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Liberdade em disputa: a politização da legislação emancipacionista no processo da
abolição da escravidão em Sergipe (1880-1888).
Camila Barreto Santos Avelino1
Resumo: este trabalho faz reflexões sobre como o uso do discurso público sobre a Lei
de 1871 (mais conhecida como Lei do Ventre Livre e a Lei Saraiva – Cotegipe, de 1885,
ou Lei dos sexagenários) acentuou expectativas e ansiedades acerca da extinção da
escravidão no Brasil. O objetivo é evidenciar a relevância do movimento abolicionista, na
década de 80, para a politização das lutas sociais em prol da abolição da escravidão.
Assim, pretendemos estabelecer um diálogo entre a história social da escravidão e as
recentes tendências dos estudos sobre abolição no Brasil. Para isso, discutiremos parte
da historiografia sobre esses temas, buscando pontos de comunicação entre eles,
contudo, utilizando fontes primárias para tentar dar suporte aos argumentos. Aqui,
privilegiaremos uma categoria específica de escravizados: africanos e afro-brasileiros
que moveram petições de liberdade entre os anos de 1882 a 1886, na capital da
província sergipana - Aracaju. Essa escolha foi feita por diversos motivos: primeiro, por
ser uma categoria profundamente marcada pelas tensões e conflitos que antecederam os
anos finais da escravidão e/ou por apresentarem em suas narrativas argumentos
embasados nas ambiguidades da legislação emancipacionistas no Brasil.
Palavras-chave: escravidão, liberdade, política e abolição.
Em 1881, a escrava africana Rufina procurou a delegacia de polícia da Vila de
Porto da Folha, em Sergipe, para requerer sua liberdade, alegando “ter sido importada
depois da lei proibitiva do tráfico Africano”. 2 A ação de liberdade movida contra
Manoel Xavier S. Andrade colocava em questionamento a legalidade das transações que
envolvia sua escravização e venda, pois, como ela afirmava, havia sido realizada depois
da Lei de 1831, que proibia o tráfico negreiro para o Brasil. 3 A escravização ilegal da
africana Rufina não foi um caso isolado. Como a historiografia aponta, no período entre
1831 a 1850, desembarcaram mais de um milhão de africanos escravizados no Brasil4.
O historiador Dale Tomich, ao analisar a instituição escravista nos Estados Unidos, na
colônia espanhola de Cuba e no Brasil, ressalta que esse momento histórico tem íntima
1 Doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense, sob orientação da professora Drª. Hebe
Maria de Castro Gomes de Mattos. E-mail: [email protected]
2 APES, Sp9, pacotilha 18. Solicitação de mandato de busca e apreensão da escrava africana Rufina,
1882.
3 A referida lei que embasa os argumentos apresentados no caso da africana Rufina é a Lei de 7 de
novembro, de 1831, que proibia o tráfico negreiro para o Brasil, este caso faz menção ao Art. 1º, que
declara que “todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres”.
Coleções de Leis e Decretos do Brasil.
4 Segundo estimativas para o período, de 1826 a 1850, desembarcaram cerca de 1.299.969 escravos
africanos no Brasil. Em: www.slavevoyages.org
conexão com o dinamismo do mercado mundial capitalista, sendo essa segunda
escravidão sustentada pelo tráfico internacional revigorado. 5
Proposta a ação de liberdade, Rufina passou ao depósito de Francisco de Paula
Torres, a quem o proprietário de Rufina também concedeu “plenos poderes de requerer
e capturar a escrava, caso ela viesse a fugir”. Não tardou muito e a mesma fugiu para a
capital da província, Aracaju. No dia 26 de junho, de 1882, o depositário procurou a
Secretaria de Polícia da capital para relatar que a escrava havia fugido do seu domínio
pela segunda vez, “motivada por questões ilusórias”. 6
Do relato do depositário emergem informações importantes sobre as suas
interpretações do caso citado. Para Francisco de Paula Torres, a alegação da escrava
Rufina, que teria sido escravizada depois da lei proibitiva, era uma “falácia” criada para
fugir do cativeiro. Em sua petição, ele ainda denúncia o abolicionista sergipano
Francisco José Alves pelo acoitamento da escrava em sua residência. 7 Em suas
palavras,
Agora, porém, de novo desapareceu [Rufina] do depósito, iludida pelo
celebre Francisco José Alves emancipador dos escravos [.] residente nessa
capital, que a conserva em seus serviços e em sua companhia, e como é o
caso de proceder-se a busca e apreensão, o suplicante sabe com certeza que a
mesma iludida escrava está em casa do [citado], requer da V. S que se digne
de expedir em seu favor o competente mandato, depois de ouvir o
testemunho de Severino8
Não sabemos ao certo como a escrava africana se encontrou com Francisco
José Alves e com quais meios ela conseguiu viajar do interior para a capital. Mas,
sabemos que ela não foi a única escravizada a buscar ajuda do abolicionista como seu
peticionário em sua ação de liberdade. Alguns anos antes, o órfão escravizado, Olegário
da Vila de Japaratuba, fez um percurso semelhante, como veremos mais adiante.
Francisco José Alves era um abolicionista bastante conhecido, tanto na capital quanto
no interior da província. O seu empenho em defender a causa abolicionista circulava tanto
nas esferas jurídicas, por sua atuação como “emancipador” dos escravizados, como
nas páginas dos jornais O Descrido e o Libertador - principais periódicos abolicionistas
em Sergipe, circulava em toda província9.
