leandro fortes - a aplicacao da ritmica brasileira na improvisacao
DESCRIPTION
MonografiaTRANSCRIPT
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC
CENTRO DE ARTES - CEART
A APLICAÇÃO DA RÍTMICA
BRASILEIRA NA IMPROVISAÇÃO:
Uma abordagem sobre algumas possibilidades.
Leandro Rodrigues Fortes
Trabalho de Conclusão de Curso de Licenciatura em Música do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, sob a orientação do Prof. Mestre Kleber Alexandre.
Florianópolis, Dezembro de 2007
RESUMO
Esta monografia é um estudo que aborda o aspecto rítmico da improvisação na
música brasileira. Limita-se a identificar e apontar alguns recursos que quando inseridos
no fraseado, tornam-se coerentes com o vocabulário rítmico brasileiro. O trabalho
envolve: uma abordagem teórica sobre ritmo, improvisação e música brasileira;
descrições sobre a seção rítmica do baião, frevo, samba e uma breve análise de
melodias; análise de improvisos e transcrições de entrevistas realizadas.
Palavras-chave: Improvisação, música brasileira, ritmo.
SUMÁRIO
Introdução..........................................................................................................01
1 – RITMO, A MÚSICA BRASILEIRA E A IMPROVISAÇÃO..........................05
1.1 – Sobre o Ritmo...........................................................................................05
1.2 – Sobre a Música Brasileira.........................................................................10
1.3 – Sobre a Improvisação...............................................................................15
2 – BAIÃO, FREVO E SAMBA: ANÁLISE DA PERCUSSÃO E DA RÍTMICA
DE MELODIAS..................................................................................................21
2.1 – Baião.........................................................................................................22
2.2 – Frevo.........................................................................................................25
2.3 – Samba.......................................................................................................28
3 – ANÁLISE DE SOLOS..................................................................................31
3.1 - Análise do solo de Heraldo do Monte na música Bebê..........................31
3.2 - Análise do solo de Ronaldo Sagioratto, na música Imigrante...............39
3.3 - Análise do solo de André Marques, na música Viva o Rio.....................44
4 – ENTREVISTAS............................................................................................48
4.1 - Entrevista com Ronaldo Sagioratto..........................................................48
4.2 - Entrevista com Heraldo do Monte.............................................................51
4.3 - Entrevista com André Marques.................................................................53
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................56
Referências Bibliográficas..............................................................................58
Anexos..............................................................................................................61
1
INTRODUÇÃO
Meus primeiros aprendizados musicais aconteceram em Criciúma – SC, quando
era uma criança de oito anos, onde aprendi as primeiras músicas no violão com meu
pai. Com dez anos comecei a aprender guitarra e a fazer aulas de violão com o prof.
Santos Neto, sempre tocando nos eventos culturais da escola, e acompanhando o coral
também da escola. A partir dos treze anos passei a encarar música com mais
seriedade, dedicando-me com horas diárias no instrumento, ouvindo muito os virtuoses
do rock, e estudando com guitarrista Adair Daufembach, o que acabou resultando na
gravação de um CD de heavy metal aos meus 15 anos de idade. Quando ingressei na
Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC – em 2001 (com dezessete anos)
em Florianópolis, tive contato com um tipo de música que nunca antes havia tido: a
música brasileira e o jazz. As aulas de harmonia com o prof. Sérgio Freitas me abriram
para um mundo até então desconhecido para mim. Ao escutar discos de Egberto
Gismonti, Miles Davis, George Benson, Pat Metheny, Jacob do Bandolin, Cartola,
também começava a assistir as primeiras apresentações repletas de improvisações e
aquilo me fascinava ao mesmo tempo em que ainda era tudo muito confuso, mas aos
poucos as informações começavam a ficar mais claras. Em 2004 tive a importante
experiência de ensaiar incontáveis vezes em trio com o baixista Alexandre Vicente e o
baterista Mauro Borghezan, e com o grupo Poré Poré. Foi na mesma época que tive
contato com vários discos da música instrumental brasileira, e especialmente com a
música de Hermeto Pascoal. A complexidade dessa música me fascinava cada vez
mais, mas especialmente a parte rítmica me chamava muita atenção.
Foi aí que comecei a perceber que muitos músicos brasileiros se apoiavam
fortemente no jazz no momento da improvisação, uns mais que outros, e aquilo na
verdade me incomodava, pois surgia um sentimento nacionalista dentro de mim
(influenciado pela escola Jabour), onde pensava cada vez mais que o brasileiro deve
dar mais valor à sua música. Percebia também que nos livros de improvisação, pouco
se falava sobre a parte rítmica, focando sempre sobre escalas, acordes, frases, etc,
2
mas também não conseguia identificar tão prontamente quais os elementos do fraseado
tornavam um solo coerente com as divisões rítmicas da música brasileira. Foi dessa
reflexão que surgiu a idéia de fazer este trabalho, da necessidade de encontrar
materiais escritos que façam uma abordagem rítmica na improvisação.
A partir de outras experiências musicais, e por ter tocado com diversos
instrumentistas, meu ponto de vista foi mudando em vários aspectos. No ano de 2006
morei na cidade de Nova Iorque, onde tive a oportunidade de entender melhor os
conceitos jazzísticos, de ter contato com músicos do mundo inteiro e de ver quão
grande é o interesse dos estrangeiros pela música brasileira. Mesmo assim mantive a
abordagem inicial da minha monografia, pois mesmo após tantas mudanças musicais,
acredito que as pessoas podem encontrar seu lugar na sociedade através da música.
Acredito que a improvisação é, acima de tudo, uma conquista cultural, onde o solista
pode interagir de uma forma muito íntima com todos os outros músicos e espectadores
presentes, sendo capaz de consolidar nossa atual e suposta condição de liberdade.
Segundo Small, o acontecimento musical nos ensina sobre nossa cultura, sobre o lugar
dentro dela e nosso lugar dentro da natureza1.
O primeiro capítulo deste trabalho apresenta uma abordagem teórica sobre
ritmo, música brasileira e improvisação. A definição de ritmo traz aspectos sobre seu
surgimento na música, sua importância no desenvolvimento do motivo2 e na
performance. Na parte sobre a música brasileira, faço uma relação com o povoamento
do país e uma retrospectiva histórica desde o choro até os dias atuais. Posteriormente,
abordo a improvisação na música erudita, no jazz e na música brasileira.
No capítulo seguinte, escolhi trabalhar com três ritmos: baião, frevo e samba.
Então identifico os principais elementos rítmicos que caracterizam esses gêneros como
1 SMALL, C. Musicking: the meanings of performing and listening. 2 Baseando-se no conceito de motivo de Schoenberg, os fatores constitutivos de um motivo são intervalares e rítmicos, combinados de modo a produzir um contorno que possui, normalmente, uma harmonia inerente. O autor ainda afirma que qualquer sucessão rítmica de notas pode ser usada como um motivo básico, mas não pode haver uma diversidade muito grande de elementos. O compositor trata desse assunto com profundidade em Fundamentos da Composição Musical (1993).
3
tais, e também faço uma análise rítmica de trechos de algumas melodias (de
transcrições que realizei) do repertório tradicional e contemporâneo.
Em seguida, na terceira e maior parte desta monografia, analiso um improviso
sobre cada um dos ritmos trabalhados no capítulo anterior. Todos os solos foram
transcritos por mim, e tais análises são extremamente voltadas para a questão do ritmo,
não abordando aqui as questões harmônico-melódicas.
O primeiro improviso é de Heraldo do Monte, músico pernambucano que toca
guitarra, violão, viola e cavaquinho. Nome importante na história na música brasileira,
Heraldo já integrou a orquestra da TV Tupi, tocou com Dolores Duran, grupo Medusa,
Dick Farney, Quarteto Novo (grupo que inovou a maneira de tocar música instrumental
brasileira), Zimbo Trio, além de ter participado de importantes festivais como os de
Montreaux, Montreal e Cuba. Do Monte possui uma carreira com vários discos
gravados, como instrumentista e arranjador, e ganhou o prêmio Sharp de 1994 e 1995.
O segundo solo abordado é feito pelo baixista Ronaldo Saggiorato, músico
gaúcho que morou muitos anos na Áustria, onde integrou o Alegre Corrêa Sextet, grupo
que obteve um grande êxito na Europa. Sagioratto, também conhecido como Gringo,
tocou muitos anos com o maior nome da música instrumental gaúcha: Renato Borguetti.
Atualmente integra o grupo instrumental Dr. Cipó e trabalha como baixista e arranjador
da cantora Isabel Padovani, com quem venceu em 2005 o concurso de música mais
importante do Brasil, o Prêmio VISA.
O terceiro e último improviso é do pianista André Marques, músico paulista que
integra o grupo de Hermeto Pascoal desde 1994, excursionando pelo mundo inteiro e
com quem gravou o disco Mundo Verde Esperança em 2002, com o qual recebeu o
Prêmio Tim e uma indicação ao Grammy. Toca também com o Trio Curupira, com quem
tem tocado em vários festivais importantes, coordena a Vintena Brasileira, uma
pequena orquestra de vinte músicos, e leciona no Conservatório Dramático e Musical
de Tatuí.
O quarto e último capítulo é a transcrição de entrevistas realizadas com os
músicos citados anteriormente, onde faço seis perguntas:
1) Como enfatizar a rítmica da música brasileira nos improvisos?
4
2) Como você encara o desenvolvimento rítmico no improviso da música
brasileira nas últimas décadas?
3) Você sugere algum exercício para que o estudante de improvisação possa
aprimorar suas idéias rítmicas na improvisação?
4) No momento do improviso, como o ritmo influencia a melodia e vice-versa?
5) Você acha que o estudo excessivo da improvisação jazzística pode de
alguma maneira ser nocivo para o músico brasileiro?
6) Poderia citar alguns improvisadores brasileiros que você considera muito
bons no aspecto rítmico?
A partir destas perguntas, tentei extrair como esses músicos pensam e sentem
essa questão rítmica do improviso.
5
1 RITMO, A MÚSICA BRASILEIRA E A IMPROVISAÇÃO
1.1 Sobre o ritmo
O ritmo certamente é o princípio de tudo na música, sendo que a percussão
sempre esteve diretamente ligada a rituais religiosos dos povos primitivos, colocando o
ritmo como parte da natureza humana. Além disso, qualquer altura (nota) é, na
verdade, uma série de vibrações consecutivas, como por exemplo, o Lá 440, que tem é
composto por quatrocentos e quarenta vibrações por segundo. Pode-se dizer então
que, fisicamente, o ritmo vem primeiro que a melodia, ou ainda, que a melodia é uma
conseqüência do ritmo3.
Mas é certo que o ritmo não surgiu isoladamente, ele provém de algo. Segundo
Kiefer, existem três fontes de ritmo musical: fontes psicossomáticas (a dança, os
passos, as batidas do coração, os gestos e o ritmo do idioma), fontes exteriores (como
escrever um ritmo baseado em algum fenômeno da natureza ou em alguma máquina) e
os ritmos artificiais (como os recursos eletrônicos do século XX)4. Magnani associa o
desenvolvimento rítmico diretamente à evolução da polifonia, bem como à mistura entre
elementos da música sacra com a música feita por trovadores, por meados do séc. X5.
