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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 382 ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL PRECEDENTES JUDICIAIS OBRIGATÓRIOS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: UMA ANÁLISE À LUZ DO SISTEMA CONSTITUCIONAL DE GARANTIA DE DIREITOS 388 BINDING JUDICIAL PRECEDENTS IN THE NEW CODE OF CIVIL PROCEDURE: AN ANALYSIS OF THE CONSTITUTIONAL SYSTEM OF GUARANTEE OF RIGHTS Luís Guilherme Soares Maziero 389 Flávio Luís de Oliveira 390 Resumo O presente trabalho busca analisar a estrutura dos precedentes obrigatórios, traçando um comparativo crítico entre o instituto criado pelo Novo Código de Processo Civil e a regra do precedente, adotada nos países que integram o subsistema do common law. Para tanto, buscar-se-á diferenciar “jurisprudência” de “regra do precedente”, para em seguida refletir sobre qual seria a verdadeira natureza jurídica dos dispositivos contidos na nova regra processual, chamando a atenção do leitor quanto a uma possível criação de um sistema de jurisprudência vinculante, apto a criar um mecanismo de empoderamento dos Tribunais superiores em relação à magistratura de piso. Em seguida, buscar-se-á refletir quanto a uma possível incompatibilidade deste novo instituto com o sistema constitucional brasileiro. 388 Artigo submetido em 22/02/2017, pareceres de análise em 09/03/2017 e 10/03/2017, aprovação comunicada em 13/03/2017. 389 Bacharel em Direito pela PUC-Campinas, mestre em Direito pela UNIMEP e doutorando pela Instituição Toledo de Ensino - ITE. Professor na Faculdade de Direito da PUC-CAMPINAS, e também integrador acadêmico, compondo a equipe da direção do curso de Direito; Professor no curso de Direito na Faculdade Metrocamp, do Grupo IBMEC-Devry; Advogado. Contato: luis@ mazieroadvogados.com 390 Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); Coordenador e Professor Permanente do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito do Centro Universitário de Bauru/SP, mantido pela Instituição Toledo de Ensino – ITE; Advogado. Contato: flavioluis@ terra.com.br

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ANAIS DO SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PROCESSO CIVIL 382

ANAIS DO

SIMPÓSIO BRASILEIRO

DE PROCESSO

CIVIL

PRECEDENTES JUDICIAIS OBRIGATÓRIOS NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: UMA ANÁLISE À LUZ DO SISTEMA CONSTITUCIONAL

DE GARANTIA DE DIREITOS388

BINDING JUDICIAL PRECEDENTS IN THE NEW CODE OF CIVIL PROCEDURE: AN ANALYSIS OF THE CONSTITUTIONAL SYSTEM OF GUARANTEE

OF RIGHTS

Luís Guilherme Soares Maziero389

Flávio Luís de Oliveira390

Resumo

O presente trabalho busca analisar a estrutura dos precedentes obrigatórios, traçando um comparativo crítico entre o instituto criado pelo Novo Código de Processo Civil e a regra do precedente, adotada nos países que integram o subsistema do common law. Para tanto, buscar-se-á diferenciar “jurisprudência” de “regra do precedente”, para em seguida refletir sobre qual seria a verdadeira natureza jurídica dos dispositivos contidos na nova regra processual, chamando a atenção do leitor quanto a uma possível criação de um sistema de jurisprudência vinculante, apto a criar um mecanismo de empoderamento dos Tribunais superiores em relação à magistratura de piso. Em seguida, buscar-se-á refletir quanto a uma possível incompatibilidade deste novo instituto com o sistema constitucional brasileiro.

388 Artigo submetido em 22/02/2017, pareceres de análise em 09/03/2017 e 10/03/2017, aprovação comunicada em 13/03/2017.

389 Bacharel em Direito pela PUC-Campinas, mestre em Direito pela UNIMEP e doutorando pela Instituição Toledo de Ensino - ITE. Professor na Faculdade de Direito da PUC-CAMPINAS, e também integrador acadêmico, compondo a equipe da direção do curso de Direito; Professor no curso de Direito na Faculdade Metrocamp, do Grupo IBMEC-Devry; Advogado. Contato: [email protected]

390 Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); Coordenador e Professor Permanente do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito do Centro Universitário de Bauru/SP, mantido pela Instituição Toledo de Ensino – ITE; Advogado. Contato: [email protected]

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Palavras Chave: Novo Código de Processo Civil; Precedentes judiciais obrigatórios; Jurisprudência vinculante; Sistema Constitucional de Garantias de Direitos; Dominação.