5 Tomich, Dale. Through the prism of slavery: labor, capital, and world economy. Boulder, Rowman &
Littlefield, 2004.
6 APES, Sp9, pacotilha 18. Solicitação de mandato de busca e apreensão da escrava africana Rufina 1882.
7 Ibidem.
8 Ibidem.
9 Esses jornais foram criados por Francisco José Alves como veículo de propagação de ideias
abolicionistas - O Descrido (1881) e O Libertador (1884). O Descrido, assim como o nome já descreve,
foi assim chamado por Alves ao considerar que suas ideias emancipacionistas não surtiam efeito
pragmático para a sociedade sergipana, que o levava a desacreditar em mudanças profundas. Criados com
Alves foi responsável por diversas petições de liberdade de homens e mulheres
escravizados, que vinham de todos os lugares do interior da província para a capital em
busca de sua ajuda e a procura da Sociedade Libertadora Cabana do Pai Thomaz. Ele
relata com entusiasmo que, desde a Lei do Ventre Livre, já havia conseguido na Justiça
a libertação de 82 escravos10. Embora o abolicionista Francisco José Alves afirme não
ser um “sedutor de escravos”, que apenas lutava em favor da liberdade, através de
outros casos, podemos verificar que a acusação do depositário Francisco de Paula Tores
era pertinente.
Em 1881, a polícia se dirigiu a Rua do Rio Real, em Aracaju, batendo na porta
da residência do abolicionista de posse de um mandato de busca e apreensão de outra
escravizada acobertada pelo abolicionista “Rosalina, africana, maior de cinquenta anos e
que se acha matriculada na Vila de Capela, sendo seu dono legítimo Manoel dos Santos
Lira, que tem em posse o seu título de domínio e relação de matrícula juntos”. A escrava
foi encontrada em um quarto dos fundos da residência, tendo sido conduzida à prisão da
delegacia de Aracaju e, logo em seguida, entregue a seu proprietário11.
Os casos de acoitamento das africanas Rufina e Rosalina não foram os únicos.
Nas páginas do jornal O Descrido, encontramos o caso do escravizado Olegário no qual
o abolicionista também estava envolvido. Olegário havia nascido de Ventre Livre, sua
mãe Cecília era uma africana liberta quando o teve em 1868, na Vila de Japaratuba.
Porém, Isaias Ferreira de Oliveira, tutor de órfãos em uma prática imoral, reduziu a
escravidão uma pessoa livre. Após a morte da mãe do pequeno Olegário, em 1873,
Isaias matriculou o órfão em Maruim como seu escravo, vivendo nessa condição desde
então. Nas palavras de Francisco José Alves,
Nos que nunca perdemos de vista questões de liberdade, esperamos por
ocasião [asada] em que pudéssemos resgatar a liberdade do infeliz Olegário,
que nascendo de ventre livre e recebendo águas lustrais do batismo como
livre ainda se acha mantido nos grilhões do cativeiro. [...] Felizmente essa
ocasião chegou e Olegário escapando da vigilância de Isaias, deu voltas as
gambias e pôs-se ao fresco, e depois de grandes voltas e rodeios,
sustentando-se de caldo de cana chegou enfim a esta capital, onde
pudemos fazer uma entrevista com ele, na qual lhe prometemos que ele gozaria
de sua liberdade ou nós deixaremos de existir12. [Grifos nossos]
uma pequena diferença de anos, essa mudança ocorre em função das transformações que o abolicionista
observa como significativas para a abolição da escravidão, ele rompe com o partido conservador, embora
ele continue defendendo a emancipação gradual, as notícias nos jornais passam a questionar com mais
veemência os descumprimentos da legislação abolicionista, bem como a afrontar diretamente aqueles que
ele considerava escravagistas.
10 O Descrido, 28/06/1882.
11 APES, Sp9, pac 18. Petição de Manoel dos Santos Lira de busca e apreensão da escrava africana
Rosalina. 20/08/1881.
12 O Descrido, 1/02/1882.
Sete meses depois, após uma longa viagem de retorno da capital do Império,
Alves conseguiu comprovar que Olegário era de fato livre. Ele apresentou o registro de
batismo de Olegário, realizado em 1868, dois meses após seu nascimento, tendo como
padrinho o Tenente Manoel Dias de Almeida, que ainda era vivo e residia na mesma
freguesia. Ainda cita que publicará a carta de alforria da africana Cecília, extinguindo de
vez as dúvidas sobre a liberdade do pobre Olegário13.
Os casos de Olegário e Rufina são semelhantes e apresentam estrutura
narrativa emancipacionista embasada no descumprimento dos direitos que a lei lhes
assegurava e que a política emancipacionista trouxe à tona com a promulgação da Lei
de 28 de setembro, de 1871. Os argumentos apresentados na petição de liberdade da
africana Rufina e do órfão escravizado Olegário não se diferenciam em muitos aspectos
das demais petições de liberdade que encontramos para o período em análise, que se apoia
na violação do direito à liberdade afiançado na Lei do Ventre Livre. Ainda não foi possível
realizarmos uma quantificação dos argumentos utilizados para a consecução da liberdade
de todos petições coletadas, em uma amostra preliminar encontramos a recorrência dos
seguintes argumentos: africanos escravizados importados depois da Lei proibitiva do
tráfico de escravos (Lei de 1831), casos referentes a ausência das matrículas dos
escravos, que conforme o Artigo 8 (inciso 2º) da Lei de 1871, tornava livre os escravos
não matriculados por culpa ou omissão dos seus senhores e fraude na classificação de
escravos que deveriam ser libertados pelo fundo de emancipação14. Justificamos a escolha
desses casos para abrirmos nosso trabalho, porque eles servem de fio condutor para
problematizarmos várias questões sobre o processo abolicionista em Sergipe, região
predominantemente rural em que a escravidão vigorou até seus últimos
dias.
