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Kurhula - Crónicas da Cidade de Maputo
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Kurhula - Crónicas da Cidade de Maputo
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Kurhula
Crónicas da Cidade de Maputo
Hosten Yassine Ali
Kurhula - Crónicas da Cidade de Maputo
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" A vida é assim mesmo como ela própria se mostra ao mundo, mas,
as pessoas têm a mania de ver a vida da forma como elas querem.
Umas apenas olham-na…
Outras fingem que a vivem…
Não obstante, existe um grupo muito coeso de pessoas que nem
pensam na vida, ignoram-na, tirando dela o valor.”
Kurhula (paz/desabafo) aborda trechos da vida em estâncias
diferentes e para cada uma delas atribui uma lógica que justifica o
porquê de a respeitar. Ensina as boas e corrigi as menos boas
práticas do dia-a-dia do povo moçambicano de uma forma
bastante irónica.
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Dedicatória
Podia ser um pouco mais atrevido, e dedicar esta obra as pessoas que me
encorajaram a publicar os meus trabalhos, mas, prefiro endereçar esta
oportunidade ao povo moçambicano e sobretudo aos jovens escritores ocultos que
vagueiam pelo mundo fora em busca de oportunidades.
A minha mãe Páscoa Domingos pelo companheirismo e exemplo prestado
durante estes anos todos.
Khanimambo
(Obrigado)
Hosten Yassine Ali
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© Bubok Publishing S.L., 2012
1ª edición
Impresso em Portugal
Impresso por Bubok Publishing
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Índice
Que horas são em Maputo? ................................................................. 9
Está calado Homem .............................................................................. 16
O puto lá do prédio ............................................................................... 18
A minha favorita está na rede .......................................................... 22
Igwane e Nweti ...................................................................................... 32
O café da esquina .................................................................................. 40
O grande desabafo ................................................................................ 44
Obsess~o? N~o! É amor… ................................................................... 50
As combinações do amor ................................................................... 56
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Que horas são em Maputo?
São 18 horas em Maputo. Ninguém sabe quem grita mais, as vozes ou as
buzinas? É hora da ponta e toda gente sai daqui para acolá. Ninguém para
senão o polícia de trânsito que desesperadamente analisa o semáforo. Olha a
primeira, olha a segunda vez, na terceira culpa o Governo “por isso ninguém
nos valoriza mais, todos mandamos na estrada!”.
Chegado o final de mais uma jornada de trabalho, a guerra é grande e o
campo de batalha maior ainda. Temos combatentes de todas idades, raças e
origens. Toda gente gosta da cidade, toda gente admira a cidade. Não porque
esta seja bela ou por ainda manter as acácias, mas há emprego na cidade, e
todos querem trabalhar.
São 18h10min em Maputo. Ninguém sabe o que fazer. Todos querem
chegar a casa, mas têm a dúvida se vão de carro ou a pé? Se vamos do
“FordMinenguê1” encontram engarrafamento no KFC; se for de “FORD” n~o
saio da Avenida Eduardo Mondlane. Mas que raio de vida! Maputo é para
quem pode, n~o é para quem quer. Sorte tua que apanhaste um “chapa”2. Há
quem não conhece nem cobrador, nem motorista, conhece alcatrão.
São 18h20min em Maputo. O semáforo abre e o polícia comporta-se
como se este tivesse a vermelho, apita. Ordena que a fila que desce da
Avenida Guerra Popular mantenha-se parada, emite um sinal verde para
Avenida 24 de Julho. Ninguém reclama, toda gente obedece e o transito
fecha-se co “Ponto Final (KFC)” e o autocarro dos Transportes Públicos de
1 Adaptação: Ford marca de viatura Minenguê – Pés na língua local (Maputo) 2 Transporte Semicolectivo de Passageiro
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Maputo –TPM com destino ao bairro da Liberdade que pretende cruzar a
Avenida Guerra Popular fica limitado a manobra. Está tudo congestionado.
Atrás deste TPM está o camião de mercadorias da METALEX que pretende
descarregar na esquina. Este buzina a primeira vez, buzina a segunda e logo
se cansa. Em plena avenida inicia-se o descarregamento do material da
METALEX enquanto aguardar-se a abertura do trânsito. Ninguém nota as
alterações dos semáforos. Está toda gente a espera, tanto no cruzamento do
KFC, na 24 de Julho e curiosamente nas bombas da “Ronil”.
São 18h30min em Maputo. Houve uma chamada de pedido de
intervenção do Corpo de Salvação Pública, mas o trânsito está parado. O
bombeiro liga sirene, toda gente finge surdez e mudez. Desde homem de
“fato-macaco” que leva na m~o o machadinho, o capacete e uma válvula de
mangueira da viatura que está prestes a iniciar a marcha de urgência. Este
dirige-se ao veiculo ligeiro de passageiro que os bloqueia, bate no vidro
fortemente quase que o parte e questiona “ n~o ouves a sirene?”. O vidro é
automático e baixa suavemente, vê-se no interior da viatura garrafas de
“Hunters dry” e ”Laurentina Premium”. O bombeiro assusta-se, o homem
que conduz o veículo é o mesmo que sempre visita o Diretor Nacional do
Corpo. O bombeiro no desespero retifica a questão “ o chefe pode entrar e
estacionar aqui dentro para podermos sair? É que a 10min que queremos
sair!”; é uma prece muito grande, mas n~o h| problema, seja onde for o fogo
que aguarde porque há trânsito em Maputo.
São 18h40 min em Maputo e toda gente circula, todos os caminhos estão
livres. Nos cruzamentos da cidade de Maputo, já mandam os semáforos.
Estas estruturas que não se exaltam, vão fazendo o habitual jogo de
prioridades: ora verde, ora vermelho, o intermitente (amarelo) está
avariado. Alguém vem tentando o reparar há 8 meses. O custo é enorme e
sequer sobra dinheiro para tal reparação. Os polícias de trânsito que por cá
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andavam estão todos a discutir com os semáforos em frente ao Estado Maior
General das Forças Armadas. Vai sair o General e vai passar a comitiva da
Assembleia da República, mobilizaram-se três forças para o local. Estão
próximo as bombas da BP, os “camaradas chefes” (Policia da Republica de
Moçambique), est~o próximos do “Bar Titanic” os polícias de tr}nsito, e na
zona mais privilegiada, digo, nas proximidades do quartel está a Policia
Militar. Toda gente despreza a política dos semáforos.
São 18h35min. Maputo Parou! Nada se move no 24 de Julho, exceto a
comitiva da AR que se desloca as pressas em direção a Polana. Estão todos
atrasados, as sirenes das motos tocam e as pessoas assustam-se, toda gente
procura fugir da faixa. Alguém deve subir o passeio! Onde andara o peão?
Que se lixe, porque não compra um VITZ? Mas desta vez está tudo
complicado, o General está a sair a hora em que a comitiva passa. Quem terá
prioridade? A polícia Militar para o trânsito nos dois sentidos. A escolta da
AR alerta a necessidade de urgência de procedimentos, a chefe da comitiva
chateia-se porque está quase na hora do jantar no Pestana Rovuma Hotel.
