lutas populares da população negra no pr - séc xix

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45 Lutas, Resistências e Estratégias da Territorialização Negra no Paraná Cassius Marcelus Cruz Jefferson de Oliveira Salles Introdução O conjunto de textos e fontes a seguir foi selecionado com a intenção de subsidiar a abordagem da temática de Lutas e Resistências dos Negros no Paraná. Tal seleção tem por finalidade contribuir para vizualizar a variedade de estratégias adotadas por escravizados, libertos e seus descendentes durante o período escravista e no pós abolição que contribuíram para formação de um campesinato negro ou mestiço (MARQUES, 2009) que possibilitaram a formação de territórios que representaram um enclave negro e caboclo no período escravocrata e posteriormente no contexto de implantação do capitalismo no campo paranaense. Sob essa chave de leitura acreditamos que tanto alguns dos grupos que participaram dos conflitos da Guerra do Contestado quanto os grupos étnicos que recentemente passaram a se auto-identificar como comunidades remanescentes de quilombos constituíram-se originalmente com as possibilidades abertas pelos projetos de futuro dos ex-escravizados, homens e mulheres livres de cor do antes e do pós abolição. A opção por tal enfoque decorre não apenas das pesquisas e atuação que os autores vêm desenvolvendo junto a esses grupos mas, sobretudo, por compreendermos que suas trajetórias ancestrais e coletivas potencializam vislumbrar as nuances das ações que viabilizaram suas territorializações e suas permanências contribuindo assim para situá-las no campo mais abrangente das lutas populares no Paraná, sobretudo nas situações em que os conflitos com seus antagonistas se expressaram de maneira mais explícita. 1) Fontes sobre quilombos históricos no Vale do Ribeira Por informações dadas por alguns moradores do Rio Pardo do Districto desta freguesia que, nos sertões de mesmo rio distante d’esta vinte e cinco léguas mais ou menos, sertões que divisam com o da Província do Paraná, se achão aquilombados alguns escravos fugidos do Norte desta Província he de necessidade destruí-los pois que do contrario torna-se mais perigoso e graves prejuízos, consta mais que para ali tem se dirigido alguns criminosos que talvez estejão reunidos, e como esta subdelegacia querendo ver se pode batel-os e não podendo o fazer algum dispêndio não so pela distância como pelo perigo da viagem do Rio por ser

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Artigo de Cassius Marcelus Cruz,elaborado para atividade do Curso Lutas Populares no Paraná - CEPAT

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    Lutas, Resistncias e Estratgias da Territorializao Negra no Paran Cassius Marcelus Cruz

    Jefferson de Oliveira Salles

    Introduo

    O conjunto de textos e fontes a seguir foi selecionado com a inteno de subsidiar a abordagem da temtica de Lutas e Resistncias dos Negros no Paran. Tal seleo tem por finalidade contribuir para vizualizar a variedade de estratgias adotadas por escravizados, libertos e seus descendentes durante o perodo escravista e no ps abolio que contriburam para formao de um campesinato negro ou mestio (MARQUES, 2009) que possibilitaram a formao de territrios que representaram um enclave negro e caboclo no perodo escravocrata e posteriormente no contexto de implantao do capitalismo no campo paranaense. Sob essa chave de leitura acreditamos que tanto alguns dos grupos que participaram dos conflitos da Guerra do Contestado quanto os grupos tnicos que recentemente passaram a se auto-identificar como comunidades remanescentes de quilombos constituram-se originalmente com as possibilidades abertas pelos projetos de futuro dos ex-escravizados, homens e mulheres livres de cor do antes e do ps abolio. A opo por tal enfoque decorre no apenas das pesquisas e atuao que os autores vm desenvolvendo junto a esses grupos mas, sobretudo, por compreendermos que suas trajetrias ancestrais e coletivas potencializam vislumbrar as nuances das aes que viabilizaram suas territorializaes e suas permanncias contribuindo assim para situ-las no campo mais abrangente das lutas populares no Paran, sobretudo nas situaes em que os conflitos com seus antagonistas se expressaram de maneira mais explcita.