MANDATORY LEGAL PRECEDENTS IN THE NEW CIVIL PROCESS CODE: AN ANALYSIS OF THE CONSTITUTIONAL SYSTEM OF GUARANTEE OF RIGHTS

Abstract

The present work seeks to analyze the structure of mandatory precedents, drawing a critical comparison between the institute created by the New Code of Civil Procedure and the rule of precedent that is adopted in the countries that integrate the common law subsystem. In order to do so, it will be necessary to distinguish “jurisprudence” from “rule of precedent”, and then to reflect the true legal nature of the devices contained in the new procedural rule, drawing the attention of the reader to a possible creation of a system Of binding jurisprudence, apt to create a mechanism of empowerment of the Superior Courts in relation to the floor magistrature. Next, we will try to reflect on a possible incompatibility of this new institute with the Brazilian constitutional system.

Keywords: New Code of Civil Procedure; Mandatory judicial precedents; Binding jurisprudence; Constitutional System of Guarantees of Rights; Domination.

Sumário

1 - Introdução. 2 - Precedentes judiciais e o novo papel da jurisprudência no processo civil brasileiro. 2.1- A (in)compatibilidade entre os precedentes judiciais obrigatórios e o sistema jurídico civil law. 2.2 - Como diferenciar “Regra do Precedente” de “Jurisprudência”?. 2.3 - Novo Código de Processo Civil: precedentes judiciais obrigatórios ou jurisprudência vinculante? 3 - Conclusão. 4 - Referências.

1 - Introdução

Dentre as inúmeras inovações criadas pelo novo Código de Processo Civil, uma das mais debatidas foi a criação dos chamados “precedentes judiciais obrigatórios”, até então inexistentes no sistema processual brasileiro.

Pensada e idealizada pela Comissão de Juristas constituída pelo Senado Federal por meio do Ato nº 379/2009, a figura dos “precedentes judiciais” foi inserida no texto do Anteprojeto ao Novo Código de Processo Civil com o objetivo de garantir celeridade no julgamento dos processos submetidos à apreciação do Poder Judiciário, visando possibilitar a distribuição de uma justiça mais rápida e efetiva.

Assim, ao encaminhar o anteprojeto para votação pelo Senado Federal, o presidente daquela casa, que à época era liderada pelo senador José Sarney,

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afirmou que o principal objetivo almejado pela reforma processual seria a busca pela “celeridade do processo e a efetividade do resultado da ação”.

No mesmo sentido, ao redigirem a exposição de motivos do novo Código de Processo Civil, os membros da comissão de juristas nomeados pela presidência do Senado Federal para a elaboração do anteprojeto destacaram a preocupação em desenvolver um dispositivo capaz de garantir efetividade aos direitos, pois, segundo eles, a ausência de eficácia e proteção dos direitos e garantias individuais comprometeria a própria caracterização de um Estado Democrático de Direito.

Diante destas considerações, a comissão afirmou que os trabalhos de criação do novo código se centrariam em cinco objetivos, sendo eles o respeito à Constituição Federal, a aproximação entre o juiz e a realidade dos fatos debatidos, a simplificação do sistema processual, principalmente o recursal, a agilização da tramitação processual e a organização e coesão do sistema processual.

Assim, justificaram a criação do instituto dos precedentes judiciais obrigatórios, afirmando que tal instituto garantiria a concretização dos princípios constitucionais da celeridade e da segurança jurídica, por meio da simplificação e limitação do sistema recursal e da adoção de mecanismos destinados à uniformização e estabilização da jurisprudência pelos tribunais superiores.

Entretanto, ao invés de criar um sistema de precedentes judiciais que respeitasse os referenciais teóricos que tal instituto herdou do sistema do common law, compatibilizando-o ao sistema constitucional das fontes do Direito brasileiro, a Comissão de Juristas acabou por criar um mecanismo de jurisprudência vinculante, absolutamente desconectado dos ideais que foram enunciados no anteprojeto ao Novo Código de Processo Civil, comprometendo a própria estrutura sistêmica do direito processual civil brasileiro.

As questões apresentadas no presente trabalho são decorrentes da pesquisa desenvolvida pelos coautores ao longo do último ano, no curso de doutorado do programa de pós graduação stricto sensu da Instituição Toledo de Ensino, na área de concentração denominada “Sistema Constitucional de Garantia de Direitos”, e representam um recorte das reflexões que foram realizadas pelos autores na obra coletiva Garantias Fundamentais do Processo Civil Brasileiro: Dominação ou Efetividade?391.

2 - Precedentes judiciais e o novo papel da jurisprudência no processo civil brasileiro

391 OLIVEIRA, Flávio Luís de (Organizador). Garantias Fundamentais do Processo Civil Brasileiro: dominação ou efetividade. p. 217-255

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Em 16 de março de 2015 foi sancionada a lei nº 13.105/2015, que estabeleceu as novas regras regentes do processo civil no Brasil, em substituição ao agora revogado código de 1973.

Dentre as inovações promovidas pela Lei nº 13.105/2015, destaca-se a criação de mecanismos de uniformização da jurisprudência, com a adoção de um suposto sistema de precedentes obrigatórios, bem como a limitação das medidas recursais, dificultando o acesso aos tribunais superiores.

