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A FICÇÃO DA AUTORIA FEMININA NA OBRA “A CARTA DA CORCUNDA
PARA O SERRALHEIRO” DE FERNANDO PESSOA
Luelia Gomes Batista [email protected]
Paula Cristina Ribeiro da Rocha de Morais Cunha
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo observar a constituição do gênero epistolar
no feminino, a partir da leitura de Heroides, de Ovídio. O texto que será objeto
de nossa pesquisa, “Carta da corcunda para o serralheiro”, da autoria do escritor
modernista português Fernando Pessoa, insere-se nessa genealogia epistolar
amorosa que remonta à tradição romana inaugurada por Ovídio. A atribuição da
autoria das cartas a uma figura feminina, sendo o autor masculino, levanta
importantes questões em relação à constituição do cânone português e à
emergência da autoria feminina em Portugal, na medida em que assinala um
lugar que deveria ser preenchido por um sujeito autoral feminino, mas se revela
mais uma das máscaras pessoanas. Quanto a seus procedimentos metodológicos,
esta pesquisa terá um caráter explicativo e bibliográfico. O trabalho baseou-se
nos estudos dos autores Moisés (2001), Pádua (2010), Valentim (2006), Van Raij
(2000), entre outros.
Palavras-chave: Tradição epistolar amorosa. Autoria feminina. Modernismo
português. Fernando Pessoa.
FICTION WRITTEN BY WOMEN IN THE WORK “A CARTA DA
CORCUNDA PARA O SERRALHEIRO” BY FERNANDO PESSOA
ABSTRACT
This paper aims to observe the constitution of the female epistolary genre, from
the reading of “Heroides”, by Ovid. The text which will be focused in this
research, “Carta da corcunda para o serralheiro”, by the Portuguese modernist
writer Fernando Pessoa, is inserted into this love epistolary genealogy which
takes us back to the Roman tradition inaugurated by Ovid. The attribution of
authorship of the letters to a female, being the author a male, brings up important
questions about the constitution of the Portuguese canon and regarding the
emergence of female authorship in Portugal, through the way it points to a place
that should be filled by a female author, but, instead, is revealed to be one of
Pessoas’ masks. In what concerns its methodological procedures, this research
is characterized by an explicative and bibliographical approach, based on the
studies of authors such as Moisés (2001), Pádua (2010), Valentim (2006), Van
Raij (2000), among others.
Keywords: Love epistolary tradition. Female authorship. Portuguese
modernism. Fernando Pessoa.
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DE FERNANDO PESSOA
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1 INTRODUÇÃO
Estudar o passado é uma das maneiras que encontramos para tentar explicar o presente. E é isso
que buscaremos nesse trabalho, perceber como se deu a emergência da autoria feminina na
literatura portuguesa, sobretudo procurar entender por que um dos mais importantes autores do
cânone moderno ocidental, Fernando Pessoa, atribuiu a uma personagem feminina, não por
acaso uma autora, uma carta que se inscreve de pleno direito na tradição epistolar amorosa.
Analisando a narrativa histórica literária portuguesa, não há espaço para o tratamento de obras
de autoria feminina. E é justamente esse fato que nos faz procurar entender o que pode significar
um eu lírico feminino na obra de Fernando Pessoa, e o que nos diz a “Carta da Corcunda ao
serralheiro” a este respeito. Esse desejo surgiu, primeiramente, de uma afeição por este texto
que se me afigurou surpreendente, “A Carta da Corcunda para o Serralheiro”, e, segundo, pela
curiosidade em perceber a razão de Fernando Pessoa ter assinado a carta pela pena de sua única
personagem heterônima feminina, mais ainda, de ter dado voz a essa personagem, em meio a
tantos heterônimos masculinos. Esta pesquisa objetiva, ainda, refletir sobre a emergência da
literatura de autoria feminina. Quanto a seus objetivos, terá um caráter explicativo, porque
busca compreender a presença da única figura feminina na imensa galeria de heterônimos
masculinos pessoanos, a corcunda Maria José, autora de uma carta de amor para o serralheiro -
“A Carta da Corcunda para o Serralheiro”.
No primeiro capítulo, observaremos a constituição do gênero epistolar no feminino, a partir da
leitura de Heroides, de Ovídio, percebendo o momento em que se cria, na tradição epistolar,
um novo modelo da mulher mitológica, em primeira pessoa, heroínas que revelam os seus
conflitos amorosos, oscilando entre razão e paixão, amor e ódio, o desprezo e a busca. As cartas
de amor escritas por essas personagens femininas colocam em cena um sujeito de escrita
feminino, apesar de o autor empírico ser, invariavelmente, um homem que assimila, nesses
textos epistolares, a sensibilidade e a voz feminina.
No segundo capítulo, realizaremos um estudo sobre o movimento do Modernismo português e
a contribuição da revista Orpheu para o surgimento de uma literatura nova que renovaria o
panorama literário português.
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No terceiro e último capítulo, analisaremos a obra “A Carta da Corcunda para o Serralheiro”,
inserindo-a na tradição epistolar das heroínas amorosas, para perceber como, em pleno
modernismo, o gênero é capaz de se reinventar, colocando agora a questão, através de Fernando
Pessoa/Maria José, do vácuo existencial.
2 TRADIÇÃO EPISTOLAR AMOROSA: DE OVÍDIO A MARIA JOSÉ
Para realizar uma pesquisa sobre a inserção da narrativa do romance epistolar, é imprescindível
falar de Ovídio, que é considerado por muitos como uma referência na história do gênero
epistolar. Ovídio cria um novo gênero textual, levando-nos a um significado mais profundado
da carta, ao transformá-la num monólogo trágico que, para além do seu estilo informativo
clássico, apresenta-se acrescida de meditações interiores.
