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LOGOS, ETHOS E PATHOS NO ELOGIO DE HELENA: RELAÇÕESENTRE A SOFÍSTICA E A ANÁLISE DO DISCURSO
Melliandro Mendes Galinari1
NAD/FALE/UFMGFAPEMIG
RESUMO
O OBJETIVO DO PRESENTE ARTIGO É REALIZAR UMA REFLEXÃO SOBRE O TEXTO SOFÍSTICO DE
GÓRGIAS DE LEONTINI, INTITULADO E LOGIO DE H ELENA, COM O INTUITO DE CONSTRUIR
ALGUMAS IMPLICAÇÕES TEÓRICAS ÚTEIS À ANÁLISE DO DISCURSO CONTEMPORÂNEA, NAQUILO
QUE CONCERNE OS SEUS ESTUDOS SOBRE A ARGUMENTAÇÃO. O TRABALHO PARTE DO
PRESSUPOSTO DO GRANDE VALOR FILOSÓFICO E EDUCATIVO PRESENTE NAS ATIVIDADES DOS
SOFISTAS EM AÇÃO NA ATENAS DO SÉCULO V A.C., NA CHAMADA ERA DEMOCRÁTICA DEPÉRICLES.
PALAVRAS-CHAVE
ANÁLISE DO DISCURSO, ARGUMENTAÇÃO, SOFÍSTICA, GÓRGIAS, ELOGIO DE HELENA
INTRODUÇÃO
Hoje, com base numa diversidade de pesquisas, pode-se partir tranquilamente do
pressuposto de que os sofistas – Protágoras de Abdera, Górgias de Leontini, Pródico de Ceos,
Trasímaco da Calcedônia e tantos outros –, em atividade na Atenas democrática de Péricles
(século V a. C.), não eram “impostores”, “mercenários” e/ou “vendedores de sabedoria
aparente”, como nos tem ensinado o persistente preconceito platônico-aristotélico e a
recorrente carga semântica (negativa) de palavras como “sofisma” ou mesmo “sofística”2.
1 Doutor em Letras/Lingüística pela FALE/UFMG, com realização de Pós-Doutorado na Università degli Studi
di Padova – UNIPD (cidade de Pádua/Itália), onde desenvolveu a pesquisa intitulada “Lingüística Italiana,Retórica e Argumentação”. Atualmente usufrui de uma bolsa pós-doutoral da FAPEMIG, noPOSLIN/FALE/UFMG, onde dá continuidade à pesquisa sobre Retórica e Argumentação no campo da Análisedo Discurso.2 São vários os trabalhos e estudos contemporâneos que resgatam o valor filosófico e educativo dos sofistas,livrando-os do preconceito platônico-aristotélico que os consagrou como enganadores, mercenários ou sujeitosque do conhecimento detinham apenas a aparência. Como exemplo, podemos citar: Untersteiner (2008), Vignali(2006), Pinto (2000), Romilly (1988), Romeyer Dherbey (1985) e Saitta (1938), dentre outros. Como se sabe, oconhecimento produzido pelos sofistas desapareceu quase que totalmente. O que nos restam são apenas algunsfragmentos e, principalmente, testemunhos, como os de Diógenes Laércio, Sexto Empírico, Platão e Aristóteles
(inclusive) e tantos outros que citam e discutem as questões colocadas pelos sofistas. Felizmente hoje contamoscom autores que reuniram em uma só obra tais fragmentos e testemunhos antigos a partir do grego e do latim. Os
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Filhos do próprio tempo, engendrados por circunstâncias histórias e políticas bem
particulares, esses pensadores, filósofos, educadores e hábeis oradores preencheram uma
lacuna importante no mundo antigo: preparar os cidadãos para o exercício ativo da vida
pública (pelo menos aqueles aptos a pagar pelas lições de oratória), para a resolução deproblemas comuns através do discurso e da controvérsia, para a defesa e para a acusação,
exigências da própria democracia ateniense, além de terem eles próprios – os sofistas –
tomado partido em várias questões, seja de caráter político, seja de caráter teórico-
especulativo ou ético-filosófico. Segundo Vignali (2006), os ensinamentos sofísticos giravam
em torno de quatro disciplinas complementares: Gramática, Dialética, Retórica e Cultura
Geral e, com base em Romeyer Dherbey (1985), podemos dizer que eles inauguraram, de
certa forma, o estatuto do intelectual moderno, que (sobre)vive de seu próprio fazer-intelectual, enquanto professores itinerantes que foram.
