lÍvia medeiros de albuquerque -...
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Universidade de Braslia
Instituto de Letras
Departamento de Teoria Literria e Literaturas - TEL
LVIA MEDEIROS DE ALBUQUERQUE
TRADUO E COMENTRIO DO DISCURSO CONTRA A
MADRASTA, DE ANTIFONTE
ORIENTADORA: PROF DR SANDRA LCIA R. DA ROCHA
Braslia/2013
LVIA MEDEIROS DE ALBUQUERQUE
TRADUO E COMENTRIO DO DISCURSO CONTRA A
MADRASTA, DE ANTIFONTE
Monografia apresentada ao
Departamento de Teoria
Literria e Literaturas do
Instituto de Letras da
Universidade de Braslia
como requisito para a
obteno do ttulo de
Licenciado em Letras
Lngua Portuguesa e
Respectiva Literatura.
Braslia/2013
Universidade de Braslia
Instituto de Letras
Departamento de Teoria Literria e Literaturas - TEL
ALBUQUERQUE. Lvia M. Traduo e comentrio do discurso Contra a
Madrasta, de Antifonte. Monografia de Graduao. Braslia: TEL/IL/UNB,
2013.
Monografia apresentada ao Departamento de Teoria Literria e Literaturas
do Instituto de Letras da Universidade de Braslia como requisito para a
obteno do ttulo de Licenciado em Letras Lngua Portuguesa e
Respectiva Literatura.
Aprovada por: Sandra Lcia Rodrigues da Rocha
Braslia/2013
RESUMO
O presente trabalho uma proposta de traduo do discurso Contra a
Madrasta, de Antifonte, com dois objetivos principais. O primeiro
oferecer uma contextualizao acerca do universo em que o texto se insere,
a partir de comentrios sobre questes sociais, polticas e culturais da
Atenas clssica que aparecem no discurso. O segundo valorizar, no
processo tradutrio, a transposio de algumas categorias de estilo que
possuem uma fora persuasiva notvel e contribuem com a construo do
pathos do discurso. Essas categorias foram descritas por Aristteles no
Livro III da Retrica, e possuem um papel importante dentro de um
discurso que, diante da falta de evidncias concretas quanto autoria do
crime, se baseia principalmente no apelo emocional aos jurados.
Palavras-chave: Antifonte; estilo; retrica; oratria; Aristteles; traduo.
ABSTRACT
The present work is a translation of Antiphons speech Against the
Stepmother and it has two main goals. The first goal is to provide some
contextualization on the universe in which the text is inserted, with
comments on social, political and cultural aspects of classical Athens that
appear in the speech. The second goal is to give greater value, in the
translating process, to the transposition of some categories of style that
possess a remarkable persuasive force and contribute to the establishment
of the speeches pathos. These categories were described by Aristotle in
Book III of his Rhetoric, and possess an important role within a speech
that, given the lack of evidence regarding the crime, relies primarily on the
emotional appeal of the jurors.
Keywords: Antiphon; style; rhetoric; oratory; Aristotle; translation.
NDICE
Introduo......................................................................................................1
O contexto de produo do discurso Contra a Madrasta.............................2
Anlise do discurso Contra a Madrasta........................................................4
Categorias da lexis.........................................................................................6
A repetio do atigo............................................................................6
As perfrases verbais...........................................................................8
Traduo......................................................................................................10
Referncias Bibliogrficas..........................................................................20
1
Introduo
Esse trabalho consiste em uma proposta de traduo do
discurso Contra a Madrasta, de Antifonte, com os objetivos de
contextualizar o leitor acerca de alguns aspectos da vida ateniense no
sculo V a.C., que aparecem ao longo do texto, e de valorizar, na traduo
para a lngua portuguesa, alguns recursos de estilo empregados pelo orador
e que desempenham um papel importante na construo da persuaso
dentro do discurso. Em um trabalho anterior1 foram analisadas duas
categorias da lxis aristotlica dentro do Contra a Madrasta a repetio
do artigo no sintagma nominal e o uso de perfrases e constatou-se que
(1) essas estruturas so importantes na atribuio do carter persuasivo ao
discurso, principalmente por causa da falta de evidncias concretas em
relao autoria do crime, que leva o orador a recorrer ao pathos o apelo
emocional aos jurados; e (2) a sua fora persuasiva nem sempre
transposta para as tradues2. Os resultados desse trabalho motivaram a
preocupao em transpor esses traos estilsticos para o portugus nessa
traduo do discurso.
Para alcanar os objetivos propostos, foi utilizada uma
bibliografia secundria, com a finalidade de inserir comentrios ao longo
do texto, em forma de notas de rodap, e que trazem uma noo sobre os
aspectos da vida na Atenas clssica retratados no texto, como o
funcionamento do sistema judicirio, o papel da madrasta e dos escravos na
1 Pesquisa realizada por mim em Projeto de Iniciao Cientfica da UnB (Pibic), sob o ttulo A lexis
Aristotlica no Discurso Contra a Madrasta de Antifonte e os Problemas de Traduo, que analisou a
estrutura retrica do discurso em questo, em relao a duas categorias da lxis descritas por Aristteles
no Livro III da Retrica.Os objetivos desse trabalho foram (1) identificar algumas categorias da lxis no
discurso de Antifonte, para verificar em que medida o estilo transposto para as tradues consultadas,
em lngua portuguesa, espanhola, francesa e inglesa; (2) propor solues de traduo que preservem essas
estruturas estilsticas; e (3) verificar se o orador antecipava, na prtica, as sistematizaes propostas por
Aristteles, que escreveu quase um sculo depois. 2 Foram analisadas as seguintes tradues: traduo francesa, de Louis Gernet; traduo inglesa, de K. J.
Maidment; traduo portuguesa de Luiz Felipe Bellintani Ribeiro; e a traduo espanhola, de Jordi
Redondo Snchez.
2
sociedade, a religio, entre outros. Alm disso, as estruturas de estilo
estudadas no Pibic a partir de trechos do discurso foram melhor analisadas
com a traduo completa do discurso, principalmente em relao sua
funo especfica na construo do pathos ganhar a simpatia dos juzes
ou incitar neles uma antipatia pela parte contrria, conforme discutido por
Carey (1994). A traduo completa do texto possibilitou tambm encontrar
outras ocorrncias desses recursos e perceber outras formas, alm das
categorias estudadas, de sensibilizao dos jurados.
