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Fundamentos das Ciências Sociais 2014

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Fundamentos das Ciências Sociais

2014

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© UniSEB © Editora Universidade Estácio de SáTodos os direitos desta edição reservados à UniSEB e Editora Universidade Estácio de Sá.

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou meio eletrônico, e mecânico, fotográfi co e gravação ou qualquer outro, sem a permissão expressa do UniSEB e Editora Universidade Estácio de Sá. A violação dos direitos autorais é

punível como crime (Código Penal art. 184 e §§; Lei 6.895/80), com busca, apreensão e indenizações diversas (Lei 9.610/98 – Lei dos Direitos Autorais – arts. 122, 123, 124 e 126).

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Fundamentos das Ciências Sociais

Capítulo 1: Os conceitos socioantropológicos de indivíduo e sociedade ...................................... 7

Objetivos da sua prendizagem ....................................... 7Você se lembra? .................................................................. 7

1.1 Breve história da ciência .................................................. 91.2 As revoluções e as novas formas de organização social ..... 11

1.3 A Sociologia é uma ciência social ........................................... 141.4 O surgimento e o desenvolvimento da Sociologia ....................... 15

1.5 Afinal, o que é Sociologia? .............................................................. 171.6 O aparecimento e o desenvolvimento da Antropologia ....................... 19

1.7 O aparecimento e o desenvolvimento da Ciência Política ...................... 211.8 A metodologia de pesquisa das Ciências Sociais ...................................... 22

Atividades .......................................................................................................... 24Reflexão................................................................................................................. 26

Leituras recomendadas ............................................................................................ 26Referências ................................................................................................................ 26

No próximo capítulo .................................................................................................. 28Capítulo 2: A Contribuição da Sociologia, da Antropologia e da Ciência Política

para a Compreensão dos Fenômenos Culturais e Sociais ....................................... 29Objetivos da aprendizagem ........................................................................................... 30Você se lembra? .............................................................................................................. 302.1 O que é cultura? ...................................................................................................... 312.2 Cultura popular e cultura erudita. ........................................................................... 362.3 Cultura e cidadania ................................................................................................. 392.4 Indústria cultural ................................................................................................... 41Atividades .................................................................................................................. 48Reflexão .................................................................................................................... 50

Leituras recomendadas ........................................................................................... 52Referências .......................................................................................................... 52

No próximo capítulo ........................................................................................ 53Capítulo 3: Modelos clássicos da análise e compreensão da sociedade e

das instituições sociais e políticas .......................................................... 55Objetivos da sua aprendizagem ........................................................... 55

Você se lembra? ............................................................................... 553.1 Introdução ao problema ......................................................... 563.2 Teoria do direito divino .......................................................... 58

3.3 Teoria do contrato social- Hobbes, Locke, Rousseau ....... 593.4 Liberalismo filosófico ................................................. 65

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o3.5 Visão de Estado na concepção marxista ................................................................... 663.6 O positivismo ........................................................................................................... 703.7 A sociologia de Émile Durkheim ............................................................................. 733.8 A sociologia de Max Weber ..................................................................................... 75Atividades ....................................................................................................................... 77Reflexão .......................................................................................................................... 81Leituras recomendadas ................................................................................................... 82Referências ...................................................................................................................... 82No próximo capítulo ...................................................................................................... 84Capítulo 4: A Concepção Marxista da Análise Social: Desigualdade Social e Trabalho ................................................................................... 85Objetivos da aprendizagem ............................................................................................. 85Você se lembra? .............................................................................................................. 854.1 A desigualdade social ............................................................................................... 894.2 Estratificação social ................................................................................................. 934.3 Desigualdade social, mercado de trabalho e pobreza no Brasil ............................... 954.4 Os significados do trabalho ao longo da história ................................................... 1054.5 O que é trabalho? ....................................................................................................1114.6 A jornada de trabalho ............................................................................................. 1164.7 Desemprego e precarização do trabalho ................................................................. 120Atividades ..................................................................................................................... 125Reflexão ........................................................................................................................ 126Leituras recomendadas .................................................................................................. 127Referências .................................................................................................................... 127No próximo capítulo ..................................................................................................... 129Capítulo 5: A Atualidade das Ciências Sociais na Compreensão da Sociedade Contemporânea: Globalização, Sustentabilidade Ambiental no Mundo Contemporâneo ........................................................................................................... 131Objetivos da aprendizagem ........................................................................................... 131Você se lembra? ............................................................................................................ 1315.1 A tese da ocidentalização do mundo ...................................................................... 1365.2 Os paradoxos e os limites da globalização ............................................................. 1415.3 Conceitos de grupos étnicos .................................................................................... 1425.4 Descrever o processo de construção de novas identidades e novos padrões de comportamento na sociedade brasileira ........................................................................ 143Atividades ..................................................................................................................... 148Reflexão ........................................................................................................................ 152Leituras recomendadas .................................................................................................. 152Referências .................................................................................................................... 152

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o Fundamentos das Ciências Sociais

Quantas vezes você já se deparou com análises e questionamentos sobre a nossa

realidade e as diferentes relações entre cultu-ra, economia e política? Será que existe relação

entre uma determinada realidade social e suas bases culturais? As desigualdades sociais e o desemprego são

questões pessoais e isoladas de uma sociedade ou estão re-lacionadas com as estruturais gerais de um meio social? Qual

a diferença da realidade da população de um país em compa-ração com outro? Essas são algumas questões que as Ciências

Sociais procuram investigar. Pretendemos construir algumas bases que permitirão o reconhecimento e a compreensão mais profunda do

seu ambiente de trabalho e da forma como ele está estruturado. Entre as habilidades, é importante destacar a capacidade de entendimento da

inter-relação que existe entre o indivíduo e o seu meio social.. A disci-plina de Fundamentos das Ciências Sociais tem como escopo desenvol-ver estudos voltados à compreensão da natureza das associações huma-nas e das suas relações. Ela busca iluminar o entendimento do homem em sociedade e das relações contidas neste todo caótico e coeso, bem como, observar a influência que esta sociedade exerce sobre os atos dos indivíduos e dos grupos humanos em suas realizações materiais, culturais e psicológicas. Busca, ainda, estudar as causas, a ordem, o processamen-to e as múltiplas relações das formas sociais e proporcionar ao aluno os meios de interpretar o meio social do mundo no qual está imerso. Essa disciplina garante também a compreensão das normas e o comporta-

mento dos profissionais em determinados eventos nas sociedades humanas que interferem em situações cotidianas e refletem no

processo histórico.

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Cap

ítulo

1 Os conceitos

socioantropológicos de indivíduo e sociedade

Nesse primeiro capítulo, apresentaremos um pouco da história e do contexto histórico

das Ciências Sociais, explicando seus objetos e sua metodologia.

Objetivos da sua prendizagemAo final do capítulo, você será capaz de compreender por que

o homem é diferente de outros animais; identificar o contexto histórico da Sociologia, da Antropologia e da Ciência Política e

os seus principais pensadores; saber o que é Sociologia e por que ela é uma ciência social; e compreender a importância do estudo

dessa disciplina.

Você se lembra? Você se lembra da última vez que viu ou ouviu um sociólogo analisan-do determinado acontecimento social? Lembra-se das vezes em que, em conversas com amigos ou familiares, vocês buscavam interpretar e compreender algum fenômeno da realidade? A Sociologia constitui-se, justamente, como a ciência que busca elucidar as questões que envolvem nosso convívio em sociedade.

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A educação formal

é aquela em que o aprendiza-do depende da instituição escolar. A

educação informal, por sua vez, é aquela em que o indivíduo desenvolve o aprendiza-

do fora da escola, em família, com amigos, nas igrejas etc.

1. O homem é um ser social Todo ser humano vive em sociedade. As-

sim, pode-se dizer que todo homem é um ser social. Para entender o que é Sociologia, pre-cisamos compreender quem é o ser humano e por que é necessária uma ciência para estudá-lo em sociedade. O homem não é apenas um conjunto de componentes físicos e orgânicos, ele é também um ser que pensa, sente, relaciona-se com outros homens, modifica a natureza à sua volta e cria coisas novas. Para atuar no mundo em que vive, o homem precisa passar por um aprendizado que lhe permita ter um comportamento adequado à convivência com outros seres iguais a ele. O homem eventualmente criado longe do convívio so-cial é incapaz de se humanizar, deixando apenas aflorar suas característi-cas instintivas, assemelhando-se aos animais.

Mas o que diferencia o homem dos animais? O homem é o único animal que não age apenas por instinto, porque ele passa por um processo de aprendizado, de socialização e porque precisa da linguagem para se co-municar com seus semelhantes. A socialização é, então, um processo que dá o caráter humano ao homem, diferencian-do-o do animal. A educação (formal e informal) é fundamental para a socialização do ser humano.

Quando socializado, o ser humano age socialmente, ou seja, suas ações, seus sen-timentos e pensamentos estão diretamente ligados a outros seres humanos: é na convivên-cia (boa ou ruim) com o outro que ele aprende a ser homem. A socialização é, então, esse apren-dizado. É pela socialização que o ser humano aprende a cultura de sua época, de seu lugar.

Conexão:

Dica de filme: Procure assistir ao filme O

enigma de Kaspar Hauser, de 1976, no qual o cineasta alemão Werner Herzog trata exatamente

desse tema.

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O tema específico da cultura será visto mais para a frente. Por en-quanto, o que importa, para se entender o que é Sociologia, é saber que a cultura é o conjunto de valores, hábitos, costumes e normas que organi-zam a vida em sociedade. O homem adequado ao seu meio social é aquele que foi socializado, ou seja, aprendeu como agir socialmente.

Veja como o ser humano se transforma em ser social:

EDUCAÇÃOAPRENDIZAGEMSOCIALIZAÇÃO

LINGUAGEM

SER

HUMANO

SER

SOCIAL

CULTURA

A Sociologia chama de socialização o processo pelo qual o indivíduo assimila os valores, as normas e as expectativas sociais de um grupo ou de uma sociedade. Esse processo, responsável pela transmissão da cultura, é contínuo e se inicia na família, quando se realiza a chamada socialização primária. Depois é assumido pela escola, pelo grupo de referência e pelas diferentes formas de treinamento e ajuste a que o indivíduo se submete no decorrer de sua existência e que caracterizam a socialização secundária” (COSTA, Cristina. Sociologia. In-trodução à ciência da sociedade. São Paulo: Editora Moderna, 1997, s/p.).

Até aqui, vimos como se dá o processo de socialização dos seres hu-manos. Agora, vamos ver como entender esse processo pela Sociologia?

1.1 Breve história da ciência A ciência – ou scientia – é conhecimento, saber sistematizado que

busca leis universais e cuja legitimidade baseia-se na comprovação empí-rica: “é preciso ver para crer”, é preciso comprovar que a realidade é real. Esta visão de ciência, que está na base de nossa cultura e que sustenta os nossos valores, começou a ser formulada no século XVI, quando a per-cepção do mundo mudou significativamente. Nos séculos XVI e XVII, a perspectiva medieval de ciência, que se baseava na razão e na fé, mudou radicalmente, e o mundo, a partir de estudos da física e da astronomia, começou a ser compreendido como uma máquina. Copérnico, Galileu,

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Bacon, Descartes e Newton são os grandes cientistas dos séculos XVI e XVII, conhecidos como a Idade da Revolução Científica.

Nicolau Copérnico (Itália) modifica a noção do mundo quando contraria a concepção geocêntrica da Igreja para defender sua concepção heliocêntrica, na qual a Terra não é o centro do universo. Galileu Galilei (Itália), que inventou o telescópio, foi pioneiro na abordagem empírica e no uso da descrição matemática da natureza e tornou-se referência nas teorias científicas até hoje. Francis Bacon (Inglaterra) foi o primeiro a for-mular uma teoria clara do método indutivo, ou seja, realizar experimentos e extrair deles conclusões gerais. Isaac Newton (Inglaterra) forneceu uma consistente teoria matemática, hoje conhecida como cálculo diferencial, para descrever o movimento dos corpos. Foi Newton quem inspirou sua teoria na famosa queda da maçã.

René Descartes (França) é considerado o fundador da filosofia mo-derna, com a qual pretendia criar uma nova ciência que fosse capaz de distinguir a verdade do erro em todos os campos do saber: a ciência é o conhecimento certo, é a verdade.

Descartes, para quem ciência era sinônimo de matemática, influen-ciou de forma marcante todos os ramos da ciência moderna, por isso merece destaque. É graças a ele que hoje as pessoas estão convencidas de que o método científico é o único meio válido para se compreender o universo. Tomando a dúvida como ponto fundamental de seu método, chamado de cartesiano, e duvidando de tudo, Descartes chegou à famosa

afirmação Cogito, ergo sum: “Pen-so, logo existo”.

Assim, concluiu que o pen-samento é a essência da natureza humana e que, portanto, tudo o que o ser humano pensa, intui (intuição) e deduz (dedução) é verdadeiro. Sua maior contribuição à ciência é seu método analítico, que consiste em decompor pensamentos e problemas em partes e organizá-los em uma ordem lógica.

E m b o r a i n e g a v e l m e n t e importante para o pensamento científico até hoje, o cartesianis-

AFP / ROGER_VIOLLET

René Descartes

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mo de Descartes foi responsável pela fragmentação do pensamento em geral e das disciplinas acadêmicas e também por alimentar a cren-ça reducionista da ciência: todos os aspectos dos fenômenos com-plexos podem ser compreendidos quando reduzidos às suas partes. O cogito cartesiano, como passou a ser chamado, fundou o dualismo que separa a mente da matéria, a natureza dos seres humanos, o mundo físico do mundo social e espiritual.

A atitude das pessoas em relação ao meio ambiente, à cultura e ao ser humano em geral sofreu consideráveis transformações a partir de Des-cartes. Sua concepção mecanicista, que tinha o universo como um sistema mecânico, tornava homem e máquina uma mesma coisa. A ideia de tratar os organismos vivos – homens e animais – como nada mais do que má-quinas teve consequências adversas tanto para as ciências humanas como para as ciências biológicas. Este reducionismo é evidente na medicina, por exemplo, em que a adesão ao modelo cartesiano tem impedido os médicos de compreenderem muitas doenças, na medida em que entendem o corpo humano por partes, e não pelo todo. A medicina holística tem, nos últimos anos, procurado romper com esta compreensão mecanicista do corpo huma-no, propondo uma nova compreensão do corpo humano e de sua saúde.

O paradigma mecanicista sustentou a ciência clássica do século XVI até o início do século XX, quando novas maneiras de compreender o conhecimento científico começaram a marcar presença e ser aceitas. O dualismo cartesiano foi uma das premissas mais importantes desse para-digma, mostrando que toda a história do conhecimento científico é a his-tória da busca de uma verdade universal.

1.2 As revoluções e as novas formas de organização social O final do século XVIII e o início do século XIX são marcados por

dois acontecimentos históricos da maior importância: a Revolução Francesa e a chamada Revolução Industrial, que coincidiram com a desagregação da sociedade feudal e com a consolidação do capitalismo. Estes acontecimen-tos históricos geraram problemas sociais que os pensadores da época não conseguiram explicar. Assim, o social e a sociedade começaram a requerer um olhar próprio, uma ciência própria que até então não existia.

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A Revolução Francesa foi responsável por inigualáveis transforma-ções sociais e políticas, que ocorreram graças à proclamação de valores como liberdade e igualdade e por uma, até então, inédita valorização do indivíduo como cidadão. O que hoje consideramos comum, como a demo-cracia e o Estado de Direito, também nasceu nesse período.

Foi com a Revolução Francesa que as pessoas passaram a ser vistas não apenas como portadoras de deveres, mas também de direitos. Elabo-rou-se, então, a Declaração Universal dos Direitos dos Homens.

A Revolução Industrial, que se iniciou na Inglaterra e rapidamente se disseminou pela Europa e pelos Estados Unidos, não foi caracterizada somente pelas inovações técnicas a partir da máquina a vapor e pela in-dustrialização crescente, mas também por um conjunto de mudanças so-ciais e econômicas importantes, como a consequente migração do campo para as cidades, o crescimento da urbanização e um admirável aumento da população.

A Revolução Industrial foi um marco para a vida moderna porque se trata, na verdade, de uma revolução científico-tecnológica que mudou a organização social definitivamente. Num prazo relativamente curto, de cerca de 100 anos, a Europa de sítios, rendeiros e artesãos passou a ser uma Europa de cidades e indústrias. Com a indústria, a produção começa a ser feita num ritmo acelerado e o crescimento urbano passa a ser significativo, separando os espaços rurais dos espaços urbanos. Com as indústrias e essa nova forma de produção, a economia também mu-dou, deixando de ser agrária para ser industrial. Além disso, expandiu- -se o comércio internacional em busca de matérias-primas e de escoamen-to das mercadorias produzidas.

As principais mudanças ocorridas na sociedade em função da Revo-lução Industrial podem ser assim sintetizadas:

– grande concentração humana nas cidades inglesas, uma vez que os camponeses saíram do campo em busca de nova vida nas cidades que surgiam em função das indústrias: há intensa migração do campo para a cidade;

Modelo, padrão

Cada uma das proposições que servem de base para a conclu-

são. Ponto de que se parte para armar um raciocínio.

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– substituição progressiva do trabalho humano por máquinas; – divisão do trabalho em partes especializadas e necessidade de coordenação: o aumento da produtividade se originou da organização do trabalho, e não do aumento das habilidades individuais; – mudanças culturais no trabalho: os novos trabalhadores das indústrias ainda estavam acostumados com o trabalho agrí-cola e o artesanato. Os industriais tiveram de impor uma disciplina desconhecida por esses trabalhadores, os quais tiveram que se submeter ao controle externo, exercido por capatazes; – produção de bens em grande quantidade: as máquinas au-mentaram o ritmo da produção e a quantidade de bens pro-duzidos, além de possibilitarem a homogeneização (todos os bens saem iguais das máquinas, diferentemente dos bens feitos artesanalmente); – surgimento de novos papéis sociais: começa a se definir um contorno distinto para o capitalista (o empresário é dono das empresas e das máquinas, compra o trabalho dos outros) e para o operário (o trabalhador não possui nada além de sua força de trabalho e precisa vendê-la para se sustentar).

Vamos continuar entendendo o contexto histórico que propiciou o surgimento da Sociologia?

Nessa mesma época da Revolução Industrial (séc. XIX), houve um processo de revitalização da universidade, que se tornou, definitivamente, o lugar do saber por excelência. Com isso, configuraram-se a disciplinari-zação e a profissionalização do conhecimento. Como as ciências naturais nunca precisaram deste espaço institucionalizado para desenvolver seus trabalhos, pois sempre tiveram apoio dos governos, as transformações que aconteceram com a universidade foram fundamentais para abrir espaço às ciências humanas e marcar distinções entre ciências naturais e humanas.

As mudanças provocadas pelas duas grandes revoluções europeias, a expansão do capitalismo (e, com ele, os interesses antagônicos) e a revitali-zação da universidade nos séculos XVIII e XIX – pe ríodo conhecido como Iluminismo –, podem ser consideradas o cenário que contextualiza as ori-gens das ciências sociais que surgem, exatamente, nesse período marcado por essas transformações do meio social. De posse dessas informações so-bre a contextualização histórica do surgimento da Sociologia, podemos se-

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guir adiante para compreendermos algumas das características dessa ciência e o processo do seu desenvolvimento e consolidação como uma das formas de compreensão da relação do homem com o seu meio social.

1.3 A Sociologia é uma ciência social As formas de organização social do ser humano são objeto de estu-

do da Sociologia.

Antagônico: oposto, contrário

Você achou estranho chamar de “objeto” de estudo? Mas é esse o termo que as ciências usam: o que elas estudam convencionou-se chamar de “objeto de estudo”, que é o alvo para o qual se direciona o estudo.

A Sociologia é uma das três ciências sociais básicas, que são: a an-tropologia, a sociologia e a ciência política.

Resumidamente, podemos dizer que a antropologia estuda mais especificamente as diferentes culturas no mundo (diferenças de costumes e valores de um lugar para outro, de um grupo para outro). A ciência po-lítica estuda as relações de poder que se estabelecem na sociedade (sejam nas relações cotidianas, como os poderes, entre homens e mulheres, pa-trões e empregados, pais e filhos, ou, no nível governamental, como nos cargos políticos). A Sociologia estuda as relações sociais que os homens estabelecem com outros homens por meio das instituições sociais (escola, família, Estado, igreja, sindicato, empresa etc.).

Até hoje ainda existem pessoas que perguntam se é possível fazer ciência da sociedade ou se a Sociologia é mesmo uma ciência. Esta des-confiança é perfeitamente compreensível, na medida em que sabemos o que é que está por trás das concepções que essas pessoas têm de ciência e de cientista: maçãs caindo das árvores e provando a força da gravidade; cientistas malucos que transferem líquidos coloridos de um vidro ao outro provocando fumaças; lunetas gigantes para conhecer os mistérios do céu; equações matemáticas monstruosas que fundem a cabeça de qualquer mortal; corpos humanos e animais dissecados; ratinhos de laboratório etc.

Mas, quando conhecemos a história da ciência em geral e das ciên-cias sociais em particular, tudo começa a ficar mais claro, um pouco mais perto do real.

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1.4 O surgimento e o desenvolvimento da Sociologia A Sociologia é uma ciência e seu surgimento e consolidação como

tal, juntamente com suas especificidades e seus métodos próprios de in-vestigação, diferenciam-na dos saberes do senso comum, proferidos por nós quando analisamos nossos comportamentos e experiências interpes-soais. Entendemos como senso comum ou conhecimento espontâneo o conhecimento que se acumula no nosso cotidiano (cheio de certezas e explicações imediatas) e que é transmitido de geração a geração por meio de nossos hábitos, costumes e tradições. Dessa maneira, acabamos repro-duzindo ideias que não são nossas, mas que são assimiladas e tomadas por nós como verdadeiras, por isso temos sempre uma opinião a respeito de assuntos que muitas vezes nem conhecemos.

O homem sempre se preocupou em compreender a si mesmo e o universo, mas foi somente no século XVIII, com uma série de eventos que ocorreram na Europa e transformaram profundamente as estruturas da sociedade, suprimindo os pilares do velho regime feudal, incluindo o movimento intelectual do Iluminismo na França, que a “ciência” pôde se impor como uma maneira de pensar o mundo isenta dos pressupostos de-terminantes da religião e da tradição. Neste período, ocorreu também uma profunda valorização do homem, voltada para a crença na razão humana e nos seus poderes.

Mais tarde, já no século XIX (1801-1900), com a Revolução Francesa, o pensamento sistemá-tico sobre o mundo social foi acelerado, assim como a neces-sidade dos homens de compre-ender os inúmeros problemas sociais decorrentes do processo de industrialização. Sendo assim, podemos dizer que a Sociologia surgiu sob as condições das mudan-ças que derivavam principalmente do declínio do feudalismo, do fortalecimen-to do comércio e do surgimento de novos papéis sociais/especialização. Enfim, com a consolidação do sistema capitalista de produção, surgia uma nova mentalidade, em que a razão e o saber se voltavam para o mundo terreno.

O senso comum

e a ciência são duas formas de conhecermos e explicarmos a

realidade. Enquanto o senso comum caracteriza-se pelo conhecimento que

adquirimos em nosso cotidiano e que pode ser verdadeiro ou não, a ciência busca entender as razões e o porquê do acontecimento de determi-nados fenômenos. A Sociologia é uma ciência;

portanto, difere do senso comum.

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As ciências existentes não apresen-tavam explicações convincentes nem mesmo o instrumental necessário para a compreensão de todas estas mudanças. Necessitava-se, então, de uma nova ci-ência (utilizando o mesmo referencial das ciências naturais) para tentar fazer isso.

Vamos entender, então, a que se propõe a Sociologia e o histórico do seu de-senvolvimento?

Turner (2003, p. 14), afirma que o objetivo da Sociologia é tornar as compreensões cotidianas mais sistemáticas e precisas, pois essas percepções vão além de nossas experiências pessoais. A Sociologia busca compreender todos os símbolos culturais que os seres humanos usam e criam para interagir com a sociedade e organizá-la. “É o estudo dos fenômenos sociais, da interação e da organização social.” De for-ma diferente do que as outras disciplinas fazem, ao estudar os aspectos sociais da vida do homem, a Sociologia estuda o fato social em sua totalidade, ou seja, a visão sistêmica do pesquisador deve lhe dar con-dições de perceber que cada ação social não está isolada na sociedade, mas sim que faz parte de um todo interligado, interferindo e sofrendo interferências.

Para o sociólogo, o fato social é estudado não porque é econômi-co, jurídico, político, educacional ou religioso, mas porque é “social” e inclui tudo isso independentemente da especificidade de cada um. O pressuposto básico de uma análise sociológica é que a vida dos seres humanos é composta por várias dimensões que se desenvolvem com o processo de interação social. Justamente estas interações sociais são o objeto central de estudo da sociologia. (DIAS, 2005).

No período do surgimento da Sociologia, a visão mecani-cista/cartesiana do mundo no século XVIII se estabelecia firme-mente, assim foi inevitável que a física se tornasse, naturalmen-te, a base de todas as outras ciências, inclusive da Sociologia. Dessa forma, na tentativa de compreender as condições das mudanças que ocorriam nas sociedades europeias e de conhecer suas prováveis consequências, era premente que surgisse uma ciência da sociedade, a qual foi proclamada como “física social”.

Conexão:

Você já assistiu ao filme A lenda do cavaleiro sem cabeça? Nele, você poderá observar as

inúmeras dificuldades da ciência em ser aceita como uma forma de conhecimento

da realidade, como um campo de pes-quisa e produção de conhecimento.

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O nome Sociolo-

gia foi proposto por Auguste Comte, em substituição ao termo Física

Social, acreditando ser possível submeter a ciência da sociedade aos mesmos pressupostos metodológicos advindos das ciências naturais.

Acreditava também que descobrir as leis da organiza-ção da sociedade poderia significar a reconstrução de uma estrutura social mais humana. Seu pensamento enfatizava a sociedade europeia como exemplo de

evolução, defendendo a proposta da ordem e do progresso em oposição aos conflitos sociais

presentes neste contexto (influência do positivismo).

O nascimento da Sociologia é atribuído tanto a Saint-Simon (1760-1825) quanto a Augusto Comte (1798-1857), ambos franceses, que procuravam uma “física social” com métodos baseados nas ciências naturais, de forma a encontrar leis universais que regessem os fenômenos sociais. O conhecimento destas leis per-mitiria, segundo Comte, controlar o destino do mundo – daí sua famosa fórmula Prévoir pour pouvoir (prever para poder), que reflete, na verdade, o pensamento positivista que atribui à ciên-cia a capacidade de prever e de controlar a ação. A Sociologia nasce com o positivismo. Mas o que é isso, exatamente?

REPRODUÇÃO

1.5 Afinal, o que é Sociologia? Nesse capítulo, vimos que:

1) o homem é um ser social que se distingue dos animais pela lin-guagem, pela aprendizagem, pela educação e pela socialização, que constituem culturas;2) o homem é um ser que modifica o ambiente onde vive e modi-fica a si próprio, constituindo-se como ser histórico;

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3) as transformações sociais e econômicas que aconteceram no século XIX (como a Revolução Francesa e a Revolução Indus-trial) motivaram os pensadores da época a procurar explicações para as consequências dessas transformações, de forma a criar uma ciência da sociedade;4) a Sociologia nasce no seio do pensamento conservador e trata os fenômenos sociais como se fossem coisas, usando métodos das ciências exatas e naturais;5) os primeiros pensadores da Sociologia tornaram-se clássicos ao criarem métodos próprios para a investigação dos fenômenos sociais que marcaram o século XIX.

A partir desse capítulo introdutório, como você definiria Sociologia?Não é tarefa simples defini-la. Sabemos que ela é uma ciência social

que estuda as sociedades e os homens em relações sociais. Mas isso ainda é insuficiente, porque o sociólogo pode se debruçar sobre incontáveis te-mas de pesquisa e estar fazendo sociologia.

O importante é saber que as sociedades possuem características que precisam ser conhecidas, analisadas e comparadas. As informações obtidas com estudos sociológicos são importantes para orientar o trabalho de muitos profissionais, dentre eles o administrador. Conhecer o compor-tamento humano vivendo em sociedades, grupos ou comunidades é fun-damental para se obter bons resultados no ambiente de trabalho, na cons-trução de prédios, na elaboração de uma publicidade, na administração de pessoas, no tratamento médico etc.

Quanto mais o homem conhecer como se organizam as pessoas em grupos, melhores serão os resultados de uma ação profissional. Por isso, a Sociologia é uma disciplina obrigatória na quase totalidade dos cursos universitários hoje, no Brasil e no mundo. Todo profissional é um ser social que atua na sociedade e sofre influências de grupos e de normas sociais.

Alguns alunos podem reclamar por ter que estudar Sociologia, achando que se trata de uma ciência desvinculada de sua vida pessoal e profissional. Essa é uma ideia equivocada. Quem estuda essa ciência compreende melhor por que as relações familiares são como são, por que as pessoas se entregam a religiões e seitas, por que os empregados devem sempre agir de uma certa maneira em relação aos seus patrões, por que os governos se responsabilizam – ou não – pelas cidades, pelos

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estados ou países, por que milhares de pessoas não perdem um capítulo da novela, por que os shopping centers ficam lotados no fim de semana etc.

Quem estuda Sociologia não consegue mais olhar para si mesmo nem para o resto do mundo da mesma forma, sem se fazer perguntas. Ela é um tipo de filosofia social que deve servir para estimular nossa reflexão sobre as coisas desse mundo, das pessoas, dos grupos. Deve nos estimular a perguntar o porquê das coisas serem assim, e não de outro jeito.

A Sociologia é uma ciência de reflexão, portanto não é uma ciên-cia utilitarista, ou seja, ela não serve imediatamente para algum fim. Não é como a física, por exemplo, que tem utilidade direta na medicina, quan-do estuda e descobre uma forma de usar o laser para eliminar manchas escuras na pele. A Sociologia pode ajudar a entender o funcionamento das empresas, dos governos, das famílias, das igrejas, dos grupos, dos espaços sociais (urbanos e rurais), das relações de gênero (entre homens e mulhe-res), das relações de poder etc.

1.6 O aparecimento e o desenvolvimento da AntropologiaA Antropologia é uma ciência constituída por um complexo objeto

de estudo, a saber, a dimensão totalizante da humanidade. Dessa maneira, ela é o estudo do homem em sua dimensão biológica, social e cultural. Centrado, sobretudo, na diversidade cultural dos povos, o estudo antro-pológico abrange um longo período histórico desde o início do desenvol-vimento das primeiras organizações humanas até as distintas sociedades contemporâneas. Portanto, é uma corrente de pensamento preocupada em matizar as diversas dimensões do ser.

Não há um consenso acerca do aparecimento da Antropologia como ciência. Para alguns autores, essa preocupação em compreender a huma-nidade a partir de um referencial amplo que envolve a relação com a na-tureza, as manifestações culturais, as formas de organização, entre outras; está presente desde a literatura grega. Assim, alguns autores entendem que a origem da Antropologia está situada na Antiguidade Clássica, na qual já havia o desejo de problematizar sobre a existência humana.

Apesar de um explícito anseio por compreender o complexo re-pertório antropológico, os gregos clássicos não estruturaram bases me-todológicas capazes de classificar a investigação filosófica como ciência. Portanto, muitos teóricos consideram o trabalho dos gregos antigos como uma atividade mais literária que científica.

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O homem nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo. Em todas as sociedades existiram homens que observavam homens. Houve até alguns que eram teóricos e forjaram, como diz Levi-Strauss, modelos elaborados “em casa”. A reflexão do homem sobre o ho-mem e sua sociedade, e a elaboração de um saber são, portanto, tão antigos quanto a humanidade, e se deram tanto na Ásia como na África, na América, na Oceania ou na Europa. Mas o projeto de fundar uma ciência do homem - uma antropologia - e, ao contrário, muito recente. De fato, apenas no final do século XVIII é que co-meça a se constituir um saber científico (ou pretensamente científi-co) que toma o homem como objeto de conhecimento, e não mais a natureza; apenas nessa época é que o espírito científico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao próprio homem os métodos até então utilizados na área física ou da biologia. (LAPLANTINE, 2003, p.7)

Desse modo, alguns autores entendem que somente após as trans-formações filosóficas advindas do Iluminismo foi possível construir um saber antropológico. O Iluminismo foi uma corrente intelectual europeia preocupada em utilizar a razão para acabar com o absolutismo e os privi-légios do clero e da nobreza. Nesse sentido, O Iluminismo consolidou-se como uma revolução intelectual capaz de repensar o lugar do homem na sociedade sustentado por uma racionalidade laica. Assim, no final do sé-culo XVIII a Antropologia é classificada como a ciência do homem.

Todavia, somente no século XIX, ocorreu efetivamente a construção das bases metodológicas para formar a Antropologia como uma linha de pensamento autônoma. As mudanças políticas consequentes da Revolu-ção Francesa e as transformações econômicas e sociais desencadeadas pela Revolução Industrial possibilitaram pensar na sistematização da An-tropologia como ciência social.

Por conseguinte, no momento em que a Antropologia ganha sta-tus de ciência, sustentada por uma concepção positiva de construção de conhecimento, era fundamental que ela desenvolvesse uma linguagem própria. Além disso, era coerente com o desenvolvimento das demais ciências a demasiada preocupação com os critérios de investigação que deveriam, apara aqueles pensadores, superar a reflexão e consolidar um método de observação. Nesse contexto, o conceito de diversidade cultural passa a ser analisado por meio de pesquisas empíricas.

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Os teóricos engajados na concepção do evolucionismo e do da-rwinismo social adaptaram as teorias do campo das ciências biológicas para as pesquisas no campo social. Dessa maneira, os mesmo critérios da produção do conhecimento das ciências naturais foram erroneamente aplicados à análise desenvolvimento humanos. Assim, os antropólogos do século XIX trabalharam com hipóteses de adaptação do homem, evolução entre os grupos sociais, superioridade de raças. Portanto, na perspectiva evolucionista havia uma preocupação em categorizar estágios do desen-volvimento humano como cultura mais e menos avançada.

Ao final do século XIX, houve uma inquietação mais latente em envolver o investigador com seu objeto de estudo. Nesse momento, Franz Boas e Bronislaw Malinowski evidenciaram a importância das pesquisas de campo no desenvolvimento da Antropologia. Portanto, a etnografia se consolida como importante ferramenta metodológica para a produção de conhecimento no século XX. Dessa maneira, ocorre uma transformação que passa a considerar a singularidade das sociedades e não mais suas comparações e hierarquizações culturais, típicas dos estudos evolucionis-tas.

Nesse sentido, pudemos observar o compromisso da Antropologia em entender a cultura e a existência a partir de referências naturais, so-ciais e humanos.