Está que baixa o vidro e coincidentemente avista o Chefe Militar. O trânsito
para por um tempinho, agora sim! Ninguém mais se move, nem o peão
porque poderá incorrer ao crime de aproximação excessiva e ameaça a
comitiva do Estado, nem os TPM porque pela hierarquia são os
trabalhadores mais inferiores da estrutura do Estado, nem o chapeiro
porque não pode dar nas vistas, não tem licença nem inspeção.
Parou tudo. O governo saúda-se, mandam-se cumprimentos rapidinhos e
agora não há mais dúvida: Primeiro as damas! Avança a comitiva e a seguir o
“HardBody 4X4”. Quem n~o dormiu foi o motorista da ambul}ncia que vem
do Hospital Geral José Macamo que aproveitou da fraqueza do cidadão e
meteu-se logo a seguir a comitiva. O último agente da viatura da polícia
vendo a ambulância ordena o “silêncio”, a ambul}ncia obedece.
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Mas para o azar desta fecha o semáforo da Guerra Popular e mais uma vez a
comitiva avança e o veículo em verdadeira marcha de emergência entala-se.
Aguarda o vermelho. Desesperada, a condutora da ambulância reativa a
sirene. N~o resulta! Liga os megafones do veículo e implora: “estamos com
um paciente em estado grave, por favor abram o caminho”, mas dois ou três
veículos apenas a ouvem. Esta repete em dialeto local “Hini mhunu cola, hi
kombela ndela”. Um milagre acontece, do nada, a polícia municipal surge no
local; é um alívio. A marcha de emergência segue rumo ao Hospital Central
de Maputo. Não se sabe se realmente está alguém doente na ambulância ou
se é mais uma das manias do pessoal da saúde quando pouco falta para a
rendição do turno. Há muita dúvida em Maputo.
São 18h50min em Maputo. Todos os estudantes da zona da baixa
da cidade estão na paragem ENTREPOSTO, estes vão para os arredores da
cidade de Maputo e para Matola; as tarifas são bem claras. Da ENTREPOSTO
para BAIXA são 5Mt; da baixa para o destino 7.5Mt e não é obrigatório.
Quem não quiser fica a espera, pois, haverá sempre a alternativa: My love.
O “my love” n~o tem licença, mas que ajuda, ajuda! My love s~o os
pequenos camiões na maioria de origem nipónica que antigamente quando
Maputo estava bem, transportavam mercadoria. Agora, transportam
pessoas. Na bagageira os cidadãos apertam-se e sem querer abraçam-se uns
aos outros. Uns vêm das obras no porto de Maputo, outros vem da escola,
mas todos vão para casa e na maior harmonia, oscilam na inercia
provocatória do motorista; este motorista famoso na rota por “travar dê
repente”. Anda sempre na conversa com a passageira habitual e quando d|
por sim tem obstáculos a vista, não hesita e pisa o travão. O pessoal atras
aumenta a dependência e esta tudo a Romeu e Julieta, num íntimo e
dependente “love”. Passam uns quantos my loves, as raparigas da Matola os
ignoram. Na verdade o “fofo” esta sair do “job”. É mesmo fofo, tem carro, tem
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Samsung Galaxy SIII, tem casa e vive com o pai! Sim aquele jurista,
perguntam-se umas as outras “conheces? O pai do meu damo est| sempre
na Opini~o Pública…”. Umas ficam na conversa a espera da boleia do fofo.
Este que chega com a prima no carro e para não passar uma péssima
imagem a turminha, arranca com a lotação acima do normal. Toda gente
suporta o tr}nsito…
São 19h00min em Maputo. O puto que está a 1 hora na paragem fartou-
se. Para além de os ténis apertarem, está aflito, precisa aliviar a bexiga. Olha
para direita, olha para esquerda, ninguém o vê. Tranquilamente finge estar a
subir as calças do uniforme escolar. Estas que estão sempre abaixo das
nádegas. Tira a mangueira e começa a regar a acácia. Azar! Antes de
terminar ouve uma voz familiar que exalta “é lugar para mijar ai?”. Este se
assusta e com pressa recolhe a mangueira húmida. Molha as calças, mas o
cinzentinho j| l| estava. Este n~o escapa da multa, “S~o 50Mt”, pagos na
hora. Sem direito a reclamação, sem recibo, sem nada. O puto estressasse e
pede desconto mostrando os 20Mt que tem no bolso. Ambos confirmam o
valor, antes passando uma verificação para confirmar se são apenas 20Mt
ou “o puto quer me matrecar 30 paus?”. O outro puto do lado também est|
tremer, é acusado de não ajudar a manter a ordem pública e a higiene da
cidade, “vocês depois dizem que o governo n~o trabalha, deixa o teu amigo
mijar na árvore e não chama a polícia? Contribui-la aqui antes disto ficar
serio!”. Os putos hoje andaram com azar, se n~o conseguem boleia…v~o a pé.
São ainda 19horas na Cidade de Maputo e não é novidade. É sempre a
mesma coisa. O munícipe deverá optar por um dos piores caminhos para
chegar Chiquelene. Há rede bloco em todas vias. Como é possível que haja
tanta polícia nas estradas e o país continua com esta onda de sequestros?
Ninguém passa…na Acordos de Lusaka, pior ainda: bloquearam em frente ao
MICOA e hoje não apenas se exige inspeção. Pode-se guardar a carta, o
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livrete. A pergunta é difícil, “tem ou n~o tem inspeç~o?”. Quem tem passa
para o controlo a seguir, quem n~o tem “encosta ali”. Naquele lugar o
munícipe já conhece a regra, melhor é encostar a mão e encher o bolso do
polícia se n~o o jantar arrefece e conjugue começa a desconfiar “todos dias
cinzentinhos, és o único com carro no bairro?”.
São apenas 19h10min. Na praça dos trabalhadores o relógio dos CFM
indica 23h12min. Este facto que engana as trabalhadoras do período
noturno. Estas correm apressadamente para a zona do Luso.
Hoje, é sexta-feira e promete. Quem vem do “coconuts lounge” para ali,
quem vem da Avenida 10 de Novembro também para ali; só não para quem
não tem dinheiro! Naquele lugar não há beleza facial, só quem tem a curva
da felicidade é tratado com respeito. A tabela dos preços é bem clara como
as multas da polícia “50-Boca, 120- Outra parte ligeira, 180- Outra parte
pesada”, e têm mais, “tabela de desconto: 3 amigo- juntos 300MT – 3amigos
separado- 330MT”, e se seguem as categorias “ com carro, sem carro, de pé,
etc.”, mas n~o acabou, porque aqui vem o maior problema de Maputo e de
Moçambique, “com jeito (preservativo) – sem jeito”. Estranha vida de
Maputo! Tudo é possível…
Na baixa tudo se vende, tudo se encomenda, desde bebé até esquife. Não
que Maputo seja tão má quanto parece, mas, toda gente tem um emprego,
seja este honesto ou não. O povo quer é comer, porque tal qual existe
desonestidade na distribuição de riqueza porque não poderá existir
desonestidade na obtenção de dinheiro. Qual é o problema de arranjar o
dinheiro? Porque é proibido vender o corpo que criei e cuidei? Porque não
posso vender cerveja em frente ao Maputo shopping? O quem comem as
crianças? Quem vive bem em Maputo?