Antes de passar traduo, sero feitas algumas consideraes
acerca do contexto de produo do discurso. Em seguida, as categorias de
estilo sero brevemente analisadas e as suas ocorrncias no discurso sero
comentadas em notas, assim como as consideraes lingsticas e as
reflexes acerca do processo tradutrio.
O contexto de produo do discurso Contra a Madrasta
O discurso Contra a Madrasta um discurso do tipo judicial,
conforme a classificao clssica de Aristteles3, escrito por Antifonte, no
sculo V a.C., para ser apresentado no tribunal.
O sistema de justia Ateniense dos sculos V e IV a.C.
funcionava de forma diferente dos sistemas judicirios atuais. Os litigantes
em um processo deveriam proferir seus discursos de acusao ou defesa,
que poderiam ser produzidos por eles prprios ou encomendados a pessoas
com habilidade para tal os loggrafos , perante um grande nmero de
jurados. Os discursos deveriam abordar tanto os fatos quanto os aspectos
legais, contendo as prprias interpretaes do orador para as leis. Alm
disso, as provas no eram fundamentais no processo4, de forma que os
3 Aristteles classifica os discursos em trs categorias: epidticos, judiciais e deliberativos.
4 Segundo Thr (2006), determinar a verdade no era to fundamental quanto permitir a igualdade entre
os litigantes, obtida atravs da possibilidade de cada um deles apresentar seu discurso, de defesa ou
acusao. O julgamento ocorria logo aps a apresentao dos discursos.
3
oradores se utilizavam bastante do apelo emocional aos jurados, atravs de
recursos retricos5, alm de toda a persuaso que a prpria performance
poderia conter.
Foi nesse contexto da prtica da oratria nos tribunais que
surgiu e comeou a se especializar em meados do Sculo V a prosa
tica judicial escrita, ao mesmo tempo em que se desenvolvia tambm o
estudo formal da retrica como tcnica. Gagarin (2006) afirma que os
textos desse perodo revelam um clima intelectual produtivo, e que a
oratria servia para a apresentao de novas idias, formas de expresso e
mtodos de argumento.
Antifonte foi um dos principais oradores atenienses do Sculo
V a.C. e um dos primeiros a escrever em prosa tica. Alm disso, conforme
destaca Edwards (1985), o orador possua uma boa reputao devido sua
habilidade discursiva. Alm de fragmentos, seis discursos seus chegaram
aos dias de hoje, dos quais trs foram escritos para a performance nos
tribunais Contra a Madrasta, Acerca do Assassinato de Herodes e
Acerca do Coreuta e trs para serem lidos, como um exerccio de
argumentao as Tetralogias (GAGARIN, 1997, p.7, 8 & GERNET,
2002). Todos esses discursos so do tipo judicial, conforme a classificao
de Aristteles.
O orador produziu seus discursos durante o estgio de fixao
escrita da prosa tica (aproximadamente na segunda metade do sculo V),
perodo em que comeam a se desenvolver as principais caractersticas
encontradas na prosa do Sculo IV a.C. Por essa razo, a prosa de
Antifonte ainda experimental, contendo muitos traos poticos os quais
5Todd aborda esses aspectos do sistema jurdico ateniense em Law and Oratory at Athens (2006). Ele
afirma que a atuao em um processo judicial era to importante quanto o prprio aparato legal.
Acrescenta, ainda, que as decises eram tomadas por maioria de votos, sem necessidade de se apresentar
as razes para tal e sem a possibilidade de discusses, devido ao nvel de autoridade da instituio. Yunis
(2006) tambm apresenta um quadro interessante sobre o sistema legal de Atenas, em The Rethoric of
Law in Fourth-Century Athens, como introduo para uma anlise sobre o poder da retrica nesse meio.
4
Gagarin (1997) entende como uma escolha do orador para conferir um tom
artstico a seu trabalho alm de variaes lexicais, dialetais, morfolgicas
e sintticas.
Gagarin (1997) e Edwards (1985) fazem uma anlise do estilo
do orador, destacando sua grandiosidade, e apontando as suas principais
caractersticas, como o vocabulrio raro e muitas vezes potico, com o uso
de neologismos e criao de palavras (verbos compostos, nomes abstratos);
o uso do potencial sem a partcula ; construes perifrsticas; hiprbatos;
antteses; paralelismos, entre outras.
Anlise do discurso Contra a Madrasta
O discurso Contra a Madrasta o nico discurso de acusao
de Antifonte ao qual se tem acesso hoje. Os outros dois trabalhos escritos
para o tribunal Acerca do Assassinato de Herodes e Acerca do Coreuta
so discursos de defesa. Ele trata da acusao da madrasta6 do proponente
pelo assassinato premeditado de seu pai, por envenenamento.
Como o acusador no dispunha de evidncias concretas quanto
autoria do crime7 como o testemunho de escravos, por exemplo ,
Antifonte trabalhou todo o discurso com base no apelo emocional (pathos).
Partindo do argumento da recusa dos meios-irmos em interrogar os
escravos a fim de verificar o ocorrido o nico argumento significante do
discurso , inicia uma narrativa vvida, repleta de metforas e imagens
trgicas que apelam diretamente para o lado emocional dos jurados.
6A madrasta era uma figura comum na sociedade ateniense dos sculos IV e V. Patricia Watson (1994)
faz um estudo interessante sobre essa figura na antiguidade clssica a partir da anlise das histrias que
rodeavam o imaginrio da poca e afirma que a maioria das histrias trata da figura feminina (a
madrasta), e nunca da masculina (o padrasto), e quase sempre o fazem caracterizando-a de forma
negativa, como uma vil que ou maltrata os enteados ou procura garantir a herana dos seus filhos,
matando os enteados ou o prprio marido. Essa figura j estereotipada, por definio, como uma mulher
maligna. 7As provas no tcnicas ( ) segundo Aristteles so cinco: leis, testemunhos, juramentos,
contratos e confisses sob tortura. Thr (2006) afirma que estudos recentes tm reconhecido que apenas
os testemunhos eram realmente relevantes dentro do sistema legal ateniense.