1.7 O aparecimento e o desenvolvimento da Ciência PolíticaO exercício político existe desde as primeiras formas de organi-

zação humana. Os gregos utilizavam a palavra política em referência à vida na cidade. Ela própria deriva-se do radical grego polis que significa cidade. Ou seja, no contexto das cidades-Estados gregas, quem vivia na pólis deveria participar da tomada de decisão, ou, em outras palavras, das formas de organizar o poder.

Até a Idade Moderna não havia uma distinção explícita entre o conceito de filosofia e ciência. Dessa maneira, Aristóteles desenvolveu uma extensa literatura sobre o tema da política, centrada em uma reflexão metafísica do caminho para se construir o bem comum. O termo Ciência Política foi utilizado a partir do século XIX, notadamente um momento de racionalização da construção do conhecimento social.

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Desde os gregos, os fatos relativos ao governo da sociedade humana vêm sendo objeto de estudos, em que se destacaram filósofos e pensado-res que exerceram influência profunda e duradoura na cultura ocidental. Mas a concepção de uma ciência particular, nesse campo, é de data recen-te (BONAVIDES, 1994, p.3).

Não há um consenso acerca do objeto de estudo da Ciência Política. Comumente, relacionamos a compreensão do Estado e do poder como foco de análise dessa ciência. Observamos alguns teóricos que a definem na perspectiva de um estudo sobre o Estado, portanto um recorte mais res-trito. Por outro lado, trabalhamos com a sistematização da Ciência Política como exercício do poder. Nesse sentido, ela deve abranger tanto as questões do escopo teórico como prático. Para tanto, os cientistas se utilizam de diver-sas heranças metodológicas de outras linhas investigativas do conhecimento humano. “A Ciência Política, em sentido lato, tem por objeto o estudo dos acontecimentos, das instituições e das ideias políticas, tanto em sentido teóri-co (doutrina) como em sentido prático (arte), referido ao passado, ao presente e às possibilidades futuras.” (BONAVIDES, 1994, p.12).

A Ciência Política é a mais recente das ciências sociais e nessa medida ainda há um intenso debate acerca de seu objeto de estudo, sua finalidade, sua metodologia, entre outros. Contudo, essa diversidade nas análises contribui para ampliarmos a compreensão grega preocupada e sistematizada dentro dos estudos de moral.

1.8 A metodologia de pesquisa das Ciências SociaisDurante muito tempo, o paradigma positivista dominou as pesquisas

em Ciências Sociais. A preocupação primordial dos estudos se vinculava a um discurso racional, objetivo, neutro e pautado em verdades absolutas. Dessa maneira, não havia espaço para a subjetividade, tampouco para re-lativizar o fato de o investigador carregar seus valores para o objeto anali-sado. Além disso, havia uma compreensão evolutiva do desenvolvimento humano centrada, principalmente, em pesquisas quantitativas e realistas.

No século XX, observou-se uma ampliação das correntes teóricas preocupadas em negar o paradigma vigente, cuja raiz notadamente estava no positivismo. Dessa maneira, constitui-se uma nova concepção científica cen-trada no discurso de ampliação da conceituação de ciência. Entretanto, esse novo paradigma construído nasce do debate dicotômico da impossibilidade

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de relação entre as análises quantitativas e as qualitativas. Em oposição ao quantitativo-realista, emerge a análise qualitativo-idealista.

Após um longo período de polarização e dualismo entre as duas concepções teóricas e metodológicas, muitos pesquisadores passaram a destacar a possibilidade de complementação entre as duas correntes cientí-ficas. José dos Santos Filho, no texto Pesquisa quantitativa versus pesquisa qualitativa: o desafio paradigmático, aborda justamente a necessidade de ampliação das constatações teóricas, porque, para ele, essa contradição é “fictícia”.

Diversas questões ainda requerem respostas mais convincentes e mui-tas alternativas precisam demonstrar sua validade teórica na prática. Por meio da testagem e validação de suas teorias e metodologias, as ciências humanas e da educação avançarão em seu processo de desenvolvimento para a plena maturidade teórico-metodológica (SANTOS FILHO, 2002, p. 53).

A construção do conhecimento científico também não está resumida às análises quantitativa e qualitativa, é importante ressalvar que essas duas perspectivas devem ser utilizadas enquanto estratégias metodológicas.

De igual maneira, a polarização sobre os modelos de pesquisa no conflito das tendências extremas, tais como pesquisa qualitativa versus pesquisa quantitativa, é indicadora de falsos problemas técnicos que podem conduzir a falsas soluções, como, por exemplo, a conciliação eclética entre tendências conflitantes, tomando o que tem de melhor em cada modelo ou a escolha simples dum modelo e o desprezo dos outros, por serem considerados ideológicos reducionistas ou pseudocientíficos. (GAMBOA, 2002, p. 63).

Segundo Hartmut Günter, há três principais caminhos para compre-ender o comportamento humano dentro das Ciências Sociais. Para o autor, cada um deles apresenta vantagens e desvantagens. As três formas são: (1) observar o comportamento que ocorre naturalmente; (2) criar situações ar-tificiais e observar o comportamento ante tarefas definidas; (3) perguntar às pessoas sobre o que fazem e pensam. Em suma, as técnicas são: obser-vação, experimento e survey. Para Günter:

Não obstante as variações dentro de cada uma destas três grandes áreas, podemos afirmar que o ponto forte da observação é o realis-mo da situação estudada; que o experimento possibilita a randomi-zação de características das pessoas estudadas quanto inferências causais; e que o levantamento de dados por amostragem, ou survey, assegura melhor representatividade e permite generalização para uma população mais ampla (GÜNTER, 2003, p. 1).

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Como já foi dito anteriormente, o survey pode ser estabelecido na forma de entrevistas ou questionários e isso depende do tamanho da amostra que se deseja e dos objetivos que se pretende atingir. O modelo de entrevistas se estabelece com questões mais abertas e dão ao respondente uma maior liberdade de expres-são. Enquanto os questionários proporcionam um maior respeito à opinião das pessoas se considerarmos que é o próprio sujeito que classifica sua opinião.

Atividades

01. O aprendizado é uma das formas que o homem desenvolveu para transmitir sua cultura de uma geração a outra. Faça um relato, baseado em sua experiência pessoal, que ilustre essa afirmação. Descreva como você se tornou um ser social, desde que nasceu até hoje.

02. Escreva uma lista de problemas da vida em sociedade no mundo atual que, em sua opinião, poderiam ser objeto de estudos sociológicos.

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03. Qual foi a importância da Revolução Francesa e da Revolução Indus-trial para o surgimento da Sociologia?

04. A Sociologia surge no seio do pensamento conservador. Por que essa afirmação é verdadeira?

05. Elabore uma conceituação sobre o que é a Sociologia, com base no que estudou nesse capítulo. Justifique a importância de se estudar essa ciência no curso de Administração e Ciências Contábeis.

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Reflexão

De acordo com Charles Wright Mills (1918-1962), a Sociologia ser-ve para que o indivíduo desenvolva uma imaginação sociológica. Mas o que é isso, afinal? Seria a capacidade do indivíduo de perceber aquilo que ocorre no cotidiano dele e de seus contemporâneos e de relacionar essas ocorrências com questões mais amplas com o que ocorre na sociedade. Por exemplo: o desemprego pode ser uma questão pessoal ou uma ques-tão da própria estruturação da sociedade; a guerra atinge indivíduos pessoalmente, mas é uma questão mais ampla, envolve países, questões econômicas, políticas etc. É a relação do individual com o social que nós chamamos de imaginação sociológica; é também fazer a ponte entre o que acontece no seu cotidiano e as questões mais amplas que te envolvem. O indivíduo só pode compreender sua própria experiência e avaliar o seu próprio destino localizando-se dentro do seu período histórico. Ele só pode conhecer as suas possibilidades na vida tornando-se cônscio das possibilidades de todas as pessoas nas mesmas circunstâncias. A imagi-nação os permite compreender a história e a biografia e as relações entre ambas, dentro da sociedade (Charles Wright Mills)

Leituras recomendadas

MARTINS, C. B. O que é sociologia? Coleção Primeiros passos. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1988.

ARON, R. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1982.

PLATÃO. O mito da caverna. A República. Porto Alegre: L&PM, 2008.

Referências

ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1982.

BONAVIDES, P. Ciência Política São Paulo: Malheiros Editores, 1994.

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COHN, Gabriel. Weber-Sociologia. São Paulo: Ática, 1986 (Coleção Grandes Cientistas Sociais).

COSTA, Cristina. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Editora Moderna, 1977.

DIAS, Reinaldo. Introdução à Sociologia. São Paulo: Pearson Prenti-ce Hall, 2005.

DURKHEIM, Émile. Grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1995.

GÜNTER, H. Como elaborar um questionário. Brasília, DF: UnB, 2003.

LAPLANTINE, F. Aprender Antropologia. São Paulo: editora Brasiliense, 2003

MARTINS, Carlos B. O que é Sociologia? São Paulo: Editora Brasi-liense, 1985.

MARX, K; ENGELS, F. Grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1994.

MILLS, Wright. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Edi-tores, 1972.

SANTOS FILHO, J. C. Pesquisa quantitativa versus pesquisa qualitativa: o desafio paradigmático. In: ______.; GAMBOA, S. S. (Org.). Pesquisa educa-cional: quantidade-qualidade. São Paulo: Cortez, 2002.

TURNER, J. Sociologia: conceitos e aplicações. São Paulo: Makron Books, 2003.

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No próximo capítulo

Abordaremos outra referência fundamental nas análises das Ciên-cias Sociais. Trata-se do conceito de cultura. Teremos a oportunidade de perceber a importância desse conceito para o entendimento das relações sociais nos diferentes espaços sociais.

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Cap

ítulo

2 A Contribuição da

Sociologia, da Antropologia e da Ciência Política para a

Compreensão dos Fenômenos Culturais e Sociais

No capítulo anterior, estudamos o surgimento da So-ciologia, passando pela compreensão de como as socie-

dades se organizam de forma a gerar desigualdades entre os grupos sociais. Estamos abordando apenas alguns dos temas

possíveis de serem estudados por essa ciência. Esta abarca um leque enorme de “problemas sociais” que podem ser estudados.

Nos limites das páginas dessa apostila, destacamos alguns tópicos importantes que podem complementar a sua formação de adminis-

trador de empresa e/ou de contabilista, pois você deve estar conscien-te de que a sociedade e as relações sociais que os homens estabelecem

formam uma complexa rede que exige atenção. Neste capítulo, enfo-caremos a temática da cultura. Trata-se de um assunto estudado am-plamente pelas ciências sociais, com pequenas diferenças de enfoques pelas áreas da Sociologia, da Antropologia e da Política. Como vimos no capítulo 1, a cultura é parte fundamental no processo de socialização do homem, uma vez que o torna um ser social. Portanto, para entender como os grupos se organizam na sociedade, precisamos compreender o que é cultura e como ela pode ser decisiva no entendimento das peculiaridades

de cada grupo e/ou de cada sociedade.

Peculiaridade: qualidade do que é peculiar, que é próprio de alguém ou de alguma coisa, que

constitui atributo característico de alguém ou alguma coisa.

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Objetivos da sua aprendizagemAo final deste capítulo, você será capaz de compreender como a cultura pode ser conceituada; como é o processo de construção histórica e social das culturas; que não é possível conhecer uma organização social sem conhecer sua(s) cultura(s); o que é diversidade cultural e etnocentrismo; o debate sobre cultura erudita e cultura popular; as relações entre cultura e ideologia por meio da análise da indústria cultural.

Você se lembra?Você se lembra da última vez em que teve contato com alguém de outra cultura, com crenças, vestimentas, modos de se comportar, de pensar, etc. que fossem diferentes de suas normas culturais e das de sua família? Como você reagiu? A relação com a nossa própria cultura e com a cultura dos outros é um dos fenômenos sociais abordados pela Sociologia.

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2. Olhar antropológico da culturaA Antropologia cultural é uma das grandes áreas da Antropologia.

Sua ideia central parte da compreensão da representação da cultura por meio de símbolos, linguagem, ícones e imagens. Preocupada em acabar com a artificial separação entre homem e natureza, a Antropologia cultu-ral busca analisar a diversidade cultural por meio de uma concepção não determinista de cultura.

Desde os gregos há o reconhecimento de interesse pela diversidade de manifestações culturais entre as organizações humanas. “Desde a An-tiguidade, foram comuns as tentativas de explicar as diferenças de com-portamento entre os homens, a partir das variações dos ambientes físicos.” (LARAIA, 2001, p.8). Entretanto, durante muito tempo imperou uma concepção determinista a qual buscava explicar as diferenças culturais por meio de esclarecimentos ligados às questões biológicas ou geográficas. Todavia, a Antropologia cultural buscou desconstruir esse olhar de uma ação mecânica entre os elementos físicos e naturais no domínio sobre as culturas. Mas, como disserta Laraia, precisamos refletir: o que é cultura?

As diferenças existentes entre os homens, portanto, não podem ser explicadas em termos de limitação que lhe são impostas por aparato biológico ou por seu meio ambiente. A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações: um animal frágil, provido de insignificante força física, dominou a natureza e se transformou no mais temível dos predadores. Sem asas, dominou os ares, sem membranas próprias, conquistou os mares. Tudo isso porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura. Mas que é cultura? (LARAIA, 2001, p.14)

2.1 O que é cultura? Todos os seres humanos possuem cultura. Assim, não há quem te-

nha e quem não tenha cultura; também não se pode afirmar que alguém tenha uma cultura superior à de outra pessoa. Compreensões equivocadas de cultura geram preconceitos e etnocentrismo (veremos mais adiante do que se trata essa palavra). Definir cultura é muito difícil, mas há carac-

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Segundo Ruth

Benedict (1972), em seu livro O crisântemo e a espada, a cultura

é como uma lente por meio da qual o homem vê o mundo. A cultura “molda” o

indivíduo social, tece as regras da socialização (processo pelo qual todos os seres humanos

passam sua vida em sociedade, que é um pro-cesso contínuo que começa com o nascimento

e termina com a morte), delineando, assim, os relacionamentos entre diferentes gru-

pos sociais e os indivíduos entre si.

terísticas comuns de algumas definições que podem ser compreendidas. Vejamos alguns desses pontos comuns.

1. A cultura é transmitida pela he-rança social: o indivíduo apreende a cultura no grupo social em que vive, e não por he-rança genética. Uma geração transmite cultura para outra por meio do proces-so de socialização.

2. Cultura compreende a totalidade das criações humanas: abrange tudo o que foi criado pela humanida-de, como ideias, valores, manifestações artísticas de todo tipo, crenças, instituições sociais, conhecimentos científicos, instru-mentos de trabalho, tipos de vestuário, construções etc.

3. Cultura é uma característica exclusiva das sociedades huma-nas: os animais não são capazes de criar cultura.

4. Ela se concretiza por tudo aquilo que o ser humano produz para satisfazer suas necessidades e viver em sociedade: para se proteger do frio, ele cria moradias; para saciar a fome, ele planta e cria animais etc.

5. A cultura é construída e compartilhada pelos membros de uma determinada coletividade. O que caracteriza uma cultura em particular é o compartilhamento dos hábitos, valores, atitudes.

6. Ela se manifesta por meio de diversos sistemas (valores, nor-mas, ideologias) que influenciam a personalidade das pessoas, determinando sua forma de pensar e de agir.

A cultura refere-se aos modos de vida dos membros de uma socie-dade ou de grupos sociais. Inclui o modo como se vestem, suas formas de casamento e de constituição de família, seus padrões de trabalho e de lazer, suas atividades religiosas e políticas, suas formas de comunica-ção e de uso da linguagem. Esses são alguns dos aspectos das sociedades humanas que são aprendidos, herdados e partilhados pelos membros de um grupo, tornando possível a comunicação entre os grupos e seus membros.

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Dentro das tradições alter-

nativas e conflitantes, a “cultu-ra” oscila entre uma dimensão global

e outra parcial. No uso mais geral, houve grande desenvolvimento do sentido de “cultura” como cultivo da mente. É possível distinguir uma

gama de significados:•cultura enquanto estado mental desenvolvido, como

um valor – como em “pessoa de cultura”, “pessoa culta”;

•cultura como sinônimo de alma coletiva, portanto, de civilização;

•cultura transfigurada em mercadoria – cultura de massas.

A cultura é o contexto comum em que vivem os seres humanos e engloba tanto aspectos tangíveis (objetos, tecnologia, símbolos) como intangíveis (ideias, cren-ças, valores). Esses aspectos culturais mudam com o tempo.

Quando falamos de valo-res culturais, estamos nos refe-rindo aos significados atribuídos às coisas da vida que orientam os seres humanos na sua interação com a sociedade. Os valores definem o que é importante, útil ou desejável, o que é certo ou errado. A monogamia, por exemplo, mostra o quanto uma sociedade valoriza o casamento com um único parceiro, o que prevalece na maioria das sociedades ocidentais. A monogamia passa a ser um valor numa dada cultura.

Falamos de normas culturais quando nos referimos às regras de comportamento que refletem os valores de uma cultura. Numa cultura que valoriza a hospitalidade, por exemplo, as normas culturais estimulam a troca de presentes ou determinado comportamento para receber ou fazer visitas. As normas e os valores variam muito entre as culturas.

Uma questão importante se coloca na discussão sobre cultura. Leia a passagem seguinte e continue pensando comigo.

Mesmo no seio de uma sociedade ou comunidade, os valores podem ser contraditórios: alguns grupos ou indivíduos podem valorizar cren-ças religiosas tradicionais, enquanto outros podem aprovar o progresso e a ciência. Há pessoas que preferem o sucesso e o conforto material, outras favorecem a simplicidade e uma vida pacata (GIDDENS, An-thony. Sociologia. Lisboa: fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p.23.)

As questões que se colocam diante disso são: • Quanto a cultura determina os gostos e as preferências pessoais? • Como identificar os limites entre o que é subjetivo e o que é cul-

tural? • Qual é o poder e o alcance das normas e dos valores sobre as

idiossincrasias?

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Essas perguntas não são simples de responder. A Antropo-logia, a Sociologia e a Psicologia são disciplinas que se dedicam ao estudo das relações entre cultura e indivíduo. O processo de socia-lização, de adaptação do ser hu-mano para a vida em sociedade, é um processo que certamente difi-culta o estabelecimento de limites nítidos entre o que é individual e o que é social nos seres humanos.

Para viver em sociedade, todo ser humano precisa “adestrar” seus instintos naturais e biológicos. Por exemplo, aprendemos, na nossa cultura, que não devemos arrotar na frente de outras pessoas, pois arrotar é considerado falta de educação (no sentido de demonstrar falta de respei-to às normas culturalmente estabelecidas). Mas nem todos de um mesmo grupo e de uma mesma cultura pensam e agem igualmente. Por que isso acontece?

Esse assunto foi estudado pelo pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856- -1939). Ele escreveu um texto intitulado O mal-estar na civilização que tinha como objetivo tratar das contradições entre as exigências do instinto e as res-trições da civilização. Aqui, civilização e cultura são sinônimas.

Veja algumas passagens de seu texto.

THE LIBRARY OF CONGRESS

Sigmund Freud

Idiossincrasia: maneira de ver, sentir, reagir pecu-liar a cada pessoa.

[...] a palavra ‘civilização’ descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos

antepassados animais e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútu-

os (p.109).

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[...] o elemento de civilização entra em cena com a primeira tentativa de regular esses re-

lacionamentos sociais. Se essa tentativa não fosse feita, os rela-cionamentos ficariam sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo, o que

equivale a dizer que o homem fisicamente mais forte decidiria a respeito deles no sentido de seus próprios interesses e impulsos instintivos. [...] A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida con-

tra todos os indivíduos isolados. [...] A substituição do poder do indiví-duo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da

civilização (p.115).

Trechos extraídos de FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sig-mund Freud. v. XXI (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago, 1970.

A partir desta perspectiva, podemos inferir que a vida em comunida-de exige sacrifício dos indivíduos, que devem abrir mão de seus instintos primitivos e seguir o conjunto de normas e leis estabelecidas pela cultura. Assim, como afirmava Freud, o desenvolvimento da civilização impõe restrições à liberdade individual.

Aqueles que não acatam todas as normas sociais podem ser punidos com o isolamento (os grupos não o aceitam), com o preconceito (mani-festações de repúdio por certa forma de vida) ou mesmo com punições legais, uma vez que o conjunto de leis é o principal elemento da cultura. Quando crianças, os pais normalmente criam regras de socialização (de adaptação à cultura vigente no seu grupo social) e criam, com elas, formas de punição ou reprovação se os filhos não as respeitam. Assim, voltando ao nosso exemplo do arroto, na nossa cultura, os pais podem bater nos filhos ou deixá-los de castigo, se eles arrotarem alto na mesa depois da refeição. Em outros lugares, arrotar depois de comer é sinal de que gostou da comida.

Mas há também casos de grupos de pessoas que se reúnem justa-mente por encontrarem entre si o elemento comum de se rebelarem contra a ordem cultural estabelecida. Assim, esses grupos acabam criando novas manifestações e padrões culturais. Isso mostra o quanto os padrões cul-turais são tão fortes e tão frágeis ao mesmo tempo. Diante da capacidade

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Em linhas gerais,

“cultura” pode se referir:1. ao espírito formador de um modo de vida global, manifesto por todo o

âmbito das atividades sociais, em especial, a linguagem, os estilos de arte, os tipos de

trabalho intelectual.2. a uma ordem social global em que uma cultura

específica (quanto a estilos de arte e tipos de trabalho intelectual) é considerada produto

direto ou indireto de uma ordem primor-dialmente constituída por outras

atividades sociais.

humana de criação e recriação da so-ciedade o tempo todo, o que hoje é uma norma cultural, amanhã pode não ser mais predominante.

Um exemplo disso pode ser a prática de se ter relações sexuais antes do casamento. No século XIX, isso era inadmissí-vel, principalmente para as mu-lheres, pois era percebido como um comportamento inadequado do ponto de vista das normas de convi-vência social. Hoje, em pleno século XXI, embora ainda encontremos grupos para os quais o sexo antes do casamen-to seja condenado, a rigidez dessa norma já foi abalada.

Segundo Lévi-Strauss, a cultura surgiu no momento em que o homem convencionou a primeira regra, a primeira norma. Para o antro-pólogo, a regra em questão seria a proibição do incesto, padrão de com-portamento comum a todas as sociedades humanas. Todas estas proíbem a relação sexual de um homem com certas categorias de mulheres (entre nós, a mãe, a filha e a irmã).

Para Leslie White, a passagem da natureza à cultura se deveu ao desenvolvimento de um conjunto de símbolos. O comportamento humano é o comportamento simbólico. Por exemplo, entre nós, a cor preta signi-fica luto, entre os chineses, é o branco que exprime esse sentimento. Para perceber o significado de um símbolo, é necessário conhecer a cultura que o criou.

A cultura é dinâmica, está em constante processo de modificação. É mais coerente falar em culturas ao invés de cultura, já que as leis, os valores, as crenças, as práticas e as instituições variam de formação social para formação social.

2.2 Cultura popular e cultura erudita. O debate sobre cultura popular e cultura de elite (ou erudita) está

colocado para a Sociologia, mas não está resolvido. Há diferentes visões sobre o tema. Definir cultura popular e cultura erudita representa uma po-lêmica que cientistas sociais mantêm até hoje. O que é popular? O que é

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erudito? A que grupo ou classe social poderíamos associar cada um desses conceitos?

I014 - CRÉDITOS: PULSAR IMAGENS / DELFIM

MARTINS

CANOVA / WIKIM

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Popular relaciona-se a povo e erudito, às elites (classe dominante). Mas a pergunta principal é: por que há separação entre as culturas desses grupos? Ou seja, a cultura pode ser diferenciada por classe social?

A questão da existência de uma cultura popular versus uma cultura erudita implica modos diferenciados de ser, pensar e agir, asso-ciados aos detentores de uma ou outra cultura. Falar em cultura popular significa falar, simultaneamente, em religião, em arte, em ciências populares – sempre em oposição a um similar erudito, cul-to, de elite, que pode ser traduzido em dominante, dada a dimensão dicotômica (dominante versus dominado) que se costuma associar à sociedade capitalista. (CRESPO, Regina A. Cultura e ideologia. In: TOMAZI, Nelson D. (coord.). Iniciação à Sociologia. São Paulo: Atual Editora, 2000, p.188).

A cultura erudita é comumente associada aos produtos da elite, da camada privilegiada da sociedade que teve oportunidades de acesso a li-vros, estudo, arte etc. No entanto, a dificuldade de se definir uma cultura erudita está no seguinte fato: fazem parte da elite tanto políticos quanto fazendeiros, intelectuais e industriais. Será que esses diferentes grupos da elite compartilham e produzem um mesmo tipo de cultura? É igualmente impossível dar à cultura popular um caráter homogêneo, dadas as dife-renças entre camponeses, operários e outros setores da classe baixa. Os setores populares não produzem um mesmo padrão de cultura.

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Alguns autores consideram a cultura popular uma cultura não ofi-cial, das classes subordinadas, em oposição à cultura produzida pelas classes dominantes, da elite. Ela se manifesta por meio da arte, da música, da religião, do folclore, das comidas, das festas, do artesanato. De modo geral, a cultura popular é consumida por aqueles que a produzem.

Com a facilidade de acesso aos meios de comunicação (televisão, rádio, revistas e jornais), muitas manifestações da cultura popular trans-formam-se em “cultura de massas”. Falaremos disso no próximo item.

Importante ressaltar que a cultura popular não é algo parado no tem-po, imutável. O povo modifica os meios de produção da cultura, adequan-do-se às inovações de cada época. Sob um determinado ponto de vista, isso poderia comprometer o caráter de tradição, que é típico da cultura po-pular. Alguns autores acreditam que a cultura popular ou o folclore devem ser preservados sempre da mesma forma, para preservar a história daquele povo, daquela cultura. Mas não será inevitável mudar a cultura, na medi-da em que o povo também se modifica pelo contato cada vez maior entre campo e cidade e pelas influências dos meios de comunicação de massa?

Há uma relação de incorporação e de conflito presente na cultura popular e na cultura erudita. Numa sociedade complexa como a que nós vivemos hoje, não é possível ignorar as inter-relações entre as formas de cultura e seu contínuo processo de transformação. É comum que os agen-tes da cultura erudita incorporem elementos da cultura popular. Os agen-tes da cultura popular também podem fazer isso, reelaborando elementos tradicionalmente conhecidos como pertencentes à cultura de elite. Assim, não é mais possível entender cultura popular e cultura de elite como pu-ramente antagônicas. Mas, é evidente que ambas as culturas envolvem a questão conflitiva do poder, da relação entre dominação e resistência.

O fuxico pode ser um exemplo de artesanato popular tradicional que foi apropriado pelas camadas mais altas da sociedade, elevando-o a um status de cultura de elite. O fuxico é feito com retalhos e sobras de tecidos, uma forma de reaproveitar o material que seria jogado no lixo. O fuxico caiu no gosto de estilistas e foi incorporado à moda de elite, sendo levado inclusive para outros países.

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O mundo da moda descobre o fuxico A técnica do fuxico não é nova – tem pelo menos dois séculos –,

mas só há dez anos vem sendo redescoberta e valorizada pelo mundo da moda. No exterior, este tipo de trabalho é sucesso garantido. O fuxico ganhou muita notoriedade na mídia no início da década, quando a M. Officer incor-porou peças do artesanato brasileiro às suas coleções nas passarelas. Com relativa popularidade no exterior, a grife conseguiu emplacar suas peças entre nomes importantes do show biz. A patricinha Paris Hilton usou um vestido de fuxicos da coleção primavera/verão 2003 da M. Officer no primeiro episódio do reality show da Fox The Simple Life. Carlos Miele, dono da marca, é par-ceiro da Coopa-Roca, associação de mulheres da favela da Rocinha que faz artesanato com retalhos, entre eles o fuxico. Além do trabalho há cerca de 7 anos com Carlos Miele, a cooperativa tem como parceiras as marcas Osklen, Eliza Conde, Amazonlife e Dautore. No exterior, já comercializou seus produ-tos para nomes importantes, como Ann Taylor, que usou fuxicos na decoração de suas lojas. Resgate social. A proposta da Coopa-Roca, de desenvolver a comunidade através do trabalho manual e aumentar a renda de suas coope-radas, tem dado certo. A cooperativa, que começou com 5 artesãs em 1987, já contabiliza 100 trabalhadoras e é uma prova de que trabalhos como o fuxi-co podem ajudar comunidades carentes a ter mais dignidade e renda familiar. Em São Paulo, uma iniciativa similar é promovida pela Aldeia do Futuro, loca-lizada numa região carente da zona sul. A instituição desenvolve atividades baseadas no fuxico e nos amarradinhos com mulheres da região, que conse-guem incrementar sua renda dessa maneira. As peças produzidas pela Aldeia do Futuro são vendidas em pontos descolados da cidade, como a lojinha do MAM (Museu de Arte Moderna) e as lojas do designer Fernando Jaeger.

Cf. Disponível em: <http://www.abril.com.br/noticia/abril/no_197325.shtml>.

2.3 Cultura e cidadania Você já notou como em nossa sociedade, num âmbito mais geral, o

termo cidadão ainda tem uma conotação pejorativa? Por exemplo, chama-se de cidadão uma pessoa desconhecida, que não pertença ao grupo social em que transita. Um cidadão, no Brasil, nos momentos de informalidade, é um “ilustre” desconhecido, que não tem história. Alguém que, portanto, não tem direito. Isso é bastante contraditório, já que, em termos legais, o cidadão é definido como aquele que possui direitos e deveres bastante

Leia matéria no quadro a seguir.

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definidos. Pode-se ver, então, que os códigos culturais nem sempre en-globam ou são compatíveis com o que a instância jurídica, as leis formais do país instituem como princípios básicos e gerais a serem seguidos por toda a sociedade. Ou, como afirma Roberto da Matta (1996), “para nós a cidadania implica uma dupla leitura. Ela pode ser vista como um conceito político que remete à ideia do ‘indivíduo’ autônomo e seguidor das leis – base da igualdade moderna – ou pode ser lida pelo modelo da ‘pessoa’, base da hierarquia tradicional. Aí está a base da crise nacional, pois o que tem singularizado a nossa estrutura de poder não é a ausência da teoria igualitária, mas a da desigualdade como um valor e uma prática. O resul-tado é muito cacique para pouco índio e a presença do “Sabe com quem está falando?!”.

A ideia de cidadania, em nossa cultura, realmente continua a passar pela noção de hierarquia e poder calcada na exclusão e na desigualdade sociais. Mas, podemos pensar na possibilidade do resgate da cidadania por meio da compreensão do imaginário social que permeia as formas de poder e de uma política educativa que leve em conta os traços culturais dos diversos segmentos de nossa sociedade e que torne acessível para to-dos o direito de expressão.

Darcy Ribeiro apresenta ideias que procuram questionar a aparente obviedade dos fatos, que nos impedem de buscar e ver aqueles aspectos da sociedade que não estão explicitados, que não estão na superfície do real. Na verdade, o que vemos (ou nos acostumamos a ver) pode ser apenas a “ponta de um iceberg”. Para vermos além da superfície, necessitamos de contato e vivência com a realidade investigada, “observar o familiar”, nas palavras de Gilberto Velho (1987). Para tanto, é necessário procurar conhecer aquilo que já aparentemente conhecemos, tomando, ao mesmo tempo, uma distância física, social e psicológica. Isto significa afirmar que aquilo que sempre vemos e encontramos pode nos ser familiar, mas não necessariamente é conhecido.

É este o convite que a compreensão de alguns conceitos antropoló-gicos nos faz: reconhecer no “outro”, naquele que a princípio enxergamos por meio de “pré-conceito” e “pré-julgamentos”, alguém com quem po-demos potencialmente aprender a nos modificar e também o transformar.

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2.4 Indústria cultural A discussão sobre cultura popular e cultura erudita nos possibilita

entender um fenômeno social relevante nos dias de hoje: a indústria cultu-ral. Você já ouviu falar disso? Pelo nome, você pode imaginar que existe relação entre cultura e indústria. Mas como seria isso? O sociólogo Stuart Hall (1932-) afirma que não se pode pensar em cultura erudita ou em cul-tura popular sem antes considerar a existência da indústria cultural.

Vamos contextualizar o surgimento deste fenômeno?No final do século XVIII, começa a impressão de jornais em gran-

de quantidade na Europa, popularizando o acesso à comunicação. O que antes era privilégio do clero e da nobreza começa, pouco a pouco, a fazer parte da vida do povo. A mecanização possibilita a produção maior em menos tempo e a migração do campo para a cidade por causa das indús-trias, possibilitando um aumento do mercado consumidor.

Os jornais publicavam notícias, crônicas e folhetins (precursores do romance e das atuais novelas da televisão). Encontra-se aí a origem do que se chamou, no século XX, de “indústria cultural”.

Esse conceito foi utilizado pela primeira vez por dois filósofos ale-mães, Theodor W. Adorno e Max Hockeimer, em 1947, na obra Dialética do esclarecimento. Theodor e Max eram dois professores judeus do Insti-tuto de Pesquisas Sociais da Universidade de Frankfurt, que, fugindo do nazismo em 1933, emigraram para os EUA e aí permaneceram vivendo em um período muito importante deste país.

O nazismo, através da competente política de comunicação desen-volvida por Goebbels, ministro da Propaganda do governo nazista, havia apostado nas novas formas de comunicação, aperfeiçoando o uso do rádio e do cinema. Quando Hitler assumiu o poder na Alemanha, em 1933, ape-sar do surgimento recente do rádio, ele já havia delineado claramente sua política para este veículo. A partir de 1930/31, o Partido Nacional Nazista começou a influir na nomeação de diretores de rádio, pois este foi criado na Europa como sistema público, ou seja, um sistema controlado pelo Es-tado. Vai ser nítida a diferença entre a indústria cultural que surge a partir do Estado e aquela que advém das empresas, das indústrias e do comércio, como vai ser o modelo americano.