Tradicionalmente abordada dentro da disciplina de introdução ao estudo do Direito, no Brasil a jurisprudência sempre foi interpretada como fonte secundária ou indireta do direito, em razão da influência histórica decorrente do sistema romanístico, garantidor da liberdade decisória dos juízes inferiores em relação ao entendimento firmado pelos juízes integrantes dos tribunais superiores, com supedâneo no princípio da independência da magistratura, segundo o qual ao juiz incumbiria julgar subordinado apenas à lei, sem jamais se curvar ao entendimento de outro magistrado, ainda que integrante de tribunal superior.392

Desta maneira, em virtude da histórica não vinculação dos juízes de piso em relação aos tribunais superiores, à fonte jurisprudencial sempre foi guardada a função de fonte interpretativa da própria lei ou, quando muito, fonte de integração de lacunas, por meio do que se acostumou chamá-la de “costume judiciário”, sem jamais gozar da prerrogativa de fonte primária do Direito.393

Porém, ao abordar a referida temática, a lei nº 13.105/2015 deu nova dimensão à jurisprudência, impondo aos membros do Poder Judiciário, especialmente aos magistrados que integram a primeira instância e os tribunais ordinários, a obrigatoriedade de respeitarem as decisões tomadas pelos tribunais superiores, fato este que acabou por redimensionar o referido dispositivo no rol das fontes formais do direito, passando a ocupar uma condição de supremacia em relação às demais fontes.

Para justificar a elevação hierárquica da jurisprudência no rol das fontes formais do Direito, os juristas responsáveis pela elaboração do anteprojeto que levou à criação do agora vigente Código de Processo Civil invocaram os princípios constitucionais da segurança jurídica, da proteção, da confiança, da isonomia e da celeridade.394

Em relação ao princípio da legalidade, expressamente previsto no artigo 5º, II da Constituição Federal, que prevê que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, os membros da comissão responsável

392 JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, decisão, dominação. p. 210-211

393 Id. Ibid, p. 211394 JUNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil, Volume III. Rio de Janeiro:

Forense, 2016.

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pela elaboração do anteprojeto ao novo código entenderam que a criação do instituto dos precedentes judiciais obrigatórios não violaria este preceito constitucional, haja vista que, a partir da criação do novo Código de Processo Civil, o próprio termo “Lei”, previsto na Constituição Federal, deveria ser reinterpretado, passando a se referir não mais apenas às espécies normativas, mas também aos precedentes judiciais, agora com previsão expressa no ordenamento jurídico brasileiro395.

Entretanto, ao contrário do que tentaram fazer crer os juristas idealizadores do novo Código de Processo Civil, o sistema de precedentes obrigatórios criado pela nova norma processual brasileira não encontra fundamento na Constituição Federal, tampouco nos preceitos adotados pela escola do common law.

2.1 - A (in)compatibilidade entre os precedentes judiciais obrigatórios e o sistema jurídico civil law

Ainda hoje há quem defenda que os países integrantes do subsistema chamado civil law estariam impossibilitados de adotar os precedentes judiciais obrigatórios enquanto fonte formal do direito, tendo em vista que a adoção da norma positivada enquanto principal fonte do direito, característica do sistema romano-germânico, impossibilitaria o exercício da liberdade criativa do juiz, que é característica do sistema anglo-americano, a quem incumbiria o mero exercício da função de “boca da lei”, sob pena de violação e afronta à teoria da tripartição dos poderes.396

Tal entendimento, entretanto, ignora o fato de que embora os sistemas romano-germânico e anglo-saxônico tenham origens históricas distintas, justificadoras das diferenças teóricas existentes entre cada um destes subsistemas397, atualmente a perda de credibilidade do Estado frente aos cidadãos, tanto em relação ao Poder Legislativo,

395 DONIZETTI, Elpídio. A força dos precedentes no novo código de processo civil. Disponível em <http://www.tjmg.jus.br/data/files/7B/96/D0/66/2BCCB4109195A3B4E81808A8/A%20forca%20dos%20precedentes%20no%20novo%20Codigo%20de%20Processo%20Civil.pdf>, acesso em 01/11/2016.

396 MARINONI, Luiz Guilherme. A transformação do civil law e a oportunidade de um sistema precedentalista para o Brasil. Cadernos Jurídicos–OAB/PR 03 (2009).