5
Carey (1994) analisa as formas de se persuadir uma audincia
atravs do pathos, ou seja, do apelo emocional aos jurados. Segundo ele,
esse era um dos principais componentes dos manuais de retrica e
desempenhava um papel importante nos tribunais. Dentre as estratgias
apresentadas, so relevantes para este trabalho os meios de se conseguir a
simpatia dos jurados e de incitar uma antipatia pela parte contrria
aspectos explorados por Antifonte em Contra a Madrasta, principalmente
atravs dos recursos de estilo analisados, uma vez que o orador no dispe
de evidncias concretas quanto autoria do crime.
Uma das formas de se conseguir a simpatia dos juzes ocorre
nos promios. No caso de Contra a Madrasta, o proponente se apresenta de
forma modesta, reconhecendo sua pouca idade e sua inexperincia. Dessa
forma, ele demonstra possuir qualidades a modstia e a humildade
passveis de conseguir o respeito e a simpatia dos jurados.
Outras formas de atrair os jurados para a causa compreendem
transform-la em uma causa de interesse tambm dos jurados ou de toda a
cidade, fazendo com que a ofensa ou o mal cometido no diga respeito s
ao proponente e isso, de certa forma, tambm contribui para criar uma
viso negativa da parte contrria; e mencionar a extenso dos danos
causados, para sensibilizar a audincia atravs do sentimento de pena.
Para despertar um preconceito ou criar uma hostilidade em
relao aos acusados, as estratgias mais comuns so a caracterizao
negativa dos envolvidos e sua associao a personagens mitolgicos,
trgicos ou cmicos que possuem um esteretipo negativo (Carey, 1994).
No caso de Contra a Madrasta, Antifonte compara a madrasta
Clitemnestra, personagem mtica e tambm trgica, que assassinou o
marido.
Esses aspectos do discurso voltados para o phatos so
trabalhados no Contra a Madrasta em grande parte atravs do uso das
6
categorias da lxis aristotlica estudadas: as perfrases e a repetio do
artigo.
Essas estruturas foram sistematizadas por Aristteles, em sua
obra Retrica, na qual ele aborda a arte da comunicao com fins
persuasivos atravs de trs livros: o primeiro e o segundo, dedicados s
formas de persuaso disponveis ao orador; e o terceiro, que foi utilizado
neste trabalho, dedicado ao estilo () e organizao do discurso
().
Elas esto elencadas no captulo 6 do Livro III da Retrica,
que trata do , traduzido pela traduo portuguesa por solenidade. J a
traduo inglesa, embora tenha traduzido o termo como expansiveness,
comenta, logo no incio do captulo, que, apesar de a traduo literal para
ser massa, volume (bulk, mass, swelling), ela se refere, nesse caso
elevao, dignidade, ou seja, pode ser entendida como solenidade
(KENNEDY, 2007, p. 206). Essas categorias sero apresentadas
brevemente no tpico seguinte e explicadas em notas quando aparecerem
na traduo.
As categorias da lexis
As categorias da lexis que receberam uma ateno maior na
traduo sero introduzidas abaixo, de forma breve. Elas sero apontadas
ao longo da traduo, juntamente com a sua funo persuasiva. A opo de
mant-las nesse trabalho tradutrio surgiu da constatao da fora
persuasiva que elas carregam e sua importncia na construo do pathos do
discurso.
A repetio do artigo
Conforme postula Aristteles, usar um artigo definido para
cada palavra, ao invs de junt-las com um artigo apenas para ambas uma
7
forma de deixar o discurso mais volumoso e mais solene. A forma em que
esse recurso aparece em Contra a Madrasta sempre a mesma: artigo +
substantivo + artigo + adjetivo possessivo8.
A repetio do artigo uma estrutura difcil de ser mantida nas
tradues, pois no comum nas lnguas analisadas. Por essa razo, o
tradutor opta por uma forma mais concisa que consiste em determinar o
substantivo e o possessivo por um s artigo: o meu pai, as vossas leis etc9.
Essa forma concisa indicada na Retrica em oposio
forma mais extensa e mais solene. De alguma forma, a noo que o uso
mais extenso carrega acabou se perdendo nas tradues, ao utilizarem a
forma oposta. Assim, importante pensar numa forma de traduo que
preserve a funo da estrutura. Dentro do Contra a Madrasta, esse recurso
tem a funo de enfatizar o termo ou a situao a que se refere. No trecho
abaixo, por exemplo, ocorre a repetio do artigo se referindo s leis e
tambm aparece uma referncia morte do pai (
10
):
, ,
,
,
[...] (1.3)
Peo-vos, homens, se eu demonstrar que a me deles
assassina do pai, do nosso pai, com inteno e
premeditao, e que no uma, mas muitas vezes, foi pega
8 Exemplo: (o pai o meu), (as leis as vossas).
9 A forma concisa utiliza um s artigo: (o meu pai), (as vossas leis).
10Literalmente: a morte a dele. esse trecho, a repetio do artigo construda com o adjetivo ,
que se refere ao pai ()
8
em flagrante tramando a morte, a morte dele, que vingai
primeiro as leis, as vossas leis11
[...]
A repetio do artigo em relao morte do pai tem o objetivo
de enfatizar o objeto das maquinaes da madrasta a morte dele. Da
mesma forma, as ocorrncias relativas ao pai ao longo do discurso
aparecem em sentenas que mencionam o mal que ele sofreu, como forma
de chamar a ateno dos jurados ao crime e s injustias sofridas por ele.
J a ocorrncia relativa s leis responsabiliza os juzes em relao adoo
de providncias para reparar esse mal afinal, as leis que foram
desrespeitadas, embora sejam leis da cidade, so atribudas a eles. Essa
uma forma de transpor o caso a uma esfera maior, concernente tambm aos
jurados e no apenas ao proponente.
As perfrases verbais
As perfrases verbais so estruturas recorrentes em Contra a
Madrasta. Foram encontradas perfrases de dois tipos: (1) aquelas formadas
por um substantivo, um adjetivo ou um particpio e um verbo simples
(, , e ), que so a maioria; e (2) aquelas que
consistem em um nome abstrato no lugar de um verbo simples. Dentre as
primeiras h uma exceo com relao aos verbos mais simples, que utiliza
o verbo e consiste em uma perfrase de difcil entendimento,
conforme afirma Gagarin (1997, p.108).
