamdePucheu,houtrasquemechamamdeAlberto,h outras, como o Ricardo aqui ao lado, que, me conhecendo h mais tempo, me chamam de Beto, estou vendo o Fbio ali na ltima -leira, que me chama de Professor, o Domingos, aqui do lado, me chama muitas vezes de Amado, a minha namorada me chama de Bet, de Querido, de Amor e de outros nomes que no vm ao caso. Eu acato todos esses nomes. Neste momento, eu lhe digo que eu falo com esses nomes todos, mas falo tambm com o que h entre um e outro desses nomes. So todos apelidos e eu respondo a todos. Eu respondo a todo e qualquer chamado. Eu respondi ao seu cha-mado, mesmo sabendo que, desta vez, no Doutorado, eu no teria o que fazer; eu respondi ao seu chamado simplesmente para voc poder seguir em frente. Numa resposta ao Domingos, voc, que-rendo ser irnico para sua plateia e para a cmera que lmava tudo, voc,fazendoseushowparaseustantosconvidados,voc,com sua indumentria novinha em folha a se adequar cafonamente com seutema,voc,comoquevoccostumachamardesuaperfor-mance a performance de seu ego monumental , aproveitou para comear a falar de mim, para me colocar no lugar do avaliado, para me julgar, para me atacar, para voc ser a Banca, para, realizando seu desejo, ocupar enm o que voc imagina como sendo o meu 55MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOlugar, tentando me colocar no seu. Nessa primeira vez, voc falou que eu nunca entendi o seu trabalho, que eu cava querendo que seu texto comunicasse enquanto ele era de outra ordem, que eu no alcanava a sua genialidade e, sobretudo, que toda a minha aparente abertura era fechamento, que, de dentro do meu fecha-mento, eu no tinha ouvidos para voc, que eu no estava sua altura. Eu disse que obviamente no iria responder, que iria con-tinuar no meu silncio. Incomodado por ele, na resposta ao Izael, cuja pergunta, mais uma vez, no tinha nada a ver comigo, voc tratou de ironizar de novo, dizendo que voc estava tentando me provocar,masqueeunotinhaaceitadoaprovocao.Fazia partedoseushowcontinuaraprovocao,paraqueseus...Ia dizendo amigos... Para que sua plateia pudesse achar voc cada vez mais ousado, cada vez mais brilhante, cada vez mais genial. E dessa vez voc, do alto de sua avaliao, resolveu ser condes-cendente comigo: fez graa levando o pblico a rir ao lembrar o clich que eu mesmo criei de que em meu nome, no nome que voc tinha usado sob o pretexto da intimidade, no meu primeiro nome, tem aberto, voc brincou com pertinncia dizendo que eu era orientador, mas tambm (se utilizando de novo de outro clich que eu mesmo sempre usei) um desorientador, voc disse que foi me procurar porque eu era poeta e terico ao mesmo tempo, voc lembrouqueeununcaentendiporquevocquisserorientado por mim e no pelo Izael ou pelo Ricardo, seus verdadeiros mes-tres,comovocmesmooschamou,um,seuPaideSantoda academia, o outro, o maior gnio que voc j teria conhecido. A mim, me coube um lugar de que gostei: o de irmo de santo. No sei se lhe disse isso em outra ocasio eu tambm j passei pelo terreiro,jpasseipelozen,jpasseipeloDaime,jpasseipor muita coisa, at descobrir que meu caminho era mesmo a poesia, a escrita e o que viesse dela. Talvez tenha sido impulsionado pelo 56ALBERTO PUCHEUterreiro, e por outras foras, que um dia, h muito tempo, escrevi umpoema,onicoqueseidecor,apesardeelenopoderser colocado nem de perto entre os de que mais gosto entre os meus poemas; mas agora, aqui, com voc, por motivos bvios, dele que me lembro, ele tem a peculiaridade de ser o nico que sei de cor: Com a licena de todos os santos/ e a de meu pai Oxal/ pego na encruzilhada um prato de comida/ A fome grande/ e pela minha boca que comem os deuses. Me lembro ainda que, na prpria Tese, vocseutilizoudeumaconversanossa,reproduzindoumafala minhanacaricaturadeumCientista,obviamente,aserevitado. Eu gostaria de lhe dizer agora, eu incorporo para voc todos esses nomes, os que voc me atribuiu e outros: eu sou o Pucheu, eu sou o Alberto, eu sou o Professor, eu sou o Orientador, eu sou o Deso-rientador, eu sou O Que Nunca Entendeu O Seu Trabalho, eu sou O Que Queria Que Seu Texto Comunicasse, eu sou O Poeta E Te-rico Ao Mesmo Tempo, eu sou O Cientista, eu sou O Que No Al-canoASuaGenialidade,eusouOFechado,eusouOIrmode Santo,eusouOQueNo TemOuvidosPara Voc,eusouOQue NoEstSuaAltura,eusouOAberto...Euaceitotodosesses nomes que voc usou, querendo colar uns talvez mais do que outros em mim, mas, com maior ou menor sarcasmo, me