397  “Em síntese, a principal distinção entre os dois sistemas é que o da civil law é um direito escrito, onde a jurisdição é estruturada preponderantemente com a finalidade de atuação do direito objetivo. Nesse sistema o juiz é considerado boca da lei (Montesquieu), para justificar a ideia de que seus poderes decorrem da lei, exercendo, portanto, uma subordinação sobre os juízes, de igual modo os juízes inferiores são rigidamente controlados pelos juízes superiores, para serem fiéis a essa missão de ser o instrumento de cumprimento da lei. Na civil law prevalece a vontade soberana, há uma ‘justiça do rei’, ou seja, do Estado. Enquanto no sistema da common law adota-se um direito costumeiro, aplicado pela jurisprudência, onde, no modelo de justiça, prepondera a visão de pacificação dos litigantes. Na civil law busca-se a segurança jurídica, enquanto na common law a paz entre os litigantes, a re-harmonização e a reconciliação são os objetivos diretos; nessa pacificação dos litigantes pouco importa se é à luz da lei ou de outro critério, desde que seja adequado ao caso concreto, pois o importante é harmonizar os litigantes, havendo um profundo enraizamento na vida da comunidade. Há, nesse sistema, uma justiça paritária, da comunidade”. (LOURENÇO, 2011).

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como também em relação aos poderes Executivo e Judiciário, motivada pelas mais diversas questões, que perpassam desde a falta de efetividade dos serviços públicos até a disseminação desenfreada dos atos de corrupção, tem obrigado cada um destes subsistemas a se reinventar, assimilando e adotando dispositivos que anteriormente eram exclusivos do outro modelo, com o intuito de garantir maior legitimidade às decisões judiciais398.

Em outras palavras, o aperfeiçoamento do direito ao longo dos anos fez florescer o ideário de multiplicidade das fontes do direito, de modo que, no lugar do “legalismo estrito” ou até mesmo do próprio “realismo estrito”, passou-se a defender a inter-relação horizontal entre as diversas fontes do direito, proporcionando maior e melhor fundamentação às decisões proferidas pelo Poder Judiciário, à luz do que se acostumou a chamar de Diálogo das Fontes.399

Desta forma, ao criticar o sistema de precedentes vinculantes instituído pelo novo Código de Processo Civil, o presente trabalho o faz não com base na suposta incompatibilidade entre os sistemas civil law e common law, visto que inexistente, mas sim com fundamento na falta de estrutura sistemática com que determinados conceitos foram inseridos no estatuto processual aprovado.

2.2 - Como diferenciar “Regra do Precedente” de “Jurisprudência”?

Em primeiro lugar, não se pode confundir precedente com jurisprudência400; afinal, precedente é uma decisão judicial proferida em um caso concreto

específico, que é adotada por um tribunal como paradigmática, passando a servir como diretriz para o julgamento posterior de outros casos análogos, seja pelo próprio tribunal que a criou, seja por outros magistrados alocados nas instâncias inferiores401.

Portanto, por se tratar de um caso específico já julgado, o precedente necessariamente deve ser interpretado dentro das circunstâncias fáticas que embasaram a discussão da controvérsia, bem como da tese ou princípio jurídico assentado na motivação do provimento decisório, ao que, nos países de cultura anglo-saxônica, costuma se chamar de ratio decidendi, ou razão de decidir.

Nota-se, portanto, que o precedente é fruto de uma decisão tomada em um caso concreto adotado como paradigmático, sendo que todos os elementos fático-

398 GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2010.399 MARQUES, Cláudia Lima. Superação das antinomias pelo diálogo das fontes: o modelo brasileiro

de coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo 51 (2004).

400 LOURENÇO, Haroldo. Precedente judicial como fonte do Direito: algumas considerações sob a ótica do novo CPC. Temas Atuais de Processo Civil, (2011)

401 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. V. II. 6. ed. Jus Podium, 2011.

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jurídicos que influenciaram na tomada de decisão do caso precedente, deverão ser adotados também no julgamento de casos futuros similares, com o fito de proporcionar a utilização da mesma estrutura de pensamento que foi adotada na primeira decisão402.

No caso concreto, o magistrado que for responsável pelo julgamento de novos casos submetidos à apreciação do Poder Judiciário ficará obrigado a respeitar o precedente estabelecido, salvo se demonstrar que a nova situação sub judice apresenta elemento de distinção que a torne incompatível com o precedente adotado, ao que nos países de cultura anglo-americana chamam de distinguishing ou distinguish403.

Assim, só é possível a realização do distinguishing se o magistrado tiver contato e acesso aos elementos fáticos e jurídicos que levaram à criação do precedente. Do contrário, a utilização desta metodologia fica prejudicada.

Por fim, é importante destacar que a técnica do distinguishing visa apenas demonstrar a inaplicabilidade de um precedente a um caso concreto, sem que isto implique na superação ou revogação daquele precedente, que continuará sendo utilizado como parâmetro para outros casos em que não haja distinção.

Por outro lado, quando houver a superação ou modificação de um entendimento anteriormente sedimentado em algum precedente, a modificação da decisão paradigmática deverá ocorrer por determinação do próprio tribunal responsável pela criação do precedente, por meio das técnicas do overruling e overriding, a quem incumbe o papel de garantir a oxigenação e a renovação do Direito praticado404.

