literatura e fome

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Literatura e fome Profa. Ana Kiffer

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Page 1: Literatura e Fome

Literatura e fomeProfa. Ana Kiffer

Page 2: Literatura e Fome

Plano da aula

Quais os modos de expressão da fome na literatura? E o que significa representar (ou não) a fome no universo da palavra literária?

Romancistas da fome no Brasil – breve panorama, o caso de Graciliano Ramos

Do tabu à estética da fome: Josué de Castro e Glauber Rocha

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Tópico 1

• Quais os modos de expressão da fome na literatura?

Realismo / naturalismo:a) A literatura / a palavra / é um instrumento

capaz de “retratar”, “denunciar”, “registrar” a experiência da fome. (todo registro é sempre determinado por um discurso e a língua nunca é neutra)

b) A fome é normalmente vista sob a perspectiva da catástrofe coletiva.

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Precursor de uma literatura da fome no Brasil

• Trecho do livro de Rodolfo Teófilo intitulado A Fome (1890) que narra a grande seca do Ceará em 1878:

“O faminto não obedecia; e continuava a roer as unhas e a comer as escamas que se desagregavam da pele. Agora fitava o rosto de Carolina perto de si, completamente exposto e alumiado em cheio pela luz da fogueira. Percebia os tons daquela carnação, mas com o apetite da besta esfomeada. As narinas dilatam-se-lhe mais, fareja, sorve o cheiro daquela carne sadia na qual tem ímpetos de saciar a fome e rasgá-la a dentadas.(...) O delírio aumenta na esperança de mastigar as faces da moça.”(pg. 34)

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Olhares críticos sobre o romance A Fome

A violência imagética e estilística do texto de Teófilo

A certeza de que, sob a perspectiva científica e evolucionista, a fome representava uma regressão na escala humana – o homem animal, canibal, a besta, etc.

Homem puro instinto da fome X homem da razão – o homem que fala

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As fundações do “regionalismo” de 30

• Trecho do livro de Racquel de Queiroz, O Quinze(1930) que narra a seca do Ceará de 1915:

“Levantou-se, bebeu um gole na cabaça. A água fria, batendo no estômago limpo, deu-lhe uma pancada dolorosa. E novamente estendido de ilharga, inutilmente procurou dormir. A rede de Cordulina tentava um balanço para enganar o menino – pobrezinho! O peito estava seco como uma sola velha! – gemia estalando mais, nos rasgões.”

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Olhares críticos sobre o romance O Quinze

• Estilo mais ameno e poético da “descrição” de uma cena da fome

• Vocação conciliatória do romance – ricos e pobres, retirantes e proprietários

• Ao mesmo tempo valor inaugural por re-introduzir a temática no contexto da literatura nacional

• Questionando, por conseguinte, o domínio do sudeste e o modernismo paulistano

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O Regionalismo de 30

Movimento literário iniciado com o romance A Bagaceira (1928) de José Américo de Almeida

Confrontaram-se com o “velho mundo” que subsistia no Brasil mesmo após a utopia dos primeiros “modernistas”.

Mas também herdaram dos modernistas a entrada da oralidade na escrita, os “brasileirismos”, os “regionalismos léxicos e sintáticos”

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Principais Nomes e características da ficção de 30

José Américo de Almeida Racquel de Queiroz José Lins do Rego Graciliano Ramos

Ficção regionalista Ensaísmo social Aprofundamento da lírica moderna (o “eu” se

abre e fecha à sociedade e à natureza)

IN: Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira.

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Olhares críticos sobre a historiografia literária

Por que a pregnância ainda hoje do termo regionalismo?

Esse termo não isolaria também a problemática levantada pelos romancistas de 30?

O Nordeste de 30 não era o Brasil de 30?

E hoje?

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Tópico 1, segunda parte da pergunta

E o que significa representar (ou não) a fome no universo da palavra literária?

POR UM LADO: tradição de literatura e arte da fome no Brasil enquanto materialização de uma palavra de denúncia, de um engajamento do escritor diante de uma realidade insuportável, porta voz de um real que preferiríamos não lembrar nem conhecer;

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Sublinhando que essa palavra de denúncia foi realizada no seio da grande tradição literária, que é sempre burguesa, por escritores mais ou menos distantes da vivência da pobreza e da fome;

Vejamos como Graciliano Ramos pensou tal questão:

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TRECHO da CARTA de GRACILIANO RAMOS ao pintor CANDIDO PORTINARI

“A sua carta chegou muito atrasada, e receio que esta resposta já não o ache fixando na tela a nossa pobre gente da roça. Não há trabalho mais digno, penso eu. Dizem que somos pessimistas e exibimos deformações; contudo, as deformações e a miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram. O que à vezes pergunto a mim mesmo, com angústia, Portinari, é isto: se elas desaparecessem, poderíamos continuar a trabalhar? Desejaremos realmente que elas desapareçam ou seremos também uns exploradores, tão perversos como os outros, quando expomos desgraças?” (RAMOS, 1946, Acervo Projeto Portinari)

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Quadro Os Retirantes de Candido Portinari

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Essa tradição burguesa de narrar a fome é rompida nos anos sessenta com Carolina Maria de Jesus (Quarto de Despejo) e recentemente com o movimento da “literatura marginal” ou “estéticas da periferia”.