colando, para-doxalmente,todos.Paravoc,eusoumesmoumparadoxo,eu entendoisso.Dedentrodaaberturaquemecabe,dedentroda abertura e do fechamento que me cabem, eu lhe digo que, neste momento,estouprontoparaincorporartambmoutrosnomes que voc no mencionou, que voc no mencionou porque voc noteveacoragemdeiratom.Parapessoascomonseu incluo voc nessa , para pessoas como ns, poesia e vida so uma coisa s. Eu tenho de lhe dizer que aquela vez em que voc, bei-rando o desespero, beirando a loucura, me telefonou, eu tenho de lhedizerque,diantedesuasplica,porcausadasuasplica, 57MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOaquelavezfoiumadaspoucasvezesemminhavidaqueexerci conscientemente a funo paterna. Incorporei naquele momento o que sua splica demandava. No se recusa uma splica, sei dis-so.Tambmporisso,voupegarentomaisumnome,maisum apelido, vou pedir licena ao Izael para pegar um pouco do Pai (de Santo) que voc lhe atribuiu, vou pegar s um pouco, a parte que me cabe, a parte de que voc me incumbiu, a parte que eu exerci. Aparteque,porsuademanda,euexercimuitopontualmente, apenas para explicitamente devolv-lo sua Me de Santo. Que ela cuidasse,aoseujeito,aojeitodevocs,doqueeu,emdvidas, vislumbrava como um surto psictico. Aproveitando uma palavra que voc usou muitas vezes hoje aqui para mostrar sua plateia como voc se sente vontade falando palavres na academia, eu gostaria de pegar a palavra puta. E peo licena sua me, sentada aqui na frente, para, neste momento, dizer a voc o que sou neste exato momento de Defesa da sua Tese: Eu sou a puta que o pariu. Vou tentar ser mais preciso: Eu sou o puto que o pariu. E, sendo o putoqueopariu,eulhedigoqueeusouolhodaputa.Aqui, agora, neste exato momento, apenas neste exato momento, pedin-do desta vez licena e mesmo desculpas sua me, eu incorporo o lho da puta do puto que o pariu que voc precisa mandar para a puta que o pariu. Se isso, para voc, necessrio, se essa para voc uma sada, de dentro de minha abertura, de dentro de minha aberturaedemeufechamento,dedentrodolimitequenomo-mento consigo alcanar, eu estou pronto, eu repito: Eu sou o lho da puta do puto que o pariu que voc ainda precisa mandar para a puta que o pariu. Cometa o parricdio de que voc precisa para ir embora. Cometa de maneira mais grave, mais responsvel, mais solitariamente (voc mal comeou), cometa, sobretudo, at o m. Mas no cometa apenas o crime da parte que me cabe. Mate com licena, Izael, eu vou usar a palavra no mesmo sentido em que a 58ALBERTO PUCHEUusei para mim , mate o lho da puta do Izael, mate com licena, Ricardo,euvouusarapalavranomesmosentidoemqueausei para mim , mate o lho da puta do Ricardo, mate todo e qualquer lhodaputaquesecolocarnesselugarouquevoc,comoest fazendo de novo comigo, o colocar nesse lugar. S ento... S, en-to... S ento... Vou ter de citar o livro para voc mais importante... S, ento, quando no houver mais aquele lugar, voc vai entender que no existe o Diabo, nem cmeras fotogrcas, nem cmera de lmagem, nem plateia, nem performance, nem teatro, nem palmas, nemessaindumentriaforadecontexto,nemPaideSanto.S, ento, voc vai entender que tudo que existe, agora, aqui, vida, quetudoqueexistetravessia.S,ento,vocvaientenderque tudo que existe irmo. Quando entender isso, voc poder voltar, mas apenas quando entender isso. Eu te dou o passe, voc pode ir. K. Pelomenosaprincpio,certoqueeraeleenoseucolega deescritrioquem,noimportavaaondefosse,estavasempre em uma priso. Todo o tempo, ele trazia as grades dentro de si, di-zendo ser a nossa poca a em que os animais so mais prximos de ns do que os seres humanos. Ento, no era apenas ele que, no importavaaondefosse,carregavasempreumapriso,mastodos oshomensaomenostodosdenossotempoviviamatrsdas grades que traziam dentro de si e ansiavam pelo animal como quem espera pela liberdade de uma vida natural, sem saber que, para ns, a nica vida possvel mesmo a humana, justamente essa que nos pesamais,connadaemumescritrio,possudaporregulaes, prescries,protocolosediretivas.Oescritrioeraumamaneira erguida pelo homem para ele parecer superior a si mesmo, ainda que, com o escritrio fora e dentro de si, cada um tenha se tornado mais solitrio e infeliz, mais cansado e vazio; descobriram ao m que se tratava de uma construo criada pelos homens para, respaldados por uma instituio minimamente convel aos que quisessem ser simultaneamente acusadores e acusados, se autocaluniarem, para 60ALBERTO PUCHEUprovarem a si mesmos sua fraqueza, para mostrarem