    1) Fontes sobre quilombos histricos no Vale do Ribeira Por informaes dadas por alguns moradores do Rio Pardo do Districto desta freguesia que, nos sertes de mesmo rio distante desta vinte e cinco lguas mais ou menos, sertes que divisam com o da Provncia do Paran, se acho aquilombados alguns escravos fugidos do Norte desta Provncia he de necessidade destru-los pois que do contrario torna-se mais perigoso e graves prejuzos, consta mais que para ali tem se dirigido alguns criminosos que talvez estejo reunidos, e como esta subdelegacia querendo ver se pode batel-os e no podendo o fazer algum dispndio no so pela distncia como pelo perigo da viagem do Rio por ser

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    caudaloso, embora os donos dos escravos tenho de pagar as despezas, no se podendo fazer por j ter acontecido com captura de alguns escravos nestam os donos leval-os para mandarem pagar e nunca mais se lembro que he devido a no se poder conserval-os desta Freguezia por no offerecer segurana e ia por mais de huma vez tenho representado para remediar-se com esse melhoramento urgente que ate hoje tem sido esquecido. Tenho de fazer lembrar Vossa Excelncia que com gente do lugar na pode fazer diligencia de tal natureza por ser perigoso e mesmo alguns aviso aos que se pretende capturar; Vossa Excelncia a ter de mandar alguns permanentes para esse fim [...] Subdelegado de Polcia de Iporanga, 28 de Setembro de 1863

    Essa fonte particularmente reveladora no somente da relao entre fuga e espao geogrfico mas, sobretudo, por indicar possibilidades de leitura das relaes entre as fugas e as relaes sociais que se estabeleceram a partir delas. Conforme as informaes desse ofcio do subdelegado de Polcia de Iporanga, a configurao geogrfica da regio, pela distncia em relao sede da Freguesia e pelo perigo da viagem do Rio por ser caudaloso e que entrecorta serras e vales encaixados (FERNANDES, 2007, p.15), dificultava seu acesso e a tornava espao propcio para a territorializao de escravizados fugidos ou libertos. Entretanto, no que diz respeito s diligncias de captura dos escravizados fugidos, no apenas a configurao geogrfica, mas tambm a cumplicidade de alguns moradores da regio que avisavam os que se pretendiam capturar, dificultavam seu sucesso. Cabe, ento, nos questionar sobre quais motivos que geravam uma cumplicidade entre os moradores da regio e os escravizados fugido. Uma das hipteses que diante das dificuldades de colonizao da regio e de sua baixa densidade demogrfica na poca, a presena dos sujeitos que haviam se libertado da escravido atravs da fuga, podia se apresentar como um elemento potencial para o desenvolvimento de relaes sociais e econmicas mais dinmicas. Anos antes um outro ofcio j apresentava caracterizava as dificuldades que se apresentavam para a colonizao na regio:

    Do lado direito da Ribeira no Rio Pardo que desagua no rio da Ribeira acima da Freguezia de Iporanga,h tambem para o Centro muitas terra devolutas mas com circunstancias desfavorveis a Colonizao em todos os sentidos e muito especialmente porque tanto a navegao do dito rio, sempre perigosa por causa das grandes e numerosas caxoeiras. [...] mais ou menos dois dias de navegao deste lugar [...] nos limites da Provincia do Paran [...] as terras so muito prprias pra de todo gnero de plantao, com propriedade de estabelecer-se fazendas de criar. 1857 Ocupao ordem

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    A presena dos escravizados fugidos na regio acabou potencializando a articulao da localidade com a economia regional, sobretudo no contexto de diversificao produtiva e de suas relaes com outros mercados, sobretudo no que diz respeito comercializao do arroz pois: a capacidade do vale em fornecer arroz em quantidades propcias comercializao com outros Estados era derivada no apenas dos latifndios presentes na regio, mas tambm da mirade de pequenos produtores negros instalados por conta prpria no local a partir da decadncia da minerao. (ITESP, 2000, p. 106).

    dessa mirade de pequenos produtores negros que derivaram as comunidades que se autodeclaram remanescentes de quilombos no municpios de Adrianpolis (Joo Sur, Porto Velho, So Joo, Crrego das Moas, Crrego do Franco, Trs Canais, Praia do Peixe e Sete Barras) e Guaraqueaba (Rio Verde e Batuva).