Por meio dessa legislação, o Estado passou, por um lado, a desempenhar um
papel maior na estruturação dos caminhos para a liberdade, sobrepujando a vontade
senhorial em relação às alforrias e emancipando os filhos do ventre escravo e, por outro
lado, acabou por consolidar as reivindicações dos senhores de escravos sobre os africanos
importados após o período proibitivo do tráfico negreiro de 1831. Como bem argumenta
Beatriz Mamigonian, “a lei de 1871, por meio da matrícula especial de 1872, deu ao
governo a autoridade de emitir registros de propriedade sobre todos os que eram
13 IBIDEM.
14 Nos arquivos público e judiciário do Estado encontramos 68 petições de liberdade que foram
propostas em Aracaju, 6 em Laranjeiras e 6 em Rosário, entre 1880 e 1888.
mantidos em escravidão ilegal, e sobre seus filhos e netos” (Mamigonian, 2011, p. 36).
Como veremos mais adiante, o Estado não só legalizou, como também documentou a
posse dos africanos em violação da Lei de 1831. E essas questões não passaram
despercebidas e vieram à tona no contexto das lutas abolicionistas.
Ao analisar as províncias na véspera do abolicionismo, o autor Conrad infere
que, para as províncias do Nordeste, a emancipação já vinha se processando, visto que a
população cativa já havia diminuído drasticamente, no período de 1874 a 1884, por
conta do tráfico interprovincial, como foi o caso do Ceará, que, de modo geral, os
fazendeiros já haviam feito os ajustes psicológicos e práticos necessários para que lhes
permitissem aceitar a abolição da escravidão com paciência. Discordamos dos
argumentos do autor com relação a tese de que a escravidão já não era tão importante para
as províncias do Nordeste brasileiro por causa da diminuição do número de escravos15.
As províncias do Nordeste açucareiro apresentam dados contrários aos apontados
pelo autor. E os dados das matrículas de escravos, de 1873 e 1887, permitem- nos um
melhor esclarecimento dessa questão. Sergipe, assim como Bahia, Alagoas e
Pernambuco, tiveram uma redução escrava menor que o restante do Nordeste. Enquanto
a redução da população escrava, nesse período, no Nordeste, foi de 68, 52%, no
Nordeste açucareiro foi de 54,97%. E Sergipe se destaca como o que teve menor
redução da população escrava, no período citado, com um índice de 48, 82%, menor que
a média brasileira, que foi de 53,54%. Reforçando a nossa tese central que, nessa
localidade, houve uma forte reação pró-escravidão. 16
Por isso, inferimos que houve uma intensificação dos debates abolicionistas em
Sergipe pela circularidade das notícias nos jornais e pelos burburinhos abolicionistas
que se intensificaram nessa década, mesmo nas regiões mais remotas. O que levou a
escrava africana Rufina a procurar o abolicionista. Apesar de ser uma figura controversa
no cenário abolicionista sergipano, Francisco Alves, ao criar a sociedade
emancipacionista mais importante da província A Sociedade Libertadora Cabana do
Pai Thomaz, atraiu muitos escravizados que o procuravam a fim de tê-lo como
curador17. Não iremos nos ater, nesse texto, a uma trajetória detalhada de Francisco José
Alves, um dos articuladores das lutas sociais em Sergipe no processo de abolição da
15Conrad atribui a Sergipe uma perda líquida de 2.342 escravos, através do comércio interprovincial no período de 1874-1884, o que contrasta com os dados apontados na matrícula de 1873, no qual pode ser computada uma perda líquida de 893 escravos, ou seja, 2,71%. Ver Conrad... Ob cit, p. 150.
16 PASSOS SUBRINHO, Josué Modesto dos. Reordenamento do Trabalho: trabalho escravo e trabalho
livre no nordeste açucareiro, Sergipe 1850/1930. Aracaju, Funcaju, 2000. P. 105.
escravidão, mas recorreremos aos seus posicionamentos para compreendermos melhor o
Vale do Cotinguiba sergipano nesse contexto.
Voltemos à história de Rufina. No mesmo dia em que o depositário Francisco
de Paula Torres procurou a delegacia da capital, ele também apresentou uma testemunha
que viria comprovar a sua acusação referente ao acoitamento de Rufina na casa de
Francisco José Alves. Ao depor sobre o caso, o praça Severino José de Sant’Anna
afirma que viu a dita escrava, pois ela costumava lavar roupas da casa de Alves na lagoa
da matança, local onde a mãe do depoente costuma ir para lavar roupas, afirma encontrar-
se com sua mãe nessa região, motivo pelo qual sabe do paradeiro da escrava18. Diante do
testemunho de Severino, o juiz Mathias Espinola Jabuticaba expediu o mandato de busca
e apreensão que foi realizado na casa de Francisco José Alves, encontrando a escrava
Rufina escondida em um quarto, tendo sido presa e conduzida à delegacia, sendo em
seguida entregue ao seu proprietário19.