As Heroides são cartas amorosas escritas por quatorze mulheres da mitologia clássica, sendo
uma da mitologia grega, Safo. As cartas, com teor de súplica, eram escritas para seus amantes,
maridos, namorados, ausentes por diversas razões, nas quais pediam que regressassem.
Segundo Cleonice Van Raij:
Neste caso, as heroínas ovidianas, confrontadas continuamente com a dor, tentam convencer o
amante distante a regressar. Há aqueles que consideram que as Cartas revelam afinidades maiores
com o monólogo dramático do que com a suasória, sem que apontem, todavia, as implicações
decorrentes de tal diferença. Outros declaram que as Heróides carecem de um contexto dramático e
narrativo: não há nas Cartas um confronto de emoções e aspirações de duas pessoas que se amam
ou que estão em conflito, nem tampouco um jogo de tempo, o que descarta, seguramente, um
envolvimento com o futuro, razão por que o poema é considerado de natureza estática ou uma
repetição monótona de queixas e de dores que envolvem o mundo da mulher ovidiana. (2000, p.268)
As personagens de Ovídio trazem à tona seus sentimentos mais íntimos, revelando suas
fraquezas sentimentais, pois, ao contrário do que se poderia supor, por serem heroínas e estarem
associadas a um modelo de mulheres fortes, que nada abalava, Ovídio mostra-as em sua
humanidade, susceptíveis de serem acometidas pelas dúvidas e sofrimento das mulheres
comuns.
Assim, surge um novo modelo da mulher mitológica, agora em primeira pessoa, de heroínas
que revelam os seus conflitos amorosos. No decorrer das cartas, as heroínas oscilam entre razão
e paixão, amor e ódio, desprezo e busca. Os limites desses sentimentos a cada momento as
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tornam cada vez mais frágeis, acentuando o caráter humano das personagens femininas
ovidianas.
Através dessa breve análise diacrônica das heroínas de Ovídio, é possível identificar a
existência de um tema – a confissão de uma paixão que transtorna o sujeito feminino –, tema
esse que nos leva para a tradição dos romances epistolares, a exemplo das Cartas Portuguesas
de Sóror Mariana, oriunda de uma tradição de cartas tomadas por uma voz solista. As Cartas
Portuguesas marcaram a literatura portuguesa como um gesto de rebelião feminina, isso porque
Sóror Mariana era uma freira portuguesa de Beja, que chocou a sociedade do século XVII com
suas cartas expondo suas ardentes paixões por um oficial francês, o Conde de Chamilly.
Mariana era mulher e religiosa que viveu na pele as limitações destinadas à mulher pela igreja
e pela sociedade patriarcal. Apaixonada e abandonada, entrega-se à paixão, escrevendo cinco
cartas ao homem amado, o Conde de Chamilly, que expressavam toda ousadia de seus
sentimentos mais íntimos. Vejamos um trecho da carta ao seu amante:
Precisava, nestes deliciosos instantes, chamar a razão em meu auxílio para moderar o funesto
excesso da minha felicidade e me levar a pressentir tudo o quanto sofro presentemente. Mas de tal
modo me entregava a ti, que era impossível pensar no que pudesse vir envenenar a minha alegria e
impedir de me abandonar inteiramente às provas ardentes da tua paixão. (ALCOFORADO, 1993,
p.23)
No trecho acima, retirado de uma das cartas de Mariana Alcoforado, podemos perceber a
confissão de seu caloroso amor pelo Conde de Chamilly, assim como a presença do prazer e
sofrimento vividos por Mariana, em meio a uma relação dramática, cheias de obstáculos devido
a sua condição de religiosa em regime de clausura.
Seguindo uma linha cronológica das obras significativas referentes à tradição epistolar,
partiremos agora para A Carta da Corcunda para o Serralheiro, escrita por uma personagem
ficcional da imensa galeria de personae literárias do escritor português Fernando Pessoa. A
obra não foi datada. Fernando Pessoa transforma-se agora em Maria José, o seu único
heterônimo feminino. A obra apresenta uma jovem corcunda invisível para o mundo, e
principalmente para o seu amado, que ela acompanha todos os dias da sua janela.
A Carta da corcunda para o serralheiro é inspirada nos modelos canônicos da tradição
epistolar amorosa e preserva as marcas das cartas de amor enunciadas por subjetividades
femininas, as quais se aproximam dos monólogos passionais das heroínas de Ovídio: “Senhor
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António: O senhor nunca há-de ver esta carta. Nem eu a hei-de ver segunda vez porque estou
tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo
abafo” (Pessoa, 1990)
O que é interessante é que estas cartas colocam em cena um sujeito de escrita feminino, mesmo
quando o autor empírico é um homem. Para além de assimilarem uma sensibilidade feminina –
e é importante ter em conta que, de uma maneira geral, os autores homens não adotam
pseudônimos femininos -, forjam um espaço na escrita que mostra o vazio da autoria feminina.
Isto é, não se trata somente de empossar um altergo feminino, já que ao fazê-lo os autores
apontam para a inexistência de autoras mulheres, o que corresponde à tradição literária
portuguesa na época.
No próximo capítulo abordaremos o Modernismo português e sua contribuição para com a
literatura.
3MODERNISMO NA LITERATURA PORTUGUESA
O movimento artístico em Portugal denominado de Modernismo ocorreu no século XX, em
uma época marcada por contestação interna à Monarquia, depois das cedências do governo às
pressões inglesas provocadas pelo Ultimato inglês, em 1890.
