lesoes lvm

10
REVISTA PORTUGUESA DE PNEUMOLOGIA Vol XII N.º 1 (Supl 1) Fevereiro 2006 S 45 Lesões vértebro-medulares – A perspectiva da reabilitação Spinal cord lesions – The rehabilitation perspective Filipa Faria 1 Resumo Resumo Resumo Resumo Resumo Este trabalho pretende proporcionar uma visão geral sobre a problemática da lesão medular, focando essencialmente os aspectos relacionados com a reabilitação. A lesão medular atinge indivíduos jovens numa fase activa da vida, podendo condicionar graves incapacidades. Na maioria dos casos a etiologia é traumática, constituindo os acidentes de viação a sua principal causa. Até meados do século passado a sobrevivência era muito reduzida e a morte ocorria sobretudo por problemas nefro-urológicos. Com a evolução do conhecimento médico e com os meios disponibilizados pela tecnologia tem sido possível um aumento significativo da esperança de vida. Também as causas de morte sofreram alterações ao longo do tempo, sendo actualmente as complicações respiratórias, sobretudo a pneu- monia, a primeira causa. No quadro clínico da lesão medular podemos considerar uma fase inicial de choque medular, em Abstract Abstract Abstract Abstract Abstract The present study provides an overview of the spi- nal cord injury focusing mainly on aspects related to rehabilitation. Spinal cord injury affects young people in an ac- tive phase of life, determining severe handicaps. Most of the lesions are traumatic, caused by car accidents. Until fifty years ago, the survival of individuals with spinal cord injury was very reduced and the leading cause of death was renal failure. Due to developments in medical knowledge and techni- cal advances, the survival rates have significantly improved. The causes of death have also changed being respiratory complications, particularly pneu- monia, the leading causes. Immediately after a spinal cord lesion there is a phase of spinal shock which is characterized by flaccid paralysis and bladder and bowel retention. Progressively there is a return of the spinal cord automatism with the beginning of some reflex ac- 1 Assistente Hospitalar de Medicina Física e de Reabilitação, Mestre em Engenharia da Saúde pela Universidade Católica de Lisboa. Serviço de Lesões Vértebro-Medulares do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão. Directora do Serviço: Drª Filipa Faria Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, Serviço de Lesões Vértebro-Medulares Rua Conde Barão 2649-506 Alcabideche.

Upload: paula-vieira

Post on 30-Jun-2015

897 views

Category:

Documents


5 download

TRANSCRIPT

Page 1: Lesoes LVM

R E V I S T A P O R T U G U E S A D E P N E U M O L O G I A

Vol XII N.º 1 (Supl 1) Fevereiro 2006

S 45

Lesões Vértebro-Medulares – a perspectiva da reabilitaçãoFilipa Faria

Lesões vértebro-medulares – A perspectiva dareabilitação

Spinal cord lesions – The rehabilitation perspective

Filipa Faria1

ResumoResumoResumoResumoResumoEste trabalho pretende proporcionar uma visãogeral sobre a problemática da lesão medular,focando essencialmente os aspectos relacionadoscom a reabilitação.A lesão medular atinge indivíduos jovens numa faseactiva da vida, podendo condicionar gravesincapacidades. Na maioria dos casos a etiologia étraumática, constituindo os acidentes de viação asua principal causa. Até meados do século passadoa sobrevivência era muito reduzida e a morteocorria sobretudo por problemas nefro-urológicos.Com a evolução do conhecimento médico e comos meios disponibilizados pela tecnologia tem sidopossível um aumento significativo da esperança devida. Também as causas de morte sofreramalterações ao longo do tempo, sendo actualmenteas complicações respiratórias, sobretudo a pneu-monia, a primeira causa.No quadro clínico da lesão medular podemosconsiderar uma fase inicial de choque medular, em