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Estas perguntas são básicas e têm uma resposta, o ciclo da pobreza vicia os
comportamentos. Fala-se de exemplo quando pais e filhos compartilham
mesmos espaços em grupos diferentes, todos lá brincam, bebem álcool, e
engatam umas quantas mulheres. A pobreza explica por que razão sendo
Moçambique pobre como tanto se diz pelo mundo fora, as pessoas andam
com três telemóveis (Vodacom, Mcel, Movitel), quando apenas um recebe
chamadas. Será mesmo pobreza? Tenho imensas dúvidas, não se confunda
pobreza com escassez ou problemas de autogestão, como se diz pobre não
tem onde cair morto, portanto evita cair.
Cada um busca o que pretende, primeiro, eu e a minha família,
depois tu e a tua família. Quero lá saber se dormes com fome ou com sede,
se és pastor ou pregador de funerais, se és médico ou mecânico, se és
moçambicano porque então vês Maputo como Moçambique?
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Está calado Homem
Às vezes refilamos tanto que nem damos conta que o nosso mínimo é
para alguém o máximo.
A vida é injusta, as pessoas são estranhas e chatas cada dia. Penso muito e
pouco faço, na terra onde nasci há alegria no meio do nada e tristeza no
meio de tudo, a esperança é o berço das pessoas.
Na calada da noite meu coração ouve o ungir da madrugada, o silêncio
invade as mais rígidas paredes do lugar onde durmo. Faz um frio de roer a
unha e o meu pobre trapo, do qual exploro aquecimento todas as noites, já
não aguenta mais; este trapo tem mais um furo criado pelas unhas nunca
mais cortadas.
Criei estas unhas sem sequer me aperceber, foram anos e anos em que
pensei ter o pé pequeno para os sapatos que tenho. Sim! Estas unhas são
minhas e completam o meu ser, fazem elas com que nunca ninguém
descubra que calço um enorme sapato.
Eu tenho vários corações e faço com que cada um dele seja como quero.
Sei perfeitamente que não é correto, mas certas vezes o que meu coração
quer é difícil de se ter, pior ainda quando o tento obter honestamente. Sinto
que sou fraco e perdedor, embora algumas vezes tenha tirado proveito
destas fraquezas.
Nas noites me pergunto porquê de tudo isto? Podia eu ser príncipe ou pelo
menos um mordomo da realeza, mas esta vida nunca me mostrou sequer um
sorriso.
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“Quem ouve meu grito, pensa que estou sempre a chorar.”
“Quem escuta o ruido do meu sorriso pensa que fui sempre alegre.”
“Quem me conhece, reconhece o quão persistente sou!”
Às vezes refilo tanto que nem dou conta que o meu mínimo é fruto do
diminuto esforço que faço pela vida que tenho. Fui feliz na vida, encontrei
Jesus e confiei nele, mas, nada mais que a minha confiança tive se não
padecer de fome.
Já servi ricos! E naquela época era mais feliz que do que hoje sou. Sinto até
vergonha de revelar que ofereci aos meus filhos a sobra do jantar dos meus
patrões, numa das ceias de natal que prefiro ocultar a data.
Às vezes penso que o mundo não me quer por cá e esqueço-me
totalmente de quem está realmente a sofrer. Existem pessoas que não
sofrem, mas mal vivem, porque se chamassem sofrimento o que vivem, eu
jamais pensaria que sofro.
Como posso eu pensar em gramatica quando eu só imagino grelhados?
Às vezes penso que a terra é o tal inferno, mas, sei que é um erro meu
porque na verdade inferno é o que construo cada vez que sou injusto comigo
mesmo e me faço passar por mendigo quando tenho tudo para lavrar o meu
futuro.
Sempre que penso que estou mal, abraço-me a esperança..., aquilo que
aprendi a nunca largar e abstenho-me da injustiça que reina o mundo!
Sou forte como cortiça! Sou cidadão...
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O puto lá do prédio
Todos dias, todas manhãs o meu vizinho, o amigo do meu filho mais
novo, acorda-me. Tudo bem que certas vezes sou acordado um pouco mais
cedo pela mãe dos meninos quando tenho assuntos urgentes para resolver.
Mas este puto é sempre o mesmo, todas manhãs é sempre a mesma coisa.
Ele tem 16 anos e estuda numa destas primárias da Cidade de Maputo.
Todas as vezes que amanhece o raio do rapaz arrasta a mesa e obriga
todo terceiro andar a acordar. Incrível, este puto não se farta. Já lá se vão
oito anos que vivo de baixo deste mal-educado. Quem lhe disse que porque
não tem mais sono deve acordar o prédio todo? Este puto é mesmo mal-
educado, aliás, não é educado porque carece de educação.
Certo dia, estava eu a chegar à casa e vi o garoto sentado no murro de
prédio. Ele parecia um pouco mal disposto, só que fingi não ter notado que
era para poder dar-lhe o que eu tanto desejava: um belíssimo puxão de
orelhas por acordar o prédio quando não deve.
Cá entre nós, quem é que não gosta de dormir “aconchegadinho” até as
tantas da manhã? Quem não gosta de pensar que é sábado e não deve nada a
ninguém?
Naquele número 1711 daquela avenida, podes desejar tudo menos dormir
em paz. Aquele maluco quando acorda, arrasta tudo que é imóvel e
propositadamente muda as posições na sala quando são seis horas da
manhã. Cabrão!
Então, antes de subir as escadas que nunca mais me pareceram limpas,
tive a ousadia de questionar o garoto por que razão não podiamos dormir
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em paz? Se tinha ele problemas com sono? Ou se precisava de algo que lhe
fizesse dormir até as tantas?
“ Bom dia Emerson tudo bem contigo?”
O rapaz abanou a cabeça como quem afirmasse que tudo estava conforme o
desejado.
“Então como vai a escola?” Perguntei com intuito de quem estava
preocupado.
O rapaz fez um gesto de quem dizia que “ia muito bem”. Achei uma falta
de respeito o puto me estar a responder com gestos; era evidente que me
estava desprezar ou então a chatice lhe tivesse tornado tão estupido o quão
me estava a ser.
Nós, os africanos temos a tradição de saudar todos aqueles que são mais
velhos e ainda que não nos apeteça, temos a triste obrigação de ouvi-los e
pacientemente. Nascemos assim, e, foi o que aprendemos nestes anos todos,
espanta-me como um puto pôde comunicar comigo por gestos, sem sequer
perceber que eu sou o mais velho que ele e ordenara que ele se mantenha
fiel as minhas manifestações.