Mais conhecida como arte do século XX, o Modernismo teve grande destaque nas primeiras
décadas do novecentos e foi uma época de intenso experimentalismo em torno da linguagem e
da representação, correspondendo à produção das vanguardas estéticas. Em Portugal, a
transição do regime monárquico para o regime republicano gerou um período de muita
desordem, conforme Moisés:
Perante a nova situação em que se encontra o País, logo se formam duas facções, opostas no modo
como a encaram: uma delas, satisfeita, ou conformada com a República, procura dar-lhe bases, uma
doutrina ou filosofia tipicamente portuguesa; a outra, a dos inconformados, dos insatisfeitos com o
novo estado de coisas, assume um caráter contra-revolucionário. (2001, p. 236)
Porém, o número de republicanos insatisfeitos cai gradativamente logo depois que o novo
sistema de governo é aprovado em Portugal. É nesse período que surge A Águia (1910), órgão
da “Renascença Portuguesa", liderada por Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão e Leonardo
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Coimbra que também apoiavam o novo estado. A revista tratava de literatura, arte, ciência,
filosofia e crítica social, e empenhava-se em prol da fundamentação e revigoramento da cultura
portuguesa. Sua segunda edição iniciou-se em 1912, e foi difundida com o intuito de ressuscitar
a pátria portuguesa, apresentando o Saudosismo como filosofia de teor nacionalista que
estabelece a saudade como atitude espiritual que definiria a alma portuguesa: “É na Saudade
revelada que existe a razão da nossa Renascença; nela ressurgiremos, porque ela é a própria
Renascença, original e criadora” (MOISÉS, 2001). A saudade era vista como uma religião, uma
filosofia portuguesa. A Águia circulou até o ano de 1932.
Em 1915, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Raul Leal, Augusto de Montalvor, Almada
Negreiros, Rui Coelho, Tomás de Almeida, Alfredo Guisado, Armando Cortes-Rodrigues e o
brasileiro Ronald de Carvalho lançam, em Lisboa, a revista Orpheu como porta voz de seus
ideais estéticos. Fernando Pessoa foi um dos escritores que liderou o Modernismo, juntamente
com seus companheiros geracionais Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Santa Rita
Pintor, entre outros. Fernando Pessoa passou relativamente despercebido aos seus
contemporâneos, à exceção do pequeno grupo de amigos, em Lisboa, que com ele
empreenderam o projeto da revista de “Orpheu”, lançada em finais de março de 1915. Órgão
do movimento modernista em Portugal, teve apenas 2 números (e um terceiro projetado), mas
marcaria para sempre aquele grupo.
Nasce o Orpheu, cujo primeiro número, correspondente a janeiro-fevereiro-março, aparece em 1915,
sob a direção de Luís de Montalvor, para Portugal, e de Ronald de Carvalho, para o Brasil (na
verdade, a idéia surgira numa conversa entre os dois, travada no Rio de janeiro, quando o primeiro
era funcionário da Embaixada de seu País). Na “Introdução” com que abre o número inicial da
publicação, Luís de Montalvor procura fazer a profissão de fé literária de todo o grupo. Referindo-
se à revista, diz: “Puras e raras suas intenções com seu destino de Beleza é o do: - Exílio! Bem
propriamente, ORPHEU é um exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou
tormento.Nossa pretensão é formar um grupo ou ideia, um número escolhido de revelações em
pensamento ou arte, que sobre este princípio aristocrático tenham em ORPHEU o seu ideal esotérico
e bem nosso de nos sentirmos e conhecermo-nos.” (MOISÉS, p.239, 2001)
A revista proporcionaria uma poesia alucinada, chocante que, consequentemente, provocaria a
burguesia portuguesa. Para melhor compreensão da contribuição da revista para o movimento
Modernista, abordaremos no próximo tópico um breve estudo sobre a revista de Orpheu.
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3.1 Orpheu e a Aventura da Modernidade
O Orfismo estabeleceu o primeiro movimento propriamente moderno, composto por ideias
revolucionárias, provocadas pelas novidades advindas das mudanças culturais do século XX.
O lançamento de Orpheu 1 provocou um tão grande estranhamento no público que, em pouco
tempo, se transformaria em uma imensa chacota para a imprensa da época, chegando seus
colaboradores a serem chamados de “dissimuladores de extravagâncias” e de “Poetas
paranoicos” pelo psiquiatra Júlio de Matos e o médico e escritor Júlio Dantas. Porém, nenhuma
das ofensas conseguiu calar Orpheu:
Os nossos psiquiatras estudaram psiquiatria. Estão portanto competentes para dar uma opinião sobre
assuntos psiquiátricos. Se tivessem estudado biologia, estariam competentes para darem opinião
sobre assuntos biológicos. Para dar uma opinião sobre literatura, parece, pois, que era mister que
tivessem estudado – não psiquiatria, que só habilita a opinar sobre psiquiatria – mas literatura.
(FERNANDO PESSOA,1914) 6
Na citação acima podemos ver a opinião de Fernando Pessoa sobre as ponderações feitas a
respeito da revista Orpheu, deixando claro a sua insatisfação em ser “julgado” por pessoas que
não pertenciam ao universo da literatura. O segundo número de Orpheu foi publicado no dia
28 de junho de 1915, agora com a direção de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, e não
foi muito diferente, continuou a provocar reações da imprensa.
Um dos episódios marcantes da polêmica entre a imprensa e a revista foi a publicação de um
artigo na revista A Capital referindo-se aos colaboradores de Orpheu como “inofensivos
futuristas” que tinham como desejo representar “dramas dinâmicos” nos teatros portugueses.
Os componentes de Orpheu até resistiram às provocações por um certo momento, porém, no
dia seguinte, Álvaro de Campos, o heterônimo “futurista” de Fernando Pessoa, envia uma carta
resposta ao diretor da revista. Na carta, Álvaro de Campos faz chacota dos jornalistas e dispensa
o título de futurista, citando também o acidente acontecido a Afonso Costa, que se teria jogado
da janela de um elétrico em movimento. A Capital publicou a carta com um artigo resposta,
titulando como “cérebros destrambelhados do Orpheu” e, acima de tudo, desaprovando a
“repugnante alusão ao desastre de que foi vítima o Sr. Dr. Afonso Costa”.