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstractThe present study provides an overview of the spi-nal cord injury focusing mainly on aspects relatedto rehabilitation.Spinal cord injury affects young people in an ac-tive phase of life, determining severe handicaps.Most of the lesions are traumatic, caused by caraccidents.Until fifty years ago, the survival of individualswith spinal cord injury was very reduced and theleading cause of death was renal failure. Due todevelopments in medical knowledge and techni-cal advances, the survival rates have significantlyimproved. The causes of death have also changedbeing respiratory complications, particularly pneu-monia, the leading causes.Immediately after a spinal cord lesion there is aphase of spinal shock which is characterized byflaccid paralysis and bladder and bowel retention.Progressively there is a return of the spinal cordautomatism with the beginning of some reflex ac-

1 Assistente Hospitalar de Medicina Física e de Reabilitação, Mestre em Engenharia da Saúde pela Universidade Católica de Lisboa.Serviço de Lesões Vértebro-Medulares do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão. Directora do Serviço: Drª Filipa FariaCentro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, Serviço de Lesões Vértebro-MedularesRua Conde Barão2649-506 Alcabideche.

Page 2: Lesoes LVM

R E V I S T A P O R T U G U E S A D E P N E U M O L O G I A

Vol XII N.º 1 (Supl 1) Fevereiro 2006

S 46

Lesões Vértebro-Medulares – a perspectiva da reabilitaçãoFilipa Faria

tivities. Based on neurological evaluation it is pos-sible to predict motor and functional recovery andestablish the rehabilitation program.We can consider three phases on the rehabilita-tion program: the first while the patient is still inbed, directed to prevent or treat complications dueto immobility and begin sphincters reeducation;the second phase is intended to achieve wheelchairautonomy; the last phase is training in ortostatism.The rehabilitation program also comprises sportsand recreational activities, psychological and so-cial support in order to achieve an integral of theindividual with a spinal cord injury.

Key words: Spinal cord, etiology, epidemiology,clinics, rehabilitation.

que existe uma paralisia flácida e retenção urináriae fecal; progressivamente inicia-se a fase deautomatismo medular com retorno de algumasactividades reflexas da medula Através do exameneurológico é possível muito precocementeestabelecer o prognóstico motor e funcional eplanificar o programa de reabilitação. Podemosconsiderar três fases no programa de reabilitação:a primeira, corresponde ao período de acamamentopara estabilização cirúrgica e médica da lesãoesquelética, sendo fundamental prevenir ou trataras complicações relacionadas com a imobilidade einiciar a reeducação dos esfíncteres; na segunda,pretende-se atingir a funcionalidade ao nível decadeira de rodas; a terceira fase consiste no treinoem ortostatismo. O programa de reabilitaçãoengloba ainda actividades desportivas e recreativas,bem como o acompanhamento psicológico e so-cial para uma abordagem global da lesão medular.

Palavras-chave: Lesão medular, etiologia, epide-miologia, quadro clínico, reabilitação.

IntrIntrIntrIntrIntroduçãooduçãooduçãooduçãooduçãoDas múltiplas formas de incapacidade quepodem atingir o ser humano, a lesãomedular é sem dúvida uma das maisdramáticas. Se pensarmos na importânciafisiológica da medula, não só comotransmissor de impulsos e mensagens docérebro para todas as partes do corpo, evice-versa, mas também como um centronervoso em si próprio, controlandofunções como postura, micção, intestino,função sexual, respiração e regulação

térmica, apercebemo-nos das consequên-cias que uma lesão a este nível poderá ter.A interrupção da passagem de informaçãoresulta em incapacidades funcionais im-portantes abaixo da zona lesada. A inter-venção da reabilitação é dirigida a avaliare manter o funcionamento dos múltiplosórgãos e sistemas, restaurar ou substituiras funções perdidas com o objectivo finalde reintegrar o indivíduo na sociedade. Éfundamental estabelecer, o mais preco-cemente possível, um prognóstico

Page 3: Lesoes LVM

R E V I S T A P O R T U G U E S A D E P N E U M O L O G I A

Vol XII N.º 1 (Supl 1) Fevereiro 2006

S 47

Lesões Vértebro-Medulares – a perspectiva da reabilitaçãoFilipa Faria

funcional, de forma a que o doente e suafamília possam investir na obtenção deobjectivos realistas e iniciar desde logo oplaneamento da sua reinserção social.Para determinar a gravidade da lesão,estabelecer o prognóstico e planificar areabilitação, estabeleceram-se padrõesinternacionais para uniformização decritérios de classificação neurológica efuncional, propostos pela ASIA (AmericanSpinal Injury Association)1.