Neste artigo, porém, pretende-se apenas fazer uma rápida leitura da obra Elogio de
Helena, de Górgias, ressaltando como tal texto aborda a questão da persuasão e das próvas
retóricas (logos, ethos e pathos), contendo elementos teóricos de interesse para a Análise do
Discurso (AD), mesmo se indiretamente. Sabe-se, hoje, que o texto de Górgias, um dos
poucos textos sofísticos que chegaram até nós na íntegra, é baseado no conhecido mito
homérico sobre a origem da Guerra de Tróia, no qual a bela Helena, casada com o Rei de
Esparta, Menelau, teria fugido com Paris para Tróia (ou teria sido raptada). O evento bélico
teria começado então com a invasão ou o ataque dos gregos a Tróia, com o intuito de
recuperar Helena e vingar o “traído” Menelau, embate que teria durado anos e anos. O texto
de Górgias, o Elogio de Helena, um verdadeiro encômio de caráter epidíctico, parte do
pressuposto da existência de uma condenação generalizada à Helena, presente na doxa ou no
senso comum grego, mesmo séculos depois das narrativas de Homero ou da referida Guerra.
Desde o início, Górgias busca isentar Helena da culpa de ter ocasionado o incidente
bélico e, por conseguinte, da má fama de traidora dos gregos. Evidentemente, tratar-se-ia de
uma empresa oratória árdua, visto que se argumenta contra uma crença, o que se configura
num verdadeiro desafio para o hábil orador. Especula-se aqui e ali que esse texto sofístico
teria sido apenas um modelo de discurso e/ou um exemplo de boa oratória, construído por
primeiros foram Diels e Kranz que os traduziram para o alemão, na obra Die Fragmente der Vorsokratiker .Algum tempo depois o italiano Untersteiner (1967) fez o mesmo em seu idioma, porém com uma edição maiscompleta e aperfeiçoada ( I Sofisti: testimonianze e framenti), certamente a mais completa até a escrita deste
texto. Sousa e Pinto (2005), por sua vez, realizaram uma versão em português a partir dos trabalhos anteriores, aqual estou utilizando neste artigo por questões de comodidade.
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Górgias para ilustrar os seus ensinamentos durante as suas atividades didáticas, e que, por
isso, não foi um texto usado efetivamente na esfera cidadã. A escolha de Helena como tema
teria sido feita em função dessa personagem, ou melhor, da sua defesa, se configurar numa
empreitada retórica difícil, em função da sua (suposta) condenação no mencionado sensocomum. Num caso ou noutro, nos interessam aqui as reflexões teóricas decorrentes da leitura
dessa obra. A seguir, abordo, então, o Elogio de Helena, seguindo o passo-a-passo da
argumentação gorgiana.