6 Trecho retirado do artigo “Nós, os de Orpheu”, fruto de uma parceria entre a Casa Fernando Pessoa e o Camões – Instituto da Cooperação e da língua, enquadrando-se nas celebrações dos 100 anos da revista “Orpheu”. Traça o percurso da revista e dos seus protagonistas, recorrendo, muitas vezes as falas dos próprios “Órficos”.
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Com toda repercussão, alguns colaboradores da revista Orpheu apresentaram sua discordância
em relação às palavras de Álvaro de Campos. Mário de Sá-Carneiro acrescentou, ainda, que a
revista Orpheu almejava desempenhar “uma ação exclusivamente artística”, sem nenhum tipo
de interesse em promover “qualquer opinião política ou social – definitiva e coletiva”.
O terceiro volume de Orpheu é anunciada para outubro, Fernando Pessoa e Mário de Sá
Carneiro empenham-se em procurar financiamento, na confecção de convites, e na participação
de colaboradores condizentes com a linha artística de Orpheu: “Orpheu 3 trará, também, quatro
hors-textes do mais célebre pintor avançado português – Amadeo de Souza-Cardoso. ”
(PESSOA, 1916). Em setembro, Fernando Pessoa escreveu o texto de divulgação de Orpheu 3,
porém a revista não chegou às bancas, por falta de recursos.
Após a morte de Sá-Carneiro, seu principal companheiro, Fernando Pessoa ainda mantém vivo
o desejo de publicar Orpheu 3. A revista seria publicada em 1984 a partir das provas tipográficas
que restaram sob responsabilidade do eminente estudioso português Arnaldo Saraiva. Embora
a revista não tenha seguido adiante, conseguiu conquistar seu desígnio, que era denunciar a
estagnação cultural que se vivia em Portugal na época e produzir a literatura nova que, a
exemplo da geração de 70 no século XIX, viam produzir na Europa. Conhecendo um pouco da
trajetória de Fernando de Pessoa na revista Orpheu, abordaremos, no seguinte tópico, um pouco
da vida literária de Fernando Pessoa.
3.2 Fernando Pessoa e as máscaras: fingimento poético e heteronímia
Os heterônimos são uma espécie de outro “eu” dentro do texto, só que agora esse “eu” é o autor
do texto. É possível até que os heterônimos carreguem uma identidade do “verdadeiro escritor”
ou, melhor dizendo, do seu ortônimo. Gil (1987) ressalta que o heterônimo é uma espécie de
criador, alguém que avalia as sensações, criando séries e multiplicidades. Esse fingimento
poético é, na verdade, a maneira que os escritores encontraram de transcrever aquilo que se
passa em seu psiquismo. Para Bachelard (1994), essa ação psíquica é uma descarga de energia,
assim o seu criador é capaz de incorporar ritmos e sensações irregulares.
Fernando Pessoa é a personalidade literária mais representativa do Modernismo Português e
um dos mais ilustres poetas da literatura portuguesa. Na verdade, falar de Fernando Pessoa é
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falar de, pelo menos, mais três poetas, frutos de sua partogênese literária: os heterônimos
Alberto Caeiro, o mestre, Ricardo Reis, o poeta helenista, e Álvaro de Campos, o poeta futurista
(o da segunda fase). Claro que não podemos deixar de mencionar Bernardo Soares, o semi-
heterônimo, na designação do próprio Pessoa (o ortônimo), ele mesmo inserido neste “drama
em gente”. Bernardo Soares é o autor de um livro fragmentário, O livro do Desassossego, que
foi publicado apenas em 1982.
A origem de seus heterônimos é explicada pelo próprio Fernando Pessoa na carta a Adolfo
Casais Monteiro, de 13 de janeiro de 1935, poucos meses antes da morte do autor (em 30 de
novembro desse ano). Essa carta é, como referimos acima, geralmente considerada a certidão
de nascimento dos principais heterônimos. Nela, Fernando Pessoa refere as circunstâncias em
que surgiram, os traços físicos, as datas de nascimento, profissões e tendências literárias.
Eu vejo diante de mim, no espaço incolor, mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo
Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me
lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil.
Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua
vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em
Tavira, no dia 15 de outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois,
feito o horóscopo para essa hora, está certo). (PESSOA, 1935)
Fernando Pessoa criou as datas de nascimento de cada heterônimo, atribui-lhes profissões,
personalidades distintas. Fernando Pessoa também apresenta as datas de morte de seus
heterônimos. É surpreendente o grau de mistificação da carta, que, sendo um documento
autêntico, já que se trata de uma carta endereçada a um conhecido escritor e crítico literário,
participa do conjunto de sua obra literária, tal o grau de elaboração e de coerência com seus
princípios estéticos.
Fernando Pessoa nasceu em Lisboa, em 13 de junho de 1888, e faleceu, também em Lisboa, em
30 de novembro de 1935. Deixou cerca de 27 mil documentos, entre traduções, poesia, contos,
esboços de projetos e anotações, que foram aparecendo, qual truque de mágica, do mítico baú
onde, durante sua vida, o poeta foi guardando tudo o que foi escrevendo.
Alguns dados da biografia do autor ajudam a explicar certo estranhamento que a sua particular
maneira de escrever significou, num meio fechado e estagnado como o português da época. O
pai de Fernando Pessoa morre quando o autor tinha apenas cinco anos de idade e sua mãe casa,
em segundas núpcias, com um comandante português. Com cerca de sete anos, Pessoa parte
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com a nova família para Durban, na África do Sul, onde desenvolve sua formação intelectual e
literária. Toma contato com os clássicos da literatura inglesa e, só mais tarde, de regresso
definitivo a Lisboa, opta por escrever em português. Profissionalmente, o poeta exerceu
humildes funções de correspondente comercial em escritórios lisboetas, redigindo cartas
comerciais em inglês e francês. Ainda frequenta o Curso Superior de Letras, em Lisboa, que
depressa abandona.