“ Eu conheci o teu pai. Era uma pessoa educadíssima e costuma levar-nos ao
futebol nos domingos. Lamento muito a vossa perda e sinto que sofrem
muito por isso. Fosse eu Deus nunca eles tinham acidentado. Percebes? “
Realmente tinha que fazer uma introdução para o poder criticar.
O Emerson era muito calmo. A tranquilidade dele era estranha. Falava com
os papéis como se eles fossem mais auditivos que um amigo em pessoa,
escrevia como se discutisse com a esferográfica e de vez em quando
rabiscava numas folhas brancas segredos que só a vida os decifrava.
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Raios o partam, eu queria era saber por que razão o puto fazia a treta do
barulho em horários impróprios, até pretendia lhe propor uma permuta de
apartamento pá!
Mas o menino era tão meigo e estranho que sequer abria a cena da boca
para responder as minhas sábias perguntas. Enquanto esticava-me no meu
ilustre questionário percebi que havia uma menina de aproximadamente
sete anos que o acompanhava. A menina era castanha como o caule das
mafureiras e tinha um olhar brilhante, cheio de entusiasmo como se tivesse
encontrado o algod~o doce que tanto via no “pirlim pi pim”ou se calhar no
programa da Mana Macthosse!
Quinze minutos passaram desde que parei naquele lugar e sequer ouvi
um argumento de defesa ou contra da parte do puto. Apeteceu-me espetar-
lhe uma chapada e uns quantos pontapés, mas, não sabia eu o que diria a
vizinhança, nem o que seria o parecer da polícia caso alguém se ofendesse.
Os dois coitados eram filhos de ninguém, porque alguém faleceu num
acidente quando os tivesse de cuidar.
Ao décimo sexto minuto a pequena olhou para mim e disse:
“O meu irmão não est| a ouvir nem vai responder.”
Pensei, “este gajo é mesmo um ignorante do raio. Não sabe valorizar as
críticas?”
“Tio o meu irmão é surdo e mudo. Ele não ouve mas lê os meus lábios e
responde a partir deste papel e desta caneta. Por exemplo agora está dizer
que sempre que arrasta a mesa é para poder aproximar da luz, porque,
aquela luz que tínhamos naquele lugar queimou e até hoje não temos
dinheiro para pagar outra.” E acrescentou, “mas o tio André vai trocar.”
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Sou estúpido!
Assisti o funeral dos pais destes meninos e dei o meu contributo no
velório, mas nunca percebi que precisavam de uma mão. Como puderam
eles crescer diante de tanta pobreza e se mantiverem fiéis aos estudos?
Como pode um surdo e mudo comunicar e educar uma criança quando ele
não consegue sequer dizer o seu nome? E pior que tudo isto, como pude
viver tanto tempo ao lado destes rapazes sem sequer entender que estavam
naturalmente condicionados?
Na verdade havia muito que aprender daquele menino, simples menino.
Na vida nada fez se não lutar por aquilo que são os seus objetivos e traduzi-
los de forma que todos percebessem. Não precisamos falar para demonstrar
o que sentimos, e sequer gritar para que o mundo perceba que somos
presentes. Nós sempre nos demos bem com ou sem a fala, com ou sem a
vossa presença. Os vossos lábios mexem e nós os captamos. Vocês choram
nas noites de tristeza e nós temos pesadelos onde vocês aparecem. Quando
vocês cantam nós dançamos sem sequer ouvir o ritmo, porque antes de
vocês nós fomos feitos dum único padrão: ser humano e saber sentir!
O menino que sempre arrostou as mesas e incomodou o prédio é um nobre
escritor e na vida nada mais lhe interessa se não falar através do papel e da
caneta.
Não precisamos gritar para fazer sentir a nossa presença; podemos estar
sempre presentes quando fazemos a diferença na vida de quem realmente
precisa.
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A minha favorita está na rede
Sou um servo fiel do facebook! Assumo o meu vício e a minha vergonha…
Há sensivelmente 13 anos quando me casei, não assumi o meu papel
como coordenador das entranhas que facultam o dia-a-dia da minha família.
Pensei para mim que a vida é feita ao sabor das tradições; eu trabalho no
escritório, e a minha linda esposa trabalhava em casa (negócios).
Os negócios que ela fazia não eram mais do que para por açúcar a mesa.
Em contrapartida quem construiu a casa fui eu, quem comprou o próprio
terreno fui eu! E tem mais, há quatro anos quando o velho meu sogro faleceu
de súbito, os médicos sequer se deram o trabalho de autopsiar o corpo.
Ninguém sabia de direitos no distrito onde o velho faleceu, mas, bom genro
que sou, sai a correr do meu trabalho para o distrito sem sequer lhe chatear
(a minha esposa) e fui obrigar o mestre a avaliar o meu sogro, digo o corpo
do meu pai.
Isto tudo que fiz durante v|rios anos, chamo “respeito” e gosto quando
também sou tratado com respeito na minha casa, porque a casa é minha e, é
nossa! Não é dela e nossa. Entendam bem isso, porque, é minha quando isto
(o casamento) vira um inferno e nossa quando sou respeitado. Eu era
casado e muito feliz. Cumpria as minhas obrigações de forma rigorosa e por
tal cheguei até a ser louvada publicamente no meu departamento:
reconhecimento de comportamento exemplar.
Eu era feliz porque não havia internet!
A minha vida foi sempre direcionada à família e sem ela nada me faz
miolo. Sempre marquei o fim-de-semana como um momento de reflexão
sobre vários aspetos, aproveitava-me deste para saber o que faltava, o que
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n~o faltava, o que aumentava ou “desaumentava” na despensa! Mas como
toda gente sabe, “sexta-feira é dia do homem” e n~o sou o único homem que
chegava um pouco tarde em casa. Só que, em contrapartida parece que eu é
que tinha a única mulher que gostava de esperar o marido, e pior que
esperar-me, era fazer perguntas cujas respostas ela j| sabia “bebeste?”.
Como eu n~o gostava de discutir, respondia “n~o bebi m~e de Paito!”, com
toda convicção que até ficava verdade que eu voltava lucido.
Mas apesar de tantas vezes termos conversado sobre as cervejas que eu era
pago, na minha casa nunca ninguém soube onde eu bebia ou melhor onde eu
andava a beber e comer tudo que era carne.
Até que certo dia quando voltava do trabalho, entrei no supermercado
para melhorar o aspeto do meu frigorífico. Antes que isso, um homem
intersectou-me a vender os novos serviços de internet. Achei engraçado
porque os meus filhos estavam a crescer, e pensei pra mim mesmo que
Paito, o puto mais velho que tem 16 anos, já pode de vez em quando fazer
uns trabalhos e aprender cultura geral, senão um dia passa lá no
departamento e “n~o sabe nada de história da luta armada”. N~o hesitei,
comprei-o.
Se eu não comprasse aquele serviço tinha tudo a perder, nunca ninguém
teria facebook, nem Hi5, nem Google + na minha casa. Ninguém tinha
contacto com o mundo virtual, mas isso não condicionava a alegria de terem
jantado “arroz com galinha”, como oiço o puto sugerir sempre que
questionado de preferências. Toda gente estudava. A mãe na universidade,
os meninos no secundário e a cassula na primária. Sabem a custo de quem?