Apesar de agregarem volume ao texto, as perfrases no
parecem torn-lo mais solene, pois, na maioria das vezes, simplificam o
entendimento. Porm, elas possuem objetivos estilsticos interessantes,
como colocar o foco na situao apresentada ao invs de na ao narrada
11
Jaqueline de Romilly (2004) afirma que, no final do Sculo V e comeo do Sculo IV a.C., os cidados
atenienses adquiriam uma conscincia maior com relao s leis, que garantiam, por um lado, a sua
liberdade, e, por outro, a autoridade dos jurados, passando, portanto, a respeit-la e a cobrar obedincia a
elas.
9
(GAGARIN, 1997, p.29), e caracterizar positiva ou negativamente os
personagens, ao transferir o valor semntico do verbo para um
adjetivo/substantivo. Um exemplo disso aparece em uma perfrase que tem
o objetivo de caracterizar a madrasta como culpada: ao invs de o orador
dizer que ela assassinou o pai, prefere dizer que ela a assassina dele12
.
A traduo dessas estruturas varia muito: em alguns casos a
noo do uso da perfrase mantida, enquanto se perde em outros, sendo
traduzidas pelos verbos que representam ou por outras formas perifrsticas
que no produzem o mesmo efeito, como demonstra o exemplo a seguir,
com a perfrase do verbo :
, ,
[...] (1.3)
Peo-vos, homens, se eu demonstrar que a me deles a
assassina de nosso pai, com inteno e premeditao [...]
(1.3)
Apenas as tradues portuguesa e espanhola13
mantiveram a
perfrase original, em que o uso de um verbo simples () com o adjetivo
() tem a funo no apenas de afirmar que ela matou o pai, mas de
caracteriz-la como assassina, de atribuir a ela essa condio. A traduo
francesa se utiliza de uma perfrase com substantivo (leur mre a commis
un meurtre avec intention et prmeditation sur la personne de mon pre) e
a inglesa emprega o verbo a que a construo se refere (my opponents
mother murdered our father), deixando de lado esse importante recurso na
argumentao, uma vez que a construo do carter da madrasta de
extrema importncia diante da falta de evidncias concretas.
12
(ser assassina), perfrase do verbo (assassinar). 13
Traduo espanhola: La madre de stos es de forma voluntaria y premeditada la asesina de mi padre e
traduo portuguesa: a me deles a assassina, com inteno e premeditao, de nosso pai
10
Traduo
(1) Sou novo e ainda inexperiente em assuntos jurdicos14
, homens, e
este processo est sendo difcil e terrvel para mim, se, por um lado, eu no
acusar os assassinos de meu pai, j que ele me instruiu a acus-los, e se, por
outro, acusando-os, for preciso estabelecer um litgio contra quem menos
deveria irmos de mesmo pai e a me desses irmos. (2) Pois o acaso e
eles prprios me foraram a estabelecer o processo contra eles mesmos, dos
quais era esperado que se tornassem vingadores do morto15
e meus
auxiliares16
. E agora, aconteceu o oposto disso: pois eles prprios se
estabeleceram como adversrios neste processo e como assassinos, da
forma que tanto eu como a ao penal afirmamos. (3) Homens, se eu
demonstrar que a me deles a assassina17
de nosso pai, com inteno e
premeditao18
, e que no uma, mas muitas vezes, foi pega em flagrante
tramando a morte, a morte dele19
, peo-vos que vingai, em primeiro lugar,
14
Conforme mencionado na pgina 4, esse tipo de promio em que o orador apresenta sua pouca idade e
inexperincia tem a funo de ganhar a simpatia dos jurados. 15
A questo da lealdade para com o pai, que impele o proponente a entrar na justia, est relacionada ao
conceito de , vocbulo comumente traduzido por vingana, mas que implica mais que uma
simples reparao, conforme Silva (2010), pois o vocbulo tambm guarda a noo de honra. Alm disso,
a tambm pode ser invocada como uma medida de salvaguarda, embora em Contra a madrasta
seja usado no sentido de reparao, tanto em relao ao morto quanto em relao s leis, que foram
desonradas. Dessa forma, Antifonte amplia o sentido da para alm da esfera privada do
proponente, levando o caso a uma dimenso maior: toda a cidade. 16
Perfrases do verbo e , formadas pelo verbo e os adjetivos e .
A transferncia do valor semntico do verbo para os adjetivos tem a funo de caracterizar negativamente
os irmos, uma vez que a vingana do morto e a proposio da ao penal tambm responsabilidade
deles. Alm disso, ao colocar os irmos no plo da acusao, o proponente consegue hostiliz-los perante
os jurados, pois conforme afirma Carey (1994), a acusao de parentes tinha um impacto negativo em
uma sociedade que atribui grande valor solidariedade familiar. 17
Perfrase do verbo , utilizada como exemplo no tpico que introduz as categorias de anlise (ver
pg. 9) 18
Antifonte destaca vrias vezes durante o discurso o fato da premeditao do crime um agravante
segundo as leis atenienses. Loomis (1972), em seu artigo The Nature of Premeditation in Ahenian Law,
apresenta um quadro detalhado dos procedimentos judiciais para discutir a natureza da premeditao para
os atenienses. Segundo o autor, h cinco tipos de cortes diferentes para julgar os casos de assassinato ou
agresso vida. No Arepago eram julgadas as causas de assassinato e de agresso premeditados,
incluindo envenenamento. Para o crime, a pena poderia ser o exlio ou a execuo, alm do confisco dos
bens do acusado. Para saber mais sobre as cortes atenienses para homicdio e sobre os procedimentos
legais, ver Sealey (1983). 19
Repetio do artigo: (a morte, a morte dele) ver pgs. 7 e 8
11
as leis, as vossas leis20
, as quais recebestes dos deuses e dos antepassados
e, de acordo com isso mesmo, estais julgando em relao condenao21
deles. Em segundo lugar, vingai aquele que morreu e, ao mesmo tempo,
ajudai a mim, que fui deixado sozinho22
. (4) Pois vocs so aqueles que
devem fazer isso23
, porque aqueles que deviam se tornar vingadores do
morto e meus auxiliares24
, tornaram-se os assassinos dele e se
estabeleceram como meus adversrios. A que auxiliares uma pessoa deve
recorrer, ou em que outro lugar procurar abrigo25
, seno junto a vs e
justia?