O ritmo é uma representação do gesto humano, e principalmente através da
dança e rituais religiosos, foi tomando consistência. Podemos citar aqui como exemplo,
os ritmos afro-brasileiros, que são diretamente influenciados pelas danças e gestos6,
como se o ritmo fosse uma maneira de temporalizar os movimentos da dança7.
Segundo Stefani:
3 Encontra-se esse tipo de perspectiva em WISNIK (2002) 4 KIEFER, B. Elementos da Linguagem Musical. pág.27 5 MAGNANI, S. Expressão e comunicação na linguagem da música. pág.96-99 6 Reciprocamente, as danças também sofrem influências do ritmo. 7 WISNIK, J.M. Música. Pág.44
6
“O ritmo então, sempre esteve desde o princípio relacionado com a forma de desenvolvimento e expressão humana. A poesia, a música e a dança sempre foram organizados em nossa civilização com os mesmos módulos rítmico-métricos” 8.
Ao pesquisar em dicionários, são encontradas algumas definições
interessantes sobre ritmo, como a de Dourado (2004): “A subdivisão do tempo em
partes perceptíveis e mensuráveis, ou seja, a organização do tempo segundo a
periodicidade dos sons.9” A recorrência de padrões cíclicos está extremamente ligada
ao conceito de ritmo, o nosso cérebro está freqüentemente em busca de organização
das informações que está recebendo, seja num âmbito micro ou macro10. O compositor
russo Igor Stravinski, um dos grandes revolucionários no que se refere ao aspecto
rítmico da música do começo do séc. XX, afirma:
“A música baseia-se numa sucessão temporal, e exige uma memória alerta. Sendo assim, (...) a música é uma arte cronológica. A música pressupõe, antes de tudo, certa organização do tempo, uma crononomia, se me permitem esse neologismo.11”
O ritmo é um dos principais agentes organizadores das idéias musicais, muitas
vezes, basta o tocar percussivamente o ritmo para que se reconheça determinada
melodia12. Segundo Toch, os motivos rítmicos podem ser desenvolvidos basicamente
por três maneiras (esses exemplos foram extraídos da Flauta Mágica, de Mozart)13:
a) Em ritmo igual:
8 STEFANI, G. Para entender a música. pág.45 9 DOURADO, H. A. Dicionário de termos e expressões da música. pág.282 10 Para um maior aprofundamento no assunto, indico MEYER, L. Emotion and Meaning in Music. 11 STRAVINSKI, I. A Poética Musical. pág.35 12 TOCH, E. La Melodia. pág.175 13 IDEM, Ibidem. pág.191
7
b) Em ritmo paralelo:
c) E em ritmo invertido:
Uma melodia pode ter muitas variações de alturas, com harmonias complexas,
mas se tiver uma rítmica coerente, recorrente, tem grandes chances de se tornar mais
assimilável para o ouvinte. Segundo Schoenberg, “a conservação do ritmo permite
profundas mudanças no perfil melódico”14. Dificilmente o mesmo resultado pode ser
obtido da situação contrária, no caso de uma harmonia e melodia simples, e ritmo
complexo e irregular. Stravinsky comenta sobre isso:
"A variedade me cerca por todos os lados. Portanto eu não preciso temer ser privado dela, já que estou permanentemente em confronto com ela. O contraste está por toda parte. Temos apenas de registrar a sua presença. A similaridade está oculta; é preciso procurar por ela, e ela só se deixa encontrar depois de exaustivos esforços. Quando a variedade me tenta, fico inseguro quanto às soluções fáceis que ela me oferece. A similaridade, por outro lado, coloca problemas mais difíceis mas também oferece resultados mais sólidos e portanto, mais valiosos pra mim."15
A necessidade de variedade, sempre deve estar em equilíbrio com uma
limitação da variedade, pois senão a compreensibilidade e lógica do discurso ficariam
prejudicadas16. Após a inserção de um elemento de contraste, a repetição deve
aparecer logo, de modo que não prejudique tal compreensibilidade, pois o real
14 SCHOENBERG, A. Fundamentos da Composição Musical. pág.36 15 STRAVINSKY, I. Poética Musical. pág.38 16 OSBORNE, H. A Unidade Orgânica. APUD FREITAS, 2002
8
propósito da construção musical não é a beleza, mas a inteligibilidade17. Vejamos este
trecho da música 14 de Julho, de Hermeto Pascoal:
Pode-se perceber que a harmonia não segue cadências tradicionais e que a
melodia também não é óbvia, mas ao mesmo tempo existe uma unidade harmônica
(como o uso de acordes de sétima maior, a relação intervalar de segunda maior, a
repetição) e melódica (o uso da repetição, o contorno conserva a coerência mesmo com
as mudanças de intervalos). Já a idéia rítmica repete literalmente por todo o trecho,
amarrando as idéias harmônico-melódicas:
Por outro lado, no repertório jazzístico e brasileiro, as variações rítmicas são
freqüentemente usadas por solistas durante a execução do tema18, sendo um dos
principais recursos interpretativos. Esse ato de recriação dá outra função ao intérprete
contemporâneo, pois sua liberdade é muito grande. Se para os instrumentos
acompanhadores não existe uma rigidez no que diz respeito às levadas ou formações
17 SCHOENBERG, A. Fundamentos da Composição Musical. pág.51 18 Neste trabalho, o termo “tema” será usado no sentido em que se tornou popular no meio dos instrumentistas brasileiros, referindo-se na verdade à composição musical.
9
de acordes, nada mais justo que deixar o solista livre para fazer várias mudanças nos
parâmetros melódicos. Nesse caso, a interpretação do tema não deixa de ser um tipo
de improvisação. Podemos citar vários cantores que fazem isso com maestria, como
João Gilberto, Tom Jobim, Elis Regina, Milton Nascimento, Leny Andrade, Sarah
Vaughan, entre outros. Essa liberdade rítmica muitas vezes gera uma dificuldade para a
escrita, como comenta Magnani:
“Com o romantismo, a posição do ritmo passa por uma profunda modificação, principalmente através das sugestões dos folclores nacionais, que introduzem na música compassos antes desconhecidos, novas liberdades na alternância contínua ou na combinação do binário e ternário, fórmulas livres carregadas de vitalidade expressiva e acentuações originais que contrastam com a rigidez do compasso tradicional. Citamos, como exemplo, as características rítmicas da música brasileira, tão sutis que até hoje não encontraram a possibilidade de uma exata fixação gráfica, apesar dos esforços de alguns compositores – entre eles, Camargo Guarnieri – que procuraram aproximar, o mais possível, signo e intenção rítmica do texto. O ritmo estabeleceu-se, assim, como elemento expressivo de primeiro plano, tornando-se, às vezes, o elemento individualizante da obra.19”
O ritmo a ser usado na improvisação pode, em muitos casos, estar ligado ao
contexto estilístico em que este se encontra, e em se tratando de um repertório ou
interpretação moderna, pode estar relacionado aos acontecimentos presentes do
momento da execução. No fazer musical o instrumentista tem várias possibilidades no
que se refere a articulação, dinâmica, timbre, etc. A sua performance está intimamente
conectada ao que está acontecendo nos outros instrumentos que fazem parte do
arranjo. Esses elementos que constituem a interpretação se acoplam, interagem e se
realimentam20.
19 MAGNANI, S. Expressão e comunicação na linguagem da música. pág. 98 20 ALEXANDRE, K. Dissertação de Mestrado. Pág.07
10
1.2 Sobre a música brasileira
O Brasil é um país marcado pela grande miscigenação ocorrida durante o seu
povoamento, pela vinda dos europeus, dos escravos africanos, e ainda se misturando
com os índios que aqui já estavam. Definitivamente isso influenciou sócio-culturalmente
o Brasil de uma forma geral, desde etnias, sotaques até comida e artes. Na música
essa mistura ficou bem evidente, e ainda, por ser um país de extensão territorial muito
grande, existe hoje um grande número de gêneros musicais, que foram se
desenvolvendo com o passar das décadas. Segundo Barros:
“O Brasil foi recebendo influências de danças, cantos e músicas populares dos portugueses (a mais vasta), africanos, ameríndios, e espanhóis, mas somente pelo último quartel do século dezenove é que se completou a fusão desses elementos de modo a criar-se uma música e formas populares, essencialmente, brasileiras.21”
Até então havia uma resistência muito grande de incorporar elementos
populares na música. É o caso da ópera “O Guarani”, de Carlos Gomes, cujo roteiro
envolve uma história brasileira, mas a música é totalmente baseada nos moldes
europeus. Talvez ainda não se soubesse o que era brasileiro, pois um país que teve a
república proclamada somente em 1889 era muito jovem e ainda estava em busca de
uma identidade própria. Além do mais, a burguesia não achava interessante que
elementos populares e africanos fossem inseridos na arte, pois tudo aquilo que vinha
da camada pobre não soava muito agradável, diferente da cultura européia, que era
muito mais exaltada por passar uma sensação de nobreza. Ainda em 1939, Andrade
criticava o uso do bel canto europeu para cantar músicas brasileiras. Afirmava ainda
que cantores de países como Japão e Arábia tem uma maneira própria de cantar, e
sendo assim, os cantores brasileiros deveriam ser mais honestos consigo mesmos e
cantar com uma maneira própria22.
No começo do séc. XX existiram três compositores de grande importância na
propagação da música brasileira: Chiquinha Gonzaga, Joaquim Calado e Ernesto 21 BARROS, A. A música. cap.XXXVI (sem paginação) 22 ANDRADE, M. APUD SUZIGAN, G.O. O que é música brasileira. pág.40
11
Nazareth. Com o repertório repleto de maxixes, polcas23, choros e lundus, suas
músicas apresentam o uso de certos ritmos e melodias que começam a caracterizar a
música popular brasileira24, ao mesmo tempo em que gradativamente ganham espaço e
aceitação em diferentes camadas sociais.
Outro fator que foi decisivo na caracterização da música brasileira foi o grande
número de negros trazidos da áfrica como escravos, os quais mantinham suas
tradições, como danças e ritos religiosos. O diferencial da música africana é a sua
enorme riqueza rítmica, repleta de acentos irregulares, poliritimias e deslocamentos.
Nos primeiros dois séculos de escravidão, o negro ficou bastante isolado nos campos
de trabalho, e como o Brasil foi o último país a abolir a escravidão, somente no final do
séc. XIX o negro começou a integrar a sociedade, a medida que a economia nacional ia
se desenvolvendo. Os escravos se adaptaram rapidamente a esse novo ambiente, que
era parecido ao de sua origem. Isso seria decisivo para a formação de uma identidade
nacional, pois o negro contribuiu para vários segmentos do dia-a-dia brasileiro25.