HELENA ABSOLVIDA
Górgias esclarece, no início de seu discurso, a grande finalidade de sua empreitadaretórica, a saber, inocentar Helena das graves acusações a ela correntemente direcionadas:
importa refutar os detractores de Helena, mulher a respeito da qual se tornouuníssono e unânime quer o testemunho dos poetas que falaram das coisasque ouviram quer a fama do seu nome, que se tornou um símbolo decalamidades. Portanto, eu quero, desenvolvendo o discurso segundo umcerto raciocínio, libertá-la da acusação que a difamou e, ao demonstrar queos detractores mentem e ao mostrar a verdade, pôr termo à ignorância.(GÓRGIAS, Elogio de Helena apud SOUSA e PINTO, 2005:127-128)
Nos termos da AD, Górgias evoca um ethos prévio ou uma imagem negativa de
Helena, presente na doxa grega sob a forma de saberes partilhados, evidenciando a má
reputação da personagem em questão, que o discurso atual – o Elogio de Helena – pretende
desfazer, instaurando um ethos discursivo que não apenas se contrapõe ao mencionado ethos
prévio, mas que, sobretudo, busca substitui-lo por algo considerado como a verdade. Um
rápido parêntese se faz aqui necessário. Refletindo sobre o Elogio, percebe-se que faço
referências ao ethos de Helena, e não ao ethos de Górgias enquanto a instância de produçãodo discurso (o que seria perfeitamente possível ou até mesmo o mais esperado). Isso, no
campo teórico, nos permite falar também da possibilidade de se construir análises discursivas
destinadas a elucidar os “ethè de outrem”, o que estenderia o ethos não apenas às imagens de
si das instâncias de produção dos discursos abordados, mas também às imagens de seres ou
instituições tematizados por esses mesmos discursos. É o que acontece no Elogio de Helena e,
em geral, em discursos de caráter epidíctico, que têm por objetivo o elogio ou a censura (de
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outrem)3. Não é por acaso que, tempos depois, Aristóteles reconheceu essa possibilidade
teórica do ethos – o que chamo aqui de “ethos de outrem” –, ao iniciar seus ditos sobre o
referido gênero epidíctico:
(...) falemos da virtude e do vício, do belo e do vergonhoso; pois estes são osobjectivos de quem elogia ou censura. Com efeito, sucederá que, ao mesmotempo que falarmos destas questões, estaremos também a mostrar aquelesmeios pelos quais nós deveremos ser considerados como pessoas de umcerto carácter. Esta era a segunda prova [ou seja, o ethos]; pois é pelosmesmos meios que poderemos inspirar confiança em nós próprios e nosoutros no que respeita à virtude. (ARISTÓTELES, 1998:75) (grifo meu)
Voltando, então, ao processo argumentativo destinado a inocentar e promover Helena,
convém dizer que Górgias começa por evocar no interior de seu Elogio aquilo que no mundo
grego antigo, principalmente na mentalidade oligárquica que precedera a era democrática de
Péricles, era dado como indício de nobreza, a saber, uma nobreza de sangue que refletia em si
uma descendência divina, fonte de poder e beleza:
não é desconhecido nem para alguns que, pela natureza e pela estirpe, amulher que é o objecto deste discurso sobressaiu entre os primeiros homense as primeiras mulheres. Com efeito, é sabido que sua mãe foi Leda e seu pai
um deus, Zeus (...). Nascida de tais pais, herdou uma beleza divina querecebeu e não deixou ficar escondida. Ela despertou, em muitos, muitaspaixões; com um só corpo, atraiu inúmeros corpos de homens quealimentavam grandes idéias de grandes feitos. (GÓRGIAS, Elogio de Helena
apud SOUSA e PINTO, 2005:128)
Essa era Helena: filha do Senhor do Universo e de uma nobre mortal, o que a
colocava, antes de qualquer coisa, como alguém oriunda de um lugar cósmico sublime, por
um lado, e de uma esfera social de muito prestígio, por outro4. Estamos, aqui, diante de uma
dimensão do ethos comum em sociedades aristocráticas e, por que não, presente também emnossa civilização atual, onde as pessoas se distinguem e são discriminadas socialmente por
“títulos de nobreza”, como diplomas acadêmicos (“curso superior”), apadrinhamentos,
filiações ou ligações com instituições e pessoas, além de outras honrarias simbólicas. Sendo
3 Tais discursos construíram a fama de Górgias no mundo antigo como notável orador, que misturava comperfeição elementos poéticos na estrutura de seus textos destinados à apreciação pública. Górgias teria, portanto,transportado a estilística epidíctica para o campo da política.4
Leda, na mitologia grega, era a rainha de Esparta. Leda fora seduzida por Zeus, quando este, para atraí-la, setransformou num cisne imenso e de bela plumagem, união da qual nascera a bela Helena.