Classificação ASIA das lesõesmedularesAtravés do exame neurológico é possíveldeterminar o nível sensitivo e o nívelmotor, pela avaliação de pontos-chavepara a sensibilidade (ao tacto e à picada) ede músculos chave para a motilidade (nosmembros superiores e nos membros infe-riores). O nível neurológico correspondeao segmento mais caudal com funçãosensitiva e motora normal nos dois ladosdo corpo. Se a alteração das funções mo-tora e/ou sensitiva se verificar no seg-mento cervical estamos em presença deuma tetraplegia por envolvimento dosquatro membros; se existir perda oualteração neurológica nos segmentos dor-sal, lombar ou sagrado, a lesão decorrenteé classificada como paraplegia.Considera-se que uma lesão é completa naausência de função motora e sensitiva nosegmento sagrado mais inferior (corres-pondente aos metâmeros S4-S5) 2; se existirpreservação parcial das funções motora e//ou sensitiva abaixo do nível neurológico,incluindo o segmento sagrado S4-S5, con-sidera-se a lesão incompleta.Para classificar o grau de deficiência utili-za-se uma escala em 5 níveis de gravidade

decrescente, em que “A” designa a lesãocompleta, “B” a lesão incompleta compreservação apenas da sensibilidade; “C”e “D” designam lesões incompletas compreservação parcial da sensibilidade e damotilidade, e “E” utiliza-se nas lesõesmedulares com funções sensitiva e motoranormais.

EpidemiologiaA maioria dos estudos sobre a incidênciade lesões medulares é retrospectiva oubaseada numa população hospitalar, nãoproporcionando uma visão generalizadada sua verdadeira incidência na populaçãoem geral3,4,5.Não existem estudos epidemiológicos deâmbito nacional. Os dados nacionais deque dispomos dizem respeito a um estudoefectuado na região Centro entre 1989 e1992 e apenas a lesões de etiologia trau-mática. A taxa de incidência encontradafoi de 5,8/100 000 habitantes, sobrevi-vendo 2,5/100 000 habitantes6.Nos Estados Unidos, a incidência estimadade lesões medulares traumáticas é de 55//milhão de habitantes, sendo 35/milhãode habitantes os que sobrevivem, represen-tando cerca de 11 000 novos casos/ano7.A epidemiologia das lesões não traumá-ticas não está bem estabelecida8.Até há cerca de 60 anos, a sobrevivênciade um lesionado medular era muitoreduzida9; a melhoria dos cuidados deemergência prestados no local do acidente,os avanços no tratamento médico e cirúr-gico e a introdução de procedimentos dereabilitação mais sofisticados conduzirama uma diminuição acentuada da taxa demortalidade10. A esperança de vida de-pende do nível neurológico e do tipo de

Page 4: Lesoes LVM

R E V I S T A P O R T U G U E S A D E P N E U M O L O G I A

Vol XII N.º 1 (Supl 1) Fevereiro 2006

S 48

Lesões Vértebro-Medulares – a perspectiva da reabilitaçãoFilipa Faria

lesão, sendo actualmente para um tetra-plégico completo cerca de 70% da de umindivíduo saudável, para um paraplégicocompleto de 86% e para um paraplégicoincompleto “D” de 92%11.As causas de mortalidade têm sofridoalterações ao longo do tempo. Com a me-lhoria no tratamento da bexiga neuro-génea, as complicações relacionadas como tracto urinário, nomeadamente a insufi-ciência renal, deixaram de ser a principalcausa de morte nos lesionados medulares6,12, 12. Estudos recentes têm sugerido queas complicações respiratórias, particular-mente a pneumonia, são responsáveis pelomaior número de mortes no caso dos tetra-plégicos. Se considerarmos os paraplé-gicos, as doenças cardiovasculares, a septi-cemia, o suicídio e as neoplasias sãoactualmente as principais causas6,12,13. Aembolia pulmonar é também uma causa demorte, independentemente do nível delesão 6,17.

