lacan, j - escritos.pdf
TRANSCRIPT
Tr adu~ao autorizada da r eimpressao de
. fevereir o d e 1 99 5 ?a pr imeira ed i~ao f rancesa,
pu blIcada em 1966 por Editions du Seuil, de Paris, Fran~a
Copyright © 1966, Ed itions du Seuil
Copyr ight © 1998 d a edi~ao brasileir a:
Jorge Zahar Ed itor Ltda.
r ua Mexico 31 sobreloja
20031-144 R io d e Janeiro, R J
tel.: (21) 2240-0226/ fax: (21) 2262-5123
e-mail: jze@zahar .com. br
Todos os dir eitos reser vad os.
A r e produ~ao nao-autorizada d esta publica~ao, no tod o
ou em par te, constitu i viola~ao do copyr ight. (Lei 9.610)
Este livr o, publicado no ambito do pr ogr ama d e auxf lio it pu blica,ao,
contou com 0 apoio do Minister io fr ances d as Rela,oes Exterior es, d a
Em balxad a d a Fr an,a no Br asi l e da Maison fr anl'aise d o R io de Janeir o
CIP-Brasil. Cataloga,ao-na-fonte
Lacan, Jacques, 1901-1981
L12ge Escritos I Jacq ues Lacan ; trad u,ao Vera R ibeir o. - R io
de Janeir o: Jor ge Zahar Ed ., 1998.
(Cam po f r eudiano no Br asil)
Tradu,ao de: Ecr its
I SB N 85-7110-443-3
o seminario sobre "A car ta roubada" 13
De nossos antecedentes 69
Par a-a le m d o "Princfpio de realidade" 77
o est<idio d o espelho como formador da fun~ao
do eu 96
Introdu<;ao teorica as fun~6es da psicanalise
em criminologia 127
For mula~6es sobre a causalid ad e p sf quica 152
o tempo logico e a asser~ao de certeza antecipada 197
Interven~ao sobre a transferencia 214
Do sujeito enf im em q uestao 229
Fun~ao e campo da fala e da linguagem
em psicanalise 238
De urn desfgnio 365
R esposta ao comentario de Jean Hyppolite
sobre a "Ver neinung" de Freud 383
A coisa freud iana .402
A psicanalise e seu ensino .438
Situac,:aoda psicanalise e formac,:aodo psicanalista
em 1956 461
De uma questao preliminar a todo tratamento
possivel da psicose 537
seu poder 591
A signif icac,:ao do falo 692
A memoria de Er nest Jones:
Sobre sua teoria do simbolismo 704
De um silabario a poster iori 725
Dir etr izes para urn Congresso sobre a sexualidade
f eminina 734
Juventud e de Gide ou a letra e 0 dese jo 749
Kant com Sade 776
no inconsciente freud iano 807
Posic,:ao d o inconsciente 843
Do "Tr ie b" d e Freud e do desejo do psicanali st a 8 65
A ciencia e a verdade 869
APENDICE I: Comentario falado sabre a
"Ver neinung" de Freud , par Jean Hyppolite 893
Indice ponderado dos princi pais conceitos,
por Jacques-Alain Miller . ·908
Quadr o comentado das r e pr esentar;oes graficas 917
Termos d e Freud em alemao 923
Indice dos nomes citados ··· ·926
Para maiores esclarecimentos acerea desta versao dos
Escritos, 0 leitor deve remeter -se a "Nota a edic;ao
brasileira" que se encontra no final deste volume (p.935).
"0 estilo e 0 pr o prio homem", r e pete-se sem nisso ve r malfcia,
e sem tam pouco preocu par-se com 0 fato de 0 homem nao ser
mais uma refer encia tao segura. Alem d o mais, a imagem da
rou pa q ue ad or n a Buffon ao escrever esta ai mesmo p ara manter
a desaten<;ao.
Uma r eedi<;ao d a V iagem a Montbar ( publicad a no ana IX
por Solvet, edi<;aopostuma), d a lavr a de Herault d e Sechelles,
titulo q ue retoma uma Visita ao sr . d e Bu f f on , d e 1785,
propiciar ia uma maior reflexao. Nao a penas por ali sa bor ear mos
urn outro estilo, que pr ef igur a 0melhor de nossas reportagens
bufas, mas por recolocar 0 propr io comentar io em ur n contexte
de impertinencia no qual 0 anf itriao nada f ica a dever a se u
visitante.
Pois 0 homem br and id o no adagio ja entao classico, por
ter s id e extrafd o de urn d iscurso na Academia, revela-se, nessa
escrita, uma fantasia do grande homem, com posta em urn
roteiro tal que ela toma sua casa inteir a. Nad a ali pr ovem do
natural. Quanto a isso, Voltair e, estamos lembr ad os, gener aliza
maldosamente.
o estilo e 0 homem; vamos ader ir a essa formula, somente
ao estend e-la: 0 homem a q uem nos ender e<;amos?
Isso seria sim ples mente satisf azer a este pr incf pio por nos
promovido: na linguagem nossa m ensagem nos vem do O utr o,
e p ara enuncia-lo ate 0 fim: de forma invertid a. (E l em br emos
q ue esse princfpio se aplicou a sua pr opria enuncia<;ao, pois,
tend o side emitid o por nos, foi d e urn outr o, interlocutor
eminente, que r ece beu seu melhor cunho.)
Mas se 0 homem se r eduzisse a n ad a ser alem d o lu gar de
retor no d e n osso discur so, nao nos voltaria a quesUio d e p ar a
q ue Iho e nd er e<;ar ?
Eis exatamente a questao que nos coloca esse novo leitor
do qual foi feito argumento para reunir mos estes escritos.
Cond escend emo-lhe urn patamar na escalada de nosso estilo,
dando a A carta roubad a 0 privilegio d e a br ir sua s equencia,
a despeito d e sua diacr onia.
Ca be a esse leiter d evolver a car ta/letra em que stao, para-
alem daq ueles que ur n d ia foram seus end ere~ados , a q uilo
mesmo que ele nela encontrani como palavra final: sua desti-
na~ao. Qual se ja, a m ensagem d e Poe decifrad a e d ele, leitor,
retor nand o par a que, ao Ie-la, e le diga a si mesmo nao ser ela
mais fingida do que a verdad e quando ha bita a f ic~ao.
Esse "rou bo d a carta", Idir-se-a ser a parodia d e nosso
discurso: q uer nos atenhamos a etimologia que indica urn
acompanhamento e im plica a precedencia do tr ajeto parodiado,
queI', reconduzind o 0 termo a seu empr ego comum, nele
vejamos escon jurada a sombra do maitre a penser , para o bter
o efeito q ue pr eferirmos.
T he Ra pe o f the Lock , 0 rou bo da mecha:2 evoca-se aq ui 0
tftulo do poema em que Pope, pela gra~a da parod i a, arrebata
- ele, da epopeia - 0 tra~o secreta d o q ue esta em jogo de
sua derrisao.
Nossa taref a conduz e ssa encantad ora mecha anelada ao
sentido to pologico que ter ia a palavra: no co m que urn tra jeto
se fecha, pOl' seu red o br amento invertido - d e t a l maneira
que recentemente 0 promovemos a sustentar a estrutura d o
su jeito.
E exatamente af que nossos alunos se fund amentariam para
reconhecer 0" ja" pOl'meio d o q ual e les se contentam as vezes
com homologias menos motivad as.
Pois d eciframos aqui na f ic~ao de Poe, tao potente, no
senti d o matematico d o termo, a d ivisao onde se ver if ica 0
sujeito pelo f ato de ur n ob jeto 0 atravessar sem que eles em
nad a se penetr em, divisao que se encontr a no princfpio do que
I. Vol de la l ellr e, que tambem se trad uziria pOl'"voo d a letra". Ao longodo texto, Lacan joga com a polissemia d esses termos (cf . notas adiante). (N.E.)
2. A ex pr essao f r ancesa, I e vo l d e la boucle, a br e-se num leque polissemieo em vir tude d os termos vol (voo, roubo etc.) e boucle (cacho,mecha, f echadur a, fecho, volta, cir euito, f ivela, argola ete.). (N.E.)
se destaca, no fim desta coletiinea sou 0nome de objeto a (a
ser lido: pequeno a).
E 0 ob jeto que responde a pergunta sobre 0 estilo que
f ormulamos logo de saf d a. A esse lugar que, para Buf fon, era
marcado pelo homern, chamamos de q ueda desse o bjeto, re-
veladora pOl'isola-Io, ao mesmo tem po, como causa do d esejo
em que 0 sujeito se ecli psa e como su porte do sujeito entre
verdade e sa ber . Q uerernos, com 0 percurso de q ue estes textos
sac os marcos e com 0 estilo q ue seu endere~amen to ir n poe,
levar 0 leitor a uma conseq uencia em que ele precise colocar
algo de si.