O meu custo, eu “burro” de carga.
Essa internet quando entrou na minha casa, trouxe o facebook, e começou
tudo a ficar maluco, desde a m~e até ao cassula. Ora “Paulo Zucula (eu no
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facebook) est| na Feira Popular”, “Paulo Zucula adicionou Maria Ludovina
(minha assistente) ”, “Helena Jaime minha esposa) est| em Maputo
Shopping”, e pior que tudo isto era quando via “ Paulo Zucula foi identificado
na foto de Maria Ludovina”.
Eu nunca abria o facebook em casa por falta de tempo, e porque conheci um
tipo que se lixou por ter esquecido a página aberta em casa. Deu no que
deu…
Ep|! N~o pode ser assim, um “gajo” n~o podia andar de sexta para
domingo em paz? Sempre que abria o facebook no trabalho. Nas segundas-
feiras de manhã, tinha a possibilidade de ver tudo o que acontecia na minha
casa e inclusive na minha vida pessoal. Este conflito da internet, na minha
vida não era de hoje, já tinha começado com o pessoal do meu trabalho, que
na mania de exibir a agenda, andavam lá (no facebook) a partilhar que
fomos ao cinema quando não fomos, que eu estava na Feira Popular (recinto
de lazer) a almoçar, quando a minha família estava aflita, sem nada para
enganar o estômago. Assim não dava. Estes gajos só por sorte não
partilhavam no meu “estado do perfil” quando eu entrava no balne|rio.
Entretanto quando comprei a net só pensei nas vantagens e sequer me veio
a cabeça esta treta toda.
No primeiro mês apos a minha aquisição, comecei a estranhar as coisas
lá de casa. Eu entrava as 4h da manhã e Lena (minha esposa) não me
esperava tipo polícia; eu batia com a porta para ver se ela se apercebia que
entrei. Lena nada! Comecei a desconfiar “j| n~o me ama mais esta aqui”,
deve ter um maluco qualquer que anda a enganar-lhe, mas que
experimentasse “que eu até lhe exigia o dinheiro da compra do lugar onde
enterrei o meu sogro!”.
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Mas pior que entrar em casa e ninguém preocupar-se era quando
despertava; est|vamos três pessoas na cama, “eu”, “ela” e “HP”. Começamos
a partilhar tudo. Primeiro os comentários no facebook, depois os mails
engraçados que recebíamos. Mas estava demais, até já dormíamos com
portátil e mal nos falávamos.
Antes de esta internet chegar, eu entrava em casa, tomava um banho e lhe
pegava bem! Bem! Bem! Como na época em que eramos namorados e tudo
“acontecia na maior meiguice”, agora, nem pensar! Quando lhe pegava,
rápido me reagia “dormi tarde” e eu, “porque?”, “estava no facebook a
conversar”.
Sucessivas paragens nas atitudes de mulher, levaram-me a questionar se
naquela casa onde eu construi e dava boa vida, será que alguém se lembrava
que existia algum pai ou marido?
Em resposta me foi dito “ o senhor pai ou marido quando está as três da
manhã de sábado na discoteca com Maria Ludovina, porquê antes de
atualizar o estado do facebook não atualiza o estado de presença aqui em
casa?”. Afinal! Lena dormia tarde porque estava a espera de “ Paulo Zucula
está em Coconuts Lounge com Maria Ludovina”. Maluca est| sulana…
Então pronto, eu que não sou burro, exclui a minha mulher do meu
facebook e criei outra conta do mesmo nome, e em coordenação com Paito,
meu filho, adicionamos a mamã de casa.
Ficou resolvido por uns tempos, nunca mais Paulo Zucula foi localizado
naquele quarto.
Continuei com a minha vida de sexta-feira dia do homem, e como prova de
que o facebook apadrinhava minha esposa, ela voltou a posição inicial. A ser
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mulher o suficiente para me esperar até a hora em que entrava e fazer as
mesmas perguntas que dantes, as do tempo do casamento sem internet.
Mas, a esperteza não é suficiente para vencer a inteligência sobreposta ao
mundo. Na minha mania de adicionar as senhoras no facebook, acabo dando
permiss~o para uma tal de “Jininha”. Foi o cheque mate da minha vida.
Na semana a seguir ao “pedido de amizade “ de Jininha, comecei a
estranhar a presença do portátil na cama e a ausência das perguntas, tal que,
resolvi testar se havia motivo para tal reação que a mim deixava louco.
Passaram uns dias e eu mesmo publiquei “Paulo Zucula est| no Pé de Salsa
(restaurante – 23h45min) ” e antes disso liguei-lhe a dizer que tinha ido
ajudar o meu colega que furou o pneu quando voltávamos duma despedida
da mãe do meu colega, falecida naquela tarde em Marracuene.
Eu estudei e muito, aquela mulher estava a estudar graças a mim, tal que
apesar de andar na universidade pouco sabia da vida académica, senão o
que eu lhe explicava antes de adormecermos.
Quando cheguei, lá estava ela ainda no portátil, muito calminha e serena.
Não me ambientei e perguntei se estava tudo bem. Estava tudo bem sim Sr.,
então explicou-me que já estava a terminar um trabalho da faculdade. Entrei
no banho e deitei-me logo a seguir. Mas como eu sou muito ligado ao
pormenor, ficou a dúvida daquela falta de interesse por parte duma esposa
muito carinhosa.
Eu era o mais importante da família, eu pagava as contas, eu sofria para
colocar comida cozida na mesa. Nunca Lena e os meninos dormiram com
fome, então porque será que não me valorizava? Eu tinha saído do facebook
dela e já não aparecia nos comentários do trabalho, dos amigos e das
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amigas. Nem a atrevida da minha assistente já se vinha com convites no
facebook.
O que estava a falhar no meu plano n~o sabia, mas havia “gato” e dos
maiores.
Na segunda-feira quando chego no trabalho, como já era habitual, entrei no
meu facebook e comecei a ver o meu fim-de-semana, eis que para a minha
surpresa vejo “Helena Jaime (minha esposa) est| em Restaurante Mundos
(23horas – sexta-feira). Pois, cheguei no sábado as 4h e ela estava na
internet a trabalhar.
Não era verdade o que vi. Coincidentemente meu estomago rebenta com
dores e vi-me obrigado a abandonar o meu trabalho. Fui direto para casa e
aproveitei para arrumar as coisas da Lena, porque uma mulher fingida não é
para mim. Disse que estava a fazer trabalho toda noite, enquanto chegou em
casa depois da 1h da manhã? Não tem carro, como voltou? Aquela vadia do
raio andava a trair-me, eu a pensar que enchia sozinho a despensa, afinal
somos uns quantos a fazer mesmo rancho. Vai fazer essas merdices em casa
do pai dela, porque os meus filhos ou tem uma mãe digna e então não tem
mãe.