EtiologiaEtiologiaEtiologiaEtiologiaEtiologiaA etiologia é diversa, podendo identificar--se causas médicas (por exemplo, dege-nerativas, vasculares, neoplásicas, infec-ciosas) ou traumáticas (quedas, acidentesde viação, acidentes relacionados com aprática desportiva, acidentes por arma defogo, entre outros). A idade tem uma in-fluência considerável na etiologia daslesões medulares; nos grupos etáriosabaixo dos 40 anos, o traumatismo é acausa da lesão medular em mais de 85%dos casos. São os indivíduos jovens dosexo masculino os mais expostos, querpela actividade profissional, quer pelaprática desportiva ou, simplesmente, pelautilização de um meio de transporte14.

Com o envelhecimento da população, aidade média na data da lesão aumentoudos 28,6 anos no final dos anos 70 para38,0 anos em 20006.

QuadrQuadrQuadrQuadrQuadro clínicoo clínicoo clínicoo clínicoo clínicoA lesão medular resulta em alterações dafunção motora, sensitiva e autonómicanos segmentos situados abaixo do nívelde lesão. O quadro clínico depende da fasede evolução da lesão (aguda, subaguda oucrónica), da sua localização (segmento cer-vical, dorsal, lombar ou sagrado) e aindado tipo de lesão (completa ou incompleta).Imediatamente após a instalação de umalesão medular, surge retenção urinária efecal e perda da força muscular e dassensibilidades abaixo da lesão. A paralisiaé flácida, acompanhada por abolição dosreflexos ósteo-tendinosos. Este quadro deinstalação aguda é designado por choquemedular e pode prolongar-se até 6 mesesapós a lesão. Progressivamente inicia-se afase de automatismo medular, com re-torno de algumas actividades reflexas damedula, normalmente inibidas pelocontrolo exercido pelo córtex cerebral. Osreflexos tendinosos tornam-se vivos,difusos e policinéticos; o tónus muscularaumenta e aparece a espasticidade (au-mento da resistência à mobilização passivado membro); os esfíncteres vesical e intes-tinal começam a apresentar uma actividadeautomática.

Objectivos da reabilitaçãoO quadro clínico resultante de uma lesãomedular é complexo, com atingimento demúltiplos órgãos e sistemas, pelo que parao tratamento destes doentes é necessáriouma equipa médica multidisciplinar e uma

Page 5: Lesoes LVM

R E V I S T A P O R T U G U E S A D E P N E U M O L O G I A

Vol XII N.º 1 (Supl 1) Fevereiro 2006

S 49

Lesões Vértebro-Medulares – a perspectiva da reabilitaçãoFilipa Faria

equipa de reabilitação multiprofissional.O tratamento de reabilitação tem comoobjectivo maximizar as capacidades e ascompetências funcionais de cada indiví-duo, ajudando-o a refazer o seu projectode vida. Assim, é fundamental uma abor-dagem integral, que incida não apenas nosproblemas clínicos, mas que atendatambém aos aspectos emocionais, sociais,desportivos, lúdicos e de formação, contri-buindo para uma melhoria da qualidadede vida, maior independência e partici-pação na sociedade.Os cuidados de reabilitação são iniciadoso mais precocemente possível e vãodepender do quadro clínico e da fase deevolução da lesão. Assim, na fase aguda,em que o indivíduo se encontra acamado,destinam-se a manter a integridade cutâneae as amplitudes articulares, efectuamdo-sealternâncias de decúbito e de posiciona-mentos de 2/2 horas e mobilizações arti-culares passivas suaves. A reeducação dosesfíncteres é iniciada através da realizaçãode sondagens intermitentes para esvazia-mento vesical e da instituição de treinointestinal com emoliente e supositório. Acinesiterapia respiratória, sobretudo naslesões dorsais altas e cervicais, deve serrealizada com frequência para manter ahigiene brônquica e facilitar a eliminaçãode secreções. Deve ser considerada aprofilaxia da trombose venosa profundae da hemorragia digestiva por úlcera destress.Para preparar o levante inicia-se um treinoprogressivo no plano inclinado.A 2.ª fase caracteriza-se por uma reabili-tação mais activa, logo que o indivíduotolere o levante para a cadeira de rodas.Através de exercícios ou actividades, pro-