(5) Eu estou surpreso tanto com o meu irmo, por ele ter tido, em
algum momento, uma certa opinio, com a qual se colocou como
adversrio contra mim, quanto com o fato de ele considerar que isso
piedade no entregar a me. E eu penso ser muito mais profano
abandonar o resgate da honra26
daquele que morreu, ou melhor, daquele
que morreu involuntariamente de premeditao, do que daquela que matou
20
Repetio do artigo: (as leis, as vossas leis), com a funo de atrair os
jurados para a causa, responsabilizando-os por vingarem as leis, pois a afronta no foi feita s ao
proponente, mas tambm s leis, cuja responsabilidade pelo cumprimento o orador atribui a eles (ver pgs.
7 e 8). 21
Perfrase do verbo (condenar): (julgar em relao
condenao). Gagarin (1997) afirma que essa uma perfrase de difcil entendimento. Ao contrrio das
outras perfrases, ela formada pelo verbo (julgar), que no se encaixa na classificao de verbo
simples, e pelo substantivo , precedido pela preposio . Seu uso retira o foco da simples
ao de condenar e o coloca no processo de julgar pela condenao, direcionando a deciso para a
condenao e no deixando aos jurados a opo de um julgamento diferente desse. 22
Esse apelo tem a funo de despertar um sentimento de pena nos jurados, e, consequentemente, de
atrair a boa vontade dos juzes para a causa. 23
: Em seu comentrio sobre o discurso Contra a Madrasta, Gagarin (1997)
afirma que o termo , de necessrio, passou a significar famlia (related by blood), conforme
sua traduo You are now my family. Porm, quando usado para pessoas, pode designar, alm de um
vnculo de sangue, um vnculo por obrigao o que parece ser mais adequado ao caso em questo, j
que os jurados so as pessoas a quem se deve recorrer para buscar a reparao; essa a obrigao deles. 24
Repetio da mesma perfrase que ocorre em 1.2, conforme nota 16. 25
Perfrase do verbo (refugiar-se): (encontrar refgio). A transferncia
do valor do verbo para o substantivo () retira o foco da ao e o coloca na situao,
dramatizando a situao em que o proponente foi deixado, e tentando, assim, sensibilizar a audincia
atravs do sentimento de pena. 26
: conforme mencionado na nota 15, a palavra pode
significar tanto vingana quanto honra. Optei por traduzir aqui como honra, pois o vocbulo aparece em
uma construo antittica e se refere tambm a madrasta, que est sendo processada e tendo sua imagem
abalada com a acusao.
12
voluntariamente com inteno27
. (6) E ele no dir isso: que ele est certo
de que a me dele no matou o pai, o nosso pai28
. Pois sobre as coisas das
quais ele tinha a possibilidade29
de conhecer com clareza, mediante
interrogatrio com tortura30
, no quis saber, mas sobre as coisas que ele no
tinha a possibilidade de investigar, isso sim foi objeto do seu esforo31
. De
fato, isso mesmo isso que eu tambm propus descobrir era preciso ser
objeto do esforo dele, a fim de que o que foi feito fosse revelado. (7) Pois
caso os escravos no concordassem comigo, tanto ele, conhecendo bem os
fatos, poderia se defender e partir avidamente contra mim, como a me dele
poderia se livrar dessa responsabilidade. A partir do momento em que ele
no quis fazer a averiguao dos atos cometidos32
, como cabe a ele
conhecer esses fatos que no quis investigar? Ento, jurados, como
verossmil que ele saiba das coisas cuja verdade ele no aceita?
27
Anttese contrastando a morte do pai, que foi involuntria, e o ato premeditado de assassin-lo, por
parte da madrasta. Esse tipo de anttese opondo assassino e assassinado aparece com freqncia no
discurso, inclusive com as mesmas estruturas de particpio, que tambm so recorrentes Antifonte se
refere tanto ao pai quanto madrasta com os particpios do verbo (morrer) e
(matar): (aquele que morreu) versus (aquela que matou). 28
Repetio do artigo: (o pai, o nosso pai), enfatizando o assassinato do pai pela
madrasta. 29
Perfrase formada por um nome abstrato ( - possibilidade) e o verbo no lugar de um verbo
simples ( ser possvel): o objetivo dessa perfrase deixar claro que o acusado tinha a possibilidade
de conhecer os fatos claramente. 30
Gagarin (1996), no artigo intitulado The Torture of Slaves in Athenian Law, faz uma anlise sobre o
funcionamento do na lei ateniense e na oratria judicial. significa originalmente pedra
de toque para identificao de ouro e seu significado se estendeu a qualquer teste para identificar a
genuinidade de algo ou de algum. No mbito dos discursos judiciais comumente traduzido por
interrogatrio sob tortura. O consiste na tortura de escravos inocentes a fim de verificar
informaes para uma causa particular. Gagarin denomina esse tipo de tortura de tortura evidenciria, em
contraste com outros dois tipos comuns de tortura: a penal (aplicada como punio) e a judicial (na qual
apenas uma das partes realiza o interrogatrio). A tortura evidenciria era realizada pelas duas partes, pois
era proposta como um desafio, e possua regras especficas. Em Contra a Madrasta, o proponente
desafiou os irmos a realizarem o interrogatrio mediante tortura dos seus escravos a fim de verificar os
fatos. O testemunho dos escravos s era reconhecido se fosse tomado mediante tortura e era mais efetivo
que o relato de testemunhas livres. 31
Perodo antittico. Aristteles, no Livro III da Retrica, aponta as construes antitticas como forma
de tornar o discurso mais claro e facilitar seu entendimento. 32
Perfrase do verbo (por prova, averiguar), formada pelo verbo e pelo substantivo
(argumento), colocando o foco na situao de averiguar os fatos mediante tortura, e no na
simples ao de averiguar algo.
13
(8) Enfim, o que ele falar em sua defesa me preocupa. Pois da tortura33
dos escravos ele bem sabia que a me dele no podia ser salva, mas
pensava que a salvao estava no fato de no realizar a tortura pois
imaginaram que os acontecimentos seriam mantidos em segredo com isso.