O nazismo era plenamente consciente da eficácia do rá-dio, já que o partido não tinha condições de controlar os jor-nais, que, em sua grande maioria, não apoiavam o movimento. Assim, contando com a adversidade dos jornais alemães, Goebbels apostou

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A indústria cultural

é um fenômeno histórico. O termo foi criado por Theodor Adorno

e Max Horkheimer para definir nossa épo-ca, quando a cultura passa a ser produzida

em massa pelos meios industriais de comuni-cação. A indústria cultural vende cultura. Para

vendê-la, deve seduzir e agradar o consumidor. A “mídia” é o senso comum cristalizado que a indústria cultural devolve com cara de coisa

nova. Massificar é, assim, banalizar a expressão artística e cultural, vulgari-

zando as artes.

no rádio e no cinema. Ora, Adorno e Horkheimer conheceram a propa-ganda nazista. Eles viram o que o nazismo fez com o rádio, repetin-do, de certa forma, a estratégia já desenvolvida por Mussolini na Itália. Ao assumir o poder em 1922 na Itália, Mussolini tam-bém usou esses dois veículos. Ele criou a Cineccittà, empresa de filmes do Estado italiano. Esses dois ditadores desenvolveram políticas de comunicação que podem ser considera-das as mais competentes que já existiram. Perceberam o grande potencial de mobilização das massas através do cinema e do rádio. É importante aprender com esses exemplos, pois eles podem ensinar a mobilizar uma sociedade não para o autoritarismo, mas para a libertação, a criatividade e a emancipação.

Assim, a origem desse conceito, indústria cultural, é, de um lado, o nazismo, claramente explicitado em uma frase de Adorno e Horkheimer que impressiona muito: “O rádio é a voz do Fuhrer”, e, de outro, a socie-dade de massa americana e sua cultura. Trata-se de uma sociedade que eles aprenderam a conhecer a partir de 1933 e que nunca deixou de repre-sentar o desprezo que intelectuais europeus exilados tinham pelos Estados Unidos, que se traduzia no horror pela cultura de uma sociedade que, de certa forma, trazia uma série de elementos completamente desconhecidos na Alemanha do mesmo período.

É preciso, portanto, interpretar o conceito de indústria cultural a partir do seu contexto histórico. De um lado, o nazismo, e, de outro, a so-ciedade americana vista pelos filósofos judeus emigrados como o sintoma da decadência cultural do Ocidente.

A partir de suas ideias, tentou-se definir uma indústria muito espe-cial, que produz não uma mercadoria qualquer, mas, sim, uma mercadoria que possui um valor simbólico muito grande, embora ela se organize da mesma forma que uma fábrica de automóveis. Por quê? Sua produção é em grande escala – basta ver as tiragens dos jornais e as audiências da te-levisão e do rádio; tem um baixo custo, porque se beneficia da economia

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de escala; é padronizada, pois é a eterna repetição de uma mesma coisa. Foi a partir dessas três características que os autores tentaram mostrar como essa indústria realizava uma verdadeira manipulação das consciências.

O objetivo principal desses teóricos foi criticar a transformação da cultura em mercadoria, sua massificação e padronização, destinando-se apenas ao entretenimento da chamada “camada média” da população, alvo da sociedade de consumo. Assim como qualquer outro produto vendável, também a arte e a cultura seriam passíveis de comercialização pelos grandes conglomerados que venderiam, juntamente com “produtos” culturais, sonhos, projeções, ilusões e entretenimento vazio, esvaído de crítica ou de reflexão.

Esses produtos vendidos em larga escala teriam como principal ca-racterística a padronização e o enredo facilitado, atendendo a exigências dos modismos e das tendências ditados pela sociedade capitalista de con-sumo. Temos, então, a cultura de massa, superficial e efêmera, difundida através de veículos massivos que atingem a imensa maioria da população, sem a preocupação com critérios de qualidade do conteúdo, mas apenas com o número da audiência/dos consumidores.

Os meios de comunicação de massa, particularmente a televisão, são relativamente os novos agentes de socialização, influenciando com-portamentos, atitudes e incentivando novos hábitos (especialmente os de consumo), difundindo padrões (estereótipos).

Segundo reflexões desses autores, poderíamos pensar que a indús-tria cultural desenvolveu estratégias e ferramentas para vender cultura e arte como se fosse pasta de dente ou sapatos. Com o desenvolvimento do capitalismo e dos meios de comunicação de massa (a televisão à frente), o imperativo da lucratividade passou a permear o terreno da produção artísti-ca. Para esses filósofos, isso veio a comprometer a cultura erudita, chamada por eles de “arte séria”. O público começou a receber todos esses novos “produtos” sem saber distingui-los. Por exemplo, com a televisão e o rádio, torna-se possível tocar ou apresentar uma sinfonia de Beethoven, logo após dar as notícias de uma guerra no mundo, em seguida anunciar um novo tipo de sabão em pó e depois mostrar o show de um cantor de rock. Tudo isso sem nenhuma profundidade analítica, sem nenhuma discussão.

Como contraponto a esta perspectiva pessimista adotada pelos frankfurtianos, Benjamin defendia o potencial emancipatório e até mesmo revolucionário de que as artes pós-auráticas (cinema/fotografia) poderiam

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promover, caso fossem bem utilizadas, a criação de uma perspectiva mais crítica e reflexiva nas pessoas.

Nas últimas décadas, alguns teóricos latino-americanos têm discu-tido e questionado, em seus estudos sobre a recepção (Canclini, Barbero, Sarlo), essa mera transposição da cultura como mercadoria, levantando a hipótese de uma ressignificação do conteúdo veiculado pelos meios de comunicação de massa por parte dos sujeitos/receptores, inclusive sendo possível uma reinterpretação que contemple a reflexão sobre sua própria condição social.

Mas uma crítica contundente ainda válida dos estudos frankfurtianos reside no aspecto central da manipulação ideológica presente nos produtos da indústria cultural. A alienação e a ideologia do consumo orientam a produção e a divulgação destes produtos, fazendo com que, em sua própria forma e conteúdo, conformem as mentes para a importância do ato de “consumir”, para que possam pertencer ao gru-po social da elite e, ao mesmo tempo, diferenciar-se dos demais grupos existentes.

Para reforçar este processo, existe o importante papel exercido pelo discurso publicitário que associa valores socialmente aceitos a determina-das marcas e produtos, atribuindo-lhes um valor simbólico (fetichização) que suplanta em muito o seu valor de uso/utilidade ou função.

Para entender melhor o que é a indústria cultural, leia com atenção o texto abaixo.

Conexão:

trouxe para as empresas De acordo com a Associação dietética

norte-americana Borzekowiski Robison, bastam apenas 30 segundos de uma publici-

dade para uma marca influenciar uma criança.Procure assistir ao Documentário Criança, alma

do negócio, de Estela Rener, disponível em: <http://sociologiaemrede.ning.com/video/crianca-alma-do-negocio>. Nesse docu-

mentário, são abordadas as relações entre a mídia e a publicidade.

Os meios tecnológicos tornaram possível reproduzir obras de arte em escala industrial. Para os autores, essa produção em série

(por exemplo, os discos, as reproduções de pinturas, a música de concerto como pano de fundo de filmes de cinema) não chegou a democratizar a arte. Simplesmente, banalizou-a, descaracterizou-a, fazendo com que o público perdesse o senso crítico e se tornasse um consumidor passivo de todas as mercadorias anunciadas pelos meios de comunicação de massa. Nesse

caso, o fato de um operário assobiar, durante o seu trabalho, um trecho

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da ópera que ouviu no rádio não significa que ele compreenda a profundidade daquela obra de arte, mas apenas que ele a memorizou,

como faria com qualquer canção sertaneja, romântica ou mesmo com um jingle que ouvisse no mesmo veículo de difusão. Para Adorno, a indústria cultural tem como único objetivo a dependência e a alienação dos homens. Ao maquiar o mundo nos anúncios que divulga, ela acaba seduzindo as massas para o consumo das mercadorias culturais, a fim de que se esqueçam da exploração que sofrem nas relações de produção. A indústria cultural estimu-laria, portanto, o imobilismo. (CRESPO, Regina A. A indústria cultural. In: TO-MAZI, Nelson D. (coord.). Iniciação à Sociologia. São Paulo: Atual Editora,

2000, p. 206).

Atualmente, podemos discutir o alcance e o poder dos meios de co-municação de massa. No Brasil, por exemplo, poderíamos nos perguntar como a televisão alcançou o poder que possui atualmente. Não é no míni-mo impressionante vermos favelas com antenas de TV e até antenas pa-rabólicas? O que leva milhões de brasileiros esfomeados, desempregados, sem moradia digna e sem acesso a infraestruturas básicas a não abrirem mão de ter uma televisão em casa? Por que você acha que isso ocorre?

O sociólogo italiano Antônio Gramsci (1891-1937) diria que se trata de um fenômeno de “sonhar acordado”, ou seja, trata-se de um mecanismo de compensação e de consolação encontrado pelas camadas mais pobres da população, dadas as condições de sacrifício em que são obrigadas a vi-ver. O pobre realiza o sonho de uma vida melhor mergulhando no mundo fantástico das novelas e dos filmes. Existe um mecanismo de identificação desse público de telespectadores com os personagens da TV. Nas novelas, a felicidade é possível, os bons são recompensados e os maus são punidos.

Leia a seguir matéria do jornalista Eugenio Bucci sobre a televisão.

O Brasil não é uma aldeia, mas é global. Tire a TV de dentro do Brasil e o Brasil desaparece. A televisão é hoje o veículo que identifica o

Brasil para o Brasil, como bem demonstrou Maria Rita Kehl, em seu ensaio Eu vi um Brasil na TV. A TV une e iguala, no plano do imaginário, um país cuja realidade é constituída de contrastes, conflitos e contradições violentas. São 156 milhões de habitantes dispersos por 8.547.403,5 km². São costumes e tradições culturais tão distantes quanto os caiapós no sul do Pará e os imigrantes alemães de Santa Ca-

tarina. Sobretudo, são abismos sociais intransponíveis no curso de uma vida:

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segundo relatório sobre desenvolvimento do Banco Mundial, de 1995, a pior distribuição de renda do mundo é a brasileira. A TV produz a unidade

em que só há disparidades. Sem ela, o Brasil não se reconheceria Brasil. Ou, pelo menos, não se reconheceria como o Brasil que tem sido.

Embora nascida na noite de 18 de setembro de 1950, quando foi ao ar a pri-meira transmissão ao vivo da TV Tupi, em São Paulo, a televisão brasileira só assu-miu sua missão de integrar a nacionalidade a partir dos primeiros anos da década de 70 – missão que foi decorrência do projeto desenhado para o país pelos militares, que usurparam o poder político entre 1964 e 1985. (O período anterior a 1965 pode ser tratado como uma pré-história da televisão brasileira.) A integração nacional, que estava entre as prioridades do Estado militarizado, pode ser entendida como um des-dobramento lógico do que, na época, se chamou doutrina de segurança nacional. Hoje, aquilo tudo caiu um pouco no ridículo, mas a ideia era a seguinte: para estar a salvo de comunistas e subversivos, o território brasileiro precisava estar inteira-mente sob controle e, portanto, sob as influências de um veículo de comunicação abrangente, onipresente, forte e unificador. Para tanto, o Estado teria de garantir a infraestrutura para as telecomunicações, o que fez através da Embratel. A iniciativa privada daria conta do resto.

À Embratel foi confiada a missão de amarrar o país-continente pelas telecomunicações, com antenas e satélites. E à televisão foi confiada a tarefa de, via Embratel, unificar, no plano da ideologia, as mentes do povo brasileiro. A estratégia foi bem realizada. Na história do Brasil, trata-se de um dos poucos projetos culturais nacionais que deram certo. A rede de televisão preferencial daquele período acabou sendo a Rede Globo. A opção se deveu a motivos políticos, sem dúvida, mas o formidável sucesso que a Globo alcançou no Brasil deve ser creditado também ao talento artístico e empresarial com que ela foi conduzida. Seu profissionalismo e padrão de qualidade marcaram época. Por seus méritos e deméritos, foi a Globo quem impôs o modelo brasileiro de televi-são: aquela que informa, entretém e, acima de tudo, pacifica onde há tensões e une onde há desigualdades.

A primeira prova da vocação histórica da TV brasileira veio com a Copa do Mundo conquistada pela seleção brasileira em 1970. O Brasil se uniu diante dos monitores vibrando de patriotismo. Vieram também as novelas, capazes de prender mais de 70% dos telespectadores com seu linguajar acariocado que ia se tornando o português oficial do Brasil. Pelas novelas, a televisão, além de delimitar o espaço público, começou a alimentar o repertório do espaço privado: olhando para a tela,

as mulheres aprenderam a se vestir e os adolescentes aprenderam a namo-

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rar; diante da TV, os brasileiros começaram a sonhar seus sonhos modernos. Vieram, também, os programas de auditório, sem os quais o con-

graçamento que a TV proporciona ao público brasileiro não seria o mesmo. E veio junto o discurso ufanista: todos as noites, às 20 horas, o Jornal Nacional, o mais importante noticiário da Globo, que estreou no dia 1º de setembro de 1969, consa-grava a união nacional com boas notícias e elogios ao governo. A TV reconciliou o Brasil. Mais recentemente, um novo ingrediente passou a constituir uma ameaça ao equilíbrio democrático, abrindo campo para o fanatismo, para o irraciona-lismo e para a intolerância: a fusão entre igrejas e meios de comunicação, levando a religião para dentro da TV.

O crescimento da televisão – com a Globo na primeira fila – foi expo-nencial. Em 1964, quando a história da televisão brasileira iria começar para valer, o Brasil tinha 34 estações de TV e 1,8 milhão de aparelhos receptores. Em 1978, já eram 15 milhões de receptores. Em 1987, 31 milhões de televiso-res se espalhavam pelo país, dos quais 12,5 milhões em cores. O número de domicílios com TV, no Brasil, saltou de 15.885.000, em 1982, para 33.690 042, em 1995 – com a Globo chegando a quase todos: 33.686.792 de domicílios. Trata-se do sexto maior parque de receptores instalados no mundo. Agora, tudo isso parte para uma nova era com a chegada dos canais por assinatura.

BUCCI, Eugenio. Disponível em: <http://www.mre.gov.br/cdbrasil/ita-maraty/web/port/comunica/tv/apresent/apresent.htm>.

Por meio de um computador e de uma televisão, hoje já é possível saber o que está acontecendo no mundo todo a cada minuto. As infor-mações são veiculadas ao vivo, em tempo real, e o mundo todo entra em nossa casa. A rede mundial (Internet) possibilita que conversemos com pessoas em qualquer país do mundo, em tempo real. Ela é mais interativa que a televisão e o rádio.

A indústria da atual TV brasileira é indiscutivelmente poderosa, com capacidade de estimular o desejo, ditar comportamentos, moda e esti-lo de vida, com o intuito de vender seus produtos, associando-os a artistas famosos. Tudo é meticulosamente preparado para criar uma atmosfera de sonho na qual se insere o telespectador.

Estamos terminando mais um capítulo dessa apostila. No entan-to, antes de finalizá-lo, gostaria de propor uma reflexão final: os meios de comunicação de massa (MCM), ou a chamada indústria cultural, podem ser criticados pela alienação e homogeneização das culturas.

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Com a televisão, o cinema e a Internet, hoje fica mais fácil que alguns países incorporem culturas de outros países, o que se pode chamar de uma nova forma de colonialismo. Trataremos melhor desse assunto no capítulo seguinte, sobre globalização.

A crítica feita a esse fenômeno está na preocupação em relação à passividade e conformidade das pessoas diante de uma cultura produzida industrialmente que pode alienar. Mas aqueles que se colocam em defesa dos avanços nos meios de comunicação acreditam que estes são instru-mentos de democratização do acesso à informação. Os argumentos usados em seu favor são:

– os MCM são a única fonte de informação possível a uma parcela da população que sempre esteve distante das infor-mações; – as informações veiculadas por eles podem contribuir para a formação intelectual do público; – a padronização do gosto gerada por eles pode funcionar como um elemento unificador de diferentes grupos sociais, podendo diminuir a distância entre eles.

O que você pensa sobre isso? Você se identifica com qual dos pon-tos de vista apresentados aqui?

Atividades

01. O que é cultura, do ponto de vista do senso comum? Como as ciências sociais se diferenciam do senso comum ao tratar de cultura?

02. Podemos afirmar que a cultura urbana é superior à cultura rural? Por quê?

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03. Procure exemplos, no mundo e no Brasil, de comportamentos que podem ser entendidos como etnocentrismo. Desenvolva uma análise dos exemplos selecionados, com base no conteúdo desse capítulo.

04. Qual é a relação entre desejos pessoais, instintos e cultura? Dê exem-plos.

05. Escreva um pequeno texto desenvolvendo, de forma entrelaçada, os temas ideologia, cultura e indústria cultural, tomando como referência a televisão brasileira.

06. Segundo pesquisa realizada, em 2006, pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, 20% dos domicílios brasileiros têm computador. Desses 20%, apenas 14,5% têm acesso à Internet. Com base nessas informações, reúna os seus conhecimentos, apreendidos com os capítulos anteriores, e escreva um texto relacionando o tema da desigualdade social com o da cultura de massa.

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ReflexãoA partir do poema a seguir Eu, etiqueta, de Carlos Drummond de

Andrade, vamos refletir sobre o consumo das mercadorias culturais? Eu, etiquetaEm minha calça está grudado um nomeQue não é meu de batismo ou de cartórioUm nome... estranho.Meu blusão traz lembrete de bebidaQue jamais pus na boca, nessa vida,Em minha camiseta, a marca de cigarroQue não fumo, até hoje não fumei.Minhas meias falam de produtosQue nunca experimenteiMas são comunicados a meus pés.Meu tênis é proclama coloridoDe alguma coisa não provadaPor este provador de longa idade.Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,Minha gravata e cinto e escova e pente,Meu copo, minha xícara,Minha toalha de banho e sabonete,Meu isso, meu aquilo.Desde a cabeça ao bico dos sapatos,São mensagens,Letras falantes,Gritos visuais,Ordens de uso, abuso, reincidências.Costume, hábito, premência,Indispensabilidade,E fazem de mim homem-anúncio itinerante,Escravo da matéria anunciada.Estou, estou na moda.É duro andar na moda, ainda que a modaSeja negar minha identidade,Trocá-la por mil, açambarcandoTodas as marcas registradas,Todos os logotipos do mercado.Com que inocência demito-me de ser

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Eu que antes era e me sabiaTão diverso de outros, tão mim mesmo,Ser pensante, sentinte e solitárioCom outros seres diversos e conscientesDe sua humana, invencível condição.Agora sou anúncioOra vulgar, ora bizarro.Em língua nacional ou em qualquer língua(qualquer, principalmente).E nisto me comparo, tiro glóriaDe minha anulação.Não sou – vê lá – anúncio contratado.Eu é que mimosamente pagoPara anunciar, para venderEm bares festas praias pérgulas piscinas,E bem à vista exibo esta etiquetaGlobal no corpo que desisteDe ser veste e sandália de uma essênciaTão viva, independente,Que moda ou suborno algum a compromete.Onde terei jogado foraMeu gosto e capacidade de escolher,Minhas idiossincrasias tão pessoais,Tão minhas que no rosto se espelhavamE cada gesto, cada olharCada vinco da roupaSou gravado de forma universal,Saio da estamparia, não de casa,Da vitrine me tiram, recolocam,Objeto pulsante, mas objetoQue se oferece como signo dos outrosObjetos estáticos, tarifados.Por me ostentar assim, tão orgulhosoDe ser não eu, mas artigo industrial,Peço que meu nome retifiquem.Já não me convém o título de homem.Meu nome novo é Coisa.Eu sou a Coisa, coisamente.

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Leituras recomendadasProcure ler as seguintes obras:

COELHO, T. O que é indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1980. (Coleção Primeiros Passos).

LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001.

ROCHA, E. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1986. (Coleção Primeiros Passos).

SANTOS, J. L. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Cole-ção Primeiros Passos).

Referências

COELHO, T. O que é indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1980. (Coleção Primeiros Passos).

CRESPO, Regina A. Cultura e ideologia. In: TOMAZI, Nelson D. (co-In: TOMAZI, Nelson D. (co-ord.). Iniciação à Sociologia. São Paulo: Atual Editora, 2000.

DAMASIO, Celuy Roberta Hundzinski. Luta contra a excisão. In: Revista Espaço acadêmico, ano I, n. 3, ago. 2001. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br>.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XXI (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago, 1970.

GIDDENS, Anthony. Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gul-benkian, 2004,

LARAIA, R. B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

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LÉVI-STRAUSS. Raça e história. Os Pensadores, v. 1, São Paulo: Abril Cultural, 1978.

MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

O MUNDO da moda descobre o fuxico. Disponível em: <http://www.abril.com.br/noticia/abril/no_197325.shtm>.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1995.

No próximo capítulo

No próximo capítulo, analisaremos alguns clássicos modelos de compreensão do Estado a partir da perspectiva da Ciência Política. Nesse capítulo, teremos a oportunidade de perceber também como foi estruturado o pensamento de Durkheim e Weber. Dessa maneira, atentaremos para alguns modelos clássicos da análise e compreensão da sociedade e das instituições sociais e políticas.

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Minhas anotações:

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Cap

ítulo

3 Modelos clássicos da

análise e compreensão da sociedade e das instituições

sociais e políticasNeste capítulo, conheceremos alguns clássicos

modelos interpretativos da relação entre o indiví-duo e a sociedade. Inicialmente, pretendemos refletir

acerca da teoria política na interpretação do exercício do poder a partir da Modernidade. Por fim, serão apresentadas

as análises sociológicas mais tradicionais.

Objetivos da sua aprendizagem O objetivo central deste capítulo pauta-se na análise do problema

das relações entre o indivíduo e a sociedade. Ou seja, serão exami-nados os processos históricos de construção do poder do Estado e a

atuação da sociedade civil. Além disso, objetivamos ampliar o repertó-rio dos modelos clássicos de compreensão das instituições sociais.

Você se lembra? Da época em que o Brasil vivia sob o regime militar? A restrição da liber-dade é aceitável? Se sim, em que condições?

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3.1 Introdução ao problema Entre os problemas que sempre acompanharam a filosofia está a ques-

tão da relação entre o indivíduo e a sociedade. Em um primeiro momento, na Grécia, a coesão social era garantida pela lealdade à cidade-Estado. Trata-se de uma devoção religiosa e patriótica à cidade. Depois das conquistas de Ale-xandre, o Grande, e dos romanos, os gregos perderam muito do vigor político de outrora, criando uma ética mais individual e menos social. A coesão social, então, era garantida pela força, isso até Constantino.

Após adquirir prestígio e autoridade, o cristianismo trouxe de volta a ordem e a coesão social, garantida agora pela lealdade à Igreja, entendida como o Corpo de Cristo. Todo poder vem de Deus, que o outorgou ao Papa e ao Imperador. A crença no poder que a Igreja supostamente detinha de mandar alguém ir para o inferno fez com que mesmo imperadores se submetessem a ela. Isso apenas começa a mudar durante a Renascença, em que os antigos costumes medievais são deixados de lado em nome novamente da desordem e do colapso moral. Ocorre um afrouxamento moral, e tudo o que se relaciona à virtude passa a ser visto como coisa ligada à superstição.

Do século XVI em diante, o pensamento europeu é dominado pela Reforma, movimento multiforme com motivações políticas, econômicas e religiosas. Especialmente, os príncipes perceberam que, se dominassem a religião em seu país, seriam bem mais poderosos do que se compartilhassem o poder com o Papa. Disso resultou na política uma tendência ao anarquismo, visto que a verdade não era mais estabelecida mediante consulta à autoridade, mas através da meditação íntima.

Como reação ao crescente individualismo moderno surgiram diversas perspectivas. Uma delas, o liberalismo, pretende delimitar o que é próprio do indivíduo e o que é próprio do Estado, contrapondo-se tanto ao individualis-mo extremo quanto à autoridade absoluta do Estado. Em contrapartida, há também quem pretenda o culto do Estado, atribuindo a ele tanta autoridade quanto aquela que o catolicismo atribuía à Igreja ou a Deus. É o caso de Ho-bbes ou Hegel.

Durante toda a história da filosofia, portanto, os filósofos diferiram en-tre aqueles que pretendiam estreitar os laços sociais e aqueles que pretendiam afrouxá-los. Em todo caso, sem dúvida é necessária a coesão social, mas ela pode gerar a fossilização, devido ao respeito excessivo à tradição. Porém, a ausência de coesão conduz à dissolução e à conquista estrangeira. Parece que toda civilização começa com um sistema rígido, que depois se afrouxa para conduzir, enfim, à dissolução, a qual, por sua vez, leva a um novo sistema rí-

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ANTIGUIDADE CLÁSSICA: coesão social

garantida pela lealdade à cidade. De Alexandre a Constantino: coesão

social garantida pela força. IDADE MÉDIA: coesão social garantida pelo

pertencimento à Igreja.IDADE MODERNA: coesão social frágil, garanti-

da pela propaganda de Estado.

gido. O liberalismo pretende o fim desse ciclo, mantendo a ordem social sem baseá-la no dogma irracional e sem impor mais restrições à liberdade além das estritamente necessá-rias.

Ora, na Antiguidade Clás-sica, o homem não era concebido como indivíduo, mas como cida-dão, ou seja, membro de uma co-munidade política. Vimos que os gre-gos cultuavam a cidade-Estado grega, e é costume dizer que a filosofia é “filha da cidade”. Para Aristóteles, por exemplo, o homem é essencialmente um animal político, que por sua natureza é sociável, e qualquer homem que estiver abai-xo ou acima disso ou é um animal selvagem ou um deus. Em outras palavras, não se concebe o homem, pelo menos o homem civilizado e educado, senão dentro da cidade, enquanto cidadão e, portanto, de acordo com as responsabi-lidades e os compromissos que ele tem com a comunidade.

Em contrapartida, desde as conquistas de Alexandre essa situação mu-dou. As cidades-Estado caíram agora sob o jugo de um único império, que limitou sobremaneira as liberdades individuais. Impossibilitados de participar da vida política, os filósofos voltaram-se para a busca da felicidade pessoal ou individual, defendendo a supremacia do indivíduo sobre a sociedade. Em ou-tras palavras, para os filósofos do período que sucedeu a Alexandre, os acon-tecimentos da vida social não podiam afetar a vida privada, pois o homem deveria preocupar-se mais consigo mesmo do que com os outros.

A Igreja modificou esse modo de pensar, defendendo a ideia de uma úni-ca civilização sob um só comando. O sonho da unidade da civilização deveria reunir todos os homens em uma mesma comunidade. Também para os cristãos, assim como na Antiguidade Clássica, o homem não era entendido como indiví-duo, mas enquanto membro de uma comunidade que era a Igreja, denominada de o Corpo de Cristo. Cada homem faria parte desse corpo, e, aliás, a ideia de um corpo é bem sugestiva: um corpo é uma complexa organização em que cada membro exerce uma função específica e, além disso, cada membro de um corpo só existe unido ao corpo: fora dele perde sua razão de ser e morre. Isso significa que o homem perdia sua essência se não estava integrado na comunidade, que era, à época, a Igreja.

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Quando se diz em coletivismo na Idade Média,

pretende-se expressar o fato de que nesse período ninguém tinha a liberdade

de pensar por si mesmo, seguindo em tudo os mandamentos da Igreja. A Reforma, ao ne-

gar a submissão à autoridade religiosa, criou as condições para o individualismo, ideia segundo a qual cada um pode pensar e agir por si mesmo.

Um importante movimen-to modificou essa visão de unidade da Igreja, e esse movimento foi a Reforma Protestante. Negando-se a se submeter à autori-dade do papa, os pro-testantes, mesmo sem o pretender explicitamente, criaram as condições para o desenvolvimento do indi-vidualismo moderno, que na política, em alguns casos, conduziu à anarquia.

À mesma época em que teve lugar a Reforma Protestante, o capi-talismo dava também os seus primeiros passos. O desenvolvimento do comércio exigia uma sociedade equilibrada e em ordem, pois a desordem coletiva poderia ser prejudicial aos negócios. A classe burguesa emer-gente não poderia aceitar tumultos na ordem pública, sob pena de perdas financeiras. Era necessário, pois, garantir a unidade e a ordem, e para isso existiram diversas tendências teóricas que procuravam justificar a existên-cia do Estado e a necessidade de obediência a ele. Entre essas tendências destacam-se a Doutrina do Direito Divino e a Teoria do Contrato Social.

3.2 Teoria do direito divinoA Doutrina do Direito Divino era defendida, sobretudo, por mem-

bros da Igreja Católica, notadamente por Robert Firmer. De acordo com essa doutrina, a humanidade não é livre para escolher a forma de governo que lhe agrade. Com efeito, a liberdade é perigosa e deve ser evitada. Foi o desejo de liberdade que levou ao pecado de Adão e Eva, o qual intro-duziu o mal e a morte no mundo. Uma vez que a humanidade não é livre para escolher a forma de governo que lhe agrade, ela deve submeter-se à autoridade do rei. Mas por quê?

Os reis, de acordo com essa doutrina, são descendentes diretos de Adão, o primeiro pai da humanidade. Ora, sendo assim, ele é como um pai para os seus súditos. É importante destacar que, à época em que essas ideias foram defendidas, o dever de obediência para com o pai era devido durante toda a vida do pai. Hoje, após completar a maioridade, as pesso-

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O conceito de ges-tão de pessoas vem evoluindo

paralelamente com as mudanças de paradigma trazidas pelas escolas da ad-

ministração. Vamos fazer esse resgate até os nossos dias para entender como. “Vamos fazer esse resgate até os nossos dias para entender

como ocorreu essa evolução.

as julgam não precisar mais obedecer rigorosamente às ordens de seus pais, preferindo agir como bem entenderem, mesmo que isso porventura signifique contrariar o desejo dos pais. À época, pelo contrário, a autoridade dos pais era vitalícia.

Ora, isso significa que o dever para com os reis não é um mero dever civil, mas um dever religioso. Com efeito, a autoridade dos reis foi dada a eles por Deus; eles possuem, pois, direito sagrado ao trono. Contrariar o rei e suas ordens é não apenas um crime, é mais do que isso: trata-se de uma impiedade ou pecado.

De acordo com isso, a autoridade dos reis é absoluta e irrevogável. Ele, sozinho, governa: é ele quem faz as leis – embora não esteja, ele mes-mo, sujeito a elas – e é ele quem as executa. É o rei ainda o supremo juiz, devendo julgar e punir aqueles que ferem as leis que ele criou. Portanto, o rei reúne em si os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e não preci-sa prestar contas de suas ações a ninguém.

Contudo, nem todos aceitavam essas ideias. Por consequência, outra tendência teórica apareceu: a Teoria do Contrato Social.

3.3 Teoria do contrato social- Hobbes, Locke, Rousseau A Teoria do Contrato Social afirma que o Estado surgiu através de

uma espécie de contrato ou acordo celebrado entre os homens para evitar os inconvenientes do que eles chamavam de estado de natureza.

A maneira de entender o estado de natureza variava de filósofo para filósofo. Vejamos o que os pensadores dessa Teoria afirmavam.

Vitalício é algo que dura para a vida inteira; portanto, en-quanto os pais estivessem vivos, os filhos deviam obediência a eles.

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Estado de natureza seria a condição do

homem quando ainda não existia Es-tado ou Governo. Não se sabe se os filó-

sofos acreditavam que um dia isso realmente ocorreu ou se era apenas um conceito que

usavam para explicar o contrato social. O fato é que imaginavam um momento da humanidade,

muito tempo atrás, em que ainda não havia governo e especulavam sobre a condição da

sociedade humana nesse estado.

3.3.1 Thomas Hobbes (1588–1679) O inglês Thomas Hobbes estudou

em Oxford e recebeu influências de Bacon e Galileu. Após a Revolu-ção Liberal inglesa, exilou-se na França, tornando-se pro-fessor.

Hobbes pensava que os homens são, por natureza, livres, mas exercem sua li-berdade dominando os outros. Em outras palavras, o homem jamais hesita em fazer mal aos outros, se disso lhe advir algum be-nefício. Essa seria a condição natural do homem, o modo como ele é, essencialmente.

Ora, se o homem é assim, caso vivêssemos em uma sociedade em que não houvesse Estado, viveríamos em um clima de constante luta ou conflito. Os homens fariam guerra uns aos outros, e não existiria proprie-dade nem justiça. Com efeito, se tenho uma casa ou propriedade e mesmo que ela me pertença há muito tempo, tendo nela trabalhado toda uma vida, caso não exista governo alguém mais forte do que eu pode invadir minha propriedade e expulsar-me dela, pois, sem governo, não há justiça. Isso certamente aconteceria, diz Hobbes, pois o homem é lobo do próprio ho-mem, isto é, está sempre disposto a prejudicar o próximo. Para Hobbes, portanto, o homem é por natureza mau, invejoso e corrupto.

Para evitar esse estado de conflito e guerra, os homens teriam se reunido e firmado entre eles um acordo, escolhendo um soberano para governá-los. É importante destacar que não se tem clareza se para Hobbes isso realmente aconteceu ou se é apenas uma maneira de que ele se utili-zou para explicar sua concepção do Contrato Social.

O fato é que, pelo Contrato, do modo como Hobbes o entende, o sobe-rano passa a ter poder absoluto sobre todos. Com efeito, ao realizar o contrato e escolher o soberano, é como se o povo renunciasse um pouco à sua liber-dade em nome da ordem social, dando total e absoluto poder ao soberano. Sendo assim, depois do contrato, o povo não tem direitos, exceto aqueles que o soberano quiser dar-lhes. O povo não tem, por exemplo, direito à rebelião.

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Além disso, Hobbes era partidário do poder absoluto: o soberano não deveria dividi-lo com ninguém, mas exercer sozinho as funções do Execu-tivo, do Legislativo e do Judiciário. Não devem existir, por consequ-ência, partidos políticos, nem favoráveis nem contrários ao soberano. Muito menos se deve permitir a existência de sindicatos. Em contrapartida, o povo, sob nenhum aspecto, participa do poder e tudo o que é feito dentro do Estado tem a função de preservar a autoridade do soberano, mesmo o ensino: os professores só devem ensinar aquilo que for útil ao comandante. Por fim, o soberano é absoluta-mente livre para fazer o que bem entender e não deve satisfações de suas ações a ninguém.

O Leviatã é a figu-ra que representa o soberano:

absoluto, ele governa sobre todos e sobre tudo, não devendo satisfações a

ninguém.

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Em função de sua visão do poder político, Hobbes concebeu o so-berano através da figura lendária do Leviatã, um monstro mitológico me-diante cuja imagem Hobbes pretendia expressar o poder e a supremacia do chefe de Estado, que estaria acima de todos e de tudo.

Vejamos agora o modo como Locke, por seu turno, entendia o Con-trato Social.

3.3.2 John Locke (1632-1704)Nascido em Wrington, na Inglaterra, estudou na Universidade de

Oxford e, apesar do interesse por diversos campos do conhecimento, gra-duou-se em medicina. Escreveu, porém, importantes textos de filosofia, abordando variados assuntos.

Locke entende que o estado de natureza é um estado pacífico, ou pelo menos relativamente pacífico. Afirma que a propriedade privada existe no estado de natureza, que é anterior à sociedade civil. Esta teoria da proprie-dade ocupa em Locke um lugar de destaque, na medida em que atesta as origens burguesas de seu pensamento e contribui para aclarar seu êxito.

