linguagem e verdade - uma análise da lógica de frege - textuais
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Em “Sobre o Sentido e a Referência”, Frege anuncia uma ruptura comseus trabalhos anteriores, notadamente a Conceitografia, na qual ele haviaassumido que a igualdade era referente aos nomes e sinais representativosdos objetos. Como consequência dessa negação, Frege apresenta a estruturade Sentido e Referência, como alternativa às possibilidades anteriormenteapresentadas. Em decorrência dessa ruptura, a dimensão da filosofia analíticadesenvolvida por Frege se amplia, revelando um complexo sistema no qual overdadeiro se torna o ponto fundamental. Mostramos que, no processo dereformulação do significado do verdadeiro, Frege diferencia, ainda nosFundamentos da Aritmética, o domínio do campo objetivo efetivo do campoobjetivo não-efetivo, espaço lógico no qual as leis do ser verdadeiro encontramlugar como referência para as proposições que expressam o pensamentoanalítico. Visamos demonstrar que, partindo dessa fundamentação inicial, oautor almeja estabelecer uma conexão ontológica entre o pensamento e as leisdo ser verdadeiro, o que lhe permite distinguir, em “Sobre o Sentido eReferência”, o pensamento que expressa uma representação ou ideia,pertencente ao domínio subjetivo, do pensamento que expressa as leis do serverdadeiro, e que podem ser transmitidas em gerações, por pertencerem aodomínio objetivo não-efetivo. Buscamos estabelecer uma conexão entre essasdiretrizes e a concepção de pensamento fregiano, justificando a composiçãodeste como sendo uma estrutura que atende ao princípio de saturação, quenão se articula na forma sujeito/predicado e que, para poder atender ànecessidade lógica de passar do sentido para a referência e ser nomeadocomo o verdadeiro, se articula com a lógica extensional e, em um sentido aindamais intrínseco, com uma lógica da existência, que surge como a estruturabasilar na qual se fundamenta o juízo, e sem o qual não poderia haver avalidação ontológica do pensamento analítico de Frege.TRANSCRIPT
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8SUMRIO
INTRODUO..........................................................................................................9
O Contexto da Obra de Frege.............................................................................9
Dificuldades com o conceito de verdade..........................................................12
1. NOVIDADE DE SENTIDO E REFERNCIA NA FILOSOFIA DE FREGE.....................19
2. A ESTRUTURA FILOSFICA FREGIANA...............................................................37
2.1Objetividade e Subjetividade.......................................................................38
2.2Unidade no Pensamento e Sentido..............................................................47
2.3Referncia e Nomes Prprios.......................................................................61
2.4Conceito e Objeto na Conexo Lgica entre Linguagem e Mundo...............66
3. O VERDADEIRO: LGICO E ONTOLGICO.........................................................74
3.1 A Generalidade Quantificacional................................................................75
3.2 A concepo de existncia de Frege...........................................................80
3.3 O Verdadeiro e o Quantificador Existencial.................................................87
CONCLUSO.........................................................................................................91
BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................95
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9INTRODUO
O Contexto da Obra de Frege
Gottlob Frege foi o filsofo matemtico que fundou o logicismo e, em certa
medida, a filosofia analtica. Da necessidade de fundamentar a prpria matemtica,
Frege se lanou lgica, com o intuito de retir-la da psicologia e do empirismo. As
mudanas de Frege, desde a introduo da funo como forma de clculo de
predicados na Conceitografia (Begriffsschrift, 1879), substituindo o binmio sujeito-
predicado, alm de todas as inovaes acerca dos conceitos, transformou a lgica.
Todas as mudanas realizadas por Frege no decorrer de suas obras no se devem
apenas introduo de mtodos ou de alguns elementos complementares lgica,
mas sim a uma nova forma de articular o pensamento, no intuito de definir a relao
entre verdade e lgica de forma mais adequada do que at ento havia sido
possvel.
De acordo com Santos (2008):
A lgica funda, admitiria Frege, a arte de pensar corretamente, na exatamedida em que das leis lgicas podem ser derivadas prescries sobrecomo pensar de acordo com a verdade, mas ela o faz na qualidade decincia do ser verdadeiro enquanto tal. A uma cincia impe-se, antes detudo, elucidar o contedo de seus conceitos primitivos e a natureza de seusobjetos mais caractersticos. lgica impe-se, antes de tudo, elucidar oconceito de verdade e a natureza daquilo a que mais diretamente dizemrespeito as leis do ser verdadeiro, aquilo a que mais propriamente se aplicaesse conceito.1
Como cincia do ser verdadeiro enquanto tal, cabe lgica elucidar o
conceito de verdade, mas realizar tal tarefa, na concepo fregiana, implica
empreender uma reviso sobre o que se entende por verdade e, igualmente, a que o
conceito de verdade pode ser atribudo. um fato, no apenas em Frege, mas em
toda a tradio filosfica, que lgica e verdade sempre estiveram intrinsecamente
relacionadas e, em Frege, a relao entre elas se mantm pois, segundo o autor:
Assim como a palavra "belo" assinala o objeto da esttica e "bem" assinalao objeto da tica, assim tambm a palavra "verdadeiro" assinala o objeto dalgica. De fato, todas as cincias tm a verdade como meta, mas a lgicaocupa-se dela de forma bem diferente. Ela est para a verdadeaproximadamente como a fsica est para o peso ou o calor. Descobrirverdades a tarefa de todas as cincias: cabe lgica, porm, discernir asleis do ser verdadeiro (Wahrsein).2
1 SANTOS, L.H.L dos. O Olho e o Microscpio, pg. 42.2 FREGE, G. O Pensamento, trad. Alcoforado, in Anais de Filosofia, n 6, pg. 283.
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A verdade, tal como apresentada aqui, como objetivo e meta a ser
descoberta, constitui-se como o foco das cincias. Todavia, a lgica se relaciona
com ela pelo fato de ter como meta as leis do ser verdadeiro, e no aquilo que
podemos denominar verdades. Existe um aspecto de anterioridade da lgica em
relao s demais cincias, na medida em que s podemos julgar as verdades a
partir das leis do ser verdadeiro. Portanto, a prpria cincia pareceria depender do
desenvolvimento da lgica para validar seu mtodo.
No entanto, h que se notar que a lgica aqui referida deve ser abordada em
seus pormenores, uma vez que, em meados do sculo XIX, muitas mudanas
ocorreram em seu desenvolvimento, dando origem a duas vertentes diferentes da
lgica. Esta, aos tempos de Frege, encontrava-se dividida em duas escolas muito
distintas. De um lado, encontramos a lgica anti-formalista e empirista de John
Stuart Mill (1806-1873) e seus seguidores como Sigwarth (1830-1904) e Lipps
(1851-1947), na Alemanha. Do outro, temos a lgica relacionando-se com a
matemtica, como vemos em Boole (1815-1864), De Morgan (18061871), Peirce
(18391914) e Peano (18581932) que, fazendo uso da juno de elementos da
lgebra e da aritmtica com a lgica, conseguiram ampliar os horizontes desta para
alm daquilo que a lgica formal clssica e a lgica empirista conseguiam alcanar.
A aproximao de ambas, lgica e matemtica, todavia, se deu em
momentos e direes diferentes. Em um primeiro movimento, a matemtica se
apresentar como um instrumento de auxlio e ampliao da lgica. Em um segundo
momento, contrariamente, a lgica servir de suporte para a matemtica,
encontrando um ponto de equilbrio no pensamento de Frege.
Esse segundo momento se d em meados do sculo XIX quando, no ncleo
da prpria Matemtica, surgir uma necessidade de fundamentao, na qual a
Lgica ser buscada, para justificar e demonstrar a validade dos axiomas
matemticos.
Inmeras descobertas da poca foram cruciais para abalar os alicerces da
crena sobre a auto-validao da aritmtica. Dentre elas, podemos destacar
principalmente a questo da concepo de conjuntos infinitos de tamanhos
diferentes, desenvolvida pela Teoria dos Conjuntos de Georg Cantor, alm da
fundamentao emprica da aritmtica oferecida por John Stuart Mill. Tais situaes
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levariam Bertrand Russell a comentar com ironia, que "as matemticas so uma
cincia em que no se sabe de que se fala nem se o que se diz verdadeiro3".
Para Kneale,
Uma vez que dvidas foram jogadas sobre a fiabilidade da intuio espacialcomo uma fonte de conhecimento matemtico, tornou-se necessrioreexaminar todas as provas atualmente aceites, e o resultado foi umareconstruo radical da matemtica por homens como Cauchy eWeierstrass. J foi dito, de fato, que nada foi satisfatoriamente comprovadona anlise antes do sculo XIX. Agora tanto na anlise como na geometria origor exige a formulao explcita de tudo que essencial para umademonstrao. E assim encontramos a ateno dirigida, no sculo XIX, paraas frmulas que fornecem definies implcitas dos vrios tipos deexpresses numricas.4
Essas frmulas, que se tornaram uma exigncia de rigor no sculo XIX,
tanto atuam como regra de clculo quanto como axiomas que, por um lado,
estabelecem as diretrizes e caminhos que se deve seguir e, por outro, podem ser
uma fundamentao de todo conjunto de conhecimentos que ganham espao nesse
perodo, sendo, no primeiro caso, orientados pelas leis gerais da lgica e, no
segundo caso, devendo seu prprio fundamento e origem s mesmas leis gerais.
Kneale questiona os critrios que levaram adoo dos axiomas e das frmulas,
decorrentes desse procedimento:
Se estas frmulas so consideradas como regra de clculo ou comoaxiomas a partir dos quais os teoremas devem ser calculados de acordocom as leis gerais da lgica no de grande importncia, desde que sejamestabelecidos plenamente e reconhecidos como fundamentais. Mas natural que se pergunte por que deve ter apenas estas frmulas. Existealguma necessidade inerente ao curso do desenvolvimento que nos levou aadot-las? Ou elas so convenes da nossa prpria criao, sugeridas, naverdade, por um interesse na descrio da natureza ou por um desejo degeneralidade abstrata na prpria matemtica, mas incapaz de prova,precisamente porque so apenas convenes? Estas questes foramsuscitadas no sculo XIX e ainda so debatidas em nossos dias.5
Essas questes circunstanciais, demarcadas pelo surgimento de inmeros
paradoxos, demandaria a necessidade de fundamentar a aritmtica em uma base
que no dependesse de questionamentos ou arbitrariedades.
De acordo com Blanch:
Pedir lgica, convenientemente renovada que assegure os alicerces damatemtica, convida bastante naturalmente a prosseguir aqum dos limites
3 BLANCH, R. Histria da Lgica, pg. 307.4 KNEALE & KNEALE. The Development of Logic, pg. 400.5 KNEALE & KNEALE. The Development of Logic, pg. 401.