Quando Lena chegou, veio ao quarto para ver como eu estava, e meu coração
batia a mil por hora. Não lhe perguntei nada e dei-lhe duas chapadas bem
dadas. Olhou para mim e fingida que não é começou a chorar. Dei-lhe um
pontapé e um puxão de orelha, como todos pais fazem as filhas não
honestas, e lá que ela escapou para outro lado da cama, anunciei que “ vais
para o bordel do teu pai fazer essas merdas e não te quero ver aqui na
minha casa, est| tudo arrumado, sai!”.
Helena recolheu as coisas dela e desesperadamente saiu de casa.
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Por ser um bom pai e presente, contratei através da minha irmã duas
empregadas, uma para cuidar dos meninos e outra para cuidar da casa. Na
mesma semana estas ocuparam os seus postos e a vida da minha família
(sem a merda da Helena) se estabilizou.
Quando o irmão da Lena me contactou, contei-lhe toda verdade e ficou
provado da própria boca dela que havia aquela mensagem no facebook dela.
Não sei se a minha vida mudou quando aderi ao facebook, ou quando
comprei o pacote de internet para casa, ou ainda quando “arreie (bati) ” na
minha mulher. A mulher que sempre amei.
Na sexta-feira de madrugada da mesma semana decidi averiguar mais
alguns pormenores que futuramente pudessem servir de argumento se
fosse presente a um juiz de menores, porque toda a gente, quer no trabalho,
nos almoços e até no bairro, comentava do “chifrudo” que eu era. E pior que
isso “vai beber e mulher vai fornicar…é justo”. Quando abri aquele port|til
HP, o perfil da minha ex-mulher estava desbloqueado, tanto que passei uma
revista,
“Helena Jaime est| em Costa do Sol”
“Helena Jaime adicionou Hélder Jo~o”
“Helena Jaime est| numa relaç~o complicada”
“Helena Jaime esteve com Júlio Artur em Matola”
“Helena Jaime gosta de Garotos Atrevidos (grupo)”
Como pude ser tão ingénuo neste tempo todo. Deixei-me enganar durante
tanto tempo, paguei as contas e sustentei esta merda toda. Enquanto eu
trabalho alguém desbunda do meu salário com amantes.
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Então eu que não sou frouxo vou dar-lhe o que ela quer,
“Paulo Zucula est| em Belo Horizonte (condomínio de luxo) ”
“Paulo Zucula gosta de Laurentina Premium (cerveja) ”
“Paulo Zucula est| com Maria Ludovina em Bilene (praia) ”
E ela que não ficava para trás, também me picava,
“Helena Jaime gosta de Toyota Prado”
“Helena Jaime est| em Johannesburg”
Teimosa Helena, eu conhecia muito bem a mania dela de passar-se em
inocente e tímida, quando na verdade aprontava cada uma.
Os meus colegas afinal de contas estiveram o tempo todo a acompanhar
a minha vida de merda. Uns fingiam que não sabiam, outros sequer
opinavam, mas toda gente no departamento ria da minha desgraça. Um tipo
do meu estatuto, que honrou a família com um medalhão, como podia estar
a entrar naquela crise?
Nunca poderei aconselhar alguém a aderir ao mundo que dominou a minha
vida, os meus passeios, os meus churrascos, a minha família.
Conclui que internet não era para mim.
Mas Deus disse “Bendito o teu manancial, e alegra-te com a mulher da tua
mocidade. Como cerva amorosa, saciem-te os seus seios em todo o tempo: e
pelo seu amor sê atraído perpetuamente… (Provérbios 18-19) ”, mas eu é
que não fui tolo ao ponto de tirar proveito do ensinamento divino.
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Poucas semanas depois, numa segunda-feira entrei cedo no gabinete e
decidi seguir a minha rotina; primeiro os mails e depois o facebook. Mas
estranho foi que quando tentei abri o meu facebook, não consegui.
Já era meu vício.
Lembro-me que naquela semana em que me separei, ou melhor expulsei a
mãe dos meus filhos, andei como um servo incansável do facebook.
Nesta última sexta-feira ao invés de sair para o habitual programa dos
jantares, voltei à casa e servi a noite inteira a internet, e sem dúvidas, ao
facebook sempre em busca de atualizações sobre a “putisse” da minha ex.
O facebook não abriu!
Se calhar os tipos lá da empresa proprietária, fartos das minhas guerras com
a mãe dos meus filhos, tivessem decidido bloquear a minha conta. Então,
como habitual fui ao computador da Maria Ludovina e sem hesitar entrei
com o usuário da empresa. Ainda era muito cedo, Ludovina não estava na
empresa.
Escrevi “www.facebook.com “, e logo a seguir a p|gina carrega e mostra
“Helena Jaime”. Era o perfil da minha ex-mulher que aparecia no
computador da minha assistente. Todo este tempo a mãe dos meninos
esteve a trabalhar, como se havia justificado.
Erro meu que não vos tenha dito que na minha tentativa de ajudar o pessoal
lá de casa a familiarizar com a internet, mandei a minha assistente num
desses dias para a minha casa, a fim de que os pudesse mostrar como
funciona a internet.
Foi neste precioso dia em que todos ficaram aderentes da “p|gina do
facebook” e posteriormente todos adicionaram-me em sinal de gratidão.
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Maria Ludovina, minha amante, sabia que a senha dos perfis da minha casa
baseava-se na data de nascimento do aderente. Logo “Helena Jaine” era “16
de Junho 1980”, f|cil.
Um perfil duas administradoras.
Hoje meus caros amigos, dezasseis anos depois de ter conhecido o amor
da minha vida, me vou divorciar e escrevo para que o mundo tome
consciência de que, quer sejamos justos ou não com quem amamos, não faz
sentido que a nossa vida pessoal seja revelada em redes sociais em beneficio
de qualquer coisa, ainda que a tal coisa seja mérito ou fama.
As emoções são parte integrante da vida de qualquer um de nós e
constituem o processo mais básico do pensamento. As emoções surgem
antes de qualquer outro processo mental e das emoções baseiam-se as
ações, como é o exemplo das pessoas que publicam tudo o que lhes vêm a
mente, tudo o que ocorre ao seu redor, tudo o que queriam ter feito e não
fizeram. Isto é, o poder emocional influencia e contagia indelevelmente o
estado do espirito da pessoa, muitas vezes inconscientemente.
Existe uma razão para estes comportamentos que se associa a gestão das
emoções, que consiste na relação direta entre emoção e razão. Esta gestão
permite manter o autocontrolo das emoções o que favorece a tomada de
decisões relativamente ao conteúdo a publicar.
Meu nome é Paulo Zucula e o erro da minha vida não foi a internet, mas, a
gestão das minhas relações quer seja com a internet quer seja como pai e
esposo.
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Igwane e Nweti
Naquela manhã nada mais fazia sentido para Igwane e Nweti senão
finalizar a aposta assumida por ambos durante a noite anterior. Na verdade,
Igwane manifestou a sua vontade em ter uma rapariga visto que “só homens
nasciam daquele ventre”, embora tenha sido de forma menos agradável para
a companheira que já há anos compartilhava o mesmo teto e que nunca mais
acertara nos desejos do esposo.