Em sentido oposto ao significado atribuído aos precedentes, o termo jurisprudência, por sua vez, não tem relação com a decisão de um caso específico, sendo empregado como “o conjunto de decisões uniformes e constantes dos tribunais, resultantes da aplicação de normas a casos semelhantes, constituindo uma norma geral aplicável a todas as hipóteses similares ou idênticas”.405

Quando estas decisões reiteradas ganham força e homogeneidade dentro de um determinado tribunal, passam a ser tratadas como jurisprudência dominante ou consolidada daquela casa, momento em que podem dar ensejo à criação, por meio de votação do pleno do respectivo tribunal, a pequenos verbetes que terão como finalidade exprimir, de forma rápida, concisa e resumida, o entendimento jurisprudencial

402 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e common law. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, v. 172, ano 34, p. 132, jun. 2009.

403 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: RT, 2004. p. 141.

404 TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: RT, 2004. p. 141.

405 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 296.

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consolidado na respectiva casa, ao que se dá o nome de súmula, expressão derivada do termo em latim summula, que significa o “diminutivo de suma, sinopse ou resumo”, ou ainda, “pílula de jurisprudência”406.

Ao contrário dos precedentes, que decorrem da resolução de um caso específico concreto e que são adotados pelos tribunais superiores como referenciais obrigatórios ao julgamento de novos casos similares, a jurisprudência por sua vez é o resultado da compilação de um número indeterminado de decisões, cuja finalidade é apenas demonstrar uma tendência de julgamento, oficializando a interpretação de um tribunal em relação a uma questão teórica controvertida.

Nota-se, portanto, que as súmulas de jurisprudência têm como característica a generalidade e a abstração, visto que criam comandos direcionados para um número indeterminado de pessoas, devendo ser interpretadas pelo magistrado antes da aplicação a um novo caso concreto, tamanha a vagueza de seus termos e enunciados. Por estas razões é que parte da doutrina aloca as súmulas dos tribunais superiores e as súmulas vinculantes produzidas pelo Supremo Tribunal Federal no rol das fontes do direito da espécie legislativa, e não jurisprudencial407.

Porém, como não decorre de um caso específico, nas jurisprudências e súmulas torna-se demasiadamente difícil a identificação de uma ratio decidendi, tendo em vista a inexistência de elementos fáticos que possibilitem a comparação do caso sub judice ao caso paradigmático, visto não existir um único caso paradigmático que tenha fundamentado a criação sumular.

Por outro lado, se a identificação da ratio decidendi torna-se difícil nas súmulas e jurisprudências, mais difícil ainda se torna o emprego da técnica do distinguishing; afinal, como distinguir o caso presente daquele caso que fundamentou a criação do precedente, se o que o novo Código de Processo Civil chama de precedente não deriva de uma única situação fática concreta?

2.3. Novo Código de Processo Civil: precedentes judiciais obrigatórios ou jurisprudência vinculante?

Embora o novo Código de Processo Civil tenha evitado utilizar a expressão “precedentes obrigatórios”, não deixou dúvidas quanto à obrigatoriedade de os magistrados respeitarem as decisões tomadas pelos tribunais superiores, conforme

406 MARTINS, Sérgio Pinto. Comentários às súmulas do TST. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2015.407 DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. São Paulo: Editora Revista

dos Tribunais, 2014, p.179.

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se depreende da regra contida no artigo 927408.

Entretanto, ao invés de implementar um sistema de precedentes judiciais no sistema processual brasileiro, o novo Código de Processo Civil ora reproduziu, de maneira prolixa e desnecessária, o texto da própria constituição federal409, ora misturou os conceitos de “jurisprudência” e “regra do precedente”, para criar um sistema de jurisprudência vinculante, regulamentado e instituído por meio de uma lei ordinária, sem legitimação constitucional.

Assim, se a própria súmula vinculante, editada por meio da Emenda Constitucional nº 45 e prevista no artigo 103-A da Constituição Federal, já gerou inúmeras discordâncias e descontentamentos quando foi criada, tendo em vista que conferia um poder soberano ao Supremo Tribunal Federal, autorizando que ele editasse um verbete que obrigaria todos os membros do Poder Judiciário e da administração pública em geral, o que dizer deste novo sistema de precedentes, que foi cunhado sem se submeter ao rigoroso processo legislativo que é próprio do rito de aprovação das emendas à Constituição e que acabou por estender a possibilidade de criação de súmulas com efeitos vinculantes para todos os demais tribunais superiores, por meio de decisões adotadas pelo tribunal por maioria simples, sem a representatividade do quórum especial necessário para a aprovação das súmulas vinculantes?