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habituais da matemtica o trabalho de regresso na formalizao dedutiva ea tentar fazer derivar o conjunto das noes e das verdades matemticas apartir das noes e das verdades propriamente lgicas.6
nesse contexto de fundamentao que se insere a lgica de Frege. Este
no pretendia, como anteriormente se props, utilizar a lgica como ferramenta ou
auxiliar, mas essencialmente como o fundamento da matemtica. Um fundamento e,
igualmente, um mtodo para o reconhecimento das leis do ser verdadeiro.
Cronologicamente, a obra de Frege inicia-se em 1879, com a publicao do
Begriffsschrift (Conceitografia ou Ideografia). A proposta de Frege, nessa obra,
desenvolver uma linguagem que, de fato, se distinga da linguagem ordinria,
fornecendo uma estrutura mais precisa para se formular as proposies e,
consequentemente, os juzos. As bases do pensamento de Frege concebidas em
sua linguagem passariam por algumas modificaes, mas seriam a base para o
desenvolvimento do projeto logicista, cuja principal proposta consistia na
fundamentao da matemtica pela lgica, e que encontra um ponto alto na
publicao, em 1884, dos Grundlagen der Arithmetik (Os Fundamentos da
Aritmtica), trabalho que estabelece uma ampla discusso com as correntes do
empirismo e da psicologia vigentes na poca. , todavia, em decorrncia dos
trabalhos realizados a partir de 1890 que percebemos uma ampliao da filosofia
fregiana e uma ruptura essencial com o trabalho desenvolvido at ento. A partir dos
artigos Funktion und Begriff (Funo e Conceito), de 1891; ber Sinn und
Bedeutung (Sobre o Sentido e a Referncia), e ber Begriff und Gegenstand
(Sobre Conceito e Objeto), ambos de 1892, Frege estabelece novas diretrizes para
sua investigao lgica, o que resulta em uma definio do verdadeiro deveras
singular.
Dificuldades com o conceito de verdade
Frege, ao escrever a Conceitografia, em 1879, demonstra uma preocupao
quanto ao entendimento da comunidade cientfica em relao ao saber. A questo
recai sobre a linguagem, pois o saber cientfico no pode se valer da linguagem
comum, da qual nos valemos para o entendimento social, uma vez que sua
ambiguidade constitui uma dificuldade para a aquisio de um conhecimento
6 BLANCH, R. Histria da Lgica, pg. 306.
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preciso. A perda da objetividade ocorre devido ao uso superficial ou subjetivo da
linguagem. Conforme Frege dir em Sobre Sentido e Referncia, o ideal que
cada palavra tivesse um nico sentido, e cada sentido uma nica referncia. Tal no
o que ocorre na linguagem, onde uma mesma palavra possui inmeros sentidos, e
estes, muitas vezes, mais de uma referncia.
O que pode parecer um problema, no entanto, apresentado como uma
caracterstica necessria da linguagem, segundo Frege. o que garante o
dinamismo e a funo da mesma. Essa condio s vem a se tornar um problema
quando deixamos o aspecto geral da linguagem e entramos em um domnio
especfico, em situaes nas quais indagamos acerca de um conhecimento
especfico, que no poderia ser conhecido por meio do uso da linguagem comum.
nessa situao que uma nova linguagem deve se apresentar. Tal linguagem no
pode ser ambgua, deve possuir um nvel de clareza e universalidade que permita o
entendimento entre todas as comunidades que investiguem o mesmo saber. Essa
linguagem, no entanto, no servir para o uso cotidiano. Ser intil para o conjunto
de vivncias nas quais o homem de sociedade se v inserido. Mas ter grande
utilidade nos meios estritos da investigao cientfica. Sobre essas duas linguagens,
Frege assim se expressa:
Creio que posso tornar mais clara a relao entre minha conceitografia e alinguagem comum comparando-a que existe entre o microscpio e o olho.Este, pela extenso de sua aplicabilidade, pela agilidade com que capazde adaptar-se s diferentes circunstncias, leva grande vantagem sobre omicroscpio. Considerado como aparelho tico, o olho exibe decerto muitasimperfeies que habitualmente permanecem despercebidas, em virtude daligao ntima que tem com a vida mental. No entanto, to logo os finscientficos imponham exigncias rigorosas quanto exatido dasdiscriminaes, o olho revelar-se- insuficiente. O microscpio, pelocontrrio, conforma-se a esses fins da maneira mais perfeita, mas,precisamente por isso, inutilizvel para todos os demais7.
A acuidade necessria para certas investigaes torna o olho insuficiente em
suas capacidades. Nesse caso, necessitamos de algo mais apurado, uma
ferramenta de uso restrito, mas muito mais precisa. Todavia, essa mesma preciso
torna-a incapaz de se adaptar s vrias circunstncias da vida cotidiana, na qual as
caractersticas dinmicas do olho o tornam prefervel, porquanto mais adequado.
7 FREGE, G. Prefcio Conceitografia, in: Lgica e Filosofia da Linguagem, pg. 46.
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A analogia, aplicada linguagem, implica a necessidade de linguagens
estritas para a compreenso de certos elementos do saber, para os quais a
linguagem comum torna-se obscura e incerta.
Essa preocupao acima demonstrada no posiciona Frege em um registro
diferente daquele j seguido pela tradio platnica a aristotlica. O projeto de
estruturar a linguagem em um modelo adequado, que representasse de modo
perspcuo o processo de conhecimento, bem como o de juzo, constitui o projeto da
tradio filosfica e este , de fato, o prprio bero norteador da lgica, em suas
origens.
Mas, nesse caso, se essa a preocupao inicial de Frege, por que iniciar
sua Conceitografia com o intuito de tornar mais clara a aritmtica? Por que no
buscar adentrar diretamente os domnios da linguagem? Afinal, a linguagem
matemtica parece ser a mais distante da linguagem comum, sendo, portanto, uma
das mais estritas e corretas. Iniciar suas investigaes pela aritmtica, com o intuito
de fundament-la na lgica tambm no distancia, especificamente, Frege da
tradio filosfica.
Para Aristteles, na composio de textos que se tornariam o que hoje
conhecemos como Organon, o ponto de partida era quase o mesmo. Aristteles
considerava necessrio o rigor da linguagem, tanto para os saberes teorticos,
quanto para uma melhor fundamentao da Geometria. E a Geometria, na ocasio,
conforme Santos (2008), abarcava muito do que hoje admitiramos como objetos
prprios da aritmtica.
O primeiro motivo a necessidade de, um tanto paradoxal, num primeiro
momento, de encontrar, em uma linguagem estrita, a generalidade necessria para
dar conta de todas as situaes da linguagem sem que se recaia em ambiguidade.
O que queremos dizer que a linguagem estrita procurada por Frege seria estrita
porque no poderia possuir a ambiguidade natural da linguagem, por conta da
necessidade de preciso que o objeto do saber exige. Em contrapartida, essa
linguagem deve possuir um tipo de generalidade em sua estrutura, de maneira que
consiga expressar, dentro de suas prprias regras de preciso, todas as relaes
concernentes ao mbito de sua atuao. A estrutura tradicional da linguagem
fundamentada sobre o sujeito e o predicado no , segundo Frege, suficientemente
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apropriada para contornar esse problema. Frege encontra, como substitutos mais
adequados, a funo e o argumento, operaes prprias da Aritmtica e que, por
possurem um critrio baseado em saturao e insaturao, se aplicariam a
praticamente todas as situaes apresentadas pela linguagem, contendo a suficiente
generalidade.
O segundo motivo para comear pela aritmtica est no fato de que tanto a
matemtica quanto a lgica independeriam do mundo emprico e passariam a
depender unicamente do pensar para validar seus elementos. Dois campos nos
quais, segundo Frege, "a matria cede terreno e dominada pelo pensar"8. De tal
maneira, Frege resguardaria tanto lgica quanto a aritmtica de cair nos domnios
seja da psicologia, seja do empirismo.
Ademais, tanto a aritmtica quanto a lgica dependem nica e
exclusivamente dos acordos encontrados entre suas proposies. Segundo Santos:
Enquanto a ausncia de fundamentao suficiente pode, nas cincias domundo emprico, ser compensada no momento do confronto com aexperincia, na matemtica, cuja relao com a experincia, se existir, remota e mediata, onde entra em considerao o grau de transparncia aoesprito das conexes lgicas tanto quanto a matria do saber, a totalidadedas verdades deve, por assim dizer, repousar sobre si prpria9.
Um elemento importante salientado por Santos consiste no fato de que as
validaes das verdades matemticas repousam, por total independncia do mundo
emprico, somente nas conexes lgicas estabelecidas e, portanto, nas conexes
entre as proposies matemticas:
A questo de saber se uma dada proposio deve ser recebida comoverdade matemtica no admite resposta mesmo aps uma centena deaplicaes bem sucedidas, que conduziriam a uma mera certeza moral,mas to somente aps uma derivao lgica da proposio a partir dosfundamentos reconhecidos do sistema10.
Considerando o que afirmamos acerca das preocupaes seminais de
Frege, algumas perguntas norteadoras podem ser feitas no mbito da investigao:
o que pode ser verdadeiro? A verdade um predicado que diz algo sobre um
objeto? O ser verdadeiro constitui um conceito que atribui propriedades a algo? Em
8 FREGE, apud Santos, pg. 13.9 SANTOS, L. H. L; O Olho e o Microscpio, pg. 15.10 Idem.
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que medida o logicismo preserva a verdade em seu aspecto lgico? A verdade
ainda a verdade da correspondncia entre representante e representado?
Na realidade, a investigao de Frege no se pauta tanto no que diz respeito
verdade, em uma acepo mais geral. As cincias procuram verdades. A verdade,
nesse aspecto, plural, e Frege no discorda disso. O que no plural, para Frege,
aquilo que ele denominar o verdadeiro. So as leis do verdadeiro que permitem
ao cientista encontrar verdades. E, de certa maneira, a trajetria lgica de Frege
uma trajetria de definio do que vm a ser essas leis do ser verdadeiro.
No por acaso que o Prefcio Conceitografia (1879) inicia-se pela
inquirio acerca da verdade cientfica. Conforme Frege:
A apreenso de uma verdade cientfica passa, normalmente, por vriosestgios de certeza. Com efeito, conjeturada inicialmente a partir de umnmero talvez insuficiente de casos particulares, uma proposio geraltorna-se mais e mais solidamente estabelecida ao se relacionar com outrasverdades mediante cadeias de inferncias seja porque dela se derivamconcluses que so confirmadas por outros modos, seja, pelo contrrio, porela se afigurar uma concluso de proposies j estabelecidas.11
Embora Frege afirme que a verdade cientfica passa por inmeros estgios
de certeza, e embora um dos processos seja partir de um nmero limitado de casos
particulares, por meio de inferncias lgicas que uma proposio geral ganha
solidez. Essa solidez dada pela conexo com outras verdades e estabelecida por
meio de inferncias que no dependem, necessariamente, da observao emprica.