Nweti acreditava cegamente que uma gravidez tão turbulenta como aquela
só podia gerar um rapaz, e sem dúvidas, idêntico ao pai devido à
agressividade com que pontapeava aquela frágil defensa embrionária.
É sempre um momento de alegria receber no seio de qualquer família
um novo companheiro e não interessa de que seja, angustia alegria, fome,
tristeza ou pobreza. É costume se dizer que o nascimento duma criança
marca a renovação do contrato de cumplicidade no seio dum matrimónio.
Aquele pequeno ser indefeso que se gerava naquele ventre se calhar fosse a
resposta de Deus para os nichos de problemas que apadrinhavam a família
de Nweti. Compartilhar o espaço com uma sogra não é o mesmo que viver
com a nossa própria mãe, embora ambas sejam mães.
Existiam naquele lar vários parâmetros que serviam de base para
pequenas discussões do dia-a-dia. Eram tantas as vezes que Igwane se
tornara juiz da própria casa onde nasceu e cresceu, mas pior que isso era
tentar ser justo quer seja com a própria mãe ou com a mãe do filho. Eram
ambas as mães e de igual valor dependendo do espaço em que se cruzavam
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dentro do agregado. Em certas situações Igwane deixava as discussões em
aberto com intuito de que apenas o chefe máximo do agregado pudesse
deliberar, mas, este que por sua vez encontrava-se farto daquelas situações
optava por receitar sempre o mesmo: calma para a esposa e paciência para a
nora.
Não que Nweti não pudesse resistir a que chamava de humilhação, mas,
ao mínimo que fossem dentro do teto e não fora do agregado como
habitualmente se constatava.
Na verdade era difícil para aquela mãe que tanto sofreu, tanto buscou da
terra pobre e estéril para formar o seu filho e por sua vez o ver afundar em
águas pouco profundas. Não, não era justo! Alguém devia afastar aquela
nora de casa embora meia dúzia de anos já se consagrassem desde o
casamento tradicional.
As conversas entre Igwane e o pai se focalizavam em ideias sobre como
gerir um lar em que se vive com sogros. Vários eram os ensinamentos por
este transmitido e poucas foram as ocasiões em que não houvesse
convergência de ideias entre pai e filho.
Mas naquela manhã antes da saída para o centro de saúde Igwane e Nweti
estiveram a trocar palavrões em torno da incontornável vontade do esposo
em ter uma filha. Fácil era se pudesse aquela pobre mulher pressionar a
tecla que lhe fizesse gerar uma menina, mas, na vida parece certo que tudo
gira ao contrário do que tanto queremos.
Pobre mulher, escrava da falta de poder naquele lar onde nada limpo
ficava, e nunca ninguém lhe sorria. H| seis anos que trabalhava como “limpa
tudo” e “paridora” de netos. Mil vezes preferia Nweti confrontar o esposo ao
invés da sogra. Para além da fama de ser extremamente preconceituosa,
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aquela sogra gozava do orgulho em ter formado diante da pobreza um
homem suficiente respeitado a nível da aldeia e normalmente indicado com
referência académica local.
Bem disse quem se referiu que quando se nasce pobre existe a possibilidade
de contornar a esta mesma pobreza, mas, nunca os seus traços porque estes
são o único sinal de que fomos necessitados. Tal qual estavam estampadas
na cara daquela pobre mulher cuja idade cobiçava um esquife com
parafusos doirados.
Naquela manhã só o destino pudera imaginar o quão amargo podia ser
um amor feito debaixo de tanta mentira. Na verdade tudo o que se sabia
sobre Igwane era tudo o que os pais contavam. Nunca ninguém conseguiu
revelar por que razão um homem formado e com idade de aventura, se
pudesse prender as saias da mãe? Havia algo de estranho com aquela
família.
Oito e trinta da manhã naquela sala de espera da qual nunca mais alguém
se lembrara de passar detergente, esperavam Igwane e Nweti pela médica.
Era quarta-feira, dia laboral para Igwane que prescindiu mais uma tarefa
dos seus afazeres em resposta aos inúmeros pedidos endereçados pela
companheira devido as complicações da gravidez. A barriga era enorme, o
peito cheio e a forma como Nweti segurava-a, dava indícios de que naquela
manhã alguém viria ao mundo.
E realmente foi o que se sucedeu quantos vinte quatro minutos
passavam das dez da manhã, a pequena Serafina tinha vindo ao mundo e
completara a alegria dos pais. Para Nweti o nascimento da pequena se
revelava na grande resposta do Sr. Deus que decidira ceder a milhões de
pedidos feitos nos últimos seis anos por Nweti. Igwane encarava aquela
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vitória como prova do funcionamento imprevisível do seu sexto sentido, o
que “nunca falha”.
Rapidamente se espalhou a notícia do nascimento de Fina pela aldeia e as
pessoas mais do que nunca comentavam da grande sorte que Nweti tinha
em conceber uma rapariga nos dias em que se indiciavam de serem os
últimos naquele agregado.
Três dias passaram desde que aquela flor do futuro nasceu. Três dias
passaram e ninguém se pronunciava acerca do estado da criança; nas
enfermarias do centro muito se estipulava sobre a razão da permanência de
Nweti por toda aquela eternidade, pior ainda numa aldeia em que era quase
impossível internar o paciente.
Fina que mal conhecia o mundo havia sido diagnosticada HIV e carecia de
cuidados primários.
No quinto dia apos a vinda da bebé a Dra. Lígia anunciou o motivo pelo
qual mantinha a menor hospitalizada e como era de esperar, não foi de bom
agrado que Igwane recebeu a notícia.
Igwane pautava-se pelo bom comportamento relativamente as relações
amorosas que estabelecia dentro da aldeia. Tinha a fama de “gingão” por ter
estudado na cidade e pior ainda por classificar as raparigas do bairro como
“desesperadas”, jamais na sua lucidez se envolveu com alguém que não
fosse Nweti.
Mas onde o sol brilha a lua também quer brilhar. Tanto como Igwane,
Nweti também esperava uma explicação para que a sua última ovelha fosse
tão negra quanto parecesse. O mais provável era que Nweti se tivesse
aproveitado duma das jornadas do esposo para experimentar outras
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mandiocas, doutros lugares. E sucedeu que quando Nweti regressou a casa
nada mais lhe sobrava senão a nota de 500 meticais e uma maleta de roupas.
A sogra que tanto cantou sobre o comportamento de Nweti havia alcançado
a verdade e finalmente provado que aquela não era a mulher que tanto
sonhou para seu filho.
A separação entre Nweti e Igwane alterou drasticamente a rotina da sogra e
tendo ela ficado com a pequena Fina, alguém deveria ajudar nos trabalhos
de casa e nos demais afazeres. Perecia uma tarefa fácil quando
compartilhava a casa com Nweti, tudo à mesa na hora certa, tudo limpo e
agora? Como podia aquela mãe e avó cuidar do filho que trabalhava na
cidade dos dois netos que mal falavam e da mais recente bênção de Deus?