Assim, resta evidente que o novo Código de Processo Civil, mesmo sem gozar do prestígio e da força das emendas constitucionais, legislou em matéria constitucional, ampliando, entre linhas, a possibilidade de criação de súmulas com efeitos vinculantes para todos os tribunais superiores e, o que é pior, permitindo que estes criem dispositivos que serão aprovados por maioria simples e não pelo quórum especial de 2/3, previsto para a criação das súmulas vinculantes, mas que também vincularão todos os demais membros do Poder Judiciário.

Para piorar, ao equiparar súmula a precedente, o novo Código de Processo Civil impediu que os magistrados de piso aplicassem a técnica do distinguishing ao

408 Art. 927 do NCPC - Os juízes e os tribunais observarão: I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II - os enunciados de súmula vinculante; III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas

repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do

Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.409 Ao afirmar que as decisões proferidas pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade

obrigarão aos juízes e tribunais, o art. 927, I do NCPC apenas reproduziu o artigo 102, § 2º da CF, que afirma que “as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”, o mesmo ocorrendo em relação ao cumprimento obrigatório das súmulas vinculantes, que já encontrava amparo no artigo 103-A da CF.

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caso concreto; afinal, como já enfocado no presente trabalho, as súmulas representam resumos da jurisprudência, responsáveis por retratar, de maneira geral e abstrata, uma tendência interpretativa de um tribunal sobre uma matéria específica, sem ter vinculação com uma situação fática concreta, razão pela qual lhe falta a ratio decidendi.

Desta maneira, por inexistir ratio decidendi, os magistrados ficariam obrigados a respeitar, em toda e qualquer hipótese, o entendimento sumulado, sem nem mesmo ter a prerrogativa de demonstrar que o caso sub judice apresenta peculiaridades capazes de justificar um julgamento diferente daquele que foi idealizado pelo tribunal superior, inaugurando um regime de subordinação intelectual, em que os magistrados de piso passariam a atuar na condição de soldados fantoches submissos aos tribunais superiores.

Por derradeiro, o novo Código de Processo Civil também dificultou a utilização das técnicas do overrulling e overriding, responsáveis pela modificação ou superação dos precedentes, ao impedir que os jurisdicionados tenham acesso às cortes superiores, forçando o encerramento das discussões nos próprios tribunais ordinários, sem nenhuma possibilidade de diálogo com os tribunais especiais.

Para melhor entender a questão, é importante retomar o conceito e a finalidade dos recursos especial e extraordinário, previstos, respectivamente, nos artigos 102 e 105 da Constituição Federal e também chamados de recurso de estrito direito ou de superposição, visto não serem destinados à rediscussão de injustiças, fatos ou provas, mas apenas à reapreciação de matéria de direito410.

Desta maneira, enquanto o recurso extraordinário visa à reforma de uma decisão judicial que viole disposição da Constituição Federal e que tenha sido proferida em única ou última instância por qualquer autoridade judiciária, membro de tribunal ou não, o recurso especial, por sua vez, será admitido contra um acórdão proferido necessariamente por um tribunal, desde que tenham sido esgotadas as vias recursais, nos casos em que, em linhas gerais, haja violação de dispositivo de lei federal ou tratado, ou que dê a dispositivo de lei federal interpretação divergente daquela atribuída por outro tribunal411.

Segundo as regras procedimentais estabelecidas pelo novo Código de Processo Civil, tanto o recurso especial quanto o extraordinário serão interpostos perante o tribunal recorrido - conforme inteligência do artigo art. 1029 - que será o responsável pela realização do juízo de admissibilidade recursal, decidindo se deverá remeter o recurso para o respectivo tribunal especial ou negar seguimento a ele, impedindo assim sua apreciação pela instância superior.

410  DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas, 2016.411 BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2015.

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É interessante destacar, também, que as regras que tratam da admissibilidade dos recursos especial e extraordinário, aprovadas no bojo da lei 13.105/2015, já foram alteradas no ano de 2016, através da Lei 13.256, que deu nova redação ao artigo 1030 do novo Código de Processo Civil412.

Diante do texto aprovado pelo Congresso Nacional e que passou a integrar o texto do artigo 1030 do novo código, verifica-se que quando a parte interpuser recurso especial ou extraordinário aos tribunais especiais, a decisão de admitir ou não o recurso interposto ficará a cargo da própria autoridade judiciária que tiver firmado a decisão impugnada. Até aqui nenhuma inovação em relação à sistemática adotada pelo código revogado.