Como afirma Andrade, “o africano também tomou parte vasta na formação do
canto popular brasileiro. Foi certamente ao contato dele que a nossa rítmica alcançou a
variedade que tem, uma das nossas riquezas musicais.26”
“Ora essas influências dispares e a esse conflito ainda aparente o brasileiro se acomodou, fazendo disso um elemento de expressão musical. Não se pode falar diante da multiplicidade e constância das sutilezas rítmicas do nosso populário que estas são apenas os desastres dum conflito vão. E muito menos que são exclusivamente prosódicas porque muitas feitas elas até contradizem com veemência a prosódia nossa. O brasileiro se acomodando com os elementos estranhos e se ajeitando dentro das próprias tendências adquiriu um jeito fantasista de ritmar. Fez do ritmo uma coisa mais variada mais livre e, sobretudo um elemento de expressão racial.27”
Alguns autores afirmam que a síncopa, o elemento rítmico que tanto caracteriza
a música brasileira, não tenha raízes africanas, sendo mais oriundo do maxixe e da
polca. Mas mesmo assim não se pode negar que a rítmica africana está presente na 23 Gêneros de origem européia 24 BARROS, A. A Música. cap.XXXVI (sem paginação) 25 MARIZ, V. Vida Musical. pág.29 26 ANDRADE, M. Pequena História da Música. pág.186 27 ANDRADE, M. Ensaio Sobre a Música Brasileira.pág.14
12
música brasileira28. Como afirma Almeida, o negro fecundou todo o folclore brasileiro,
com seus ritmos, percussão, danças, coreografias, instrumentos e religiosidade29.
Segundo Mariz:
“Na maioria das nações latino-americanas o tráfego de escravos africanos foi mínimo. Somente na região do Caribe vemos brotar os ritmos africanos com muita freqüência, riqueza e variedade, como no Brasil. Nos demais países do continente predominou a música de proveniência européia matizada por influências indígenas. E temos de reconhecer que o êxito mundial da música popular brasileira é, em grande parte, devido aos ritmos afro-brasileiros.30”
Por volta de 1870, a palavra choro significa simplesmente a formação
conhecida como trio de pau e corda, e mais tarde passa a ser uma maneira de tocar.
Somente em meados dos anos 30, o termo choro é usado para designar um estilo
musical31. Com a mudança no eixo econômico e com o lento processo de abolição da
escravatura, na segunda metade do séc. XIX acontece um grande fluxo migratório para
o Rio de Janeiro. As festas realizadas nas casas das “Tias” baianas, em especial da Tia
Ciata, passaram a ser chamadas de pagode ou samba, nas quais reuniam músicos de
choro com batuqueiros do candomblé e da capoeira32. Nos anos 30 e 40,
paralelamente à então chamada Era do Rádio, o samba é glorificado, sendo aos
poucos aceito pela classe mais alta como música nacional33, e com isso traz uma
revolução rítmica. Os acompanhamentos do samba ainda traziam uma herança muito
forte do maxixe, até surgir um acompanhamento mais sincopado, fenômeno que
Sandroni chama de paradigma da Estácio. Até então, os acompanhamentos dos
sambas tocados eram normalmente:
28 IDEM, ibidem. pág.30 29 ALMEIDA, R. História da Música Brasileira. pág.12 30 MARIZ, V. Vida Musical. pág.31 31 PIEDADE, A. Brazilian Jazz and friction of musicalities. Pág.43 32 SANDRONI, C. Feitiço Decente. pág 100-103 33 PIEDADE, A. Ibidem, pág.45
13
E então os sambistas da Estácio começam a inovar:
Esta síncopa é atribuída à uma herança do lundu, pois este ciclo rítmico é
encontrado na música de algumas regiões do Zaire34. A partir de então a síncopa foi se
desenvolvendo e cada vez mais se incorporando como elemento musical chave para a
caracterização da música brasileira.
No final dos anos 50, João Gilberto e Tom Jobim oficializam o início da bossa-
nova, movimento que na verdade já vinha acontecendo a um bom tempo35, resultado da
síncopa do samba misturada às harmonias rebuscadas e interpretação intimista do cool
jazz36. Ao mesmo tempo em que a bossa-nova era criticada por ser considerada uma
americanização do samba, o mundo inteiro começou a conhecer a bossa nova, que
passou a ser o principal símbolo da música brasileira no exterior.
Pode-se dizer que o grande ponto de encontro entre a música brasileira e o jazz
é o conceito de improvisação. Na segunda metade da década de 60, em oposição ao
sucesso mundial da bossa nova, surge o movimento chamado de tropicalismo,
juntamente com os importantes festivais. Encabeçados por Gilberto Gil e Caetano
Veloso, os tropicalistas substituíram as roupas sociais dos bossa novistas por coloridas
batas africanas, trocaram o violão pela guitarra adicionando às músicas enérgicas letras
repletas de apelos e protestos.
É nesta mesma época, mais precisamente em 1966 que é lançado o primeiro e
único disco do Quarteto Novo, que reunia Hermeto Pascoal, Théo de Barros, Heraldo
do Monte e Airto Moreira, marcando o início da Música Instrumental Brasileira, mais
tarde conhecida no exterior como Brazilian Jazz. O grupo apresenta uma nova forma de
tocar música brasileira, explorando vários ritmos nordestinos, progressões harmônicas
34 SANDRONI, C. Feitiço Decente. pág.32 35 CASTRO, R, APUD DUARTE, P, e NAVES, S. Do Samba canção à Tropicália. pág.16 36 Essa interpretação intimista já vinha acontecendo também no bolero, mas o cool jazz marcava o rompimento com a agressividade e virtuosismo do bebop, fato que pode ser comparado ao rompimento com a batucada do samba.
14
muito originais, compassos irregulares como (7/4, por exemplo), tudo isso aliado a
muita improvisação. Em 1970 surgia outro ícone da música instrumental, Egberto
Gismonti, que unia experimentalismos e improvisações com toda a sua bagagem da
música erudita.
A partir de então, a música instrumental brasileira foi se desenvolvendo, o
movimento do Clube da Esquina, em Minas Gerais, também teve uma enorme
importância. A partir de 1979 os músicos brasileiros começaram a participar de festivais
internacionais de jazz, como o Festival de Montreaux, e mais tarde, nos anos 90, houve
um crescimento muito grande na quantidade de grupos instrumentais espalhados pelo
país37. No começo dessa década, Alegre Corrêa, compositor gaúcho, começa a
despontar uma carreira de respeito na Europa, e em 98 surge André Mehmari, obtendo
uma grande projeção nacional impulsionado pelo Prêmio Visa, concurso que mais tarde
impulsionaria também Chico Pinheiro e Hamilton de Holanda.
Para encerrar essa parte sobre música brasileira, creio que é importante
elucidar sobre a definição que Magnani coloca sobre esses três termos: música erudita,
popular e folclórica:
“Diríamos que a primeira possui, por sua própria natureza, ambições de comunicar mensagens estéticas universalmente válidas. Essas ambições a música realiza sublimando liricamente o sentimento, através de estruturas formais meditadas e de articulações lingüísticas de ilustre linhagem. A música folclórica, por sua vez, é o repositório ancestral da sensibilidade de um povo. Sua característica é ser sempre anônima, ligada, em suas origens, a elementos funcionais, sublimados numa catarse lírica que fixa o folclore no tempo, fora das flutuações do contingente. Nela cada povo se reconhece num eterno presente;(...) A música popular, ao contrário, tem sempre um autor, é estritamente ligada às modas e aos contextos sociais contingentes, alimentados pelas contribuições gestuais da dança: quer ser arte de consumo, expressa numa linguagem popular de valores lingüísticos intuitivos, dentro de formas primárias baseadas na redundância.38”
Sob o ponto de vista de Magnani, fica difícil definir onde se encaixaria a
chamada música instrumental brasileira, pois esta não poderia ser música popular
porque não é de consumo. Nem tampouco folclórica, pois todas têm seus autores...
37 PIEDADE, A. Brazilian Jazz and friction of musicalities. pág.43 38 MAGNANI, S. Expressão e Comunicação na Linguagem da Música. pág.112
15
Seria então música erudita? Talvez fosse o caso de abrir mais uma definição, como
algumas que já são usadas atualmente, como música universal, ou música
contemporânea.
1.3 Sobre a Improvisação
Segundo Costa, improvisação “trata-se de pensamento musical em ação onde o
que importa é a participação em um processo, criativo, expressivo, lúdico e interativo
em tempo real.39” Hoje em dia quando se usa o termo improvisação, tende-se a
relacionar à improvisação jazzística. É verdade que no séc. XX o pensamento norte-
americano - de pôr a improvisação como parte principal da música - influenciou toda a
cultura ocidental40, mas não se pode esquecer que a improvisação sempre foi uma
prática comum entre compositores e instrumentistas da música que chamamos hoje de
erudita.
Um dos fatores que contribuiu para isso, é que do séc. XV ao séc. XIX os
detalhes da escrita foram aumentando cada vez mais, assim o intérprete foi aos poucos
perdendo sua liberdade de improvisação. Acredita-se que os executantes do séc. XVI
eram capazes de improvisar através de contrapontos e floreios a uma determinada
melodia. No período barroco os solistas desenvolveram suas capacidades de
improvisar virtuosisticamente, tanto nas cadenzas quanto nas ornamentações, bem
como os acompanhadores que tocavam a harmonia a partir do baixo contínuo. Já no
período clássico, os compositores passaram a restringir a prática da improvisação
através de indicações detalhadas de interpretação, em contradição com o alto grau de
virtuosismo alcançado pelos cantores e instrumentistas. No período romântico a figura
do compositor tornou-se muito importante, e como estes sempre eram grandes
39 COSTA, R. L. M. A preparação do ambiente da livre improvisação: antecedentes históricos, as
categorias do objeto sonoro e a escuta reduzida. pág.150. 40 Com a entrada dos americanos na guerra, em 1917, a Europa descobre o jazz, entusiasmando-se com os ragtimes e blues tocados pelos negros. Ver CANDÉ, R. O Convite à Música, pág.201
16
improvisadores, muitas vezes a escrita era só um resultado de tais improvisações41.
Compositores modernos como Schoenberg e Stravinsky possuem uma escrita tão
precisa que todos os detalhes de fraseado, ritmo e expressão são rigidamente
colocados na partitura, reduzindo o intérprete a condição de um gramofone42. No séc.
XX surge a corrente da música aleatória, que retoma o caráter de improvisação de uma
maneira muito mais drástica, tornando os resultados sonoros fora do controle do
compositor.
Já no Estados Unidos, no final do séc. XVIII, os escravos negros cantavam os
spirituals nas plantações, e improvisavam as letras falando principalmente sobre o dia-
a-dia. De meados de 1865 até o começo do séc. XX, o blues se espalha pelos campos
por todo o país, surgem os primeiros corais negros e as primeiras orquestras, as quais
tocavam o estilo chamado ragtime ou dixieland43. Por volta de 1930, o jazz alcança um
grande sucesso com o chamado swing, trazendo consigo todo o caráter improvisatório
do blues. Mas é na década de 40 que surge uma grande revolução no aspecto da
improvisação: o bebop. O virtuosismo melódico aliado à complexidade rítmica e
harmônica, marcam para sempre a história do improviso da música popular do séc. XX.
Em oposição a esse movimento, na década de 50 veio o cool jazz, que explora notas
longas, temas simples e uma atmosfera muito mais intimista. Na década de 60, surge o
free-jazz, que leva a liberdade de improvisação às últimas conseqüências. Segundo
Calado, “a liberdade é praticamente total, sendo também derrubados o respeito à
harmonia de um “tema” (pois se abre o campo da atonalidade), assim como o conceito
de simetria rítmica e métrica, que permanece válido até aquele momento.44” O fusion foi
outra grande experimentação que surgiu nos anos 70, misturando o jazz com
elementos do rock e do funk.