Embora a história de Rufina tivesse conexões com a de Olegário, em relação ao
abolicionista Francisco José Alves, não possuímos muitos detalhes acerca dos fatos que
compõem a trajetória da escravização da africana. No momento da prisão de Rufina,
não foi realizado nenhum registro policial que fornecesse maiores detalhes do seu caso,
um auto de perguntas, por exemplo, procedimento bastante comum nas delegacias de
polícia. Até o momento também não encontramos a ação de liberdade que ela moveu
contra seu senhor na Vila de Porto da Folha, além disso, não achamos para esse período,
nenhuma petição de liberdade em favor da escrava Rufina movida por Francisco José
Alves20. Mas, esse caso apresenta situações controversas que possuem conexões com o
modo em que se estruturou o movimento abolicionista sergipano, como mostraremos a
seguir.
Construindo narrativas em torno da emancipação
Ao analisar o processo da abolição no Brasil, o historiador Ricardo Salles ressalta
a importância de tangenciarmos as experiências emancipacionistas no mundo
17 Sobre a biografia de Francisco José Alves ver SANTOS, Maria Nely. A sociedade libertadora:
“Cabana do Pai Thomaz”, Francisco José Alves, uma historia de vida e outras histórias. Aracaju:
Gráfica J. Andrade, 1997.
18 APES, Sp9, PAC 18. Auto de Perguntas feita a Severino José de Santa’ Anna. 26/06/1882.
19 APES, Sp9, PAC 18. Mandato de busca e apreensão da escrava Rufina. 26/06/1882.
20 Sharise Amaral ao estudar o padrão de alforrias, petições e ações de liberdade em Sergipe, entre 1871
e 1888 da região do Vale do Cotinguiba, a autora infere que não encontrou nenhum caso em que seja
usada como argumento a Lei de Proibição do Tráfico de Africanos, de 1831, como justificativa para sua
libertação. AMARAL, Sharyse Piroupo do. Escravidão, Liberdade e Resistência em Sergipe: Cotinguiba
(1860-1888). Tese de doutorado, UFBA, Ano de Obtenção: 2007.
atlântico; apesar da abolição nesses países ocorrer em tempos distintos, com um século
de diferença, isso não se deve ao atraso da adaptação do Brasil aos tempos modernos.
Ao contrário, esse autor entende que a segunda escravidão no Brasil, em Cuba e nos
Estados Unidos, no século XIX, foi parte do processo de desenvolvimento capitalista
industrial que reavultou a instituição escravista nessas regiões21. Para Salles, “nessas
áreas, o novo impulso escravista conviveu permanentemente com uma tensão
antiescravista, tanto do ponto de vista interno quanto do ponto de vista internacional”
(Salles, 2011, p. 8).
Para a historiadora Hebe Mattos, a expansão comercial europeia da época
moderna se assentou sobre a escravidão no Novo Mundo, ao mesmo tempo em que
conviveu com as novas noções de liberdade econômica e cidadania política, que
começavam a ser engendradas no bojo das revoluções atlânticas a partir de meados do
século XVIII, paralelos aos desafios – econômicos, mas também políticos e culturais –
colocados pela problemática da emancipação.22 No caso brasileiro, o encaminhamento
da questão abolicionista principiou após a supressão do tráfico ilegal de escravizados
em 1850, mediante forte pressão internacional da Inglaterra, porém, a opinião pública
sobre o abolicionismo só começou a tomar corpo nas décadas seguintes, principalmente
após a Lei de 1871, que aboliu a escravidão do ventre23.
Angela Alonso, em seu enfoque sobre as formas de organização do
abolicionismo brasileiro, expõe que o Brasil ficou em uma situação constrangedora
como última sociedade escravista do Ocidente, em fins do século XIX. Assim, a
circulação de experiências políticas em escala internacional levou tanto o Estado quanto
os abolicionistas brasileiros a se inspirarem nas formas de organizações do
abolicionismo internacional, mas com ajustes na transposição do repertório
antiescravista estrangeiro. No início da década de 1860, fase considerada pela autora como
a gênese desse movimento, as iniciativas para acabar com a escravidão se processou
apenas no interior das instituições24.
21 34 SALLES, Ricardo. Abolição no Brasil: resistência escrava, intelectuais e política (1870-1888) .
Revista de Índias, vol. LXXI, n. 251, 2011, p. 259-284. P. 259 P. 259
22 COOPER, F., HOLT, Thomas & SCOTT, Rebecca. Além da escravidão: investigações sobre raça,
trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Trad. Maria Beatriz Medina. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira. P. 15,
23 SALLES... Ob cit, p. 261.
24 ALONSO, Angela. O abolicionismo como movimento social. Revista Novos Estudos: Novembro de
2014. PP 115 a 137. P. 125
Após disputas entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos - que acabou por abolir
a escravidão nesse país, “sem indenização dos proprietários”, colocando o país ante uma
sangrenta da Guerra Civil, em 1868 - as repercussões desses acontecimentos lançaram
sobre os dois últimos Estados escravistas das Américas (Brasil e Cuba) um acalorado
debate sobre o fim da escravidão. O Brasil diante de uma forte crise política doméstica,
entre 1868 e 1871, surge então às condições para o primeiro ciclo de mobilizações
antiescravistas no espaço público. Terreno fértil para o surgimento de diversas
associações abolicionistas pelo país. 25
Nos anos seguintes a Lei do Ventre Livre, os debates abolicionistas giraram em
torno da ambivalência da lei, emergindo críticas de diversas regiões do país. Como
previa a lei, a classificação dos cativos, dentro de critérios estabelecidos pelo governo,
ficou sob a responsabilidade de uma junta de Classificação, a qual deveria reunir-se no
período que estivesse próximo à distribuição das Quotas. Entretanto, algumas dificuldades
surgiram devido à morosidade do trabalho.