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assim, com o terreno preparado, ou seja, deixando inicialmente claro que não estamos diante
de uma pessoa qualquer, Górgias se propõe a expor “(...) as causas pelas quais se tornou
verossímil a viagem de Helena para Tróia”. (GÓRGIAS, Elogio de Helena apud SOUSA e
PINTO, 2005:128) Na argumentação do sofista, Helena só poderia ter feito o que fez porquatro razões possíveis, todas examinadas criteriosamente por ele: (i) ou por imposição do
Destino (vontade dos Deuses/Necessidade Divina), (ii) ou por arrebatamento (levada à força
para Tróia), (iii) ou pela persuasão, ou seja, pela força do discurso ( logos), (iv) ou subjugada
pelo Amor. Em qualquer um dos casos, para Górgias, ela será inocente, pois teria se tornado
vítima de processos externos à sua pessoa. Vejamos, daqui em diante, uma a uma essas 4
possíveis causas do ato de Helena. Quando pertinente, ressaltarei algumas implicações
teóricas para a AD presentes na argumentação de Górgias.(i) Se o ato de Helena foi obra do Destino ou fruto da Vontade Divina: obviamente a
bela Helena aqui não seria culpada, pois “(...) é impossível deter a providência divina com a
previdência humana”. (GÓRGIAS, Elogio de Helena apud SOUSA e PINTO, 2005:129)
Sendo os Deuses ou o Destino mais fortes, o que pode o mais fraco senão seguir o que foi
traçado? Sendo assim, “se se deve atribuir a culpa ao Destino ou a um deus, deve libertar-se
Helena da ignomínia”. (GÓRGIAS, Elogio de Helena apud SOUSA e PINTO, 2005:129) Não
tendo essa primeira causa nenhuma implicação teórica substancial para a AD, passemos à
segunda.
(ii) Se Helena foi levada à força ou raptada: nesse caso, também fica óbvio o
verdadeiro motivo do deslocamento de Helena para Tróia, sem que a mesma tenha qualquer
culpa ou possa ter agido de má fé: sendo ultrajada pela força bruta, nada mais seria, a pobre
Helena, que vítima de uma injustiça, prova fatal de um doloroso infortúnio. Para Górgias,
o bárbaro que levou a cabo um empreendimento bárbaro merece ser
responsabilizado pelo discurso, pela lei e pela acção: pelo discurso, merece aacusação; pela lei, o ostracismo; pela acção, o castigo. Mas a que foi violentada earrancada à pátria e privada dos amigos não deveria ser mais lamentada do quedifamada? De facto, ele fez coisas terríveis e ela sofreu-as. É justo compadecermo-nos dela e detestá-lo a ele. (GÓRGIAS, Elogio de Helena apud SOUSA e PINTO,2005:129)
Nota-se, aqui, uma restauração do ethos de Helena, posta como refém das
circunstâncias. É interessante também perceber que, ao colocar Helena como vítima ou
paciente de uma ação violenta, com resultados dolorosos e privações terríveis para a mesma,
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configura-se através do discurso (ou logos) uma argumentação pelo pathos, artifício retórico
que busca desencadear emoções ou afetos no auditório, levado, aqui, a sentir uma “justa”
piedade e/ou um “justo” compadecimento. Obviamente, tratar-se-ia de um fazer-sentir
intimamente ligado (ou destinado) a um fazer-crer, a saber, na suposta inocência de Helena.Em termos teóricos, é oportuno ressaltar também a ligação de tudo isso com a questão da
interdependência das provas retóricas, desenvolvida por pesquisadores atuais da AD5. No
trecho acima, um único logos ou discurso constrói, ao mesmo tempo, o ethos vitimizado de
Helena e um potencial pathos, em função das emoções possíveis a serem deflagradas nos
interlocutores, tais como a piedade. Noutras palavras, pode-se dizer que tal ethos vitimizado
se desdobra, num segundo momento de leitura, em um pathos (mas sem deixar de ser ethos!),
o que atesta também a ligação visceral entre logos, ethos e pathos, categorias cada vez maisvistas como solidárias. Dito isso, podemos passar a terceira razão possível da ida de Helena
para Tróia.