a si mesmos como se tornar o que h de menor na vastido animal. Como contra-ponto, no bastava para ele ser poeta, esse ser que, sem defesas para o mundo, sentindo o peso da existncia terrena mais intensamente do que os outros e provando sua corrupo, sabe que, em busca de uma sada, seu poema no passa de um grito. Enquanto no fosse afetado pela doena, ao menos ao m do expediente, nas poucas horas que lhe restassem, jogaria tnis, nadaria, faria jardinagem ou aulas de carpintaria, sonhando ser um dia arteso ou campons na Palestina. De que vale, entretanto, um sonho para um insone contumaz? De que vale, entretanto, um sonho para quem est sempre queimando de frio? De que vale, entretanto, um sonho para quem, nascido velho, tem a certeza de que ele fruto de uma juventude que nunca existiu? De que vale, entretanto, um sonho para quem a nica fuga possvel emdireorealidade?Sonhossosterrveis:mantendo-nos acordados pelo perigo, no importa aonde vamos, no nos deixam sair de casa, obrigando-nos a, desabrigados, suport-la.ARRANJO PARA TORNAR O MUNDO CADA DIA PIOR E MAIS VIOLENTO, IIComo que eles esto passando para a imprensa? Eles cam de frente pra polcia, esperando a reao. Eu tenho um vdeo aqui, ! Isso aqui, o que eles zeram com a gente, com os policiais militares. mijo o que jogam em cima da gente, cospem na nossa cara. Ns somos tambm cidados. Ns somos. Estamos para dar segurana atodosvocs,inclusiveparaaimprensa.Ensnoestamosten-doapoio.Nsestamoscompoliciaisferidos,masessesdireitos humanosnoprapolcia.Noprapolcia.Essafardaaqui, nssomospoliciaismilitares,esomoscidados,somoseleitores tambm.Somos.SeaPMnoestiverali,anarquia.Etodostm que ter responsabilidade. Todos ns. Todos. No brinca com o que est acontecendo no. Porque ningum sabe o que est por detrs. Ningum sabe. Ento a responsabilidade da mdia muito grande. Muito. E temos que ter muito cuidado. Depois no vai ter: chama apolcia.Perdemosocontrole.Entovamosrepensartambma mdia.Oqueestacontecendoumjogovirtual. Virtual,eest todomundoaperdido,nsnoestamosperdido,no.Como que a polcia vai poder controlar uma turba sem munio letal? As 62ALBERTO PUCHEUorganizaes tm que nos dizer o que que ns vamos usar, eu no posso botar a minha cara. No posso. Tm que dizer. As pessoas tm que ir frente da televiso e falar. Eu, na minha prosso de 33 anos, eu coloco as cartas na mesa. Eu boto. isso aqui que ns temos que fazer. Eu comando 45 mil homens e mulheres. PM boa ou ruim, a que vocs precisam. Que est na rua 24 horas. No tem outra. No tem outra instituio. No tem. essa a que vocs tm. Que a nossa sociedade tem, para dar segurana, de qualquer jeito. Ento, vamos repensar. O que aconteceu ontem... A diculdade para voltarmos a atuar, voltarmos a atuar. De uma coisa ns temos certeza: o que foi pactuado com a Secretaria de Direitos Humanos, a OAB e a Anistia Internacional no deu certo. Ento ns, hoje, j vamos sentar para reavaliar. O que foi pactuado ns temos certeza que no deu certo. O gs lacrimognio, que todo mundo reclama, o menos letal. Ele vai dar um desconforto, mas vamos dispersar, o gs pra dispersar. Mas as pessoas falaram para no usar o gs. Ento, nessa ao, fomos prejudicados. Ns vamos reavaliar. Esse pacto, que foi pactuado, no deu certo. Hoje, ns vamos ter que negociar virtualmente, mas no sei com quem. Quando voc no tem o lder, voc no tem dilogo com nenhuma pessoa. Ns tambm sabemos que a prpria mdia est descaracterizada, est descaracterizada. Teve uma manifestao em que ns praticamente salvamos uma reprter da Record, salva-mos a vida dela, ia ser linchada, ns tiramos ela do movimento. Hoje, voc sabe quem o policial militar, no sabe? Eu estou identicado, mas a prpria mdia no est identicada. novo. Ento, esse novo, todos ns temos de aprender. No s a polcia. A nossa gerao, a nossa gerao, no pegou a ditadura, ns no pegamos a ditadura. Essa PM que est hoje est totalmente aprendendo, tambm, junto comaprpriamdia.Comonsvamosnegociarvirtualmentee comquem?Euvoulheperguntar:comoasenhoravainegociar, conversar virtualmente? Se eu falei que ns no sabemos o que est 63MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOpordetrs...Nsestamostrabalhando,juntocomapolciacivil, nstemosqueidenticar.Atosjornalistas,osjornalistasuma polcia, os jornalistas fazem um trabalho de investigao, policial, no fazem? Ajudam. s vezes, sabem mais, sabem primeiro que a prpria polcia. E tm de nos ajudar tambm. Ns tivemos a Copa das Confederaes e todos que foram ao Maracan no perceberam o que estava ocorrendo nas ruas. S sabiam o que estava ocorrendo quando chegavam em casa e ligavam a televiso. E eu tenho certeza que vamos ter um evento com paz e em total segurana. Vocs podem ter certeza. A gente t trabalhando pra isso.P.S.