O mtodo de consolidao da fundamentao de uma verdade cientfica, ao menos
o mais seguro, segundo o autor, no outro que o seguir as leis da lgica:
O mtodo de prova (Beweisfhrung) mais seguro consiste, obviamente, emseguir estritamente a lgica, que, abstraindo as caractersticas particularesdas coisas, apoia-se exclusivamente nas leis sobre as quais se baseia todoo conhecimento. Por esta razo, dividimos todas as verdades que requeremprova em duas espcies: aquelas cuja prova pode ser conduzida por meiospuramente lgicos e aquelas cuja prova se apoia em fatos empricos. Mas ofato de uma proposio ser da primeira espcie plenamente compatvelcom o fato de ela jamais se tornar consciente em um esprito humano, casono houvesse atividade sensorial. Portanto, o que est na base destadiviso [das espcies de verdade] no a gnese psicolgica(Entstehungsgeweise), mas o melhor mtodo de prova (Beweisfhrung)12.
Aparentemente, Frege estabelece uma distino entre duas classes de
verdade, onde a diviso proposta feita com base no mtodo de prova. Sem entrar
11 FREGE, Gottlob; Prefcio Conceitografia, in: Lgica e Filosofia da Linguagem, pg. 43.12 FREGE, Gottlob; Prefcio Conceitografia, in: Lgica e Filosofia da Linguagem, pg. 44.
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no significado de verdade, pois Frege no o faz de modo metdico na
Conceitografia, a espcie de verdade que interessar para o autor, por conta do
privilgio do mtodo mais seguro, sero as verdades que dependem dos meios
puramente lgicos, pois a estrutura lgica, uma vez estabelecida pelas regras de
inferncia, torna-se necessria, enquanto que as verdades que se apoiam em fatos
empricos necessitam sempre de mais casos particulares para a corroborarem, e
nunca atingem um grau absoluto de confirmao e fundamentao. verdade que
uma dessas verdades, cujo mtodo de prova se assenta estritamente nas leis sobre
as quais se baseia todo o conhecimento, talvez jamais viesse a ser conhecida sem
os meios sensrios. Uma verdade de fundamento lgico, porm, uma verdade
dotada de generalidade, pois no depende de suas particularidades. Como tal,
embora possam ser necessrios meios empricos para ser conhecida, isso no
muda o fato que o mtodo de prova de tais verdades continue sendo estritamente
lgico. As verdades matemticas, referindo-nos aqui especificamente aritmtica,
seriam desse tipo descrito. Porm, dadas as circunstncias que resultaram na
necessidade de fundamentao da Matemtica, esta deve ser fundamentada pela
lgica, de modo a se submeter ao mtodo de prova estritamente lgico.
Observamos que, j na Conceitografia, as verdades se apoiam na lgica
como o mtodo mais seguro de prova. E mesmo assim, existem verdades que se
apoiam em mtodos empricos. A diferena entre ambas ainda no claramente
indicada. Todavia, podemos sugerir que apoiar a verdade na lgica significa, nesse
caso, que podemos extrair o verdadeiro de uma sentena a partir das relaes
internas da mesma, em uma estrutura de linguagem estrita, proposta por Frege na
Conceitografia, de maneira dissociada das possveis relaes empricas das quais
as referidas sentenas seriam derivadas.
Vemos que a Conceitografia, em linhas gerais, demonstra o cuidado em
desenvolver uma linguagem restrita que visa explicitar, sem ambiguidade, as leis do
ser verdadeiro. As proposies estruturadas nessa linguagem contribuiriam para um
conhecimento sem lacunas, tanto de verdades que dependem de casos particulares,
quanto das que se assentam em pressupostos estritamente lgicos. Porm, no fica
claro, e nem parece ser o propsito do texto, discutir o que significa a verdade
almejada ou reconhecida. As investigaes de Frege, todavia, o levaro a uma
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definio de verdade mais formal e com uma funcionalidade lgica mais rigorosa,
inclusive em sua terminologia. Como resultado, em Der Gedanke (O Pensamento,
1918-19), Frege nos informa que o verdadeiro o objeto de toda a lgica. Essa
concepo parece ter uma conotao diferente do primeiro caso que observamos,
pois, na Conceitografia, a lgica parecia ser algo distinto e mais amplo do que as
verdades cientficas. Em O Pensamento, o que podemos perceber que toda a
lgica encontra-se orientada para o verdadeiro como objeto. Isso nos sugere que,
entre a Conceitografia e O Pensamento, Frege desenvolveu e ampliou sua
concepo acerca da verdade. O significado do termo objeto, conforme ser
explicitado no decorrer dessa dissertao, evidenciar uma trajetria que busca
delimitar o verdadeiro em um contexto diferente daquele que costuma caracterizar
as verdades cientficas, estabelecendo balizas muito consistentes entre a
considerao usual de verdade e aquela que caracterizar a mesma como objeto
lgico. O processo que estabelece esse rigor, que define o verdadeiro no apenas
como o objeto da lgica, mas como objeto lgico e que o distanciar das verdades
cientficas no somente no mtodo de prova, mas em toda sua aplicao,
resultado de uma importante ruptura na concepo fregiana no que tange distino
entre forma e contedo da proposio.
A proposta desta dissertao, portanto, estabelecer trs pontos:
a) Indicar em que sentido ocorre a ruptura na concepo de verdade fregiana
em relao concepo da tradio filosfica, representada pelos
modelos aristotlicos e kantianos;
b) A exposio dos elementos que compem o ncleo do logicismo fregiano,
concebendo o que significa tomar o verdadeiro como objeto da lgica;
c) A implicao do valor de verdade para a concepo de existncia de
Frege, tomando em considerao que o verdadeiro, enquanto objeto
privilegiado da lgica, assume posio fundamental na validao da
existncia de um pensamento.
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1. NOVIDADE DE SENTIDO E REFERNCIA NA FILOSOFIA DE FREGE
Observamos na Introduo que Frege considera a verdade como elemento
fundamental no estudo da lgica. Todavia, seu procedimento parece-nos divergir do
modo como costuma ser realizado na tradio filosfica. A Conceitografia ,
inicialmente, a obra na qual Frege inaugura um novo mtodo, baseado em uma
interpretao singular de funo. Nesse captulo, nossa proposta indagar qual a
novidade que Sobre o Sentido e a Referncia trazem para a discusso, e como os
conceitos ali trazidos tona promovem uma ruptura com a concepo tradicional de
verdade. Tambm investigaremos os problemas que essa concepo carrega e
como Frege ter de estruturar sua filosofia para acomodar e dar sustentao para
sua obra.
Hans Sluga (1999), no artigo intitulado Frege On Meaning, faz uma anlise
crtica da Conceitografia em relao concepo de Frege a respeito da verdade
em sua teoria. Segundo Sluga, as consideraes sobre a verdade existem de modo
indireto, sem que haja, em qualquer momento, uma tentativa de formalizao de
uma teoria da verdade:
No h, em particular, nenhuma teoria da verdade ou qualquer coisaequivalente a ser encontrado nele (no Begriffsschrift). Qualquer pessoafamiliarizada com o desenvolvimento posterior de Frege ou com a evoluoda teoria analtica do significado vai achar surpreendente que os conceitosde verdade e falsidade esto totalmente ausentes do livro. Ao descrever oque poderamos chamar de conectivos de verdade-funcional, Frege falaapenas de proposies a serem afirmadas ou negadas, no de seu serverdadeiro ou falso.13
Podemos considerar que a concepo de verdade de Frege largamente
ampliada a partir de 1890, o que faz com que haja uma ruptura no pensamento do
autor a partir desse perodo, que o distanciar definitivamente de uma viso clssica
da verdade, aos moldes da viso conservadora. Essa ruptura, todavia, no nos
parece ser uma ruptura total com seu pensamento, mas o resultado do
amadurecimento de seu logicismo, da complexidade de suas concepes. O prprio
autor, no Prlogo s Leis Bsicas da Aritmtica, ao estabelecer uma reviso de sua
obra, firma uma continuidade que remonta Conceitografia, onde lemos: Eu realizo
13 SLUGA, H. Frege on Meaning, pg. 22.
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aqui um projeto que j havia tido em vista no meu Begriffsschrift do ano de 1879 e
que anunciei em meus Fundamentos da aritmtica do ano de 1884.14
Alm dessa continuidade anunciada, as modificaes que o autor enuncia
em seguida, como a modificao do sinal de equivalncia para o sinal de igualdade
e o acrscimo de outros sinais, devem-se, principalmente, ao que ele enuncia como
consequncias da evoluo de minhas concepes lgicas.15
De fato, os elementos fundamentais, como o clculo proposicional baseado
na estrutura funo e argumento, atravessam toda a obra fregiana. No entanto,
duvidoso concluir que Frege concebia, j na Conceitografia, que o verdadeiro seja
um objeto (como apresentaremos a seguir), levando em conta as observaes feitas
at o momento.
A partir de Funo e Conceito, porm, essa associao torna-se explcita, e
suas repercusses no deixam de ser problemticas. Para compreendermos melhor
o problema que se apresenta, retomemos o fato de que, desde a Conceitografia,
Frege estrutura as proposies com base na funo e no argumento, deixando de
lado a nomenclatura sujeito e predicado. Quando tomamos uma expresso
alicerada em sujeito e predicado, temos um elemento, o sujeito, que recebe uma
propriedade, o predicado. Esse mesmo predicado, em outra expresso, pode ser o
sujeito e receber tambm uma propriedade. Ao estruturarmos como funo e
argumento, o comportamento das proposies ser diferente, pois funes so
elementos incompletos, que no podem atuar sozinhos sem que percebamos a
necessidade de complemento. Um argumento, em contrapartida, teria a
caracterstica de ser completo, no precisar de complemento. Assim, uma funo
no poderia trocar de lugar com um argumento, pois uma funo nunca se torna
completa, assim como um argumento nunca se torna incompleto. Um argumento,
para Frege, em geral um objeto. Ao falar do objeto, em Funo e Conceito, Frege
o explica da seguinte maneira:
Quando admitimos qualquer objeto sem restrio como argumento ou valorde uma funo, surge a questo do que que chamamos aqui de objeto.Considero impossvel uma definio regular [de objeto], j que nosdeparamos com algo cuja simplicidade no admite nenhuma anlise lgica.Aqui, s se pode assinalar o que se quer dizer. E s se pode dizer
14 FREGE, G. Prlogo s Leis Bsicas da Aritmtica, pg. 3.15 FREGE, G. Prlogo s Leis Bsicas da Aritmtica, pg. 4.
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sucintamente o seguinte: um objeto tudo o que no uma funo, tudoaquilo cuja expresso no contm um lugar vazio.16
Assim, o objeto ou o argumento, para Frege, no pode ser substitudo por
uma funo, e nem pode aparecer como atributo ou propriedade de algo. Em um
sentido geral, portanto, podemos pensar que uma proposio baseada nessa
estrutura ter o atributo de ser verdadeira se, de fato, o objeto, enquanto argumento,
completar a funo, que insaturada. A prpria proposio seria ento considerada
verdadeira. Porm, Frege apresenta, logo em seguida, uma afirmao que causa
estranheza ao leitor: Uma sentena assertiva no contm lugar vazio, e assim,
deve-se considerar que sua referncia seja um objeto. Essa referncia, porm, um
valor de verdade. Logo, os dois valores de verdade so objetos.17
Se o verdadeiro tomado como um objeto, ento ele no pode mais ser
atributo ou propriedade de uma proposio da maneira usual, ou seja, por
comparao com o mundo. Evidencia-se, de imediato, que a concepo de verdade
de Frege passa a diferir grandemente da tradio filosfica, e carrega consigo uma
srie de consequncias e desdobramentos.