So sind es Ged anken ,
Nossa investigac;:ao l evou-nos ao ponto de reconhecer que 0
automatismo de r epetiyao (Wied er holungszwang) extr ai seu prin-
cipio do que haviamos chamad o de insistencia da cadeia signi-
~e , E ss a p ro pri a noc;:aofoi pOl'nos destacada como con'elata
da ex-sistencia (isto e do lugar excentrico) em que convem
situarmos 0 sujeito do inconsciente, se devemos levar a serio a
descoberta de Freud, E, como sabemos, na experiencia inaugu-
rada pela psicanalise q ue se pode apr eender pOl' q uais vieses do
imaginar io vem a se exercer, ate no mais intima do organismo
humano, essa apreensao do simb6lico ,
o ensino deste seminar io serve para sustentar que essas
incidencias imaginarias, longe de representarem 0 essencial de
nos r iencia, ~!lda for necem ue nao se'a inconsistente, a
eno s u e s e' am relacionadas a cadeia sim bolica ue as Ii a e
as or ienta. ; > ~ ~ Decer to Sab?milJda importancia das impregnac;:6es imagina-
rias (Pragung nas parcializac;:6es da alter nativa sim bolica que
dao a cadeia s ignif icante seu aspecto. Mas nos estabelecemos
que e a lei propr ia a essa cadeia que rege os efeitos psicanalfticos
deter minantes para 0 sujeito, tais como a foraclusao (Verwer-
fung) , 0r ecalq ue (Ver d rangung) e a pro pria denegacao (Vernei-
nung) -, acentuand o com a enfase q ue convem que esses efeitos
seguem tao fielmente 0 deslocamento ( Ent stel!uns) d o signifi-
.~te q ue o s f ator es imagJn~rios, a pesar de sua inercia, neles
nao f igur am senao como sombras e r ef lexos.
Contudo, essa enfase seria pr od igaliz ad a em vao, se apenas
ser visse, na opiniao de voces, par a a bstr air uma f or ma ger al d e
fenomenos cu ja par ticularid ad e em nossa ex periencia ser ia para
voces 0 essencial, e d os quais nao seria sem ar tif fcio q ue
rom perf amos (\.~~,~,~~,:~~r i~naI.,
~~UvvcLv
r (~~/~ ~1vvvJ> r /\P'] ,
Foi por isso que pensamos em ilustrar hoje a verdade que [12J
brota do momenta do pensamen to freudiano que estamos estu- 1//
dando, ou seja, que e a or dem sim bolica que e constituinte para r? o sujeito, demonstrand o-Ihes numa historia a determinac;ao fun-
damental que 0sujeito rece be do percurso de urn slgmhcante.
E essa verdade, podemos notar, que possibilita a propria
existencia da ficc;ao.Portanto, uma fabula e tao apropriada quanta
outra historia para esclarece-la - nem que seja para testar sua
coerencia. Excetuada essa r essalva, ela tern inclusive a vantagem
de manifestar tao puramente a necessidade simbolica que se
poderia cre-Ia regida pelo arbitrio.
Poi por isso que, sem procurar mais longe, retiramos nosso
exemplo da propria historia em que esta inserida a dialetica
concernente ao jogo do par ou impar, do qual tiramos proveito
muito recentemente. Sem duvida, nao foi por acaso que essa
historia revelou-se propicia a dar seguimento a urn curso de
investigac;ao que nela ja encontrara apoio.
Trata-se, c 0 sabem, d o conto que Baudelaire traduziu com
o titulo de " carta ro ' . Logo de saida, nele distinguiremos
urn drama, a narrac;ao que dele e feita e as condi c;oes dessa
narrac;ao.
Ve-se logo, alias, 0que torna necessarios esses componentes,
e que eles nao puderam esca par as intenc;oes de quem os compos.
A narrac;ao, com efeito, r eforc;a 0drama com urn comentario
sem 0qual nao haveria encenac;ao possive!. Digamos que a ac;ao
permaneceria, propriamente falando, invisivel para a plateia -
sem contar que seu dialogo, pelas proprias necessidades do
drama, seria expressamente vazio de q ualquer sentido que a ele
pudesse relacionar -se para urn ouvinte: em outras palavras, que
nada d o drama poderia evidenciar-se, nem nas tomadas nem na
sonorizac;ao, sem a luz quebr ad a, digamos, que a narraxao confere
a cada cena do ponto de vista que ur n d e seus atores tinha ao
representa- la.
Essas cenas sac duas, d as q uais designaremos prontamente a
primeira pelo nome de (!ena pnmltiy e nao por desatenc;ao,
uma vez que a segunda pode ser considerada como sua repetic;ao,
no sentido de que esta, aqui mesmo, na ordem do dia.
A cena primitiva desenr ola-se, pois, segundo nos e dito, na
alcova real, de mod o que suspeitamos que a pessoa da mais aIta 1 1 3 J
e";tirpe, tambem chamada pessoa ilustr e, q ue ali se encontra
MII.inha ao receber uma car ta e a Rainha. Esse sentiment o se
l()l1f 'irma pelo embarac;o em que e colocada pela entr ada d o o utro
Jll'r sonagem ilustre, sobre 0 qual ja nos foi dito, antes desse
It'lato, que a ideia que ele poderia fazer da referida car ta por ia
('In jogo nada menos do que a honra e a seguranc;a da dama.
('om ef eito, prontamente nos livramos da duvida de que se trate
-Cetivamente do Rei devido a cena que se inicia com a entr ad a
do ministro D ... Nesse momento, de fato, a Rainha nao pod e
Cazer nada melhor do que jogar com a desatenc;ao do Rei,
deixando a carta sobr e a mesa, "virada para baixo, com 0
so brescrito para cima". Mas esta nao escapa aos olhos d e lince
do ministro, e tampouco ele deixa de notar 0 d esarvoramento
d a R ainha e nem deixa, assim, de desvendar -Ihe 0 segredo. A
partir dai tudo se desenrola como urn relogio. De pois d e haver
tratado, com a desenvoItura e a espirituosidade costumeir as, d os
negocios de praxe, 0ministro tira do bolso uma carta cu jo as pecto
se assemelha ao da que esta a sua vista e, fingindo Ie-la, ele a
coloca ao lade desta. Mais algumas palavras para entreter a
assembleia real, e ele se apodera com toda a fi r meza da carta
embarac;ante, despedindo-se sem que a Rainha, que nad a per d era
d e sua manobra, pudesse intervir , pOl'medo de despertar a atenc;ao
d o real conjuge que, naquele momento, esta bem a seu lado.
Tudo, portanto, poderia ter passado despercebido a ur n es pec-
tador ideal de uma operac;ao a qual ninguem reage, e cujv
quociente e que 0ministl·o fur tou a Rainha sua carta e que -
r esultado ainda mais importante que 0 primeiro - a Rainha sabe
!er ele quem a detem agora e nao inocentemente.
Urn resto, que analista algum ha de desprezar, prepar ado como
esta para r eter tudo 0q ue e d a alc;ada do significant e, aind a q ue
nem sem pr e sai ba 0q ue fazer com isso: a carta, deixad a displi-
centement e p elo ministro, de q ue a mao da Rainha pode f azer uma bolinha de papel.
,/Segunda cena: no gabinete d o minist~o) Passa-se em sua
mansao, e hcamos sabendo, pelo relata que faz 0 Ins petor d e
Polfcia a D u pin, cu jo talento especial para resolver enigmas Poe
aqui intr oduz pela segunda vez, que a polfcia, ha dezoito meses
voltand o ali tantas vezes q uantas Iho permitinlm ausencias no-
turnas e ha bituais d o ministro, vasculhou meticulosamente a
mansao e suas adjacencias. Em vao, embora q ualquer urn possa [14J
Dupin faz-se anunciar ao ministro. Este 0 recebe com uma
dis plicencia ostensiva e frases afetando urn tedio romantico. Mas
Du pi n, a q ue m es se f ingimento nao engana, com os olhos
protegidos pOl' oculos de lentes verdes, inspeciona 0 recinto.
Quando seu o lhar recai sobre urn bilhete esgar~ado que parece
abandonado no vao de ur n mediocr e porta-cartas de cartolina
q ue, atraindo 0 olhar pOl'urn certo brilho falso, esta pend urado
bem no meio do painel da lareira, ele ja sabe que esta diante do
que procura. Sua convicc;ao e fortalecida pelos proprios detalhes,
q ue parecem forjados para contrariar a descric;ao que ele tern da
car ta roubada, exceto pe lo f ormato, q ue e compativel.