-EstearranjoatranscrioliteraldafaladoCoronelErir Ribeiro Costa Filho na reunio da cpula da Segurana Pblica do EstadodoRiodeJaneiro,convocadapeloGovernadorSrgioCa-bral, no dia 18 de julho de 2013, no Palcio da Guanabara, sobre as manifestaes populares. Ele foi postado no Facebook na respectiva data, depois de ter assistido ao pronunciamento.P.S.2 No dia 6 de agosto do mesmo ano, o Coronel Erir Ribeiro CostaFilhofoiexoneradodeseucargodecomandante-geralda Polcia Militar.O TESTEMUNHO DA MENINADA BONECA DE KAFKAQuando agora sou, ento, uma anci, morando na oresta em que resolvi passar meus ltimos anos, depois de ter silenciado sobre o mais importante, ao menos, sobre o mais importante em minha vida, depois de ter, de alguma maneira, fugido do mais importante, aomenos,domaisimportantedeminhavida,posso,nalmente, atando os extremos, falar: a menina da boneca de Kafka envelheceu, mas tem sade para dar seu testemunho, para fazer, ainda, seu testa-mento. Lembro-me pouco, quase nada, do episdio com o casal do parque de Steglitz. A princpio, fora a moa mais tarde me dei conta de quo jovem ela era em relao ao seu companheiro quem, por seu rosto enigmtico, me chamou mais ateno; mas foi ele quem, atencioso,logomedirigiuapalavra,querendosaberporqueeu, desesperada, chorava tanto. Se ela chamara primeiramente minha ateno,assimqueelepronunciouaspalavrasparameacalmar, de to terno era seu modo de falar e olhar, o mundo parecia ter seu desespero diminudo por conta da boneca que eu, com no mais do que cinco anos, havia perdido. A partir da, me recordo to somente dele, ou melhor, nem sei se dele, mas de sua voz dizendo que eu no 66ALBERTO PUCHEUperdera a boneca, mas que ela, por vontade prpria, apesar de me amarmuito,haviafeitoumaviagem,endereando-lheumacarta para que ele a entregasse a mim to logo conseguisse me encontrar. Comadouradequemguardaumaverdadesecreta,eleinsistia queelaviajaraporquerersairdecasa,irparalugaresque,sem mim, ela quisesse ir, conhecer outras pessoas, ser amiga de outras bonecas, frequentar uma escola, ter namorados, casar, trabalhar e levar uma vida diferente da que at ento havia sido a sua, como, certamente,medisseele,aconteceriatambmcomigonofuturo. Claro que ele no estava com a carta em mos, mas, depois de ter me dito que me entregaria no dia seguinte a carta da boneca que eu achava que perdera, aquele homem bem vestido e de aparncia umtantofrgil,disfarandoumarespiraoofeganteeumavoz enrouquecida,foiembora,deixando-meesperanosaepensativa no parque, at que eu pudesse retornar mais confortada para casa. No dia seguinte, ele estava l, com a carta, e no seguinte do seguinte, com outra carta, e no seguinte do seguinte do seguinte, com mais uma.Portrssemanas,semprenahoramarcada,semjamaister tido um pequeno atraso que fosse, ele esteve diariamente comigo no parque de Steglitz, lendo, a cada dia, para mim, sem conseguir disfararumacomooemsuavoz,umanovacartaque,semeu saber, ele prprio escrevera na noite anterior em nome da boneca, inventando para ela, ou melhor, inventando para mim, uma histria que me animasse, uma histria que me acalmasse, uma histria que me preparasse para uma separao menos dolorida da boneca que eu amava. O que sempre mais me impressionou nas cartas era como, a cada uma delas, ele assegurava o amor da boneca que se chamava Marion por mim e, aos poucos, distanciava-a de mim sem que eu mesma percebesse o afastamento gradativo, como se, aos poucos, elesubstitusseabonecapelascartasenviadas,semsubstituirde modo algum o amor, que permanecia igual. Com elas, eu aprendi 67MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOa preservar o amor em mim mesmo nos vrios momentos em que ele parecia se ausentar, mas, no, ele no se ausentava, ele estava ali, naquelas cartas que, durante dcadas, guardei em um estojo de carvalho. Elas foram a maior lio de amor que eu recebi, e, primeiro em sua presena e, depois, em sua ausncia, elas me acompanharam toda a vida, transformando-me, e ainda hoje as guardo aqui dentro de mim como o que de mais ntimo e de mais estranho certamente, o de mais maravilhoso jamais me aconteceu. Dcadas depois do encontro, quando eu estava em minha meia idade, soube que um homem frequentava