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Carolina Maria de Jesus que escreveu o Diário de uma favelada

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POR OUTRO LADO: alguns escritores mesmo distantes da realidade da pobreza deixaram que suas obras se contaminassem mais do que outras pela experiência da fome;

Vamos entender que algo da experiência da fome se aproxima do silêncio, daquilo que não encontra palavra, ou do que não se pode falar.

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Algumas obras literárias mais do que outras sofrem o impacto da fome sobre sua própria construção e são obrigadas a se interrogar sobre a sua possibilidade de representação da fome pela palavra.

Tocam o “impoder” da palavra ou como disse minha filha Clara: “como foi que a fome comeu os livros?”

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Tópico 2Graciliano Ramos, aqui retratado por Portinari

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Graciliano Ramos

1892-1953Escritor alagoanoEstilo seco anti-sentimentalNão consegue ser apreendido pela

crítica da época posto que desconstrói as categorias de:

Realismo / regionalismo/ ruralismo / romance psicológico e romance social

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Auto-Retrato

Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas / Casado duas vezes, tem sete filhos/Altura 1,75. Sapato n 41. Colarinho n 39 /Prefere não andar / Não gosta de vizinhos /Detesta rádio, telefone e campainhas /Tem horror às pessoas que falam alto /Usa óculos. Meio calvo /Não tem preferência por nenhuma comida/ Não gosta de frutas nem de doces /Indiferente à música/ Sua leitura predileta: a Bíblia/Escreveu Caetés com 34 anos de idade/ Não dá preferência a nenhum de seus livros publicados/ Gosta de beber aguardente/É ateu. Indiferente à Academia/ Odeia a burguesia. Adora crianças/ Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antonio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz/Gosta de palavrões escritos e falados/ Deseja a morte do capitalismo /Escreveu seus livros pela manhã/ Fuma cigarros Selma (três maços por dia)/ É inspetor de ensino, trabalha no Correio da Manhã/ Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo/ Só tem cinco ternos de roupa, estragados/Refaz seus romances várias vezes/ Esteve preso duas vezes/É-lhe indiferente estar preso ou solto/Escreve à mão/ Seus maiores amigos: Capitão Lobo, Cubano/José Lins do Rego e José Olympio/Tem poucas dívidas /Quando prefeito de uma cidade do interior, Soltava os presos para construírem estradas/Espera morrer com 57 anos.

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Vidas Secas – Capa da Primeira Edição

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Vidas Secas

O livro narra o episódio de uma família de retirantes da seca. A família é composta pelo vaqueiro Fabiano, sua mulher Sinhá Vitória, dois filhos, chamados de “o menino mais velho” e “o menino mais novo” e a cachorra Baleia.

Único romance em terceira pessoa escrito pelo autor– o silêncio torna-se grande personagem da narrativa.

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Ao dar nome tão grandioso à cachorra e não nomear os filhos do casal, Graciliano indica a aspereza desse universo.

Como se sabe, o medo de que as crianças não sobrevivessem à fome e à miséria do sertão brasileiro fazia com que inúmeras famílias simplesmente não dessem nome aos seus filhos até uma certa idade.

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Cena de Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos

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O choque que o autor busca fazer (provocar?) é justamente o de mostrar um mundo onde os humanos se animalizam e os animais se humanizam. Uns e outros chegam a um termo comum. Próximo.

Ao aproximar o homem do animal, o escritor busca, antes de tudo, interrogar quais são os limites que definem o que é ser humano.

Diferente de Teófilo Graciliano não bestializa o homem faminto.

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Mas o que aproxima e o que diferencia para Graciliano o homem do animal? Se já não é somente a crença na superioridade da razão e da linguagem?

Isso pode ser entendido quando do episódio em que o Papagaio da família é comido pelos outros viventes, membros da família.

A cachorra Baleia, come os restos do Louro mas, segundo o narrador, não guarda lembrança disto.

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A memória diferencia Fabiano, Sinhá Vitória e as crianças, de Baleia e o Papagaio. Partimos do fato que todos são bichos, semelhantes, corpos da fome, onde vemos que o humano não se caracteriza mais naquilo que nos é dado reconhecer, como, por exemplo, a razão, a fala ou a inteligência. Mas chegamos a um traço de diferenciação: esse traço é a memória e sua intima relação com a morte.

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a cachorra é também mais um entre os viventes e esta sente, como os outros, medo, angústia, fome e sonha, sonha com um mundo cheio de preás.

Baleia sente tudo isso mas desconhece a morte do amigo e, por conseguinte, a sua própria morte.

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Baleia desconhece ter comido ao próprio amigo. Entre a inocência e o horror, somos levados a crer que algo da memória é constitutivo de um horizonte ético e, por conseguinte, mais humano.