Um desses desdobramentos, que podemos adiantar aqui, embora seja mais
bem discutido no captulo 2, consiste na seguinte afirmao:
Por valor de verdade de uma sentena entendo a circunstncia de ela serverdadeira ou falsa. No h outros valores de verdade. Por brevidade,chamo a um de o verdadeiro e a outro de o falso. Toda sentena assertiva,caso importe a referncia de suas palavras, deve ser considerada como umnome prprio; e sua referncia, se tiver uma, ou o verdadeiro ou o falso.18
Se tomarmos essas duas passagens conjugadas temos uma consequncia
que chama ateno. Sendo o verdadeiro um objeto e no podendo ser, pela
definio fregiana, uma propriedade nem do objeto e nem da proposio,
percebemos que a conexo entre uma sentena e o verdadeiro passa a ser no
mais a de uma predicao, mas de uma nomeao, na qual a proposio, uma vez
completa, torna-se um nome, cuja referncia, o objeto ao qual o nome se refere,
ser um valor de verdade.
De acordo com Greimann:
16 FREGE, G. Funo e Conceito, pg. 96.17 FREGE, G. Funo e Conceito, pg. 97.18 FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referncia, pg. 139.
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A considerao da natureza positiva da verdade parece ser caracterizadapela viso de que a verdade um objeto. Por essa razo, sua concepo deverdade comumente vista como uma estranha "teoria da nomenclatura daverdade" de acordo com a qual a verdade o objeto nomeado pelassentenas verdadeiras.19
Por essa concepo, a teoria de Frege da Verdade seria uma teoria de
nomenclaturas, de nomeaes do objeto verdadeiro, onde cada sentena seria, no
limite, reduzida ao nome do verdadeiro. Por conseguinte, as mudanas sobre a
concepo da verdade em seu pensamento se do intrinsecamente a partir do
desenvolvimento dos conceitos de sentido e referncia na proposio. Os trs
artigos compostos por Frege, Funo e Conceito, Sobre Conceito e Objeto e
Sobre o Sentido e a Referncia esto interligados e tanto o primeiro quanto o
segundo artigo possuem, como pressuposto, as definies de sentido e referncia.
Como veremos adiante, de acordo com Frege, a ausncia dos conceitos de sentido
(Sinn) e referncia (Bedeutung) fez com que tivssemos, na Conceitografia, apenas
o termo (nome) e o objeto, o que gerou um conjunto de problemas referentes,
principalmente, ao que concerne considerao sobre a igualdade e ao contedo
oriundo dessa igualdade. De forma indireta, essa questo aparece em Funo e
Conceito e, ali, surge relacionada com o conceito de extensionalidade e implicada
com a concepo de verdade considerada como o objeto verdadeiro. Em relao
extensionalidade porque se encontra vinculada com a ideia de que duas expresses
sero consideradas iguais se ambas possurem os mesmos percursos de valores
verdadeiros. E relacionada com o verdadeiro como objeto porque, sendo um objeto,
este s pode se relacionar com outro objeto se for por meio da igualdade entre
objetos ou nomes ou sinais de objetos. Afirma Frege:
Pode-se fazer aqui a objeo de que 2 = 4 e 2 > 1 significam coisastotalmente diferentes, expressam pensamentos totalmente distintos. Mastambm 24 = 42 e 4 . 4 = 4 expressam pensamentos diferentes, e apesardisso, pode-se substituir 24 por 4 . 4, uma vez que ambos os sinais tm amesma referncia. Por conseguinte, 24 = 4 e 4.4 = 4 tm tambm amesma referncia. Disso conclumos que a igualdade de referncias notm como consequncia a igualdade de pensamentos.20
A igualdade definida pela extensionalidade consiste em uma igualdade
relativa aos percursos de valores que impliquem em uma mesma referncia, mas
19 Greimann, D. Did Frege Really Consider the Truth as an Object?, in: Essays on Freges Conception of Truth, pg. 126.20 FREGE, G. Funo e Conceito, in: Lgica e Filosofia da Linguagem, pg. 92.
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isso no implica o mesmo pensamento, em seu significado. Alm disso, Frege
tambm afirma:
As funes x=1 e (x + 1) = 2(x + 1) tm sempre o mesmo valor para omesmo argumento, a saber, o verdadeiro para os argumentos -1 e +1; e ofalso para todos os demais argumentos. De acordo com nossas convenesanteriores, diremos, pois, que essas funes tm os mesmos percursos devalores [...]21
O verdadeiro, pelo que indicado pela passagem acima, no dado por
nada externo s prprias regras proposicionais, pois o valor verdadeiro atribudo aos
argumentos 1 e -1 s so possveis devido s condies determinantes dadas pelas
proposies (x + 1) = 2(x + 1) ou X=1. Dadas as relaes concernentes funo,
somente os argumentos -1 e +1 engendram o valor verdadeiro. Temos tambm que
duas proposies sero iguais se apresentarem as mesmas condies e os mesmos
objetos sob essas regras, pois as duas expresses acima ((x + 1) = 2(x + 1) e X = 1) s
so consideradas verdadeiras para os objetos +1 e -1 e s so consideradas iguais
por, em ltima instncia, denotarem a mesma referncia: o valor de verdade
verdadeiro.
Temos, porm, que observar que os objetos numricos citados s
engendram o verdadeiro, por assim dizer, pelo fato de, ao entrarem na proposio
como argumentos, atenderem e completarem o vazio deixado pela funo e
demarcado por x, o que sugere que, sozinhos, os objetos +1 e -1 no so capazes
de produzir o verdadeiro. Da mesma forma, todos os outros nmeros que, nesse
contexto, engendram um valor de verdade falso, s o so assim por conta da
estrutura da funo. Fosse a funo de outra forma, os valores de verdade seriam
diferentes para cada nmero que entrasse como argumento. Alm disso, se o
contexto ou a combinao entre funo e argumento que determina os valores de
verdade obtidos, a equivalncia entre as diversas proposies s ocorre quando
temos um valor de verdade que se comporta como referncia ltima em um
contexto de nomenclaturas que aparentemente privilegia a forma lgica ao
contedo.
Ao iniciar Sobre o Sentido e a Referncia, Frege parte precisamente da
igualdade, e explicita a problemtica que observamos brevemente em Funo e
Conceito:21 FREGE, G. Funo e Conceito, pg. 94.
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24
A igualdade desafia a reflexo, dando origem a questes que no sofceis de responder. ela uma relao? Uma relao entre objetos? Ouentre nomes ou sinais de objetos? Em minha Begriffsschrift assumi a ltimaalternativa22.
Frege toma como ponto de partida o fato que objetos possuem nomes, e
que, havendo, pois, a igualdade, ela pode referir-se tanto igualdade entre objetos
quanto igualdade entre nomes ou sinais de objetos. Na Conceitografia, Frege
assume a ltima alternativa, entendendo a igualdade como equivalncia entre os
nomes dos objetos. Todavia, medida que o prprio autor prossegue, essa escolha
acarretar problemas. Quando dizemos que um objeto A igual a um objeto B, ou
simplesmente que A=B, estamos dizendo que dois objetos, de nomes distintos, so
a mesma coisa? Na Conceitografia, duas sentenas ou termos representados por
um sinal A e outro B sero consideradas iguais se seu contedo conceitual for o
mesmo. Mas o fato de serem designadas por nomes diferentes no acrescenta uma
diferena nos pensamentos asseridos? Para Frege, a designao diferente de um
mesmo objeto produz diferenas informativas significativas:
[...] a=a e a=b so, evidentemente, sentenas de valor cognitivo diferentes,pois a = a sustenta-se a priori e, segundo Kant, deve ser denominada deanaltica, enquanto que sentenas da forma a = b contm, frequentemente,extenses muito valiosas de nosso conhecimento, e nem sempre podem serestabelecidas a priori. A descoberta de que o sol nascente no novo cadamanh, mas sempre o mesmo, foi uma das descobertas astronmicasmais ricas em consequncias.23
Tomando esse fato em considerao, Frege expressa duas condies que
acarretariam no absurdo, no qual o valor informativo novo cessaria de aparecer
onde, evidentemente, aparece:
Assim, se quisssemos considerar a igualdade como uma relao entre osobjetos a que os nomes a e b se referem, ento a = b no pareceriadiferir de a = a, caso a = b fosse verdadeira. Desse modo expressaramos arelao de uma coisa consigo mesma, relao que cada coisa tem consigomesma, mas que nunca se d entre duas coisas distintas. Mas, por outrolado, parece que por a = b quer-se dizer que os sinais ou os nomes a e breferem-se mesma coisa, e neste caso, a discusso versaria sobre essessinais: uma relao entre eles seria asserida. Mas tal relao entre osnomes ou sinais s se manteria na medida em que eles denominassem oudesignassem alguma coisa. A relao surgiria da conexo de cada um dosdois sinais com a mesma coisa designada24.
22 FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referncia, in Lgica e Filosofia da Linguagem, pg. 129.23 Idem, pg. 130.24 Idem.
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25
O problema percebido por Frege se deve ao fato de que, se a igualdade
uma relao entre objetos, toda conexo realizada ser uma conexo que no
acrescenta nenhum valor cognitivo relao estabelecida, pois estaremos dizendo
que o objeto igual a si mesmo, ou seja, estaremos afirmando que nada de novo
pode ser apreendido pelo objeto, que seu conhecimento analtico, no importa o
nome que receba. Isso levou Frege segunda opo, de que a igualdade seria uma
relao entre nomes ou sinais de objetos. Mas essa relao de igualdade estava
condicionada aos objetos designarem sempre a mesma coisa, e ainda acarretava a
arbitrariedade possvel para qualquer designao. o que conclui Frege logo em
seguida:
Ningum pode ser impedido de empregar qualquer objeto ou eventoarbitrariamente produzido como um sinal para qualquer coisa. Com isto, asentena a=b no mais se referiria propriamente coisa, mas apenas maneira pela qual a designamos; no expressaramos por seu intermdio,propriamente, nenhum conhecimento25.