diariamente o parque e tocava a campainha dos apartamentos ao redor dele tentando encontrar a outrora menina que havia recebido as cartas daquele que se revelara o maior escritor do sculo XX. No dia em que li um anncio no jornal pelo qual se procurava a tal menina com suas cartas, tomei a nica deciso que me cabia: fugir, antes de ser encontrada, antes, talvez, que eu mesma me revelasse. No que de mais fundo me concernia, aquelas cartas no deveriam ganhar notoriedade: elas surgiram de um dos encontros mais inesperados entre annimos, no parque de Steglitz. Torn-las pblicas seria trair o gesto mais expressivo daquele homem, trair o que, naqueles dias, ele me ensinou: o amor que um desconhecido pode sentir por outro desconhecido qualquer, dedicando-se incan-savelmente a ele, simplesmente para diminuir-lhe a dor.ANOTAES DE TURISMO E LAZERondeseencontraplatohojetnhamosaproveitadopara passar uns dias de frias em um dos lugares mais bonitos do brasil, que, como qualquer um sabe, se insere nessas rotas dos mais mais detodoomundo.dooutroladodafronteira,umturismooposto ao da exuberncia da natureza, com o prosaico das compras mais baratasdenossotempo,acabamesmoporserconvidativono apenasparaotrabalhodossacoleiros.ciudaddeleste:nopouco que conhecemos, um excessivo cameldromo, repleto de homens, depois da ponte aduaneira, ao qual chegamos dentro de um nibus de linha e do qual samos na garupa dos motoboys. ao comprar um tnisnikeparapresenteemumadasinmerasbarracasderua, diante da completa semelhana entre o original e a cpia nossa frente, a pergunta inevitvel dirigida ao vendedor: fala a verdade, meuamigo,falsicado,no?aresposta,dignadeumlsofo paraguaio,foiimediata:nadaverdadeironoparaguai,minha senhora, no paraguai no h original, no paraguai tudo falso, tudo.70ALBERTO PUCHEUpr-socrtica(ou:nalinhagememquecaymmitambmse insere)trezentosesessentaecincopraias,itacartem.coma peculiaridade de que, com 50 passos, vamos de uma ponta a outra cruzando toda a extenso de sua areia, havaizinho, uma das muitas paradisacas. quando fui comprar cerveja com a baiana sentada por ali na sombra com seu isopor gelado, perguntei a ela qual era a praia mais bonita de itacar, ao que, pausadamente, me respondeu: eu ainda no parei pra pensar nisso no, u, todas so lindas. do gesto contemporneo do negar e armar ao m de seu show, aps longos aplausos, branford marsalis retorna ao palco. pensando alto, pergunta-se (e, em decorrncia, banda e ao pblico): o que iremos tocar? da plateia, algum sugere em alto e bom som: giant steps! como quem no tem de provar mais nada a ningum, branford marsalis, rindo, no titubeia: giant steps no, eu j me formei na es-cola h muito tempo. e toca uma msica inteiramente desconhecida do pblico. terminando-a, sem largar seu instrumento, com toda tran-quilidade e como se nada antes tivesse acontecido, vira imediatamente para banda e avisa a prxima a ser tocada: giant steps.e por falar nele... da boca de rashid ali, o baterista que tocou comelenosltimosanos(consegue-selexplicaroque,nesse caso, isso quer dizer), ouvi que coltrane estava sempre tocando. no camarim, habitual um msico se aquecer antes de entrar em cena, mas, nessas horas, disse rashid ali, coltrane no se aquecia como um msico: aquecia-se como um boxeador antes de entrar no ringue. eletocava,esuava,etocava,esuava,etocavae,quandoentrava com a banda no palco ou quando entrava nele apenas com rashid ali para os duos improvisados de bateria e sax gritantes , suava do aquecimento realizado. o que mais impressionava rashid ali era que a intensidade do aquecimento no camarim ou na coxia ou mesmo, 71MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOcomo tantas vezes visto, do treino em sua prpria casa, em nada se distinguia do que viria no palco. onde quer que estivesse, mesmo no banheiro pblico de uma rodoviria de interior, coltrane, con-tinuou rashid ali, sempre procurando tirar o mximo da msica, a pressionava incessantemente para fora de seu limite.williamsburg bridge sim, esses moos estavam noite a noite empurrando a msica para mais longe, trabalhando para explodi-la, para lev-la a seu fora, onde ela ento mais msica. no apenas pelo prato de comida e pelo pouco dinheiro tocavam muitas vezes em dois lugares distintos, varando a madrugada com seus instrumentos. podemos imaginar o que deve ter sido para billie holiday ser obrigada pela justia a parar de se apresentar na cidade por causa do uso das drogas ou a