A partir dai so the resta retirar -se depois de haver "esquecido"
sua tabaqueira sobre a mesa, de modo a vol tar no dia seguinte
para busca-Ia, munido de uma contrafac;ao que simule 0 atual
aspecto da carta. Aproveitando-se de urn incidente de rua, pre-
parado para na hora certa atrair 0ministro a janela, Du pin por
sua vez apodera-se da carta, substituindo-a por seu simulacro
[semblant] , so the restando, em seguida, salvaI', perante 0mi-
nistro, as aparencias de uma despedida normal.
Tambem ai, tudo se passa, se nao sem ruido, ao menos sem
estardalhac;o. 0quociente da operacao e que 0 ministr o n ao
possui mais a carta, mas disso ele nao tem a menor ideia, longe
d e suspeitar ter side Du pin q uem a raptou. Ademais, 0q ue lhe
fica nas maos esta bem longe de ser insignificante para a
sequencia. Voltaremos ao que levou Du pin a dar uma redac;ao
a sua carta facticia. Seja como for, 0 ministro, quando quiser
utiliza-la, nela podera ler estas palavras, ali trac;adas para que
reconhec;a a mao de Dupin:
... Un dessein si funeste S'il n'est digne d'Atree, est digne de Thyeste, 1
que Dupin nos indica provir d o Atree de Crebillon.
Sera preciso sublinhar que essas duas ac;6essac semelhantes?
Sim, pois a similitude q ue visamos nao e feita da simples reuniao
d e trac;os escolhidos com 0 tinico intuito de configurar sua
dif er enc;a. E nao bastaria reter esses trac;osde semelhanc;a a custa
~Ie outr~s ' p~ra que dai resultasse uma verdade qualquer . E a
IIller subJetlvldade em ue as duas ac;6es se motivam ue uer e:
IllOSr essa tar, e os tres termos com que ela as estrutura.· [15J
o pr ivile~io destes tiltimos pode ser julgado por eles corres- ponde.r~m, slmultaneamente, aos tres tempos logicos pel os quais iI ?~clsao se precipita, e aos tres lugares que ela atribui aos sUJeItos, os quais ela desempata.
Essa decisao e concluida no momento de urn 01har .2 Pois as
manobras que se seguem, quando nelas ele se delonga sorratei- r amente, nao the acrescentam nada, como tampouco 0 adiamento
d e sua oportunidade na segunda cena rompe a unidade desse momento.
Esse olhar sup6e dois outros, que ele reune numa visao da
a bert~ra d,eixa~a em sua. falaciosa complementaridade, para se anteclpar a rapma ofereclda nesse descobrir . Tres tempos, por -
lanto, ordenando tres olhares, sustentados pOl' tres sujeitos, alternadamente encarnados pO l' pessoas diferentes.
o primeiro e 0 de urn olhar que nada ve: e 0Rei, e a policia.
o s,egundo, 0 de um olhar que ve que 0 primeiro nada ve e se engana pOl' vel' encoberto 0 que ele oculta: e a Rainha e de pois, 0ministro. '
o te~ e 0 que ve, desses dois olhares, que eles deixam a descoberto 0que e para esconder, para que disso se apodere q uem quiser: e 0 ministro e, por fim, Dupin.
. Para ~azer apreender em sua unidade 0 complexo intersubje- t~vo.ass1m de~crito, buscariamos de born grado seu padrao na tec~lca len~anamente atribuida ao avestruz para se protegeI' dos
pengos; pOlSesta mereceria afinal ser ualificada de olitica ao se re- par~ir aqui ~ntre tres parceiros, dos quais 0 segun d se acredltana revestIdo de invisibilidade, pelo fato de 0 primeiro
tel'. su~ cabec;a e~fiada na areia, enquanto, nesse meio tempo,
delxana urn terceno depenar -lhe tr anquilamente 0 traseiro' bas- taria q ue, enriquecendo com uma letra sua proverbial de~omi- nac;aO,3fizessemos dela a politica d o autruiche, para que em si mesma ela encontrasse para sempre um novo sentido.
R ~ i / i- ' (I~Av J
2~ Aqui a r efer encia necessar ia d eve ser procur ada em nosso ensaio "0 lempo loglco e a a ssen;:ao d e certeza antecipada", p.197.
3 . N o fr ances, essa "uma lelra" e 0 "i" d e aut r ui (oulr em), q ue transforma aut ruche (avestr uz ) e m aut r uiche, neologismo de Lacan. (N.E.)
~ 1. "Urn desf gnio lao f unesto, / S e nao e d igno d e Alreu, e digno d e Tiestes."
(N.E.)
Sendo assim dado 0modulo intersubjetivo da a~ao que se
repete, resta reconhecer af urn automatismo de re peti£ao, no
sentido Que nos interessa no texto de ~r~ud. _
Naturalmente, a pluralidade dos sUJeltos nao po de ser ~ma
obje~ao para todos os que ha muito san adestrados as p~rspectlvas
resumidas por nossa formula: 0 inconsciente e 0 dlscurso ~o
Dutro. E nao recordaremos agora 0que a ela acrescenta a no~ao
de imis£ao dos sujeitos, outrora introduzida por nos ao retomar-
mos a analise do sonho da inje~ao de Irma.
o que nos interessa hoje e a maneira como os ~U!elt?S se
revezam em seu deslocamento no decorrer da repetI~ao mter-
subjetiva. ,. - Veremos que seu deslocamento e determmado pelo l~gar ..9ue
vem a ocupar em seu trio esse significante puro que e a ~arta
roubada. E e isso que para nos 0confirmara como automatIsmo
de repeti~ao. lp,oCA ' j)~ 1b:s(qG,~5
Nao parece demasiado, entretanto, antes de enver edarmos por
esse caminho, indagar se 0 objetivo visado pelo_ cont~ e 0
interesse que temos nele, uma vez que coincidem, nao se sltuam
em outro lugar . . . _ sera possfvel tomarmos por simples raclOnahza~ao, segundo
nossa rude linguagem, 0 fato de a historia nos ser contada como
urn enigma policial? .
Na verdade, estarfamos no direito de conslderar ess~ fa to
pouco seguro, ao observarmos que tudo que ~o tiva esse ~IPO de
enigma a partir de urn crime ou de urn dehto - ou seja: sua
natureza e seus moveis, seus instrumentos e sua execu~a~, 0
metoda para descobrir seu autor e 0caminho para co~v~n.ce-lo
disso - e aqui cuidadosamente eliminado, desde 0mlCIOde
cada peripecia. .
o@, com efeito, e desde logo tao claramente conh:~ldo
quanta as artimanhas do culpado e se~s ~feitos,sobre sua vltl~a.
o problema, quando nos e exposto, hmlta-se a busca, para fms
de devolu~ao, do objeto a que se deve esse dol?, e parece bastante
intencional gue sua solu~ao ja tenha sido obtlda guando ele nos
~ explicadv. Sera por af que somos mantidos e~ suspens~? De
rato, por mais credito que se possa dar a conv~n~ao _ deurn genero
para desper tar urn interesse especifico no leItor, nao nos esque:
~amos de que" 0 ~n" - aqui, 0 segundo a aparecer - e
11I11~e que, na medida em que ele so recebe seu genero do primeir o, e urn pouco cedo para que 0 autor jogue com uma (·ol1ven~ao.
Scria outro exagero, no entanto, reduzir tudo a uma fabula
('uja mo ral consistisse em que, para resguardar dos olhares uma
d 'ssas correspondencias cujo sigilo e as ve zes necessario a paz
con jugal, basta deixar tais libelos espalhados sobre nossa mesa,
mcsmo exi bindo sua face significante. Eis af urn engodo cuja
Icntativa, de nossa parte, nao recomendarfamos a ninguem, por r cceio de que se decepcionasse ao se fiar nisso.
Portanto, nao haveria agui outro enigma senao, por parte do
Ins petor de Polfcia, uma incapacidade por principio de insucesso?
- a nao ser talvez, do lado de Dupin, por uma certa discordancia,
q ue nao r econhecemos de born grado entre as observa~6es decerto
muito penetrantes, embora nem sempre absolutamente pertinen -
les em sua generalidade, com que ele nos introduz em seu metodo, e a maneir a pela qual ele efetivamente intervem?
Exagerando urn pouco essa sensa~ao de cortina de fuma~a,
logo estarfamos a nos perguntar se - da cena inaugural, que
a penas a qualidade dos protagonistas salva do vaudeville, ate a
q ueda no ridfculo, que par ece reservada ao ministro no desfecho
- nao e 0fato de todo 0mundo ser ludibriado que produz nosso prazer .
hestarfamos ainda mais inclinados a admitir isso na medida
em que af encontrarfamos, juntamente com aqueles que aqui nos
leem, a defini~ao que demos, de passagem em algum lugar, do
heroi moderno, "cujas fa~anhas derrisorias numa situa~ao de extravio ilustram" .4
Mas nao somos nos mesmos tornados pela imponencia do
detetive amador, prototipo de urn novo fanfarrao, ainda preser - vado da insipidez do superman contemporaneo?