Essa arbitrariedade algo comum na atribuio de nomes aos objetos.
Podemos utilizar tanto objetos quanto eventos como sinal para qualquer coisa.
Porm, se a atribuio de nomes representasse apenas a maneira pela qual
designamos um objeto, continuaramos com o problema de nenhum conhecimento
ser expresso por seu intermdio. Para resolver essa questo, Frege, em seguida,
acrescenta ao nome um fator que, at certo ponto, parece ser independente de
qualquer arbitrariedade, a saber, o fato de que, junto ao nome, existe algo que
acompanha o conjunto, que corresponde ao modo de apresentao do objeto que
est sendo designado pelo nome. Esse elemento o que chamamos de sentido
(Sinn) e que, como veremos adiante, no , de certa forma, algo arbitrrio.
No que diz respeito ao sentido, Frege defende que este, como modo de
apresentao do objeto, corresponde fuga do argumento do absurdo, pois a partir
do sentido, o valor cognitivo de sentenas como A = B fica assegurado.
Afirma Frege:
, pois, plausvel pensar que exista, unido a um sinal (nome, combinao depalavras, letras), alm daquilo por ele designado, que pode ser chamado desua referncia (Bedeutung), ainda o que eu gostaria de chamar de o sentido(Sinn) do sinal, onde est contido o modo de apresentao do objeto. [...] A
25 Ibidem.
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26
referncia de estrela da tarde e estrela da manh a mesma, mas no osentido.26
Desde a tradio kantiana que proposies analticas, como A igual a A,
no possuem valor informativo, j que no acrescentam nada ao prprio nome.
Somente proposies chamadas de sintticas possuiriam valor cognitivo. Com a
introduo do conceito de sentido, uma proposio como A Estrela da manh
Vnus possuiria valor cognitivo, pois no evidente o reconhecimento de que a
estrela da manh seja Vnus. Porm, a estrela da manh corresponde a um sentido,
um modo de apresentao do objeto designado pelo nome prprio Vnus. Por
acrescentar um sentido a Vnus, consequentemente, o contedo informativo acerca
do objeto que est sendo asserido pode aumentar em relao ao que se tinha
anteriormente.
Dessa forma, para a pessoa que apreende essa proposio acerca de
Vnus, ela no apenas adquiriu um contedo informativo, como reconheceu ser
verdadeira essa atribuio, uma vez que a Estrela da Manh um dos modos de
apresentao de Vnus. E Vnus, por sua vez, o nome que designa o corpo
celeste. Em contrapartida, o que determina essa atribuio? Se a verdade parte do
reconhecimento de uma atribuio arbitrria de um termo em relao a um objeto,
ento poderamos supor um relativismo em todo o processo de juzo, o que nos
levaria a reconhecer como verdadeiras certas proposies e falsas outras
proposies, enquanto outras pessoas podem considerar as mesmas proposies
diferentemente.
Outra possibilidade de relativismo o que Mark Textor (2005) leva em
considerao em sua obra Frege On Sense and Reference. Segundo Textor, a
Conceitografia tinha como ponto de partida os contedos judicveis. Esses
contedos eram compostos pelo que Textor denomina circunstncias, formadas por
particulares e propriedades. Textor afirma:
O Begriffsschrift contm uma lgica e uma teoria do contedo judicvel, isto, uma teoria do que uma declarao diz ou como um julgamentorepresenta o que o mundo . Cada frase no Begriffsschrift tem comocontedo judicvel uma circunstncia, um complexo constitudo porelementos e propriedades.27
26 FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referncia, pg. 131.27 TEXTOR, Mark. Frege On Sense and Reference, pg. 14, v. digital.
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27
Em outras palavras, Frege atua, na Conceitografia, ainda no escopo da
lgica que se forma a partir de um particular, com sua respectiva propriedade (ainda
que no possamos mais identificar essa estrutura com o sujeito e predicado a partir
de sua linguagem conceitual). Entretanto, a novidade de Sobre o Sentido e a
Referncia que agora o conjunto todo passa a corresponder a um modo de
apresentao do objeto, como enfatiza Textor:
Quando se pensa acerca da linguagem, encontramos uma questofundamental e profunda: o significado de uma sentena como Mont Blanctem mais de 4.000 metros de altura consiste em estar correlacionado comuma configurao de objetos, um estado de coisas ou circunstncia quecontm o prprio Mont Blanc, e uma propriedade, ter mais de 4.000 metrosde altura, ou o significado da frase reside em estar correlacionado ouexpressar o que Frege chamar um "pensamento", contendo, entre outrascoisas, um modo de apresentao de Mont Blanc? De forma mais geral:nossas sentenas remetem diretamente para circunstncias ou elas, emprimeiro lugar, expressam apresentaes que podem existirindependentemente de tais circunstncias?28
Evidencia-se aqui a significncia e contribuio de Sobre o Sentido e a
Referncia. Esse tipo de questionamento no existia na Conceitografia e s pde
ser formulado a partir da concepo de sentido (Sinn). No se trata apenas de
explicitar, em Sobre o Sentido e a Referncia, quais partes correspondem ao
sentido e referncia no contedo judicvel, mas sim conceber um novo modo de
entender as sentenas e o mundo por elas expresso. O sentido de um objeto no
possui a mesma arbitrariedade de um nome e nem mesmo a contingncia das
circunstncias. Um modo de apresentao que pode existir independentemente das
circunstncias sugere a possibilidade de o sentido estar unido referncia por
regras e condies que no seriam determinadas pelas circunstncias, mas sim por
condies relativas ao prprio referente, que seriam intrnsecas a ele. A relao
entre nome, objeto e o sentido complexa, principalmente com a entrada do Sentido
como o temos considerado aqui. Como Frege afirmou, podemos nomear qualquer
objeto arbitrariamente, mas uma nomeao arbitrria manteria o contedo
informativo? Agora, se a nomeao referir-se ao modo de apresentao do objeto,
ela estar designando o objeto segundo seu sentido e, com isso, designando seu
contedo informativo. Mas, se isso correto, o Sentido produz um comprometimento
no ato dessa nomeao, que limita de certa maneira a suposta arbitrariedade de
atribuio de nomes. Se o sentido pode ser expresso por um nome designativo e se
esse sentido dado pelo prprio objeto referido, ento esse nome sempre estar em28 Idem, pg. 16.
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28
relao com esse objeto, como uma relao de equivalncia. Essa informao
extremamente importante, caso seja verdadeira, pois se essa relao
(nome/sentido/objeto) vlida para a nomeao de objetos como o que
denominamos Vnus ou Estrela da Manh, tambm vlida para proposies,
conforme referido acima. E tanto mais importante quando pensamos que, se o
sentido no arbitrrio, mas um dos modos de apresentao do referente, o
reconhecimento do contedo informativo que uma pessoa tem ao apreender a
expresso "a estrela da manh" ou "a estrela da tarde" em relao ao objeto (que,
por sua vez, tambm recebe a denominao "Vnus") no ser apenas o
reconhecimento formal de uma atribuio ocasional ou convencional, mas sim o
reconhecimento de que essas atribuies so verdadeiras, pois so coincidentes
com os sentidos dados pelos referentes.
Esse tipo de conexo entre sentido e referncia, mesmo que ocorra dentro
do espao da linguagem, abre o campo para a discusso acerca do juzo e do que
vem a ser o verdadeiro, pois, em uma sentena, no se trataria mais de ser apenas
uma sentena afirmada ou negada, mas reconhecida em equivalncia com o
verdadeiro, por conta de ela assinalar de modo apropriado a relao entre sentido e
referncia nas instncias s quais ela (a proposio) se aplica. O sentido, como
modo de apresentao de um objeto, ou de uma referncia, torna-se o centro
daquilo que deve ser levado em conta em um juzo, no por ele ser aquilo que se
pode chamar de o verdadeiro ou o falso, mas sim porque o sentido apresenta a
relao entre a referncia e a linguagem, no enquanto ele em si mesmo, mas
enquanto ele em seus mltiplos modos de apresentao, que se evidenciariam por
meio da linguagem, dos nomes ou expresses designativas, ou mesmo juzos
completos.
Essa considerao nos leva a uma observao feita por Klement (2004)29,
que ressalta o fato de que, para Frege, o sentido geral de uma proposio possui
uma anterioridade ao sentido de suas partes constituintes. Ao falar sobre as
influncias de Frege e Russell sobre o jovem Wittgenstein, Klement diz: A evidncia
para termos Frege como a principal influncia (sobre Wittgenstein) deriva quase
29 KLEMENT, K.C. Putting Form Before Function: Logical and Grammar in Frege, Russell and Wittgenstein, in Philosophers Imprint, Vol. 4, n.2, Agosto, 2004.
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29
inteiramente de certos lemas compartilhados que indicam ser o sentido de uma
sentena inteira mais fundamental do que as partes.30
De fato, como veremos, Frege parece considerar que, para o pensamento, a
proposio no possui partes estruturadas, mas estruturveis. Somente em certa
circunstncia, o pensamento (e a proposio) desmembrado em suas partes
constituintes, como uma construo em blocos. Nesse aspecto, as proposies
seriam a parte visvel de um pensamento, de modo que teramos, alm de um
sentido independente das circunstncias (o que j difere do contedo judicvel
presente na Conceitografia) ainda ser inerente, de modo distinto, tanto nas partes
como na totalidade de uma proposio e, nesse caso, o sentido de uma proposio
seria mais complexo ou mais completo do que o sentido de suas partes isoladas. De
qualquer forma, para Klement, ele aparece como mais fundamental quando o
sentido de uma proposio do que quando o sentido de um termo.
Pelo que foi expresso at o momento sobre as consideraes de Frege nos
artigos posteriores a 1890, o processo para o reconhecimento de uma proposio
como verdadeira parece assumir contornos bem distintos. Usualmente, verdadeiro
se d quando uma proposio diz algo acerca do mundo, e esse algo, por
transposio, verifica-se no mundo. Por esse vis, quanto mais prxima for uma
sentena de um fato, mais verdadeira ela ser. Frege, em contrapartida, considera
que a verdade das proposies independe de qualquer comparao entre imagem e
mundo. Como j observado pelos exemplos anteriores, o verdadeiro, alm de ser
considerado um objeto, referido pelos termos de igualdade ou equivalncia, dentro
de uma estrutura de nomenclaturas, cujas regras so dadas pelo prprio clculo
proposicional. A verdade, portanto, no seria dada por comparao ou transposio
com algo emprico, mas tambm no seria dada por nenhuma conexo psicolgica.