(9) Pois eu quis torturar os escravos deles, que sabiam que, h muito, esta
mulher, a me deles, estava planejando a morte do pai, do nosso pai34
, por
envenenamento; que o meu pai a pegou em flagrante; e que ela no era
aquela que diz no35
, exceto que ela declarava ter dado a droga no para a
morte, mas como poo do amor. (10) Por causa disso, ento, eu quis fazer
uma tortura de tal tipo em relao aos escravos: aps registrar em um
documento as coisas das quais eu estou acusando esta mulher, recomendei
que eles prprios se tornassem torturadores36
na minha presena, a fim de
que dissessem, sem serem forados, o que quer que eu perguntasse37
. Pois
para mim, bastava fazer uso dos testemunhos por escrito. E isso se tornou
essa evidncia legal para mim de que eu estou processando o assassino do
meu pai com retido e justia. E se os escravos se tornarem contestadores
ou disserem depoimentos discordantes a tortura os foraria a apresentar a
acusao dos fatos. Pois ela tambm far aqueles que preparam as mentiras
dizerem a verdade para apresentar a acusao. (11) Na verdade eu sei muito
bem que se eles, tendo vindo at mim assim que lhes fosse relatado que eu
33
O termo ser traduzido apenas como tortura daqui em diante. 34
Repetio do artigo referente ao pai, enfatizando o mal que o pai sofreu. 35
Perfrase do verbo (recusar, negar, dizer que no), formada pelo verbo e o adjetivo
(aquele que nega). uma perfrase de difcil traduo, pois o adjetivo no tem um
correspondente em portugus (a negadora, por exemplo). uma noo mais comumente traduzida por
uma perfrase (aquela que nega). A funo dessa perfrase caracterizar a madrasta como o tipo de pessoa
que no nega o que faz, e por essa razo, por no ter negado o que fizera, culpada. 36
Perfrase do verbo (interrogar mediante tortura), formada pelo verbo e pelo
substantivo (interrogador, torturador), com o objetivo de chamar ateno para a situao
proposta pelo acusador: os acusados interrogarem os prprios escravos, o que no era a prtica comum,
conforme nota seguinte. 37
Um desafio de fornecia detalhes sobre quando e onde ocorreria a tortura e quais questes
seriam perguntadas. Os escravos respondiam sim ou no apenas. O desafio era registrado por escrito e
observado por testemunhas. A parte contrria poderia aceit-lo, rejeit-lo ou propor modificaes. Se o
desafio fosse aceito, o escravo era interrogado na presena do dono, pela parte contrria na ao (Gagarin,
1996). O proponente em Contra a Madrasta prope um interrogatrio em que os prprios donos dos
escravos pudessem interrog-los e usa a recusa deles em aceitar o desafio como evidncia a seu favor.
14
processaria o assassino de meu pai, quisessem entregar os escravos que eles
tinham e eu no quisesse receb-los, eles apresentariam esses prprios fatos
como as maiores evidncias de que no so culpados pelo assassinato. Pois
na realidade, eu sou aquele que quer que se tornar o prprio torturador38
,
porm, j que ordeno a eles mesmos tortur-los diante de mim, verossmil
para mim que esses mesmos fatos so evidncias de que eles so culpados
pelo assassinato. (12) [Pois se, mesmo querendo entreg-los para tortura eu
no os recebesse, esses fatos seriam uma evidncia para eles. Ento, que
isso se torne tambm evidncia para mim, se verdade que, quando eu quis
fazer a averiguao dos fatos, eles no quiseram entregar os escravos]39
. A
mim parece ser terrvel se, por um lado, eles tentam implorar a vocs para
no votarem contra eles, enquanto por outro, eles no consideram justo se
tornar jurados deles mesmos ao permitir torturar os prprios escravos. (13)
Em relao a esses fatos, no est oculto que eles evitaram investigar a
clareza das coisas feitas. Pois eles sabiam que o mal relacionado a eles
estava prestes a se revelar, de modo que, mantendo o crime em silncio e
sem interrogatrio, quiseram deix-lo de lado. Mas vs certamente no
deixareis, homens, eu bem sei, mas buscareis a clareza40
.
Ento, at aqui, isso em relao aos acontecimentos, tento contar
a vs a verdade. Que a justia governe!41
(14)42
Havia um piso superior na nossa casa, no qual o Filneo ficava
quando passava um tempo na cidade um homem belo, bom e amigo do
38
Mesma perfrase mencionada na nota 36, porm aqui se refere ao prprio acusador. Possui a mesma
funo de colocar o foco na situao: o proponente queria realizar a tortura, e, de fato, essa era uma
atribuio que lhe cabia, mas ainda assim ele props que os acusados fossem os torturadores, de forma
que isso uma evidncia clara a seu favor. 39
Segundo Mirhady (1996), em quase todos os relatos, os desafios para realizao de interrogatrio com
tortura foram recusados e no h relatos de casos em que a tortura tenha acontecido como resultado de um
desafio. 40
O argumento da recusa dos acusados em realizar a tortura, o nico argumento relevante de que o orador
dispe, explorado pela repetio, desde a seo 6 do discurso. 41
Metfora. Aristteles, no livro III da Retrica, recomenda o uso de metforas nos discursos, desde que
sejam claras e de fcil entendimento. 42
Incio da narrativa dos fatos.
15
nosso pai. Ele tinha tambm uma concubina, que ele estava a ponto de
colocar em um prostbulo. Ento, ao perceb-la, a me do meu irmo se fez
amiga dela. (15) Percebendo que a concubina estava a ponto de ser
injustiada, manda cham-la e, quando esta veio, disse-lhe que tambm ela
seria injustiada pelo pai, o nosso pai43
. Ento, se ela quisesse persuadi-lo,
disse ser suficiente para a concubina se fazer amvel ao Filneo e para ela,
se fazer amvel ao meu pai, afirmando ser isso uma descoberta dela e
servio da outra. (16) Ento, comeou a perguntar-lhe se ela queria fazer o
servio, a qual se comprometeu rapidamente, como penso. Depois disso,
por acaso, havia para o Filneo um templo dedicado ao Zeus Ctsio no
Pireu, enquanto o meu pai44
, estava prestes a navegar para Naxos. Ento,
pareceu uma boa ideia ao Filneo acompanhar o meu pai45
nesse caminho
at o Pireu, pois era amigo dele, e, ao mesmo tempo, aps fazer os
sacrifcios46
, oferec-lo um banquete. Ento, a concubina do Filneo
acompanhava-o por causa do sacrifcio. (17) E quando estavam no Pireu,
como natural, comeou a realizar o sacrifcio. E depois que sacrifcios
foram concludos por ele, ela comeou a deliberar como daria a poo a
43
Repetio do artigo: . Traz uma nfase ao termo em uma ocorrncia que,
embora no mencione diretamente o mal que foi feito ao pai, enfatiza de certa forma a atitude da madrasta
de julg-lo como algum ruim, que tramava contra ela. 44
Na seo 16 a repetio do artigo aparece duas vezes, mas em ambas foi traduzida pela forma concisa.