(iii) Se Helena foi persuadida e enganada pelo discurso: essa causa representa para nós
um interessante ganho teórico em relação ao logos enquanto prova retórica, ou em relação à
própria dimensão argumentativa do discurso em geral. Segundo Górgias (GÓRGIAS, Elogio
de Helena apud SOUSA e PINTO, 2005:129), se foi o discurso que seduziu Helena, levando-
a a agir do modo que agiu, não será difícil libertá-la das infames acusações, e, nesse
momento, para corroborar a sua tese, o sofista constrói interessantes definições para o logos,
dando a este elemento um grande poder de ação sobre os indivíduos (retomo apenas alguns
dos fragmentos presentes no texto de Górgias):
o discurso [logos] é um tirano poderoso que, com um corpo microscópico einvisível, executa acções divinas. Consegue suprimir o medo e pôr termo àdor e despertar a alegria e intensificar a paixão. (...) Os encantamentosinspirados pelas palavras levam ao prazer e libertam da dor. Na verdade, a
força do encantamento, misturando-se com a opinião da alma, sedu-la,persuade-a e transforma-a por feitiçaria. (...) A força do discurso em relaçãoà disposição da alma é comparável às prescrições dos medicamentos emrelação à natureza dos corpos. Assim como os diferentes medicamentosexpulsam do corpo os diferentes humores e uns põem termo à doença eoutros à vida, assim também de entre os discursos uns entristecem e outrosalegram, uns amedrontam e outros incutem coragem nos ouvintes, outros háque envenenam e enfeitiçam a alma com uma persuasão perniciosa.(GÓRGIAS, Elogio de Helena apud SOUSA e PINTO, 2005:127-133)
5 Sobre a inter-relação das provas retóricas na instauração da adesão, ver Galinari (2007b) e Menezes (2007).
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É devido à força avassaladora e mágica do discurso que seria condenável, então, na
retórica gorgiana, a “difamação” de Helena, sem contar que ela pode também ter sido
aconselhada pela opinião ou pela doxa, diante de um discurso mal intencionado, admitindo-se
que “(...) a maior parte dos homens, sobre a maior parte dos assuntos, oferece à alma aopinião como conselheira. Todavia, a opinião, que é vacilante e insegura, lança em situações
vacilantes e inseguras os que dela fazem uso”. (GÓRGIAS, Elogio de Helena apud SOUSA e
PINTO, 2005:130). Note-se, portanto, que as disposições da alma – ou a subjetividade
humana, pode-se dizer – e a sua relação com a doxa influem nitidamente na adesão (ou não)
de um auditório a um determinado discurso. No caso presente, Helena poderia, como a maior
parte dos homens, ter se apoiado numa (má) opinião, que teria favorecido o discurso
persuasor.Voltando ao poder do discurso, descrito acima por Górgias, é interessante ressaltar
ainda que o logos sofístico nos permite ter uma visão mais real ou completa dessa prova
retórica, no que diz respeito à argumentação e seus efeitos possíveis, indo além de uma
perspectiva estritamente racional, baseada numa releitura provavelmente errônea, mas
corrente, da retórica aristotélica e do logos ali presente. Muitas vezes, hoje, a argumentação é
teoricamente valorizada como uma atividade de influência capaz de desencadear um processo
de adesão estritamente cognitivo, “mental”, no sentido de influenciar seus interlocutores em
termos de “teses” sobre o mundo. Não por acaso, somos comumente confrontados a
estruturações do tipo: (i) A → C (ou A → T), que esquematizam a passagem de um
argumento a uma conclusão ou tese, e (ii) E1 → E2, que esquematiza a passagem de um
enunciado 1, com valor de argumento, a um enunciado 2, com valor conclusivo, de acordo
com fórmulas presentes em Toulmin (1958), Anscombre & Ducrot (1983), Charaudeau
(1992) e Plantin (1996).