Sua obra Tratado sobre o Governo Civil tinha como objetivo expor a sua teoria de Estado, investigando os fundamentos da associação política (“Governo Civil”), demarcando-lhe o domínio, isolando as leis de sua con-servação ou de sua dissolução. A obra de Locke aparece no momento mais oportuno e reflete a opinião da ascendente classe burguesa. A motivação desse pensador foi o antiabsolutismo monárquico, ou seja, o desejo de ver a autoridade dos reis limitada pelo consentimento do povo, a fim de eliminar o risco de despotismo. O antiabsolutismo acarreta a vontade intelectual de abolir, de uma vez por todas, a doutrina de direito divino dos reis.

Entre os direitos que pertencem aos homens nesse estado de natu-reza, Locke situa, com insistência, o da propriedade privada. Segundo ele Deus deu a terra entre os homens em comum, mas quer a razão, que igualmente lhe deu, façam da terra o uso mais vantajoso e mais cômodo. Tal comodidade exige certa apropriação individual, primeiro dos frutos da terra, em segundo da própria terra. Essa apropriação tem por base o traba-lho do homem, que é limitado por sua capacidade de consumo.

Despotismo é o nome que se dá a um governo tirano, cuja auto-ridade é absoluta e é exercida sem freio de espécie alguma.

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Para aprofundar a discussão acerca dos filóso-

fos modernos mencionados aqui, ou sobre outros com os quais eles mantêm

relação, consulte o endereço a seguir, que os apresenta de modo acessível e simples: <http://www.geocities.com/cobra_pages/filmod.html>.

Como a terra fora dada por Deus em comum a todos os homens, ao incorporar seu trabalho à matéria bruta que se encontra em estado natural, o homem tornava-a sua propriedade, estabelecendo sobre ela um direito próprio do qual estavam excluídos todos os outros homens. O trabalho era, para Locke, o fundamento originário da propriedade.

Para Locke, a propriedade pri-vada é um direito natural como a vida e o trabalho. Como o Estado pode interferir nisso se são coisas do di-reito natural? Usa a Bíblia para justificar essa tese. No começo todos os homens eram iguais, tudo era de todos, mas o trabalho os diferen-ciou. Ocorre a valorização do trabalho contra a ideia de que terra era riqueza, o que foi ótimo para a burguesia. Depois surge a propriedade ilimitada, adquirida com a compra (acumulação de riqueza), e não com o trabalho.

Segundo Locke, os homens estavam bem no estado de natureza, entretanto achavam-se expostos a certos inconvenientes. Viver sem um governo é possível, diz ele, desde que todos obedeçam à lei natural, que, na prática, significa a lei de Deus, ou seja: não roubar, não trair, não matar etc. Porém, não é possível garantir que todos irão obedecer à lei natural e, caso alguém a desrespeite, quem protegerá os homens?

Sem dúvida, todos os homens são livres, iguais e independentes por natureza, e ninguém pode ser privado dessa condição nem submetido a um poder político sem seu consentimento. Mas, quando um número de pessoas concorda em formar uma comunidade ou governo, passa a constituir um corpo político no qual é a maioria que tem direito de atuar e decidir.

Assim sendo, há a necessidade de se estabelecer um contrato, que é um pacto de consentimento em que os homens concordam livremente em formar a sociedade civil para consolidar e preservar ainda mais os direitos que possuíam originalmente, no estado de natureza.

No Estado Civil os direitos naturais são inalienáveis. A vida, a li-berdade e os bens estão melhores protegidos sobre o amparo das leis, do

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arbítrio e da força comum de um corpo político unitário. Passar do Estado de Natureza para o Estado Civil não implica em perda de direitos, pelo contrário, os consolida, já que o homem não pode transferir seus direitos para ninguém, pois são direitos inalienáveis. O que faz um Estado ser le-gítimo é o consentimento do povo.

Portanto, segundo Locke, o objetivo maior e principal da existência do governo será a proteção da propriedade privada. Vê-se, assim, que ele defende os interesses da classe social a que pertencia, ou seja, a burguesia.

3.3.3 Jean-Jacques Rousseau (1712-1788)No que diz respeito a suas ideias políticas, Rousseau expressou-

-as em seu livro O contrato social. Rousseau desenvolveu os princípios políticos que estão sumarizados na conclusão do Émile (Emílio ou da educação). Começando com a desigualdade como um fato irreversível, Rousseau tenta responder à questão do que compele um homem a obe-decer a outro homem ou com que direito um homem exerce autoridade sobre outro. Ele concluiu que somente um contrato tácito e livremente aceito por todos permite cada um “ligar-se a todos enquanto retendo sua vontade livre”. A liberdade está inerente na lei livremente aceita. “Se-guir o impulso de alguém é escravidão, mas obedecer a uma lei autoim-posta é liberdade”.

Rousseau imaginava que o homem é bom por natureza, e sempre se presta a ajudar o seu próximo. Sua concepção acerca do ser humano é, portanto, oposta à de Hobbes. Para Rousseau, no estado de natureza o homem viveria em paz, pois é naturalmente impelido à solidarieda-de. Contudo, ainda assim esse estado não poderia manter-se por muito tempo, devido à existência da propriedade privada. Ora, para Rousseau, a propriedade privada está na origem da desigualdade social. Desde quando se inventou a propriedade, fez-se preciso o Estado, no objetivo de protegê-la. Porém, a partir de então, o homem, naturalmente bom, tornou-se mau, pois o Estado o corrompe. Com efeito, se existe Estado, existem o poder e a ganância pelo poder. Por isso o homem, de bom que era no estado de natureza, tornou-se, com a criação do governo, mau e ambicioso.

Contudo, uma vez que se mostrou inevitável a existência do gover-no, este deve agora reger-se pela vontade geral, e não pelos caprichos de um soberano absoluto. Também Rousseau, pois, professa a ideia de um

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A dialética pode ser

entendida, grosso modo, como conflito entre opostos. O método socrá-

tico, por exemplo, era dialético, porque era baseado no conflito entre as diferentes ideias

das pessoas que participavam de uma discussão.

acordo ou contrato entre os homens que estaria na origem do Governo civil e que justificaria a obediência a ele.

Entre os três filósofos citados acima, portanto, há a seguinte relação:Hobbes: pensa que o homem é mau por natureza e que o Estado é

necessário, caso contrário os homens viveriam em constante conflito entre si. O soberano, porém, uma vez escolhido, tem poderes absolutos.

Locke: o estado de natureza seria possível caso todos os homens respeitassem a lei natural, mas, como não se pode garantir isso, o governo é necessário para defender a propriedade. O soberano, porém, não deve ter poderes absolutos.

Rousseau: o homem é naturalmente bom e solidário. Contudo, desde que a propriedade foi criada, houve a necessidade de se criar o Go-verno, com o objetivo de protegê-la. Como consequência, o homem, antes bom, tornou-se mau em função da ganância pelo poder.

3.4 Liberalismo filosófico- Além de suas ideias acerca do Con-

trato Social, Locke também é um dos autores representativos da doutrina política conhecida como libera-lismo. O liberalismo consiste em um conjunto de ideias e precei-tos políticos que, na prática, es-pelham os interesses da classe burguesa.

De um lado, o capitalismo aprofundou o individualismo mo-derno, ao qual a Reforma Protestante já havia sinalizado. No pensamento capi-talista, os interesses do indivíduo estão acima dos interesses da coletividade. Cada indivíduo deve, por si mesmo, mediante os seus méritos, alcançar o sucesso pessoal.

De outro lado, o individualismo extremo pode prejudicar o próprio capitalismo, pois ameaça a coesão social e toda instabilidade social é, na-turalmente, prejudicial ao comércio.

O liberalismo surge, pois, como uma tentativa de conciliar o individu-alismo, que o capitalismo defende e aprofunda, com a vida social ordenada, de que o capitalismo, por sua vez, necessita. Entre os princípios liberais estão:

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Tolerância religiosa: nenhum tipo de conflito deve perturbar a ordem pública, pois qualquer instabilidade na política pode causar danos ao comércio.

Apreço pelo protestantismo: a Igreja Católica não via com bons olhos o desejo de lucro dos burgueses, além de condenar a usura. A Igreja Protestante, em contrapartida, sobretudo com Lutero e Calvino, defen-diam ideias proveitosas para o capitalismo.

Respeito ao comércio e à indústria: essa é a chave para o progres-so e o conforto.

Respeito aos direitos de propriedade: nisso os burgueses tinham grande interesse, pois a fonte de sua riqueza repousava sobre a proprieda-de privada dos meios de produção.

O liberalismo, portanto, pretendia conciliar o individualismo e a vida social ordenada, defendendo os interesses do capitalismo contra a aristocracia. Contudo, no século XIX desenvolveu-se uma teoria cujo ob-jetivo era justamente combater o liberalismo e tudo o que dizia respeito ao capitalismo. Essa teoria é o socialismo científico, cujo principal autor foi o alemão Karl Marx.

3.5 Visão de Estado na concepção marxistaIniciamos nossa compilação conceitual do Estado com pinceladas

das clássicas definições de Marx e Engels. Para esses teóricos, o Estado compromete-se com o interesse de classes e se relaciona diretamente com a base estrutural da sociedade cujo centro é a manutenção das condições materiais. Se a burguesia representa a classe que controla os meios de produção, o Estado serve a essa classe dominante. “Marx e Engels enfati-zaram o Estado como um aparelho repressivo da burguesia: um aparelho para legitimar o poder, para reprimir, para forçar a reprodução da estrutura de classe e das relações de classe.” (CARNOY, 1987, p. 22).

Ou seja, para Marx, o Estado funciona como o aparelho repressivo da burguesia sobretudo no que tange às relações estruturais da sociedade. Engels versou mais sobre o papel do Estado no controle dos conflitos sociais, e ficou evidente que esse controle seria executado pela classe que detinha o maior poder econômico. De maneira geral, os dois autores restringiram sua análise à ação coercitiva e violenta do Estado na tentativa pela manutenção da dinâmica estrutural capitalista.

Louis Althusser, assim como Gramsci, também leva em conta os as-pectos superestruturais na dominação de classe. Althusser faz uma análise contundente acerca da sociedade capitalista como um todo, tanto de suas

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relações econômicas, como políticas e sociais. A partir de uma concepção reprodutivista, Althusser vê o Estado como uma força consolidada em que os interesses de classe estão cristalizados.

Contudo, mesmo com uma teorização intensamente relevante, Al-thusser não amplia sua perspectiva sobre uma ótica histórica e dialética. Gramsci é o autor que considera dialeticamente o papel dos aparelhos ideo-lógicos do Estado que, ao mesmo tempo em que conservam as estruturas capitalistas, podem miná-las.

Antonio Gramsci aborda a definição de Estado diante de uma pers-pectiva de classe. Para ele, a dinâmica que compõe a sociedade é fruto direto da intervenção estatal. Todavia, ao mesmo tempo em que essa ins-tituição atua como instrumento de classe, ela é campo propício para a luta hegemônica. É basicamente nessa configuração que Gramsci conceitua o Estado Ampliado. Nesse sentido, o Estado, que comumente se definia enquanto sociedade política, passa a ser compreendido como equilíbrio entre sociedade política e sociedade civil. [...] entre a estrutura econômica e o Estado com sua legislação e sua coerção, está a sociedade civil [...]; o Estado é o instrumento para adequar a sociedade civil à sociedade econô-mica.” (GRAMSCI apud LIGUORI, 2003, p. 178).

Nesse caminho, Gramsci faz uma importante revisão da literatura marxista pois relativiza a perspectiva de Marx em que o Estado assegu-rava seu poder exclusivamente por meio da repressão e da violência. Na visão gramsciana, há um contraponto à sociedade política (marcada pela violência) que é a sociedade civil cujo domínio se estabelece a partir da divulgação de uma ideologia unificadora. “Para Gramsci, a sociedade civil expressa o momento da persuasão e do consenso que, conjuntamente com o momento da repressão e da violência (sociedade política), asseguram a manutenção da estrutura de poder (Estado).” (FREITAG, 1979, p. 35).

A formulação do conceito de um Estado Ampliado foi crucial para que os teóricos posteriores a Gramsci problematizassem a visão de que o Estado formava uma instituição unitária, homogênea e coerente. Prin-cipalmente, a partir dessa relativização que a sociedade civil passa a ser compreendida como parte da composição desse Estado. A grande tarefa na manutenção da ordem vigente, mesmo com a participação da socieda-de na dinâmica estatal, é garantir que as classes subordinadas aceitem a estrutura da classe dominante.

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A grande contribuição de Gramsci para analisar a dinâmica dos Es-tados na sociedade capitalista foi perceber o poder estatal não apenas no controle dos meios de produção, mas na divulgação de uma consciência hegemônica de aceitação do nexo capitalista. Assim, as análises grams-cianas dissertam acerca do papel do Estado na criação de mecanismos de racionalização que se desenvolvem na busca por um conformismo social. “Para dizê-lo de uma maneira muito simples, em Gramsci, o controle da consciência é tanto ou mais importante que o controle dos meios de pro-dução.” (TORRES, 1993, p. 81).

Nessa mesma linha de abordagem, Maria Ciavatta critica as concep-ções em que o Estado aparece acima das classes sociais. Para a autora, o Estado atua diretamente nas relações de classe, pois busca garantir o do-mínio hegemônico de uma classe sobre as demais.

A representação moderna de autoridade passa pela representação da soberania como um Estado fora e acima das classes sociais. A crítica que se faz a essa representação é que, de fato, não existe esse espaço de transcendência da soberania coletiva, mesmo porque o Estado não pode sê-lo. Não há o Estado separado e acima das clas-ses, mas o Estado instrumento de hegemonia de uma classe sobre as demais (CIAVATTA, 2002, p. 92).

Entretanto, a definição gramsciana de Estado integrada pela socie-dade civil sofre alterações no contexto atual intrinsecamente norteado pela ideologia neoliberal. A nova formação estatal fortalece os vínculos não mais com sua função de legitimar os direitos civis, mas de garantir a lógica do capitalismo contemporâneo. Segundo Palma Filho, durante a década de 1980, vários governos estaduais passaram a ser dirigidos por políticos que haviam lutado contra a ditadura e que, portanto, traziam uma concepção de Estado relacionada à luta civil e à conquista democrática. Contudo, no início da década de 1990, o modelo neoliberal começa a ganhar força nos países periféricos, e o Estado passa a compor uma visão mais antagônica:

O aprofundamento da crise econômica e a proposta de ajuste fiscal imposta pelo FMI aos países devedores começavam a deixar evi-dente que o Estado passava a se preocupar mais com sua função garantidora da acumulação capitalista do que com sua função de legitimação e, consequentemente, também ficava evidente, ao mes-mo, para aqueles que vêm a política de uma perspectiva de classe, que o Estado surgido das relações de reprodução não expressa o bem comum (PALMA FILHO, 2005, p. 30).

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Diante da nova realidade imposta pelas transformações do capita-lismo contemporâneo, começam a surgir novas concepções de Estado que não negam a perspectiva de Gramsci, todavia, buscam compreender as ações desse Estado em um cenário específico das novas relações econômicas e po-líticas impostas, após a década de 1990. Essas novas concepções surgem de uma contradição típica desse contexto. Esse Estado forma-se a partir de rela-ções sociais que agregam uma contradição de metas que pretendem atender a demandas de mercado e por outro lado buscam garantir a igualdade.

Essas contradições presentes na composição do Estado não são privilé-gio da formação neoliberal. Entretanto, no momento em que as funções le-gitimadoras desse Estado se atrofiam, podemos evidenciar essa contradição de forma mais clara. O que observamos com naturalidade é que há atual-mente na população uma crise de referencial que faz com que a sociedade ci-vil se mostre em um momento de fraqueza perante as imposições do mercado.

Todavia, a maioria dos países periféricos não consolidou sua forma-ção clássica de Estado, a saber, o Brasil. É peculiar ao Estado brasileiro a relação protecionista e corporativista, o que dificulta ainda mais a ação da sociedade civil. Sobre as mudanças sociais configuradas no Brasil, segun-do Carlos Cury (2002, p. 151): “[...] tiveram o Estado como um sujeito interventor [...], na relação entre o movimento operário e a organização patronal. Os direitos sociais não se formalizariam. No Brasil – especial-mente no Brasil urbano, sem o apoio e intervenção do setor estatal.”

Outra dificuldade peculiar à realidade brasileira refere-se ao nosso histórico ditatorial. Como na luta pela democratização política no Brasil houve muita crítica e acusações contra o governo, o Estado passou a ser menosprezado e tratado com repulsão. Não percebemos que nós, socieda-de civil, também integramos esse Estado e nossa luta era contra o governo ditatorial vigente. Portanto, ainda sustentamos um ranço de não identifica-ção com nosso Estado.

Sendo assim, o Estado é primordialmente um local de conflito que ora prioriza as medidas para garantir a igualdade de oportunidades ora centraliza suas mediações voltadas a atender as demandas do mercado. O que garante uma maior legitimação das ações do Estado ou uma maior preocupação com a acumulação capitalista é a força que a sociedade civil vai impor. Por isso, essa perspectiva estatal não nega a visão gramsciana, mas focaliza a definição do Estado nas relações de conflito.

Disponível em: (http://www.franca.unesp.br/Home/Pos-graduacao/ServicoSocial/Dissertacoes/Marina_Novaes.pdf).

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3.6 O positivismo O positivismo pode ser considerado o berço que embala a Socio-

logia há mais de um século, desde o seu nascimento. Assim, conhecer a história da Sociologia exige um conhecimento básico do positivismo, so-bretudo por ele ser considerado um conjunto de pensamentos e ações que formam o sistema de vida típico do século XIX, mais do que apenas uma doutrina.

Os positivistas eram pensadores conservadores que se preocupa-vam com a ordem, a estabilidade e a coesão social e consideravam que a sociedade moderna era dominada pela desordem, pela anarquia. Eles enfatizavam a importância da disciplina, da autoridade, da hierarquia, da tradição e dos valores morais para a conservação da vida social. A influên-cia da doutrina positivista ficou marcada na bandeira do Brasil pelo lema “Ordem e progresso”.

Diante das transformações sociais que ocorriam no século XIX, eles viam a necessidade de criar uma ciência que resgatasse os princípios con-servadores, e não uma que objetivasse mudanças. Augusto Comte dividia hierarquicamente a filosofia positiva em cinco ciências: astronomia, físi-ca, química, fisiologia e física social.

O “físico social” deveria, para Comte, buscar constantemente as leis universais imutáveis nos fenômenos sociais, à semelhança do que ocorria na física. Todos os fenômenos estudados deverim ser observados, experi-mentados, comparados e classificados, para serem considerados verdadei-ros e científicos.

As características mais importantes do positivismo são: – empirismo: submissão da imaginação à observação, à experi-mentação e à comparação; – classificação dos fenômenos sociais da maneira como é feita com os fenômenos naturais; – a ciência tem como função principal a capacidade de prever; – o espírito humano deve investigar sobre o que é possível co-nhecer, eliminando a busca das causas; – o conhecimento científico positivo deve buscar a certeza, a precisão e a ordem; – valorização das especializações e horror ao ecletismo.

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De um modo geral,

podemos dizer que as ciên-cias humanas se diferenciam das

ciências naturais pelo fato de o homem ser, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da

investigação. Quando estudamos a sociedade, o comportamento social e as várias formas de

interação social, somos, ao mesmo tempo, os in-vestigadores da realidade social e os membros

que compõem esta mesma realidade.

Como podemos perceber, a So-ciologia surgiu como uma ciência social que tinha as ciências na-turais como modelo, e os prin-cípios do positivismo eram a maior representação disso. No esforço de organizar e estabi-lizar a nova ordem social que surgia, parecia que, quanto mais exata, positiva e neutra fosse a ciência, melhor seria.

Pense: pode uma ciência exata e neutra entender e explicar a sociedade e os homens nas relações sociais?

Embora não seja desejável traçar linhas precisas que dividam a Sociologia em outras áreas de estudo, ela é uma ciência que precisa de métodos próprios, na medida em que o seu objeto de estudo, ao contrário dos objetos da física, está em constante transformação.

As ciências sociais diferem das ciências naturais em dois aspectos essenciais:

1) consideram que as sociedades são criadas e recriadas pelas ações humanas o tempo todo;

2) entende que a sociedade é historicamente construída.

Emprirismo: doutrina filosófica que encara a experiência sensível como a única fonte fidedigna de conhecimento. O filósofo

empirista baseia-se na observação e na experimentação para decidir o que é verdadeiro. Chega a conclusões através do emprego do método

indutivo, baseado no que observou.

Ecletismo: diferentes gêneros ou opiniões. Método que reú-ne teses e sistemas diversos. Método filosófico dos que não seguem

sistema algum, escolhendo de cada um a parte que lhes parece mais próxima da verdade.

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As formas de organização social que existem hoje não foram sem-pre assim, pois a sociedade não é estática.

Pense, por exemplo, na estrutura familiar do século XIX e na dos dias de hoje. Com o passar do tempo, de forma geral, as mulheres con-quistaram o direito de trabalhar fora e de não mais desempenhar apenas o papel de mãe e de esposa dependente do marido. Elas casam mais tarde ou nem se casam e muitas optam por não ter filhos. Elas, hoje, podem esco-lher seus maridos e não mais esperar um casamento arranjado pelos pais. Também não é necessário que as uniões sejam legalizadas no casamento civil ou que todos os casamentos sejam feitos com cerimônias religiosas. É muito mais comum que casamentos infelizes sejam desfeitos, e a mu-lher separada não gera mais tantos comentários perante a sociedade. O modelo de família nuclear clássico composto pelo pai, pela mãe e pelos filhos não é mais o modelo predominante. Hoje, é comum escutarmos casos de crianças que vivem um pouco na casa do pai e um pouco na casa da mãe. Os pais separados formam outras famílias. Os casamentos de homossexuais começam a ser legalizados em alguns países; em outros lugares, nem mesmo chegaram a ser condenados ou proibidos. Casais de homossexuais adotam crianças e formam uma família.

Você está percebendo como as sociedades mudam suas formas de se organizar, seus valores e mesmo suas normas?

A sociedade é construída e modificada pelos seres humanos diaria-mente. Assim, o ser humano e a sociedade são “objetos” de estudo em mutação. Com o passar do tempo, foi-se percebendo que, para estudar as sociedades, não era suficiente tratá-las como se fossem coisas.

Imagine o seguinte: você deixa quatro cadeiras na sala de sua casa e viaja por dois anos. Quando você chega de volta e abre a porta da sala, o que você vê? As quatro cadeiras exatamente no mesmo lugar em que você as deixou. Claro que isso vai ocorrer se ninguém entrar na sua casa, se não acontecer nenhum terremoto ou outros fatores externos. Agora, imagine uma sala com quatro pessoas e você faz o mesmo procedimento: sai para viajar por dois anos. Quando você volta, o que terá acontecido? As pessoas estarão no mesmo lugar, sem mudar nada, nem fazer nada, como se fossem cadeiras? Claro que não, pois as pessoas não são coisas, são seres sociais que transfor-mam seu ambiente enquanto estabelecem relações sociais entre si.

Estática: imóvel, parada

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Então, a Sociologia, que nasce no século XIX para entender as no-vas características da sociedade depois das Revoluções Industrial e Fran-cesa, não poderia continuar sempre entendendo os homens como coisa, assim como a química entende os componentes da matéria. Além de seu objeto estar sempre mudando, a Sociologia tem outra característica que a diferencia das ciências naturais e exatas: o pesquisador (cientista social) é também objeto de estudo da sua ciência. Ao mesmo tempo em que o sociólogo observa um fenômeno social, procurando compreendê-lo, ele está sofrendo influências da sociedade. Ele não é neutro diante de seus es-tudos, por mais que procure ser objetivo, ou seja, ir direto ao ponto central da questão, sem rodeios ou influências de sentimentos pessoais. Quando se afirma que o cientista social deve ser objetivo, isso significa que, mes-mo sendo humanamente possível, ele não deve se deixar influenciar por suas próprias crenças e valores. Mas isso é muito difícil, se não impossí-vel. Por exemplo, se o sociólogo tem preconceitos em relação aos negros, fica maior o desafio, para ele, de desenvolver um estudo “neutro” sobre o racismo. Se o sociólogo acha que o homossexualismo é uma aberração da humanidade, fica mais difícil para ele ser “objetivo” num estudo sobre esse tema.

O caminho que liga ser humano e sociedade é um caminho de mão dupla: ambos relacionam-se, complentam-se,

formam-se e tranformam-se.

HOMEM SOCIEDADE

3.7 A sociologia de Émile Durkheim O sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) foi o maior su-

cessor de Augusto Comte e da sociologia positivista. Ele se preocupava em conferir à Sociologia status de ciência independente. Seu livro As re-gras do método sociológico, de 1895, deu uma contribuição à Sociologia ao indicar como deveria se dar a abordagem dos problemas sociais, esta-belecendo as regras a serem seguidas na análise de tais problemas. Sua metodologia foi utilizada no estudo sobre o suicídio, publicado em 1897, em que, em vez de especular sobre as causas do suicídio (eliminando a

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pesquisa histórica), planejou o esquema de pesquisa, coletou os dados necessários sobre as pessoas que se suicidaram e, a partir desses dados, construiu sua teoria do suicídio.

REPRODUÇÃO

Émile Durkheim

Durkheim defendia a ideia de que os fatos sociais deveriam ser tra-tados como “coisas”, no sentido de serem individualizados e observáveis. Durkheim distinguiu três características dos fatos sociais:

1. Coerção social: os fatos exercem uma força sobre os indivídu-os, levando-os a confrontarem-se com as regras da sociedade em que vivem, tanto que os indivíduos sofrem sanções ou punições quando se rebelam contra essas regras.2. Exterioridade aos indivíduos: os fatos sociais independem das vontades individuais ou da adesão consciente a eles. As regras sociais de conduta, as leis e os costumes já existem quando o su-jeito nasce e são impostos a ele pela educação.3. Generalidade: é social todo fato que é geral, ou seja, que se repete em todos os indivíduos ou na maioria deles. As formas de habitação, de comunicação, os sentimentos e a moral são alguns exemplos. A generalidade do fato social garante sua normalida-de, ou seja, sua aceitação pela coletividade.

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Para Durkheim, assim como para os positivistas, o cientista social deve guardar certa distância em relação ao seu objeto de estudo, resguardando a objetividade de sua análise. Para isso, o sociólogo deve deixar de lado suas pré- -noções, isto é, seus valores e sentimentos pessoais. Assim, Durkheim diria, por exemplo, que, ao estudar uma briga entre gangues, o sociólogo não deve se envolver nem permitir que seus valores interfiram na objetivi-dade de sua análise.

A sociologia durkheimiana pauta-se prioritariamente em pesquisas quantitativas, ou seja, que medem e quantificam dados. Ela usa, portanto, estatísticas, equações matemáticas, gráficos e tabelas para apresentar os resultados de pesquisa.

3.8 A sociologia de Max Weber Enquanto na França sedimentou-se o pensamento social positivista,

na Alemanha outras correntes filosóficas influenciaram a Sociologia. A Alemanha se unifica e se organiza como Estado nacional mais tardiamente que o conjunto das nações europeias, o que atrasou seu ingresso na corrida industrial e imperialista da segunda metade do século XIX. Esse descompasso em relação às grandes potências vizinhas fez elevar no país o interesse pela história como ciência da integração, da memória e do nacionalismo. Por tudo isso, o pensa-mento alemão se volta para a diversidade, enquanto o francês e o inglês, para a universalidade. (COSTA, Cristina. Sociologia. Introdu-ção à ciência da sociedade. São Paulo: Editora Moderna, 1997, p. 70).

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Max Weber

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Max Weber (1864-1920) foi o grande sistematizador da sociologia alemã. A posição positivista anula a importância dos processos históricos particulares, valorizando apenas a lei da evolução, a generalização e a comparação entre formações sociais. Weber, no entanto, se opõe a essa concepção e entende que a pesquisa histórica – ausente no positivismo – é essencial para a compreensão das sociedades.

A pesquisa histórica, feita com a coleta de documentos, permite o entendimento das diferenças sociais. Portanto, o caráter particular de cada formação histórica deve ser respeitado. Assim, Weber introduz na Socio-logia a busca de evidências por meio do conhecimento histórico. Weber, entretanto, não achava que uma sucessão de fatos históricos fizesse senti-do por si mesma. Ele propunha o método compreensivo para o estudo dos fenômenos sociais. Mas em que consiste esse método?

O método compreensivo consiste num esforço interpretativo do passado e de sua repercussão nas características peculiares das sociedades contemporâneas. Para decodificar o mundo social, Weber propõe que se compreenda a ação dos seres humanos do ponto de vista do sentido e dos valores, e não apenas a partir das causas e pressões exteriores. A essa ação humana ele chamou de ação social.

Ação social é a conduta humana dotada de sentido. Assim, o homem passou a ter, na sociologia de Weber, uma importância enquanto sujeito que atribui sentido aos fatos. É o homem que dá sentido à sua ação social, estabelecendo a conexão entre o motivo da ação, a ação propriamente dita e seus efeitos. Por estudar as ações sociais, a sociologia weberiana chama os homens de atores sociais.

Mas, se cada indivíduo atribui um sentido às ações, como é que elas podem ser sociais?

O caráter social da ação individual decorre da interdependência dos indivíduos. Um ator age sempre em função de sua motivação e da cons-ciência de agir em relação a outros atores, embora não consiga controlar todos os efeitos de sua ação. O cientista social deve captar os sentidos e os motivos produzidos pelos diversos atores sociais nas sociedades.

Weber distingue ação social de relação social: para haver relação so-cial, é preciso que o sentido seja compartilhado. Vamos ver um exemplo?

Um sujeito que pede uma informação na rua a outro pedestre realiza uma ação social: ele tem um motivo e age em relação a outro indivíduo, mas tal motivo não é compartilhado. Ambos os pedestres não chegam a travar uma relação social.

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Numa sala de aula, onde o objetivo da ação dos vários sujeitos é compartilhado (todos estão ali para aprender), estabelece-se uma relação social dos alunos entre si e dos alunos com o professor.

Weber argumentava que os fatos sociais não são coisas e que a neutralidade do sociólogo é impossível. O cientista social parte de uma preocupação com significado subjetivo, pessoal. Sua meta é compreender, buscar nexos causais que deem sentido à ação social.

A obra mais conhecida de Max Weber é A ética protestante e o espí-rito do capitalismo, em que analisa o papel do protestantismo (da religião) na formação do comportamento típico do capitalismo ocidental moderno. Weber descobre, nesse estudo, que valores do protestantismo como dis-ciplina, poupança, austeridade, vocação, dever e a propensão ao trabalho atuavam de maneira decisiva sobre os indivíduos, formando uma mentali-dade – ou uma ética – propícia ao capitalismo.

Weber também se destacou pelo estudo das formas de dominação e da burocracia, como partes da racionalização do mundo moderno.

A sociologia weberiana pauta-se em pesquisas de cunho mais quali-tativo, uma vez que dependem da interpretação subjetiva e da compreen-são dos fatos sociais.

Atividades

01. Na bandeira brasileira, está o lema “Ordem e progresso”. Pesquise e apresente uma explicação para este lema ter sido inserido em nossa bandeira.

02. Explique o que pode ser entendido da sociologia de Durkheim a partir dessa frase (retirada de sua obra As regras do método sociológico): “O sentimento é objeto da ciência, não é critério de verdade científica”.

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03. Como pode ser explicado o método compreensivo de Weber?

04. A partir da leitura desse capítulo, como você explicaria o lema muito utilizado entre os empresários atualmente: “pensar globalmente e agir lo-calmente”?

05. Faça uma pesquisa sobre o Protocolo de Kyoto. Depois, redija um texto relacionando o desenvolvimento industrial, a globalização e os riscos ambientais do século XXI.

06. O que você já ouviu falar sobre segurança alimentar? Faça uma pes-quisa sobre o tema e resuma os pontos principais. Qual seria o papel do administrador de empresas em relação à segurança alimentar?

07. Alguns autores defendem a necessidade urgente de uma desacelera-ção da economia para que não acabe a vida humana na Terra por esgota-mento ambiental. Quais são os seus argumentos favoráveis e contrários a essa ideia? Fundamente sua resposta com base nos textos dessa apostila e em outras fontes pesquisadas.

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08. Leia com atenção os dois textos seguintes.TEXTO 1A globalização comercial e tecnológica permitiu o salto dos Tigres Asiáticos

e o alívio da pobreza na China. É reconhecida a proficiência brasileira em três coisas: no futebol, no carnaval e na busca de bodes expiatórios. Globalização e neoliberalismo foram os bodes na moda da década de 1990. Um era inocente. O outro era inexistente. A atual globalização não é uma conspiração americana para manter sua hegemonia. Os Estados Unidos são hegemônicos simplesmente porque ganharam a Segunda Guerra Mundial, pelo colapso do socialismo sovié-tico e por liderarem a nova revolução tecnológica. A globalização não é respon-sável pelo desnível industrial nem pela pobreza da periferia. Ao contrário, foi a globalização comercial e tecnológica que permitiu o salto tecnológico dos Tigres Asiáticos e o alívio da pobreza na China, que quinze anos atrás exportava menos que o Brasil e hoje exporta quatro vezes mais. Como o comércio internacional cresce quase o dobro do PIB mundial, os países abertos ao comércio e ao inves-timento vêm crescendo muito mais que os de economia fechada.

Fala-se no Brasil nos perigos da “desindustrialização” e da “desnacionali-zação” em virtude da abertura comercial que fizemos desde 1990. Mas as reais dificuldades de nossa indústria advieram de políticas internas que nada têm a ver com liberalismo ou globalização. Os reais problemas foram a sobrevalorização cambial, os juros escandalosos (resultantes dos déficits fiscais) e a tributação asfixiante. A atitude sensata para o Brasil é administrar competentemente nossa inserção na economia globalizada do futuro. E, dentro da OMC, continuar lutando tenazmente contra “assimetrias” e “hipocrisias”. A “assimetria” é a insistência dos países industrializados em ampliar a liberação de serviços e as regras de prote-ção de seus investimentos sem a contrapartida da liberalização de importações agrícolas. A “hipocrisia” é tornar mandatórias no comércio internacional cláusulas sociais (que ignoram diferenças da produtividade da mão de obra) ou refinadas exigências ambientalistas. Estas, sob pretextos ecológicos ou humanitários, podem servir de barreiras protecionistas contra as exportações oriundas de países mais pobres. Qual a alternativa à globalização? Nenhuma. Isolarmo-nos da revolução tecnológica para proteger empregos é suicídio, porque a perda de competitividade geraria estagnação e, consequentemente, mais desemprego. Em novembro de 1999 houve nas Filipinas uma reunião de antiliberais de 31 países sob o título de Conferência Internacional de Alternativas à Globalização. Além de xingamentos à chamada tríade maligna – FMI, Bird e OMC –, acusa-da de cumplicidade na “ofensiva neoliberal do capitalismo contemporâneo”, a conferência resultou em duas recomendações: um calote financeiro pelo não

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pagamento da dívida externa e um calote intelectual pelo não reconhecimento de patentes tecnológicas. Seriam, assim, punidos os dois principais protagonistas do desenvolvimento: os investidores e os geradores de tecnologia. Diz o economista hindu J.K. Mehta, da Universidade de Allahabad, que o subdesenvolvimento é principalmente falta de caráter, e não escassez de recursos ou de capital. Parece que ele tem razão.