Nessa primeira ocorrncia, a estrutura seguida imediatamente pelo locativo , que parece ter
sido deslocado para a posio logo aps o verbo, para junto dessa estrutura, justamente para enfatizar o
fato de que o pai do proponente viajava para uma localidade diversa daquela em que ocorreu o
envenenamento de seu amigo. E foi justamente em razo da amizade com Filneo, mencionada tambm
com o uso da repetio do artigo, na linha seguinte, que o pai seguiu um caminho diferente, levando-o
situao do envenenamento. Assim, a repetio do artigo atribui um carter mais trgico morte do pai,
uma vez que seu destino aparentemente era outro. Considerando que a prpria estrutura da sentena j
marca bem a distino entre os destinos dos dois homens, e que a orao participial relativa da segunda
ocorrncia ( ) se encarrega de estabelecer a relao entre os homens e explica a mudana dos
planos, a estrutura pode ser traduzida pela forma concisa de uso do artigo. 45
Na seo 16, durante a narrativa dos fatos que precederam o crime a viagem do pai e seu encontro
com o Filneo , aparecem as trs nicas ocorrncias no discurso do termo pai com o adjetivo possessivo
de primeira pessoa do singular. Em todas as outras ocorrncias, o orador utiliza o possessivo no plural.
Nessas ocorrncias ainda no h menes ao mal que lhe foi feito, ao contrrio das outras. O orador
provavelmente utiliza essa alternncia entre os possessivos para deixar claro, principalmente quando fala
do crime, que o pai no apenas pai do acusador, mas tambm daqueles que se colocaram contra ele
nessa ao, contribuindo para a hostilizao deles em relao falta de solidariedade familiar. 46
O discurso no fornece informaes suficientes para se determinar o tipo de sacrifcio que Filneo
ofereceu ao Zeus Ctsio. Os gregos ofereciam aos deuses o sangue de animais e as ddivas de primcias
da alimentao, que provinham da caa, da pesca ou da colheita de frutos (BURCKET, 1993).
16
eles, se antes ou depois do jantar. Ento, ao planejar, lhe pareceu ser
melhor dar o veneno depois da refeio, servindo, ao mesmo tempo, aos
propsitos desta Clitemnestra47
, a me deles. (18) Com relao aos outros
detalhes, a histria da refeio seria longa demais tanto para eu narrar
quanto para vs ouvirdes: mas tentarei contar o restante com as palavras
mais breves possveis como ocorreu a administrao do veneno48
. Pois
quando fizeram a refeio, como natural enquanto um estava fazendo o
sacrifcio e recebendo o amigo, o outro estava prestes a navegar e jantava
na casa do companheiro dele eles comearam as libaes e colocaram
incenso sobre eles prprios49
. (19) E a concubina do Filneo serviu o
veneno ao mesmo tempo em que servia o vinho para a libao50
deles,
enquanto faziam suas preces, as quais no seriam atendidas. E, imaginando
agir de forma inteligente, deu mais a Filneo, pois ainda no havia
percebido que fora enganada pela madrasta, a minha madrasta51
, antes que
o mal j estivesse ocorrido. J ao pai, ao nosso pai52
, deu menos. (20)
Depois que eles fizeram as libaes, entregando-se assassina deles
prprios, bebem o ltimo gole. E o Filneo morre naquele mesmo instante,
47
Personagem mitolgica, esposa de Agammnon, que premeditou seu assassinato como vingana pelo
sacrifcio de sua filha Ifignia. 48
Perfrase do verbo (dar), formada pelo verbo e pelo substantivo (a
administrao). A funo dessa perfrase retirar o foco da ao de dar o veneno e colocar na situao
narrada, em como foi administrado o veneno. A concubina do Filneo, seguindo as ordens da madrasta,
deu o veneno aos dois homens quando eles terminaram o jantar, pensando tratar-se de uma poo
afrodisaca. 49
A queima de incenso faz parte dos rituais religiosos, assim como as libaes, os sacrifcios e as preces.
(BURCKET, 1993). 50
As libaes eram atividades sacrificiais e consistiam no derramamento de lquidos. A palavra usada
para se referir s libaes , e se refere s libaes com vinho. A libao a forma mais pura de
renncia, pois aquilo que foi derramado no pode ser recuperado (BURCKET, 1993). 51
Repetio do artigo, (a madrasta, a minha madrasta). Essa a nica vez, em todo
o discurso, que ela mencionada como madrasta do acusador. Em geral essa figura tratada como me
dos irmos, com o substantivo , ou como ela, com o adjetivo . Porm, em alguns momentos, o
orador se refere a ela como esta esposa, esta Clitemnestra, a responsvel e at a assassina. Aqui, o termo
tem a funo de agente da passiva. Embora construes passivas enfatizem o
paciente da ao, a repetio do artigo chama a ateno ao carter da madrasta. O trecho selecionado
narra a forma como o veneno foi administrado pela concubina do Filneo, mas, ao final, menciona a
madrasta para no focar ou desviar a culpa para a outra mulher. 52
Repetio do artigo: (ao pai, ao nosso pai): repetio enfatizando o fato de que o
pai foi envenenado com uma dose menor. Foi graas a isso que ele ainda sobreviveu por alguns dias e
pode narrar os fatos ao filho e pedir-lhe que honrasse a sua morte quando tivesse a idade para tal.
17
imediatamente, enquanto o pai, o nosso pai53
, pega uma doena, da qual
tambm morreu, vinte dias depois. Em face dessas coisas, a mulher que
serviu madrasta e executou o servio com as prprias mos tem o castigo
do qual era merecedora, mesmo no sendo culpada pois aps ser
torturada na roda, foi entregue ao carrasco54
e a verdadeira culpada, que
sabia e concebeu o plano, ter o castigo que merece, se vs e os deuses
quiserem.
(21) Ento, refleti sobre o quo mais justo o que vos pedirei em
relao ao que meu irmo pedir. Pois eu vos convoco a se tornarem
vingadores do homem que morreu e que foi injustiado pela eternidade55
.