Essa redução teórica da adesão a resultados meramente intelectuais parece ter origem
na concepção estritamente racional do logos, proveniente de uma releitura limitada de
Aristóteles. Assim, tal prova retórica – o logos – seria sinônimo de demonstração (verdadeira
ou aparente), sendo tais demonstrações portadoras de conclusões ou teses, seja pelo método
da dedução entimemática, que encontra a sua forma plena no silogismo dialético, seja pelo
artifício do exemplo, que se constrói com a técnica da indução. Sabemos, contudo, que
Aristóteles leva em consideração também o pathos e as paixões dirigidas ao auditório e, ao
teorizar sobre a oratória judicial e deliberativa, deixa a entender que o discurso retórico (ou
logos) pode se dirigir a ações, ao fazer-deliberar, ao fazer-julgar. Tenho defendido a posição
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(GALINARI, 2007a e 2007b) de que precisamos ter em mente uma concepção mais ampla da
argumentação e de seus efeitos (possíveis) num eventual auditório, antes de partirmos para as
análises de corpus propriamente ditas. E, para tanto, devemos considerar teoricamente, como
integrantes legítimas da adesão, não apenas teses sobre o mundo, mas também ações (oucomportamentos) e emoções (ou sentimentos/afetos)6.
Acredito, enfim, que discursos políticos, publicitários e tantos outros possuem como
meta retórica principal a instituição destas duas últimas modalidades da adesão (ações e
emoções), tais como “fazer-votar”, “fazer-comprar/consumir”, “fazer-rir”, “fazer-amedrontar”
etc., o que não exclui evidentemente um “fazer-crer em algo” como meio intermediário para a
adesão dominante (por exemplo, fazer-crer para fazer-sentir ou fazer-crer para fazer-fazer).
Gostaria de salientar que reflexões dessa natureza encontram apoio nos fragmentos das obrassofísticas que chegaram até nós: não apenas nas obras de Górgias, assunto específico deste
artigo, mas também nos fragmentos e testemunhos de outros sofistas (como Protágoras), os
quais foram, infelizmente, esquecidos pela Análise do Discurso em função de um
“aristotelicocentrismo” e de um “platonismo” teóricos.
Voltando mais uma vez à última citação de Górgias, pode-se dizer, enfim, que o logos
sofístico, para (re)agir, depende do interlocutor, mistura-se com as suas opiniões atingindo a
sua subjetividade, seus valores e imaginários; além de tudo, é comparável à magia, à feitiçaria
e ao poder dos fármacos, tendo conseqüências múltiplas no plano da adesão. O logos,
portanto, além de transmitir pensamentos (teses), pode também levar o outro a agir , como
teria agido Helena ao acompanhar um bárbaro para Tróia, e pode também suscitar nesse outro
alegria, medo, coragem, em suma, emoções. Temos, aqui, uma definição mais ampla para o
logos grego, ou pelo menos uma visão a mais, que não se reduz a uma perspectiva
estritamente racional e de instituição intelectual de teses sobre o mundo. Restaria à AD
aproveitar tais reflexões e ajusta-las às suas práticas de análise. Passemos à quarta e última
causa da conduta de Helena.
6 Procurei, em Galinari (2007a e 2007b), expandir as fórmulas usuais que buscam definir a argumentação,inserindo e considerando teoricamente, no campo da adesão, as ações e as emoções. Assim, cunhei o seguinteesquema: “ARG (logos, ethos e pathos) →→→→ TAE”, onde, à direita da seta, temos as variáveis da intensidade deadesão (teses, ações e emoções) visadas por um discurso persuasivo e, à esquerda, os seus elementosdeflagradores (os argumentos ou provas retóricas). Inserir teoricamente as ações e emoções no campo dasadesões possíveis seria, pois, uma forma de perguntarmos aos nossos corpora: o que queres (ou podes) tuocasionar em função de teu contexto de circulação, das características psicológicas e sociais dos sujeitos sociaisque colocas em interação? Queres tu apenas fazer-crer em algo (uma tese)? Levar alguém a agir ou a se
comportar de tal modo? A sentir algo? Um pouco de tudo isso? Trata-se, enfim, de uma “malícia teórica” quedeveríamos ter antes de começarmos o nosso trabalho de análise argumentativa.