Texto de Roberto Campos. Disponível em: <http://pensadoresbrasileiros.home.comcast.net/Ro-bertoCampos/>.

TEXTO 2Sob a égide das instituições de Bretton Woods, o mercado mundial está

destruindo o planeta. Trata-se de uma constatação banal ilustrada de maneira multiforme pelo espetáculo do cotidiano: os procedimentos das multinacionais, os deslocamentos massivos (empregos, atividades...), o genocídio dos índios da Amazônia, a destruição das identidades culturais e os conflitos étnicos recorrentes, o conchavo dos narcotraficantes e dos poderes públicos de quase todos os países, a eliminação programada pelos organismos econômicos internacionais (FMI, Ban-co Mundial e Bancos Internacionais) e pelos organismos econômicos nacionais, dos últimos freios à flexibilidade dos salários, o desmantelamento dos sistemas de proteção social nos países do Norte, o desaparecimento das florestas, a de-sertificação, a morte dos oceanos etc. Por trás de todos esses fenômenos, direta ou indiretamente, encontra-se a ‘mão’ do mercado mundial. Se um certo comércio mundial está presente e se uma certa ordem mundial é mais do que nunca neces-sária, mesmo ao custo de uma certa injustiça, as regras e a filosofia que inspiram as instituições econômicas internacionais que impregnam o imaginário dos dirigen-tes do planeta e presidem o funcionamento atual da economia são intrinsecamente perversas. Além da injustiça, o aumento das disparidades mundiais e as amea-ças que elas fazem pesar sobre o laço social engendram a destruição do meio ambiente tanto nos países do Norte quanto nos do Sul e criam poluições globais inquietantes. O imaginário liberal e mundialista atual [...] é intrinsecamente perverso porque repousa na crença das benfeitorias do livre-comércio erigido em dogma. Esta crença implica uma série de pressupostos: a antropologia e a ética utilitarista, o postulado da harmonia natural dos interesses, a crença no domínio ilimitado da natureza.[...] A crença na autorregulação pelo mercado leva logicamente a querer substituir toda forma de regulação estatal, familiar, ética, religiosa ou cultural pelo mercado. A troca mercantil transnacional torna-se a única base do laço social. [...]Na verdade, é uma verdadeira invasão ‘cultural’ do Norte em relação ao Sul, sem reciprocidade, que é programada pelo livre-comércio e seu braço secular, a OMC.

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A liberdade num mundo tão desigual é um jogo de engano. Qual banco africano vai abrir seus guichês em Nova Iorque? O desmantelamento de todas as ‘prefe-rências’ nacionais é simplesmente a destruição das identidades culturais. Quan-do se é bem nutrido, pode-se pensar que isso não é muito grave, até mesmo que isso constitui uma emancipação das pressões comunitárias. O problema, para os povos do Sul, está no fato de que essa identidade é comumente, em todos os sentidos do termo, sua única razão de viver.

LATOUCHE, Serge. Les dangers du marché planétaire. Paris: Presses de Sciences Po, 1998, p.61 e 62.

Quais são as diferenças entre os dois textos? Explique, posicionan-do-se diante das ideias expostas nos textos.

ReflexãoOs homens se orgulham de suas realizações e têm todo direito de se

orgulharem. Contudo, parecem ter observado que o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes.

Sigmund Freud.

Nesse capítulo, entendemos um pouco mais sobre o fenômeno da globalização e percebemos que pode se tratar de um fenômeno que possui traços positivos e negativos. Ao mesmo tempo em que a globalização pos-sibilita o contato imediato entre pessoas de todo o mundo, com um sur-preendente encurtamento das distâncias, também traz riscos para a própria humanidade. Assim, vimos que a globalização pode ser pensada como um fenômeno paradoxal.

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O tema está longe de ser esgotado pelos estudiosos da Sociologia, da Geografia e da Economia. Trata-se de um assunto muito recente que merece um olhar cuidadoso, como tudo o que “está na moda” merece. Pense nisso.

Leituras recomendadas

IANNI, Octávio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

LATOUCHE, Serge. A ocidentalização do mundo. Ensaio sobre a significação, o alcance e os limites da uniformização planetária. Petró-polis: Vozes, 1996.

Referências

ALVES, Giovanni. Dimensões da globalização. Londrina: Práxis, 2001.

CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos. Conflitos mul-ticulturais da globalização, Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

CARNOY, M. Educação, economia e Estado: base e superestrutura; relações e mediações. São Paulo: Cortez, 1987.

CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense (Coleção Primeiros Passos, nº 13), 1985.

CURY, C. A. J. Políticas da educação: um convite ao tema. In: FÁVE-RO, O; SEMERARO, G. (Org.). Democracia e construção do públi-co no pensamento educacional brasileiro. Petrópolis: Vozes, 2002.

DIAS, Reinaldo. Introdução à Sociologia. São Paulo: Pearson Prenti-ce Hall, 2005.

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Dicionário de Ciências Sociais. Fundação Getulio Vargas. Silva, Be-nedicto (coordenação geral). Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1987.

FREITAG, B. Escola, Estado e sociedade. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard brasileira das obras psico lógicas completas de Sigmund Freud. v. XXI (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago, 1970.

FRIGOTTO, G. Educação e formação humana: ajuste neoconservador e alternativa democrática. In: GENTILI, P; SILVA, T. T. (Org.) Neoli-beralismo, qualidade total e educação. Petrópolis: Vozes, 1999.

GABRIEL, C. T. Escola e cultura: uma articulação inevitável e conflituosa. In: CANDAU, V. M. Reinventar a escola. Petrópolis: Vozes, 2000.

GIDDENS, Anthony. Sociologia: uma breve, porém crítica introdução. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984.

______. Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

GÓMEZ, José Maria. Globalização da política. Mitos, realidades e dilemas. In: GENTILLI, Pa blo (org.). Globalização excludente. Pe-trópolis: Vozes/CLACSO/ LPP, 2000.

IANNI, Octávio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

LATOUCHE, Serge. A ocidentalização do mundo. Ensaio sobre a significação, o alcance e os limites da uniformização planetária. Petró-polis: Vozes, 1996.

LIGUORI, G. Estado sociedade civil: entender Gramsci para enten-der a realidade. In: COUTINHO, C. N.; TEIXEIRA. A. P. (Org.). Ler Gramsci e entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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PALMA FILHO, J. C. A crise geral do capitalismo real e as políticas públicas para o setor educacional. In: ______.; TOSI, P. G. (Org.). Política e economia da educação. São Paulo: UNESP, Pró-Reitoria de Graduação, 2004. (Pedagogia cidadã. Cadernos de formação).

______. Política educacional brasileira: educação brasileira numa década de incerteza (1990-2000): avanços e retrocessos. São Paulo: Cte, 2005.

SENNE, M. N. de. Uma proposta e outros olhares: um estudo do Programa Escola da Família. 2009. 145 p. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Franca, 2009. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Disponível em: < http://www.franca.unesp.br/Home/Pos-graduacao/ServicoSocial/Dissertacoes/Marina_Novaes.pdf> .

TORRES, C. A. Sociologia política da educação. São Paulo: Cortez, 1993.

No próximo capítulo

No próximo capítulo, aprofundaremos nosso estudo sobre as clás-sicas concepções marxistas de sociedade. Estudaremos as desigualdades sociais as quais se caracterizam como um dos fenômenos sociais mais estudados pela Sociologia. Nesse capítulo, teremos a oportunidade de perceber como a desigualdade social se revela de maneira distinta nos di-ferentes países e em determinados momentos da história.

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Cap

ítulo

4 A Concepção Marxista

da Análise Social: Desigualdade Social e

TrabalhoNeste capítulo, veremos um dos fenômenos so-

ciais principais com os quais a Sociologia se ocupa: a desigualdade social. Quando as revoluções Francesa

e Industrial do século XIX provocaram consideráveis mudanças na sociedade europeia e no mundo, a desigualda-

de social chamou a atenção dos pensadores, que procuraram criar uma ciência para explicá-la. Por isso, alguns autores até

definem a Sociologia como o estudo das desigualdades sociais. Em que consiste essa desigualdade? Quais são suas causas e con-

sequências? Esse é o assunto que abordaremos neste segundo capí-tulo. Pronto para estudar mais um tema de Sociologia?

Objetivos da sua aprendizagemDepois do estudo deste capítulo, você será capaz de compreender por que a desigualdade social está presente na maioria das sociedades; enten-der como a sociedade se divide em camadas distintas; conhecer as princi-pais formas de estratificação social, com destaque para as classes sociais; conhecer os fatores que caracterizam a desigualdade social no Brasil.

Você se lembra?Você se lembra das últimas reportagens que leu ou viu na televisão sobre a desigualdade social? A quais países elas se referiam? Você se lembra de ter visto as recentes discussões nos EUA sobre a garantia de acesso

público aos serviços médicos e hospitalares? Pois é, mesmo no país mais poderoso do mundo também há desigualdade social.

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4. Karl Marx Vimos até agora como a Sociologia nasceu positivista e conservado-

ra, pregando a necessidade de a ciência social colaborar para a manutenção da ordem (Comte e Durkheim), e vimos também como ela reorganizou os fatos sociais à luz da história e da subjetividade (Weber). Agora, vamos ver como a Sociologia pode ser também uma teoria do conflito e da mudança da ordem.

Falaremos um pouco de outro clássico, também alemão, chamado Karl Marx (1818-1883), que fundou o marxismo enquanto movimento político e social a favor dos operários (chamados de proletariado). Ele tinha ideias revolucionárias e contrárias ao positivismo. Questionou a tese da neutralidade e objetividade do cientista social.

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Karl Marx

O pensamento marxiano é um dos mais difíceis e complexos, pois Marx produziu muito. Suas ideias se desdobraram em várias correntes e são usadas em várias áreas (política, econômica, filosófica, sociológica, geográfica, histórica, jurídica, psicológica).

Que é próprio de Karl Marx. O pensamento de Marx é marxiano; o que outros pensaram e disseram a partir de Marx é marxista.

Seu objetivo principal era entender o capitalismo sob a ótica da economia, da filosofia e da sociologia. Além de ter a ambição de construir

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uma sociologia do conflito radicalmente oposta ao positivismo de Comte e ao funcionalismo de Durkheim, visava a criar uma ciência que pudesse ser usada na prática para revolucionar a ordem social vigente. Sua princi-pal obra é O capital, dividida em volumes, todos publicados em 1867.

Marx, dialogando sempre com vários economistas, sociólogos e filósofos, examinou a fundo o funcionamento do capitalismo desde sua origem até o fim do século XIX e desenvolveu propostas para eliminar esse sistema, que ele considerava cruel pela exploração dos trabalhado-res. Desenvolveu conceitos muito importantes até os dias de hoje para a Sociologia, como alienação, classe social, valor, mercadoria, mais-valia, modo de produção, dentre outros. Veremos alguns desses conceitos com mais detalhes nos capítulos seguintes dessa apostila.

Marx mostrou que, na sociedade capitalista de classes (donos do capital de um lado e operários de outro), o Estado representa a classe dos capitalistas, que é a classe dominante, a qual age conforme seus interes-ses. Para ele, toda a história da humanidade é a história da luta entre as classes sociais distintas. Ele dizia que essa luta de classes é o verdadeiro motor da história.

Para Marx, a produção é a raiz de toda a estrutura social, pois é na produção de bens que os homens travam relações sociais que condicio-nam todo o resto da sociedade. Segundo ele, são as relações sociais de produção que definem a sociedade de classes. A produção na sociedade capitalista só se realiza porque capitalistas e trabalhadores formam uma relação.

Essa relação, por sua vez, é uma relação de exploração, pois o capita-lista sempre paga menos do que deveria pagar aos seus trabalhadores. Marx dizia que, no capitalismo, a força de trabalho se torna uma mercadoria como qualquer outra, algo útil que se pode comprar e vender (por meio do salário). No entanto, no cálculo do salário, o capitalista desconta a mais-valia.

O que é mais-valia?É um conceito desenvolvido por Marx que significa, de forma simplifi-

cada, uma parte do salário devido que não é paga ao trabalhador. Isso ocorre porque o capitalista paga menos em relação às horas efetivamente trabalha-das ou porque obtém maior rendimento com as máquinas em menos tempo. Assim, o operário produz mais mercadorias, que geram um valor maior do que lhe foi pago na forma de salário. Isso é mais-valia: um valor exceden-te produzido pelos operários e não pago pelos capitalistas.

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Por exemplo: um operário trabalha 8 horas por dia produzindo sa-patos. Ele consegue produzir 1 par de sapatos por hora, 8 pares por dia. Mas, ao final do dia, ele receberá, em forma de salário, como se tivesse trabalhado 6 horas, ou seja, receberá pela produção de 6 pares de sapatos. Os 2 pares de sapatos restantes são a produção excedente que ele entrega de graça ao dono da empresa. Isso é um tipo de mais-valia.

Com a expropriação da mais-valia do trabalho operário (obtida, por-tanto, na produção) e com a apropriação do lucro que deriva da venda das mercadorias (obtido no mercado), o capitalista enriquece, enquanto seus trabalhadores continuam pobres.

Marx acreditava que as condições de trabalho nas indústrias do capitalismo, que aflorava com a Revolução Industrial, eram tão terríveis para os trabalhadores assalariados que estes iriam tomar consciência e iriam impulsionar um movimento revolucionário em favor da construção de uma sociedade primeiramente socialista (um estágio transitório) e, pos-teriormente, comunista (um estágio final, que seria permanente).

As ideias de Marx marcaram de maneira definitiva o pensamento científico e a ação política de sua época e das épocas posteriores. Seu ideal comunista é o ideal de uma sociedade sem classes sociais e sem proprie-dade privada (terras, máquinas, indústrias que pertencem aos capitalistas).

Sua abordagem sociológica é a do conflito, da dinâmica histórica, da relação entre consciência e realidade concreta, das práticas revolucio-nárias dos seres humanos. O que Marx queria era ver o ser humano livre das amarras do capital, emancipado e liberto, podendo ser autônomo.

Veja a seguir um quadro que sintetiza as correntes dos clássicos da Sociologia.

Saint-Simon 1760-1825 França Positivismo Teoria do con-senso

Augusto Comte 1798-1915 França PositivismoTeoria do con-senso e da or-dem

Émile Durkleim 1858-1917 França Funcionalis-mo

Teoria do con-senso e da or-dem

Max Weber 1864-1920 Alemanha Interação so-cial

Teoria da com-preensão da ação social

Karl Marx 1818-1883 Alemanha Marxismo Teoria do confli-to e da mudança

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Você se identificou com alguma dessas abordagens em especial? Não há uma mais correta ou menos correta que a outra. São apenas pontos de vista diferentes lançados para os mesmos fenômenos sociais.

4.1 A desigualdade social Desde o século XIX, a desigualdade social tornou-se um tema im-

portante e debatido por pensadores e cientistas sociais. Trata-se de um tema abrangente e complexo, que envolve áreas como economia, política, sociologia, geografia, história, direito e até psicologia. Portanto, neste ca-pítulo vamos destacar alguns dos pontos importantes da Sociologia, ainda que de forma não aprofundada.

AFP / MARIE HIPPENM

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Então, vejamos: A expressão “desigualdade social” descreve uma condição na qual os membros de uma sociedade possuem quantias diferen-tes de riqueza, prestígio ou poder. Todas as sociedades são ca-racterizadas por algum grau de desigualdade social. Podemos afirmar, com base em estudos da história humana, que a igual-dade é uma impossibilidade social. Toda sociedade compõe- -se de indivíduos com diferenças finitas de idade, sexo, força, resis-tência, velocidade, acuidade visual ou auditiva, inteligência, beleza e assim por diante. Uma vez que não é possível uma sociedade composta por membros exatamente iguais, quando utilizamos a ex-pressão “sociedade igualitária”, estamos nos referindo à igualdade

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de oportunidades que devem ter todos os indivíduos dessa socieda-de, sem discriminação de nenhuma espécie (DIAS, Reinaldo. Intro-dução à Sociologia. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2005, p.153.)

O sonho de uma sociedade igualitária está presente em movimentos anarquistas, socialistas e comunistas.

Mas, a igualdade a que esses movimentos sociais se referem não é ingênua a ponto de imaginar que todos serão iguais fisicamente ou que todos terão exatamente as mesmas habilidades e crenças. A igualdade a que se referem esses movimentos é a igualdade de oportunidades e de acesso a todos. O que se convencionou chamar de “utopia da igualdade” refere-se à obtenção de direitos iguais a todos, inde-pendentemente de sua condição sexual, racial etc. Assim, uma sociedade sem desigualdade social seria aquela em que todos, sem distinção, teriam direito aos mesmos hospitais, médicos, escolas, moradias, bens de consu-mo etc.

Estamos vendo, dessa forma, que as desigualdades podem ser físi-cas ou sociais. Vamos compreender melhor essa diferença?

As desigualdades físicas não podem ser superadas, pois são de natu-reza genética e racial, mas as sociais devem estar na pauta de discussões políticas e de estudos por profissionais de diferentes áreas de atuação. As desigualdades sociais estão presentes em todas as sociedades humanas, mas em cada uma delas as desigualdades se revelam de um modo diferen-te. No Brasil, nos Estados Unidos, na Índia e nas Filipinas, por exemplo, as desigualdades são específicas, pois resultam da forma como as socieda-des se organizam.

Conexão:

Assista ao filme Diário de Motocicleta, de Walter Salles.

Nele, podemos notar algumas ca-racterísticas de como a desigualdade social se apresenta em alguns países da América Latina. No filme, a história

é contada a partir do ponto de vista de Ernesto Che Guevara, líder

revolucionário.

Nota-se que o conjunto de fatores que determinam a desigualdade social faz com que este fenômeno social tenha características e causas distintas nos

diferentes países ou mesmo em diferentes regiões de uma única nação. Assim, os fatores que levam à desigualdade entre as classes no Brasil e as consequências dessa situação são diferentes, por exemplo, do mesmo fenômeno na Índia, nos EUA, na França ou na África do Sul. Da mesma forma, as desigualdades sociais no Brasil se apresentam de maneira variada

nas diferentes regiões do país. Para entendermos a desigualdade social, então, temos de levar em conta as diferentes características econômicas, políticas, culturais, sociais, de

infraestrutura etc. que caracterizam determinadas realidades.

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Utopia pode ser definida

como o lugar ou situação ideal em que tudo é perfeito. O substanti-

vo utopia vem das palavras gregas ou e topos, que significam “sem lugar”. Refere-se especialmente a um tipo de sociedade com

uma situação econômica e social ideal. Pode significar sonho de uma situação melhor.

Você já pensou alguma vez sobre as causas da desigualdade social? Você acha que os homens são diferentes entre si naturalmente? Você acredita que os homens vivem em condições desiguais por que essa é a vontade de Deus ou por que uns merecem ter mais que outros?

Vamos pensar, juntos, em alguns fatores determinantes para essa situação?

Cada sociedade se organiza de uma maneira e, portanto, as formas da desigualdade social se diferem porque são constituídas a partir de um conjunto de elementos econômicos, po-líticos e culturais próprios de cada tipo de organização social. Assim, a desigualdade social é distinta não apenas entre as diferentes sociedades que existem num mesmo tempo, como, também, na própria história da civilização humana.

No período de transição do feudalismo para o capitalismo, assiste-se à emergência de profundas transformações vinculadas à produção e ao trabalho e de novas condições políticas, jurídicas e culturais que fizeram

surgir um questionamento sobre os fundamentos das desigualda-des entre os homens. Ainda no século XVIII, antes da Revo-lução Industrial propriamente, o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau escreveu o Discurso sobre a origem e os fundamen-tos da desigualdade entre os homens, mostrando interesse em entender por que os homens são diferentes moral e politicamente. A novidade de seu pensamento foi justamente a de ter apontado distinção entre desigualdades naturais e desigualdades sociais

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Essa forma de compreensão e análise da

sociedade elaborada por Marx funda-se no método de análise que ficou conhecido como materialismo histórico.

Seu fundamento baseia-se no princípio de que toda sociedade tem desigualdades e, por isso, deve ser entendida a partir das relações mate-

riais construídas.

e de ter trazido o tema da propriedade privada para a discussão das desi-gualdades.

No século XIX, começaram a surgir teorias sobre as desigual-dades sociais, partindo-se da análise das relações de produção. Assim, começa-se a se pensar nas relações sociais no sistema de produção capitalista como sendo as responsáveis pelas desigualdades sociais. A desigualdade não era, portan-to, aceita como um fator natural ou mesmo como uma “vontade de Deus”. Com o surgimento da Sociologia, as cau-sas das desigualdades entre os homens começavam a ser investigadas.

As teorias da Antiguidade de Aristóteles e Platão, de Santo Agos-tinho ou Tomás de Aquino que afirmavam que as desigualdades sociais eram naturais ou causadas por vontade divina começaram a ser efetiva-mente questionadas.

Karl Marx foi o pensador mais importante na elucidação desse tema. Segundo Marx, as desigualdades sociais são produto de um con-junto de relações pautado na propriedade privada como um fato jurídico e político. As desigualdades sociais manifestam-se na forma de apropriação e dominação, ou seja, num sistema de organização social no qual uma classe produz e outra se apropria do produto desse trabalho.

Assim, podemos afirmar, a partir de seu pensamento, que as diferen-ciações sociais são fabricadas pelas relações econômicas, sociais, políti-cas e culturais, numa sociedade dividida em classes sociais distintas.

Embora as desigualdades entre os homens tenham sempre existido de alguma maneira, como no sistema escravocrata, o capitalismo permite que as diferenças sociais, políticas, econômicas e culturais cheguem a ex-tremos inaceitáveis.

Tratar desse tema complicado implica a necessidade de entender-mos que as sociedades dividem os seres humanos em camadas distintas. Esse fenômeno pode ser entendido como estratificação social. O que é isso? Vamos ver.

Elucidação: esclarecimento

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4.2 Estratificação social Antes de seguirmos adiante, temos de partir de um ponto básico:

embora os homens tenham desigualdades físicas e raciais naturais, as for-mas de organização da sociedade são determinantes para a desigualdade social entre os homens. As desigualdades sociais não são naturais, não são sempre iguais e não dependem de Deus. Não é verdade que os que têm poder e riqueza assim o são porque merecem, porque são melhores que os outros e já nasceram com dom para mandar ou para serem ricos, enquanto os pobres nasceram fadados à pobreza e são pobres porque querem. A ló-gica das desigualdades sociais é bem mais complexa do que essas crenças. A Sociologia nos ajuda a entender melhor isso.

Continue pensando sociologicamente comigo.Os sociólogos falam em estratificação social para descrever as

desigualdades que existem entre os homens e os grupos nas sociedades. Estratificação não se refere apenas à riqueza e à propriedade, mas também à estratificação dos seres humanos conforme gênero, idade, filiação reli-giosa ou patente militar.

Vamos ver algumas definições de estratificação social?

Em sentido genérico, estratificação designa o processo de colocar qualquer conjunto de itens ao longo de um continuum e de agrupar os itens que partilham de posição relativamente comum nesse con-tinuum; nesse sentido genérico, designa também o resultado da dis-posição dos itens. Nas ciências sociais, entretanto, o termo passou a indicar, mais estritamente, o processo ou a estrutura resultante pelos quais as famílias se tornam diferenciadas umas das outras e são dis-postas em estratos graduados segundo os vários graus de prestígio e/ou propriedade e/ou poder. (Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 1987, p. 421.)

A expressão estratificação social se refere à divisão da sociedade em camadas (ou estratos), sendo que seus ocupantes têm acesso de-sigual a oportunidades sociais e recompensas. Todas as sociedades até hoje conhecidas e estudadas apresentam o fenômeno da hierar-quia social, estando internamente divididas em estratos (DIAS, Rei-naldo. Introdução à Sociologia. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2005, p. 154)

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Estratificação social significa o modo concreto como cada socieda-de institucionaliza as desigualdades sociais, ou seja, como as distri-bui. Dizemos que isso é um conflito estrutural, porque admitimos, como hipótese de trabalho, que cada fase histórica o reveste de cor própria, mas não há história sem ele, e mais, a historicidade, que faz da sociedade um fenômeno intrinsecamente processual, se origina e se alimenta deste conflito. (DEMO, Pedro. Sociologia. Uma intro-dução crítica, São Paulo: Atlas, 1985, p. 92.)

Os indivíduos e grupos gozam de um acesso diferente (desigual) às recompensas, de acordo com a sua posição no esquema de estratificação. Assim, a forma mais simples de definir a estratificação consiste em vê-la como um sistema de desigualdades estruturadas entre diferentes agrupa-mentos de pessoas. [...] As sociedades podem ser vistas como constituin-do ‘estratos’ hierarquizados, com os mais favorecidos no topo e os menos privilegiados perto do fundo. (GIDDENS, Anthony. Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 284.)

A imagem que mais comumente ilustra a estratificação social é a da pirâmide:

Estratos ou camadasnuma hierarquia quedivide os grupos emsuperiores e inferiores.

Historicamente, existem quatro sistemas básicos de estratificação nas sociedades humanas:

1. A escravatura: é uma forma de desigualdade extrema, na qual alguns indivíduos são literalmente possuídos por outros como sua propriedade. A escravatura foi sendo eliminada enquanto instituição formal, embora, infelizmente, ainda encontremos hoje nos países em desenvolvimento pessoas vivendo em situação de escravidão.

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A aristocracia é

formada pelas classes dos nobres, privilegiados. É o que conhe-

cemos como elite ou o governo no qual o controle fica nas mãos de poucos cidadãos

ricos e socialmente importantes. O termo vem do grego e significa “governo dos melhores”. A aristocracia se baseia na suposição de que os homens nascidos de famílias ricas e poderosas

têm maior competência e estão mais capa-citados que o resto das pessoas. Hoje, o

termo é mais usado para designar grupos de líderes sociais.

2. A casta: está associada às culturas da Índia e à crença hindu e era mais comum nas sociedades da Antiguidade. Nesse sistema, cada casta determina claramente o papel que os indiví-duos devem exercer. A hierarquização é bas-tante rígida e baseia-se em critérios como heredita-riedade, etnia, religião e valores estipulados pela tradição.3. Os estamentos: típica estratificação do feudalismo. Consistiam em estratos, cada qual com diferentes obrigações e direitos. Alguns estamentos da Europa eram: nobreza, aristocracia, clero, servos, mercadores e artesãos. A tradição era fundamental para definir o estamento. 4. As classes sociais: podem ser definidas como um grupo grande de pessoas que partilham recursos econômicos comuns, os quais influenciam seu modo de viver. As classes não são estabelecidas por disposições religiosas, legais ou pela hereditariedade.

Atualmente, as classes sociais são a explicação mais comum dada às desigualdades sociais existentes nas sociedades por todo o mundo. Vamos ver esse conceito mais de perto?

4.3 Desigualdade social, mercado de trabalho e

pobreza no Brasil Até aqui, procuramos entender o que caracteriza as sociedades de-

siguais e como as organizações sociais em diferentes épocas e lugares es-tratificam os grupos sociais. A amplitude do tema não nos permite esgotar, nesse capítulo, todos os argumentos existentes na Sociologia.

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Agora, para finalizar as reflexões deste capítulo, proponho que analisemos algu-mas questões relacionadas à desigualda-de social no Brasil.

O Brasil é o quinto maior país do mundo em extensão territorial. Possui, em 2009, cerca de 191,5 milhões de habitantes, segundo as informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísti-ca – IBGE. Em nosso país, 10% da população detêm 50% do total da renda e os 10% da população, com menores remunerações, ficam com 1%. Grande parcela da popula-ção brasileira vive em situação de pobreza, o que pode ser compreendido como resultado da desigualdade de distribuição de recursos e de riqueza, dado que o Bra-sil possui uma renda nacional que o coloca entre os 20% mais ricos do mundo.

A desigualdade social é marcada principalmente pela distância social, econômica e cultural entre ricos e pobres. Mas não é apenas isso. As desi-gualdades sociais no Brasil são caracterizadas pelas condições desiguais das pessoas de acesso ao estudo, à moradia, à infraestrutura básica (água encanada, esgoto, energia elétrica, coleta de lixo, asfalto), ao emprego, à alimentação, ao lazer, dentre outros. Esse acesso é determinado não só pela categoria de classe (que separa ricos de pobres), mas também pelas categorias de gênero (homem ou mulher), fai-xa etária, raça/etnia (ser branco, índio ou negro).

Etnia refere-se ao con-

junto de características cultu-rais de um povo, o que independe da

raça, ainda que tenha ligações com ela. Por exemplo, se uma criança branca, loira e

de olhos azuis é deixada desde bebê para ser criada numa tribo indígena, ela terá uma raça

específica (branca) e uma etnia típica da tribo em questão (Dicionário Houaiss Digital).

Conexão:

Acesse o site <www.ibge.gov.br> para conhecer os

resultados de pesquisas realizadas no Brasil pelo Instituto Brasileiro de Ge-ografia e Estatística. Nelas, você poderá

encontrar informações interessantes sobre a forma como estão distribuídas

as riquezas e a desigualdade no país.

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Pense no seguinte: – Mulheres negras, nascidas numa favela do Rio de Janeiro, têm as mesmas condições de acesso à educação, à saúde e ao emprego que mulheres brancas nascidas em uma família rica? – Mulheres negras têm as mesmas condições de acesso ao em-prego que homens brancos? – Homens brancos com 50 anos de idade têm as mesmas con-dições de acesso ao emprego que mulheres brancas com 25 anos? – Homens brancos e homens indígenas têm as mesmas condi-ções de vida no Brasil? – Numa mesma classe social, mulheres e homens têm as mes-mas condições de vida? – Numa mesma classe social, brancos e negros têm as mesmas condições de vida?

No Brasil, é bastante preocupante a discriminação sofrida pelas mulheres, brancas ou negras, com prejuízos maiores para as negras. Em nosso país, de cada dez cargos executivos existentes nas grandes em-presas, apenas um é ocupado por mulheres. No nível da gerência, dois cargos são das mulheres e oito dos homens. Nas chefias, as mulheres são três e os homens sete. As mulheres também estão em menor número no chão das fábricas e nos cargos funcionais e administrativos: 3,5 contra 6,5.

Estudos realizados pelo Observatório Social em 23 multinacionais no Brasil confirmam que praticamente todas apresentam algum proble-ma ligado à discriminação de gênero. Avalie os dados na tabela a seguir, publicados no artigo de Waldemir Rosa, Sexo e cor: categorias de con-trole social e reprodução das desigualdades socioeconômicas no Brasil (Revista de Estudos Feministas, nº 3, Florianópolis, set./dez. 2009)

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Tabela: Média da renda da ocupação principal por sexo, segundo cor/raça

Brasil 1996-2007

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anca

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778,3

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3,533

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Distribuição percentual de homens e mulheres por alguns setores de trabalhoSetores Mulheres HomensBens de capital 13,6 86,4Alimentos 31,4 68,8Calçados 47,2 52,8Couro 17,9 82,1Informática 30,8 69,2Telecomunicações 34,2 65,8Têxtil 46,8 53,2Vestuário 76,1 23,9

Fonte: PNAD/IBGE - 1998. Extraído de: Guimarães e Consoni, 2000: “As desigualdades reestruturadas” Pesquisa CUT-Finep

O mercado de trabalho brasileiro apre-senta um quadro que se agrava a cada ano que passa. Os empregos formais com carteira assinada diminuem e aumen-tam os empregos informais sem cartei-ra assinada; aumenta também paulati-namente o número de desempregados, acompanhando uma tendência mundial de precarização e eliminação de postos de trabalho.

Um outro aspecto de diferenciação que podemos identificar no mercado de trabalho brasileiro é a posição desvantajosa ocupada por indivíduos identificados como negros e pardos. Eles estão majoritariamente presentes nas ocupações de menor prestígio social e que exigem pouca ou nenhuma qualificação profissional. Consequentemente, seus rendimentos são substancialmente menores do que os dos brancos. Os negros brasileiros têm feito pouco progresso na con-quista de profissões de maior prestígio social e no estabelecimento de seus próprios negócios. Concentram-se em atividades manuais que exigem pouca qualificação e escolaridade formal. As desvan-tagens acumuladas através da história brasileira tornaram o sucesso difícil para a população afro-brasileira. (SCALON, Maria Celi; HE-RINGER, Rosana. Desigualdades sociais e acesso a oportunidades no Brasil. In: Democracia Viva, n. 7, mar. 2000, p.44 e 45.).

Conexão:

- Confira outras pesquisas no sítio <http://www.observatorioso-

cial.org.br>.

Confira dados de desemprego no Brasil, a partir de pesquisas realizadas pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), e observe como

as taxas de desemprego são maiores para as mulheres, sobretudo na

região Nordeste do país.

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A situação da mulher negra no mercado de trabalho brasileiro não é nada confortável. Avalie os seguintes dados:

• o salário médio da trabalhadora negra continua sendo a metade do salário da trabalhadora branca;

• a trabalhadora negra continua sendo aquela que se insere mais cedo e é a última a sair do mercado de trabalho;

• mesmo quando sua escolaridade é similar à escolaridade da com-panheira branca, a diferença salarial gira em torno de 40% a mais para a branca;

• mulheres negras têm um índice maior de desemprego em qualquer lugar do país. A taxa de desemprego das jovens negras chega a 25% – uma entre quatro jovens negras está desempregada;

• mulheres negras estão em maior número nos empregos mais precários. 71% das mulheres negras estão nas ocupações precárias e infor-mais, contra 54% das mulheres brancas e 48% dos homens brancos;

• os rendimentos das mulheres negras em comparação aos dos homens brancos nas mesmas faixas de escolaridade em nenhum caso ultrapassa os 53%, mesmo entre aqueles que têm 15 anos ou mais de

escolaridade.

Observatório Social em Revista, ano 2, n. 5, mar. 2004, p. 29.

Há, ainda, outros dados da participação da mulher no mercado de trabalho. O artigo 7º, Inciso XXX da Constituição Federal do Brasil diz que fica proibida a “[...] diferença de salário, de exercício de fun-ções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”.