Pilheria - suficiente para nos fazer ressaltar nesse relato,
muito peI6 contrario, uma verossimilhan~a tao perfeita, que se
pode dizer que a verdade af revela sua ordenan~a de fic~ao. •.
Pois e justamente esse 0caminho aonde nos levam as raz6es
dessa verossimilhan~a. Entrando primeiramente em seu metodo,
percebemos com efeito urn novo drama, que dirfamos comple -
mentar ao primeiro, na medida em que este er a 0que se .chama
urn drama .sem pal.avras, enquanto e nas ~riedades do dlscurso
que se artlcula 0mteresse do segundo.
Se e patente, com efeito, q ue cada UIl~~ das ~uas cenas do
drama real nos e nan'ada ao longo de urn dlalogo dlferen~e, basta
estar munido das noc;6es que estipulamos em nosSO ensmo ' p~ra
reconhecer que isso nao se da pelo-simples prazer da exposlC;ao,
mas que esses pr6prios dialogos adq uirem, no usa oposto que
neles e f eito das virtudes da fala, a tensao que os transforma
num outro drama: aquele q ue nosSO voca bulario distingue do
primeir 0 sus te nt an do -se na o rd em si mb 6I i~~ . . o rimeiro dialogo - entre 0Inspetor de poliCia e Dul,llJl -
desenro _ 0dialo~ entre urn surdo e alguem que ouve.
Isto e , ele representa a verdadeira complexid a de d o q ue c om~-
mente se simplifica, com os mais confusos resultados, na noc;ao
de comunicac;ao. . - Captamos, de fato, nesse exempl~ 0 quant,o a co.~umcac;a~
pode dar a impressao, na qual a teon,a .se dete~ amlUde, de so
compor tar em sua transmissao urn umcO senti do, como se 0
comentar io pleno de significac;ao q ue Ihe confere aquele que
ouve pud esse, por passar despercebido aquele que nao ouve, ser
tido como neutralizad o. . - o fato e que, preservando apenas 0 senti do de exposlc; ao d o
d ialogo, evidencia-se q ue sua verossimilh~n?a jo ga c om a ga-
rantia d a exatidao. Mas, ei-Io entao mais fertl1 do que parece, e
cujo pr ocedimento poder f amos demo~str~r - como veremos
restr ingind o-nos ao r elato de nos sa pn.m~lra cena., £ , q ue 0 d uplo e a te t r iplo filt ro subJetlvo atraves do ~ual ela
nos chega - a narrac;ao, pelo amigo e f nti mo d e Du pm ( q ue
doravante chamaremos de narrador geral d a hist6ria), do relato
pelo q ual 0 Inspetor cta co~hecimento a Du~~n ~a narrativ~ q ~e
lhe f izera a Rainha - nao e a penas a consequencla de urn alranJo
fortlli to. ' Se, com efeito, a situac;ao extrema a que foi levada a nar rad ora
or iginal elimina a hi p6tese d e q ue e la t enha alter ado os aconte-
5, 0 completo entend imento do que se segue exige" e claro: ,que se r eleia e~se
texto extr emamente d if undid o (em f rances e em i ngles), e aliaS curto, que e A
carta r oubad a" [cuja traduyao brasileira pod e ser lid a na A nt ologia d e cont os
d e Edgar A llan Poe , R io d e Janeiro, Civilizay ao Brasileira, 1959].
\ lilt,·1.l10S,estar famos en'ad os e m crer q ue 0 Inspetor s6 esteja
1t1lhIillad o a Ihe emprestar sua voz pela falta de imagir.ac;ao da
C l l l a l , se assim podemos dizer, ele ja tern a patente.
o f at o d e q ue a me nsagem se ja assim retransmit ida nos
liS segu ra a re sp ei to d o q ue n ao e a bs oluta me nt e e vidente ou
S ' ja, que ele com efeito pertence a dimensao da linguagem'.
Os que aqui se encontram conhecem nossas observac;6es sobre
isso, e particularmente aq uelas q ue ilustramos pelo c ontraste
'om a EE,etensa Iinguagem d as a belh as , o nd e u rn lingiiista6
'ol?se gu e v er a pe na s u ma simples sinalizac;ao da posic;ao do
o bJeto, em outras palavras, a penas uma func;ao imaginar ia mai s
diferenciada do que as outras.
Assinalamos aq ui que tal forma de comunicac;ao nao esta
ausente no homem, por mais evanescente que seja para ele 0
o bjeto no que tange a seu dad o natur al, em razao da desintegrac;ao
q ue sofre pelo uso do sfmbolo.
Pode-se, com efeito, apreender seu eq uivalente na comunhao
q ue se estabelece entre d uas pessoas no 6dio dirigido a urn
mesmo objeto, com a diferenc;a de que 0 encontro nunca e
possfvel senao em relac;ao a urn tini co o bjeto, d efinido pelos
trac;os do ser que tanto uma q uanto outra a rejeitam.
Mas tal comunicac;ao nao e transmissfvel sob forma simb6lica.
Sustenta-se apenas na relac;ao com esse ob jeto. £ , assim que ela
pode reunir ur n ntimero indefinido de sujeitos num mesmo
"ideal", sem q ue por isso a comunicac;ao de urn sujeito com 0
utro, no interior da multid ao assim constitufda, seja menos
redutivelmente med iatizada por uma relac;ao inefavel.
. Esta d i.gressao na o e a q ui a penas uma convocac;ao de princf -
plOS l ongmquamente enderec; ad a a os q ue nos imputam ignorar
a. comunicac;ao nao-verbal: ao deter minar 0 alcance do que 0
dlscur~o repete, ela prepara a q uestao do que 0 sintoma repete.
Asslm, a relac;ao ind ireta decanta a d imensao d a Iinguagem,
e 0 nar r ador geral, ao reprod uzi-Ia, nada the acr escenta "hi po-
teticamente". Ma s, no q ue diz respeito a seu offcio no segundo
dialogo, a coisa e totalm en te d iferente.
6" Cf. Emile Benveniste, "Communication animale et langage humain", Dio -
gene, nUl, e n osso r elatorio de Rama ["Funyaa e campo d a fala e d a lin guagem
em p sicamilise"], p.238.
Pois, este vem opor-se ao primeiro como os polos que dis-
tinguimos alhur es na Iinguagem, e que se opoem como a palavra [20]
a f ala.
o qu e equivale a dizer q ue af se passa do campo da exatid ao
par a 0 r egistro d a verdade. Ora, esse regis tr o - ousamos cr er
que nao temo s de vol tar a i ss o - situa-se num lugar completa-
mente diferente, isto e, propriamente na fund ac;ao d a inter sub-
jetivid ade. Situa-se ali onde 0sujeito nada pod e captar senao a
pr o pria subjetivid ad e que constitui urn Outro como absoluto.
Nos nos contentar emos, para aqui apon ta r seu lugar , e m e vo car
o dialogo que nos par ece mer ecer a atribuic;ao d e historiajud aica
do d es pojamento, ond e a parece a relac;ao do signif icante com a
fala, na adjur ac;ao em que ele aca ba culminand o. "Por que mentes
par a mim" , e exclamad o quase sem fOlego, "sim, por que men-
tes para mim, d izend o-me que vais a Cracovia, par a que eu cr eia
que estas indo a Lem ber g, q uand o, na r ealid ad e, e a Cracovia
que vais?"
I J E uma pergunta semelhante que ser ia impos ta a nosso espf r ito
pela enxu rr ad a d e a por ias, enigmas er fsticos, par adoxos e ate
pilherias que nos e a presentad a a guisa de introd uc;ao ao metod o
de Dupin - se, por este nos ser a presentado como uma confi-
dencia por alguem que se coloca como discfpulo, n a o se Ihe
acrescentasse uma cer ta virtude por essa d elegac;a o. Ta l e 0
prestf gio infalf vel do testamento: a f idelidade d a testemunha e
o ca puz com q ue se endormece, cegando-a, a cr f tica ao teste-
munho.
Que ha de mais convincente, por outro lado, que 0gesto d e
mostr ar as cartas na mesa? Ele 0e a t al ponto que nos convence,
por urn momento, de que 0 pr estidigitador ef etivament e d emons-
trou, como havia anunciado, 0 procedimento d e seu numer o,
em bor a 0 tenha a penas renovado so b uma f orma mais pur a: e
esse momento nos faz dimensionar a supremacia do significante
no sujeito.