cede-se a um programa de fortalecimentomuscular e de endurance dos músculos acimada lesão, à normalização do tónus, aotreino de equilíbrio, ao treino funcionalno colchão e na cadeira de rodas. O treinofuncional na cadeira de rodas é essencialpara garantir a máxima autonomia possívelao indivíduo. Treina-se a queda para ochão e o subir para a cadeira novamente,a deslocação em pisos irregulares, o subire descer rampas e degraus do passeio.Se o indivíduo apresenta uma lesão in-completa com movimentos activos abaixodo nível de lesão, efectua-se também ofortalecimento dos músculos parcialmentecomprometidos, através de diversas técni-cas, entre as quais a estimulação eléctrica.Simultaneamente, procede-se à aprendi-zagem de técnicas dirigidas à autonomiana realização de actividades de vida diária,nomeadamente higiene pessoal, vestuário,banho e treino de transferências (para omesmo nível e para desníveis) a cama, sofá,cadeira de banho ou banheira, automóvel,etc.).Mantêm-se os cuidados com a integridadeda pele através da realização de elevaçõesfrequentes na cadeira de rodas para alívioda pressão, bem como a cinesiterapia respi-ratória e ainda as mobilizações passivas ouactivas assistidas para manutenção dasamplitudes articulares.Após retorno do automatismo medular,poder-se-á alterar o treino vesical insti-tuído de acordo com a avaliação urodi-nâmica.Nesta fase, em que já existe uma razoáveltolerância à deambulação em cadeira derodas e após ensino à família dos cuidadose de algumas técnicas básicas para assegurara continuidade dos cuidados no domicílio,

Page 6: Lesoes LVM

R E V I S T A P O R T U G U E S A D E P N E U M O L O G I A

Vol XII N.º 1 (Supl 1) Fevereiro 2006

S 50

Lesões Vértebro-Medulares – a perspectiva da reabilitaçãoFilipa Faria

os doentes são encorajados a deslocar-se acasa nos fins-de-semana. Esta experiênciaproporciona oportunidades de socializa-ção mas também de reconhecimento dedificuldades que poderão ser discutidascom a equipa de reabilitação, de forma aencontrar estratégias para as ultrapassar.A 3.ª fase corresponde ao treino de ortos-tatismo, que poderá ser efecuado emcadeira de rodas com verticalização, numamesa tipo standing frame, entre barras comou sem ortóteses. O treino de ortosta-tismo é benéfico sob diversos aspectos: porpromover a carga, essencial para a preser-vação da massa óssea, por melhorar afunção urinária, intestinal e respiratória epor contribuir para o bem-estar psico-lógico.Nas lesões com nível neurológico inferiora D10, e de acordo com o potencial doindivíduo, efectua-se o treino de marchacom ou sem ortóteses, iniciando-se entrebarras e progredindo posteriormente paraa marcha com andarilho, pirâmides, cana-dianas, ou eventualmente sem auxiliaresde marcha; efectua-se também o treino empisos irregulares, bem como a subida edescida de escadas e rampas. O treino demarcha em tapete rolante com suspensãoparcial do peso corporal proporciona umaforma de activação do padrão de marchaautomático de origem medular. Váriosestudos têm sido publicados recentementesalientando os resultados obtidos namarcha em indivíduos com lesões incom-pletas15,16.No Quadro I apresentam-se as principaiscomplicações que podem surgir em cadaórgão ou sistema. A úlcera de pressão, apneumonia e a disreflexia autonómica sãoas complicações que surgem com maior

frequência nos doentes internados emunidades hospitalares17. As infecções dotracto urinário constituem também, parti-cularmente em doentes com algaliaçãopermanente e em ambiente hospitalar,uma importante causa de co-morbili-dade18.