Este nada vos pedir em relao ao que est morto, que digno de
conseguir de vs compaixo, auxlio e honra ele que abandonou a vida
sem deus e sem gloria, antes do tempo fixado pelo destino, devido queles
que menos deveriam56
(22) mas pedir, em favor daquela que matou,
coisas ilcitas, profanas e vs, que no deveriam ser ouvidas nem pelos
deuses e nem por vs, rogando-vos em relao quilo que ela mesma no
se convenceu de que no usara de ardil57
. Mas vs no sois os auxiliares
daqueles que matam, mas daqueles que morrem por premeditao, e essas
coisas pelas quais eles menos deveriam morrer. Agora, ento, est em
vossas mos decidir isso corretamente que vs faais isso tambm. (23)
Ele vos pedir pela me dele que est viva, e que matou aquele de forma
premeditada e mpia, a fim de que ela no sofra a punio se vos persuadir
53
Mais uma repetio do artigo: , em outra meno ao mal sofrido por ele. A
repetio do artigo nas sentenas que mencionam o mal que o pai sofreu tentam sensibilizar os jurados,
lembrando-lhes o tempo todo da injustia que foi cometida contra ele, para que eles se comovam com a
morte do homem. 54
As rodas eram instrumentos de tortura utilizados na Grcia. Provavelmente, a concubina recebeu a
tortura punitiva mencionada na nota 30. Cohen (2006) afirma que a tortura era um dos meios legais de
punio e era encontrada, de alguma forma, na lei ateniense. 55
Terceira ocorrncia da perfrase mencionada na nota 15, porm, agora, ela se refere aos jurados. Essa
uma forma de cham-los ao caso, de atribuir a responsabilidade de honrar o morto tambm a eles. O
orador ainda utiliza uma imagem um pouco exagerada, apelando para a comoo dos jurados, ao pedir
que se tornem vingadores daquele que foi injustiado pela eternidade. 56
Tentativa de ampliar as dimenses da injustia cometida e, assim, comover os jurados. 57
Anttese opondo aquele que morreu e aquela que matou.
18
sobre as coisas que ela errou. E eu imploro em nome do meu pai que est
morto, a fim de que ela seja punida de todos os modos por todas essas
coisas. E vs vos tornastes e fostes considerados juzes por causa disso
mesmo para que aqueles que agem injustamente sejam punidos. (24) E,
por um lado, eu mesmo acuso [dizendo] isso, para que seja feita a justia
para as pessoas que ela injustiou e que tanto o pai, o nosso pai, como as
leis, as vossas leis58
, sejam vingados nessa situao, suficiente que
tambm vs todos me auxiliem, se digo a verdade. Enquanto ele, ao
contrrio, se apresenta como auxiliar dela, a fim de que aquela que
despreza as leis no receba a punio das pessoas que injustiou. (25) E de
fato o que mais correto? Fazer justia quele que matou com
premeditao ou no? preciso sentir mais pena do homem que morreu ou
da mulher que matou?59
Eu penso que daquele que morreu pois tambm
seria mais justo e mais piedoso para vs tanto perante os deuses quanto
perante as pessoas. Portanto, agora eu penso que da mesma forma que ela
matou o meu pai sem piedade e sem compaixo, assim tambm ela prpria
deve morrer, devido a vs e tambm justia60
. (26) Enquanto ela planejou
matar voluntariamente, ele morreu involuntariamente e de modo violento.
Pois como no morreu de modo violento, homens, ele que pretendia
navegar desta terra aqui, e que jantava na casa de um amigo dele? E aquela
que enviou o veneno, ordenou que o dessem para ele beber e matou o nosso
pai? Como ento justo ela ter a piedade ou conseguir o respeito da parte
de vs ou de algum outro aquela mesma mulher que no considerou ter
pena do prprio marido, mas o matou de forma mpia e vergonhosa? (27)
Assim, seguramente, mais conveniente ter piedade em relao aos
58
Ultima repetio do artigo, similar quela que aparece em 1.3, em que o proponente atribui aos jurados
a responsabilidade pelas leis. Aqui ele tambm inclui o pai na vingana, como forma de mostrar que o
casos em questo o assassinato do pai e o desrespeito s leis dos jurados devem ser vingados. 59
Outra anttese opondo o morto e a assassina 60
No apelo final, as antteses so freqentes. O orador ope o tempo todo a madrasta e o pai, sempre
como aquele que morreu e aquela que matou. Aqui, a oposio deixa claro para os jurados que ocorreu
uma injustia e que ela precisa ser reparada da mesma forma.
19
sofrimentos inesperados do que em relao s injustias voluntrias e
premeditadas e aos delitos. E da mesma forma que ela o matou sem
vergonha e sem temor dos deuses, dos heris e dos homens, assim tambm
ela deve morrer por causa de vs e da justia, e no obter nem respeito,
nem piedade e nenhum constrangimento da vossa parte (28) E eu mesmo
estou surpreso com a audcia e com a inteno do meu irmo: o fato de
jurar, em favor da sua me, que est certo de que ela no fez essas coisas.
Pois como algum poderia saber bem essas coisas s quais ele no assistiu?
Pois, provavelmente, os que planejam as mortes no maquinam e se
preparam para essas coisas perto de testemunhas, mas, certamente, so
capazes de maquinar da forma mais secreta possvel, para nenhum dos
homens saber. (29) J os que so alvo de conspirao nada sabem, antes de
j estarem nessa situao ruim e de tomarem conhecimento da runa na
qual se encontram. E ento, se puderem ou tiverem tempo antes de morrer,
chamam os amigos e seus prprios parentes de sangue, do testemunho,
dizem a eles por quem foram destrudos, e recomendam-lhes vingar os que
foram injustiados. (30) Essas coisas o meu pai recomendou a mim, quando
sofria uma lamentvel e derradeira doena. Se falham em relao a essas
coisas, escrevem textos, chamam os escravos deles como testemunhas, e
deixam claro por quem foram destrudos. E ele me revelou esses fatos,
quando eu ainda era novo, e incumbiu a mim de dizer isso e no aos
escravos dele.
(31) Ento, que essas coisas sejam por mim narradas e que possam
servir de auxlio ao morto e s leis, enquanto est em vossas mos
examinar os fatos restantes e julgar as coisas justas, por vs mesmos. E eu
penso que aqueles que cometem injustia dizem respeito tambm aos
deuses do submundo.
20
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