Na música brasileira, o choro – um dos primeiros estilos a ser considerado
como genuinamente brasileiro – sempre teve um caráter de improvisação,
principalmente pela liberdade da seção rítmica, “pela maneira de que cada instrumento
41 GARCIA, L.C. Aspectos da improvisação jazzística:a arte da composição em tempo real. pág.7-9 42 DART, T. Interpretação da música. pág.67 43 CANDÉ, R. O Convite à Música. pág. 202 44 CALADO, C. O Jazz como Espetáculo. pág.46
17
pode deixar de fazer um acompanhamento comportado, para tornar-se, junto com o
solista, o primeiro plano do conjunto.45” Desde o início do choro, os instrumentistas que
realizam o acompanhamento apresentam menos fluência de leitura de partitura que os
melodistas (sopros) que nesse período fazem parte de bandas militares. Segundo
Garcia:
“É natural que por sua grande diversidade cultural, (...) a música brasileira tenha uma tendência à improvisação. Até mesmo a falta de recursos, que faz, por exemplo, com que um habitante do morro improvise a confecção de um instrumento de percussão em uma caixa de fósforos ou frigideira, ou a falta de familiaridade de muitos músicos com a notação musical, já sugere sua predisposição à execução improvisada.46”
Apesar de normalmente afirmar-se que foi a bossa-nova que trouxe a influência
do jazz para a música brasileira, esta já trazia elementos norte-americanos desde as
décadas de 30 e 40, onde os chorões já tinham contato com alguns músicos
americanos das big-bands. Alguns elementos jazzísticos podem ser notados em
algumas músicas de Pixinguinha, por exemplo, como a harmonia e forma47.
O ano de 1959 é marcado pelo lançamento do álbum Chega de Saudade.
Alguns anos mais tarde, em 1963, é lançado o álbum que simboliza a mistura da
música brasileira com o jazz: “Getz/Gilberto”, trazendo vários improvisos com frases
jazzísticas, popularizando a bossa-nova no EUA. Um ano depois, o lendário “Quarteto
Novo” lança seu único disco, que apesar de ser repleto de improvisos, traz uma
linguagem que não remete ao bebop48, mas sim um vocabulário extremamente
coerente com o contexto folclórico brasileiro, marcando assim o início da música
instrumental brasileira. Segundo Bastos:
45 OLIVEIRA, S. Choro: um Estudo Histórico e Musicológico. pág.46 46 GARCIA, L.C. Aspectos da Improvisação Jazzística: A Arte da Composição em Tempo Real. pág.19 47 Como nas músicas “Rosa”, “Carinhoso”, “Lamentos”, “Ingênuo” que têm forma canção, saindo da convencional forma rondó. Além disso, essas duas últimas possuem progressões harmônicas sofisticadas, que modulam para a região mediante. 48 Esclareço aqui que quando uso o termo bebop, não estou me referindo a tal período do jazz, e sim ao fraseado caracterizado por contornos, cromatismos, condução de vozes, articulações e acentuações típicas. Esse termo é normalmente usada dessa maneira pelos norte-americanos.
18
“(...) a designação “música instrumental” é ambígua, pois há diversas outras músicas instrumentais no Brasil, e apesar disto os músicos e ouvintes deste repertório não tem dificuldade no reconhecimento do gênero musical que leva o nome de música instrumental. Algumas de suas marcas são claras: o destaque para os instrumentistas (improvisações, valorização do virtuosismo), a concepção harmônico-melódica e os arranjos que empregam técnicas e formas jazzísticas, entre outras. Há outras designações, como, por exemplo, “música universal” (conforme Hermeto Pascoal), “música brasileira contemporânea” (conforme Arismar do Espírito Santo), ou ainda “jazz brasileiro”, principalmente no exterior (brazilian jazz).49”
De acordo com Piedade50, existem três termos que representam bem as
tendências da Música Instrumental Brasileira: mais brasuca, mais fusion e mais ecm. A
linha “mais brasuca” é aquela em que se explora os elementos da música nordestina
(como os modos dórico e mixolídio, e os diversos ritmos como maracatu, frevo, baião) e
do choro (como as ornamentações melódicas), e tem como maior expoente Hermeto
Pascoal. A linha “mais fusion” se utiliza da mistura do samba com o funk e soul, e tem
como exemplo o grupo “Cama de Gato”. Já o “mais ecm” tem como principal
representante o compositor Egberto Gismonti, e se refere ao estilo de música da
gravadora alemã ECM, uma música mais meditativa, influenciada pela vanguarda
européia.
Nas décadas de 60, 70 e 80, a bossa-nova alcança um sucesso absoluto: em
62, Jobim faz um show memorável no Carnegie Hall, em Nova Iorque, já com um
milhão de discos vendidos. Em 67 grava seu primeiro disco com Frank Sinatra,
alcançando o patamar de segundo disco mais vendido, perdendo apenas para o Sgt.
Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles. Várias canções como Corcovado,
Chega de Saudade, Wave, Manhã de Carnaval (editada como Black Orpheus),
passaram a fazer parte do “Real Book”, o livro que reune os principais standards do
jazz, e a bossa-nova passou a fazer parte do currículo nas faculdades de música do
EUA. Por outro lado, no Brasil havia uma grande escassez de material didático de
música brasileira, o que levava os músicos a irem estudar no exterior, buscarem
49 BASTOS, M.B. Análise de improvisações na música instrumental: em busca da retórica do jazz brasileiro. pág.265 50 PIEDADE, A.T. Brazilian Jazz and friction of musicalities. pág.49
19
métodos de jazz (já que era o que se tinha). Inclusive vários métodos de improvisação
escritos por brasileiros, na verdade tem uma abordagem totalmente jazzística.
Levanto aqui uma problemática: muitos improvisadores brasileiros fazem o uso
excessivo do vocabulário bebop, tornando as frases desconexas com o contexto
musical da “cozinha”51, principalmente no que se refere ao aspecto rítmico. É verdade
que na música brasileira, o pensamento harmônico, bem como as relações escalas X
acordes são praticamente idênticas ao jazz52, entretanto o vocabulário rítmico também
é tão importante quanto o melódico. Creio que a dificuldade de acesso às gravações, a
ausência de materiais de estudo de improvisação em português, e até mesmo a
escassez de edições de partituras em Bb e Eb contribuíram para que o improvisador
brasileiro colocasse demasiadamente recursos do bebop sobre ritmos nacionais.
Segundo Piedade:
“(...)No caso do jazz, esta comunidade é atualmente internacional e pluricultural, e de acordo com o discurso nativo, esta comunidade compartilha o que pode ser chamado de paradigma do bebop, que é, uma musicalidade jazzística que permite uma comunicabilidade musical global. Já o jazz brasileiro, como eu tentei demonstrar, embora devorando este paradigma do bebop, procura incessantemente se distanciar da musicalidade norte-americana, ordenando a musicalidade brasileira.53”
Da década de 90 em diante, com o maior acesso às informações, maior
liberdade de expressão, a proliferação das oficinas de música, digitalização de dados
fonográficos, o músico brasileiro vem cada vez mais olhando para suas raízes, sempre
reinventando o tradicional e misturando com várias vertentes. E a improvisação segue o
reflexo desse movimento, ressaltando cada vez mais as enormes possibilidades
rítmicas que a música brasileira oferece.
Não se pode deixar de citar aqui nomes que contribuíram (e ainda contribuem)
diretamente para o desenvolvimento da improvisação brasileira: Heraldo do Monte,
Carlos Malta, Arismar do Espírito Santo, Hélio Delmiro, Paulo Moura, Mauro Senise,
51 Termo utilizado para a seção rítmica. 52 É importante salientar que a música brasileira possui uma identidade harmônica característica, principalmente o repertório da música de Minas Gerais. 53 PIEDADE, A.T. Brazilian Jazz and friction of musicalities.Livre tradução pág.55
20
Nivaldo Ornellas, Raul de Souza, Rique Pantoja, Nico Assunção, Luizão Maia, César
Camargo Mariano, Romero Lubambo, Léa Freire, Proveta, Teco Cardoso, Vinícius
Dorin, André Marques, Ronaldo Saggiorato, , André Mehmari, Alegre Corrêa, Hamilton
de Holanda, Thiago do Espírito Santo, Gabriel Grossi, entre outros.
21
2 BAIÃO, FREVO E SAMBA: ANÁLISE DA PERCUSSÃO E DA RÍTMICA DE
MELODIAS
Nesta parte do trabalho, realizo uma análise das principais figuras rítmicas de
cada estilo, e uma breve análise de trechos algumas melodias.
Muitas vezes (já me deparei com tal situação em várias aulas de violão), o
estudante está aprendendo determinada canção e pergunta: “Mas qual é a batida?”. Na
verdade o que ele está perguntando é, qual é o gênero. O que difere o samba do baião,
o rock do jazz, não é só o ritmo, mas sim uma série de características, como timbres,
instrumentação, harmonia, letras, etc. De acordo com Sandroni:
“...batida de samba é um modelo rítmico de acompanhamento, suscetível de certo grau de variação, utilizado quando a canção a ser acompanhada pertence ao gênero samba”54.
Quando trabalhei no projeto TIM Música nas Escolas, em abril de 2007,
apresentei oito workshops de composição em quatro escolas públicas de Florianópolis,
junto com o baixista Carlos Lamarque e o baterista Mauro Borghezan. Em certo
momento do workshop, pedimos para as crianças reconhecerem qual o ritmo que o
baterista iria tocar, e logo que ele começava a tocar, os alunos já começavam a gritar. A
maioria das vezes elas acertaram, e certos resultados foram interessantes, como por
exemplo: quando o baterista tocou um ritmo de baião, as crianças gritaram forró; na vez
da marcha-rancho, disseram carnaval. Com certeza, na música brasileira, as pessoas
relacionam e identificam os gêneros musicais através do ritmo do acompanhamento, da
batida55.
É importante também ressaltar que muitas vezes, o texto, os sons da palavra e
a rítmica das sílabas é que dão forma e movimento aos motivos, andamentos e ritmos56,
por isso a maior parte das melodias a serem analisadas neste capítulo são extraídas de
54 SANDRONI, C. Feitiço Decente pág.13 55 IDEM, Ibidem pág. 14 56 ANDRADE, M. Aspectos da música brasileira. pág. 116
22
canções da música brasileira. Creio que durante o estudo da improvisação é preciso
sempre estar ampliando o vocabulário melódico, harmônico e rítmico, focando não
apenas o repertório contemporâneo, mas também o tradicional. O intuito desse capítulo
é identificar quais os elementos rítmicos que tornam esses gêneros caracterizados
como tais, e como essas divisões refletem nas melodias.
2.1 BAIÃO
O baião emergiu como um gênero musical na década de 40, no Nordeste
brasileiro, mais especificamente do Ceará, Maranhão e Bahia. Sendo uma derivação de
danças folclóricas como bumba-meu-boi, a primeira canção conhecida foi intitulada
“Baião”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira57. Melodicamente e harmonicamente, é
bem usual encontrar músicas modais, que exploram a sonoridade dórica e mixolídia
(em muitos casos com a décima primeira aumentada58). A instrumentação clássica
desse estilo inclui a zabumba, triângulo e sanfona. Alguns outros estilos possuem uma
rítmica que se aproxima à do baião, como por exemplo, o côco, o calango e a toada.