    Fazenda Capo Alto e a revolta dos escravos da Santa Outra forma de territorializao negra se refere s terras de santo1, que se

    referem a extensos domnios territoriais explorados por ordens religiosas que passaram por um processo de desagregao e re-organizao em que as terras foram abandonadas por membros das ordens e deixadas sobre a administrao de trabalhadores escravizados. Foi o caso, por exemplo, da Fazenda Capo-Alto situada em Castro, onde em meados do XIX

    Vivio elles em uma republica, cujo chefe supremo era a Santa, a quem ouvio e de quem recebio todas as manhs com a beno as ordens do dia. Assim que amanhecia estravo todos os escravos na capella, prostravo-se com todo respeito e recolhimento diante da Imavgem, resmungavo uma longa orao e depois ia sahindo um a um, osculando os ps da protectora e pedindo-lhe beno. Nomeavo entre si por eleio o director e segundo as ordens da padroeira. Todo esse povo trabalhava e produzia muito. Criava muito gado e colhia muitos fructos da terra. Para as suas necessidades vendio em Castro o que dava o sufficiente, O mais pertencia Santa N. Senhora do Carmo e era conservado com escrupuloso cuidado. E fala-se que entre os negros da fazenda no havia um ladro sequer, um homem que no fosse honesto e morigerado (Gazeta Paranaense, Anno X, n 218, Curitiba, 30-9-1886, p.1.)

    Estima-se que esses escravizados haveriam permanecido sob essa condio

    1 Para uma leitura mais aprofundada do conceito do conceito de terras de santo ver ALMEIDA (2006) disponvel em

    http://unuhospedagem.com.br/revista/rbeur/index.php/rbeur/article/viewFile/102/86

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    entre meados do sculo XVIII at 1865, ano em ocorreu seu processo de des-reterritorializao quando os frades Carmelitas venderam o plantel da Santa para a firma Bernardo Gavio, Ribeiro & Gavio, que atuava no trfico interno de escravos em um contexto em que alm dos efeitos da Lei Eusbio de Queiros, as fazendas cafeeiras de So Paulo demandavam o aumento da mo de obra cativa nas plantaes. Essa empresa dos gavies provocou a revolta dos escravizados e teve repercurso na provncia, exigindo a atuao de fora policial para reprimir os revoltosos:

    Tendo-me communicado o Delegado de polcia de Castro em 29 de Abril que os escravos dos Frades Carmelitas, pertencentes fazenda dos mesmos naquello termo, se acmhavam em numero de tresentos, em estado de insurreio, nevgando-se formalmente a sevguir para S. Paulo conforme as ordens dos Srs.Bernardo Gavio, Ribeiro & Gavio., arrendatrios dos mesmos sob pretexto de que eram livres, e se escravos, somente de Nossa Senhora do Carmo. [...] Em vista disto o Delegado foi fazenda e ali enterrogando alguns escravos obtevecomo resposta que estavam resolvidos a no seguir porque s eram escravos de Nossa Senhora, e que a mesma disposio estavam todos os seus companheiros; que se o Delegado mellhor o quizesse saber chamasse revista todos, que eles assim o declarariam.-observou o Delegado ao cabea Firmino os inconvenientes dessa obstinao; respondeu-lhe que eles tinham a cabea no lugar. [...] Accresce que, nessa desobedincia podram haver o grmen de uma futura insurreio, e cujo desenvolvimento cumpria matarao nascer. Relatrio do Presidente de Provincia Padua Fleury, 21-2-1865 Anexo Polcia da Provincia p. 1-3.