Constava nos relatórios dos presidentes das províncias de todo o Estado várias
polêmicas relacionadas aos processos de matrículas das mulheres e dos homens
escravizados e aos fracassos dos fundos de emancipação. Conrad comprova que a Lei de
28 de setembro, de 1871 (previa, no Artigo 3, o estabelecimento de um fundo de
emancipação e ordenava, no Artigo 8, um registro nacional de todos os escravos e
ingênuos) teve diversas dificuldades de ser executada e, em algumas províncias, como
foi o caso de Sergipe, nos primeiros anos, ela não saiu do papel, pois o governo central
não dispunha de poder suficiente para impor o seu cumprimento.
Em carta enviada ao governo do Estado, o presidente da província de Sergipe
expõe os principais motivos do atraso das Juntas de Classificação nessa região. Conta que
as razões de não ter enviado as listas de classificação de escravos no prazo determinado
pela lei foram: a falta de livros de registros, ausência de um promotor, recusa de tabelião
e dos secretários em trabalhar por falta de salários e dificuldades em estabelecer um valor
para os escravos classificados. Alguns dos municípios sergipanos apresentaram seus
relatórios em 1875, mas outros continuaram encontrando pretexto no ano seguinte. 26
Outros problemas também foram apresentados em Sergipe relativos à Lei do
Rio Branco. No Artigo 8 (inciso 4º), tornava obrigatório a matrícula dos filhos de suas
25 ALONSO... ob, cit p. 126.
26 CONRAD... ob, cit, p. 135.
escravas que, por lei, ficariam livres, prevendo punição em consequência de
negligências em relação à aplicabilidade da lei, como consta: “incorrerão os senhores
omissos, por negligência, na multa 100$000 a 200$000; repetida tantas vezes quanto
forem os indivíduos omitidos, e por fraude nas penas da Lei”27. Em todos os três casos
que encontramos infração dessa lei, os senhores e senhoras de escravos acabaram sendo
multados por não efetuarem as matrículas de ingênuos. Prática bastante usual entre os
proprietários de escravos a fim de tornar cativos os filhos de suas escravizadas que haviam
nascidos livres.
Na Vila de Simão Dias, José de Mattos Freire de Carvalho, em 1883, “foi
multado em duzentos mil reis por não matricular as ingênuas Josefa, filha de sua
escrava Martinha e Maria, filha de [ilegível] ambas nascidas em Maio de 1872”.28 No
mesmo ano, o coletor dessa vila também multou “Pedro José de Andrade, no valor de
cem mil reis, por não realizar a matrícula de José, filho de sua escrava Maria, nascido
em Junho de 1882”29. Talvez, pela prática corriqueira entre os senhores de escravos de
tentar burlar a lei, o coletor de Laranjeiras aplicou multa à Rita Ferreira do Nascimento
por não matricular o ingênuo Militão e fez questão de enfatizar que a mesma não cumpriu
a lei “mesmo depois de dezesseis meses do nascimento do ingênuo”30.
E, não foram somente motivos administrativos, apresentados pelo presidente da
província de Sergipe, que notamos em relação ao descumprimento da legislação
emancipacionista. Como referimos antes, o caso da africana Rufina e de Olegário, embora
por motivos distintos, foram cerceados de sua liberdade e escravizados em consequência
da matrícula de escravos de 1872. Não possuímos dados mais completos sobre o caso da
africana Rufina e alguns questionamentos sobre sua trajetória servem para alargar nossa
pesquisa: qual teria sido o percurso realizado pelos escravizados africanos entre a África
e o Brasil? Como essas mulheres e homens escravizados entraram em Sergipe? Porque
Rufina e outros africanos escravizados não procuraram a justiça antes?
Nos anos seguintes à Lei de 1871, tanto escravizados quanto senhores
reconheceram que mudanças expressivas estavam ao alcance de todos; a possibilidade
27 Coleção de Leis e Decretos do Brasil. Lei de 28 de Setembro de 1871.
28 APES, Fundo AG¹, caixa 5A. Multa aplicada pelo Coletor da Vila de Simão Dias a José de Mattos
Freire de Carvalho.
29 APES, Fundo AG¹, caixa 5A. Multa aplicada pelo Coletor da Vila de Simão Dias a Pedro José de
Andrade.
30 APES, Fundo AG¹, caixa 5A. Multa aplicada pelo Coletor de Laranjeiras a Rita Ferreira do
Nascimento.
de transformação significativa dependia do modo de lidar com o recém-criado mecanismo
legal. Ao estudar o impacto da Lei do Ventre livre em Pernambuco, o historiador Celso
Castilho observa que diferentes interpretações relacionadas a essa lei estimularam os
debates públicos sobre a emancipação nessa província e a frequência dessas críticas feitas
em nome do “povo” e/ou da “nação” transformou a lei em um problema. 31 O fato é que
uma década depois da implementação da Lei do Ventre Livre encontramos no contexto
do movimento abolicionista sergipano vários motivos relacionados a essa lei sendo
utilizados por escravocratas, abolicionistas e escravizados nas ações de escravidão e de
liberdade impetradas em Sergipe. Vejamos os principais que foram citados nesse
contexto.