A figura principal do baião é tocada no grave da zabumba e hoje em dia, pode
ser executada pelo bumbo da bateria, pelo contrabaixo, pelo bordão do violão, etc:
Lembrando que a segunda nota é sempre mais acentuada que a primeira, essa
antecipação do segundo tempo dá ao baião uma característica rítmica muito peculiar,
57 FARIA, N. The Brazilian Guitar Book. pág.120 58 Alteração na quarta nota da escala mixolídia. Como geralmente coloca-se essa nota mais na região aguda do acorde, costuma-se chamar de décima primeira aumentada, ao invés de quarta aumentada, cifrando-se #11. A escala gerada por essa alteração é freqüentemente chamada de Lídio b7.
23
pois a síncopa deixa de ser algo que causa instabilidade no tempo para se tornar a
base de todas as outras variações, deslocamentos e acentuações.
Outra figura rítmica muito importante é a divisão do triângulo:
Essa alternância entre dois toques abafados e dois toques abertos no triângulo,
acaba dando uma intenção de acento na segunda colcheia de cada tempo, figura
tocada pelo agogô:
Sobrepondo as três linhas, temos:
Pode-se observar uma rítmica muito peculiar usada nas melodias do repertório
tradicional do baião:
“Candeeiro” (Luiz Gonzaga)
24
O trecho já inicia com uma frase em anacruse, sem a primeira semicolcheia do
compasso59. Posteriormente, a idéia rítmica principal é uma colcheia pontuada seguida
de uma semicolcheia. Na segunda linha, percebe-se um motivo pergunta resposta,
onde a pergunta inicia na segunda semicolcheia (uma variação da primeira frase), e a
resposta inicia na quarta semicolcheia do compasso seguinte (coincidindo com a célula
principal do baião):
“Xamego” (Luiz Gonzaga)
Chamo a atenção aqui para o caráter anacrúsico que possui todo este trecho.
Além disso, apesar dos compassos possuírem as cabeças dos tempos, as frases nunca
iniciam nas cabeças.
59 Atribuo esse tipo de fraseado diretamente à necessidade da respiração do cantor, porque com a pausa no início da frase já se elimina o problema da interrupção do texto.
25
“Eu só quero um Xodó” (Dominguinhos)
Neste trecho, a característica principal é o uso das sincopas, de dois em dois
compassos. As divisões e acentuações da melodia são bem coerentes em relação ao
ataque feito com a vareta da zabumba:
2.2 FREVO
O frevo é um ritmo nordestino (de Recife, sendo mais específico), e emergiu no
final do século XIX da interação entre músicas e danças folclóricas. Um dos motivos
pelo qual o frevo sempre teve um caráter instrumental é pelo fato dos primeiros grupos
surgirem a partir de bandas militares, e por isso usavam vários instrumentos de banda
marcial60. O frevo também não apresenta a rítmica muito sincopada nas partes graves,
pois tem uma forte ligação com as marchas militares. Já nas melodias, normalmente
apresenta várias síncopas e acentuações no contra tempo. O andamento acelerado é
outra característica marcante do frevo, e quando é muito rápido, é chamado de frevo-
ventania. Quando mais lento, é chamado de marcha-rancho, geralmente usado para
canções, já que facilita a articulação da letra. Tradicionalmente o frevo é escrito em 2/4,
60 FARIA, N. The Brazilian Guitar Book. pág.120
26
mas vem se tornando comum encontrar edições de partituras de frevo em 4/4 (como
estarão alguns exemplos aqui neste trabalho).
A principal característica rítmica do frevo é a figura executada pela caixa:
Outra divisão muito característica é feita pelo pandeiro:
Sobrepondo essas duas divisões, e somando-as ao bumbo e ao surdo, temos61:
“Frevo de Orfeu” (Tom Jobim)
Nesta melodia não se encontra síncopas de um compasso a outro, mas várias
síncopas internas. Além do uso das tercinas, outra característica marcante nesta
melodia é o acento no tempo 2, de dois em dois compassos:
61 Rocca, E. Ritmos Brasileiros e seus Instrumentos de Percussão. pág.42
27
“Frevo Diabo” (Edu Lobo)
No trecho dessa melodia pode-se notar a presença de várias síncopas, bem
como a presença de anacruses e acentos no contra tempo:
Vale apontar que a divisão começou apoiada nas colcheias e a partir da
primeira metade do trecho e depois passou a apoiar-se nas semicolcheias, numa
espécie de dinâmica rítmica:
“Karatê” (Egberto Gismonti)
Como no primeiro exemplo, esta melodia não apresenta nenhuma síncopa de
um compasso para outro, só algumas síncopas internas. O acento nos contra tempos
28
também é bem evidente e existe um detalhe que as semicolcheias sempre aparecem
na primeira metade do compasso. Outra nuance muito interessante é que as
semicolcheias quando inseridas num fraseado baseado em colcheias, vêm seguidas de
uma síncopa62:
2.3 SAMBA
O samba é uma das principais representações da música brasileira, muito
popularizado pelos desfiles de carnaval do Rio de Janeiro a partir das décadas de 30 e
40. Com uma seção rítmica imensa, que envolve instrumentos como cuíca, reco-reco,
caixa, pandeiro, ganzá, chocalho, repique, surdo, bumbo, o samba é um contraponto
entre um pulso firme na cabeça dos tempos contra várias partes sincopadas e
polirrítmicas. O gênero possui várias subdivisões como samba enredo, samba canção,
samba de breque, partido alto e batucada63.
Uma das divisões mais importantes do samba é a marcação do tamborim64:
62 Como mostrado no exemplo, ao invés de uma síncopa literal, existe uma pausa no lugar do que seria o prolongamento da nota. Chamo aqui de síncopa intencional, pois através da pausa, a cabeça do tempo não é tocada, criando assim uma intenção de síncopa. 63 FARIA, N. The Brazilian Guitar Book. pág.22 64 No caso do samba, é muito difícil dar um exemplo de um padrão modelo, pois existe um número muito grande de variações.
29
Outra característica marcante é o acento grave muito mais pesado no tempo 2:
Sobrepondo essas linhas, e somando ao agogô, temos65:
“Vou Deitar e Rolar” (Baden Powell)
Não me parece necessário comentar muito sobre este exemplo, se trata de uma
melodia extremamente sincopada, com divisões que se assemelham às de um
tamborim. A primeira linha apresenta frases com o comprimento de quatro compassos,
com notas longas no final de cada frase, já a segunda linha apresenta frases mais
curtas, de dois compassos.
65 Rocca, E. Ritmos Brasileiros e seus Instrumentos de Percussão. pág.45
30
“Linha de Passe” (João Bosco)
Outra melodia altamente sincopada, mas desta vez apresenta duas frases bem
curtas de um compasso cada, seguidas de uma frase longa de 6 compassos.
“Aquarela do Brasil” (Ary Barroso)
Na primeira linha, as notas longas contrastam com as frases sincopadas,
criando uma dinâmica rítmica interessante. Na segunda linha, encontra-se apenas um
único motivo de dois compassos, no qual se ataca o tempo dois, e no compasso
seguinte o tempo um, o que gera uma pequena instabilidade rítmica.
31
3 ANÁLISE DE SOLOS
Neste capítulo, serão analisadas três improvisações sobre os três ritmos
abordados: baião, frevo e samba. Os músicos que executam esses solos são: Heraldo
do Monte, Ronaldo Saggiorato, e André Marques.
A escolha desses solos se deu através de uma vasta audição de vários
improvisos dentro da música instrumental brasileira. Procurei também selecionar
gravações de diferentes instrumentos e décadas.
As seguintes análises buscam elementos condizentes com as rítmicas básicas
de cada estilo, identificando elementos recorrentes entre si.
3.1 Análise do solo de Heraldo do Monte na música Bebê
O trecho analisado a seguir foi extraído da gravação de 1980 do disco intitulado
Heraldo do Monte, da composição de Hermeto Pascoal, Bebê:
Nos compassos iniciais predominam notas longas com a proliferação de
motivos recorrentes. Esse trecho, em comparação com o restante do solo, se apresenta
um tanto quanto rarefeito no que se refere ao aspecto rítmico. Como mostra na figura
32
B1, a divisão enfatiza a linha guia do baião66. O B2 é uma pequena variação, e ambas
são muito coerentes com a divisão do bumbo da bateria e do contrabaixo. Na figura C
fica evidente o compasso acéfalo67 com as duas semicolcheias centrais. Ainda neste
segmento, vale ressaltar o contraste que se apresenta pelas notas longas e ligadas,
alternando com notas curtas e acentuadas.
Observa-se que as frases dos compassos 11, 13 e 14 são bem regulares68,
com ênfase nas cabeças dos tempos, contrastando com as outras frases, mais
sincopadas e com acentos irregulares. A figura A1 é muito recorrente durante todo o
solo, explorando a pausa de semicolcheia, colcheia e semicolcheia. Na figura A2, o
compasso acéfalo é caracterizado pelo uso da síncopa (diferente do A1 que usa a
pausa69), além de uma pequena variação no segundo tempo (duas colcheias).
Vale a pena chamar atenção para a acentuação, que é diferente em cada uma
das figuras A1: no compasso 12 a quarta nota é acentuada, no compasso 14 a primeira,
66 Considerando que a linha guia é marcação grave da zabumba, que acentua a cabeça do tempo e a quarta semicolcheia do primeiro tempo. 67 Compasso cujo primeiro tempo não é tocado nenhuma nota, podendo acontecer pelo uso da síncopa, ou simplesmente por uma pausa, como é o caso deste exemplo. 68 Esse termo pode soar um pouco mal colocado neste contexto, pois assim como a síncopa já não desestabiliza o ritmo hoje em dia, tampouco nenhuma estabilidade é garantida pela marcação das cabeças do tempo, mas vale ressaltar aqui o seu efeito contrastante com suas frases vizinhas. Stravinsky trata sobre isso no livro A Poética Musical. 69 Que no capítulo 2, chamei de síncopa intencional.
33
e no compasso 16, a primeira e a quarta notas são acentuadas, como mostra a figura
abaixo:
Novamente ocorre uma acentuação valorizando a linha guia do baião, como
mostra a figura B3 (uma variação do B1). A figura A3 é mais uma variação do A1, desta
vez sincopando o segundo tempo, e com acentos na segunda semicolcheia de cada
tempo. A figura C aparece novamente, desta vez com as três semicolcheias, recorrendo
à divisão tradicionalmente feita pela sanfona70.
70 Esse é um recurso que acaba criando uma coerência muito forte das frases improvisadas em relação à seção rítmica, pois mesmo uma figura quebrada, se outrora acentuada igualmente por mais de um instrumentista, cria uma unidade sonora.