A pobreza no Brasil é outro indicador importante de desigualdade social. As estatísticas revelam que 13% dos brasileiros vivem em situação de pobreza extrema, o que equivale a cerca de 22 milhões de pessoas vul-neráveis à fome crônica e à subnutrição. Em nosso país, cerca de 58 mi-lhões de pessoas (35% da população do país) possuem rendimento abaixo da linha de pobreza. A maior parte dos pobres está concentrada na região Nordeste do Brasil.

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O relatório “Situação da infância e ado-lescência brasileiras” traz dados sobre as diferenças de acesso a serviços de saúde e educação entre crianças pobres e ricas, que vivem em áreas rurais e urbanas, respecti-vamente, que crescem no sul ou no norte do país. Quando uma criança nasce, sua etnia, a renda de sua família e a escolaridade de sua mãe determinam as oportunidades que ela terá na vida. Nascer menina ou menino, por exemplo, pode mudar as possibilida-des de a criança frequentar a Pré-Escola e o Ensino Fundamental.

A existência da pobreza coloca uma questão importante. Desde a Revolução Francesa, prega-se a igualdade entre os homens, a qual, em certa medida, está vinculada a garantias legais em vários países demo-cráticos. Examine o Artigo 5º da Constituição Federal do Brasil que diz que Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a in-violabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...] Inciso I – Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

Como o Brasil pode ter uma lei que desaprova a desigualdade e, ao mesmo tempo, apresentar estatísticas aviltantes como a de possuir metade da sua população em situação de pobreza? Uma vez defendido o princípio de que todos têm os mesmos direitos, parece que fica cada vez mais difícil justificar as diferenças sociais, não acha?

Há, no fundo, uma grande contradição entre os princípios que nossa organização social defende e a realidade prática que essa mesma organi-zação gera. Compreender e explicar essa contradição, em meio a tantas outras, é uma tarefa para a sociologia.

Conexão:

Confira outros estudos no site <http://www.unicef.

org.br>.

Qualidade do que é inviolável, que nunca se deve infringir.

Alvitante: que desonra.

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Por sua quantidade, os bens produzidos pela indústria de massa seriam capazes de manter e reproduzir toda a população do planeta. Restaria ainda um excedente, garantem alguns economistas. Mas a diferencia-ção, a oposição e a concorrência entre os grupos sociais acabam por criar mecanismos de apropriação e monopólio dos bens econômicos e sociais, gerando crescente concentração de renda. E é em meio à socie-dade da abundância que a pobreza adquire um caráter contraditório e, até, paradoxal. (COSTA, Cristina. Sociologia. Introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Editora Moderna, 1997, p. 256.).

Nesse capítulo, estudamos a desigualdade social sob a ótica da Sociologia. Vimos que a desigualdade social se manifesta em todas as so-ciedades de diferentes maneiras, mas que todas elas possuem em comum a organização social por estratificação. A divisão da sociedade em classes sociais é a mais comumente vista nos dias atuais, embora a definição de classe social envolva fatores diversos que tornam complexa a classifica-ção de uma pessoa em uma ou outra classe.

Vimos também que a classe social não é o único indicador de de-sigualdade social, pois devemos atentar para fatores como gênero, raça/etnia e faixa etária. O mercado de trabalho no mundo todo, especialmente no Brasil, revela as desigualdades sociais quando desemprega ou precari-za mais mulheres que homens, mais jovens que adultos, mais negros que brancos, por exemplo. Abordamos a pobreza como uma marca registrada da desigualdade social no Brasil, em contradição ao que prega a Carta Magna, de que todos devem ter os mesmos direitos.

O artigo a seguir nos dá uma amostra da questão desigualdade so-cial nos dias atuais

Pobre e desigual Pesquisa de Orçamentos Familiares mostra que país avança,

mas ainda precisa gastar melhor para superar carências e desigualdades. No início do ano passado, cerca de 22% dos brasileiros viviam com

o equivalente a R$ 6 por dia – preço aproximado daquilo que restaurantes populares chamam de “prato feito”. A renda média das famílias dessa faixa era de R$ 544,21, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, divulgada na semana passada, que traz valores referidos ao mês de

janeiro de 2009.

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Uma cesta básica custava àquela altura R$ 215. Seus itens permitiam nutrir quatro pessoas de maneira precária. E a família

precisaria arcar com despesas relativas a outros itens, como habitação, energia, transporte e roupas.

A atenção aos detalhes é proposital. Ressalta os rigores da vida de um Brasil eufórico por se projetar como potência econômica, mas nem sempre atento ao fato de que ainda é um país relativamente pobre e, em demasia, desigual.

Há de fato crescimento com alguma distribuição de renda. Segundo o economista Marcelo Neri, do ano de 2003, data da POF anterior, ao de 2009, o rendimento dos 10% mais pobres aumentou 42%; o das pessoas no décimo superior da renda subiu 13%.

Porém, no Nordeste, em 2003, a renda média per capita dos 10% mais ricos era 11,8 vezes maior que a dos 40% mais pobres da população. Em 2009, “recuou” para 11,4 vezes. No Sudeste, passou de 8,3 vezes para 8,2.

A pobreza foi em parte reduzida graças a transferências sociais. Para as famílias cuja renda era de até dois salários mínimos, em 2009 (22% da população), mais de 21% do rendimento advinha de benefícios e aposenta-dorias públicas federais.

Valores pagos pelo INSS e programas sociais em geral representam parcela maior da renda dos mais pobres do que dos mais ricos. Tal progres-sividade é porém discutível. O valor absoluto dos benefícios é mais alto nas faixas de maior renda. Além do mais, os 22% mais pobres, com renda familiar per capita de R$ 177, recebem relativamente menos do INSS que a parcela seguinte da distribuição, os 17,4% da população, com renda de R$ 355.

A grande disparidade está nas aposentadorias e pensões públicas que não são pagas pelo INSS – de servidores federais e estaduais. Entre os 22% mais pobres, 0,9% da renda vem daí. No topo da distribuição, os 3,81% mais ricos, 9% da renda média per capita de R$ 5.452 vem de apo-sentadorias e pensões.

São aposentadorias para as quais em geral não houve contribuição, responsáveis por déficits tão grande quanto o do INSS, que, no entanto, beneficia dez vezes mais cidadãos.

A iniquidade fica ainda mais evidente quando se trata do Bolsa Fa-mília.

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Custa um vigésimo da despesa do INSS e alcança os mais miseráveis, mas metade da população com renda adequada ao

programa não recebe o benefício.Sabe-se que não será com transferências sociais que se acabará

com a pobreza – aliás, além de um certo ponto, tais programas podem se tornar contraproducentes e insustentáveis.

Além da dose de realismo que trazem, pesquisas como essa deve-riam servir para estimular a reorganização dos gastos sociais e tornar me-nos sombria a vida de grande parte dos brasileiros.

Editorial, Folha de São Paulo, São Paulo, 28 jun. 2010.

Veja este depoimento de Manuela Tomei, responsável pelo Relató-rio Global sobre Discriminação, da Organização Internacional do Traba-lho (OIT)

Manuela TomeiDEPOIMENTO de Manuela Tomei à Organização Internacional do

Trabalho – OIT (Genebra). O trabalho da OIT para alcançar a igualdade de gênero no trabalhoAs mulheres ingressaram no mercado de trabalho remunerado em

enorme quantidade desde o início da década de 1990 e tiveram ganhos im-portantes no local de trabalho. Todavia, em nenhuma parte a igualdade de gênero foi alcançada: em todos os lugares as mulheres ganham menos que os homens, mesmo quando elas são tão qualificadas ou até mesmo mais qualificadas do que eles; as mulheres estão sub-representadas nos empregos de alta remuneração e excessivamente representadas em trabalhos de baixa remuneração; as mulheres são as primeiras a serem demitidas e são mais prováveis no trabalho informal do que os homens. Essa brecha tem que ser fechada se se quer falar seriamente em justiça social, direitos humanos e efi-ciência, e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) está comprometida a alcançar essas metas. A eliminação da discriminação e a promoção da igual-dade de gênero no mundo do trabalho estão no coração do programa de tra-balho da OIT. A OIT promove e monitora a implementação de padrões de tra-balho relacionados à igualdade de gênero; fornece conselho técnico para os governos para assegurar que os sistemas estatísticos nacionais computem o

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trabalho que as mulheres fazem e que as reformas às leis traba-lhistas e aos sistemas de relações industriais não ampliem as

desigualdades de gênero; ajuda as organizações de trabalhadores e de empregadores a fazer suas estruturas mais equilibradas em termos de gê-nero e ajuda os sindicatos a alcançar os trabalhadores desorganizados, dos quais a maioria é de mulheres. A OIT reforçou seu trabalho para a igualdade de gênero, inclusive em suas próprias estruturas, em 1999, com a adoção do plano de ação do Diretor-Geral acerca da dominação de gênero. O plano de ação identifica os passos requeridos para assegurar que a OIT encaminhe a igualdade de gênero em todo o seu trabalho e seus programas. De outubro de 2001 a abril de 2002, a Organização levou a cabo a primeira Auditoria de Gênero no sistema da ONU, que revisou a implementação da política. O DRH colocou em movimento várias estratégias para assegurar um maior equilíbrio de sexos entre o pessoal, especialmente nos níveis mais altos. Houve um crescimento constante, embora lento, no número e na proporção de mulheres em todos os níveis e algumas medidas “tímidas” de reconciliação entre traba-lho/família foram adotadas. Há muito para ser feito, mas nós estamos indo

em frente, na direção certa.

4.4 Os significados do trabalho ao longo da história Tal como outros aspectos da sociedade, o trabalho e a vida

econômica estão mudando. Quem já não ouviu falar atualmente em “fim das carreiras”, em fusões empresariais e redução de trabalha-dores, em desenvolvimento tecnológico e flexibilização do merca-do? Como chegamos a essa realidade no começo do século XXI? A sociologia do trabalho, uma ramificação da Sociologia, preocupa- -se em entender como essas mudanças no trabalho afetam a vida privada dos indivíduos e das famílias. O sociólogo estadunidense Richard Sen-net (1943-) trata da questão de como a vida privada sofre consequências diretas com as novas configurações do mundo do trabalho, em seu livro A corrosão do caráter. Ele compara as carreiras de pais e filhos, para en-tender a transformação ocorrida na experiência de trabalho. Nos últimos 30 anos, o mundo do trabalho vem ganhando um novo desenho chamado de flexível, em que os trabalhadores devem se deslocar de uma empresa a outra, de uma cidade a outra ou mesmo de um país a outro com facilidade. O trabalhador de hoje, então tem de ser flexível. Mas por quê? Nas socie-dades tribais (de caçadores, agricultores e criadores) não se pode afirmar

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que exista um tempo exclusivo designado ao trabalho. As atividades vin-culadas à produção estão associadas a ritos e mitos, ao sistema de paren-tesco, às festas e à vida religiosa. O trabalho não tem um valor separado de todo o resto da vida social. Embora haja diferenças entre as sociedades tribais, é certo que todas elas, nos quatro cantos do mundo, possuem uma organização do trabalho dividida por sexo: homens e mulheres executam atividades diferentes. Aos nossos olhos, em relação à sociedade industrial moderna, as tribos e as comunidades vivem numa sociedade de privações, sem tecnologias nem “desenvolvimento”.

Leia o texto apresentando e reflita sobre o assunto.

Marshall Sahlins, antropólogo norte-americano, chama essas sociedades de ‘sociedades do lazer’, ou as primeiras ‘socieda-

des de abundância’, pois, ao analisá-las, percebeu que elas não só tinham todas as suas necessidades materiais e sociais plenamente satisfeitas, como também dispunham de um mínimo de horas diárias vinculadas a ati-vidades de produção (cerca de três ou quatro horas e nem sempre todos os dias). Os ianomâmis dedicavam pouco mais de três horas diárias às atividades produtivas, os guayakis, cerca de cinco horas, mas não todos os dias, e os kungs, do deserto de Kalahari, em média quatro horas por dia. O fato de se dedicar menos tempo às tarefas vinculadas à produção não significa, portanto, que se tenha uma vida de privações. Ao contrário, aquelas sociedades viviam muito bem alimentadas, e isso fica comprovado nos relatos mais diversos, que sempre demonstram a vitalidade de todos os seus mem-bros. É claro que tais relatos referem-se à experiência vivida antes do contato com o chamado ‘mundo civilizado’. A explicação para o fato de trabalharem muito menos que nós está no modo como se relacionam com a natureza – muito diferente do nosso. A terra é, além do lugar onde se vive, um valor cultural, pois é ela que dá aos homens os seus frutos; a floresta presenteia os caçadores com os animais de que necessitam para a sobrevivência. Não são os homens que produzem ou caçam, eles simplesmente recebem aquilo de que necessitam da “mãe natureza”. [...] O “mundo do trabalho” nas socie-dades tribais é, pois, algo que tem relação com todos os outros elementos de suas sociedades e com todo o meio ambiente em que vivem. Desse modo, nelas não se encontra a ideia de que se deve produzir mais para poupar ou

acumular alguma riqueza. A sua riqueza está na vida e na forma como

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passam os dias. As atividades vinculadas à produção limitam-se a conseguir os meios necessários à sobrevivência; mesmo assim são

quase sempre desenvolvidas em conjunto com outras atividades, formando um todo indissolúvel. O tempo é utilizado para descansar, divertir, dançar, caçar, pescar, plantar e colher e para o cumprimento das obrigações rituais, que, na maioria dos casos, envolve todas as outras atividades. Enfim, há um contínuo de atividades interligadas, que dificilmente podem ser explicadas e entendidas separadamente.

TOMAZI, Nelson Dacio. Trabalho e sociedade. In: TOMAZI, N.S. (coord.), Iniciação à Sociologia. São Paulo: Atual Editora, 2000, p. 36 e 37.

Essas características do trabalho em sociedades tribais assemelham-se, em alguma medida, ao trabalho na sociedade greco-romana da Anti-guidade. A organização desta sociedade era muito diferente das socieda-des de hoje, e, o trabalho e as relações de produção, portanto, também o eram.

Os gregos faziam distinção entre o trabalho braçal de quem traba-lhava na terra, o trabalho manual do artesão e o trabalho dos cidadãos que resolviam os problemas da sociedade.

Os gregos concebiam o trabalho de três maneiras distintas:

Labor: era o esforço físico, como o trabalho de quem cultiva a terra, que dependia das variações climáticas, das estações do ano, de forças que o ser humano não podia controlar.

Poiesis: a ênfase recaía sobre o fazer, o ato de fabricar, de criar um produto com as próprias mãos ou usando um instrumento. O produto desse trabalho subsistia à vida de quem o fabricava, como o trabalho do artesão.

Lembre-se de que

a Idade Média teve início na Europa com as invasões germânicas

(bárbaras), no século V, sobre o Império Romano do Ocidente. Essa época estendeu-se até o século XV, com a retomada comer-cial e o renascimento urbano. A Idade Média

caracterizou-se pela economia ruralizada, pelo enfraquecimento comercial, pela supremacia da Igreja Católica, pelo sistema de produção

feudal e pela sociedade hierarquizada.

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Práxis: era a atividade que tinha a palavra como principal instrumen-to, que utilizava o discurso como meio para encontrar soluções voltadas para o bem-estar dos cidadãos. Era o espaço da política, da vida pública.

Mas é preciso ressaltar que, nessas sociedades antigas, existia a fi-gura do escravo. Apesar de os escravos não serem os únicos trabalhadores braçais, a escravidão é uma forte característica da sociedade greco-roma-na, uma vez que todos os trabalhadores, de uma forma ou de outra, viviam sob a opressão de senhores e de proprietários. Na sociedade feudal, houve uma transformação nas relações de trabalho. Com o fim do Império Ro-mano do Ocidente, várias formas de organização social e política surgi-ram na Europa. Apesar de o sistema feudal sofrer diferenças de acordo com cada região, algumas características são comuns. Você se lembra de quais são elas? Vamos relembrar.

• A terra era o principal meio de produção, uma vez que a eco-nomia era fundamentalmente agrícola. A terra pertencia aos senhores feudais devidamente hierarquizados.

• Os trabalhadores tinham o direito ao usufruto e à ocupação das terras, mas nunca à propriedade delas. Os senhores tinham o di-reito de arrecadar tributos sobre os produtos ou sobre a própria terra.

• Na combinação dessas relações, detectava-se uma rede de vín-culos pessoais de direitos e deveres entre senhores e servos. Os servos não eram escravos, pois eram livres, mas viviam em regime de total servidão.

Nas sociedades feudais, os servos, além de trabalharem em suas terras, eram obrigados a trabalhar nas terras do senhor, bem como na construção e manutenção de estradas e pontes. Eram servos as pessoas que efetivamente trabalhavam nessas sociedades. Os senhores feudais e o clero viviam do trabalho dos outros, como ocorria nas sociedades greco-romanas.

Embora, nas sociedades feudais, o trabalho agrícola fosse predo-minante, havia outra forma de trabalho que era o trabalho do artesão. Os artesãos se organizavam em associações denominadas “Corporações de Ofício”. Você deve ter aprendido isso nas aulas de História do Ensino Médio, não é?

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Hoje em dia, terras, fábricas, usinas, minas, rodovias, bar-cos e maquinaria de todo tipo são necessários à produção das mercado-

rias que utilizamos – assim chamamos um homem de rico pelos bens desse tipo que possui. Mas, no período feudal, a terra produzia praticamente todas as mercadorias de que se necessitava e, assim, a terra, e apenas a terra, era a chave da fortuna de um homem. A medida da riqueza era determinada por um único fator – a quantidade de terra.[...] A Igreja era a maior proprietária de terras no período feudal. Homens preocupados com a espécie de vida que tinham levado, desejosos de passar para o lado direito de Deus antes de morrer, doavam terras à Igreja; outras pessoas, achando que a Igreja realiza-va uma grande obra de assistência aos doentes e aos pobres, e, desejando ajudá-la nessa tarefa, davam-lhe terras; alguns nobres e reis criaram o hábito de, sempre que venciam uma guerra e se apoderavam das terras do inimigo, doar parte delas à Igreja; por esse e por outros meios, a Igreja aumentava suas terras, até que se tornou proprietária de entre um terço e metade de todas as terras da Europa ocidental.

HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, p.10-13.

O trabalho, na sociedade feudal, era desqualificado, uma verdadeira maldição que deveria existir apenas em uma quantidade suficiente para a sobrevivência, pois apenas a meditação e a contemplação (ócio) consti-tuíam o caminho para alcançar Deus, a salvação. Esse direito ao ócio dos senhores feudais e do clero, que se manteve por séculos, gerou muitos conflitos e também caracterizou as sociedades greco-romanas.

Toda a riqueza da Igreja e de nobres na Idade Média era o que hoje chamaríamos de capital inativo, improdutivo. Na época, o dinheiro não existia como hoje; usava-se sal ou ferro, que eram trocados por alguma outra coisa de que se havia necessidade. Não se tratava de uma sociedade capitalista, tal como conhecemos hoje. Um casaco de lã podia ser pago com cinco galões de vinho. Assim se dava o intercâmbio de mercadorias.

Mas o comércio foi aumentando e se tornando mais com-plexo nos séculos XI e XII, muito por causa das Cruzadas. Nes-se tempo, os meios de transporte ainda não eram desenvolvi-dos como hoje, o que dificultava o comércio entre países. O

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comércio na Itália, França, Inglaterra e Alemanha, no século XV, dava-se em feiras periódicas. Aos poucos, o comércio foi se desenvolven-do e ampliando-se e, com a chegada do dinheiro nas trocas comerciais (no século XV), a antiga economia natural começou a ser abalada.

Com o fim do feudalismo, nasceu uma economia monetária que acrescentava juros e lucros às negociações comerciais, o capitalismo. Aos poucos, foram desaparecendo as antigas formas de comércio e trocas, e começou a se desenvolver uma nova fase da economia e das relações pes-soais. As relações de produção e o trabalho também mudaram.

Com o progresso das cidades e o uso do dinheiro, os burgueses co-meçaram a substituir os senhores feudais. Inaugurava-se uma nova fase da organização social a partir das primeiras formas de indústrias (ou corpo-rações), já no século XV. As mercadorias, que antes eram feitas não para serem vendidas comercialmente, mas apenas para atenderem às necessi-dades da casa, passaram a ser vendidas no mercado externo. Com isso, o preço justo passou a ser substituído pelo preço do mercado.

No capitalismo, que começou a nascer no século XV e desenvolve-se até os dias de hoje, o trabalho ganha novas características e novos sig-nificados. O que define uma sociedade como capitalista é a propriedade privada, o trabalho assalariado, o sistema de troca mediada pelo dinheiro e a divisão social do trabalho.

Pode-se afirmar que o trabalho se transforma em força de trabalho quando se torna uma mercadoria que pode ser comprada e vendida. O tra-balhador, nesse sistema, não é dono dos meios de produção, mas apenas de sua força de trabalho. O trabalhador assalariado é aquele que foi, histo-ricamente, desprovido da posse das terras e das indústrias e que troca por salário o “aluguel” de sua força de trabalho.

Os primeiros comerciantes e os donos de indústrias – os bur-gueses – que conseguiram acumular riquezas começaram a investir dinheiro na organização da produção de mercadorias. No início, os artesãos ainda podiam produzir em suas próprias casas e vender os bens aos burgueses. Tratava-se de uma forma de cooperação simples. O artesão ainda detinha o controle de todas as etapas da produção de um sapato, por exemplo, desde a captação da matéria-prima até o pro-duto final. Mas, quem lhe financiava equipamentos e matéria-prima era outra pessoa. Esse tipo de articulação da força de trabalho abriu caminho para novas formas de produção, que começavam a se definir como trabalho coletivo.

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A segunda forma de organizar a força de trabalho foi chamada de manufatura ou cooperação avançada. Na manufatura, o trabalho artesa-nal continua sendo a base, só que ele é reorganizado e decomposto por meio da fragmentação das tarefas. Por exemplo, no caso da produção de sapatos, os artesãos reunidos fazem cada um uma tarefa diferente, ou seja, cada parte do sapato é feita por um artesão diferente. Ao fi nal, um par de sapatos é feito por vários artesãos. O artesão torna-se um trabalhador que não mais detém o entendimento da totalidade do processo de trabalho. Ele trabalha para alguém que coordena suas atividades e lhe diz quais etapas da produção ele deve desenvolver. Isso é o que se denomina trabalho co-letivo: cada um faz uma parte e, no fi nal, obtém-se a mercadoria pronta.

Veja o esquema:

Trabalhador 3Etapa 3

Trabalhador 4Etapa 4

Trabalhador 1Etapa 1

Trabalhador 2Etapa 2

Trabalho coletivo

Outros

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As mudanças nas formas de produzir, ao longo do tempo, trouxeram mudanças nas formas de se compreender o trabalho. Veremos a seguir al-guns conceitos e sentidos do trabalho.

4.5 O que é trabalho? Hoje, para a maioria das pessoas, o trabalho é a atividade que mais

tempo ocupa nas suas vidas. Normalmente, o trabalho é associado a algo ruim, uma obrigação penosa da qual queremos nos livrar. No entanto, o trabalho traz um paradoxo importante de ser analisado. Ele é fonte tanto de sofrimento quanto de alegria. Com o trabalho, há obrigações, desa-venças, sensação de alienação e de exploração, mas, sem o trabalho, há depressão, tristeza, tédio. Em que consiste esse fenômeno social tão cheio de contradições?

Trabalho está intimamente ligado à construção da nossa identidade pessoal e social. Se não fos se assim, não escutaríamos frases do tipo “o trabalho enobrece o homem” ou “Deus ajuda a quem cedo madruga”.

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Mesmo quando ele é desagradável e as tarefas são monótonas, o trabalho tende a ser a estrutura da constituição psicológica das pessoas.

O sociólogo Anthony Giddens elenca as características do trabalho na nossa sociedade. Vejamos.

• Dinheiro: o salário é a principal fonte de renda da maioria das pes-soas. Sem salário, aumentam as angústias e as ansiedades.• Nível de atividade: o trabalho fornece uma base para a aquisição e o exercício de certas capacidades.• Variedade: o trabalho possibilita o acesso a contextos que contras-tam com os ambientes domésticos, possibilitando a diversificação das atividades.• Estrutura temporal: para os indivíduos com emprego fixo, o dia encontra-se organizado em função do ritmo do trabalho. Os desem-pregados desenvolvem uma espécie de apatia em relação ao tempo.• Contatos sociais: o ambiente de trabalho possibilita a criação de laços de amizade e a oportunidade de partilhar atividades com os outros.• Identidade pessoal: o trabalho é habitualmente valorizado pelo senti-do de identidade social estável que oferece. (Cf. GIDDENS, Anthony. Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p.377.)

Vejamos agora algumas conceituações de trabalho.Como trabalho, podemos caracterizar uma atividade realizada por seres vivos (não só a espécie humana), que modifica a natureza de modo a transformá-la para melhor satisfazer as necessidades. Assim, na raiz da caracterização do que é trabalho, está a sua con-dição de uma atividade desenvolvida pela espécie humana para modificar a natureza e adaptá-la para a satisfação de suas neces-sidades.[...] O que caracteriza o trabalho dos animais é o instinto. Um pássaro que tece seu ninho o faz de forma instintiva; em ne-nhum momento ele questiona o aspecto desse trabalho nem o mo-difica, repetindo-o geração após geração, pois é parte característica da sua espécie. Já o trabalho humano é consciente e proposital. O homem, ao trabalhar, executa uma atividade que previamente havia planejado em sua mente e, ao desenvolvê-la materialmente, pode modificá-la a seu modo. (DIAS, Reinaldo. Introdução à Sociologia. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2005, p.261.)

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Ou, ainda, nas palavras de Albanoz:Na linguagem cotidiana, a palavra trabalho tem muitos signifi-cados. Embora pareça compreensível, como uma das formas ele-mentares de ação dos homens, o seu conteúdo oscila. Às vezes, carregada de emoção, lembra dor, tortura, suor do rosto, fadiga. Noutras, mais que aflição e fardo, designa a operação humana de transformação da matéria natural em objeto de cultura. É o ho-mem em ação para sobreviver e realizar-se, criando instrumentos e, com esses, todo um novo universo, cujas vinculações com a natureza, embora inegáveis, tornam-se opacas.[...] Em portu-guês, apesar de haver labor e trabalho, é possível achar na mes-ma palavra trabalho ambas as significações: a de realizar uma obra que te expresse, que dê reconhecimento social e permaneça além da tua vida; e a de esforço rotineiro e repetitivo, sem li-berdade, de resultado consumível e incômodo inevitável. No dicionário, aparece em primeiro lugar o significado de aplicação das forças e faculdades humanas para alcançar determinado fim; atividade coordenada de caráter físico ou intelectual, necessária a qualquer tarefa, serviço ou empreendimento; exercício dessa atividade como ocupação permanente, ofício, profissão. [...] em nossa língua, a palavra trabalho se origina do latim tripalium, embora outras hipóteses a associem a trabaculum. Tripalium era um instrumento feito de três paus aguçados, algumas vezes ainda munidos de pontas de ferro, no qual os agricultores bateriam o trigo, as espigas de milho, o linho, para rasgá-los e esfiapá-los. A maioria dos dicionários, contudo, registra tripa-lium apenas como instrumento de tortura, o que teria sido originalmente ou se tornado depois”. (ALBORNOZ, Suzana. O que é trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.8-10.)

Segundo Karl Marx, o trabalho é:[...] um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impul-siona, regula e controla seu intercâmbio material com a natu-reza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando

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assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. (MARX, Karl. O Capital. Livro A, v. I. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p.202.)

Nesse sentido, o que diferencia o trabalho humano do trabalho ani-mal? Para Marx, o homem imprime no produto do seu trabalho o projeto que ele tinha em mente, ou seja, ele consegue ima ginar o sapato pronto antes mesmo de começar a fazê-lo. Veja a metáfora utilizada por Marx para explicar isso:

[...] a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele fi-gura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho, aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. (MARX, Karl. O Capital. Livro A, v. I. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 202.)

Na sociedade capitalista, o trabalho ganha um sentido particular porque é visto como criador de riqueza. Com o protestantismo (analisado por Max Weber, em A ética protestante e o espírito do capitalismo), o tra-balho passou a ser visto como uma virtude, e quem trabalha arduamente e tem êxito na vida material tem a benção divina. A reforma protestante trouxe uma nova concepção de trabalho e serviu muito bem à burguesia comercial e industrial que nascia. A riqueza gerada pelo trabalho não de-veria ser usada com ostentação e a poupança era estimulada, gerando uma ética da acumulação propícia ao capitalismo.

Sob a lógica do capitalismo, nasceu a fábrica, o lugar que reúne todos os trabalhadores para produzirem mercadorias usando máquinas. A mecanização revolucionou o modo de produzir mer cadorias não só por-que incorporou as habilidades dos trabalhadores, mas porque os subordi-nou às máquinas.

O trabalhador muda de perfil: ele não precisa mais saber fazer o sa-pato todo, nem precisa saber como captar matéria-prima. Ele vai perdendo o controle da criação e da confecção dos produtos. Na fábrica, o modelo do sapato a fazer vem pronto e chega com a matéria-prima. Com as má-quinas e a divisão do trabalho, cada trabalhador faz uma pequena parte do sapato. A qualificação do trabalha dor da fábrica se dá pela sua capacidade de operar as máquinas.

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O surgimento das fábricas mecanizadas trouxe a ideia de que a utopia da produção ilimitada teria chegado. Com as máquinas, o homem poderia produzir tudo? Teria chegada a época da abun dância e da posi-tividade do trabalho? Seria a fábrica me-canizada a forma de superar as barreiras da própria condição humana? A fábrica foi reduzida a um acontecimento tecnológico. So-bre isso, o historiador brasileiro Ed gar Salvadori de Decca afirmou:

Contudo, os ecos das resistências dos homens pobres a se sub-meterem aos rígidos padrões do trabalho organizado são audí-veis desde o século XVII e assinalam a presença da fábrica a partir de um marco distinto daquele definido pelos pensadores do século XIX. Aqueles primeiros homens, que se viram cons-trangidos pela pregação moral do tempo útil e do trabalho edi-ficante, sentiram em todos os momentos de sua vida cotidiana o poder destrutivo desse novo princípio normativo da sociedade. Sentiram na própria pele a transformação radical do conceito de trabalho, uma vez que essa nova positividade exigiu do homem pobre a sua submissão completa ao mando do patrão. Introjetar um relógio moral no coração de cada trabalhador foi a primeira vitória da sociedade burguesa, e a fábrica apareceu desde logo como uma realidade estarrecedora onde esse tempo útil encon-trou o seu ambiente natural, sem que qualquer modificação tec-nológica tivesse sido necessária. Foi através da porta da fábrica que o homem pobre, a partir do século XVIII, foi introduzido ao mundo burguês. (DECCA, Edgar S. O nascimento das fábricas. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.9 e10).

O que o historiador quer dizer com essa passagem de seu livro?Ele quer chamar a atenção para o fato de que a fábrica não é marcada

apenas pela introdução da máquina, assim como a Revolução Industrial não deve ser caracterizada apenas pela chegada da máquina a vapor. Há, com a organização do trabalho nas fábricas, uma complexa rede de fatores ligados ao uso do tempo e ao controle desse tempo pelos capitalistas, donos

Conexão:

Assista ao filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin. Nele, é interessante perceber o

processo de implantação do trabalho fabril, a dificuldade de adequação dos

sujeitos a uma nova forma de viver dentro do universo da fábrica, com

outro ritmo e outras exigências.

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das indústrias. O tra balho na fábrica exigiu que o artesão se transformas-se em operário, o que implicou a perda de seu savoir-faire (saber-fazer). O historiador Edgar de Decca afirma que a fábrica, com sua forma de organização da produção, roubou o saber dos artesãos e introjetou neles a noção do tempo útil para a produção. O ritmo de vida passou a ser o ritmo do trabalho e da máquina. A fábrica chegou para firmar o princípio de que tempo é dinheiro, portanto não se pode perder tempo.

Os intelectuais mais críticos que refletem sobre o trabalho na fábrica e a industrialização acen tuam o fato de o trabalhador sofrer mecanismos sutis de controle social. Veremos isso mais para a frente. Agora, vamos voltar nosso olhar para as relações entre trabalho e capital.

Aparentemente, o que vemos entre capitalistas e trabalhadores é uma relação entre iguais, entre vendedores e compradores de mercado-rias (o trabalho aí compreendido como mercadoria). Mas, na realidade, o interior das fábricas esconde algumas surpresas. Lembra-se da mais-valia estudada no capítulo 1? Vamos, então, examinar mais de perto a questão da jornada de trabalho.

4.6 A jornada de trabalho Segundo Karl Marx, a relação entre capital

e trabalho é uma relação de conflito, porque os interesses entre eles são opostos. Já falamos disso anteriormente quando abordamos a teoria da luta de classes, lembra-se?

Os capitalistas querem mais lucros e aumentam as horas de trabalho dos seus tra-balhadores (o que é denominado “mais-valia absoluta”) ou, ainda, para produzir mais, os donos das empresas investem em tecnologia (o que é denominado “mais-valia relativa”), ou seja, há aumento de produção e aumento de lucro para os capitalistas sem, no entanto, os trabalhadores ganharem mais.

Falar de produção e de lucro na sociedade capitalista implica falar de jornada de trabalho. Este é, aliás, um tema muito recente, pois há dis-cussão mundial sobre a necessidade de redução da jornada de trabalho para se diminuírem as taxas de desemprego. Você já ouviu falar disso?

Jornada de trabalho é o período de tempo em que o trabalhador deve prestar serviços ou permanecer à disposição do empregador. Segundo a

Conexão:

Se quiser saber mais sobre esse tema, leia o livro

do sociólogo Sadi Dal Rosso, A jornada de trabalho na sociedade: o castigo de Prometeu. São Paulo:

LTR.

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Constituição Brasileira, este período pode ser de, no máximo, 8 horas di-árias ou 44 horas semanais, salvo limite diferenciado em acordo coletivo ou convenção coletiva de trabalho.

O valor da força de trabalho, como o de qualquer outra mercadoria, é determinado pelo tempo necessário para produzi-la. Uma jornada de trabalho é determinada pelo tempo de trabalho necessário à reprodução da força de trabalho do próprio trabalhador (trabalho necessário). Mas, como vimos anteriormente, também está incluído na jornada o tempo de trabalho gasto para a produção da mais-valia (trabalho excedente). Assim, pode-se dizer que a jornada de trabalho é flutuante.

Veja no quadro a seguir o que afirmou Marx sobre esse assunto.