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(iv) Se Helena foi movida pelo Amor: não se pode ficar surpreso diante do ato de
Helena, se o Amor apoderou-se do seu frágil ser. O Amor era visto como um Deus, ou algo
com um poder tal que tornariam vãs as vontades individuais: “se o amor, sendo um deus [tem]
a força divina dos deuses, como poderia um ser inferior repeli-lo e resistir-lhe? E, se é umadoença humana e uma ignorância da alma, não é de censurar como culpa, mas de considerar
como uma desventura”. (GÓRGIAS, Elogio de Helena apud SOUSA e PINTO, 2005:132)
Górgias salienta ainda a ligação do Amor com a vista, ou seja, com as impressões sensoriais
que temos no instante de um contato visual com seres ou objetos (no caso, um contato visual
de Helena com o bárbaro), impressões muitas vezes perigosas, pois podem omitir os aspectos
negativos do que se apresenta diante de nós e, assim, enganar o olhar. Segundo o sofista,
“através da vista, a alma é moldada até no seu caráter íntimo”. (GÓRGIAS, Elogio de Helenaapud SOUSA e PINTO, 2005:131)
Poderíamos fazer um paralelismo aqui com uma conhecida máxima do sofista
Protágoras, a saber, que o “homem é a medida de todas as coisas”, de acordo com vários
testemunhos presentes em Sousa e Pinto (2005). Segundo um deles, de Platão (apud SOUSA
e PINTO, 2005:70), Protágoras sustentava que “(...) o homem é a medida de todas as coisas,
tal como as coisas me parecem ser, assim elas são para mim; tal como elas te parecem a ti,
assim elas são para ti”. É provavelmente nessa perspetiva que o bárbaro teria, na
argumentação de Górgias, parecido a Helena algo belo e digno de amor, quando, na verdade,
não o era. Mais uma vez nota-se a subjetividade humana, embora com outras terminologias,
que é capaz de avaliar, por comportar valores, representações e desejos, os objetos e seres a
ela apresentados (inclusive discursos [logoi]). Tudo isso conduz novamente a nossa atenção
para a grande importância e consideração teórica do auditório, assim como dos componentes
de sua “alma”, para uma eficaz especulação dos efeitos possíveis dos discursos sociais.
Enfim, examinadas as 4 razões possíveis da ida de Helena para Tróia, e ressaltadas algumas
possíveis implicações teóricas, passarei às considerações finais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De modo geral, procurei sustentar a tese de que a Sofística e seus expoentes contém
elementos teóricos interessantes para a Análise do Discurso e a sua abordagem argumentativa,
e que tais elementos não têm sido infelizmente aproveitados por nós, que muitas vezes
reproduzimos o preconceito platônico-aristotélico comumente direcionado àqueles
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pensadores. A Sofística é alvo de muitas confusões e interpretações equivocadas, devido,
muitas vezes, ao fato de o pesquisador em AD não ter ainda tomado conhecimento da vasta
bibliografia dedicada ao assunto, oriunda da Filosofia e outras áreas. De modo particular,
procurei, enfim, mostrar a mencionada utilidade da Sofística através de algumas implicaçõesteóricas decorrentes da obra o Elogio de Helena, de Górgias. No entanto, ainda restam muitos
pontos a serem resgatados, não apenas no restante dos fragmentos e testemunhos de Górgias,
mas também nos escritos de Protágoras e outros, sem esquecermos-nos dos trabalhos atuais
que discutem as questões colocadas por aqueles antigos mestres de oratória, filósofos e
educadores da democracia ateniense.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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UNTERSTAINER, Mario. Sofisti: Testimonianze e Frammenti, Firenze, La Nuova Italia,1967.
VIGNALI, Daniele. I Sofisti: Retori, Filosofi ed Educatori, Roma, Armando Editore, 2006.