monk, proibido de tocar em pblico por seis anos por no ter deposto contra o amigo bud powell, com quem estava quando este fora agrado no carro pela polcia. mas no foi a polcia nem a justia que fez sonny rollins parar de tocar para plateias por um bom tempo: ele simplesmente no estava encontrando o que, em algum lugar distante, ao menos enquanto um vago eco, ouvia, e tocar para os outros perdia ento todo o sentido. melhor ir sozinho, como um annimo acompanhado apenas pelo vento que saa de seu saxofone nacaladadanoite,paraapontewilliamsburg,nolowereastside de manhattan. ningum sabe ao certo quanto durou seu confronto comomonstro,porque,nessasocasies,otemponomedido, mas, quando ele voltou da ponte para os bares enfumaados, todos puderam escutar o que jamais haviam ouvido. anotao de turismo e lazer viajo melhor (quase) parado.on the road Inevitvel pensar que h coisas na vida que, em algum momento, poderamos ter feito e no zemos. Se as tivsse-72ALBERTO PUCHEUmos feito, entretanto, seria outra vida, no a nossa, a que vivemos. Visto desde o presente em que estamos, o passado no teria de ser mudado em direo a um futuro (que o consertasse) a ser vivido ou, ao menos, desejvel, mas tragado por um impossvel de ser vivido, por um irrealizvel, ao qual pertencemos a cada momento.consideraes sobre as biograas no autorizo de modo algum que algum usurpador em mim escreva minha autobiograa. quem quiser que faa minha autobriograa sem autorizao prvia. s no me diga depois que minha. tudo de que algum em mim pode se apropriar em mim no me interessa. s me interessa o que algum em mim pode escrever para me livrar de mim. se for para defender minha privacidade, no abro jamais a boca, porque vivo traindo o que nem sei de mim em mim, e tudo que falo de mim me torna, na fala,pblico,passveldeserumaautobiograajfeitaporalgum usurpador de mim.entre rocha e lama um dia, quando subamos as montanhas do vale do socavo, pouco antes de chegar ao cume, uma voz amiga me disse: se a gente morrer por aqui, no vo encontrar nem a alma.na contramo desculpem-me os tradutores (a quem sempre agradeo), mas mais difcil traduzir um poema para a lngua em que ele foi escrito do que para uma outra, estrangeira.mplp tanto agora como desde a primeira vez, o movimento de passe livre da poesia se confunde com o de seu impasse livre. [ou reescrevendo Aristteles: tanto agora como desde a primeira vez, o movimento de passe livre entre poesia e losoa se confunde com o de seu impasse livre].73MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOde gatos e poemas Um poema no acaba claro quando o poeta quer que ele acabe. Um poema no acaba nem mesmo quando ele prprio d o famoso clique. Um poema s acaba quando, lanado em algum lugar em cima da cama, por exemplo , um gato vai ines-peradamente deitar-se em cima dele, passando-lhe seu calor. Um poema precisa desse calor, sem o qu no um poema, ao menos, um poema dos que gosto.dePlato,pltanosemusasQuandoresolvipassaramaior parte do tempo na casinha do meio do Vale do Socavo, o primeiro livro que escolhi (re)ler foi o do Digenes de Larcio. Nele, descobri que,quandoPlatofezaAcademia,criouoJardimdasMusas.O que claro nos dilogos loscos ca ainda mais claro com esse gesto: a losoa, sob a inspirao das Musas. Denominei o jardim em frente casinha de Jardim das Musas e plantei 4 cerejeiras or-74ALBERTO PUCHEUnamentais nele. Depois de, na recente viagem a Portugal, ter visto vrios pltanos, me lembrei que um dos dilogos de Plato passado sob a sombra de um grande pltano. Claro que, ento, me dei conta de que a etimologia do nome de Plato a mesma da do nome da rvore,comoumdosmodosdePlato,comseuhumorhabitual, se colocar e se esconder no dilogo. Pois bem, ontem, comprei um Pltano,paraestenderoJardimdasMusas.Platoagorasetorna uma das Musas, alis, como sempre foi.POEMAS ESCRITOS NO MEIODO VALE DO SOCAVOI bem verdade que continuo ainda fazendo livros,mas, hoje, minha arte,minha vida, habitar um lugar,tornando-me mais um poucopedra, rvore, montanha, oresta,tornando-me verde e tambm azul,sol e neblina espessa, ar, noite,estrelas, os desenhos das constelaese os espaos que os apagam, o olhar de algum animal silvestreque subitamente me olhano me deixando saber o que v,tornando-me oco, cavo, vo,por onde as guas correm.E para, na medida do possvel, ser sincero, lhes digo que mesmo a gua, que corre, no mais do que um nome ainda necessriopara nos manter aqui, juntos.76ALBERTO PUCHEUII - TRADUO LIVRE DE