Em um artigo, do jornal O descrido de 1882, dirigido ao presidente de Sergipe,
o articulista faz uma denúncia sobre os abusos na classificação de escravos para serem
libertados pelo fundo de emancipação, na Vila de Itaporanga, alegando que o coletor havia
recebido dinheiro de alguns escravizados a fim de adiantar a sua libertação, descumprindo
a lei que previa a organização do fundo de emancipação por categoria de prioridade. E,
senhores de escravos além de não classificarem alguns dos seus escravizados, escolhiam
os que deviam ser emancipados, nesse caso, os preteridos eram sempre os mais velhos
e doentes. Como consta “no ano passado libertou-se ali indivíduos que estão na
quinta classe, deixando de ser classificado um casal de escravos do Barão de Laranjeiras
e de outros que ficaram preteridos de gozar sua liberdade na forma da lei”. 32
Em outra notícia, Francisco José Alves critica o governo brasileiro com relação
à condução da ”questão servil”, pois para os abolicionistas, o governo favorecia os
trabalhadores estrangeiros em detrimento da mão de obra nacional, concedendo-lhes
terras e outros incentivos, enfatizou ainda que a escravidão era o atraso da agricultura e
do Brasil. 33
Alves segue narrando que a Lei de 28 de setembro de 1871 não foi benéfica
para os que estavam se libertando, pois, uma vez que saiam das casas de seus senhores,
sem terras e sem trabalhos ficavam a mercê de sua própria sorte. Os libertos mais velhos
perambulavam pelas ruas desamparados e, como previa a lei, os ingênuos deveriam ser
31 CASTILHO, Celso. In: DOMINGUES, Petrônio; GOMES, Flávio (Orgs.). Experiências da
emancipação: biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1890 – 1980 ). São Paulo:
Selo Negro, 2011, pp. 77-147. P. 28
32 O Descrido, 10/01/1882.
33 O Descrido, 6/12/1881.
34 IBIDEM.
criados e educados para serem úteis ao país. Porém, na prática não era o que acontecia.
Em suas palavras, “e não foi esse mesmo governo que abandonou a milhares de
ingênuos que atingiram essa idade, deixando-os entregue aos senhores de suas mães,
para serem criados brutalmente como dantes, levando chicote sem aprender a ler e
escrever”. 34
As reclamações do abolicionista Alves eram pertinentes, pois se a lei acertou
ao tirar do senhor o privilégio de decidir quem poderia ser alforriado, mesmo com todas
as ambivalências das negociações de liberdade, essa legislação manteve-se relutante em
relação à situação do filho das mulheres escravizadas. Ao dar a opção de escolha aos
senhores de escravos entre ser indenizados ou usufruir dos “serviços dos ingênuos” até a
idade de 21 anos, na maioria dos casos optou-se pela segunda alternativa. Ao mesmo
tempo em que a Lei de 1871 buscou nortear-se pelas premissas em relação à liberdade dos
escravizados, manteve a ambiguidade do costume, das relações costumeiras, no tocante
ao ingênuo, ou seja, os senhores de escravos continuaram mantendo “poder” em relação
à descendência da senzala.
Ao analisar as discussões preliminares sobre essa legislação, a historiadora Joseli
Mendonça narra que, na proposta inicial, a partir do quarto mês de vida, o ingênuo
seria entregue a uma pessoa idônea ou instituição, caso a mãe escravizada concordasse e
o marido (caso tivesse) também anuísse. Ela descreve:
(...) nas discussões posteriores, alguns conselheiros mostram-se contrários a
esse encaminhamento legal, apesar do Conselho de Estado ter-se posicionado
favorável a libertação do ventre. Segundo tais conselheiros, tal adendo
poderia tirar totalmente o poder moral dos senhores, ao conceder à escrava o
direito de opinar sobre o futuro do seu filho (...) (Mendonça, 1999, p. 99).
As estratégias dos escravizados para adquirir a liberdade também eram bastante
diversificadas; muitos também faziam uso das brechas da legislação para forçar a sua
liberdade. Ao estudar as alforrias no agreste sertão sergipano, a historiadora Joceneide
Cunha relata o caso do escravizado João Marçal, por exemplo, que às vésperas da
abolição, em 1888, para negociar e forçar sua alforria, encontrou um coiteiro. Antônio
dos Santos Menezes, escrivão de órfãos que, provavelmente, tinha interesse em seus
serviços, o auxiliou. O escrivão era um conhecedor das leis e, por isso, podia auxiliá-lo
numa possível luta na justiça. Posteriormente, o escravo passou bastante tempo
“subtraindo-se do serviço” e foi acoitado por dois anos. O escopo do escravo era alegar
abandono de herança num possível conflito judicial. Temendo a disputa na justiça e,
37 IBIDEM.
consequentemente, a perda do escravo, Miguel Archanjo do Nascimento, o proprietário,
alforriou a parte que possuía de João Marçal e pontuou que entraria com uma ação civil
reivindicando o pagamento das jornadas de trabalho que o escravo prestara ao
escrivão35.