[...] no modo de produção capitalista, o trabalho necessário só pode constituir uma parte da jornada de trabalho, e a jornada de traba-

lho, portanto, nunca pode reduzir-se a esse mínimo. Não pode ser prolonga-da além de certo ponto. Esse limite máximo é determinado duplamente. Há, primeiro, o limite físico da força do trabalho. Durante o dia natural de 24 horas, só pode um homem despender determinada quantidade de força de trabalho. Do mesmo modo, um cavalo só pode trabalhar todos os dias dentro de um limite de 8 horas. Durante uma parte do dia, o trabalhador deve descansar, dormir, durante a outra, tem de satisfazer necessidades físicas, alimentar-se, lavar-se, vestir-se etc.; além de encontrar esse limite puramente físico, o pro-longamento da jornada de trabalho esbarra em fronteiras morais. O trabalha-dor precisa de tempo para satisfazer necessidades espirituais e sociais cujo número e extensão são determinados pelo nível geral de civilização. Por isso, as variações da jornada de trabalho ocorrem dentro desses limites físicos e sociais. Esses limites são de natureza muito elástica, com ampla margem de variação. Encontramos jornadas de trabalho de 8, 10, 12, 14, 16, 18 horas, da mais variada duração.

MARX, Karl. O capital. Livro I, v. I. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 262.

Na sua principal obra, O Capital, Marx dedica um grande capítulo à questão da jornada de trabalho, relacionando-a à extração da mais-valia. Essa discussão é fundamental para o entendimento do sentido das lutas pela redução da jornada de trabalho. Para Marx, a necessidade da redução da jornada de trabalho nasce da consciência dos trabalhadores de que o

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capitalista retira a mais-valia absoluta da extensão de seu trabalho por meio do trabalho excedente.

Marx fez essa análise no século XIX. De lá pra cá, o que você acha que mudou?

Na mesma linha de pensamento de Marx, o sociólogo brasileiro Ricardo Antunes expõe sete teses sobre a redução da jornada de trabalho.

Vejamos:I. A redução da jornada ou do tempo semanal de trabalho sem redução de salário tem sido uma das mais importantes reivindica-ções atuais, uma vez que se constitui num mecanismo de contra-posição à extração da mais-valia.II. Nos dias atuais, esta formulação ganha ainda mais importân-cia, pois se mostra como um mecanismo (ainda que limitado) para tentar minimizar o desemprego estrutural que atinge um conjunto enorme de trabalhadores. Lutar pela redução da jornada implica lutar pelo controle e pela redução do tempo opressivo de trabalho.III. Uma vida cheia de sentido fora do trabalho supõe uma vida dotada de sentido dentro do trabalho. Não é possível compatibi-lizar trabalho assalariado alienado com o tempo verdadeiramente livre.IV. Uma vida cheia de sentido em todas as esferas do ser social somente poderá efetivar-se por meio da demolição das barreiras existentes entre tempo de trabalho e tempo de não trabalho. Se-riam criadas novas formas de sociabilidade, em que liberdade e necessidade pudessem se completar mutuamente.V. A luta pela redução da jornada ou tempo de trabalho deve estar no centro das ações do mundo do trabalho hoje, em escala mun-dial. Ao lema “trabalhar menos para todos trabalharem”, devem-se adicionar as perguntas: produzir o que e produzir para quem?VI. Tanto nos países do Terceiro Mundo quanto nos países do chamado Primeiro Mundo, o desemprego e as formas precari-zadas de trabalho têm sido cada vez mais intensos. Portanto, o direito ao emprego articulado com a redução da jornada de tra-balho torna-se uma reivindicação capaz de responder às efetivas demandas presentes no cotidiano da classe trabalhadora.

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VII. A luta pelo direito ao trabalho em tempo reduzido e pela ampliação do tempo livre, sem redução de salário, deve estar intimamente articulada à luta contra o consumismo e à ideologia de que o indivíduo deve capacitar-se para melhor competir no mercado de trabalho.

Segundo o filósofo André Gorz, a redução da jornada de trabalho tem de ser vista, sobretudo pela esquerda, como uma meta de transforma-ção, visando a oferecer mais tempo disponível às pessoas. Para ele, a re-dução da jornada e do tempo de trabalho é a fórmula imprescindível para a qualidade de vida das pessoas, além de equilibrar o nível de emprego.

[...] A liberação do tempo só merece seu nome se oferecer a escolha entre larga gama de modalidades: redução da duração do trabalho diário, semanal, mensal (como em Quebec) ou anual; direito ao ano sabático ou, como no Canadá, a 1 ano de férias a cada 5 anos; direito a uma extensa licença paternal de educação (36 meses na ex-Tchecoslováquia e de 12 a 15 meses na Suécia), com permanência de 70 % a 90 % do último salário, e a possibilidade, para os pais, de dividir e distribuir esta licença a seu critério; generalização do direito à licença individual de formação que, na França, permite atualmente 24 meses de estudos pagos pelo equivalente a 70% do último salário; direito a licenças pagas para cuidar de um parente ou de um filho doente (fórmula sueca) etc. (GORZ, André. Bâtir la civilisation du temps libre. In: Le Monde Diplomatique, 1993.)

A discussão sobre redução de jornada de trabalho vinculada ao desemprego envolve o debate sobre a diminuição de empregos no setor industrial e o aumento de empregos no setor de serviços. No entanto, conforme o economista e psicólogo social francês Guy Aznar, defensor assumido da redistribuição do trabalho por meio da redução do tempo de trabalho, acreditar na capacidade do setor de serviços de assimilar os desempregados dos outros setores é negar o fato de que há uma inevitável redução do emprego em todos os setores.

Ele afirma que o pleno emprego não voltará e que é preciso reinven-tar o trabalho, aprendendo a tirar proveito das tecnologias. Aznar argu-menta que é preciso acabar com o medo e os tabus existentes em torno da redução da jornada de trabalho, lembrando que, no século XIX, a redução da jornada de 15 para 10 horas parecia absurda.

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4.7 Desemprego e precarização do trabalho O mundo do trabalho não se manifesta apenas pelos empregos

formais, de carteira assinada, com altos salários e com boas condições de trabalho. Infelizmente, a realidade no Brasil e no mundo é mais comple-xa. Vejamos algumas informações para nos ajudar a refletir sobre isso e, quem sabe, a procurar caminhos possíveis para apaziguar os problemas.

Podemos pensar que o Ocidente, paradoxalmente, constrói uma ci-vilização ao mesmo tempo em que destrói a si próprio, na medida em que inventa o progresso e o desenvolvimento, de um lado, enquanto cria o de-clínio e o caos, de outro lado. Um dos pontos a serem observados dentro dessa tese é a crise do mundo do trabalho, que ganha contornos decisivos a partir dos anos 1970.

O emprego fixo e permanente é colocado em xeque pelo trabalho in-formal; surgem novos modelos de organização do trabalho que pretendem ser alternativas ao padrão taylorista-fordista de produção; a intensidade dos fluxos e a variedade dos produtos ganham força no processo de inter-dependência internacional; as políticas neoliberais privatizam o público e o trabalho precário que era “atípico” começa a se tornar “típico”.

O mundo do trabalho vem sendo redesenhado, em nome do avanço da economia global, pela presença cada vez mais dominante das mulheres no mercado de trabalho, acompanhada da precariedade marcada pela fle-xibilização, pelo fim da segurança e pela vulnerabilidade. O discurso em-presarial sustenta que a globalização (necessária e inevitável) deve ser um laissez-faire sem leis, quase sem limites. Assim, eles propõem substituir o uso da expressão “trabalho precário” por “novas formas de emprego”, ale-gando que a flexibilidade pode ser positiva e que, portanto, não tem nada a ver com precariedade. Na verdade, constrói-se uma justificativa social (e científica) do trabalho precário como algo necessário e inerente ao curso do progresso, que não pode parar.

Será mesmo assim? Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), nos

últimos dez anos houve, no mundo, uma elevação no estoque de desempre-gados de cerca de 35 milhões de pessoas. Além disso, há, no mundo, cerca de 12,3 milhões de pessoas sofrendo com trabalho forçado (exploração eco-nômica, trabalho forçado imposto por Estado ou por militares e exploração sexual comercial), 190,7 milhões de crianças trabalhando (entre 5 e 14 anos de idade) e cerca de 88,2 milhões de jovens desempregados.

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Na América Latina, a situação se agrava, visto que, dos 550 milhões de habitantes, pelo menos 213 milhões são pobres. São 23 milhões de pes-soas em condição de desemprego aberto, enquanto aproximadamente 103 milhões trabalham na informalidade, conforme estudo da OIT.

Inerente: inseparável

No Brasil, os efeitos dessas “novas formas de emprego” – ou do que também se chama de “novo espírito do capita-lismo” – são dramáticos para os trabalhadores, tanto para aqueles que foram varridos de seus postos quanto para aqueles que ainda os preservam a duras penas. Quem fica sem emprego e engrossa as fileiras do desempre-go estrutural não conta com nenhum tipo de proteção social, não encontra mais trabalho e perde muito do ponto de vista econômico, so-cial e psíquico. Quem continua no emprego sofre as consequências da intensificação e da insegurança.

Hoje, no Brasil, de cada dez trabalhadores, quatro trabalham acima de 44 horas semanais.

Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), no mundo todo, cerca de 270 milhões de trabalhadores acidentam-se por ano e cerca de 160 milhões adquirem alguma doença ocupacional.

Todos os dias, no mundo, morrem 5 mil trabalhadores por acidente ou doença do trabalho, sendo que morrem 22 mil crianças por ano por causa do trabalho.

No Brasil, segundo dados da Fundacentro (Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Medicina e Segurança do Trabalho), um trabalhador morre a cada 2 horas de trabalho e 3 se acidentam a cada minuto trabalhado. Isso revela, além de uma dramática realidade, que o Estado (por meio do SUS – Sistema Único de Saúde) gasta com a Previdência Social cerca de R$ 32,8 bilhões por ano com benefícios de incapacidade pelo trabalho. Há uma guerra invisível no mundo do trabalho que mata e mutila diariamen-te. Além disso, essa guerra desemprega, retirando de milhares de pessoas o que elas têm de central nas suas vidas: o trabalho.

O Brasil é, hoje, o terceiro país do mundo em número de desem-pregados. Com 7,7 milhões de pessoas sem trabalho em 1999, segundo

Conexão:

Acesse o site da Organização Internacional do

Trabalho – OIT – para conhecer mais pesquisas sobre a situação do trabalho no Brasil e no mundo.

Disponível em: <www.oitbrasil.org.br>.

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o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Brasil só fica atrás da Índia, com quase 40 milhões de desocupados, e da Rússia, com 9,1 milhões.

Segundo um levantamento realizado em 141 países pelo economista Márcio Pochmann (professor na Unicamp), no início dos anos 1990, o país ainda ocupava a oitava posição no ranking mundial do desempre-go. Em 1995, subiu para quinto e, em 1998, já estava em terceiro lugar. Nos últimos 24 anos, o desemprego no mundo aumentou de 2,3% da População Economicamente Ativa (PEA) para 5,5%. Nos países desen-volvidos, as taxas cresceram em média 53%, enquanto nas outras nações o aumento chegou a 200%. Nesse período, o índice no Brasil cresceu 369,4%, passando de 1,73% da PEA, em 1975, para 9,85%, em 1999.

Nos 141 países estudados por Pochmann, o volume global de de-semprego aberto em 1999 foi de 138 milhões de pessoas. Desse total, 61% estavam em apenas oito países. Ele destaca que os países ricos, donos de novas tecnologias, têm diminuído sua presença nesse ranking. Em 2005, apenas três países ricos (Estados Unidos, Alemanha e Japão) estavam na lista dos oito principais responsáveis pelo desemprego no mundo. Paralelamente, o desemprego de longo prazo – pessoas com mais de um ano nessa situação – atinge 42% dos desempregados na Eu-ropa, contra 13% nos Estados Unidos. No entanto, os Estados Unidos possuem o maior número de empregos com baixos salários, uma ele-vada rotatividade no emprego e a maior taxa de pobreza entre os países desenvolvidos.

Vale ainda mencionar que boa parte da legião de trabalhadores desempregados no Brasil é formada por negros de baixa escolaridade e renda e por mulheres. A taxa de desemprego entre os negros chegou a 10,7%, contra 8,3% entre os brancos, segundo dados do desemprego de 2001. Enquanto 40,5% das pessoas de cor branca ocupadas são assala-riadas com carteira assinada, apenas 29,9% do total de negros ocupados estão nessa situação. Dos assalariados sem carteira, os negros represen-tam 21,4% e os brancos, 15,9%.

A situação piora à medida que o trabalho exige menos qualifi-cação. Do total dos não brancos ocupados, 9,6% desempenham servi-ços domésticos, contra 6,3% entre brancos. De cada 10 trabalhadores domésticos, seis são negros. Os negros brasileiros representam 46%

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da população e, desse contingente, 61% são pobres, 36% pertencem à classe média, enquanto apenas 17% são ricos. Já as mulheres negras são duplamente discriminadas. A taxa de desemprego entre elas é de 13,9%, contra 8,4% das brancas. Elas são discriminadas pela raça e pelo sexo, mesmo entre os homens negros e as mulheres brancas.

O desemprego vem acompanhado de uma série de outros proble-mas sociais, principalmente nos países mais pobres.

Segundo pesquisa realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Ge-ografia e Estatística, 2004), mais de 72 milhões de brasileiros (40% da população do país) estão em situação de insegurança alimentar, ou seja, não têm garantia de acesso à comida em quantidade, qualidade e regula-ridade suficiente. Cerca de 14 milhões de pessoas passam fome em nosso país.

De acordo com esse estudo, que utiliza os dados da Pesquisa Nacio-nal Domiciliar (PNAD), crianças, negros e moradores das regiões Norte e Nordeste do país são os grupos que mais sofrem com restrições na ali-mentação. A gravidade do problema se expressa tanto pelo grande número de pessoas que convivem com a fome quanto pelo número ainda maior de pessoas, quase 40% da população, que não sabem se terão dinheiro para repor a comida que têm.

Para as mulheres, em geral, a situação é mais grave. O Instituto Observatório Social revela que, de 37 milhões de mulheres inseridas no mercado de trabalho no país, 12,7 milhões (34,4%) encontram-se em con-dição de extrema precariedade, trabalhando na informalidade ou vincula-das a atividades com baixa ou nenhuma remuneração. Elas estão por toda a parte: nas casas de famílias, na agricultura, nas bancas de calçados, nas oficinas de costura ou nas ruas das grandes cidades.

Outro fator a ser considerado no que tange à precariedade do mundo do trabalho hoje é a baixa remuneração: 520 milhões de pessoas no mun-do recebem uma renda inferior a US$ 1,00 por dia. Nas grandes cidades dos países periféricos, metade dos empregos urbanos é preenchida por trabalhadores autônomos.

Diante dessas informações sobre a precarização do mundo do traba-lho, você acha que os executivos, gerentes, diretores e administradores de empresas estão imunes?

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Fraudes em companhias norte-americanas, credibilidade de empresas de auditoria colocada em dúvida, crises na América Latina,

disparada do dólar, alta do risco-Brasil. Nesse cenário tão adverso, não são apenas os funcionários com menores salários que temem o desemprego. Os executivos estão cada vez mais sob pressão. Segundo pesquisa com 2.500 empresas feita pela consultoria Booz Allen Hamilton, a rotatividade dos CEOs (Chief Executive Officers, os principais dirigentes) aumentou 53% na Europa e nos Estados Unidos, entre 1995 e 2001 (portanto, sem ainda levar em conta toda a crise deste ano). No Brasil, a situação não é diferente. Consultores especializados em recrutamento de executivos afirmam que os profissionais brasileiros também são cada vez mais pressionados a atingir metas, espe-cialmente em momentos como o atual, em que a conjuntura econômica não é nada favorável. Pesquisa do Grupo Catho com 9.174 executivos mostra que, em 1997, um presidente permanecia na mesma companhia, em média, sete anos e meio. Em 2001, essa média caiu para quatro anos e meio. “Isso é uma prova de que a rotatividade vem aumentando também aqui”, analisa Thomas Case, presidente do grupo.“Hoje o executivo tem de provar a capacidade de gerar lucros em espaço de tempo cada vez mais curto. Quem não consegue atingir metas é substituído”, comenta Marcelo Vasconcelos, consultor sênior da Michael Page. ”Vivo sob a ameaça da rotatividade há 15 anos, quando entrei para o mundo corporativo. E, sem dúvida, ela vem aumentando. Mas, no fim, acabei aprendendo a lidar com isso e com todas as cobranças”, conta J. S. (ele não quer ser identificado), executivo que hoje trabalha em um ban-co e que já atuou nove anos em auditoria. Na avaliação de Denys Monteiro, vice-presidente-executivo da consultoria Fesa (Financial Executive Search Associates), até a década de 1990, as companhias precisavam recorrer aos bancos para captar dinheiro. Mas, com a facilidade de ir ao mercado vender ações, as empresas puderam crescer sem a intervenção de bancos. “Assim, as pressões de acionistas e do conselho das companhias sobre os executivos ficaram maiores.” E a cobrança é exercida também pelos funcionários, diz o executivo de uma companhia de telefonia que não quis se identificar. “A tomada de decisões muitas vezes contraria a vontade dos empregados, e você corre o risco de desanimá-los e sair desmoralizado.” Ele chegou a pedir demissão da empresa onde atuou por mais de dez anos e cogitou abandonar

de vez o mundo corporativo, tamanho era seu estresse. “Mas, depois de

Veja matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo em 29/7/2002:

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umas férias, recebi uma boa proposta e não resisti.” A expectati-va frustrada dos acionistas com relação às performances dos executivos

não é a única explicação para a rotatividade. Aquisições e fusões (como a compra da Compaq pela Hewlett-Packard e da Pharmacia pela Pfizer e a incorporação, no Brasil, da auditoria Arthur Andersen pela Deloitte Touche To-hmatsu) também acentuam a instabilidade. “Essas mudanças geram cargos redundantes e exigem que a empresa reestruture seus níveis hierárquicos”,

diz o consultor Marcelo Mariaca.

Atividades

01. Como você definiria trabalho nas sociedades capitalistas?

02. Alguns autores afirmam que a máquina da Revolução Industrial foi o relógio e não a máquina a vapor. Com base nisso, o que você poderia dizer sobre este dado?

03. Desenvolva um texto que apresente argumentos favoráveis e desfavo-ráveis à implantação de políticas de responsabilidade social pelas empresas no Brasil.

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04. Quais são as relações entre consumidores e responsabilidade social empresarial?

ReflexãoUm dos pontos que aparecem com frequência nas análises sobre a

situação do trabalho na modernidade traz a redução da jornada de trabalho como uma das alternativas para uma vida mais saudável. Leia o seguinte trecho e reflita sobre essa questão associando a redução da jornada a uma possível medida de responsabilidade social por parte das empresas.

[...] Fica assim claro que o desemprego atual, no Brasil como em todo o mundo, é provocado principalmente pela conjunção de dois fa-tores interligados: o enorme aumento da produtividade que ocorreu nas últimas décadas, por um lado, e, por outro, o fato de este aumento da produti vidade não ter sido acompanhado por um aumento correspondente da capacidade de consumo da população. Os dois fatores constituem um fenômeno mundial, mas, no Brasil, proporcionalmente, o me nor aumento de produtividade foi agravado por um crescimento ainda menor da capaci-dade de consumo, devido a décadas de arrocho salarial e ao agravamento da desigualdade na distribuição de renda.

Nestas condições, o crescimento da economia, por si só, não pode resolver o problema do desemprego. Para apenas manter a taxa atual de desemprego, o crescimento teria que igualar ao crescimento da PEA (Po-pulação Economicamente Ativa) o crescimento da produtividade. Para dimi nuí-la, ele teria que ser ainda maior. E é necessário lembrar que, para que a economia cresça, é preciso que a capacidade de consumo da popu-lação, isto é, de seus rendimentos, cresça também num nível compatível.

A redução da jornada de trabalho aparece, então, como medida efi-caz, indispensável e insubsti tuível para combater o desemprego.

Além de necessária para combater o desemprego, esta medida aten-de também a um requisito de justiça social. Com efeito, não é justo que os aumentos de produtividade sejam apropriados apenas pelos empregadores e não beneficiem também os empregados, pois o progresso científico e o tecno lógico são uma conquista da humanidade como um todo, e não patri-mônio de apenas uma parte dela. [...]

Extraído de: <http://www.dieese.org.br/esp/jtrab/proplegis.xml>.

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Leituras recomendadas

ALBORNOZ, Suzana. O que é trabalho. São Paulo: Brasiliense (Co-leção Primeiros Passos), 1988.

SROUR, R. H. Ética empresarial. A gestão da reputação. Rio de Ja-neiro: Campus/Elsevier, 2003.

ReferênciasALBORNOZ, Suzana. O que é trabalho. São Paulo: Brasiliense (Co-leção Primeiros Passos), 1988.

ANTUNES, Ricardo. Sete teses sobre a redução da jornada. In: Revis-ta Debate sindical, ano 14, n. 36, dez./jan./fev. 2001.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.

CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense (Coleção Primeiros Passos, n. 13), 1985.

COSTA, Cristina. Sociologia. Introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Editora Moderna, 1997.

DECCA, Edgar Salvadori de. O nascimento das fábricas. São Paulo: Brasiliense (Coleção Tudo é História, 51), 1988.

DEMO, Pedro. Sociologia. Uma introdução crítica. São Paulo: Atlas, 1985.

DIAS, Reinaldo. Introdução à Sociologia. São Paulo: Pearson Prenti-ce Hall, 2005.

DICIONÁRIO de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Editora da Fun-dação Getulio Vargas, 1987.

Dicionário de Ciências Sociais. Fundação Getulio Vargas. Silva, Be-nedicto (coordenação geral). Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1987.

GIDDENS, Anthony. Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gul-benkian, 2004.

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GORZ, André, Bâtir. La civilisation du temps libre. In: Le Monde Diplomatique, 1993.

IANNI, Octávio.(org.). Marx – Sociologia. São Paulo: Ática (Coleção Grandes Cientistas Sociais, n. 10), 1987.

IBGE-Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Brasil em núme-ros. IBGE, Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-%20RJ/brasilnume-ros/Brasil_numeros_v15_2007.pdf>.

IBGE divulga as estimativas populacionais dos municípios em 2009. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1435&id_pagina=1>.

MARX, Karl. O Capital. Crítica da economia política. Livro 1, v. I. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

ROSA, Waldemir. Sexo e cor: categorias de controle social e reprodu-ção das desigualdades socioeconômicas no Brasil. Revista de Estudos Feministas. nº 3, Florianópolis, set./dez. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2009000300017&lng=pt&nrm=iso>.

SANDRONI, Paulo. O que é mais-valia. São Paulo: Brasiliense (Co-leção Primeiros Passos, n. 65), 1985.

SCALON, Maria Celi; HERINGER, Rosana. Desigualdades sociais e acesso a oportunidades no Brasil. In: Democracia Viva, n. 7, mar. 2000,

SROUR, Robert Henry. Ética empresarial. A gestão da reputação. Rio de Janeiro: Campus/El sevier, 2003.

TOMAZI, Nelson Dacio (coord.). Iniciação à Sociologia. São Paulo: Editora Atual, 2000.

TOMEI, Manuela. Igualdade racial: principais resultados – 2006. Brasília: Secretaria Internacional do trabalho, 2006. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/info/downloadfile.php?fileId=239>.

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No próximo capítuloNo próximo capítulo, aprofundaremos nosso estudo sobre alguns

temas contemporâneos de explícita relevância para compreendermos a relação entre indivíduo e sociedade após as transformações advindas da globalização. Versaremos sobre a análise do contexto ambiental assim como as mudanças ocorridas no campo dos valores e da ética.

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Minhas anotações:

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Cap

ítulo

5 A Atualidade das

Ciências Sociais na Compreensão da Sociedade

Contemporânea: Globalização, Sustentabilidade Ambiental no

Mundo ContemporâneoProvavelmente, você já ouviu falar muito de globa-

lização. Talvez, por isso, pense saber do que se trata. Veremos, nesse capítulo, como a Sociologia aborda esse

tema tão falado e citado. Falar de globalização é falar de um tema recente historicamente, embora haja controvérsias entre

os autores sobre quando realmente esse fenômeno começou a se manifestar no mundo.

Objetivos da sua aprendizagemApós estudar esse capítulo, você deve ser capaz de compreender a

complexidade do conceito de globalização; quais são suas principais características e seus efeitos; quais são os limites e as contradições da globalização; como esse tema se relaciona com os outros temas estuda-dos nessa apostila e por que se trata de um tema importante de ser estu-dado.

Você se lembra?Você se lembra quando ouviu o termo globalização pela última vez? A que se referia?

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Introdução A Sociologia usa o termo globalização quando se refere aos pro-

cessos que intensificam cada vez mais a interdependência e as relações sociais em nível mundial. Esse conceito tem sido amplamente divulgado pela mídia nos negócios e na política. Em 1990, pouco se ouvia falar so-bre isso. Mas hoje se trata de um conceito usual. Vamos ver alguns enten-dimentos desse termo.

Por globalização entendemos o fato de vivermos cada vez mais num ‘único mundo’, pois os indivíduos, os grupos e as nações tornaram-se mais interdependentes. Fala-se frequentemente em globalização como se se tratasse apenas de um fenômeno econô-mico. Muitas vezes a análise centra-se no papel das transnacionais, cujas gigantescas operações ultrapassam as fronteiras dos países, influenciando os processos globais de produção e distribuição inter-nacional do trabalho. Outros apontam para a integração eletrônica dos mercados financeiros e para o enorme volume de transação de capitais a um nível global. Outros ainda centram-se no âmbito inédito do comércio mundial, que, em relação ao que se passava antigamente, envolve hoje em dia uma gama muito maior de bens e serviços. (GIDDENS, Anthony. Sociologia. Lisboa: Fundação Ca-louste Gulbenkian, 2004, p.51.).

Reinaldo Dias (2005) contextualiza da seguinte forma o fenômeno da globalização:

A palavra ‘globalização’ foi forjada na década de 1980, nos Estados Unidos, e seu significado busca interpretar o processo de formação, inicialmente, de uma economia global. Obtendo êxito na designa-ção dessa nova realidade – que mostrava o aumento da interação das diversas partes do mundo, a facilidade de deslocamentos e de comunicação –, a palavra foi incorporada com bastante facilidade pelos meios de comunicação de massa e ao mesmo tempo passou a ser utilizada, também, pelos meios acadêmicos e intelectuais, que procuram dotá-la de significado mais preciso. Por outro lado, o termo é hoje aplicado em outras dimensões que não só a eco-nômica, como, por exemplo, a ‘globalização cultural’, da qual há duas posições que se contrapõem: aquelas que defendem que está havendo uma homogeneização cultural global, com a extinção das

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particularidades culturais, e outras que, ao contrário, afi rmam que está ocorrendo uma nova diversidade. (DIAS, Reinaldo. Introdução à Sociologia. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2005, p.72.)

A globalização é um conjunto complexo de processos envolvendo a economia, a cultura, a política e a geopolítica, que coloca em debate dico-tomias entre local e global, entre diversidade e homogeneidade. Normal-mente, fala-se de globalização como um fenômeno de homogeneização cultural associada à ideia de “aldeia global”, como se tivéssemos formado uma comunidade mun dial: o mundo todo forma uma comunidade.

Na “aldeia global”, as informações transformam-se em mercadorias comercializadas em escala mundial e a imagem prevalece como forma de comunicação. Fala-se também de um mundo sem fronteiras, de um “shop-ping center global”, de uma Disneylândia universal.

Em todos os lugares do mundo, há a impressão de que tudo se pa-rece com tudo e de que as preferências pessoais vão se adequando a uma única preferência global. À primeira vista, parece que o mundo todo come McDonald’s, bebe Coca-Cola, veste roupas Benetton, assiste à MTV, usa produtos Microsoft. Mas será mesmo que as marcas e os símbolos da cul-tura dos Estados Unidos estão tomando conta do mundo todo, uniformi-zando os gostos e os modos de vida?

Essa ideia de globalização encerra um debate importante em torno da questão: há mesmo uma homogeneização global ou há, na verdade, uma fragmentação do mundo? Como você responderia a essa pergunta?

Vamos continuar entendendo a globalização e depois tentaremos responder a essa questão.

Sin tetizamos as principais características da globalização em alguns itens:

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1) A política e a economia da maioria dos países do mundo são regidas pelo neoliberalismo, que prioriza a privatização enquanto minimiza a ação do Estado nas diferentes esferas da vida social. Retomam-se, então, os princípios do liberalismo econômico de dois séculos atrás, quando nasce o capitalismo, que prega a total liberdade para o mercado e, consequentemente, para os capitalis-tas. 2) O mundo do trabalho passa pela chamada reestruturação pro-dutiva, em que aparecem a ter ceirização, o trabalho informal, o desemprego estrutural (aquele que é irreversível), a perda dos direitos trabalhistas e a desorganização dos sindicatos (esse tema será abordado com mais detalhes no próximo capítulo). 3) Cresce o setor terciário, em que aparece o comércio, os servi-ços, o turismo, o lazer.4) Ao menos virtualmente, desaparecem as fronteiras geográficas e os países ficam mais pertos uns dos outros, seja graças ao tele-fone, ao avião ou à Internet. 5) Há internacionalização do capital e da justiça.6) Existe um projeto de padronização dos valores e desejos em nível mundial.7) A língua inglesa é predominante em todo o mundo.8) Velocidade é a palavra-chave e faz com que o hoje já pareça passado diante de um futuro cada vez mais próximo e cada vez mais fora de moda diante de um novo que parece nunca ter fim.

De acordo com Marilena Chaui (2000, p. 417), a ideologia é um fenômeno his-tórico-social decorrente do modo de produção econômico. Quando, em uma determinada

formação social, uma determinada forma da divisão social se estabiliza, fixa-se e repete-se, cada indivíduo passa a ter uma atividade determinada e exclusiva, que lhe é atribuída pelo conjunto das relações sociais, pelo estágio das forças produtivas e pela forma de proprie-dade. Este estado de coisas, essa aparência passa a ser “natural”. A função da ideologia é mascarar alguns dos reais motivos da desigualdade social e da estruturação do sistema

produtivo, revelando e enfatizando apenas aqueles que são “naturalmente” aceitos por todos, fazendo com que haja conformação ao padrão instituído. A ideologia é um fenômeno

moderno, substituindo o papel que antes era feito pelos mitos e pela teologia, que surge para explicar que a origem dos seres humanos, da sociedade e do poder político encontra a causa fora e antes dos seres humanos e de sua ação, ou seja, encontram-se valores e

entidades abstratos para explicar a realidade.

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9) As imagens são predominantes em relação às palavras escritas e faladas.10) A cultura é mundializada graças ao desenvolvimento da in-dústria cultural.11) Há uma minimização do indivíduo, da manifestação local e nacional.

Todas essas características aqui resumidas são controladas, de di-versas maneiras, principalmen te pelos Estados Unidos, pelo capital inter-nacional (união dos 8 países mais ricos do mundo que compõem o G-8) e pelas grandes instituições que os representam perante o resto do mundo: o FMI (Fundo Monetário Internacional), o Banco Mundial, a OMC (Orga-nização Mundial do Comércio), a ONU (Organização das Nações Unidas) e a Unesco (Organização para a Educação, Ciência e Cultura).

Sabe-se, então, que a globalização é uma etapa atual do capitalismo e que é um empreendimento que adentra todas as esferas da vida humana e social: a economia, a política, a cultura, a ciência, a geopolítica etc.

Quando falamos em globalização, devemos nos lembrar de que uma análise possível de ser feita em relação a esse fenômeno é a de que se trata de uma construção ideológica, ou seja, alguns autores afirmam que ser ideológica é uma das dimensões da globalização.

Segundo o sociólogo brasileiro Giovanni Alves, a globalização pos-sui três dimensões básicas:

a) a globalização como ideologia;b) a globalização como mundialização do capital;c) a globalização como processo civilizatório humano-genérico.

Entender a globalização implica entender todas essas dimensões num processo dialético que percebe as contradições, ou seja, a globalização é, ao mesmo tempo, progressiva e regressiva, sendo um processo civilizatório e um avanço da barbárie, constituindo um mundo global ao mesmo tempo em que contribui para a sedimentação de particularismos locais.

A globalização enquanto ideologia é a dimensão mais comumente aceita pela sociologia crítica, que procura entender esse fenômeno como sendo uma nova roupagem para o projeto totalitarista da economia de mercado. O que isso significa? Vejamos.

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Diz-se que o totalitarismo do mercado é uma nova forma de a eco-nomia capitalista propagar-se nos quatro cantos do mundo. Enquanto denomina-se regime totalitário aquele sistema político que se baseia na existência de apenas um partido, um mercado totalitário seria aquele que não admite nenhuma outra forma de economia que não a de mercado (ca-pitalismo). Assim, alguns autores tam bém denominam a globalização como sendo um “globalitarismo”. Os Estados vão deixando de ser totalitários, enquanto o mercado começa a sê-lo.

Falar de globalitarismo, portanto, é falar de uma visão crítica da globalização enquanto ideo logia.

Nessa perspectiva, as corporações e as grandes empresas, ou seja, a esfera privada é quem deter mina os rumos da nação, sobrepondo-se (ou confundindo-se) com o poder do próprio Estado. Isso pode ser compro-vado quando percebemos que, entre as duzentas primeiras economias do mundo, mais da metade não são países, mas empresas. Os novos senhores da globalização são os gestores do mercado financeiro. Para se ter uma ideia, o volume de negócios da General Motors é mais elevado do que o produto nacional bruto (PNB) da Dinamarca, o da Ford é mais importante do que o PNB da África do Sul e o da Toyota supera o PNB da Noruega. O PNB da cadeia Wal-Mart é superior ao PNB de países como Colômbia, Venezuela e Israel.

Se globalitarismo é a face negativa da globalização acentuada pelos autores críticos, “globalis mo” é a face positiva desse fenômeno social. Essa dimensão tende a acentuar apenas o lado econô mico da globalização, ressal-tando os benefícios de uma economia global, e, além disso, chamar a atenção para o fato de que só cabe a nós a decisão de nos adaptarmos à globalização.

Antes de abordarmos as possíveis contradições da globalização (e os seus limites), vejamos uma tese presente no debate sociológico sobre esse fenômeno: a tese da ocidentalização do mundo. Segundo essa tese, a globalização não é um fenômeno recente, mas é um processo que come-çou no século XV, com o expansionismo europeu.

5.1 A tese da ocidentalização do mundo Podemos pensar a globalização como sendo, na verdade, um enorme

e complexo projeto de ocidentalização do mundo que conta, dentre outros instrumentos, com a ajuda preciosa da indústria cultural. É exemplo, so-bretudo, o cinema e a música, que agem como aliados deste processo, ao

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divulgarem – seja esta divulgação entendida como imposição ou não – o chamado american way of life ou o modo americano de vida.