Assim opera Dupin, quando parte d a historia do menino-pr o-
dfgio que tapeava todos os seus colegas no jogo do par ou fmpar
com seu truque d a identificac;ao com 0 adversario, sobre 0 qual
mostramos, no en tanto, que ele nao con segue atingir 0 primeir o
plano d e sua elabor ac;ao mental, isto e, a noc;ao d a alternancia
inlcrsu bjetiva, sem topar prontamente com 0 empecilho d e seu r etor no.7
, N em por isso nos deixam d e ser lanc;ad os, par a nos encher
os o lhos, os nomes d e La Rochef oucauld La Bruy' ere M . I , C II . " aqUlave
(,; ampan~ a, c~Ja r eputac;ao so faria par ecer ma is f util diante [21]
d a proeza mfantIl.
Eo encadeamento com Chamfort, cuja for mula d e que" pod e-
~c.a~ostar ~ue tod a id eia publica, tod a convenc;ao aceita e uma
IdIOtlce, pOlS conveio a maioria" , com certeza ha de contentar
a t~d~s os que pens am escapar a sua lei, isto e, pr ecisamente a
ma~on,a. Que Dupin tache de trapac;a a aplicac;ao do termo analise
aI~e~nca pelos fr anceses, eis af algo sem a menor chance de
atmglr noss~ orgulho, sobretud o quando a liber ac;ao desse termo
para outr?s _fms nad a tern que impec;a urn psicanalista de se sentir
~.m ~O?dIC;OeSd e impor seus dir eitos. E ei-Io em observac;oes
hlologlcas que deleitam os aman te s d o l at im: q ue e le I h
relembr e, sem se dignar di zer mai s n ada que "a b' t :s . 'f . ' m I us nao
slgm lea amblc;ao, r eligio, religiao, e homines honest i homens
honrados" , quem dentr e voces nao se comprazeria em lembrar . ..
o q~~ ~ssas pala~r a.s quer em d izer par a q ue m pratica Cicer o e
LucleclO? Sem duvld a, Poe se diverte ...
~as vem-nos uma susp~ita: nao estar a essa exibic;ao de erudic;ao
destmad a a nos fazer OUVlras palavr as -c ha ve d e nosso drama?8
Acaso 0 prestidigit ad or n ao r ep ete seu truque diante de no~,
desta vez sem nos I~dibriar que esta fornecend o seu segredo,
mas levando seu pr oJeto a po nt o d e r ealmente nos esciar ecer
sem que enten.damos a bsolutamente nada? Seria mesmo 0cumul;
do que podena atingir 0 ilusionista f azer -nos verdadeirament e enganar por urn ser d e sua ficc;ao.
7. Cf. nossa introduyiio, p.62.
8. A princfpio, eu dera uma pincelada, quanto a essas tr es palavras, sobr e 0
sentldo com que ca~a um comentana essa hist6ria, se par a isso niio bastasse a estrutura a qu e ela e consagrada.
.Suprim~ a indicayiio, imperfeita demais, porque, ao me reler para esta
rel~pressao, uma pessoa me confirma que, depois do tempo daqueles que me
ve~ em (est~mo~ mnda em 9 .12.68), vem um outro em que me leem para malOres exphcayoes. '
Que teriam lugar fora desta pagina.
E nao SaDesses efeitos q ue nos torn am Ifcito, sem nenhuma inten~ao d e malfcia, falar de muitos herois imagimirios como
personagens reais? . Do mesmo mod o, q uando nos d is pomos a entender a manelra
como Mar tin Heid egger nos revela na palavra a / etMs 0 jogo da verdad e so fazemos red escobr ir urn segredo em q ue esta sempr e iniciou ~eus amantes, e a partir d o q ual eles sustentam q ue e ao se ocultar q ue ela mais verdad eiramente se ofer ece a eles ..
Assim, mesmo que as af ir ma~6es de Dupin nao nos d esaflas- sem tao manifestamente a nos f iar mos nelas, ainda ser ia preciso [22]
fazermos essa tentativa contr a a tenta~ao contraria. Descubramos , pois, sua pista onde ela nos despista.
9 Para
come~ar, na crftica com q ue ele motiva 0insucesso do Inspetor . Ja a vf r amos despontar nas tro~as disf ar~adas de que 0Inspetor nao se dera conta na pr imeira conversa, so encontrando nelas motivo para gargalhar . Que se ja, como insinuara Dupin, pOl'urn
problema ser simples demais, ou evidente demais, que ele possa
parecer obscuro, eis af algo que nunc~ tera maior ~eso p~r.a0 Inspetor do que uma fr ic~ao urn tanto vlgorosa na calx~ .toraclca.
Tudo e feito para nos ind uzir a no~ao da i mbeClhdade d o personagem. E ela e vigorosamente articulada pelo fato d~ ele e seus acolitos jamais conce berem, para esconder ur n obJeto, nad a q ue ultrapasse 0q ue urn maland r~ comum ~od er ia imaginal', isto e, precisamente a serie pOl' demals conhe.cld a dos escond e- r i jos extraor dinarios q ue nos e passad a em revlsta: ~esd e gavetas dissimuladas da escrivaninha ate 0tampa d esmontavel d a mesa, dos forros descozid os dos assentos ate seus pes ocos, d as cha pas pOl'tras d o estanho dos espelhos ate a espessura da encad er na~ao
dos livros. E se zomba d o erro q ue 0 Inspetor comete ao deduzir q ue,
pelo f ato d e 0ministro ser poeta, ele nao esta longe de ser louco,
9. Gostarfamos de rec olocar ao sr . Benveniste a questao do sentido a ntin6mico
de certas palavras, primitivas ou nao, a p6s a magistr al r etif icav.ao ~u~ ele t r ouxe
1 1 falsa via por onde Fr eud a fez envered ar no terr eno f ilologlCO (cf . La
ps ychanal yse, v.I, p.5-l6 ). Pois parece-nos que essa qu estao permanece mtacta,
destacando em seu r igor a instancia d o signif icante. Bloch e Yon Wartbur g
d atam de 1875 0 a par ecimento da significa<;ao d o ver bo (d e pist er ) no segundo
empr ego que dele fazemos em nossa f r ase. E necessar io aqui c hamar a aten<;ao
d o lei tor para os d ois significad os da p alavr a d e pist er : seu emprego mals usual
e atual e com 0 signif icad o d e descobrir alg!lem ou a lgo segUind o s ua plsta; e
o mais antigo ja em d esuso na Fr an<; a e seu exato o posto, des pistar .
crro este, ar gumenta-se, que so se deveria - 0que ja e dizer mUlto - a uma falsa distr ibui~ao do termo medio, pois esta longe de r esultar que todos os loucos sej am poetas.
Cer to, mas nos mesmos somos deixados na errancia q uanto ao q ue constitui, em materia de esconderijo, a superioridade do
poeta, ainda que ele se revele duble de matematico, pois de
repente interrompem nosso avan~o, arrastando-nos para urn ma- lagal de contesta~6es inf undadas ao raciocfnio dos matematicos
que, ao que eu saiba, nunca mostraram tanto apego a sua~ for mulas a pon~o de identifica-las com a razao raciocinante. Pelo menos, atestamos q ue, ao contrar io d o que parece ser a expe-
riencia de Poe, sucede-nos as vezes diante de nosso amigo Riguet [23]
- que e aqui para voces, por sua pr esen~a, a garantia d e que llossas incurs6es pela analise combinatoria nao fazem com q ue nos extraviemos -, deixarmo-nos levar pOl' extravagancias tao graves (Deus nos livre!, segundo Poe) quanto afirmar que" x2
+ px talvez niio seja exatamente igual a q" , sem jamais tel' tido (e d eixamos a Poe desmenti-lo) q ue nos precaver contra alguma violencia inopinada.
Portanto, nao se esbanja tanto espf rito senao para desviar 0
nosso daquilo que antes nos fora indicado tomar por certo, ista e, que a polfcia procur ou par toda parte: 0que ca beria enten- d ermos - no q ue concerne ao campo em que a po lfcia presumia, nao sem razao, q ue devesse encontr ar -se a carta - no sentido
d e urn esgotamento do espa~o, teor ico, sem duvid a, mas cu ja tomada ao pe da letra constitui a gra~a da historia, sendo-nos a presentado como t ao exato 0 "esq uadr inhamento" que rege a o pera~ao, que nao permitir ia, diz-se, "que ur n cinqiientesimo de linha escapasse" a explora~ao dos investigadores. Estarfamos no direito, pOl' conseguinte, de perguntar como a carta nao foi
encontrada em parte alguma, ou melhor, de observar q ue tudo o que nos dizem sobre a concep~ao da mais alta recepta~ao nao nos explica, a rigor, que a c arta tenha esca pado as buscas, ja
que 0 campo que estas e sgotaram realmente a continha como enf im comprovou a descoberta de Dupin. '
Seria preciso q ue a carta, dentre todos os ob jetos, fosse dotada
da propriedade de nulubiedad e , 10 para nos servirmos d esse termo
10 . Em i ngles, nullibicity ou nullibiety , pr o priedad e d e nao estar em par te a lguma,
mversa a d a ubiqUidade. ( N.E.)