A fim de alertar o público para não perder investimentos, Francisco Militão,
Luiza e Edwirges colocaram nota no jornal O democrata, em 1881, “que pessoa alguma
os compre de Francisco Manoel de Souza Pinto, porque são livres tais indivíduos”, pois
os mesmos haviam recebido cartas de liberdade de Maria Rosa de Aguiar Lemos e Luiz
Barbosa Madureira Maynart - se achavam arquivadas no termo de Divina Pastora. Da
posse de liberdade, os três libertos foram por acaso presos em Maruim, o delegado dessa
vila alegando que eles eram escravos fugidos mandou que os mesmos recorressem à
autoridade judiciária para fazer valer seu direto de liberdade. Da prisão, eles passaram
ao depósito do capitão Francisco das Chagas Lima, repassou os três escravizados aos
cuidados de Souza Pinto e Faro. Tempo depois, o curador nomeado do caso requereu o
levantamento do paradeiro dos seus curatelados, sendo informado que os mesmos não
estavam em poder do capitão Francisco das Chagas Lima, pois tinham sido vendidos
por Souza Pinto e Faro. Pois, o mesmo senhor Souza Pinto e Faro apresentou uma
procuração legal em nome de Maria Rosa, sua sogra e antiga dona dos escravizados36.
Esse caso apresenta articulação entre os senhores de escravos para burlar a lei e
manter os escravizados em seu poder. De certo, com o falecimento da sogra, os seus
antigos escravizados buscaram abrigo em outro município, pois essa prática era comum
entre os libertos. Cientes da perda de parte da herança, Souza Pinto e Faro contou com a
ajuda de dois amigos, o delegado de Maruim e do capitão Francisco das Chagas, que havia
sido nomeado depositário legal de Francisco Militão, Luiza e Edwirges. Então de posse
de antiga procuração de sua sogra, Souza Pinto e Faro não tardou em colocá-los a venda
“esta questão já foi levantada no conhecimento do ex. senhor Ministro da Justiça, pelo
abaixo firmado, o qual examinando o translado da procuração, com a qual Faro fez venda
desses três infelizes, a Francisco Manoel de Sousa Pinto, por um conto e cem mil reis”. 37
35 Carta de Alforria, João Marçal, p. 19 e 19v, Livro de Notas nº2 Cartório de Lagarto primeiro ofício,
caixa 01-1094. Apud SANTOS, Joceneide Cunha, “Entre Farinhadas, Procissões e Famílias: a vida de
homens e mulheres escravos em Lagarto, 1850-1888”, Dissertação de Mestrado em História, UFBA,
2004. p. 126.
36 O Democrata 15/07/1881.
O escravizado João Benvindo também passou por um longo conflito com os
trâmites de sua liberdade e, por isso, mandou publicar nota em jornal O descrido, em
1881, visando levar ao conhecimento do público sua condição judicial, a fim de coibir
os possíveis interessados em sua compra. Em acordo com sua senhora, Joana Narcisa
Fontes da Silva, firmou o preço de sua liberdade em setecentos mil reis, dando ele de
entrada trezentos mil reis, o qual possuía recibo, e o restante pagaria em parcelas de 12
mil reis mensais até que completasse o valor total; daria ao final de três anos e três
meses. Mas, passados alguns meses, a sua senhora lhe escreveu pedindo o restante da
quantia por estar precisando por conta de imprevistos. José Benvindo lhe respondeu que
“estava próximo de moer cinco tarefas de cana para completar com o produto delas a outra
metade de seu valor contratado”, pode ele no momento enviar a dita senhora somente
mais cinquenta mil reis, o qual também pedia recibo38.
Alguns dias depois, a caminho do engenho São Francisco, José Benvindo
encontrou com o tenente Paulinho José do Bomfim, “que lhe disse que já o havia
comprado, e que dava somente oito dias de prazo para o abaixo firmado ir para seu
cativeiro sob pena de mandá-lo prender onde o achasse”39. Tendo sua liberdade
ameaçada o escravo procurou a justiça da capital a fim de resolver o seu “direito de
liberdade”. Problemas como o de José Benvindo não foi um caso excepcional. A
historiografia demonstra que ambiguidades nos processos escravidão e de liberdade
eram semelhantes em todo o Brasil. 40 Entretanto, após a Lei do Ventre Livre, a justiça
passou a ser uma instância intermediária bastante procurada por escravizados e por
proprietários de escravos sergipanos.
Notamos, nas petições de liberdade que coletamos no arquivo público e judiciário
do Estado de Sergipe e nas diversas notas de jornais, que os últimos anos da escravidão
foram marcados pela recorrência das idas à justiça de escravizados e seus respectivos
senhores.41 Em abril de 1888, o jornal A Reforma, órgão do partido Liberal, em artigo
intitulado “Hegira dos escravos” relatou que a capital da província estava sendo invadida
pela classe servil que via no “chefe de polícia o garantidor dos seus direitos, o funcionário
incumbido de homologar as suas cartas de liberdade, o protetor nato de suas novas
fraquezas e regalias”. Segue dizendo que a cada momento o
38 O Descrido 28/11/1881.
39 IBIDEM.
40 GRINBERG... ob, cit., p. 28.
41 Encontramos 68 petições de liberdade que foram propostas em Aracaju, 6 em Laranjeiras e 6 em
Rosário, entre 1880 e 1888.
magistrado em Sergipe tem de ouvir as representações de dezenas de emigrantes das
propriedades rurais que reclamam da manutenção do seu estado de liberdade.
Convertendo, dessa forma, o magistrado em um “general do exército da liberdade”42.