A verdade de qualquer proposio parece ser dada de forma analtica, a partir da
relao, possivelmente ontolgica, entre sentido e referncia. A linguagem, ou um
juzo, expressaria um sentido, um modo de apresentao da referncia que, por sua
vez, coincidiria com o objeto verdadeiro ou no. E dizemos ontolgica, pois tal
relao entre sentido e referncia parece revelar-nos uma dinmica acerca do ser
das coisas, da identidade das mesmas, que revelado pelos muitos sentidos pelos
quais uma referncia possui. 30 Idem, pg. 01.
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30
Mas, qual seria a natureza daquilo que chamamos de referncia? Se a
referncia no emprica e nem psicolgica, o que Frege denomina referncia?
Para o autor, a referncia um dado lgico. A lgica , em termos kantianos,
analtica e a priori. Para Frege, os elementos constitutivos do mundo (funes e
argumentos) so lgicos e, portanto, analticos. Poder-se-ia indagar acerca de casos
como Jlio Csar ser tomado como referncia. Isso no seria um dado lgico, e seu
conhecimento no seria analtico. De fato no podemos afirmar que Jlio Csar seja
um dado a priori. Todavia, no parece o caso de, ao falarmos de Jlio Csar, como
em Jlio Csar conquistou as Glias, estarmos nos referindo apenas a uma pessoa
com uma referncia histrica, que cruzou o Rubico e estabeleceu toda uma
mudana nos rumos de Roma, pois, em termos lgicos, no necessitamos recorrer
histria para determinar a verdade de uma proposio. Jlio Csar, em tal sentena,
um objeto cujas propriedades em questo seriam aquelas que nos permitiriam
coloc-lo sob o conceito conquistou as Glias. Nesse aspecto, o que temos j no
unicamente referente ao domnio objetivo sensvel e emprico, mas estaramos
entrando no campo da lgica e de leis que no seriam dadas pelas relaes
histricas de Jlio Csar e das Glias. Questes como as envolvendo pessoas,
cujas afirmaes envolvem, de certa maneira o espao e o tempo, so distintas de
afirmaes que envolvem definies acerca das leis do verdadeiro, e naquelas
proposies especficas (as que envolvem espao e tempo) a verdade est sempre
em questo. o que Frege diz:
Todas as determinaes de lugar, de tempo, etc. pertencem ao pensamentocuja verdade est em questo; o ser verdadeiro mesmo no espacial enem temporal. O que realmente diz o princpio de identidade? Algo assim:No ano 1893 impossvel para os homens admitir que um objeto distintodele mesmo?, ou isso: Todo objeto idntico a si mesmo? A primeiralei trata de homens e contm uma determinao temporal; na segunda nose fala nem de homens nem de tempo. Esta uma lei do ser verdadeiro,aquela uma lei do assentimento humano. O contedo de ambas completamente distinto, e so independentes entre si, de modo quenenhuma das duas segue-se da outra.31
O que podemos perceber por essa citao que os princpios que formam
as leis do ser verdadeiro no so espaciais e nem temporais e, portanto, no
pertencem ao assentimento humano. H, portanto, uma distino quando falamos
de homens localizados no espao e no tempo, e quando falamos diretamente de leis
31 FREGE, G. Prlogo s Leis Bsicas da Aritmtica, (Trad. Celso R. Braida) pg. 08. Traduo revista: FREGE, G. The Basic Laws of Arithmetic, pg. 15.
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31
lgicas. Ambas as referncias, enquanto parte de uma proposio, estaro sujeitas
lgica e tratadas como objetos da lgica, mas seus contedos sero distintos. Essa
justificativa de nossa abordagem causa certo estranhamento, pois nos parece certo
que, ao valer-se de determinados exemplos, Frege alude a experincias histricas e
temporais. Alegar que, em algum nvel, elas so lgicas soa-nos excessivo,
eventualmente. Porm, temos de nos ater a duas circunstncias. Ambas surgem em
Funo e Conceito. A primeira delas diz respeito aplicao da funo e do
argumento no contexto do que Frege denominou expresses funcionais, ou seja, a
classificao das diversas expresses aritmticas como expresses saturadas ou
insaturadas. Aps demonstrar como as expresses aritmticas se comportariam
dentro da estrutura funcional, Frege ampliou o campo de aplicao da funo para o
campo da linguagem:
Vamos agora empreender a extenso [do termo funo] na outra direo, a
saber, ampliando o domnio dos possveis argumentos. No apenas
nmeros, mas objetos em geral, so agora admissveis, e aqui tambm
pessoas devem ser contadas entre os objetos.32
O motivo de Frege ampliar o campo dos argumentos tem a ver com sua
considerao acerca de sentido e referncia. Essa a segunda circunstncia
caracterstica. Para Frege, toda equao possui uma forma lingustica e toda forma
lingustica apresenta uma sentena assertiva, ela afirma algo. Em tais casos, a
sentena possui um sentido, um pensamento. Portanto, Frege trafega entre os
campos da aritmtica e da linguagem, posicionando qualquer sentena, bem como
qualquer pensamento, sob a estrutura de expresso funcional. Isso significa que as
questes referentes ao campo da aritmtica, bem como o posicionamento de Frege
em relao a ela, valero tambm para todo o campo de ampliao que Frege
realizou em Funo e Conceito, o que inclui a escolha feita por Frege, em relao s
opes tomadas tanto por Kant quanto por John Stuart Mill:
Considerando-se tambm a oposio entre analtico e sinttico, resultamquatro combinaes, uma das quais, porm, a saber, analtico a posteriori, impossvel. Aqueles que se decidiram com Mill em favor do a posteriori noresta pois escolha, restando-nos ponderar ainda somente as possibilidadessinttico a priori e analtico. Kant decidiu-se em favor da primeira. Nestecaso, no h praticamente outra alternativa seno apelar para uma intuio
32 Frege, G. Funo e Conceito, pg. 95.
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32
pura como fundamento ltimo de conhecimento, embora aqui seja difcildizer se ela espacial ou temporal, ou de qualquer outra espcie.33
Para Frege, a distino entre analtico e sinttico e a priori e posteriori
caracteriza os tipos de escolhas que podemos fazer para classificar o sistema de
operaes numricas e toda a aritmtica. Descartando a possibilidade de um
conhecimento ser analtico e a posteriori, surgem as outras possibilidades: sinttico
a posteriori, sinttico a priori e analtico. Stuart Mill optara pelo conhecimento
sinttico a posteriori, significando com isso que todo conhecimento oriundo da
experincia e a partir de indues. A opo de Kant fora a do conhecimento sinttico
e a priori. Entender o que significa a escolha de Kant nos auxilia, em contrapartida, a
compreender a magnitude da escolha de Frege frente tradio kantiana.
De acordo com Mark Textor, Kant definiu que tanto a aritmtica quanto a
geometria seriam cincias cujos juzos so classificados como sintticos a priori.
Nesse sentido, o autor afirma: A distino sinttica / analtica diz respeito a como os
diferentes conceitos esto relacionados no julgamento, a distino a priori / a
posteriori diz respeito ao tipo de justificativa que se tem para o julgamento.34
Essa definio implica que juzos analticos ou sintticos se referem ao
modo como os conceitos se relacionam no interior de um julgamento, de maneira
que um juzo analtico aquele no qual um conceito-sujeito contm um conceito-
predicado. Esse tipo de juzo tambm chamado juzo de explicao conceitual e,
em ltima instncia, ele explica ou analisa o conceito-sujeito. Por outro lado, um
juzo sinttico, tambm chamado de juzo ampliativo, amplifica o conceito-sujeito, na
medida em que acrescenta contedo junto ao conceito-predicado.
Quando falamos de a priori / a posteriori, no entanto, estamos nos referindo
a algo distinto da relao entre os conceitos, pois estamos considerando a
justificativa que se tem para que aquele juzo seja realizado. Para Kant, um juzo a
priori significa que ele se justifica independente da experincia, enquanto que um
juzo a posteriori s pode ser justificado na experincia. O sentido de
independncia usado por Kant possui relevncia para compreendermos a
aplicao de independncia do ser verdadeiro em relao ao empirismo, feita por
Frege. Para saber que uma rvore igual a si mesma, necessrio ter visto uma
rvore para saber do que se fala, mas compreender que a rvore ou qualquer outra
33 Frege, G. Fundamentos da Aritmtica, pg. 215.34 Textor, M. Frege On Sense and Reference, pg. 09.
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33
coisa igual a si mesma dispensa a necessidade da experincia. Esse juzo
justificado independente de experincias pessoais.
Kant define que a Aritmtica, bem como a Geometria, possuem juzos que
so sintticos a priori. Pela distino acima entre analtico / sinttico e a priori / a
posteriori, as caractersticas de um juzo dessa natureza sero, conforme Textor:
Um juzo que sinttico a priori no ser justificado pelo exerccio de umahabilidade para definir um conceito, mas ser justificado independentementeda experincia. A discusso de Kant alimentada pela pergunta sobre o queesta justificao pode ser. Por exemplo, ele (Kant) argumentou que adefinio dos conceitos de 7, 5 e mais no suficiente para justificar o meujulgamento que 7 + 5 = 12 (Kant 1781/8: B 15-16).35
A simples definio dos conceitos no o suficiente para a realizao das
operaes aritmticas. O conhecimento matemtico, segundo Kant, necessita
recorrer intuio, significando que o conhecimento aprendido a partir de intuies
a priori:
A Filosofia mantm-se simplesmente em conceitos gerais; a Matemticanada pode fazer como mero conceito, mas apressa-se a recorrer intuio,na qual considera in concreto o conceito, embora no de modo emprico,mas simplesmente numa intuio que apresentou a priori, isto , construiu,e na qual tudo aquilo que resulta das condies gerais da construo deveser vlido tambm de uma maneira geral para o objeto do conceitoconstrudo. 36
precisamente esse o ponto de discordncia de Frege em relao Kant.
Ainda de acordo com Textor:
Frege afirma, contra Kant, que na aritmtica ns no precisamos terintuies, representaes de coisas particulares no espao e no tempo,para justificar nossos juzos. Nossa habilidade para definir conceitos geraise para traar inferncias nossa fonte do conhecimento aritmtico.37
Enquanto para Kant estava claro que o conhecimento aritmtico baseado
na construo de instncias de conceitos, para Frege, as coisas procederiam de
uma forma diferente.
35 TEXTOR, M. Idem. A citao de Textor, ao final da passagem, remete Crtica da Razo Pura, passagens B 15 16. 36 KANT, I. Crtica da Razo Pura, A715 B744.
