lebrun, gérard - razão positiva e razão prática

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Razão positiva e razão prática∗

Gérard Lebrun

A crítica que a Escola de Frankfurt dirige ao positivismo está em grande parte na origem da mutação que, de uns vinte anos pra cá, afeta o pensamento de esquerda. Este, na primeira parte do século, parecia ainda estar amplamente consagrado ao materialismo e ao cientificismo. Hoje, está na ordem do dia suspeitar da civilização tecnológica e mesmo desconfiar abertamente do papel cultural e político da ciência. – Limitando-me aqui à leitura de um texto de Habermas intitulado “Dogmatismo. Razão. Decisão”, eu gostaria de tentar mostrar num ponto preciso o quanto é complexa esta crítica do positivismo, e como é considerável o que envolve. Tomarei a palavra “positivismo” na acepção que lhe dá Habermas, ou seja, grosso modo, como o erro cientificista que nos leva a conceber a “razão” segundo modelo exclusivo das ciências exatas.

Habermas começa chamando nossa atenção para o fato de que a crítica da ideologia, atualmente, pode tomar duas direções divergentes. – O que é criticar uma ideologia? Denunciar a ilusão à qual sucumbe meu adversário, é claro... Mas há ilusão e ilusão.

A primeira determinação da ilusão é a fornecida pelo positivismo. Para este, a ilusão por excelência é a ficção metafísica ou religiosa. Mas o campo do ideológico assim concebido não se restringe a isto, observa Habermas: acaba recobrindo todo o domínio da prática humana enquanto esta ainda não é manipulável ou dominável tecnicamente. “Aparecerá doravante como dogmática, escreve Habermas, toda teoria cuja relação com a prática não passe pelo aperfeiçoamento e aumento das possibilidades das aplicações técnicas.” Porque não há, por definição, comportamento “racional” fora da previsão e do controle experimental dos fenômenos, toda atitude que não entra neste molde (seja ela ética, estética, religiosa, mágica...) será dada como irracional e tida por ideológica. Conheço pessoalmente velhos sábios que ficariam embaraçados caso tentassem estabelecer alguma diferença entre a hermenêutica lacaniana, a astrologia, o dogma da expropriação dos exploradores e o da Imaculada Conceição – todas estas crenças úteis, sem dúvida, à prática humana, já que contribuem para tornar a vida um pouco menos insuportável para muitos de nossos contemporâneos.

Tal é a primeira significação do ideológico. Há uma segunda, muito diferente, que remonta ao conceito de dogmatismo, tal como foi elaborado pela Aufklãrung e depois pelo idealismo pós-kantiano. Para os pensadores da Aufklãrung, a razão não é essencialmente um código epistêmico, um conjunto de preconceitos teóricos: ela é a operação que faz “o homem tornar-se adulto” (Kant) e arranca do dogmatismo, ou seja, da ignorância da sua condição específica. A razão é “a aptidão a emancipar-se”. E é esta definição que Fichte vai levar até o limite. Contra o dogmatismo filosófico que, privilegiando a contemplação do ser, logo representa o sujeito como inerte e passivo,

Texto publicado em Passeios ao Léu, São Paulo: Brasiliense, 1983, pp. 67-73.

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Fichte subordina o ser ao agir. Ser um sujeito racional é essencialmente querer agir – ou melhor, querer decididamente realizar a moralidade. Nesta perspectiva, chmar-se-á ideológico tudo que dissimula ao homem esta vocação para a liberdade que coincide com sua vocação racional.

Sem desconhecer a distância que separa este discurso das Teses sobre Feuerbach, Habermas mostra sem dificuldade que se pode encontrar na concepção marxiana do ideológico esta equação “razão-libertação do homem” (e não mais, apenas, a extirpação das supertições e preconceitos). O ideológico, segundo Marx, expressa, antes de mais nada, uma situação de “reificação” na qual o homem oculta a si próprio a sua destinação. Mas este contrasenso não será mais analisado como efeito de uma ignorância ou distração filosófica: ele está enraizado na estrutura das relações de produção. De maneira que a crítica do ideológico torna-se inseparável da prática revolucionária que subverterá as relações de produção. Desse modo, diz Habermas, “Marx identifica pela última vez a Razão com a decisão de agir racionalmente na luta contra o dogmatismo.”

Concedamos isso a Habermas (meu propósito, aqui, não é marxológico). O que me importa é o partido que Habermas tira dessa tese. Graças a ela, põe à luz uma tradição que, da Aufklãrung ao “marxismo ocidental”, é nosso escudo contra o positivismo. E, com isso, ele extrai um postulado filosófico que é comum a muitos espíritos da esquerda “esclarecida” (ou, mais vulgarmente, escaldada pelo stalinismo), - a estes, por exemplo, que pensam que o pecado do socialismo soviético, tornado capitalismo de Estado, foi recair na civilização “reificante”, que o próprio Marx denunciava. Estes concederão sem dificuldade a Habermas que a luta pelo socialismo nunca deve perder de vista que ela se origina num projeto de emancipação prática, - em uma decisão-libertadora, portanto racional.