As palavras do articulista, do jornal A Reforma, contribuem com a nossa visão
sobre o aumento das petições de liberdade nos anos finais da escravidão em Sergipe. De
forma alguma, neste trabalho, tivemos a pretensão de esgotar as muitas questões
pontuadas ao longo da pesquisa. A africana Rufina teria sido importada depois da
proibição do tráfico negreiro? Não encontramos nenhum documento comprobatório de
registro da escravizada em nome de Manoel Xavier S. Andrade para a Vila de Porto da
Folha nas matrículas de escravos de 1873 43. Nas pesquisas realizadas também não
achamos entre as petições de liberdade arroladas no período de 1880 a 1888, nenhuma
que se refere a africana. A autora Sharyse Amaral também analisou as ações de
liberdade do Vale do Cotinguiba entre os anos de 1860 a 1888, e afirma que não encontrou
nenhum processo que utilizasse a Lei de 1831 como argumento. 44 Teria a africana Rufina
se aproveitado da situação em que o movimento abolicionista entrara em sua fase de
maior adesão pública para forjar sua verdadeira identidade? Para o período pesquisado
encontramos além de alguns casos que foram citados, diversas notas nos jornais
sergipanos em repúdio a escravidão.
Em outro jornal sergipano, simpático as ideias abolicionistas, um mês antes da
abolição, o seu articulista tecia comentários sobre a Luz do Século. No artigo intitulado
“Festival Abolicionista” comenta que a festa da abolição havia invadido a província. No
Salão Lyceu na noite anterior, o Club Zé Pereira, famoso na província por seus desfiles
carnavalescos, havia promovido um belo baile abolicionista, apesar do tom elogioso a
iniciativa e aos seus representantes, ele traz a notícia em tom pessimista “apressamo-nos
em dizer algumas palavras, embora impotentes para prover o instinto abolicionista nos
nossos leitores e amigos”45.
Sidney Chalhoub afirma que pesquisas de História Social têm nos motivado a
pensar o paternalismo como uma relação de subordinação que “não significa
necessariamente passividade”, mas numerosas fórmulas das classes subalternas de se
42 A Reforma, 15/04/1888.
43 APES, AG¹. 03/ª DOC 4. Município de Ilha do Ouro (Nome agência que realizou a matrícula de
escravos da Vila de Porto da Folha). Classificação dos escravos para serem alforriados pelo fundo de
emancipação. P. 157. Analisamos as matrículas realizadas no ano de 1873 e não encontramos nenhum
registro da escrava africana Rufina entre os 157 escravizados classificados entre 1873 e 1875 nesse
município.
44 AMARAL... ob, cit., p. 208.
45 A Luz do Século, 8/04/1888.
apropriarem, à sua maneira, de crenças e valores da cultura dominante; de encontrar
brechas para alcançar objetivos e vantagens frente às autoridades; de manipular os limites
do clientelismo e do mandonismo, abrir brechas para o fortalecimento de seus
instrumentos de solidariedade horizontal, isto é, sociedades, filarmônicas, escolas, etc.46
Para o partido Liberal, em sua folha noticiosa, a resistência a escravidão podia
ser observada por toda a província,
Não há, porém, argumentos possíveis neste mundo para dissuadir os pobres
fujões. Eles dizem que Cotegipe caiu que foi chamado João Alfredo, e destes
dois fatos políticos, de que estão admiravelmente inconformados, formam duas
premissas de onde concluem que lá na sua lógica incontentável que são livres,
cidadãos e vadios. 47
As histórias apresentadas nesse trabalho compõem um experimento que pode
ser caracterizado como de micro-história posta em movimento. Pois, acreditamos que o
Vale do Cotinguiba sergipano, assim como os demais municípios da província, os
sergipanos não ficaram indiferentes a movimentação social durante esse momento
histórico. Assim, temos convicção de que o estudo de um local ou evento
cuidadosamente escolhido, examinado bem de perto, pode revelar dinâmica que não são
visíveis através das lentes mais familiares de região e nação. Nesse caso, seguimos uma
cadeia interconectada de eventos que circundaram a abolição no Brasil, cientes de que a
seleção de estratégias de mobilização também foi situacional, conforme a balança de
poder em cada circunstância. Entretanto, como bem assinala a historiadora Rebecca
Scott “a análise mais profunda pode surgir da intensa atenção ao particular”. 48
Portanto, nesse artigo, buscamos refletir e problematizar alguns aspectos
iniciais de uma pesquisa que se encontra em andamento sobre os diferentes meios
usados pelos escravizados para a conquista de sua liberdade. Pois, só poderemos desenhar
um quadro mais próximo do processo da abolição no Brasil com o desenvolvimento de
novas investigações e pesquisas que abranjam as diversas experiências em localidades
que ainda não foram contempladas pela história da abolição e dos legados da pós-
emancipação no Brasil.
46 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Sidney
Chalhoub, citando Thompson, Genovese e Scott, analisa o paternalismo a partir de uma relação de
subordinação em que os subalternos agem no limite da política de dominação, manipulando em seu favor
os símbolos, os valores e as práticas que constituem a ideologia senhorial. Portanto, nessa interpretação,
trabalhadores, escravos e subordinados são entendidos como agentes ativos, que escolhem dentro do
repertório de possibilidades do paternalismo, as opções possíveis para a defesa de seus interesses e
desígnios, p. 46-49.
47 A Reforma, 15/04/1888.
48 SCOTT, Rebecca & HÉBRARD, Jean M., Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da
emancipação. Campinas, Editora Unicamp, 2014. P. 19