Já em 1912, começa a colaborar, como crítico literário, na revista A Águia, órgão da Renascença
Portuguesa, com o artigo “A nova poesia Portuguesa sociologicamente considerada”, a que se
seguiriam “Reincidindo…” e “A nova poesia portuguesa no seu aspeto psicológico”. Publicou
alguma poesia em inglês, em português colaborou em diversas revistas com textos assinados
por ele próprio e por seus heterônimos mais conhecidos, mas sua obra permaneceu praticamente
inédita. Em vida, publicou apenas, em 1934, uma obra completa, Mensagem, por sugestão dos
amigos e para participar de um concurso literário.
Em seu afã de criar personalidades literárias, de se multiplicar, de se “outrar”, de se fazer outros,
talvez para preencher esse vazio terrível que o fazia temer não ser ninguém, Fernando Pessoa
criou dezenas de heterônimos que assinam textos, obras, por vezes, pequenas anotações, em
que o criador pressente uma voz, uma disposição diferente da sua. Uma delas, que surpreende
por ser, até onde se sabe, a única voz feminina no seu universo autoral, é a corcunda Maria José,
que escreve uma pungente e patética carta de amor ao serralheiro. É esta carta que será o objeto
de nossa pesquisa.
A “Carta da Corcunda para o Serralheiro” foi publicado pela primeira vez em Pessoa por conhecer,
de Teresa Rita Lopes, que considera que “a voz feminina da Carta da Corcunda para o Serralheiro,
assim mesmo intitulada, atinge o ponto máximo nessa escala da despersonalização que Pessoa
percorria em todos os sentidos, estacionando em todos os degraus. Incarna esse “ninguém” que,
na sua própria pessoa, Pessoa sofria sentir-se ser […]”. (LOPES, 1990, p.120)
Foi esta singularidade que nos fez escolher, de entre a imensa produção do genial autor
português, este texto, uma carta de amor escrita por um homem que assumiu a personalidade
feminina para retomar alguns dos tópicos das cartas das heroínas amorosas que, na tradição de
Ovídio, escrevem para falar de si, da sua paixão, para preencher o vazio da ausência do objeto
amado e para dar expressão a esse sentimento arrebatador.
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Diante de tudo que vimos apreciando, buscaremos analisar, no capítulo seguinte, as
perspectivas na ficção da autoria feminina, designadamente em A carta da corcunda ao
serralheiro.
4 A FICÇÃO DA AUTORIA FEMININA
Nesse capítulo, buscaremos refletir sobre a ficção da autoria feminina. Levando em
consideração as condições dadas às mulheres que se aventuraram a escrever, bem diferentes se
comparadas às dos homens. Durante muitas décadas, o ambiente público era dominado pela
supremacia masculina, o que provocou, por sua vez, na alocação da mulher ao espaço privado,
sobretudo, no ambiente doméstico.
Podemos citar o Modernismo como um exemplo nítido da exclusão da autoria feminina na
história da literatura. Uma das mais originais vozes autorais femininas da literatura portuguesa,
Florbela Espanca, publica na mesma época que os modernistas portugueses, no entanto ela não
é inserida neste movimento. Aliás, as histórias consagradas da literatura tendem a tratar sua
obra como um interregno, um caso particular, em vez de a verem como um exemplo da
produção literária da época e de abordarem a autoria feminina nos mesmos moldes da
masculina. Por isso, apesar da importância da autora na história da literatura portuguesa, o
estudo de sua obra ainda se justifica no âmbito de uma abordagem ginocrítica (CUNHA, 2015).
Ainda no Modernismo, durante a preparação do número 2 de Orpheu, Fernando Pessoa sugere
a Armando Côrtes Rodrigues que escreva em nome de uma mulher fictícia, Violante de
Cysneiros. Isto quer dizer que não existem autoras reais que colaboraram no projeto do primeiro
modernismo português, mas, por sugestão de Pessoa, o criador de múltiplas pessoalidades, cria-
se uma ficção de autoria feminina. Homens que escreviam e assinavam com nomes de mulheres,
foi um ato bastante curioso e irreverente, levando em consideração o preconceito e a não
aceitação de obras de autoria feminina.
Esta circunstância faz-nos pensar na utilização dos pseudônimos pelas mulheres autoras que
tinham necessidade de se esconder atrás de um nome masculino para conseguirem ser lidas e
socializar suas obras, eximindo-se, assim, ao estigma que a autoria feminina representava. E
isto nos leva, por outro lado, a pensar que os escritores homens não utilizam pseudônimos
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femininos. No âmbito da literatura portuguesa, se não erramos, apenas Júlio Dinis utilizou um
pseudônimo feminino, Diana de Aveleda, com os quais assinou curtas crônicas no Diário do
Porto.
Apesar de ser já reconhecido e influente, pelo menos no pequeno círculo literário de Lisboa, a
única obra de Fernando Pessoa atribuída a uma mulher, A Carta da Corcunda para o
Serralheiro, não teve o mesmo reconhecimento que as demais obras de seus heterônimos
masculinos, pelo contrário, essa obra é mesmo quase desconhecida, tendo sido revelada por
Teresa Rita Lopes, em Pessoa por conhecer I e II, obra publicada pela Editorial Estampa em
1990. Mas é bastante curioso, que a carta de Maria José só recentemente tenha sido objeto de
pesquisas. A carta da corcunda não é tão popularizada quanto a produção dos principais
heterônimos, sendo verdade que muitas outras figuras ficcionais são praticamente
desconhecidas7, talvez pelo fato de ter somente uma obra assinada, ou, podemos aventar, por
ser “mulher”.