A novidade imposta pelo novo estatuto, porém, reside no fato de que se o tribunal recorrido negar seguimento ao recurso especial ou extraordinário, alegando que a decisão impugnada respeitou entendimento já consolidado pelos tribunais superiores – conforme dispõe o artigo 1030, inciso I - ou que tal matéria ainda está pendente de julgamento pela corte superior em outro caso adotado como paradigmático em demandas repetitivas – conforme prevê o artigo 1030, inciso III -, tal decisão denegatória não poderá ser levada à apreciação do tribunal superior

412 Dispõe o artigo 1030 do novo Código de Processo Civil que “Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, findo o qual os autos serão conclusos ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido, que deverá:

I – negar seguimento: a) a recurso extraordinário que discuta questão constitucional à qual o Supremo Tribunal Federal

não tenha reconhecido a existência de repercussão geral ou a recurso extraordinário interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal exarado no regime de repercussão geral;

b) a recurso extraordinário ou a recurso especial interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, exarado no regime de julgamento de recursos repetitivos;

II – encaminhar o processo ao órgão julgador para realização do juízo de retratação, se o acórdão recorrido divergir do entendimento do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça exarado, conforme o caso, nos regimes de repercussão geral ou de recursos repetitivos;

III – sobrestar o recurso que versar sobre controvérsia de caráter repetitivo ainda não decidida pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme se trate de matéria constitucional ou infraconstitucional;

IV – selecionar o recurso como representativo de controvérsia constitucional ou infraconstitucional, nos termos do § 6º do art. 1.036;

V – realizar o juízo de admissibilidade e, se positivo, remeter o feito ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça, desde que:

a) o recurso ainda não tenha sido submetido ao regime de repercussão geral ou de julgamento de recursos repetitivos;

b) o recurso tenha sido selecionado como representativo da controvérsia; ou c) o tribunal recorrido tenha refutado o juízo de retratação. § 1º - Da decisão de inadmissibilidade proferida com fundamento no inciso V caberá agravo ao

tribunal superior, nos termos do art. 1.042. § 2º - Da decisão proferida com fundamento nos incisos I e III caberá agravo interno, nos termos

do art. 1.021.”

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respectivo, uma vez que o próprio parágrafo segundo, incluído pela lei 13.256 de 2016, prevê apenas a possibilidade do manejo do agravo interno, endereçado ao órgão colegiado do próprio tribunal que proferiu a decisão objeto de descontentamento pela parte recorrente.Tal medida deixa evidente que o novo Código de Processo Civil tirou qualquer possibilidade de acesso às cortes superiores, extirpando todo e qualquer espaço democrático, dentro do processo, destinado ao diálogo entre o jurisdicionado e o Poder Judiciário, praticamente impedindo, “pela via recursal, a superação do precedente ou mesmo o aprimoramento pelo tribunal da tese jurídica consolidada”413.

Assim, resta evidente que o novo estatuto processual, mais do que simplesmente confundir conceitos teóricos quando equiparou jurisprudência a precedente obrigatório, tratou de criar mecanismos capazes de impor o pensamento ideológico dos tribunais superiores aos magistrados de piso, obrigando-lhes respeito ao entendimento cristalizado, além de cauterizar todo e qualquer canal de diálogo, seja entre os tribunais superiores e a magistratura de piso, ou em relação aos jurisdicionados que têm suas vidas submetidas ao crivo do Poder Judiciário.

Diante de tantos indícios de inconstitucionalidade dos referidos dispositivos é que tal medida passou a ser vista com reserva por parte dos juristas, que se negam a enxergar evolução nesta nova sistemática adotada pelo novo código.414

413  DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas, 2016.414 Neste sentido, crítico é o entendimento do doutrinador Cassio Scarpinella Bueno, ao afirmar

que “sou daqueles que entendem que decisão jurisdicional com caráter vinculante no sistema brasileiro depende de prévia autorização constitucional – tal qual a feita pela EC n 45/2004 – e, portanto, está fora da esfera de disponibilidade do legislador infraconstitucional. Ademais, não parece haver nenhuma obviedade ou imanência em negar genericamente o caráter vinculante às decisões jurisdicionais, mesmo àquelas emitidas pelos Tribunais Superiores. Isto porque a tradição do direito brasileiro não é de common Law. É analisar criticamente, dentre tantos outros fatores, o real alcance das cinquentenárias Súmulas (não vinculantes) do STF e sua cotidiana aplicação totalmente alheia a uma ou qualquer teoria sobre precedentes, sejam os do common Law ou não, para chegar a esta conclusão. Não é diversa a experiência, embora mais recente, das próprias Súmulas vinculantes daquele Tribunal e, nos últimos mais de vinte e cinco anos, das Súmulas do STJ. Previsibilidade, isonomia e segurança jurídica – valores tão caros a quaisquer ordens jurídicas estáveis, como é o caso da brasileira, pouco importando de onde elas nasceram e se desenvolveram – devem ser metas a serem atingidas, inclusive pela atuação jurisdicional. No entanto, faço questão de frisar, há limites para o legislador infraconstitucional alcançar aquele desiderato. E, também insisto, fossem suficientes Súmulas dos Tribunais (a começar pelas dos Tribunais Superiores) e, até mesmo, a técnica de julgamento de recursos extraordinários ou especiais repetitivas, e as experiências mais recentes, ainda sob a égide do CPC de 1973, teriam surtido efeitos bem melhores do que estatísticas sobre a redução de casos julgados perante os Tribunais Superiores. Não consigo ver, portanto, nada no CPC de 2015 que autorize afirmativas genéricas, que vêm se mostrando comuns, no sentido de que o direito brasileiro migra em direção ao common Law ou algo do gênero. Sinceramente, prezado leitor, não consigo concordar com esse entendimento, O que há, muito menos que isso, é uma aposta que o legislador infraconstitucional vem fazendo mais recentemente no sentido de que se as decisões proferidas pelos Tribunais Superiores e aquelas proferidas pelos Tribunais de Justiça e pelos Regionais Federais forem observadas (acatadas) pelos demais órgãos jurisdicionais, haverá redução sensível do número de litígios e maior previsibilidade, maior segurança e tratamento isonômico a todos. É o que os incisos do art. 927 bem demonstram. Nada mais do que isso”. (BUENO, 2015, p. 538-539).