26 Escritos
que 0 vocabulario celebrizado pelo titulo de Roget retomou da . W'lk' ?ll. .ologica do blspo I InS.
utopia semi '. 12 If 'dent) q ue a carta, de fato, E evidente (a htt le too s e eVl . nenhuma palavra
' m 0 lugar rela<;6es para as quais . mantem ~o todo 0alcance do qualificativo ingles odd. ~lza:re , francesa em . d .' 10 e apenas aproxlmatlvo.Baudelaire costuma tla UZI- , .
~~;a:os que essas rela<;6es sao singulares, pois sao Justamente . 'f te mantem com 0lugar .
essas que 0 slgm Ican _ , osso designio estabelecer reIa<;6es Voces sa bem qu e n a? ~ n _, dir a carta/letral3 com [24]
"sutis" que nosso proPOSltOnao e confun i ,. 14 e que ' : ue a recebamos pOl' pneumatlco, ..
o espIr lto, mes~o q mata enquanto 0outro vivlflca, admitimos perfeltamente q~e. urn A talvez esteiam
. igmf lcante, como voces J
na medlda eame~~~d~/'materializa a instancia da m.ort~.. Mas,
come.<;an~o. na materialidade do slgmftcante que InSlstImos, se fOI pnmelro ,. muitos ontos 0 primeiro dos essa materialidade e singular e.~ P ' q ue ~ u m~ c art alletra em
quais .e nao supor~~n~~~:r~rt~ :~r ~ carta lletra que e, e num
pedacmhos,. e e~a d Ie de que a Gestalttheorie pode sentido mUlto dlferente aq ue _ do todo 15
dar conta, com 0vitalismo insidioso de sua no<;ao .
f Borcres em sua o bra tao har monizada com 11. A mesma a q ue 0 Sf . Jo~ge Lu.~m d;sti~o que outros reduzem a suas justas o phylum de nossas coloca~oes, da . h . Iho d e 1955 p.2135-6, e o utu bro
- Cf Le T o ps Modernes, Jun o-Ju , 'E propor ~oes. . s em . I' . a" a q ue Lacan se refer e e 0 ssay
de 1955, p.574-5. [A "utopia se;~ol~;~~hical Language (1668), em q ue John
t owards aRe~1 Char~eter and a I fe/uma tentativa, por muitos considerada Wilk ins, ClentIsta e blspo de Chester, I por cifras para que elas perdessem
br ilhante, mas inutil, d e SubstltUIr as pa avras ,
seu cunho associativo. ( N.E.)]
12. 0 destaque e d o autor . _ • I d e l et lr e que so br etud o a partir d esse 13. Ou "0 Verbo", outra acep~ao posslve d ;fere~tes signif ica~6es (car ta,
ponto do texto, convem ter em mente em suas
letra). ( N.E.) . . t a par isiense d e entrega ni pida d e d . na ur n antigo SISem . d
14. 0 termo, q ue eSlg _ . ' ne as r ov em do latim pne umalicus e 0
cartas atraves de tu bula~oes subtelra" '~') e teve na I dad e Media a acep~ao ." ma" - sopr o
grego pneulI;alik os (r aIz pneu. - ace ~o do "sopro divino" , que Lacan
de " sutil" . E com esta, e tambem comd a
r e~iss6es q ue se perd e na tradu~ao. joga nesse paragrafo, num conJunto e
(N.E.) . f nos exem plos ja des botad os pelo u sa 15. E isso e tao verdadeiro que a f IlOSdOla, ' It. plo nao em prega para os m esmos
a ·tlr d o urn e 0mu I , com que argument a a pI. 0cfr culo inter rompid o, ou 0vasa f ins a simples folha branca rasgad a ao m ew e
A linguagem profere seu veredito a quem sabe ouvi-Ia: pelo uso do a rtigo, empregado como partfcula partitiva.16 E ai mesmo
que, nao menos singularmente, 0 espirito, se 0 espir it o e a
signif ica<;ao viva, aparece mais propenso a quantifica<;ao do que
iI cartalletra. A come<;ar pela propria significa<;ao, que suporta
que digamos: esse discurso pleno de signification, do mesmo
mod o que reconhecemos de l'intention em urn ato, deploramos
q ue nao haja mais d'amour, acumulamos de La haine e dispen-
samos du devouement e que tanta d'injatuation se concilie com
o fato de sempre haver de La cuisse (pernil) para vender e du r ~fi f i (confusao) entre os homens.
Mas, quanto a cartalletra, quer a tomemos no sentido de
elemento tipografico, de epistola ou daquilo que faz 0 letrado,
dir emos que 0que se diz deve ser entendido Ii Letra, que M uma
car ta a espera de voces com 0 carteiro, ou que voces tern
cartas/letras - mas nunca que ha ja de Lalettre em alguma parte,
nao importando a que titulo ela Ihes diga respeito, nem que seja para designar a correspondencia em atraso.
~t Pois 0 significante e unidade pOl' ser unjcQ, nao sendo, pOl' I' natureza, senao simbolo de uma ausencia. E e pOl'isso que nao
(' poder nos dizer dacart37ietra roubada que, a semelhan<;ade outros
o bjetos, ela deva estar ou nao estar em algum lugar, mas sim
q ue, diferentemente deles, ela estar a e nao estara onde estiver, onde quer que va.
Ve jamos mais de perto, com efeito, 0que acontece com os policiais. Nada nos e poupado q uanto aos procedimentos me-
d iante os quais eles revistam 0 espa<;o destinado a sua investi- [25]
ga<;ao, a divisao desse espa<;o em volumes q ue nao deixam
escapar a menor espessura, a agulha que sonda 0macio e, na
falta da percussao que sonde 0d uro, ao microscopio que denuncia
os excrementos do caruncho na borda de sua perfura<;ao, ou ate a fenda inf ima de mesq uinhos abismos. Na medida mesma em
q ue sua rede se fecha, para q ue, nao satisfeitos em sacudir as paginas dos livros, eles cheguem a conta-Ias, acaso nao vemos o espa<;o desfolhear -se, a semelhan<;a da cartalletra?
partid o, sem falar d o verme cortado [ond e La can joga com os sentid os d e verme
(ver, lar ve, q ue tambem significa "fantasma") e d e i nsidioso (larvej J . (N.E.)
Mas os investigadores ter n uma no~ao tao imutavel d o real
q ue nao notam que sua busca ira tr ansf orma-Io em seu ob jeto.
Tra~o em q ue talvez possam distingui r esse o bjeto de todos os
outros.
Seria demais ped ir -lh es i sso , s em d uvida, na o e m r az ao d e
sua f alta d e visa o, ma s, antes, da nossa . P oi s sua imbecilidade
nao e de tipo individual, nem corpor ativo, mas de or igem
subjetiva. E a imbecilidade realista, q ue nao se limita a se dizer
que nad a, pOl' mais q ue uma mao venha a enter ra-lo nas entr anhas
do mund o, jamais estara escond id o a li , um a v e z q ue outra mao
podera encontra-lo, e que 0q ue esta escondid o nunca e outra
coisa senao aquilo que falta em seu lugar, como e expresso na
ficha d e a rq ui vo de u rn v olume quando ele e st a p er di do n a
biblioteca. E este, de fato, estando na prateleira ou na estante
ao fado estar ia escondido, pOl' mais visfvel que parecesse. E que
s6 se po de dizer que algo falta em seu lugar, a letra, daquilo
que pod e mud ar d e lugar, isto e, do simbOlico. Pois, quanto ao
real, nao importa que perturba~ao se possa introd uzir nele, ele
esta sem pre e de qualq uer modo e m seu lugar, 0 real 0 leva
colado na sola, sem conhe ce r n ad a q ue possa exila-lo disso.
E com efeito, voltando a nossos policiais, como poderiam
eles apoderar -s e d a c ar ta , eles que a a panharam no lugar on de
estava escond id a? Naquilo que r evira va m entre os dedos, que
outra coisa se guravam eles senao 0 que niio correspondia a
descri~ao q ue tinham dela? A letter, a litter , uma carta, uma
letra, ur n lixo. Fizeram-se tr ocadilhos, no cenaculo de Joyce,17
com a homofonia dessas duas palavras em ingles. A especie de
dejeto q ue os policiais manipulam nesse momenta tampouco
lhes revela sua outr a natureza pOl' estar a penas meio rasgada.
Urn sinete diferente so br e u rn l ac re d e outr a c or , e ur n outro
estilo d e grafismo no sobrescrito s ao , a li, 0mais inquebrantavel
dos esconder i jos.18 E, se eles se detem no reverso da car ta, que,
17. Cf . Our Examinat ion r ou nd his F act if ication for I ncamination of Wor k in
Progr ess , Shakes pear e and Company, rua d o Odeon, 12, Par is, 1929.