34
Além da recorrência das figuras A2 e C, podemos ver no compasso 26 uma
nova variação, a figura A4, que desta vez apresenta uma tercina ocupando o terceiro
tempo. Heraldo do Monte desenvolve esse motivo tercinado do compasso 26 de
maneira muito coerente durante os próximos quatro compassos, e as figuras C indicam
os compassos acéfalos graças ao uso da sincopa. Após essa seqüência de tercinas, o
guitarrista volta sutilmente às divisões de semicolcheia, colcheia e semicolcheia, como
se pode observar no compasso 30.
A figura C indica novamente a recorrência de um compasso acéfalo, novamente
pelo uso da sincopa, e mais uma variação é apresentada, desta vez representada pela
figura A5, que possui duas semicolcheias preenchendo o segundo tempo71. Também
vale a pena apontar o uso do deslocamento rítmico do nos compassos 39 e 40:
71 Acredito que essa sofisticação rítmica seja em decorrência dos grandes intervalos de sétima maior usados em tais frases, mas neste trabalho não irei me aprofundar num âmbito melódico, pois exigiria uma abordagem muito mais ampla.
35
O efeito do deslocamento é ressaltado pelo uso das mesmas notas, “atravessa”
o compasso e causa uma instabilidade rítmica. Esse tipo de recurso é muito usado
pelos improvisadores contemporâneos, e dependendo da seção rítmica, é uma boa
hora para acontecer um polirritimia, sugerida pelo deslocamento72.
As figuras A4 e C aparecem recorrentemente, e a variação B4 é apresentada,
tendo uma divisão muito coerente com o bumbo. No compasso 43 a rítmica tercinada é
apresentada novamente, e a mesma frase transposta é feita no compasso 45 voltando
à rítmica semicolcheia, colcheia, semicolcheia:
72 Neste caso, por exemplo, uma frase de 3 tempos foi inserido num compasso quaternário. Se a seção rítmica passasse a encarar o tempo 4 como o início de um compasso ternário, a sensação de polirritimia seria bem acentuada.
36
Finalmente o motivo tercinado que timidamente havia aparecido anteriormente
é realmente explorado ao longo desses oito compassos. Como pode ser observado
através das figuras C, Heraldo persiste em não atacar a nota na cabeça do tempo,
sincopando uma nota comum aos dois acordes durante a troca dos compassos. Além
disso, a repetição de notas também é muito explorada nesse trecho, remetendo às
melodias tradicionais de baião que constantemente fazem uso de tal recurso73. Como
feito em trechos anteriores, o guitarrista sutilmente substitui as tercinas, como mostra a
figura A1, para posteriormente retornar ao âmbito das semicolcheias.
Acredito que todo esse trecho seja um grande contraste com o segmento
anteriormente apresentado, pois se aquele foi repleto de frases ligadas, sincopadas e
tercinadas, esse compassos possuem frases muito stacatas, ornamentadas, e com um
forte acento nas cabeças dos tempos. Novamente Heraldo apresenta um único motivo
73 Em canções, muitas vezes as notas se repetem em função da letra, porque quando o texto não cabe em um determinado espaço do compasso, uma das soluções é, por exemplo, transformar duas colcheias em quatro semicolcheias. Andrade trata com profundidade sobre isso em Aspectos da Música Brasileira, onde afirma: “A música popular é noventa vezes sobre cem cantada. No sentido popular: A música deriva da palavra”(pág.116).
37
persistente por 6 compassos, e somente na saída da quadratura, discretamente “muda
de assunto”, acentuando coerentemente com o bumbo, como mostra a figura B3.
O agrupamento melódico feito nos compassos 65 ao 69 dá uma sensação de
estar tocando o tempo todo no contratempo, e novamente remete às melodias
tradicionais pelo uso da repetição de notas. No compasso 70, a figura C indica o início
acéfalo da frase final, que apresenta uma rítmica com tercinas, colcheias,
semicolcheias, pontuadas e sincopas. Mesmo tentando me ater aos aspectos rítmicos,
não posso deixar de apontar o uso da sobreposição quartal74 no compasso 70,
causando um efeito inesperado no final do solo:
Sob um panorama geral, essa análise detectou três elementos recorrentes:
A1 – motivo que sofreu variações durante o desenrolar do improviso:
74 O uso de intervalos consecutivas de quartas sobre um determinado acorde.
38
B1 – figuras que através da divisão e / ou articulação enfatizaram a acentuação
grave do baião:
C – indicando as frases acéfalas (no solo, sendo pelo uso de síncopa ou
pausa):
39
Existe uma grande organização nesse solo como um todo. A cada oito
compassos, existe uma separação de idéias concisas, sutilmente conectadas umas às
outras. O uso dos motivos recorrentes cria uma coerência muito grande, e leva o
ouvinte a uma rápida assimilação sobre o que está acontecendo.
3.2 Análise do solo de Ronaldo Sagioratto, na música Imigrante
A seguinte análise é de um improviso feito pelo baixista Ronaldo Sagioratto,
neste frevo do compositor Alegre Corrêa, gravado em 1993:
Numa visão geral desse início, a segunda linha contrasta com a primeira: se
nos 5 primeiros compassos, o baixista usa notas longas, ligadas e na cabeça dos
primeiros tempo, do compasso 6 ao 9 não toca sequer uma vez a cabeça do compasso,
usando notas rápidas e stacatas. O solo começa no turnaround75 onde Sagioratto usa
duas notas, e uma rítmica semelhante à que o pandeiro executa no frevo, mas ao invés
de usar duas semicolcheias, usa só uma, além de não começar o padrão na cabeça do
tempo:
75 Turn Round é um termo usado para o trecho final no qual acontece a volta da forma harmônica, podendo ser tocada um clichê harmônico, ou um breque, que é o que acontece neste caso.
40
Ainda persistindo na idéia de aproveitar a rítmica do pandeiro, Sagioratto segue
usando notas longas, porém ainda executando o último grupo par de semicolcheias
para impulsionar a nota seguinte, dando uma sensação de anacruse:
Uma variação rítmica é feita no compasso 4, e em seguida vem a finalização da
frase no compasso 5:
Nos compassos 6, 7 e 8, o improvisador apresenta o mesmo motivo rítmico
acentuando o terceiro tempo. Chamo a atenção para a sensação de surpresa que é
criada no compasso 9, por ter sido tocada a mesma rítmica durante três compassos, o
ouvinte espera um quarto compasso de repetição, mas ao invés disso é surpreendido
por uma pausa até a metade do terceiro tempo:
Lembrando que a frase do compasso 9 é uma anacruse do compasso 10.
41
A figura de semicolcheia, colcheia, semicolcheia, é usada uma única vez em
todo o solo, e aparece no compasso 1076. Do compasso 11 ao 14, Sagioratto apresenta
a mesma idéia, utilizando tríades acentuadas e agrupadas de modo que remetam à
divisão da caixa no frevo:
Até este momento já fica clara a importância da repetição de células rítmicas, e
que isso leva o improviso a um nível organizacional muito alto, pois mesmo fazendo
rítmicas complicadas, a recorrência conduz o ouvinte a uma maior compreensão.
O baixista faz usa da síncopa, do compasso 15 para o 16, e do 17 para o 18.
Podemos observar novamente o uso do anacruse no quarto tempo do compasso 16,
que é seguido de um material novo no compasso 17: colcheias fortemente acentuadas.
76 Não é muito comum encontrar essa figura no frevo, talvez por ser um ritmo que tenha fortes influências das marchar militares, diferente do samba, por exemplo, que recebeu uma influência direta do lundu e maxixe.
42
Neste trecho pode-se notar um novo elemento: as tercinas. As pausas são
utilizadas de uma maneira muito interessante: no compasso 19 não é tocado o primeiro
tempo, e no compasso 20 e 21 não há ataque no terceiro tempo. Vale a pena apontar o
contraste criado com o uso das semínimas, pois se as tercinas estão “quebradas”, logo
em seguida estas semínimas “retas” acentuando o primeiro e segundo tempo.
Nestes quatro compassos ocorre uma recorrência de vários motivos utilizados
ao decorrer do solo.
Logo após essa seqüência, Sagioratto usa uma síncopa do compasso 25 para o
26, e finaliza na segunda semicolcheia do segundo tempo.
43
Sagioratto retoma a idéia das tercinas, explorado-as durante os compassos 27
e 28. Depois de um anacruse em semicolcheias para chegar na primeira nota do
compasso 29, o baixista faz a rítmica da convenção77 para concluir o improviso.
O frevo exige um fraseado rápido, baseado nas semicolcheias. Além do uso de
tercinas, síncopas, acentuações, contrastes, eis algumas figuras importantes na
construção rítmica desse improviso:
77 Convenção é um termo usado para indicar certos acentos e/ou breques pré-estabelecidos feitos pela seção rítmica.
44
3.3 Análise do solo de André Marques, na música Viva o Rio
A seguinte análise foca no improviso do pianista André Marques, gravado em
2001, no álbum “Mundo Verde Esperança”, do compositor Hermeto Pascoal.
No primeiro momento deste solo, a primeira idéia rítmica é criada:
E a partir desta primeira idéia, o solista cria variações sutis, como se estivesse
“brincando” com esse ritmo, adiantando, atrasando, tercinando, remetendo a um cantor
interpretando uma canção com toda a liberdade rítmica que lhe é permitida. Também
chamo atenção para a síncopa, que ocorre em todo o trecho, com exceção do quarto
compasso.
45
Novamente um trecho totalmente sincopado, a sensação rítmica é de um
ralentando, pela maneira que o ritmo vai se tornando rarefeito:
Mais uma vez o pianista apresenta síncopas em quase todos os compassos,
mas desta vez o que mais chama atenção aqui é o deslocamento rítmico que acontece.
O motivo ternário colocado no 2/4 do samba juntamente com a interação da seção
rítmica, causa o efeito de polirritmia.
Em seguida, André Marques persiste no motivo que surgiu no último compasso:
Nos compassos 23 e 24 há uma seqüência de semicolcheias, sendo que a
última é bem acentuada e já faz parte da próxima frase:
46
Nessa última parte do solo, o pianista explora um ataque na última semicolcheia
de cada tempo, e finaliza atacando a segunda e quarta semicolcheia, consolidando o
caráter de síncopa que se desenvolveu em todo o solo.
Assim como o primeiro solo analisado no capítulo 3.1, o improviso de André
Marques é conciso, organizado e tem idéias claras. Numa visão geral, este solo
trabalha basicamente com quatro motivos rítmicos:
a)
b)
47
c)
d)
48
4 ENTREVISTAS
4.1 Entrevista com Ronaldo Sagioratto (cedida em 25 de outubro de 2007 pelo
telefone):
- Como enfatizar a rítmica da música brasileira nos improvisos?
Digamos que a princípio nós devemos aprender muito as melodias da música
brasileira, tocar muito, todas as melodias possíveis da música popular brasileira, que
são lindas e têm todo um fraseado muito especial, com toda a influência jazzística, e
toda a influência clássica, todas as influências que a gente sabe que a música brasileira
tem. Porque o fato de você tocar, tirar essas melodias do repertório da música
brasileira, não só da música instrumental, como também de canções... eu acho que isso
dá um embasamento muito bom pra rítmica na hora de improvisar, porque os princípios
de improvisação e análise harmônica são basicamente os mesmos que a gente estuda,
mas a rítmica, eu acho que a escola é justamente aprender as melodias das músicas
que estão inseridas na música popular brasileira. Tanto na música popular cantada,
com texto, com letra, como na música popular instrumental, digamos, o chorinho,
porque o chorinho dá uma base muito grande pra você desenvolver um fraseado
brasileiro.