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3. Conclusão.

Embora o discurso adotado pela comissão de juristas responsáveis pela elaboração do novo Código de Processo Civil seja bastante otimista e encorajador, o resultado final apresentado proporcionou uma autonomia decisória aos tribunais superiores sem precedentes, conforme retratado no presente trabalho.

Ao fixar como objetivos a serem alcançados pelo novo estatuto o amplo respeito à Constituição Federal, a aproximação do juiz com o caso concreto, a simplificação do sistema processual, a agilização da tramitação processual, tudo isso pautado pelo respeito aos princípios do contraditório, da celeridade e da segurança jurídica, proporcionando maior distribuição de justiça aos brasileiros, é inegável que a comissão de juristas conseguiu, num primeiro momento, o apoio da coletividade em geral, profissionais do direito ou não.

Afinal, qualquer indivíduo no pleno exercício de sua consciência desejaria conviver em uma sociedade mais justa, sem preconceitos, em que o Estado distribua a justiça com celeridade e igualdade. Tais ideais, inclusive, encontrariam amparo não apenas no Brasil, mas nas principais democracias do mundo.

O que deve ser levado em consideração, porém, não são apenas os objetivos fixados pela comissão no anteprojeto do novo Código de Processo Civil, mas a fidelidade entre o que foi planejado e o resultado final obtido. E, neste aspecto, todas as reflexões apresentadas no presente ensaio demonstram graves equívocos no texto aprovado pelo Congresso Nacional, o que proporcionou um empoderamento sem precedentes do Poder Judiciário, atribuindo aos tribunais superiores do Brasil a ampla capacidade de criação de normas jurídicas a que ficarão vinculados todos os demais membros do judiciário e da sociedade em geral, sem se atentar para o fato de que os magistrados não são eleitos pelo povo, mas sim investidos na jurisdição por concurso público ou por nomeação do chefe do executivo, no caso das cadeiras destinadas ao quinto constitucional e ao Supremo Tribunal Federal.

Por outro lado, não bastasse a inexistência de legitimação democrática dos membros do Poder Judiciário para a criação de normas jurídicas prescritivas, ao impedir a interposição de recursos visando a rediscussão dos preceitos adotados pela jurisprudência, o novo Código de Processo Civil também tratou de cauterizar um importante espaço democrático para o desenvolvimento da sociedade, tendo em vista que impediu que todos os jurisdicionados questionem e reflitam acerca dos precedentes que serão aplicados à sociedade em geral.

Desta forma, o que se vê como resultado do novo Código de Processo Civil é o empoderamento do espaço público pelo Poder Judiciário, órgão que é integrado por membros não submetidos a um processo de representatividade democrática, o

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que, em virtude dos obstáculos impostos ao sistema recursal, tornará sua cúpula cada vez mais distante dos anseios e das necessidades sociais, ao mesmo tempo em que a incumbiu da criação do direito, por meio dos precedentes e da jurisprudência consolidada, agora com efeito vinculativo.

Em outras palavras, os tribunais superiores, mesmo sem ter legitimidade para tanto, visto que a ocupação das cadeiras da magistratura não está submetida a um processo democrático, criarão o Direito, mantendo-se distantes da sociedade para a qual ele será aplicado.

Nesta medida, verifica-se que o Código de Processo Civil, além de cometer equívocos teóricos, quando decidiu incorporar de maneira deformada e descontextualizada preceitos que são próprios do sistema anglo-saxônico, também cometeu atentado contra o Estado Democrático de Direito, expressamente previsto no preâmbulo da Constituição Federal e adotado enquanto princípio fundamental no artigo primeiro da Carta Magna415.

415 A própria Constituição Federal, no título que aborda a proteção dos direitos e garantias fundamentais, estabelece que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” (artigo 5º, inciso XLIV CF).

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