Esta posição, reconheçamos, oferece a vantagem (não desprezível para um intelectual) de reconciliar a razão e a vida. – Racionalista? Sim, eu o sou, pode afirmar Habermas. Com a condição, é claro, de não mais entender por “razão” a “razão asseptizada” do positivismo, indiferente aos fins humanos e (oficialmente neutra em relação a todo interesse existencial). Esta última foi sempre uma astúcia a serviço da dominação – e é por isso, aliás, que ela só pode representar a política como manipulação dos homens, como gestão correta das sociedades. Criar os malefícios desta razão, cujo verdadeiro nome é “entendimento (Verstand)”, não é de jeito nenhum cair no irracionalismo, do qual nos acusam bobamente os positivistas. É tornar a identificar a razão com o “interesse da razão”. É reencontrar o “amplo conceito de racionalidade” em que vivia o pensamento clássico até que o positivismo começou a gangrená-lo. Até que, por exemplo, Hobbes substituiu a política como prolongamento da ética, por uma filosofia social concebida como simples técnica de organização.

Deste modo, chamando-nos a ultrapassar o horizonte da “racionalidade tecnológica”, Habermas não nos convida em absoluto

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a algum happening folclórico. Ele pretende, antes de mais nada, condenar uma opção ilegítima que, na “racionalidade”, privilegia a eficiência e o prestígio crescentes das ciências positivas. Para ele, trata-se de um retorno à Razão - e poder-se-ia estabelecer, sem muita arbitrariedade, um paralelo entre esta tentativa de restauração da razão prática e o projeto husserliano de uma restauração da razão teórica. Esta preocupação autenticamente racionalista surge freqüentemente no texto de Habermas. É enquanto racionalista, no sentido mais clássico, que ele observa que a razão positiva é incapaz de se fundar por si mesma e que deve então “resignar-se a só poder justificar-se como profissão de fé”. É exatamente, notemos, o que afirma Jacques Monod n’O Acaso e a Necessidade: “O conhecimento verdadeiro ignora os valores, mas para fundá-lo, é preciso um julgamento, ou melhor, um axioma de valor.” Mas Monod é positivista e não se alarma por isso. Que há de escandaloso nessa situação, se se admite que os homens são apenas animais valorizando às cegas – e que o privilégio ocidental, e depois mundial, conferido ao “verdadeiro conhecimento” é apenas uma forma de valorização escolhida por certos viventes? Um jogo no qual se investiu a vontade de potência destes. Por acaso e sem razão.

Esta é uma tese que Habermas está longe de aceitar. Não somente lhe parece impossível que, em seu princípio, a opção racionalista nada mais seja que uma afirmação de valor ou uma preferência vital –, mas lhe parece igualmente monstruoso relegar os valores ao irracional. Monstruoso supor que o campo da prática, já que escapa sempre a toda legislação razoável, deva ser deixado à mercê da simples decisão. Segundo o positivismo, escreve ele, a divisão é simples: por um lado as ciências empíricas por outro, o domínio dos “valores que já não têm valor de verdade”. Portanto, “o que chamamos de questões práticas não pode ser objeto de uma discussão séria e deve em última instância constituir objeto de uma decisão. A fórmula mágica que nos deve libertar do império do dogmatismo é uma decisão desagradavelmente isolada da razão: as questões práticas não têm mais valor de verdade”.

O positivismo, diz em suma Habermas, escolheu a tal ponto a razão que as finalidade práticas podem agora ser fixadas apenas arbitrariamente. Não cabe, jamais coube tomá-las como objeto de discussões que levassem em conta sua verdade – e é portanto a própria idéia de dialética, em seu sentido original, no sentido grego, que naufraga na irrisão... E é a dialética, em contrapartida, que Habermas pretende salvaguardar, entendendo por isto uma livre discussão que nos permitisse pensar igualmente verossimilhanças referentes à prática e decidir razoavelmente sobre o sentido da existência social. Mas a possibilidade mesma desta dialética implícita, repitamos, que as questões práticas tenham valor de verdade. Ela supões que exista, pelo menos de direito, uma verdade prática. Estamos então muito longe do platonismo? E Habermas, mesmo que escandalize os epistemológicos positivistas, seria apenas um falso sofista?

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Esta interpretação, alguém me dirá, é desonesta. Ninguém denuncia tanto a dialética dogmática quanto Habermas. Ninguém toma mais precauções do que ele para reinserir a dialética no livre diálogo. E como suspeitar de platonismo, mesmo que latente, um autor que não pára de denunciar a redução da razão à teoria? – A isto eu responderia que é a teoria no sentido positivista que Habermas critica incansavelmente, não a idéia mesma de teoria. Sem dúvida, Habermas, herdeiro de Fichte, pensa que a razão só é teórica por ser prática. Mas não é, também ele, vítima do equívoco contido na expressão razão prática? E isso desde Kant. Desde que esta expressão significa: a razão, enquanto é capaz de determinar a vontade, sozinha e sem motivos materiais... Com efeitos, como poderia a razão orientar a ação humana, se não propusesse a esta última pelo menos o equivalente de uma certeza teórica? É justamente isto que torna tão ambíguo, em Kant, o estatuto da “existência de Deus” ou da “imortalidade da alma”, enquanto postulados práticos. Certamente, já não se trata de enunciados teóricos, mas de enunciados pseudoteóricos que nos são autorizados pela razão prática. O que não temos direito de afirmar teoricamente, diz Kant, devemos pelo menos admitir como real em função do interesse prático.