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Tópico 3: Josué de Castro

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“Josué do mangue” Nascido em Recife, em 1908. Formado em Medicina pela

Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil, em 1929.

Convidado oficial de Governos de vários países para estudar problemas de alimentação e nutrição. Entre eles : Argentina (l942), Estados Unidos (l943), República Dominicana (l945) , México (l945), França (l947).

Chefe da Comissão que realizou o inquérito sobre as Condições de Vida das Classes Operárias do Recife (primeiro inquérito desta natureza levado a efeito no país), 1933.

Presidente do Conselho da Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO), 1952 e 1956.

Embaixador do Brasil na ONU, em Genebra, 1962 a 1964. Demitiu-se em virtude do golpe militar de 31 de março de 1964

que, através do Ato Institucional Nº.1, lhe cassaria os direitos políticos, em 09 de abril do mesmo ano.

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Memória X Tabu

O Tabu da fome – termo empregado por Josué de Castro em 1945;

O médico e nutricionista de Recife se deparou com a escassez de material acerca da fome;

Seu livro A Geografia da Fome – o dilema brasileiro pão ou aço é pioneiro no estudo da fome no Brasil

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O Tabu da Fome

Nesse livro defende que um verdadeiro tabu da fome se deve, por um lado, ao impedimento de ordem político e econômico – é preciso que não se saiba muito sobre esse assunto para que a miséria continue a ser produzida

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Por outro lado, nos mostra que a fome, tal como o sexo é um instinto, e o homem racional dele tem vergonha, foi “ensinado” a ele esconder os seus instintos:

“Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura. Foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica (...) que tornaram a fome um tema proibido”. Josué de Castro.

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“Será a calamidade da fome um fenômeno natural inerente à própria vida, uma contingência irremovível como a morte? Ou será a fome uma praga social criada pelo próprio homem? Eis o delicado e perigoso assunto debatido nesse livro. (...) tão delicado e perigoso por suas implicações políticas e sociais que até quase os nossos dias permaneceu como um dos tabus da nossa civilização – uma espécie de tema proibido ou pouco aconselhável para ser abordado publicamente” Josué de Castro

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Pontos para discutir

A questão da memória em Graciliano Ramos

A questão da memória em Vidas Secas

A memória X o tabu da fomeA vergonha de nossa fome

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do tabu à estética da fome

Anos sessenta – uma outra cultura marginal

Samba, tropicalismo, parangolésCinema novo – Glauber Rocha1965 – Estética da fome – texto para

ser lido no festival de cinema latino americano em Gênova

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Trecho de A Estética da Fome de Glauber Rocha

“Desse modo nós definimos nossa cultura como uma cultura da fome. Nós compreendemos esta fome que o Europeu e o Brasileiro, em sua maioria, não compreendem. Para o Europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o Brasileiro é uma vergonha nacional. Ele não come, mas ele tem vergonha de dizer e, sobretudo, ele não sabe de onde vem essa fome”

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Glauber Rocha – o pensador vulcão do Brasil

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Glauber e a estética da fome

Texto manifesto que participa da divulgação no exterior do movimento cinema novista (1955 – Rio quarenta graus de Nelson Pereira dos Santos)

Maior característica do estilo do cinema novo – cinema anti-sentimental, anti drama latino americano

Estética da fome amplia as teses de Josué para âmbito cultural

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Depoimento de Glauber ao cineasta Manuel Carvalheiro

"Faz cinco dias que não como. Faz cinco dias que vomito. Não estou longe da Estética da Fome“

O fim de Glauber e de Josué marcaram tragicamente também o fim de uma época de utopias revolucionárias

Tanto um quanto outro sofreram o impacto do exílio

Seus textos e filmes foram esquecidos por mais de vinte anos no Brasil

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Para discutir, para refletir...

O Traço da cordialidade e do hibridismo solidificaram um imaginário sobre a cultura brasileira

A fome seria também um desses traços porém impedido de vir a tona? Teses do Tabu e da estética da fome.

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Se tomamos a lição do “tabu da fome” entendemos sempre que falar da fome é algo ou desconfortável ou paradoxal. Desconfortável porque implica levantar um recalque social e subjetivo, enfrentar o que Glauber Rocha, na esteira de Josué chamou ser “a vergonha de nossa própria fome”. Paradoxal porque falar da fome pressupõe o fato de que tenhamos sido alimentados. Pressupõe o fato de que rompemos a barreira primordial do silêncio, mas ao mesmo tempo, pressupõe essa cisão que é falar sempre de onde já não se está, falar já deslocado de si mesmo e do outro, falar falhado.

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No caso da literatura e da fome esse paradoxo se estende para o seguinte: para escrever hei de ter comido. Então, pergunto: teremos sempre o corpo sem palavra da fome ou a palavra sem corpo da literatura? Uma literatura da fome é impensável e impossível? Diria inicialmente que a fome é o próprio fora da literatura, que vêm cutucá-la, remetendo-a para seus próprios limites de palavra errante e sem corpo.