18. Lacan ex plora a homofonia e a polissemia de cac het (sinete, lacre, estilo d e
autor, selo, cal'ater peculiar ) e cachett e (escond erijo ), f azendo cruzar o s d ois
verbos cacher (esconder) e cachet er (selar, lacr ar uma carta). Let t r e d e cachet
signif ica car ta r egia, carta im per ial, or dem de Plisao. (N.E.)
I11111,0 sah?m~s, era on de se inscrevia na e poca 0 endere~o d o
Iii .1 1 1 1 :1 1 < 1 1 '1 0 , e por que, para eles, a carta nao tern outra face senao I' r ·ver so.
011' pod er iam eles , d e f ato, detectar de seu anverso? - Sua
1lIl'lisagem, como se costuma d iz er pa ra alegria de nossos d o-
1IIIIIgos ci berneticos? Mas, nao nos ocorre entao a ideia de q ue
I sa mensagem ja chegara a sua d estinatar ia, e que Ihe fora
IIIl'1usive a bandonada com aquele peda~o de papel insignificante,
'lIlt' agor a a representa t ao be m q uanto 0 bilhete original?
S ' pud essemos dizer q ue uma carta cum pr iu seu d estino de pois
Ill' !Iwer desempenhad o sua fun~ao, a cer imonia d a devolur ;ao
II., cartas seria menos a ceita para ser vi r d e encer r amento q uando
IIi! eXlin~ao dos fogos d os feste jos d o amor . 0signif icante nao
I f 'lIflcional. E, da mesma maneir a, a mobilizar ; ao d o belo mundo
IlljOS passatempos acompanhamos aqu i nao teria sentido, se a
I Ir la, pOl' sua vez, se contentasse em tel' ur n. Pois nao seria urn
III<)(.JOmuito adequad o de mante-lo e m sigilo comunica-lo a ur n
('squadrao d e ti ra s [ poulets].)9
Poderfamos ate admitir q ue a carta tivesse urn sentido com-
pi ' tamente d ifer ente, senao mais ardoroso, para a Rainha, do
q llc 0que ela oferece ao entendimento do ministr o. A marcha
d os acontecimentos nao ser ia sensivelmente a fe ta da p Ol ' isso,
/ I 'm mesmo se ela fosse estr itamente incom preensf vel par a ( jllalquer lei tor desavisad o.
Pois ela cer tamente nao 0 e para tod o 0mundo, ja q ue, como
1l0-!o assegura enf aticamente 0Inspeto r, p ar a chacota d e tod os •• d '
csse ocument o, revel ad o a urn terceiro personagem, cu jo nome
sent mantido em silencio" (esse nome q ue salta a os olhos como
".ra bo do porco entre os d entes do pai U bu), " poriaem questao",
<lIz-nos ele, "a honr a d e ur n per sonagem da mais alta estir pe",
ou ainda, "a seguranr;a da augusta pessoa seria assim colocad a em perigo".
1 ' . 1 . Poulet e urn termo polissemico, cujas significa90es vao d esd e 0 d enotativo
"f r an go " ou " pinto" ate a gf r ia "tir a", passan do pelas d e " bilhetinho amor o-
so/car ta de amor" e pelo tr atamento af etivo "quer id inho", " amorzinho" . Com
Por conseguinte, na o e a penas 0 senti do, mas 0 texto d a
mensagem que seria pe r igoso par em circulacyao, mais ainda quanto mais anodino ele parecesse, visto que os r iscos seriam
aumentados pela indiscricyaoq ue urn de seus depos itar ios pudesse
cometer inadvertidamente. Nada, portanto, pode salvar a posicyao da policia, e nao se
modificaria nada melhorand o "sua cultura". Scripta manent , e
em vao que ela aprenderia, de urn humanismo de edicy aode luxo, [27J
a licyaoproverbial q ue 0 verba volant termina. qxala os esc~itos
ficassem, como e , antes, 0 caso d as falas: porque, destas, ao
~nos a dfvida indelevel fecunda nossos atos com suas transfe - ------------------ ---- --
rencias. '-o-s escritos carregam ao vento as promissorias em branco de
uma cavalgada louca. E, se eles nao fossem folhas volantes, nao
haveria letras roubadas, cartas que voaram.20
Mas, em que pe estamos a esse respeito? Para que haja carta roubada, d iremos conosco, a quem pertence uma cartalletra?
Acentuavamos ha pouco 0 que ha de singular na devolucyaoda
carta a quem outrora deixara ardoro samente arrebatar -se se u penhor . E em geral se julga indigno 0 procedimento das publi-
cacy6es prematuras, do tipo daq uela com que 0 Cavaleiro de
Eonte pas alguns de seus correspondentes em situacyaobastante deplorivel .
Entao, a cartalletra sobre a q ual quem a enviou ainda conserva
direitos nao pertenceria plenamente aquele a quem se dirige?
Ou sera que este ultimo nunca foi seu verd adeiro destinatario? Vejamos: 0 q ue ir a esclarecer -nos e aq uilo que, a principio,
pode obscurecer ainda mais 0caso, ou se ja, q ue a historia nos
d eixa ignorar quase tudo so br e 0remetente, nao menos q ue sobre
20. Pela riqueza de sua polissemia, 0 tr echo merece ser re prod uzid o e m f r ances:
"Les ecr its empor t ent au v ent les t r ait es en blanc d ' une cavalerief olle. E t , s ' ils
n'lit aient feuilles volantes , it n'y aur ait pas d e lettres voli es ." T raite, na
linguagem comercial e juridica, e urn ti po de titulo, a l etr a de c ambio, e traite
de cavalerie (ou effet de cavaler ie ou d e complaisance) e a "letra f r ia", 0titulo
falso, f icticio. F euilles volant es, f olhas soltas, tr az aind a as signif ica~6es d e
"f olhas ao vento", "volantes" ou " m6veis" . Por f im, as lettres valies tanto si lo
as cartas r oubad as (ou "voad as") q ua nto as letras q ue voaram ou as letr as
(comerciais) roubad as. ( N.E.)
II Iollt 'lido da cartalletra. Nos e dito tao-somente que 0ministr o
IIIOllh'ceu de imediato a graf ia U ' ecriture] de seu enderecya- /III 1110H R ainha, e, e i ncidentalmente, a proposito de sua camu-
1111',t'lIl pelo ministro, q ue se menciona q ue 0 sinete original e II do Duq ue d e S... Quanto a sua importancia, sabemos apenas d o~ p 'r igos que ela compor ta, caso venha a cair nas maos de 1 1 1 1 1 l' 'ItO ter ceiro, e que sua posse permitiu ao ministro "exercer
I IIIll ponto perigosfssimo, com objetivos politicos", a ascen-
d IIcia q ue ela the assegura sobre a interessada. Mas isso nad a 110 1' diz da mensagem que ela veicula.
('ar la d e amor ou carta de conspiracyao, carta d e delacyaoou 1I'lade instrucyao,carta de intimacyaoou carta d e desolacyao, so
IIlHIl'mosreter dela uma coisa: e que a Rainha nao pode leva-la 110 'onhecimento de seu mestre e senhor .
Or a, esses termos, longe de tolerar 0 toque de depreciacyao 'I1Il' lem na comed ia burguesa, assumem 0 sentido eminente de
dl'signar seu soberano, a quem a liga seu juramento de fidelidade, [28]
I d· maneira redobrada, ja que sua posicyaode canjuge nao a
I xime de seu dever de sudita, mas antes a eleva a g uard a daquiJo qll . a realeza, segundo a lei, encarna do poder: e que se chama ll·gilimidad e.
Por conseguinte, seja qual for 0 paradeiro que a Rainha tenha Il plado por dar a cartalletra, essa carta nao deixa de ser 0 sf mbolo
dt· Illn pacto e que, mesmo que sua destinataria nao ass uma esse plI 'lo, a existencia da carta a situa numa cadeia simbolica distinta
d ll q ue constitui seu juramento. A prova de que e incompatf vel
I om este e dada pelo fato de que a posse da cart alletra e Illlpossf vel de validar publicamente como legftima, e de q ue,
pllnt faze-la respeitar, a Rainha so poderia invocar 0 direito a
slIa privacidade, urn direito cu jo privilegio f undamenta-se na honra q ue essa posse d erroga.
Pois aquela que encarna a imagem benevolente da soberania 11110 pode acolher acordos, mesmo privados, sem q ue eles impli-
q uem 0 poder, e nao pod e prevalecer-se do sigilo perante 0
soherano sem entrar na c landestinidade.