UM FRAGMENTO RECM-DESCOBERTO NO VALE DO SOCAVO DO PROMIO DA COSMOGONIA DE LINOHouve um tempo em que todas as coisas cresciam juntas.Esse tempo gerou outro tempo e mais outro e outrosque geraram o tempo de agora. E o agora ainda traz o tempo em que todas as coisas cresciam juntas. E o agora ainda este tempo em que todas as coisas, bem antes de serem coisas, crescem juntas, confusas, sem nomes, sem nada seno o crescer latejante do ainda nem coisa, do menos que coisa, do que nem coisa ,do minimamente esbovel do que vir a sercoisa, de seu logo que vindo, de seu depoisdo nada e de seu antes de coisa, quase a pura matria em movimento perturbado,mas que cresce, esperando somente o instante oportuno de ganhar seus contornos, seus brilhos, seus nomes, de ganhar tudo o que coisa e que, por ser coisa, mostra que, antes, j era coisa invisvel, latente, crescente, ideia talvez da coisa,coisa em um tempo em que todas as coisas cresciam juntas, e que, juntas, agora, ainda crescem, e subitamente surgem, com feies de ar, plantas, gua, terra, animais, fogo, o curso do sol, o movimento da lua [...]P.S. - Esses autores ignoram que os feitos por eles atribudos aos brbaros [os do comeo da losoa] pertencem aos helenos, com os quais no somente a losoa mas a prpria raa humana comeou 77MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOpor exemplo, os atenienses reivindicam para a sua cidade a condio de ptria de Musaios, e os tebanos fazem o mesmo em relao a Linos. Dizia-se que Musaios, lho de umolpos, foi o primeiro a compor uma Teogonia e uma Esfera, e sustentou que todas as coisas procediam da unidade e revertiam a ela. [...] Dizia-se que Linos era lho de Hermes e da Musa Urania, e que teria composto um poema sobre a cosmogonia, o curso do sol e da lua e a gnese dos animais e das plantas; o incio desse poema o seguinte: Houve um tempo em que todas as coisas cresciam juntas. [...] Assim comeou a losoa com os helenos [...]. Digenes Lartios, Vidas e doutrinas dos lsofos ilustres.78ALBERTO PUCHEUIII - FROM GAGARINS POINT OF VIEW(da tica contempornea)Dizem que a Terra redonda, solta no espao,e que no h outra terra em que a Terra,planando, suspensa, possa enm se apoiar.As fotos o comprovam. Suas patas ursdeas,ou talvez felinas, ou ainda hipopotamdeasgalopando sem peso afundadas no espaoem que boiam, ou quem sabe paquidrmicas, como mais me parecem, no tocam nenhum solo, mas isso as imagens s nos mostram em parte, justamente a parte provada pela loucura dos primeiros astronautas quando voltaram da lua ou de onde quer que tenham ido. Dizemque o sangue que corre em meu corpo em nosso corpo feito de estrelas e o que nele no vermelho nem de estrelas vem do mar, como se fosse o mar, desde sempre (e por isso pudemos existir), um rio a desaguar em ns, como se fssemos uma foz, um delta, em que as guas salgadas e doces se misturam indecididamente, entre hemoglobinas e mar, entre hemcias e estrelas,isso (que, de algum modo, foi pensado h muitopelos poetas) tambm provado pela cincia e aprovado agora pelo poema. Talvez, com isso, talvez por isso, tudo por aqui e por a e por onde seja uido bem verdade que nem sempre conseguimos acompanhar o que no para e desejamos, nessas horas, dar um forward 79MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOou um rewind qualquer em nossas vidas, no desejo insano de que o vento, que tambm chamei de gua, retorne ou avance indo contra o movimento do que podemos chamar de seu prprio tempo, isso talvez porque, apesar de tudo, muitas vezes, no conseguimos, como a Terra que somos e da qual dependemos, com asas de gavio, utuar sobre o vazio, tendo ainda de aprender no a nossa tica, demasiadamente humana, mas aquela anterior ao homem, pr-humana, inumana e, agora, constituindo-nos, por no a sabermos, ps-humana: a da Terra, a do mar, a das estrelas,a desses e outros elementos que nos so estranhos e compem, desde antes de sermos, o que somos.80ALBERTO PUCHEUIV - SHORT TIMEO rio que passa ao longo da casa escondidaprecisar de uma tempestade atrs de outrapara alargar minimamente o leito por onde corre,no certo que o leito por onde as guas correm conseguir se estender por alguns milmetros impondo-se sobre a gua, no certo tampoucoque, de um dia para o seguinte, seja possvel detectar a medida exatadas alteraes da velocidade das guas que correm,o rio no ir recobrir, enquanto mar, esta montanha, os animais desta montanha no pastaro com golnhosno oceano nem os peixes