Uma mulher que nunca existiu fisicamente, mas que por algum motivo foi escolhida como
autora de uma obra por um dos escritores mais geniais e mais intrigantes da época.
Possivelmente, o que Fernando Pessoa sempre quis foi mostrar sua personalidade “vazia”: ele,
que sempre buscava seus vários “eus” através de seus heterônimos, talvez tenha querido
mostrar, através de uma personalidade feminina, ainda para mais corcunda, isto é, deformada e
diminuída na sua possibilidade de sedução, o quanto se sentia fora da existência, assim como
acontecia com as mulheres, que viviam em seu espaço, mas parecia que não eram
verdadeiramente vistas.
Para conhecermos um pouco mais a única obra de Fernando Pessoa assinada por uma mulher,
dedicaremos o próximo tópico para uma análise da obra A carta da corcunda para o
serralheiro.
4.1“A Carta da Corcunda para o Serralheiro”
Criei em mim várias personalidades.
Crio personalidades constantemente.
7 José Cavalcanti Filho, em Fernando Pessoa: uma quase autobiografia, menciona a existência de 127 heterônimos pessoanos.
A FICÇÃO DA AUTORIA FEMININA NA OBRA “A CARTA DA CORCUNDA PARA O SERRALHEIRO”
DE FERNANDO PESSOA
Luelia Gomes Batista | Paula Cristina Ribeiro da Rocha de Morais Cunha
Anais – FLIPA | 81
Fernando Pessoa/B.Soares
A Carta da Corcunda para o Serralheiro é inspirada nos modelos canônicos da tradição
epistolar amorosa. A epístola apresenta uma confissão de amor de uma jovem corcunda de
dezenove anos, Maria José. Correspondendo ao modelo do gênero epistolar, em que o sujeito
escreve sobre o amor mesmo sabendo que nunca será correspondido, o ato da escrita é uma
forma de manter aberto o circuito do desejo e funciona como uma espécie de gesto de catarse,
pois o sujeito amoroso acaba escrevendo mais para si do que para o outro, convertendo-se a
carta, afinal, num monólogo, um meio de vazar suas ânsias.
Maria José tem completa consciência de que sua carta nunca será lida, e seu amor nunca será
correspondido, como podemos notar no início da carta: “Senhor António: O senhor nunca há-
de ver esta carta. Nem eu a hei-de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero
escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba [...]” (Pessoa, 1990, p.1). Maria José é uma jovem
corcunda tuberculosa que passa seus dias a observar as pessoas de sua janela, vive na completa
solidão, praticamente não tem motivos para viver, mas encontrou um motivo que a faz, todos
os dias, sentar à janela, para, nem que seja por uma fração de segundos, ver o Senhor António
passar:
O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor
o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gosta das pessoas que têm o
corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também
tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém. (PESSOA, 1990, p. 1,)
Maria José se conforma em saber que jamais ganharia o amor de outra pessoa, afinal, não possui
beleza, não possui o corpo bem feito de outras mulheres, pois é corcunda. A autora da carta
ainda afirma que tem consciência de que o Senhor António jamais se importaria com a sua
existência, mas que não o procura, para evitar sofrimento: “Tenho medo de que se o senhor
soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo
antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber. ” (PESSOA, 1990, p. 1)
A corcunda observa o serralheiro da janela, mas ele não a conhece, nunca se viram, nunca
conversaram, logo, a carta é a forma encontrada para criar uma ficção que torna presente pela
escrita o objeto amado: “Apesar do seu interlocutor imediato se caracterizar pela ausência e
pela inacessibilidade, a sua presença fantasmática é, todavia, importante para ativar o desejo da
mulher apaixonada que afirma: “eu não penso senão em si”. (BESSE, 1998, p. 22)
A FICÇÃO DA AUTORIA FEMININA NA OBRA “A CARTA DA CORCUNDA PARA O SERRALHEIRO”
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A carta contém os lamentos de uma jovem corcunda que nunca terá uma vida “normal”, sente-
se como um fardo para sua família, e expressa, naquela missiva destinada a nunca ser enviada,
como ela própria, que nunca será recebida, amada por ninguém, que nem a morte lhe parece
servir como um alívio para suas dores e sim para se tornar mais uma chacota em sua triste
existência. A carta atinge o paroxismo quando Maria José imagina o suicídio como um ato que,
de desesperado e trágico, se tornaria patético, vil, por expor um corpo deformado que deveria
manter-se escondido e não ser exposto aos olhares dos outros, condição existencial que era a
sua:
“Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura
teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era
ainda mais maçada para os outros [...] e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à
vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo
ou a rir se calhasse, porque a gente é como é não como tinha vontade de ser” (PESSOA, 1990, p. 3)
De acordo com Maria Graciette Besse (1998, p. 23), “A ideia do suicídio faz parte de uma
solução interior ao sistema amoroso que, como assinala Barthes, se apresenta como uma ficção
[…]”. A possibilidade de ser está atrelada ao desejo: “Se o senhor soubesse isto tudo era capaz
de vez em quando me dizer adeus na rua”. (PESSOA, 1990, p. 03).
Maria José desdobra-se como personagem de sua própria carta (de sua desejada existência?) e,
nesse movimento encenado no ato da escrita, opera uma catarse (se não escrevo, abafo”),
chegando a ficcionalizar um romance com o serralheiro. Insistentemente se vê a si como um
outro, atitude tipicamente pessoana, cujo “eu” se desdobra num outro, se multiplica, ensaiando
outros ângulos, outras possibilidades para sua existência absurda:
— E enfim porque lhe estou eu a escrever se lhe não vou mandar esta carta? O senhor que anda de
um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser ninguém. Eu estou à janela todo o
dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e
àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá. [...]