    Apesar da represso policial aos intentos dos rebelados da Fazenda Capo-Alto, relatos de moradores da Comunidade Remanescentes de Quilombos Serra do Apon, remetem sua origem e ancestralidade a pessoas que fugiram da fazenda diante da ameaa de serem levados para So Paulo.

    Escravizados Herdeiros Outra forma de territorializao da populao negra rural ocorreu por meio de

    doaes de terras de escravizadores a seus escravizados. Essas doaes que geralmente ocorriam por meio de testamentos na maioria dos casos tinham clausulas condicionantes que articulavam-se com as demais estratgias de manuteno ou produo de dependentes, tal como definiu Chalhoub (1990). Sob essa perspectivas, escravizadores que no tinham filhos davam alforrias e doavam parte de seu patrimnio a seus escravizados com a condio de continuarem servindo suas esposas at a morte. Em determinadas situaes, quando essas se casavam novamente aps a morte do primeiro marido, procuravam reativar a situao de escravido dos alforriados. Houveram tambm situaes em que essas senhoras, que no tinham

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    descendentes diretos, libertavam e doavam terras em testamento para seus e suas escravizadas sob a condio de inalienabilidade da terra.

    Casos como os descritos acima ocorreram em diversas freguezias paranaenses. Os casos mais conhecidos no Paran foram os da fazenda Santa Cruz e da invernada Paiol de Telha.

    Inventrio da Fazenda Santa Cruz, Frum de Pameira IV

    Francisco Antnio da Costa, primeiro tabelio Vitalcio do Pblico Judicial e Notas, nesta cidade de Curityba e seu termo fls. 102. Certifico que reveu o Testamento com que falleceu Dona Maria Clara do Nascimento, passa extrahir as verbas pedidas do theor seguinte:

    Declaro que possuo uma Fazenda na paragem denominada Santa Cruz, Distrito da Freguesia da Palmeira, da qual disponho da maneira seguinte: As casas, trastes da serventia, benfeitoria existentes na mesma Fazenda, deixo metade minha escrava Rosa, e a seus filhos, e outra metade minha escrava Ferina e a sua filha Joseoha e na falta destes e suas mes, com a condico de no venderem nem alienarem para deixarem a seus herdeiros . Deixo a minha escrava Fermina a quinta parte da metade dos Campos da Fazenda santa Cruz, com a condio de no poder vender em sua vida e deixar para seus herdeiros, e assim mais lhe deixo vinte vaccas mansas, vinte e cinco guas, um touro, quatro bestas masnsas, seis cavallos mansos e um pasto e como a mesma seja fallecida, ficam pertencendo a este legado tanto do Campo quanto do gado, e animaes a sua filha Joseoha. Deixo as outras quatro partes d metade dos ditos Campos de Santa Cruz, e todas as terras de plantas a todos os escravos libertos por mim e por meu fallecido irmo Capito Joaquim Gonalves Guimares, aqueles que vivos forem a tempo de meu fallecimento com a condico de no poder vender nem alienar suas partes, para ficarem para seus herdeiros, ficar essa parte pertencendo aos outros, nesta deixa entraram, Joaquim e sua mulher Appolinria para desfrutarem depois que ficarem em plena liberdade. Nada mais consta em suas verbas acima que aqui extrahir dentre outras as quais me respondo. Curityba, sete de novembro de mil oitocentos e setenta e seis. Eu

    Apesar do direito adquirido por esses ex-escravizados, por diversas vezes tiveram que

    recorrer judicialmente para manterem seus direitos. Tal como ocorreu em 1855, quando Francisco de Paula Guimares, sobrinho e testamenteiro de Dona Maria Clara, teve que interceder junto a Thefilo Ribeiro de Rezende, vice-presidente da provncia do Paran, diante do fato do subdelegado de Polcia de Palmeira ter obrigado os libertos de Santa Cruz a trabalharem como jornaleiros na abertura da estrada de Palmeira a Palmas. Situao ainda mais explicita ocorreu quando em 1914 o procurador da Comarca de Palmeira, Ottoni Ferreira Maciel efetivou um processo de diviso e particularizao do imvel tornando-o passvel de alienao. A esse fato os descendentes dos herdeiros de Maria Clara apelaram, conforme descrito no trecho abaixo:

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    A comunmho na posse e utilizao da Fazenda Santa Cruz foi sempre o ideal de todos os successores dos primitivos legatrios daquella vasta propriedade. A diviso foi o assalto engenhado, machiavelicamente contra a propriedade desses pretos, que hoje se vem sem terras para trabalhar,porque o Sr.Ottoni Maciel as uzurpou, ora em nome prprio, ora pormeio do seu creado-mor Braz Rio Branco, que o testa de ferro de todas as pretenses do referido Sr. Ottoni Maciel, que tem a habilidade desempre dar a unmhada e esconder a unha trecho de Appelao do Dr, Raul Pricles Carneiro de Souza. 1914.

    O caso acima citado demonstra um movimento em que os camponeses negros ativaram a justia para tentar manter seus direitos. Esse processo de expropriao das terras da Fazenda Santa Cruz foi acompanhada do assassinato da liderana comunitria no campo de futebol da comunidade (WALDMANN, 1992) aps esse comear a organizao para contrapor-se a esse processo. importante destacar que tanto esse caso quanto a expropriao do territrio da Invernada Paiol de Telha contaram com a participao direta de representantes do poder pblico (no caso do Paiol de Telha o delegado da revgio) e suas terras foram posteriormente destinada a instalao de colnias de imigrantes europeus. Uma tentativa como essa ocorreu tambm no Rocio de Palmas no final do sculo XIX.

    Rocios como terras de uso Comum

    Outra forma de territorializao da populao negra ocorreu a apartir da ocupao das terras de rocio.

    Acerca do significado do termo Rocio, Nadalin afirma que:

    Muito embora o seu significado, em Portugal, parece ter evoludo com o processo de urbanizao que se segue ao feudalismo, enquanto uma Praa, ou espcie de prado na Villa, ou Cidade [BLUTEAU, 1712], a prtica, na Amrica portuguesa, parece ainda relacionada s terras que se reservavam para o uso em comum dos habitantes da vila, seja para apascentar seu gado, plantar ou, como se fazia na Europa, buscar lenha para uso prprio. (Nadalin, 2004, p.33)

    Circunscrita ao espao originrio dos povoamentos, a categoria Rocio referia-se, at meados do sculo XIX, s terras concedidas para o uso comum, nas quais se estabeleciam, sem custos, casas e pequenas reas de produo. No referido contexto, em que a aquisio de terras se efetuava atravs de posse ou ocupao, a cobrana de impostos recaa sobre a produo.

    Um dos exemplos da territorializao de camponeses negros no Rocio ocorreu em Palmas, onde atualmente existem trs comunidades quilombolas. Segundo os relatos

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    dos quilombolas dessa revgio suas terras teriam sido doadas aos seus ancestrais durante o processo de abertura dos campos de Palmas na dcada de 1840. Como mencionamos anteriormente as doaes de terras por senhores articulavam-se s estratgias de produo de dependentes, principalmente na segunda metade do sculo XIX. Fato significativo para perceber o vnculo de interesses entre os fazendeiros e a populao do Rocio ao final do sculo XIX pode ser percebido a partir das reaes frente s tentativas da Intendncia Municipal de Palmas de estabelecer uma colnia alem no Rocio nos anos imediatamente posteriores a abolio, perodo marcado pelo aumento de solicitaes de carta de foro no Rocio.