37 TEXTOR, M. ibidem, pg. 10.
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Frege opta pelo conhecimento aritmtico ser analtico. Essa escolha no
gratuita e carrega consigo inmeras consequncias. O principal argumento de Frege
contra Kant que o conhecimento no pode ser construdo por conceitos
instanciados de objetos espao-temporais, pois a intuio de objetos dessa natureza
no contempla um problema de outra natureza: a de que tudo o que pensvel,
para Frege, pode ser contado. Na terminologia fregiana, isso implica dizer que tudo
o que cai sob um conceito preciso contvel. E isso acarreta uma oposio ao
pensamento kantiano. Se tudo o que cai sob um conceito preciso contvel, ento
cada parte componente de um conceito contvel, e isso faz com que um conceito
torne-se, na verdade, um conjunto. De fato, Textor afirma que a definio corrente de
contvel se aplica a conjuntos. Textor afirma:
Em seu atual significado padro, 'contvel' aplica-se a conjuntos. Umconjunto contvel se, e somente se, os seus membros podem sercolocados em um-para-um com um ou outro conjunto dos nmeros naturaisou um subconjunto deste conjunto. Se tudo o que pensvel contvel,essa noo de contagem muito estreita. Por exemplo, os pontos entre ospontos A e B de uma linha so contados, mas o conjunto contendo essespontos no pode ser colocado em um-para-um com o conjunto de nmerosnaturais. Objeto Contvel deve ser entendido como "objeto de um tipo que passvel de contagem.38
Percebemos que a dimenso do que contvel ultrapassa aquilo que os
nmeros naturais contemplam e, em contrapartida, aquilo que a intuio espao-
temporal abrange. Dessa forma, a aritmtica, se devesse sua justificao a alguma
forma de intuio a priori, culminaria por ter uma dimenso mais estrita do que de
fato possui. pensando nisso que Frege afirma, nos Fundamentos da Aritmtica:
Kant pretende recorrer intuio de dedos ou pontos, no que se arrisca apermitir, contra sua opinio, que elas apaream como empricas; pois aintuio de 37863 dedos no , de modo algum, pura. Tambm a expresso"intuio" no parece adequada, visto que j dez dedos, em virtude dadisposio de uns em relao aos outros, podem ocasionar as maisdiversas intuies. Temos, pois, enquanto tal, uma intuio de 135664dedos ou pontos? Se a tivssemos, e se tivssemos uma de 37863 dedos euma de 173527 dedos, a correo de nossa equao deveria evidenciar-seimediatamente, ao menos no que concerne a dedos, fosse elaindemonstrvel; mas no o que ocorre.39
Frege inviabiliza a atuao da intuio, tal como Kant a concebia, para lidar
com a amplitude da aritmtica. Afinal, se o domnio de tudo o que contvel excede38 Idem.39 FREGE, G. Fundamentos da Aritmtica, pg. 208.
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o domnio dos objetos que podem ser conhecidos pela intuio espao-temporal,
ento precisamos de um elemento adicional, cuja capacidade de generalizao v
alm do caso restrito da intuio a priori. E, para tal, esse conhecimento deve estar
arraigado na aritmtica.
Vimos que a opo de Kant, de que o conhecimento aritmtico seja sinttico
a priori, acarreta a necessidade de recorrer a uma suposta intuio espao-temporal
que, em certa medida, se aproxima perigosamente de uma viso emprica da
aritmtica. Frege rejeita essa posio, e o faz por dois motivos: o primeiro deles
que a prpria aritmtica, em toda sua proporo, se estende para alm de quaisquer
relaes espao-temporais. Disso decorre que, se um juzo sinttico a priori s pode
ser justificado pela intuio espao-temporal, e essa intuio no o suficiente para
justificar todas as relaes da aritmtica, ento o conhecimento aritmtico s pode
ser analtico.
O segundo motivo que, para Frege, as complexas relaes da aritmtica
so coextensivas s relaes entre conceitos e objetos na construo do
pensamento, expressas pelo juzo, uma vez que tudo o que pode ser pensado pode
ser contado. Porm, as regras do juzo so as regras da lgica, o que faz com que a
aritmtica tenha uma relao muito profunda com as leis da lgica. E as leis da
lgica (leis do ser verdadeiro) so analticas.
Seguir, portanto, com o raciocnio de Mill, de que a aritmtica sinttica a
posteriori implica, em ltima instncia, que o mesmo se dir da lgica. E seguir o
raciocnio de Kant, por sua vez, acarretar sujeitarmos a lgica a uma intuio
espao-temporal restrita, desprovida de universalidade.
O projeto de Frege no de modo algum estrito, uma vez que sua anlise
da aritmtica conecta-o com a lgica e com a linguagem.
Frege expressa, em os Fundamentos da Aritmtica:
Do ponto de vista do pensamento conceitual, pode-se sempre assumir ocontrrio deste ou daquele axioma geomtrico, sem incorrer emcontradies ao serem feitas dedues a partir de tais assunescontraditrias com a intuio. Esta possibilidade mostra que os axiomasgeomtricos so independentes entre si e em relao s leis lgicasprimitivas, e, portanto, sintticos. Pode-se dizer o mesmo dos princpios dacincia dos nmeros? No teramos uma total confuso casopretendssemos rejeitar um deles? Seria ento ainda possvel opensamento? O fundamento da aritmtica no mais profundo que o detodo saber emprico, mais profundo mesmo que o da geometria? Asverdades aritmticas governam o domnio do enumervel. Este o mais
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inclusivo; pois no lhe pertence apenas o efetivamente real, no apenas ointuvel, mas todo o pensvel. No deveriam, portanto, as leis dos nmerosmanter com as do pensamento a mais ntima das conexes?40
O logicismo fregiano acaba se mostrando como um projeto que vai mais
longe do que sujeitar a aritmtica lgica. No apenas isso, ao conectar a aritmtica
com a estrutura do pensamento, Frege sujeita todo o pensamento que expressa um
juzo com valor de verdade a um conhecimento analtico dado, que dispensa o
recurso do empirismo e da intuio espao-temporal.
A filosofia analtica de Frege estabelece uma ruptura com a tradio
filosfica, tanto com a lgica clssica aristotlica quanto com a filosofia kantiana e, a
partir dessa ruptura, Frege tem o desafio de forjar uma trajetria que remonte as
relaes entre o pensamento, a linguagem e a verdade. Faz-se necessrio
compreender o lugar que esses elementos ocupam dentro da lgica e qual sua
relao com o mundo.
Considerando a ciso que Frege realiza, nos aspectos acima observados,
podemos dizer que o domnio das leis do verdadeiro, as referncias que no
possuem posio no espao e no tempo, bem como os sentidos, que so seus
modos de apresentao, seriam tambm objetivos? Ou elas estariam no domnio da
subjetividade? Dada a importncia que essa questo assume para Frege na
distino entre sentido, referncia e representao (ou ideia), estenderemos um
pouco nossa linha de investigao para compreendermos a distino que o autor
estabelece entre os campos objetivo e subjetivo.
40 FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmtica, 14, pg. 217.
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2. A ESTRUTURA FILOSFICA FREGIANA
O problema que encontramos no captulo anterior pode ser formulado da
seguinte maneira: se a verdade no a verdade por correspondncia entre uma
proposio lingustica e um fato emprico ento como se d a verdade no
pensamento fregiano?
Esse problema foi, como vimos, oriundo da negao da posio kantiana
segundo a qual a aritmtica seria um conhecimento sinttico a priori. Se a opo de
Frege que o conhecimento aritmtico analtico, isso exclui, na considerao das
operaes aritmticas, a derivao por experincias empricas. Dada essa ruptura
com a lgica kantiana, Frege ter de redefinir o campo lgico onde a verdade poder
ser encontrada, alm de reestruturar, dentro de seu pensamento, a atuao do que
verdadeiro e de sua relevncia para nossas proposies acerca do mundo. Afinal,
quando declaramos um juzo sobre o mundo, estamos aplicando certas proposies
tidas como certas e verdadeiras e dizendo que, em determinadas condies, ser
verdadeiro que algo seja assim, e no de outra forma. A relevncia do verdadeiro em
tais circunstncias a de afirmar que, dadas certas condies (em geral empricas)
ser verdadeiro o que se afirma do juzo ou das proposies que o compem.
Afirma-se, na verdade, que aquilo que se diz corresponde ao que ocorre, e essa
correspondncia exata o que aduzimos com o termo verdadeiro. Essa concepo
parece ser a levada em considerao por Frege, como podemos verificar de uma
maneira geral em Der Gedanke:
A verdade atribuda a imagens, ideias, sentenas e pensamentos. O quechama a ateno nesta lista o fato de nela encontrarmos, ao lado decoisas visveis e audveis, coisas que no podem ser percebidas pelossentidos. O que indica a ocorrncia de um deslocamento no sentido dapalavra "verdadeiro". De fato, o que ocorre. Uma imagem, enquanto umobjeto visvel e palpvel, poder ser dita propriamente verdadeira? E umapedra, uma folha no sero verdadeiras? Evidentemente, no chamaramosuma imagem de verdadeira se nisso no houvesse uma inteno. A imagemtem que representar algo. Uma ideia tampouco dita verdadeira por simesma, mas s tendo em vista uma inteno; na medida em que elacorresponde a algo. Podemos, pois, presumir que a verdade consiste emuma correspondncia entre uma imagem e seu objeto.41
41 FREGE, G. O Pensamento, in: Anais de Filosofia, pg. 284.
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Porm, como acompanhamos no captulo anterior, Frege se posiciona
contrariamente a essa concepo. Se a verdade ou verdadeiro no se refere a algo
contingente, habitual, ou mesmo fsico, ditado pela experincia ou pela soma de
experincias, ento o campo de relevncia e o modo como atua o termo verdadeiro
na proposio necessita ser explicitado.
Nesse captulo, acompanharemos a abordagem de Frege dos elementos
que foram revisitados e reinterpretados, estabelecendo, primeiramente, o espao
onde a verdade pode ocorrer, o significado de pensamento para Frege e sua relao
com a proposio, o papel do sentido e da referncia e como eles se relacionam
com conceito e objeto.
Objetividade e Subjetividade
Frege, em sua defesa da lgica, busca desvencilhar-se do empirismo e do
psicologismo, em primeira instncia. A matemtica desenvolvida em sua poca
encontrava-se envolta em concepes empricas que remetiam, na prtica, ao
psicologismo. De tal maneira que todas as concepes matemticas ou lgicas
estavam sujeitas a serem analisadas como decorrentes de comparaes, em grau
subjetivo, para com objetos empricos.
Todavia, Frege necessita distinguir as categorias lgicas das psicolgicas de
modo a assegurar a universalidade de suas concepes, pois, se tudo subjetivo,
tudo resultado de interpretaes contingentes e, como tal, no poderamos nos
furtar de um relativismo no campo da lgica que reduziria a verdade a uma verdade
circunstancial, redutvel no apenas s circunstncias, mas tambm considerao
de cada indivduo.