(PESSOA, 1990, p. 4)
De acordo com Besse, a expressão do amor permite a Maria José encontrar uma saída para sua
intolerável existência:
Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no
peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo
que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir
porque eu sei que não posso esperar mais. Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha
vida. Aí tem e estou a chorar. Maria José (PESSOA, 1990, p. 4)
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A carta termina com Maria José descrevendo a triste dor de não ser ninguém, de passar seus
dias sem nenhum motivo para viver e sorrir. Despede-se do Senhor António, mesmo sabendo
que ele nunca saberá de sua existência, e menos ainda da carta, o que ela prefere, pois tem medo
de seu amor ser ridicularizado. Afinal, que chances teria uma corcunda tuberculosa que não
anda, que está com os dias contados para a morte, de viver tal amor, a não ser de se lamentar
por ser ninguém? Há uma espécie de comprazimento na autocomiseração, tópico que está
presente nos outros heterônimos, também no ortônimo, e que ecoa a sensação de “ser ninguém”,
o medo do vazio tipicamente pessoano. É ainda Fernando Pessoa- Bernardo Soares que
sentimos espreitando da janela ou da mansarda juntamente com Maria José, O medo de não ser
nada, a rasura da identidade, faz-se presente na carta: “eu não sou mulher nem homem, porque
ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão
da janela e a aborrecer tudo que me vê”. (PESSOA, 1990, p. 4)
A carta tem um tom extremamente cativante, afinal, quem não se sente tocado ao ouvir os
lamentos de uma jovem corcunda que sonha em viver um amor?. Mas Maria José sabe que
“todas as cartas de amor são ridículas”, como diria Pessoa pela voz de Álvaro de Campos. Tal
como Maria José, Fernando Pessoa parece ter renunciado ao amor, apesar de ser conhecido o
seu relacionamento com Ofélia Queirós. A correspondência amorosa, ou melhor, as cartas
escritas por Fernando Pessoa a Ofélia (vejam-se as ressonâncias literárias) estão publicadas
(2013).
De acordo com Magalhães (2008), as cartas de amor de Fernando Pessoa destinadas a Ofélia
Queirós são os únicos textos em que Fernando Pessoa possui uma relação com uma mulher real.
A autora ainda explica que em outras obras de Fernando Pessoa, existe sempre uma recusa da
mulher e um distanciamento da relação amorosa, do carnal.
Em suas obras, Fernando Pessoa costumava tratar a presença do feminino de distintas maneiras,
existindo para cada heterônimo uma maneira particular de tratar o feminino:
[...] estimulo a uma percepção mais intensa (em Caeiro), lugar de desejo contraditoriamente
construído (em Pessoa-ele-mesmo e em Soares), objeto do desejo mais ou menos sexualizado (em
poemas ingleses e em algum Álvaro de Campos), companheira silenciosa e quase metafisica (em
Ricardo Reis). (MAGALHÃES, 2008, p.39).
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Magalhães (2008) complementa que essa variação e o modo como o feminino e a sexualidade
se fazem presentes nos textos de Fernando Pessoa, como figuras ficcionais, intensificam a
“ausência da coisa”.
Vejamos o que nos diz Fernando Pessoa sobre sua personalidade poética:
O poeta central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho
continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e despersonalização do
dramaturgo. [...] Desde que o crítico fixe [...] que sou essencialmente poeta dramático, tem a chave
da minha personalidade. [...] Sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto
despegando-se de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto
para uma expressão alheia ao que senti, construindo na emoção uma pessoa inexistente que a sentisse
verdadeiramente, e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me
esqueci de sentir. (PESSOA, p.3002-3003, 1986)
Fernando Pessoa escreve em nome de outros, atribuindo-lhes sentimentos alheios, tal como um
dramaturgo que criasse personagens para incorporar sensibilidades alheias e que talvez ele
nunca fosse capaz de vivenciar sendo ele mesmo, Fernando Pessoa.
Assim, Fernando Pessoa é aquele que continuamente se desdobra em outros, se multiplica, até
desaparecer como realidade empírica, sobrepondo máscaras que desorientam o leitor
empenhado em encontrar o “verdadeiro” Pessoa.
Maria José é uma dessas máscaras. Sua existência é puramente literária, tal como a das heroínas
de Ovídio. Mas é suficiente para criar um novo gênero literário, a exemplo de Ovídio, e de
provocar um grande estranhamento, como esta carta de Maria José, uma anti-heroína que glosa
a crise do sujeito da modernidade: aquele que não pode ser.
Talvez mais importante ainda é que esse gesto aponta para um vazio no lugar da voz autoral
feminina. De fato, a autora da carta, Maria José, é uma autora ficcional, uma das muitas ficções
autorais criadas por Fernando Pessoa. O que surpreende é que é uma ficção feminina, sendo o
outro exemplo do misógino grupo de Orpheu Violante de Cysneiros, heterônimo de Armando
Côrtes Rodrigues para colaborar na revista Orpheu, por sugestão do mais que suspeito Fernando
Pessoa!
Percebendo a fragmentação da autoria feminina na história da literatura portuguesa ao longo dos
séculos, Klobucka (2008) não deixa de notar que o sujeito discursivo feminino está representado
desde sua gênese: nas cantigas de amigo, em que o poeta se traveste num sujeito feminino; em
Menina e moça, de Bernardim Ribeiro, novela na qual a protagonista, em registro confessional,
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conta as desventuras de seus amores; nas célebres cinco cartas de Sóror Mariana Alcoforado, cuja
autoria, hoje, é quase consensualmente atribuída a um autor, Guilleragues; e com Violante de
Cysneiros, heterônimo de Armando Côrtes Rodrigues, figura feminina criada pelo misógino grupo
de Orpheu para as duas revistas modernistas, Orpheu 1 e 2. (CUNHA, 2015, p. 34).