A este respeito, podemos nos perguntar se a idéia de “postulação prática” e até o próprio conceito de “razão prática” não contém em germe a justificação de muitos fanatismos. O que é um fanatismo, senão o fato de aceitar a contaminação da teoria pelo interesse prático? Se o marxismo pôde ser vivido como fanatismo, é porque deixou interpenetrarem-se conceitos e valores, análises e artigos de fé práticos.

Ora, Habermas parece insensível ao risco desta religiosidade gerada pela razão prática. Para dizer a verdade, ele está ocupado demais em criticar a perversão cientificista da razão para se perguntar se, desde a origem, as palavras logos e ratio já não continham uma perversão ainda mais insidiosa – e se a “razão filosófica” (quer seja dita teórica ou prática...) não é, desde Platão, o substituto, apenas disfarçado, da religião. – Esta problemática não é a de Habermas. Mas basta levá-la a sério para sermos tentados a reabilitar, contra ele, a “razão positivista”. Com efeito, se a razão prática é apenas uma forma da crença religiosa, então devemos parar de entender a expressão “razão asseptizada” no sentido pejorativo e sarcástico que lhe dá Habermas. Asseptizar a razão não é um luxo... E devemos reconhecer que o positivismo, ao reduzir a razão a uma estrita função de conhecimento objetivo e controle dos fenômenos, tem o mérito de dissipar radicalmente a confusão, de essência religiosa, entre teoria e prática.

Convenhamos. É a justo título, sem dúvida, que Habermas assinala os perigos que acarreta, na era do positivismo triunfante, o impacto do controle técnico e da planificação sobre a prática social. É ainda a justo título que observa que a análise científica da prática, por longe que vá, nunca dispensará os homens (a menos que algum dia se realize o pesadelo de Orwell) de agir por sua própria conta, de

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dccidir os conflitos, de efetuar escolhas... Isto lhe concedemos com prazer e até com alegria. Em compensação, o que demos dificuldade em compreender é que Habermas possa deplorar que, em nossos dias, a prática humana seja guiada apenas tecnicamente. “As ciências sociais, diz ele, podem fornecer recomendações técnicas quanto aos meios a empregar para atingir certos fins, mas não podem dar indicações normativas quanto a estes próprios fins...”. E então? Não é esta uma notícia tranqüilizadora? Que necessidades temos de uma dialética para nos designar fins universais? Por que deveria a ação humana, enquanto consciente e finalizada, ser medida segundo um critério de verdade? “As ações, dizia Hume, podem receber elogio ou censura: nunca podem ser razoáveis ou irrazoáveis”. Impossível ser mais lacônico para dizer adeus a toda razão prática ou razão histórica. Uma vez tomadas as precauções elementares que a vida social requer, abandonemos os homens a suas agitaçõezinhas efêmeras, sem pretender impor normas racionais totalmente impertinentes a estas. A não ser que nos obstinemos na arcaica e temível quimera de uma cidade... racional.

Este debate pode ser reconduzido a uma questão mais brutal: de que serve expulsar os tecnocratas da cidade, se for para substituí-los pelos dialéticos? O tecnocrata, afinal de contas, só é odioso por ser um técnico que ultrapassa sua competência e se considera credenciado por seu saber e nos propor normas de vida. O tecnocrata só é odioso na medida em que pretende saber a verdade acerca do Justos e do Injusto, do Útil e do Nefasto. Em suma, na medida em que banca o dialético. Pois o sonho dialético, que Habermas nos desculpe, não é tanto discorrer socraticamente em boa companhia, mas sim estipular, por bem ou por mal, quais os fins verdadeiros para os insensatos ou “alienados” que somos nós.

Isto é razão para nos resignarmos à morosidade do positivismo, e termos por única meta o welfare state para o qual – na melhor das hipóteses – ele deixa rumarem as nossas sociedades? De minha parte, eu me resignaria, se fosse esta a alternativa. Sem entusiasmo, e só por medo, mas medo pânico, do imperialismo da razão prática. Por alergia a toda forma de pensamento religioso. Mas pouco importa a minha opinião. Ao me fazer advogado do diabo contra um pensamento estimulante, não quis tanto propor outra opção, mas sim assinalar uma dificuldade que me parece enquistada no pensamento de esquerda, que tem na filosofia de Habermas um exemplo. Por que tanto empenho em desejar que a deliberação dependa necessariamente de um projeto racional? Por que caberia necessariamente à Deusa Razão o encargo de instaurar a justiça social? Eu me permito colocar estas questões a mim mesmo – mas insisto em dissuadir meu leitor com menos de trinta anos de retomá-las: é preciso dar tempo ao tempo, antes de terminar nas latas de lixo do reformismo.