Portanto, a responsabilidade do autor da car ta passa ao se- gundo plano, comparad a aq uela de quem a detem, pois a ofensa I) l I1a jestad e faz-se acom panhar, nesse caso, da mais alta trair iio.
contestavel pa ra sua d estinataria d o que par a q ual~uer .un: e~
cujas maos possa cair, uma v ez que nada, quanto a eXlsten~la
da carta, pode vol tar a n ormalidad e sem q ue aq uele c~ntr a CU jaS
prerrogativas ela atenta tenha tid o q ue s e p ronun cl ar a es se
respeito. . Entretanto isso t udo nao q uer d izer que, pOl' mals q ue 0
segredo da c;rta seja indefensavel, a denuncia desse segredo seja
de algum modo honrosa. Os honesti homines, as pessoas de bern,
nao conseguiriam sail' inteiramente ilesas disso. Ha mais d~ un: a
r eligio, e nao ha de ser amanha q ue os lac;os sagr~dos delxar .ao
de nos puxar em sentidos contr arios. Quanto ao ambItus, 0.rod~lO,
o desvio, como se ve, nem sempre e a am bic;ao que 0msplra.
Pois se existe urn pelo qual passamos aqui, nos nao 0roubamos,
tem~s que dize-Io, ja que, para Ihes confessar tudo, so adota mos
o tf tulo de B audelaire no intuito de bem marcar nao, como se
enuncia impropriamente, 0carateI' convencional do signif icante,
mas, antes, sua precedencia em relac;ao ao significado. ~em pOl'
isso Baudelaire, malgrado sua dedicac;ao, deixou de trail' Po~ ao
traduzir pOl' "Ia lettre volee" seu tft ulo, que e The Pur~otne.d
Letter, ou seja, que se vale de urn termo tao raro que nos e ma ls
facil definir sua etimologia do q ue seu emprego.
To purloin, diz-nos 0dicionario de Oxford, e uma palavra
anglo-francesa, isto e, composta do prefixo pur ~ , q ue ~Iamos
reencontrar em purpose, proposito, purchase, provlmento, pur-
port, importancia,22 e do vocabulo do f rances antigo. loing,
loigner, longe. Reconhecemos no primeiro eleme nto ~ latlm pro,
no que ele se distingue de ante, pOl' supor ~m detras ,antes do
qual ele se aplica, eventual mente para garantl -Io ou, ate mesmo,
para dar-lhe sua garantia como avalista (ao pas so que ante se
adianta em direc;ao aquilo que vem a seu encontro) . Q~anto ao
segundo, a antiga palavra francesa loigner, verbo do atnbuto de
21. Lacan usa 0 fr ances provision (provisao, a bastecimento, suprimento etc.),
enq uanto purchase ex pr essa, mais exatamente, com pra, aq uisi<;:ao, obten<;:ao,
recur so s e ate mesmo pilhagem. (N.E.) 22. Em irances, por tee. Pur por t, em sua mod ern a polissemia, e teor, sUbstan~ia,
significado, su bentend id o etc. Para uma compr eensao m~is plena d as trad u<;:o~s
francesas escolhidas por Lacan, 0leitor int er essado devera consul tar a ettmolog1a
d esses ter mos, pois e e m suas or igens remotas que eles malS se a pr oxllnam.
(N.E.)
III II /11/ loing (ou ainda longe [Iadeado]), ela nao significa ao
Itll l'l 1111/ loin], mas ao longo de; trata-se, pois, de por de lado,
1 1 1 1 J lII I ' I"COITer a uma locuc;ao familiar que joga com os dois
I 1 1 1 1 1 IllS, dc mettre a gauche [" reservar disfarc;adamente" ou
o i l \llIl\lIar "].
\',,'illl n os vemos confirmados, em nosso desvio, pelo proprio
IIlllt'lll quc a ele nos leva: pois e justamente a carta desviada
1 /1 1 1 IIOSocupa, aquela cujo trajeto foi alongado [prolonge]23 (0
1 1 1 1 1 ',Iitcr al me nt e, a pa la vr a inglesa), ou, para recorrer ao
11\ , "HIlar io postal, la lettre en souffrance, a carta nao retirada.24
I':is af, portanto, simple and odd, como nos e anunciado desde
I J lI imcir a pagina, reduzida a sua exp r essao mais simples, ~
111/'lIlar idade da carta/letra, que, como indica 0 tftulo, U " /' / t I ( / d eir o sujeito do conto: e por poder sofrer um d esvio que
IIIII'm urn trajeto que lhe e proprio. Trac;;oo nd e se afirma, aqui,
1111Inclctencia de significante. Pois aprendemos a conceber que
II si r nificante s6 se sustenta num deslocamento comparavel ao .
d,' nossas faixas de letreiros luminosos ou das mem6rias gira-
IIlrias d e nossas maquinas-de- pensar -como-os-homens,25 e isso,
1'lIl razao de seu funcionamento altern ante pOl ' princfpio, que
,'xi ' C q ue ele deixe seu lugar, nem que se ja para retornar a este
cir cularmente.
Isso e justamente 0q ue acontece no automatismo de repetic;;ao.
() que Freud nos ensina, no texto que comentamos, e que 0 [30]
sujcito segue 0veio do simb61ico, mas isso cuja ilustrac;ao voces
I'\m aqui e ainda mais impressionante: nao e apenas 0 sujeito,
mas os sujeitos, tor nados em sua intersu bjetlvldade, que se
aItnham na f ila - em outras palavras, nossos avestruzes, aos
quais els-nos de volta, e que, mals d6ce is que car nelros, mod el am
SCllproprio ser segundo 0 momenta da cadeia signif icante que
os esta percor r endo.
Se 0q ue Freud descobr iu, e redescobre com urn gume cada
vcz mais afiado, tern a lgum sentido, e q ue 0 deslocamento do
23. Tomando 0 pur-longee ( purloined) como" am pliada em s ua extensao/alcance
por um desvio lateral previo". (N.E.)
24. En sout france, tambem "nao r eclamada" ou " em sus penso". (N.E.)
25. Cf . nossa intr odu<;:ao,p.64.
significante deter mina o s sujeitos em seus atos, seu d estino, suas
recusas, suas cegueiras, seu sucesso e sua sorte, nao obstante
seus dons inatos e sua posis:ao social, sem levar em conta 0
carMer ou 0 sexo, e q ue por bem ou pOl'mal seguini 0 rumo d .o
s!~itJ..G.a pte,como armas e bagagens, tudo aquilo que e da ordem
do dado pSi<;.JloJico. .0:. .~ II
·1R cLo J>J~ G »-t~ t - " " ~
Eis-nos aqui, de fato, no~amente n N encruzilhada em que havfa-
mos d eixado nosso drama e sua ronda com a q uestao da maneir a
como os sujeitos se revezam. Nosso apologo serve para mos trar
que sao a car taJletra e seu de:;vio q ue r egem suas entradas e seus papeis. Nao sendo ela reclamad a [en souffrance] , eles e que iraQ
padecer . Ao passarem sob sua sombra, tomam-se seu reflexo.
Ao entrarem de posse d a cartaJletra - adminivel ambigtiidade
da linguagem26 -, e 0 sentido dela que os possui.
Isso e 0 que nos mostra 0 heroi do drama que aqui nos e
contado, quando se repete a propria situas:ao que sua audacia
tr amou pela primeira vez para seu triunfo. Se agora ele sucumbe
a esta, e pOl' haver passado para 0 segundo local da trfade de
que inicialmente fora 0 terceiro, ao mesmo tempo que 0 larapi027
- em virtude do o b jeto de seu rapto. Pois se, agora ·como antes, trata-se de pr oteger a carta dos
olhar e s, q ue outra safda Ihe resta senao empregar 0 mesmo
metodo q ue ele proprio desarticulou, 0 de deixa-Ia a descoberto? E e Ifcito d uvidarmos de que ele sai ba assim 0 que esta fazendo,
quando logo 0 vemos capturado numa relas:ao dual em que
encontramos todos os tras:os d o engodo mimetico ou d o animal
que se faz de morto, apanhado na ar madilha da situas:ao tipica- [3lj
mente imaginaria: pOl'vel' q ue nao e visto, d esconhecer a situas:ao
real em que ele e v isto nao vendo. E 0que e q ue ele nao ve?
Justamente a situas:ao simbolica que ele mesmo soubera ver tao
ber n, e onde eis q ue agora e visto vendo-se nao ser visto.
o ·ministro age como urn homem que sa be q ue a busca da
polfcia e s ua defesa, porquanto nos d izem que e de proposito
26. A ambigUidade e aind a maior no f r ances (lomber en possession), onde se
"cai em posse" d a car ta. (N.E.)
27. A constr wr ao alud e 11 expressao un lroisieme larr on, de La Fontaine,
d esignativa da pessoa q ue tir a proveito d o conf lito entre outr as duas. (N.E.)
1 /1 1 1 1 I I' III, deixa 0 campo livre com suas ausencias: e tam pouco II lIlli/Ieee q u