A literatura portuguesa tem como figuras canônicas homens, como de resto quase todas as
literaturas. Quando se considera a emergência do fenômeno “autoria feminina” em Portugal,
isso acontece relativamente tarde, sobretudo se nos reportarmos ao exemplo inglês. É claro que
as autoras vinham tentando, pelo menos desde finais do século XIX em sua atuação na
imprensa, adentrar nesse território masculino. Ora, quando analisamos a literatura portuguesa,
desde a gênese, percebemos que, desde as cantigas de amigo, que apresentam um sujeito lírico
feminino embora o autor-trovador seja um homem, esse lugar de fala já está previsto, mas não
foi preenchido por nenhuma figura real até muito tarde. Somente a partir dos anos 50 do século
XX, as escritoras portuguesas começam a ser publicadas e suas obras avaliadas em igualdade
de circunstâncias em relação aos autores.
Uma escritora como Florbela Espanca, por exemplo, que por acaso escreve no mesmo período
da geração de Orpheu, teve muitas dificuldades em ser aceita e publicada. E ainda hoje ela não
é inserida no movimento modernista. De fato, a sua obra tem características bem diferentes da
produção de seus parceiros geracionais, mas as histórias da literatura não a integram em nenhum
movimento, o que tem de nos fazer pensar.
Em relação à tradição epistolar de cartas de amor, é muito curioso que a Carta da corcunda
para o serralheiro seja caso único de um heterônimo feminino que assina um texto que integra
de pleno direito a genealogia de escritores que investem a voz feminina. As implicações desse
gesto são muito relevantes porque levantam a questão da autoria feminina. Também, e não
menos importante, faz-se uso de um gênero considerado menor para se questionar a constituição
do cânone literário português.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente estudo, acompanhamos a tradição do romance epistolar, iniciada por Ovídio com
as Heroides, abrindo uma fresta para um novo modelo narrativo que traria a oportunidade de o
universo feminino ser retratado, no meio literário, pela voz das heroínas da mitologia que se
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revelam em suas fraquezas. Ovídio inaugura um gênero que permite questionar o cânone da
época e que lhe valeu o exílio, pois não obedecia à literatura de exaltação épica.
Obras como Cartas Portuguesas, de Sóror Mariana, e a Carta da Corcunda para o Serralheiro,
de Fernando Pessoa, escritas por homens, mas trazendo na escrita autoras ajudam-nos a pensar
no epistolar como um gênero de pleno direito e na autoria feminina como uma prática de rasura,
isto é, como uma escrita que aponta o lugar de uma voz que foi silenciada a ponto de a autoria
masculina suprir essa falta. Por que falar em nome da mulher mantendo-a afastada do universo
simbólico? Trazer a sua voz não será reconhecer implicitamente que ela não pode falar por ela
própria.
De fato, lendo sobre a recepção crítica de livros de autoras oitocentistas e das primeiras décadas
em Portugal, percebe-se a dificuldade que tinham em socializar suas obras. No período do
modernismo em Portugal, o grupo de Orpheu, que não tinha em sua composição a presença de
mulheres, verifica-se que as poucas colaborações “femininas” correspondem a ficções, autoras
forjadas, a exemplo de Violante de Cysneiros e de Maria José. Portanto, elas não comparecem
como personagens, o que já acontecia na literatura desde as cantigas de amigo na Idade Média,
mas exibindo um “eu” autoral e uma sensibilidade feminina mimetizada por escritores homens.
Esse fingimento poético, ao mesmo tempo em que exclui as mulheres como escritoras reais, de
certa forma, também, contribuiu para a problematização acerca de seu lugar no machista cânone
nacional português, pois faz ver um problema – justamente o da dificuldade de sua inserção.
Notamos, assim, problemas na afirmação da autoria feminina em Portugal. Ao invés da obra de
uma mulher escritora, encontramos apenas mais uma das máscaras pessoanas, Maria José, sua
única figura heterônima feminina, mais uma de suas sondagens incessantes para encontrar um
rosto que o curasse de sentir “ser ninguém”.
REFERÊNCIAS
BESSE, Maria Graciete. Fernando Pessoa/Maria José e a encenação do feminino.
Latitudes, nº 4, dez. 1998. Disponível em http://www.revues-
plurielles.org/_uploads/pdf/17_4_6.pdf. Consulta em: 20 de maio de 2018.
CUNHA, Paula Cristina Ribeiro da Rocha de Marais. Novas Cartas Portuguesas: O Gênero
Epistolar e a Releitura do Cânone Literário Português. Universidade Federal da Paraíba
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Centro de Ciências Humanas Letras e Artes Programa de Pós-graduação em Letras. João
Pessoa, 2015.
MAGALHÃES, Isabel Allegro de. “O gesto, e não as mãos”: A figuração do feminino na
obra de Fernando Pessoa: Uma gramática da mulher evanescente”. Revista
Colóquio\Letras. Ensaio, no 140\141, p.17-47, 2008.
MOISÉS, de Massaud. A Literatura Portuguesa, A Literatura Portuguesa Através dos
Textos. São Paulo: Editora Massaud Moises, 2001.
PESSOA, Fernando. Cartas a Ofélia. 1. Ed. – São Paulo,: Globo, 2013.
VAN RAIJ, Cleonice Furtado de Mendonça. Conflito discursivo nas Heróides de Ovídio.
LETRAS CLÁSSICAS, n. 4, p. 267-271, 2000. Pontifícia Universidade Católica de
Campinas, 2000.