do fundo do mar iro preferir o exlio na montanha em que me encontro,esta montanha no crescer mais, se for o caso, que poucos centmetros ou quem sabe at perder um nmo de seu tamanho afastando-se imperceptivelmente do cu, as estrelas e as constelaes continuaro emitindo suas luzes,os espaos entre elas, a descansar nossas vistas,permanecero praticamente os mesmos,ns as continuaremos chamando por nomes parecidose silenciando o que delas no sabemos nem saberemos dizer, ao contrrio do repetidamente espalhado,ao contrrio do imaginrio de alguns artistasem busca de uma soluo, qualquer que seja, nal,o mundo no ir acabar nem comear de novo do zero, nenhum planeta trombar na Terra, aniquilando-a,nem seres aliengenas iro se apoderar dela (e de ns),se verdade que, como disse o cego de Quios, a vida humana uma folha ao vento, se verdade que tal frase seja mesmo indestrutvel, se verdade que a juventude e a vida no duram mais que um dia, no duram mais que um instante, igualmente verdade que muito pouco do mundo se transformar enquanto ns vivermos.82ALBERTO PUCHEUV - DIPO E O ENIGMAV.1Sim, Borges, certo que sejamosdipo: um dia tudo se revela nossa frente e toda vida mostra-seem um instante o que jamais pensamosser. O que ramos j no somos, somoso que jamais imaginamos ser.O ntimo se torna estranho, o estranhose torna o em que nos transformamos, juntoso que seremos e o que temos sidonos aniquila e s nos resta o exlio.Nunca houve nenhum enigma, Borges,a decifrar, mas sempre o mesmo enigma,o de sermos a esnge que tentamos,incautos, sem proveito, assassinar.V.2Quando chegamos ao redor do rei,em torno do palcio, j estavamos velhos apoiados nas bengalas,os adultos em p, ainda fortes,e as crianas engatinhavam, frgeis.Somos o corpo oculto do ido enigma,seu lado inesperado que colidecom qualquer das escolhas que fazemos?Neste momento de tamanha dor,com o cheiro do incenso que atordoanossos sentidos atordoada Tebas ,nenhum de ns se adapta aos sons sofridos83MAIS COTIDIANO QUE O COTIDIANOque aqui se escuta: gritos, ladainhas,murmrios e o tambor no coraobatendo forte, tenso, com o ritmoda peste, que, perversamente, mata.Juntamo-nos em uma voz ao coro:dipo! dipo! Assim clamamosem splica ao primeiro dos mortais,ao melhor, ao mais sbio e poderoso,a quem anteriormente nos salvarasendo por toda a urbe eleito heri civilizante, doador da paz.dipo! dipo! Por que no saisdo palcio? Teria sido em voque te tornamos rei? Ser que nodecifrastes o enigma da mulher-leoa, natureza animalescacom cantos insoluvelmente fnebres?dipo! dipo! Teria sidotudo engano, iluso? Teria sidotudo intil? O abismo em que a empurrastesest dentro de ti? Ser a esnge,ainda, a sombra que se abate sobreti e sobre os tebanos, invencvel?Haver jeito ainda de salvar-nosou, aqui, o teu infortnio esttraado, como o nosso, no havendomais sada, saber, poder, primeiro,qualquer vitria sobre a natureza?J no faltam orculos e enigmasa Tebas temos de aprender com eles.E se ns todos formos simplesmenteos que nunca sabemos o que somos? PONTO CEGO(DA FORA E DA FRAQUEZA DE NOSSO TEMPO) Quem somos? perguntam aos poemasem busca de uma resposta que complete a pergunta, sobrepondo uma, sem faltanem excesso, outra.Mas os poemas repetidamente respondem que somos aquilo em que nos perdemosao buscarmos encontrar o que acreditamos ser.Se insistirem, portanto, em perguntar aos poemasde buscas, encontros, crenas... se insistirem, portanto, em saber a voz dos poemas, saibam que, de diferentes modos, eles s dizem 86ALBERTO PUCHEUo que no se busca nem se encontra,a perdio, o m das crenas,o que no se oferece a nenhuma frase,nem mesmo mais a nenhum verso.H um ponto cego nos poemas,como h um ponto cego na vida,no visto por mim nem por voc nem por ningum, desde o qual eles so o que so, um ponto cegoque somente os poemas talvez nem sei vejam. Se insistirem, portanto, no trato com os poemas,se de fato quiserem permanecer com eles, sejam, ainda que os ltimos afeitos a tal empenho, fortes,porque quase todos os outros sinal dos tempos os abandonaram.FECHE OS OLHOS E LEIANo h nenhum Virglio a me guiarno inferno nem nenhuma Beatriz,movida por amor, a me salvarno Paraso: em meu caminho, estousozinho. No lugar que no tem sombrassem sol nem sol sem sombras, no lugar,em baixo, sinto o asfalto, em cima, o cu,no meio estou e nem sei mais se estou.De to pequeno, sou ainda menosque nada. Nada sou. Ou um qualquersem nome, musa, deus, inferno ou guia.Ou um qualquer, no meio do