Avanços no tratamento ereabilitação da lesão medularOs primeiros cuidados prestados aindivíduos suspeitos de lesão medular sãodecisivos para o seu prognóstico; qualquermovimento ou até as manobras de rea-nimação podem agravar a lesão. A criaçãode equipas especialmente treinadas paraatender os politraumatizados contribuiupara a diminuição da mortalidade e melho-ria da sobrevida.Nos anos mais recentes verificaram-seimportantes avanços na compreensão dalesão medular, bem como no seu trata-mento. O desenvolvimento da imagio-logia, nomeadamente da tomografiacomputadorizada e da ressonância magné-tica, permitiu visualizar e caracterizar deforma mais precisa a lesão, fornecendo

Revestimento cutâneo: úlceras de pressãoA. cardiovascular: tromboembolismo, hipotensãoortostática, disreflexia autonómica, bradiarritmiaA. respiratório: insuficiência respiratória, infecçõesrespiratórias, atelectasiasA. digestivo: intestino neurogéneo, hemorragiadigestiva, hemorróidas, fissurasA. génito-urinário: bexiga neurogénea, infecçõesurinárias, litíase, insuficiência renal; disfunção eréctile ejaculatóriaMúsculo-esquelético: paralisia, alterações do tónus(flacidez ou espasticidade), calcificaçõesheterotópicas, osteoporosePsíquico: depressão reactiva

Quadro I – Principais complicações da lesão medular

Page 7: Lesoes LVM

R E V I S T A P O R T U G U E S A D E P N E U M O L O G I A

Vol XII N.º 1 (Supl 1) Fevereiro 2006

S 51

Lesões Vértebro-Medulares – a perspectiva da reabilitaçãoFilipa Faria

dados importantes para definir o trata-mento mais adequado. Por outro lado, oestudo NASCIS 2, que salientou o bene-fício neurológico obtido nos doentessubmetidos à administração de metilpre-dnisolona nas primeiras horas, constituiuoutro marco importante19.O extraordinário desenvolvimento tecno-lógico verificado nas últimas décadasdisponibilizou no campo da medicina dereabilitação meios de intervenção querpara o tratamento de complicações dalesão medular quer na substituição defunções perdidas, com reflexos na quali-dade de vida.A título de exemplo, podemos salientar:No caso de tetraplégicos com lesões medu-lares acima de C4, o desenvolvimento deventiladores cada vez mais portáteis e apossibilidade de deambular em cadeiras derodas de condução eléctrica permitiramque indivíduos gravemente incapacitadospudessem sobreviver e mesmo deslocar-se de forma autónoma.Para o tratamento da dor e da espasticidaderefractárias à terapêutica oral, foramdesenvolvidos dispositivos electrónicosque são implantados de forma a permitira administração directa no espaçointratecal de fármacos com bons resul-tados e menor toxicidade sistémica.As neuropróteses consistem em neuroesti-muladores implantados e ligados aosistema nervoso através de eléctrodos. Aaplicação da estimulação eléctrica noneurónio motor, de forma a ultrapassar azona de lesão, tem como objectivo res-taurar funções, nomeadamente a respira-ção (através do implante de marcapassodiafragmático), o controlo dos esfíncteresvesical e intestinal e a função sexual (pela