- Como você encara o desenvolvimento rítmico no improviso da música
brasileira nas últimas décadas?
Eu acho que teve uma evolução fantástica, surgiram grandes músicos... o Brasil
sempre teve grandes músicos, mas nessas últimas décadas surgiram grandes
improvisadores, de nível mundial. Acho que teve uma evolução muito grande, tanto que
hoje em dia você encontra jovens músicos tocando música brasileira com uma fluência,
improvisando com fluência, com uma brasilidade de emocionar. Toda hora eu estou
cruzando com essa gente nova, uma nova geração que já vem improvisando muito, e é
49
isso que você falou, não é de hoje, isso está a décadas se formando, essa diversidade
mesmo... acho que é essa coisa da diversidade rítmica do Brasil ajuda bastante nisso.
Acho que nas escolas não se ensina muito isso, músico aprende mais é na rua, na luta,
na “labuta”... então com essas influências, através do contato com outros músicos, essa
coisa foi gerando uma gama de músicos fantásticos.
- Você sugere algum exercício para que o estudante de improvisação possa
aprimorar suas idéias rítmicas na improvisação?
Sim, sugiro alguns exercícios estudando, por exemplo, as escalas que
normalmente se estuda, mas prestando atenção nos acentos que podem ser feitos.
Muita síncopa, muitos detalhes da síncopa da música brasileira, estudar mesmo as
escalas, fazer toda a análise harmônica, como se faz normalmente, mas prestando
atenção justamente nos acentos, por exemplo, você vai estudar uma frase: (cantando)
dó, ré, mi, fá, sol, você vai colocar algum acento, mesmo que seja colcheia, você vai
colocar algum acento que tenha na música brasileira. Dó ré mi fá sol... aí faz um acento
tipo... dó ré mi fá sol... dó ré mi fá sol. Acentua no mi, ou sei lá, tem que escolher,
entende? Acho que o mais importante é prestar atenção nos acentos mesmo, porque a
malícia da música brasileira está justamente aí, nos acentos dentro da improvisação,
digo, do fraseado. Digamos, o acento do samba por exemplo (Sagioratto improvisa uma
melodia com a voz, cheia de acentos irregulares). Tem que prestar atenção nos
acentos, mas acho que essa bagagem vem daquela primeira pergunta que eu falei, de
estudar realmente as melodias da música brasileira, aí você vai descobrir onde estão os
acentos bonitos, e que estão inseridos dentro desse contexto.
- No momento do improviso, como o ritmo influencia a melodia e vice-versa?
Eu acho que tanto dentro do ritmo nós temos melodias como dentro da melodia
nós temos o ritmo inserido. É uma coisa de captação, onde você sabe o andamento da
música, aí tanto um como o outro sugere, eu acho que está muito coerente essa
colocação sua. Tanto a melodia sugere ritmos, como o ritmo sugere melodias também,
eu acho que é assim. Pra mim funciona assim.
50
- Você acha que o estudo excessivo da improvisação jazzística pode de alguma
maneira ser nocivo para o músico brasileiro?
Eu acho que o estudo excessivo não pode ser nocivo em hipótese alguma, o
estudo excessivo é nocivo quando te causa um problema físico. O que interessa é o
que você vai fazer, porque estudar é estudar, isso sempre é bom. Agora estudar é uma
coisa, colocar em prática o que você é, a sua musicalidade, as suas idéias musicais, já
é outro processo. Eu acho que nunca é nocivo estudar, a não ser que você vá pegar
uma tendinite por causa disso, mas quanto mais informação melhor. Agora, se a opção
da pessoa for seguir e desenvolver um estilo musical mais jazzístico ou mais brasileiro,
aí já é outra conversa. Então estudar eu não acho que seja nocivo não, muito pelo
contrário, só vai ajudar, agora, o que fazer com esse estudo, é outra coisa, outro
departamento. É uma coisa muito pessoal, de cada um, da musicalidade, da música
que cada um quer fazer.
- Poderia citar alguns improvisadores brasileiros que você considera muito bons
no aspecto rítmico?
Por exemplo, eu gosto muito do Heraldo do Monte, como guitarrista, eu gosto
muito até do próprio Hélio Del Miro que é um pouco mais jazzístico, mas é bem
brasileiro, muito legal. Hermeto Pascoal, Vinícius Dorin... atualmente temos os jovens, o
baixista Thiago do Espírito Santo por exemplo, que tem toda essa bagagem jazzística,
moderna, mas é muito brasileiro. Enfim, (pensativo) não sei, não estou lembrando, são
tantos. Por exemplo, tem o Hamilton de Holanda no bandolim, é fantástico, além de
técnica tem um bom gosto fantástico improvisando. Improvisa muito! Tem aquele rapaz
que toca gaita de boca, o Gabriel Grossi, que é de Brasília também, toca no grupo do
Hamilton, de vez em quando a gente também faz algumas participações. Esses são os
da nova safra... Quem mais? Leandro Fortes, por exemplo, enfim...
- Esse aí não vale...
51
Uai(risos)! São os que eu gosto! Vou fazer o quê? Por exemplo, o Alegre
Corrêa tem um improviso muito brasileiro também. Agora esses novos também,
Alessandro Kramer, o meu time aí eu gosto! Mas é mais ou menos nessa linha. Nossa,
tem tanta gente!
4.2 Entrevista com Heraldo do Monte (cedida dia 26 de outubro de 2007, pelo
telefone):
- Como enfatizar a rítmica da música brasileira nos improvisos?
Tem que ouvir muita música brasileira, é claro, as diversas manifestações
folclóricas, o samba, maracatu, etc... e ter isso no subconsciente. E aí na hora de
improvisar não precisa fazer de uma forma tão consciente, porque afinal você está
improvisando, essa coisa tem que estar bem lá no fundo de você. Essa é a maneira que
eu uso.
- Como você encara o desenvolvimento rítmico no improviso da música
brasileira nas últimas décadas?
Eu acho que já tem uma projeção muito grande, essas coisas já são colocadas
há muito tempo atrás, por exemplo, o maracatu, já é uma coisa bem antiga. Agora, o
samba está sempre em evolução, o samba, o forró está sempre em evolução.
- Você sugere algum exercício para que o estudante de improvisação possa
aprimorar suas idéias rítmicas na improvisação?
Sim, você pegar uma batida de tamborim, por exemplo, e fazer sobre uma
corda só, ou sobre uma nota só esse tipo de ritmo, esse é o exercício que eu sugiro.
Você dá aquela interpretação do tamborim, seja com palheta ou com dedo da mão
direita, conforme o que você tocar, e procura reproduzir aquela interpretação do cara
52
que está tocando tamborim - tamborim é um exemplo - para treinar esse tipo de
palhetada.
- E isso vai entrando no subconsciente, como você falou anteriormente.
Também. E entra na sua memória mecânica também, por você está realizando
aquilo nas cordas, está sentindo as cordas, a palheta e o dedo.
- No momento do improviso, como o ritmo influencia a melodia e vice-versa?
É que é uma coisa tão automática pra mim que eu não penso muito, sabe, é tão
espontâneo... é uma coisa tão feita antes, tão interiorizada que é difícil explicar.
Simplesmente sai, esse tipo de exercício que eu falei antes já é alguma coisa.
- Você acha que o estudo excessivo da improvisação jazzística pode de alguma
maneira ser nocivo para o músico brasileiro?
Eu acho que harmonicamente e melodicamente só faz bem, porque ele faz com
que você encaixe suas frases na harmonia, e às vezes em harmonias complicadas. É
muito útil. Agora... como é uma coisa de outra cultura, eu aconselho vocês a escutarem
Heraldo do Monte (risos).
- Poderia citar alguns improvisadores brasileiros que você considera muito bons
no aspecto rítmico?
Acho que não são muitos do meu instrumento... o Hermeto Pascoal, (pensativo)
Hamilton de Holanda...
- A nova geração...
É, eu citei um velha geração e um nova geração (risos)!
53
4.3 Entrevista com André Marques (cedida em 21 de novembro de 2007, pelo
telefone)
- Como enfatizar a rítmica da música brasileira nos improvisos?
Acho que tem essa coisa do estudo melódico de cada ritmo, da interiorização
na verdade. Você escutar bastante até ter uma intimidade com cada ritmo. Pegar as
raízes de cada ritmo, grupos que tocam essas raízes todas, escutar bastante e depois
arrumar um jeito de tocar essas coisas. Tocar bastante até estar interiorizado. Não
adianta muito você pegar um método só, uma teoria, uma parte rítmica da escrita e
depois estudar isso aí, você tem que estar interiorizado, ter dentro de você mesmo.
Depois começa a aparecer frases na sua cabeça com essas linguagens rítmicas.
- Como você encara o desenvolvimento rítmico no improviso da música
brasileira nas últimas décadas?
Fora algumas exceções como principalmente Hermeto e grupo, depois da
passagem do séc. XXI, acho que era muito raro encontrar algum grupo ou músico com
a improvisação brasileira apesar de ter outros grupos que tocavam esses ritmos como
samba e baião, você vê no improviso que é tudo influência jazzística mesmo. Acho que
isso começou a mudar um pouco agora, depois do ano 2000 quando começaram a
surgir outros alguns grupos, e gente mais interessada em estudar isso aí. Acho que
começou agora, faz pouco tempo.
- Você sugere algum exercício para que o estudante de improvisação possa
aprimorar suas idéias rítmicas na improvisação?
Na verdade foi meio o que eu falei na primeira, tem muito é que escutar e tocar
bastante. Você pode até achar alguns tipos de exercícios, algumas coisas teóricas, mas
isso só vai funcionar quando estiver interiorizado, eu dou muita importância a isso aí. É
uma coisa mais intuitiva que teórica.
54
- No momento do improviso, como o ritmo influencia a melodia e vice-versa?
Acho que os dois têm uma importância extrema. O que eu acho importante é
cada músico ter isso bem firme, essas duas partes, tanto a melódica como a rítmica. Eu
sempre falo pra todo músico, por exemplo, mesmo quem é pianista, ou saxofonista, tem
que estudar percussão ou bateria. E todo instrumento que não seja harmônico tem que
estudar harmonia. Pra ser um músico completo tem que ter muito forte esses dois
lados. E a melodia vai surgir dessas duas coisas bem prontas. A harmonia porque você
vai sentir o acorde, quando tiver com a harmonia bem avançada, vai aparecer melodias
bem bonitas em cima das suas harmonias. E se você estivar com a parte rítmica
aprimorada, também, vai aparecer melodias bonitas em cima da sua parte rítmica. Se
você aprimorar bem essas duas coisas, o resto vai aparecendo naturalmente. Na
verdade pra mim a melodia surge da harmonia, e a parte rítmica é separada, então é só
ter esses fundamentos fortes, bem firmes, que vai dar tudo certo!
- Você acha que o estudo excessivo da improvisação jazzística pode de alguma
maneira ser nocivo para o músico brasileiro?