Em Os Fundamentos da Aritmtica (1884), Frege articula a distino entre o
campo objetivo e subjetivo. O campo subjetivo o campo das representaes
arbitrrias. Tais representaes partem dos objetos sensveis do mundo. No entanto,
esses objetos marcam a subjetividade no apenas com sua sensibilidade, mas
principalmente com as impresses individuais que tais objetos produzem. Segundo
Frege:
Se o dois fosse uma representao, seria de incio apenas meu. Arepresentao de outrem enquanto tal j outra. Neste caso teramos talvezmuitos milhes de dois. Dever-se-ia dizer: meu dois, teu dois, um dois,
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todos os dois. Admitindo-se representaes latentes ou inconscientes,haveria tambm dois inconscientes que, por sua vez tornar-se-iam maistarde conscientes. Com a sucesso das geraes nasceriam sempre novosdois, e quem sabe se em milnios eles no se modificassem, de modo a 2 x2 tornarem-se 5.42
Alm disso, Frege acrescenta, em Sobre o Sentido e a Referncia, que
sentimentos e emoes, todos de fundo psicolgico, influenciam a interpretao de
tais objetos, de maneira que a representao formada a partir deles no
corresponde a uma ideia lgica e universal, mas sim individualizada e pessoal.
Segundo Frege:
A referncia e o sentido de um sinal devem ser distinguidos da ideia(Vorstellung) associada a este sinal. Quando a referncia de um sinal umobjeto sensorialmente perceptvel, ento a ideia que dele tenho umaimagem interna, emersa das lembranas de impresses sensveis passadase das atividades, internas e externas que realizei. Essa imagem interna estfrequentemente impregnada de emoes; os matizes de suas diversaspartes variam e oscilam. At num mesmo homem, nem sempre a mesmaideia est associada ao mesmo sentido. A ideia subjetiva: a ideia de umhomem no a mesma ideia de outro. Disto resulta uma variedade dediferenas nas ideias associadas ao mesmo sentido. Um pintor, umcavaleiro e um zologo provavelmente associaro ideias muito diferentes aonome Bucfalo.43
Dessa forma, o campo subjetivo um campo pessoal, no qual a partilha de
informaes nunca a mesma de pessoa para pessoa. Todos possuem um campo
subjetivo, mas ele pessoal e intransfervel, sendo encapsulado no mundo interno
de cada pessoa. Tal distino expressa por Frege, onde lemos:
No se deve esquecer que nunca as representaes de homens diferentes,por mais parecidas que possam ser, o que, por outro lado, ns nopodemos comprovar exatamente, no coincidem em nenhum ponto, edevem ser diferenciadas. Cada um tem as suas representaes, que noso por sua vez as do outro. Naturalmente, entendo aqui representaesno sentido psicolgico.44
Se os objetos da lgica pertencessem ao campo subjetivo, pouco poderia se
fazer em termos de universalidade do conhecimento. Cada um teria seu prprio
princpio de identidade, e cada proposio seria a verdadeira expresso do
entendimento daquela pessoa, tal qual ela o concebe.
Em tais condies, considera Frege, nada impediria que, com o tempo, uma
pessoa pudesse chegar concluso de que a soma entre 2 mais 2 seja 5, ao invs
42 FREGE, G., Os fundamentos da Aritmtica, pg. 227, 27.43 FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referncia, pg. 134.44 FREGE, G. Prlogo s Leis Bsicas da Aritmtica (Trad. Celso R. Braida), pg. 9.
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de quatro, pois algum poderia concluir que os nmeros evoluem, de modo que, no
princpio, 2 + 2 era igual a 1, depois a 2 e, no presente momento, igual a 4. Nada
impediria tal pessoa de pensar que o prximo da lista seria 5. Mas tal representao
s seria possvel se os prprios nmeros e a concepo de suas relaes fossem
igualmente psicolgicas. Ainda segundo Frege, mesmo tal concluso acerca dos
nmeros no poderia ser questionada, pois ela seria verdadeira para aquela pessoa
e, sendo os nmeros representaes subjetivas, no haveria nenhuma referncia
que obrigasse uma pessoa a rever sua interpretao, exceto, talvez, o consenso
popular, que continuaria afirmando ser 2 + 2 = 4. Porm, em tal situao, ningum
poderia objetar que, talvez um dia, o consenso mudasse e se adequasse ao daquela
pessoa, e todos passassem a consentir que 2 + 2 = 5.
Logo, se existe o campo subjetivo, e se as representaes desse campo so
influenciadas pelas impresses internas de cada um, certamente existe um campo
objetivo, onde tais representaes devem se assentar e nele ser corrigidas e
adequadas. Nesse sentido, Frege afirma:
Habitualmente, "branco" faz-nos pensar em uma certa sensao,inteiramente subjetiva, claro; mas j no uso ordinrio da linguagem,parece-me, distingue-se frequentemente um sentido objetivo. Quando se dizque a neve branca, pretende-se uma qualidade objetiva que, luzordinria do dia, reconhecida por uma certa sensao. Caso ela sejailuminada por uma luz colorida, isto deve ser levado em conta no momentodo juzo. Dir-se- talvez: ela agora aparece vermelha, mas branca.45
O campo objetivo consiste no espao onde os objetos do mundo se
encontram, e onde igualmente nos encontramos. Apreendemos os objetos do mundo
por nosso intelecto e deles formamos representaes, interpretando-os. Ainda que
nossas representaes subjetivas sejam pessoais e marcadas por nossas
impresses e emoes, ganhando uma forma peculiar e sendo intransferveis, os
objetos do mundo continuam estando l, permanecendo como objetos reguladores
de nossas interpretaes, podendo produzir correes de nossas representaes.
Porm, o campo objetivo o campo da experincia emprica, do sensvel.
o mundo dos fenmenos com o qual nos deparamos. Esse mundo, a despeito dos
fatos brutos que coagem nossas interpretaes e reduzem sua arbitrariedade,
nunca, porm, de forma completamente eficiente, um mundo cujo conhecimento
45 FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmtica, pg. 226.
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s adquirido a posteriori, mediante a experincia. Frege afirma, a respeito desse
espao objetivo do mundo dos objetos sensveis:
O espao, segundo Kant, pertence ao fenmeno. Seria possvel que seresracionais diferentes o representassem de maneira completamente diferente.Na verdade, nunca podemos saber se ele aparece a uma pessoa como auma outra; pois no podemos colocar a intuio espacial de uma ao lado daintuio da outra a fim de compar-las.46
De modo que, se tomarmos a realidade como sendo composta apenas dos
campos subjetivo e objetivo sensvel, no encontraremos lugar para as leis
universais, nem para a matemtica e nem para a verdade como sendo universais a
priori. No haveria mais verdades analticas, mas apenas verdades sintticas, tais
quais as verdades que todas as cincias procuram, mas das quais nenhum princpio
permanente poderia ser extrado. Tomando igualmente o caminho da lgica
kantiana, teremos sempre de recorrer a uma intuio para validar nossas
percepes, e nelas no encontramos objetividade que possa ser compartilhada.
A verdade, por essa concepo, bem como as leis da lgica ou da
aritmtica, seriam sempre derivadas de relaes entre o subjetivo e o emprico e,
portanto, contingentes. Seriam, segundo Frege, as verdades de Stuart Mill, todas
derivadas de experincias obtidas do contato direto e da observao do meio. Frege
observa:
A concepo de Mill conduz necessariamente exigncia de que para cadanmero se observe um fato em particular, porque em uma lei geral perder-se-ia exatamente a peculiaridade do nmero 1.000.000, que pertencenecessariamente sua definio.47
Sendo construdas por derivao, tais leis ou verdades no deixam de ser
arbitrrias e podem ser ressignificadas com o tempo, passando a representar outras
coisas, estabelecidas por consenso. Novamente, camos em um relativismo. As leis
da lgica e as leis do verdadeiro estariam sujeitas ao pensar, pois no seriam
apreendidas, mas sim construdas por derivao emprica. E, como construes do
pensar, submetem-se ao domnio da psicologia, pois se enquadrariam no campo
subjetivo.
Frege, todavia, no considera as leis do verdadeiro, ou os elementos
lgicos, bem como os nmeros e suas relaes como sendo frutos do campo
46 FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmtica, pg. 226.47 FREGE, G., Os Fundamentos da Aritmtica, pg. 211.
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subjetivo, e resultados do ato de pensar como representaes derivativas do mundo
emprico. Frege as entende como objetivas, analticas e apreensveis pelo ato de
pensar. Segundo o autor, mesmo nas intuies subjetivas, algo de objetivo pode ser
encontrado:
Entretanto, h ainda nelas algo objetivo; todos reconhecem os mesmosaxiomas geomtricos, ainda que to somente de fato, e devem faz-lo a fimde poderem orientar-se no mundo. Nelas objetivo o que conforme a leis,conceitual, judicvel, o que deixa exprimir em palavras.48
Frege reconhece que o campo para toda uma categoria de elementos
constituintes do mundo no se encontra no campo subjetivo e nem tampouco no
campo objetivo sensvel.
O domnio objetivo definido por Frege possui caractersticas distintas do
campo sensvel: Distingo o objetivo do palpvel, espacial e efetivamente real. O
eixo da Terra e o centro de massa do sistema solar so objetivos, mas preferiria no
cham-los de efetivamente reais como a prpria Terra.49
Os elementos presentes nesse campo no-sensvel possuem objetividade,
constituem-se como referncia, so independentes de quaisquer comparaes
humanas com o campo objetivo sensvel e, ainda que ningum jamais viesse a se
aperceber deles, eles sempre estariam estabelecidos, de modo que, em qualquer
tempo ou lugar, a razo poderia apreend-los, e eles estariam inalterados, sempre
da mesma forma, e sempre constituindo-se como leis do ser verdadeiro.
A objetividade, portanto, pode ser entendida, como Frege afirma:
Assim, entendo por objetividade uma independncia com respeito a nossosentir, intuir, representar, ao traado de imagens internas a partir delembranas de sensaes anteriores, mas no uma independncia comrespeito razo; pois responder questo do que so as coisasindependentemente da razo significa julgar sem julgar, lavar-se e no semolhar.50
O campo objetivo concebido por Frege nos Fundamentos da Aritmtica
denominado como campo objetivo no-efetivo, no sensvel.
48 Idem, pg. 226.49 Idem, pg. 225.50 Idem, pg. 226.
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Consideramos, como vimos acima, que Frege estabeleceu trs instncias na
constituio da realidade. A concepo de um plano objetivo no-efetivo permite a
Frege desenvolver, como Dummett (1973) afirmou, um contexto no qual a realidade
independe de quaisquer fatores empricos para se fazer conhecer de forma analtica.
De acordo com Dummett:
A imagem pode ser chamada de verdadeira, na medida em quecorresponde de perto com o que se pretende representar. A verdade de umaimagem , portanto, relacional: podemos julgar