colocação de neuroestimuladores nasraízes sagradas, permitindo o retorno a umcontrolo voluntário sobre os esfíncteres,bem como a possibilidade de obter umaerecção) e ainda a função de preensão glo-bal ao nível da mão (pelo implante dosistema freehand®, que permite segurarum copo ou escrever). A criteriosa selec-ção dos casos é fundamental para aobtenção de bons resultados.Relativamente às tecnologias de apoio,destinadas a aumentar, manter ou me-lhorar as capacidades funcionais doindivíduo, salientam-se os computadoresactivados pela voz, que permitem a ligaçãodo indivíduo ao mundo através da internet,ou os que são utilizados por exemplo nas“casas inteligentes” e que permitem ocontrolo do ambiente, ligar/desligar ailuminação, abrir/fechar portas, atendero telefone, entre outras; estas inovaçõesdiminuem de forma significativa o graude dependência com impacto positivo naqualidade de vida deste indivíduos. Con-tudo, a utilização destas tecnologias temsido limitada pelo seu elevado custo.

Linhas de investigaçãoA evolução no conhecimento médicosobre a fisiopatologia da lesão medularpermitiu compreender que esta não selimita à lesão inicial, evoluindo nas horasseguintes; paradoxalmente, este factorepresenta oportunidades de intervenção.Actualmente, vários estudos estão a serdesenvolvidos para avaliar formas delimitar o agravamento da lesão primá-ria20,21,22,23,24; outras abordagens destinam--se a promover a mielinização25,26, a rege-neração neuronal27,28, ou a restabelecer acomunicação interrompida pela lesão

Page 8: Lesoes LVM

R E V I S T A P O R T U G U E S A D E P N E U M O L O G I A

Vol XII N.º 1 (Supl 1) Fevereiro 2006

S 52

Lesões Vértebro-Medulares – a perspectiva da reabilitaçãoFilipa Faria

através de enxertos de tecidos ou cé-lulas29,30,31.

ConclusãoConclusãoConclusãoConclusãoConclusãoO prognóstico dos lesionados medularesalterou-se profundamente nas últimasdécadas, passando de um tempo de so-brevida muito reduzido para se aproximarda média global da longevidade. Com osmeios disponibilizados pelo progressocientífico e tecnológico, a reabilitaçãoconcretiza cada vez mais e melhor oobjectivo de proporcionar às pessoas comlesão medular os meios para que possammanter ou desenvolver uma elevadaqualidade de vida.

BibliografiaBibliografiaBibliografiaBibliografiaBibliografia1. www.asia-spinalcord.org.2. Ditunno JF. The international standards bookletfor neurological and functional classification of spi-nal cord injury. Paraplegia 1994; 32: 70-80.3. Paynes SR, Waller JA. Trauma registry and traumacenter biases in injury research. J Trauma 1989; 29:424-9.4. Saboe LA, Reid Dc, Davis LA, Warren SA, GraceMG. Spine trauma and associated injuries. J Trauma1991; 31: 43-8.5. Garcia-Reneses J, Herruzo-Cabrera R, Martinez-Moreno M. Epidemiological study of spinal cord in-jury in Spain 1984-85. Paraplegia 1991; 28:180-190.6. Martins F. Epidemiologie et prise en charge desblessés medullaires traumatiques. Évaluation dans larégion centre du Portugal. Thèse de Médicine,Bourgogne, 1998.7. www.spinalcord.uab.edu. Spinalcord injury infor-mation network; Facts and figures at a glance – Au-gust 2004.8. Murray PK, Kusior MF. Epidemiology ofnontraumatic and traumatic spinal cord injury. ArchPhys Med Rehab 1994; 65: 634.9. Guttman L. in: “Historical background” in Spinalcord injuries comprehensive management andresearch.ed Blakckwell scientific publications, Oxford