É por esta mesma lógica que, cada vez mais, os centros comerciais são chamados, no Brasil, de shopping centers; é por isso também que a gente come, no Brasil, chips de bacon, e não batatas fritas sabor presunto. É por isso que os professores nas universidades pedem para seus alunos escreverem papers, e não artigos; e fazemos surveys, e não pesquisas. É pela imposição deste modo americano de vida denominado globalização que os jogos eletrônicos são chamados, no Brasil, de video games ou de playstation e que um disco compacto é chamado de CD (Compact Disc) ou um endereço eletrônico é chamado de e-mail.

No amplo quadro teórico que aborda a temática em questão, é possível encontrar alguns raros intelectuais que, “remando contra a maré”, proble-matizam a ideia da globalização propondo novas indagações para o debate. O economista francês Serge Latouche (1940-) é um destes intelectuais que polemiza o projeto denominado ocidentalização do mundo.

Eurocentrismo – Uma visão de mundo que tende a colocar a Europa (assim como sua cultura, seu povo, suas línguas etc.) como o elemento

fundamental na constituição da sociedade moderna, sendo necessariamente a protagonista da história do homem. Acredita-se que grande parte da his toriografia produzida no século XIX até

meados do século XX assuma um contexto eurocêntrico, mesmo aquela praticada fora da Europa. Manifesta-se como uma espécie de doutrina, corrente no meio acadêmico em determinados períodos da história, que enxerga as culturas não europeias de forma exótica. Muito comum, principalmente no século XIX, especialmente por ser um ideal do darwinismo social, em que humanidade caminhava para o “modelo europeu”, o eurocentrismo dei xou alguns traços sutis, tais como a visão mais co-

mumente encontrada em mapas que representam o globo terrestre (a Europa está colocada no centro).

Vejamos um pouco de suas ideias, extraídas de seu livro A ocidentaliza-ção do mundo.

Para ele, o Ocidente (e o seu homem branco) é uma máquina im-pessoal que, com a intenção de nivelar tudo e todos, gera diferenciação e desarticulação social, comprometendo a sobrevivência da humanidade. São poucos os autores que, além de considerar os efeitos nocivos da globaliza-ção, aprofundam a sua crítica na direção de seu entendimento. Por isso, as ideias de Latouche têm mérito.

É indubitável que a modernização do mundo implica a difusão, atra-vés principalmente dos meios de comunicação de massa e da educação

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formal, de valores e princípios que foram historicamente predominantes na Europa Ocidental e que são, hoje, predominantes nos Estados Unidos.

A associação que Latouche faz entre o projeto civilizador do Ocidente e suas ideias de dominação, de substituição do eurocentrismo pela hegemo-nia norte-americana ou de etnocentrismo sinalizam seu olhar crítico sobre a pretensão ocidental de uniformização planetária. Se o projeto de expansão ocidental se deu sob o controle do cristianismo e de etnocídios sanguinários (das Cruzadas do século XII às conquistas territoriais do século XVI), o termo ocidentalização pode ser perfeitamente compreendido como colo-nização ou imperialismo colonial. Esse processo foi um empreendimento totalitário (as colonizações) que abrangeu o campo político, econômico, cultural e científico, já que o branco europeu pretendia conhecer tudo para explorar todos os espaços.

Segundo Latouche, o processo de descolonização europeia se dá, den-tre outros fenômenos, a partir da propagação dos valores de modernidade capitalista (como o individualismo, o liberalismo econômico e a proprieda-de privada dos meios de produção), os quais colaboraram para a vitória do imperialismo americano. Novos agentes protagonizam a cena na dominação norte-americana do mundo: a ciência, a técnica, a economia e o progresso. Assim, a dominação não se dá mais pela escravização do fraco pelo forte, mas sim pela superioridade da técnica, que se torna artigo de fé, cuja di-vindade é a ciência.

Na tentativa inútil de libertar-se de seus colonizadores, todos os povos do mundo foram “assimilando” estes instrumentos de dominação, submetendo-se também ao culto da técnica, da industrialização e do mercado único. Então, é possível dizer que a luta contra o Ocidente faz parte do pró-prio processo de ocidentalização, em que os dominados aprendem a língua, os códigos e os valores dos dominantes para poderem se rebelar depois.

Assimilação seria a palavra mais justa para representar o que ocorre com o contato das diferenças nos processos que buscam a homogeneiza-ção? Depende da postura assumida diante deste problema. A imposição dos valores e da padronização de princípios que está indiscutivelmente presente no projeto de ocidentalização do mundo desde a Idade Moderna foi, e ainda é, mais conflituosa do que pode parecer.

A civilização ocidental, agora sob a batuta dos Estados Unidos, im-põe também um modelo de consumo em que ter mais passa a substituir as antigas formas de ser mais. Inclusive esses valores já estão invadindo também o Oriente.

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Ao tentar explicar o que entende por Ocidente, Latouche demonstra que ele tem a ver com um espaço geográfico (a Europa), com uma religião (o cristianismo), com uma filosofia (o Iluminismo), com uma raça (a bran-ca) e com um sistema econômico (o capitalismo). Individualmente, o Oci-dente não se identifica com estes fenômenos, existindo apenas enquanto cultura ou civilização que tem como mensagem ética o universalismo humanitário. Então, o Ocidente é, na verdade, um conceito que só pode ser entendido no movimento destes fenômenos todos.

Embora o capitalismo seja o sistema do Ocidente por excelência, o que se passou antes dele também deve ser considerado como parte do pro-jeto de ocidentalização do mundo. Por isso, Latouche sugere que o capita-lismo é uma manifestação de ocidentalidade, mas não é sua essência. No entanto, parece fundamental considerar o capitalismo como um modo de produção e como um processo civilizatório que se identifica muito com os ideais ocidentais. Isso quer dizer que o princípio de mercado do capitalis-mo está articulado, com a ajuda de um aparato judicial e contratual, com princípios como o de liberdade e igualdade, de propriedade privada, de consumo e de uso de mercadorias, de urbanização, de modernização etc.

Desaculturação é o mesmo que aculturação, isto é, um processo de adaptação social de um indivíduo ou de um grupo. Tra-

ta-se de aculturação quando duas culturas distintas ou parecidas são absorvidas uma pela outra formando uma nova cultura. Além disso, aculturação pode ser também

a absorção de uma cultura pela outra, em que essa nova cultura terá os aspectos da cultura inicial e da cultura absorvida. Esse tipo de fenômeno acontece graças à convivência

com outras culturas. Com a cres cente globalização, a aculturação vem se tornando um dos aspectos fundamentais na sociedade. Pela proximidade a grandes culturas e pela rapidez de comunicação entre os diferentes países do globo, cada cultura está perdendo sua identifi-cação cultural e social, aderindo em parte a outras culturas. Um exemplo disso é a cultura ocidental similar em muitos países. Mesmo assim, a aculturação não tira totalmente a

identidade social de um povo, crendo-se que talvez, no futuro, não exista mais uma diferença cultural tão acentuada como aquela que hoje ainda se observa entre

alguns países.

É preciso lembrar também que o capitalismo nasce com o mercan-tilismo e pelas conquistas e colonizações nascidas desse processo. Então, capitalismo e civilização ocidental formam um par perfeito, o qual vem sendo redesenhado, mas ainda não superado. O globalismo é, sem dúvida, um novo surto de expansão do capitalismo.

Parece evidente que o capitalismo vem ganhando novo fôlego e que a internacionalização do capital é a sua dinâmica num mundo que se propaga

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“sem fronteiras”. Assim, pode-se dizer que a internacionalização do capital é inerente à expansão do capitalismo e ao processo de reprodução do capital.

Uma tese curiosa defendida por Latouche é a de que o Ocidente, num processo neocolonial, adquire poder e prestígio pela doação, dei-xando as sociedades indefesas. Por isso, o autor acredita que a assistência técnica e a doação do neocolonialismo ocidental fazem muito mais pela desaculturação do que a colonização brutal. Aliás, como lembra Latouche, o Ocidente sempre dá sem nada aceitar em troca.

Vejamos um exemplo disso a partir de um texto do argentino Néstor García Canclini (1939-) sobre o fato:

[...] de os EUA reclamarem livre circulação de suas mensa-gens nos países estrangeiros, enquanto em seu próprio país, na cláusula 301 da Lei de Comércio, impõem restrições aos produtos culturais importados. As rádios e televisões norte- -americanas não só cedem espaço quase inteiramente ao que é feito nos EUA, mas também desqualificam o importado através de anúncios: ‘Por que comprar músicas que vocês não enten-dem?’ (CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos. Conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 157).

O interessante neste debate suscitado por Canclini é que os países europeus que sempre estiveram à frente do projeto de planetarização hoje estão sentindo, com os países da América Latina (mas, evidente-mente, num grau diferenciado), a hegemonia cultural estadunidense. Em reunião da Organização Mundial do Comércio que discutia as concessões agrícolas, industriais e audiovisuais, os europeus manifes-taram claramente certo nacionalismo como forma de resistência a um perigo que eles mesmos lançaram no mundo ocidental: “A França pode deixar de produzir batatas e continuar sendo a França, mas, se deixa-mos de falar francês, de ter um cinema, um teatro e uma literatura pró-pria, nos converteremos em mais um bairro de Chicago”. (Citado por Canclini, 1997, p. 163.)

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5.2 Os paradoxos e os limites da globalizaçãoVale enfatizar que, se a hegemonia estadunidense é evidente nesse

processo chamado de globalização, também parece evidente que existem movimentos de resistência. A dimensão ou o alcance dessas resistências, quase sempre, tornam-se impotentes diante de tal projeto. Mas é preciso reconhecer que há conflito porque há heterogeneidade na aparente homo-geneização, ou seja, a globalização é um processo paradoxal e deve ser pensada dialeticamente.

Nessa mesma linha de entendimento, vale lembrar que a democracia é uma via de mão dupla, então não é porque os bens (materiais e simbó-licos) estão disponíveis nos cinco continentes do mundo que o acesso a eles será permitido ou mesmo possível para todos. Seria o mesmo que um vendedor afirmar “eu vendi, ele é quem não comprou” ou um professor reclamar “eu ensinei, ele é quem não aprendeu”.

O sociólogo brasileiro Octavio Ianni (1926-2004), um dos pioneiros a estudar globalização no Brasil, afirmou o seguinte:

No mesmo curso da integração e homogeneização, desenvolvem-se a fragmentação e a contradição. Ao encontrar outras formas sociais de vida e trabalho, compreendendo culturas e civilizações, logo se constituem as mais surpreendentes diversidades. Tanto podem reavivar-se as formas locais, tribais, nacionais ou regionais como podem ocorrer desenvolvimentos inesperados de ocidentalidade, capitalismo, racionalidade. O mesmo vasto processo de globali-zação do mundo é sempre um vasto processo de pluralização dos mundos. (IANNI, Octavio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p.89.)

Para entender dialeticamente a globalização, precisamos pensá-la como um fenômeno que se desenvolve juntamente com a fragmentação e a pluralização social. O que isso significa? Podemos pensar num exemplo: por um lado, abrem-se no mundo pistas de cooperação internacional no sentido de construir uma nova ordem global (Mercosul, União Europeia e Nafta são alguns exemplos dessa tentativa). Com essas experiências, há a intenção de que se estabeleça um multilateralismo no comércio, no desen-volvimento social e econômico, nos direitos humanos, na segurança etc.

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Por outro lado, no entanto;

[...] respaldam a percepção inquietante de uma ‘fenomenal desor-dem’, sobretudo após as experiências da Guerra do Golfo, da fan-tástica desagregação do Leste Europeu, das atrocidades em nome da pureza étnica nos Bálcãs, do genocídio em Ruanda, dos conflitos no Cáucaso, da inação ou fracasso das Nações Unidas, do futuro enig-mático duma China-potência em acelerado crescimento e transição ao capitalismo e da emergência da Bacia Ásia-Pacífico como novo epicentro da economia mundial, das sucessivas crises financeiras em vários países industrializados, da crise econômica e política no México etc. (GÓMEZ, José Maria. Globalização da política. Mitos, realidades e dilemas. In: GENTILLI, Pablo (org.), Globalização excludente. Petrópolis: Vozes, 2000, p.133.)

5.3 Conceitos de grupos étnicosConceito de grupo étnico segundo Roberto de Oliveira: “Um grupo

étnico designa uma população que se perpetua principalmente por meios biológicos; compartilha de valores culturais fundamentais, postos em prática em formas culturais num todo explícito; compõe um campo de co-municação e interação; tem um grupo de membros em que se identifica e é identificado por outros como constituinte de uma categoria distinguível de outras categorias da mesma ordem.” (OLIVEIRA, 1976, p.2).

Portanto, a identidade é noção que carrega duas dimensões tanto a social, vinculada à concepção de grupo, como a pessoal, que se liga aos aspectos psicológicos e individuais. “Identificação étnica refere-se ao uso que uma pessoa faz de termos raciais, nacionais ou religiosos para se identificar e, desse modo, relacionar-se aos outros.” (OLIVEIRA, 1976, p.3)

O discurso do progresso econômico foi utilizado em diferentes contextos para legitimar a exploração da mão de obra e os processos de eliminação da pluralidade cultural. No século XX, o crescimento urbano acelerou a integração de cidades industrializadas com sociedades tradicio-nais. Além de uma diminuição contundente dos indivíduos que vivem e se identificam com os grupos, o contato com o modelo civilizatório originou problemas graves como o suicídio e o alcoolismo dentro das comunidades tradicionais.

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As comunidades tapuias, cujo espaço físico e sociocultural dispõe-se entre os grupos indígenas e tribais e a sociedade regional, tive-ram de suportar todo o peso da expansão civilizatória, terminando por extingui-se ou descaracterizar-se como categoria socialmente reconhecível (NETO, 1988, p.103).

Outro limite da interpretação dos movimentos étnicos relaciona-se a própria identidade do indígena no país. Isso ocorre, pois muitas pessoas ainda carregam uma ideia romantizada dos indígenas e nesse sentido cos-tumam construir uma única descrição para a infinidade de maneiras de se organizar e conviver das culturas indígenas no país. Dessa maneira, não podemos falar o índio brasileiro, pois essa categoria não existe.

Na série de identidades estamos classificando dois tipos diferentes de mecanismos de identificação: um primeiro tipo compreenderia identidades assumidas por membros de grupos minoritários (ín-dios, negros, etc.) inseridos em sistemas sociais globais (como as sociedades nacionais); um segundo tipo compreenderia identidades assumidas por membros de sociedades anfitriãs, portanto, majori-tários em situações de contacto com identidades do primeiro tipo (OLIVEIRA, 1976, p.102).

É muito comum ouvirmos o discurso, “mas se o índio daquela tribo tem telefone celular e usa roupa ele não é mais índio”. Para lei federal ser índio depende de sentir-se índio. Ou seja, aquele que consegue perceber na sua forma de vida uma identificação com alguma etnia tradicional que distingue dos demais grupos faz com que, para o país, ele seja classificado como índio.

5.4 Descrever o processo de construção de novas

identidades e novos padrões de comportamento na

sociedade brasileiraFrequentemente ouvimos o argumento de que o movimento da

globalização possibilitou uma aproximação econômica e cultural entre os países. No entanto, em muitos casos, ela simboliza a expansão de uma cultura consumista imposta pelas grandes empresas multinacionais. Ou seja, o que se observa não é a real democratização da cultura e, sim, a imposição de um modelo econômico. Nesse sentido, é possível ver jovens

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de diferentes partes do planeta comprando as mesas camisetas, ouvindo as mesmas músicas e consumindo os lanches padronizados.

Comumente, ouvimos a expressão que o Brasil contemporâneo vive uma crise de valores. Segundo La Taille (2009), é importante revermos essa ideia uma vez que há uma crise de valores quando a sociedade não valoriza mais nada. Em nosso caso, passamos a nos identificar com uma sociedade líquida, para citar o Bauman, consumista e autocentrada. Nesse sentido, os valores que notadamente regem a atualidade são a beleza, a riqueza, a força, tão distintos de valores voltados a um bem mais coletivo. Portanto, precisamos problematizar os padrões individualistas cada vez mais naturalizados na cultura brasileira. Para tanto, pensemos um pouco sobre o conceito de moral, ética e valor.

É importante esclarecer que o conceito de moralidade não é con-sensual tampouco conclusivo. Em muitos textos, as palavras ética e moral aparecem como sinônimas, tal concepção é coerente uma vez que os dois conceitos apresentam a mesma raiz etimológica. Contudo, pensamos ser relevante delimitar a abordagem teórica com a qual dialogamos na análise do campo da ética e da moral.

Não utilizaremos a sinonímia dos dois conceitos. Pensaremos aqui na compreensão dessas definições a partir de uma outra convenção estruturada pelos questionamentos “[...] diz que a moral corresponde à pergunta “como devo agir?”, e a ética a outra: “que vida quero viver?” (LA TAILLE, 2004, p.98).Ou seja, a concepção de moral está relacionada aos deveres e a ética a uma vida boa, que tenha sentido. Na obra Nos labirintos da moral de Mario Sergio Cortella e Yves de La Taille (2009) os autores retomam a perspectiva de Paul Ricoeur para diferenciar o cam-po da ética e da moral. Essa definição citada abaixo configura-se como uma de nossas bases teóricas.

Ele faz essa diferenciação entre moral e ética. Moral são normas, deveres, e ética é uma vida boa. Veja que bela definição, que é plenamente adequada à vida em comunidade e, também, ao cosmo-politismo. Ele diz: ‘Perspectiva ética é a perspectiva de uma vida boa, para e com outrem, em instituições justas.’ (CORTELLA, LA TAILLE, 2009, p.35).

Evidentemente há uma diversidade de interpretações acerca dos sis-temas morais, entretanto, é possível perceber, segundo La Taille (2007), a existência de um elemento comum nesses diversos entendimentos do que

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é a moral: o “sentimento de obrigatoriedade”. Nesse sentido, o plano da moral é relacionado diretamente ao campo do dever, todavia, inclui uma subjetividade no processo de internalização das regras. É essa experiência subjetiva que La Taille (2007) denomina “sentimento de obrigatoriedade” ao qual o dever se torna o querer.

[...] somente age moralmente quem se sente intimamente obrigado como tal, e não quem é coagido por algum poder exterior. Logo, o sujeito moral é, por definição, livre, porque é ele mesmo quem decide agir por dever. Dito de outra forma, somente é moral quem assim o quer. (LA TAILLE, 2007, p.54)

Dessa maneira, é possível constatar uma dimensão afetiva da ação moral pela qual as pessoas criam ou não o sentimento de autoimposição. Portanto, o dever será ou não cumprido conforme o indivíduo internaliza e legitima as regras. Em outras palavras, é nesse caminho de articulação entre as regras dadas e a coerência com os projetos individuais que se re-laciona o campo da moral e da ética. Ou seja, há um dever a ser cumprido socialmente, caso ele seja coerente com a forma como o indivíduo acre-dita ser a forma correta de se agir, tendo o campo da moral. No entanto, o sentido daquilo que eu acredito ser uma forma boa de vida vincula-se ao corpus ético. “Dito de outra maneira, somente sente-se obrigado a seguir determinados deveres quem os concebe como expressão de valor do pró-prio eu.” (LA TAILLE, 2007, p.51).

Assim, o vínculo entre a moral e a ética se estabelece na medida em que o sentimento de obrigatoriedade está associado à ideia de “expandir a si próprio”. Assim, a decisão do sentido pelo qual desejo seguir na minha vida tem direta relação com o lugar que os deveres ocupam em minha subjetividade. A articulação entre a moral e a ética está justamente na am-plitude de “quereres” que faz com que algumas pessoas desejam agir mo-ralmente enquanto outras não valorizam essas ações. Por outro lado, todo plano ético, traduzido como um projeto de felicidade, contém uma moral, uma vez que sistematiza a vida em sociedade. “ [...] a moral não diz o que é ser feliz nem como sê-lo, mas sim quais são os deveres a serem neces-sariamente obedecidos para que a felicidade individual tenha legitimidade social.” (LA TAILLE, 2007, p.60).

La Taille (2007) se refere a Paul Ricoeur quando argumenta haver, por esses motivos explicitados anteriormente, uma primazia da ética sobre a moral, para esses dois autores é a reflexão ética que nos permite sair de impasses morais. Portanto, em nossa perspectiva teórica o plano ético

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engloba o moral. Por outro lado, não devemos limitar o que é uma vida boa, ou quais são os conteúdos de um projeto de felicidade. Para La Taille (2007), o nosso papel é selecionar quais são os deveres que condicionam a busca pela felicidade.

O dever e a vida que se deseja levar tem relação direta e não podem ser limitados a qualquer dever ou qualquer projeto de vida. Nessa concep-ção teórica a que nos apoiamos, a ética e a moral constroem uma íntima relação. Segundo Tognetta (2008), o dever desvinculado da justiça e da generosidade não pode ser considerado moral. Da mesma maneira, a ética compreende um sentido de felicidade que não se limita ao indivíduo, pois necessariamente se expande ao outro e a modelos justos de instituição.

Se empregamos essas definições de moral e de ética, é porque faze-mos a hipótese de que as duas dimensões – dever e “vida boa” – são articuladas do ponto de vista psicológico. Fazemos a hipótese geral de que os deveres morais somente serão intimamente legitimados e, portanto, inspirarão as ações dos indivíduos para os quais eles são partes integrantes de uma “vida boa”, por aqueles, portanto, que possuem uma ética, como assim definida por Ricoeur (1990). (TOGNETTA, 2008, p.182).

Se partirmos da ideia de que a moralidade se forma a partir de normas impostas pela sociedade, ela é entendida como incorporação, ou seja, relativa e dependente das condutas culturais de cada povo. Por outro lado, a moralidade também se refere aos sentimentos e aos investimentos afetivos capazes de construir autonomamente os valores morais. Portan-to, concepções que consideram apenas a influência externa na formação moral estão sendo limitadas. A partir dessa delimitação teórica acerca da compreensão da moralidade, centramos agora nosso olhar na definição dos valores morais. O valor é compreendido como aquilo que se conside-ra importante. “A própria definição do que é um valor pode ajudar-nos a compreender melhor: um valor pode ser definido como um investimento afetivo que nos move ou nos faz agir.” (TAILLE, 2009, p.17).

Esse referencial teórico preocupa-se em discutir o que são valores morais e como construí-los na prática. Essa corrente teórica foi revista a partir das transformações da sociedade contemporânea com os autores Puig, La Taille e Araújo. A moralidade é compreendida por esses autores como uma questão primordial do debate social e precisa ser analisada a partir das interfaces de seu caráter universal e relativo bem como externo e interno. Para Araújo:

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[...] os valores são construídos nas interações cotidianas. Nessa con-cepção, [...], os valores nem estão predeterminados nem são simples internalizações (de fora para dentro), mas resultantes das ações do sujeito sobre o mundo objetivo e subjetivo em que ele vive. (ARAÚJO, 2007, p.20).

Para García (2010), estamos em um momento de muitas incertezas e, portanto, os valores precisam ser guias para as pessoas. Se levarmos em consideração que os valores podem ser ensinados, é importante pensar que depende de uma tomada de consciência, ou seja, de uma construção autônoma de comportamentos éticos.

Sua função como referência de conduta evidencia a necessidade de cada pessoa definir com precisão sua hierarquia de valores, o que a ajudará a ter um comportamento pessoal mais orientado e coe-rente e lhe permitirá tomar decisões com consciência e autonomia. (GARCÍA, 2010, p.26).

Desse modo, precisamos contextualizar a moralidade em crise da sociedade contemporânea pois é preciso tomar cuidado com os relativis-mos e as condutas individuais e repensar os valores que nos conduzem aos bens coletivos, por mais difícil que seja pontuá-los. “Ao se definirem demais como os últimos ‘baluartes’ da civilização, os discursos institu-cionais custam a reconhecer a legitimidade das preocupações éticas con-temporâneas e continuam associando-as em massa a um individualismo dissolvente.” (BARRERE, 2001, p.262).

Dessa maneira, precisamos olhar para os valores divulgados em nossa sociedade atual e refletir sobre possíveis caminhos para fugir de um relativismo tão exagerado que permite tolerar a intolerância. É preciso abrir espaços para a discussão desses novos padrões morais e éticos para que outros modelos de atuação no mundo sejam possíveis de ser constru-ído. “Diante desse paradoxo entre o absoluto e o relativo, adensa-se a ne-cessidade de um núcleo mínimo, capaz de nos pôr a salvo do relativismo ético.” (GOERGEN, 2001, p.158).

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Atividades

01. A partir da leitura desse capítulo, como você explicaria o lema muito utilizado entre os empresários atualmente: “pensar globalmente e agir lo-calmente”?

02. Faça uma pesquisa sobre o Protocolo de Kyoto. Depois, redija um texto relacionando o desenvolvimento industrial, a globalização e os riscos ambientais do século XXI.

03. O que você já ouviu falar sobre segurança alimentar? Faça uma pes-quisa sobre o tema e resuma os pontos principais. Qual seria o papel do administrador de empresa em relação à segurança alimentar?

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04. Alguns autores defendem a necessidade urgente de uma desacelera-ção da economia para que não acabe a vida humana na Terra por esgota-mento ambiental. Quais são os seus argumentos favoráveis e contrários a essa ideia? Fundamente sua resposta com base nos textos dessa apostila e em outras fontes pesquisadas.

05. Leia com atenção os dois textos seguintes.TEXTO 1A globalização comercial e tecnológica permitiu o salto dos Tigres Asiáticos

e o alívio da pobreza na China. É reconhecida a proficiência brasileira em três coisas: no futebol, no carnaval e na busca de bodes expiatórios. Globalização e neoliberalismo foram os bodes na moda da década de 1990. Um era ino-cente. O outro era inexistente. A atual globalização não é uma conspiração americana para manter sua hegemonia. Os Estados Unidos são hegemôni-cos simplesmente porque ganharam a Segunda Guerra Mundial, pelo colap-so do socialismo soviético e por liderarem a nova revolução tecnológica. A globalização não é responsável pelo desnível industrial nem pela pobreza da periferia. Ao contrário, foi a globalização comercial e tecnológica que permitiu o salto tecnológico dos Tigres Asiáticos e o alívio da pobreza na China, que quinze anos atrás exportava menos que o Brasil e hoje exporta quatro vezes mais. Como o comércio internacional cresce quase o dobro do PIB mundial, os países abertos ao comércio e ao investimento vêm crescendo muito mais que os de economia fechada.

Fala-se no Brasil nos perigos da “desindustrialização” e da “desnacio-nalização” em virtude da abertura comercial que fizemos desde 1990. Mas as reais dificuldades de nossa indústria advieram de políticas internas que nada têm a ver com liberalismo ou globalização. Os reais problemas foram a sobrevalorização cambial, os juros escandalosos (resultantes dos déficits fiscais) e a tributação asfixiante. A atitude sensata para o Brasil é adminis-trar competentemente nossa inserção na economia globalizada do futuro. E,

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dentro da OMC, continuar lutando tenazmente contra “assimetrias” e “hipo-crisias”. A “assimetria” é a insistência dos países industrializados em ampliar a liberação de serviços e as regras de proteção de seus investimentos sem a contrapartida da liberalização de importações agrícolas. A “hipocrisia” é tornar mandatórias no comércio internacional cláusulas sociais (que igno-ram diferenças da produtividade da mão de obra) ou refinadas exigências ambientalistas. Estas, sob pretextos ecológicos ou humanitários, podem servir de barreiras protecionistas contra as exportações oriundas de países mais pobres. Qual a alternativa à globalização? Nenhuma. Isolarmo-nos da revolução tecnológica para proteger empregos é suicídio, porque a perda de competitividade geraria estagnação e, consequentemente, mais desempre-go. Em novembro de 1999 houve nas Filipinas uma reunião de antiliberais de 31 países sob o título de Conferência Internacional de Alternativas à Globalização. Além de xingamentos à chamada tríade maligna – FMI, Bird e OMC –, acusada de cumplicidade na “ofensiva neoliberal do capitalismo contemporâneo”, a conferência resultou em duas recomendações: um calote financeiro pelo não pagamento da dívida externa e um calote intelectual pelo não reconhecimento de patentes tecnológicas. Seriam, assim, punidos os dois principais protagonistas do desenvolvimento: os investidores e os ge-radores de tecnologia. Diz o economista hindu J.K. Mehta, da Universidade de Allahabad, que o subdesenvolvimento é principalmente falta de caráter, e não escassez de recursos ou de capital. Parece que ele tem razão.

Texto de Roberto Campos. Disponível em: <http://pensadoresbrasileiros.home.comcast.net/Ro-bertoCampos/>.

TEXTO 2Sob a égide das instituições de Bretton Woods, o mercado mundial está

destruindo o planeta. Trata-se de uma constatação banal ilustrada de maneira multiforme pelo espetáculo do cotidiano: os procedimentos das multinacionais, os deslocamentos massivos (empregos, atividades...), o genocídio dos índios da Amazônia, a destruição das identidades culturais e os conflitos étnicos recorrentes, o conchavo dos narcotraficantes e dos poderes públicos de quase todos os países, a eliminação programada pelos organismos econômicos internacionais (FMI, Ban-co Mundial e Bancos Internacionais) e pelos organismos econômicos nacionais, dos últimos freios à flexibilidade dos salários, o desmantelamento dos sistemas de proteção social nos países do Norte, o desaparecimento das florestas, a de-sertificação, a morte dos oceanos etc. Por trás de todos esses fenômenos, direta ou indiretamente, encontra-se a ‘mão’ do mercado mundial. Se um certo comércio

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mundial está presente e se uma certa ordem mundial é mais do que nunca neces-sária, mesmo ao custo de uma certa injustiça, as regras e a filosofia que inspiram as instituições econômicas internacionais que impregnam o imaginário dos dirigen-tes do planeta e presidem o funcionamento atual da economia são intrinsecamente perversas. Além da injustiça, o aumento das disparidades mundiais e as amea-ças que elas fazem pesar sobre o laço social engendram a destruição do meio ambiente tanto nos países do Norte quanto nos do Sul e criam poluições globais inquietantes. O imaginário liberal e mundialista atual [...] é intrinsecamente perverso porque repousa na crença das benfeitorias do livre-comércio erigido em dogma. Esta crença implica uma série de pressupostos: a antropologia e a ética utilitarista, o postulado da harmonia natural dos interesses, a crença no domínio ilimitado da natureza.[...] A crença na autorregulação pelo mercado leva logicamente a querer substituir toda forma de regulação estatal, familiar, ética, religiosa ou cultural pelo mercado. A troca mercantil transnacional torna-se a única base do laço social. [...]Na verdade, é uma verdadeira invasão ‘cultural’ do Norte em relação ao Sul, sem reciprocidade, que é programada pelo livre-comércio e seu braço secular, a OMC. A liberdade num mundo tão desigual é um jogo de engano. Qual banco africano vai abrir seus guichês em Nova Iorque? O desmantelamento de todas as ‘prefe-rências’ nacionais é simplesmente a destruição das identidades culturais. Quan-do se é bem nutrido, pode-se pensar que isso não é muito grave, até mesmo que isso constitui uma emancipação das pressões comunitárias. O problema, para os povos do Sul, está no fato de que essa identidade é comumente, em todos os sentidos do termo, sua única razão de viver.

LATOUCHE, Serge. Les dangers du marché planétaire. Paris: Presses de Sciences Po, 1998, p.61 e 62.

Quais são as diferenças entre os dois textos? Explique, posicionan-do-se diante das ideias expostas nos textos.

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ReflexãoOs homens se orgulham de suas realizações e têm todo direito de se

orgulharem. Contudo, parecem ter observado que o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes.

Sigmund Freud.

Nesse capítulo, entendemos um pouco mais sobre o fenômeno da globalização e percebemos que pode se tratar de um fenômeno que possui traços positivos e negativos. Ao mesmo tempo em que a globalização pos-sibilita o contato imediato entre pessoas de todo o mundo, com um sur-preendente encurtamento das distâncias, também traz riscos para a própria humanidade. Assim, vimos que a globalização pode ser pensada como um fenômeno paradoxal.

O tema está longe de ser esgotado pelos estudiosos da Sociologia, da Geografia e da Economia. Trata-se de um assunto muito recente que merece um olhar cuidadoso, como tudo o que “está na moda” merece. Pense nisso.

Leituras recomendadas

IANNI, Octávio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

LATOUCHE, Serge. A ocidentalização do mundo. Ensaio sobre a significação, o alcance e os limites da uniformização planetária. Petró-polis: Vozes, 1996.

Referências

ALVES, Giovanni. Dimensões da globalização. Londrina: Práxis, 2001.

ARAÚJO, U. Educação e valores: pontos e contrapontos. São Paulo: Sum-mus, 2007.

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ARROYO, M. Ofício de mestre: imagens e auto-imagens. Petrópolis RJ: Vozes, 2000.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ci-clos: apresentação dos temas transversais. Brasília: MEC/SEF, 2001.

CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos. Conflitos mul-ticulturais da globalização. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

CORTELLA, M.S.; LA TAILLE, Y. Nos labirintos da moral. Campinas SP: Papirus, 2009.

CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense (Coleção Primeiros Passos, nº 13), 1985.

DIAS, Reinaldo. Introdução à Sociologia. São Paulo: Pearson Prenti-ce Hall, 2005.

Dicionário de Ciências Sociais. Fundação Getulio Vargas. SILVA, Benedicto (coordenação geral). Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1987.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard brasileira das obras psico lógicas completas de Sigmund Freud. v. XXI (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago, 1970.

GARCÍA, M; PUIG, J.M. As sete competências para educar em valores. São Paulo: Summus, 2010.

GIDDENS, Anthony. Sociologia: uma breve, porém crítica introdução. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984.

GOERGEN, P. Educação moral: adestramento ou reflexão comunicativa? Educação & Sociedade, ano XXII, nº 76, Outubro/2001.

______. Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

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IANNI, Octávio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

LA TAILLE, Y; SOUZA, L.S.; VIZIOLI, L. Ética e educação: uma revisão da literatura educacional de 1990 a 2003. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.1, p. 91-108, jan./abr. 2004.

LA TAILLE, Y. Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto Ale-gre: Artmed, 2007.

________. (organização). Crise de valores ou valores em crise? Porto Alegre: Artmed, 2009.

LATOUCHE, Serge. A ocidentalização do mundo. Ensaio sobre a significação, o alcance e os limites da uniformização planetária. Petró-polis: Vozes, 1996.

NETO, C.A.M. Índios da Amazônia. Petrópolis RJ: Vozes, 1988.

OLIVEIRA, R. C. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira Editora, 1976.

PIAGET, J. La nueva educacion moral. Buenos Aires: Editorial Losada, 1960.

PUIG, J.M. A construção da personalidade moral. São Paulo: Editora Ática, 1998.

TOGNETTA, L. R. P. A formação de personalidades éticas: representação de si e moral. Psicologia: Teoria e Pesquisa; 2008, Vol. 24 n. 2, p. 181-188.

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