Pra quem quer tocar música brasileira acho que sim. Pra quem quer tocar mais
jazz mesmo, aí o caminho é esse mesmo. Agora pra quem quer estudar música
brasileira e fica só estudando esse tipo de improvisação jazzística acho que não tem
nada haver, acho que atrapalha mesmo. Acho que é mais falta de improvisação
mesmo, porque nesses últimos tempos começou a aparecer mais informação. Porque
nas escolas mesmo só se aprendia improvisação desse jeito, através do jazz, então a
maioria dos músicos acabou indo pra esse lado até por falta de informação do que por
outra coisa. Eu vejo muita gente que quando começa a ouvir falar nesse negócio de
improvisação brasileira fala: “Nossa, é mesmo...”, nem passava pela cabeça, porque só
escuta disco americano, jazz, então só escuta o pessoal improvisando daquele jeito, aí
acaba indo pra esse lado, acha que só existe isso. Tem haver com ter pouca referência
também, desses outros tipos de improvisação brasileira, agora é que ta começando a
aparecer mais.
55
Poderia citar alguns improvisadores brasileiros que você considera muito bons
no aspecto rítmico?
Tem o próprio Hermeto Pascoal, outro grande é o Itiberê Zwarg, que toca no
grupo do Hermeto. Tem um guitarrista em Tatuí que é muito bom, que chama Fábio
Leal. Tem muita gente que está começando a aparecer agora, porque como isso é
muito novo... esse pessoal mais antigo não tem muito essa linguagem, é mais esse
pessoal novo que está aparecendo. Eu vejo muita gente que não é conhecida, mas que
ainda vai aparecer muito com esse tipo de linguagem, nos próximos anos, com certeza.
56
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nessa pesquisa, procurei apontar aspectos que considero importantes para a
formação do improvisador. Creio que já existem várias pesquisas na área de
improvisação tratando sobre o aspecto melódico, e espero que esse trabalho possa vir
a despertar o interesse em outras pessoas para continuarem a pensar e formalizar
sobre esse aspecto rítmico.
Creio que atualmente vivemos um grande momento na história da música
brasileira, onde o crescimento musical do país acontece paralelamente ao crescimento
do trânsito de informações pelo meio eletrônico. Ora, se antes as pessoas tinham
dificuldade de encontrar partituras, métodos, gravações, hoje se encontra tudo através
da internet, por meio de blogs, e programas de compartilhamento, como o 4shared e
Emule. Isso sem falar na facilidade que se tem de conhecer, trocar informações e
manter contato com outros músicos, através de redes como orkut, myspace e
programas como msn messeger e skype. Por exemplo, todas as entrevistas que realizei
se deram através do programa skype, um programa pelo qual é possível fazer ligações
interurbanas e internacionais a preços irrisórios. Todo esse aparato da informática
contribui, e muito, para o desenvolvimento musical.
Quando iniciei esse trabalho, percebi que não conseguia explicar o que era
ritmo, e o que exatamente caracterizava uma música como sendo brasileira. Para isso,
busquei vários autores para entender mais profundamente cada um destes conceitos
tão básicos, mas tão difíceis de elucidar. Sobre a improvisação, realizei uma sucinta
abordagem sobre a música erudita, constatando que essa prática sempre esteve
presente na música. Averigüei também que o conceito da improvisação sempre esteve
diretamente ligado com a evolução do jazz, e que este influenciou fortemente a música
brasileira, a qual hoje descobre novos caminhos na improvisação.
Inicialmente queria, no segundo capítulo, elucidar sobre vários ritmos, mas
percebi que não ia ser possível abordar todos numa monografia. Foi uma difícil escolha
de três ritmos, e é uma pena ter que deixar de fora ritmos como o afoxé, maracatu,
57
chote, chamamé, milonga, entre outros. Optei por escolher os mais conhecidos samba,
baião e frevo, ritmos que se confundem com gêneros, tão presentes no imaginário
brasileiro. Neste capítulo, observam-se as divisões da parte da percussão e de algumas
melodias, ficando claro que cada gênero tem uma maneira própria de frasear, ao
mesmo tempo em que existe uma linha rítmica conceitual que conecta todos os gêneros
num único vocabulário.
O terceiro capítulo também foi de difícil escolha, acabei optando por tais solos,
mas ao mesmo tempo me lamentando por ter deixado de fora do trabalho tantos outros
improvisos majestosos. Identifiquei e apontei vários elementos rítmicos que fui
descobrindo a cada escuta, acompanhando a partitura, ou tocando no violão. Esse
capítulo foi uma grande aula que tive com tais improvisadores, pois muitas descobertas
foram feitas.
A última parte do trabalho é composta pelas entrevistas feitas com os autores
dos improvisos analisados no capítulo anterior. Nota-se que os músicos fazem isso de
uma maneira muito natural, intuitiva, e dão muita importância para a questão da
interiorização dos ritmos. Todos têm sólidas raízes no repertório tradicional, ao mesmo
tempo em que são capazes de tocar de um modo mais moderno.
Creio que existem basicamente três maneiras de enfatizar o ritmo: através da
divisão (figuras características, síncopas), articulação (acentos, ligaduras) e
agrupamento melódico (distribuir a melodia de modo que os intervalos encaixem com o
contexto rítmico). Isto é a base para adquirir a linguagem de cada gênero, pois a rítmica
é um dos principais elementos para a expressão de idéias durante a improvisação.
Fica claro que este trabalho é uma formalização de um processo intuitivo, mas
este processo sempre acompanhou a história da música, a prática vindo primeiro, e
depois o surgimento de estudos e tratados sobre tais assuntos. Não tenho uma
sensação conclusiva ao fim dessa monografia, pelo contrário, instigou-me a aprofundar
cada vez mais nesse assunto, e espero sempre poder transformar tais pesquisar em
resultados sonoros, bem como poder incentivar os outros músicos a mergulharem no
mundo da improvisação.
58
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXANDRE, Kleber. A Canção popular - 'ciúme' de Caetano Veloso [Tese de Mestrado]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2006
ALMEIDA, Renato. História da Música Brasileira. 2. Ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet & CIA, 1958
ANDRADE, Mário de. Aspectos da Música Brasileira. 2. ed. São Paulo: Martins, 1975. __________________. Pequena História da Música. 8. ed São Paulo. Martins, 1980. __________________. Ensaio sobre a Música Brasileira. 3. ed. São Paulo: Vila Rica, 1972. __________________. Música, doce música. São Paulo: Martins, 1963. BARROS, Armando de Carvalho. A música: sua história geral em quadros rápidos, ambientes históricos, artes comparadas. Rio de Janeiro: Americana, 1973. BASTOS, Marina Beraldo; PIEDADE, Acácio Tadeu (orientador). Análise de improvisações na música instrumental: em busca da retórica do jazz brasileiro. Artigo publicado no Simpósio de Pesquisa em Música 2006. CALADO, Carlos. O Jazz como Espetáculo. São Paulo: Perspectiva, 1990. CANDÉ, Roland de. O convite à música. Lisboa: Martins Fontes, 1980. CARRASQUEIRA, Maria José [coordenador]. O Melhor de Pixinguinha. Rio de Janeiro: Irmão Vitale, 1997. COLI, Jorge. Música final: Mário de Andrade e sua coluna jornalística Mundo Musical. Campinas: UNICAMP, 1998 COSTA, Rogério Luiz Moraes. A preparação do ambiente da livre improvisação: antecedentes históricos, as categorias do objeto sonoro e a escuta reduzida. Artigo publicado no Simpósio de Pesquisa em Música 2006. CROOK, Hal. How to Improvise – Approach to Practicing Improvisation. Rottenburg: Advanced Music, 1991.
59
DART, Thurston. Interpretação da música. São Paulo: M. Fontes, 1990. DOURADO, Henrique Autran. Dicionário de termos e expressões da música. São Paulo: Ed. 34, 2004 DUARTE, Paulo, e NAVES, Santuza [organizadores]. Do Samba-canção à Tropicália. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. FARIA, Nelson. A Arte da Improvisação. Rio de Janeiro: Lumiar, 1991 ____________. The Brazilian Guitar Book. Petaluma: Sher Music CO, 1995.
FREITAS, Sérgio P. R. de. Teoria da Harmonia na Música Popular – Uma Definição das Relações de Combinação entre os acordes na Harmonia Tonal. (Dissertação de Mestrado) São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1995. ___________________. Introdução ao ideário estilístico do Classicismo [caderno de classe da disciplina]. Florianópolis, Universidade do Estado de Santa Catarina, 2002. GARCIA, Leonardo Corrêa. Aspectos da improvisação jazzística: a arte da composição em tempo real [trabalho de conclusão de curso]. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina, 2004. JOURDAIN, Robert. Música, cérebro e êxtase. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. KIEFER, Bruno. Elementos da Lingüagem Musical. 5. ed. Porto Alegre: Movimento, 1987. MAGNANI, Sergio. Expressão e comunicação na lingüagem da música. 2.ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1996. MARIZ, Vasco. Vida musical. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1997. MEYER, Leonard B. Emotion and meaning in music. Chicago: University of Chicago, 1961. OLIVEIRA, Samuel de. Choro: um estudo histórico e musicológico . [trabalho de conclusão de curso]. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina, 2000. OSBORNE, H. A Unidade Orgânica in FREITAS, P. S. Introdução ao ideário estilístico do Classicismo [caderno de classe da disciplina]. Florianópolis, Universidade do Estado de Santa Catarina, 2002.
60
PASCOAL, Hermeto. Calendário do Som. São Paulo: Senac, 2000. PIEDADE, Acácio Tadeu. Brazilian Jazz and Friction of Musicalities. In Jazz Planet, E. Taylor Atkins (ed.) Jackson: University Press of Mississippi, 2003. ______________________. Expressão e sentido na música brasileira: retórica e análise musical. Artigo publicado no Simpósio de Pesquisa em Música 2006. ROCCA, Edgard. Ritmos Brasileiros e seus Instrumentos de Percussão. Rio de Janeiro: Europa, 1986. SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001. SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da Composição Musical. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993 SCLIAR, Esther. Fraseologia musical. Porto Alegre: Movimento, 1982. SEVE, Mário. Vocabulário do Choro – Estudos e Composições. Rio de Janeiro: Lumiar, 1999.
SMALL, Ch ristopher. Musicking: the meanings of performing and listening. Hanover: Wesleyan University Press, 1998.
STEFANI, Gino. Para entender a música. 2. ed. Rio de Janeiro: Globo, 1989. STRAVINSKI, Igor. A Poética Musical. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. SUZIGAN, Geraldo de Oliveira. O que é música brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1990. TOCH, Ernest. La Melodia. Barcelona: Labor, 1989. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das letras, 2002.
61
OUTRAS FONTES
Referências Discográficas: CORRÊA, Alegre. Infância. Vienna: Gillard Music, 1993 MONTE, Heraldo do. Heraldo do Monte. São Paulo: Eldorado, 1980. PASCOAL, Hermeto. Mundo Verde Esperança. Rio de Janeiro: Selo Rádio MEC, 2002.
62
ANEXOS
Partituras das transcrições dos três improvisos analisados no capítulo 3 (Bebê,
Imigrante e Viva o Rio), e um CD contendo os respectivos áudios.