1973, 5-7.10. Frankel HL, Coll JR, Whiteneck GG, GardnerBP, Jamous MA, Krishnan KN, Nuseibeh I, Savic G,Sett P. Long-term survival in spinal cord injury: a fiftyyear investigation. Spinal Cord 1998, 36: 266-274.11. Soden RJ, Walsh J, Middleton, Craven ML,Rutkowski SB, Yeo JD. Causes of death after spinalcord injury. Spinal Cord 2000; 38: 604-610.12. Whiteneck GG, et al. Mortality, morbidity andpsychosocial outcomes of persons spinal cord injuredmore than 20 years ago. Paraplegia 1992; 30: 617-620.13. DeVivo M, Krause JS, Lammertse DP. Recenttrends in mortality and causes of death among per-sons with spinal cord injury. Arch Phys Med Rehab1999; 80: 1411-1419.14. Staas W, FormalC, Gershkoff A, Freda M,Hirschwald J, Miller G, Forrest L, Burkhard B. Re-habilitation of the spinal cord-injured patient. In:Joel Delisa “Rehabilitation Medicine”, ed. Lippincott,Philadelphia, p 635.15. Wernig A, Nanassy A, Muller S. J Neurotrauma1999; 16 (8): 719-26.16. Hicks AL et al. Spinal Cord 2005; 01(Epub aheadof print).17. Chen D, Apple Jr DF, Hudson LM, Bode R. ArchPhys Med Rehab 1999; 80: 1397-1401.18. Ditunno J, Formal C. Current concepts onchronic spinal cord injury. The New England J Med1994; 24:550-56.19. Bracken MB, Holford TR. Effects of timing ofmethylprednisolone or naloxone administration onrecovery of segmental and long-tract neurologicalfunction in NASCIS. J Neurosurg 1993; 79: 500-507.20. Tisherman AS, Rodriguez A, Safar P. Therapeu-tic hypothermia i traumatology. Surg Clin North Am1999; 79:1269-1289.21. Hayes KC, Hsieh JT, Potter PJ, Wolfe DL,Delaney GA, Blight AR. Effects of induced hypo-thermia in somatosensory evoked potentials in pa-tients with chronic spinal cord injury. Paraplegia1993; 31: 730-741.22. Bredesen DE. Apoptosis: overview and signaltransduction pathways. J Neurotrauma 2000;17:801--810.23. Eldadah BA, Faden AI. Caspase pathways neuro-nal apoptosis and CNS injury. J Neurotrauma2000;17: 811-829.

Page 9: Lesoes LVM

R E V I S T A P O R T U G U E S A D E P N E U M O L O G I A

Vol XII N.º 1 (Supl 1) Fevereiro 2006

S 53

Lesões Vértebro-Medulares – a perspectiva da reabilitaçãoFilipa Faria

24. Blight AR, Zimber MP. Acute spinal cord injury:pharmacotherapy and drug development perspec-tives. Curr Opin Invest Drugs 2001;2: 801-808.25. Hansebout RR, Blight AR, Fawcett S, Reddy K.4-Aminopyridine in chronic spinal cord injury: a con-trolled, double-blind, crossover study in eight pa-tients. J Neurotrauma 1993;10: 1-18.26. Segal JL, Pathak MS, Hernandez JP, Himber PL,Brunnemann SR, Charter RS. Safety and efficacy of4-aminopyridine in humans with spinal cord injury:a long term, controlled trial. Pharmacotherapy1999;19: 713-723.27. McKerracher L. Spinal cord repair: strategies to

promote axon regeneration. Neurobiol Dis 2001;8:11--18.28. Scwab ME. Repairing the injured spinal cord.Science 2002;295: 1029-1031.29. Zompa EA, Cain LD, Everhart AW, Moyer MP,Hulsebosch CE. Transplant therapy: recovery offunction after spinal cord injury. J Neurotrauma1997;14: 479-506.30. Lu J, Ashwell K. Olfactory ensheating cells: theirpotencial use for repairing the injured spinal cord.Spine 2002;27: 887-892.31. Bunge RP. Bridging áreas of injury in the spinalcord. Neuroscientist 2001;7: 325-339.

Page 10: Lesoes LVM

R E V I S T A P O R T U G U E S A D E P N E U M O L O G I A

Vol XII N.º 1 (Supl 1) Fevereiro 2006

S 54

Lesões Vértebro-Medulares – a perspectiva da reabilitaçãoFilipa Faria