    Aps os trabalhos de uma comisso da Intendncia Municipal para determinar a rea a ser definida para estabelecer a colnia de alemes, o terreno indicado foi alvo de protesto por parte de Galdino Ferreira Ferrez e Tobias Bueno Ferreira - proprietrio da fazenda Burro Branco - que se diziam possuidores de terras no Rocio. A resposta da Intendncia nos fornece pistas para compreender as relaes que se estabeleciam no Rocio durante o perodo, visto que se refere aos que protestaram contra a proposta de criao da colnia no local indicado como:

    (...) indivduos a maior parte deles moradores de longe e poucos daqui; e os que habitam o rocio so indolentes, nem quintal fazem para plantar hortalias o que incomoda eles a intendncia ter dado um parte do Rocio para servir uma colnia de alemes.2 (PALMAS. Livro de Relatrios e Correspondncia da Cmara Municipal da Vila de Palmas, 1882-94, p.57. Acervo da Biblioteca do Instituto Federal do Paran, Campus Palmas.) A presena de fazendeiros (moradores de longe) no registro de lanamentos

    do Rocio e de ancestrais quilombolas indica que eles usufruam dos lotes registrados no Rocio, mas no os habitavam. Por outro lado, aqueles que habitavam o Rocio, os camponeses negros eram considerados indolentes, e possivelmente eram eles que tratavam dos animais dos senhores que l eram criados soltos. importante destacar nessa fonte a citao de Tobias Bueno Ferreira, que considerado um dos ancetrais de uma das comunidades quilombolas de Palmas.

    Tanto o caso acima mencionado quanto o da Fazenda Santa Cruz, possibilitam perceber que em determinadas situaes os camponeses negros conseguiram colocar os conflitos que vivenciavam na esfera da controvrsia pblica.

    O processo de territorializao das comunidades remanescentes de quilombo

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    em locais onde, no sculo XIX, existiam fazendas com mo-de-obra escravizada demonstra que os negros foram parte constitutiva da identidade cultural paranaense. Com o fim progressivo da escravido e a crise do tropeirismo, os afrodescendentes continuaram as atividades costumeiras (plantio, criao de animais, colheita de erva-mate) sendo, muitos deles, produtores independentes (MAESTRI, 2005) em diversas comunidades negras ao longo do Caminho das Tropas e limites dos Campos Gerais. Estas comunidades estavam em ligao constante com a sociedade nacional e sofreram os impactos de todos as questes que afetaram o pas, como bem demonstra o conflito do Contestado (que, no Paran atingiu a regio ocupada atualmente por Rio Negro, Unio da Vitria e Lapa; em Santa Catarina atingiu Curitibanos e Campos Novos) que agregou diferentes segmentos, posseiros e sitiantes expulsos de suas terras, comunidades negras e caboclas do planalto, ervateiros, trabalhadores desempregados (MACHADO, p. 2004, p. 65)3, configurando um movimento rebelde [que] identificou, desde o incio, a marginalizao crescente do caboclos e gente de cor, ao passo que cresciam os privilgios e estmulos europeizao do territrio (IDEM, p. 35).

    Guerra com msica, em Ouro Verde, 1917 Sertanejos, com suas armas, violo e sanfona, posam para Claro Jansson. Esta foto uma das mais usadas em livros e publicaes sobre o Contestado. Mas poucos do o crdito para o seu autor. Imagem presente no livro Revelando o Contestado: imagens do mais sangrento conflito social do Brasil nas lentes do sueco Claro Jansson (1877-1954) Fonte: http://www.museuparanaense.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=149&evento=19.

    Nesta guerra civil que tem por base a Lei de Terras de 1850 e a concesso de

    3 Grifos nossos.

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    dezenas de milhares de alqueires de terra por parte do Estado ao capital norte-americano as lideranas negras foram particularmente importantes, destacando-se entre elas, o negro Olegrio que chefiava um grupo guerrilheiro composto por 50 antigos federalistas (MACHADO, 2004, p. 275) e, Adeodato (um dos lderes principais do Contestado e o ltimo a ser derrotado) que, ao ser julgado, comps uma grande quadra (verso popular), no qual destacamos o seguinte trecho onde afirma sua valentia e orgulho de seu pertencimento tnico:

    S iguar a pica- pau Que quarqu madera fura S nas carta o Rei dEspada Desaforo no atura S quinem toro de briga Por nadinha armo turra, Nego bo da minha raa No tem cho que se apura. (MACHADO, 2004, p. 319)

    A presena afrodescendente na regio conflagrada foi tambm captada por um general das foras legalistas, que afirmava, serem seus ocupantes nada alm de bandidos ou negros fugidos (TOTA, 1983, p. 55) pensamento prximo ao do presidente de provncia que vetou a venda ou concesso de terras pblicas aos nacionais na instalao de colnias no Paran no final do XIX (OLIVEIRA, 2001, p. 213-214 ), configurando um quadro marcado

    por todos os tipos de racismos, arbitrariedades e violncia que a cor da pele anuncia e denuncia , [no qual, historicamente] os negros foram sistematicamente expulsos ou removidos dos lugares que escolheram para viver, mesmo quando a terra chegou a ser comprada ou foi herdada de antigos senhores atravs de testamento lavrado em cartrio. Decorre da que, para eles, o simples ato de apropriao do espao para viver passou a significar um ato de luta, de guerra (LEITE, 2000, p. 335).

    Nesse sentido, a visibilidade das experincias de acomponesamento negro no Estado nos tem permitido conhecer, alm de seus processos de territorializao, as opresses que elas sofreram historicamente e suas estratgias de resistncia, que compem ao lado de indgenas, faxinalenses, pescadores artesanais, pequenos agricultores e trabalhadores urbanos, um amplo panorama das lutas populares no Paran.

    Referncias

    CHALHOUB, Sidney. Vises da Liberdade: uma histria das ltimas dcadas da escravido na corte. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. FRIZANCO, Orlando & THON, Carlos Joo. Aspectos Histricos da Escravido no Norte

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    Pioneiro: Jaguariava. Edio do autor, s/d. HARTUNG, Miriam F. A Comunidade do Sutil: histria e etnografia. UFRJ: 2000. _________, O Sangue e o esprito dos antepassados: escravido, herana e expropriao no grupo negro Paiol de Telha PR. NUER/UFSC, Florianpolis: 2004. LEITE, Ilka Boaventura. Quilombos no Brasil: questes conceituais e normativas. In: Revista Etnogrfica, Vol IV, n 2, nov/2000. LIMA, C.A.M. Pequena dispora: migraes de libertos e de livres de cor (Rio de Janeiro, 1765-1844).Lcus: Revista de Histria, Juiz de Fora, v.6., n.2, p. 99-110, 2000, pp. 103-104. LIMA, Adriano Bernardo Moraes de. Tem batucada na terra das araucrias: a experincia negra na formao da sociedade paranaense. p.124. In: COSTA, Hilton e SILVA, Paulo Vinicius Baptista da. Notas de histria e cultura afro-brasileiras. Ed. UEPG/Ed.UFPR, 2007. MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranas do Contestado: a formao e atuao das lideranas caboclas 1912-1916. Ed. Unicamp. 2004. MAESTRI, Mrio. A aldeia ausente: ndios, caboclos, cativos, moradores e imigrantes na formao da classe camponesa no Brasil. In: STEDILE, Joo Pedro. (Org.). A questo agrria no Brasil. 1 ed. So Paulo: Expresso Popular, 2005, v. 2. MARQUES, Leonardo. 2009. Por a e por muito longe: dvidas, migraes e os libertos de 1988. Rio de Janeiro, Apicuri. TOTA, Antnio Pedro. Contestado: a guerra do novo mundo. So Paulo, Brasiliense, 1983. VANDRESEN, Dionsio. Estudo da Realidade Brasileira a partir dos grandes pensadores, para entender a histria da expropriao da terra dos ndios, negros e posseiros na regio centro do Paran. WALDMANN, Isolde Maria. Fazenda Santa Cruz dos Campos Gerais e a Imigrao Russa 17921990. Ponta Grossa: Editora Grfica Planeta, 1992.