Se calhar uma boa ideia era trazer a nora de volta, mas o orgulho era tanto
que um filho formado nas universidades da grande cidade não devia casar
uma mulher que apenas soubesse fazer bebés e pior ainda que tinha o
“bichinho do seculo”.
Face a situação que pautava a vida de Igwane este viu-se obrigado a
prescindir das suas ocupações e arrumar o certificado de habilitações numa
das gavetas por período indeterminado. Alguém tinha que ajudar a pobre
velha!
O sol raiva tanto naquela manhã, tanto que tivera feito luz suficiente para
que todos esquecessem o estranho ambiente a que passavam. Todos
despertaram e cumpriram com os seus trâmites normais, uns para horta,
outros para o poço, e houve quem ainda se lembrou de que se precisava
abrir uma fossa que serviria de depósito de resíduos. A única pessoa que
nada fazia naquela unidade era a pequena Serafina, que passava as manhãs
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exposta a luz do sol enquanto mantinha o constante dialogo com as folhas da
árvore que lhe servia de tenda.
Serafina não chorou naquela manha.
Serafina se tinha despedida da terra nos braços do pai e ele sequer se
apercebera, a pequena menina que não mais de 90 dias teve, tão cedo partiu.
Restaram dúvidas se realmente foi a bênção de Deus o seu aparecimento ou
desaparecimento.
Igwane tentou sem sucesso reanimar a pequena Fina, tomou-a nos braços e
percorreu a aldeia rumo ao centro de saúde. A única coisa que foi possível
de fazer foi esticar os pequenos braços da menos, estes que se tinham
instalado numa posição de quem quisesse alcançar as folhas da grande
tenda natural. Foi grande o desespero de Igwane!
A única filha que mesmo antes de chegar a terra tinha amado se tinha
partido sem sequer pronunciar “papa”; era injusto. A culpa era toda da
mesma pessoa, Nweti, que tinha abandonado a filha quando podia e devia
ter recusado a sair daquela casa, mesmo quando tivesse sido escorraçada.
Na manha do dia seguinte as duas famílias se reuniram para despedir a
pequena menina e conduzi-la ao lugar onde mais de dezenas de avós a
aguardavam.
A emoção de Igwane era tanta que mal conseguia pronunciar as suas
vontades, tendo ele se limitado a pedir que não fosse aberto o esquife e
sucedeu que foi respeitado.
Muito se falou durante aquela semana na aldeia e muitos criticaram aos
membros do agregado. Igwane, sem trabalho, sem dinheiro, sem filha, sem
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esposa começa a ver contornos suficientemente negativos para concluir que
tratava-se de obra de curandeirismo que o assolava.
Quatro anos passaram desde que a pequena Fina desapareceu do meio dos
pais carregando consigo o pouco que sobrava de alegria. Quatro anos de
desespero e tristeza...quatro anos de luta e luto.
Certo dia Igwane se preparava para mais uma das suas saídas de caça ao
emprego. Estava difícil conseguir um emprego que fosse decente e
adequado ao grau académico a que dispunha. Acabara tudo, a mãe já não
podia mais ver o filho submerso naquela tamanha tristeza. Na verdade
Igwane não conseguia acomodar-se a qualquer emprego devido a sua
situação sanitária, era teoricamente seropositivo e nunca sequer pensou em
fazer o exame.
Naquela manha inesperadamente Nweti aparece a casa se Igwane
acompanhada de dois agentes de saúde. O carro que a levava pertencia a
Dra. do centro onde Fina nascera quatro anos antes.
- Bom dia Igwane- saudou-lhe o condutor com um sorriso forçado.
- Bom dia Dr.- Respondeu – é impressão minha ou trazem no carro a vossa
doente para interna-la na minha casa?- ironizou Igwane.
- Meu caro jovem, findos quatro anos de paciência Nweti decidiu quebrar o
silencia através dos nossos programas de apoio. Numa primeira fase
abrimos-lhe uma ficha com o vosso historial – engoliu saliva enquanto
manuseava as mãos que auxiliavam na explicação -...e resolvemos testar o
estado da saúde de Nweti.
- E dai?
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- E dai é que ela nunca foi seropositiva, foi um erro da equipa médica de
serviço na manha daquele dia. A menina que vos foi atribuída não vos
pertencia. Confirmo que a bebé era portadora do vírus, mas, houve troca de
nomes durante a transferência de incubadoras, por isso trago comigo a Dra.
eu sou o diretor do centro de saúde – concluiu.
Realmente não era de acreditar que pudesse aquilo estar a acontecer,
tudo o que tinha vivido nos últimos anos era uma mentira, era um
sofrimento para o qual não havia necessidade.
Igwane não chegou a pronunciar nada e dirigiu-se ao veículo. Olhou para o
seu interior e viu uma mulher sentada no banco de trás com uma barriga
enorme e bastante semelhante ao ventre que acolheu “Fina”. Sentiu um frio
no estomago e do seu rosto, apenas lagrimas saíram. Era alegria pensar que
não estava doente e tristeza pensar em quão injusto tinha sido. Na verdade
Nweti nunca tinha conhecido outro homem senão ele.
As pessoas cercaram a casa e ninguém acreditava no que ouvia se calhar
Nweti tivesse comprado o mérito do diretor do centro de saúde ou então
invertido a historia para voltar ao lar, mas, aquele barrigão mostrava outro
percurso na vida daquela pobre mulher que nada mais soletrou sen~o “n~o
te trai”.
“A soberba do homem o abater|, mas o humilde de espirito obter| honra.”
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O café da esquina
O meu melhor amigo tem a mania de fazer tudo ao contrário. Não houve
conselhos, não se arrepende de nada que fez, não gosta de elogios, não
consegue fazer amizade com mulheres e sequer faz esforço para esquecer
quando lhe ofendo.
É que não é minha mania ofender o homem, e nem nasci para lhe chamar
nome. Na verdade sempre que ele me irrita eu busco algo que lhe irrita ou
melhor algo que lhe deixa “fora de sério”. O meu amigo tem a mania de que
todas as raparigas adoram-lhe e vive dizendo que só tenho uma namorada
linda, formosa, inteligente e simpática porque sou amigo dele. Este gajo sim,
também me tira do sério.
Às vezes fico um pouco confuso por não saber como agir perante os
cenários que este amigão me proporciona…ora fala isto…ora fala aquilo, mas
tudo o que diz nada me torna mais orgulhoso dele.
Mas eu e este “gajo” só somos amigos porque as vezes ele é tão bom que me
esqueço das asneiras que ele faz. Uma vez tive uma avaria no meu carro e
liguei-lhe a fim de que me pudesse dar uma boleia porque tinha uma
consulta de estomatologia marcada, o homem disse que naquele momento
não lhe dava jeito de forma alguma porque estava na faculdade e teria um
teste a seguir a chamada. Grande desculpa! Só que se esqueceu que
frequentamos a mesma faculdade e por acaso o mesmo curso.
Naquele momento percebi que era mais uma daquelas formas que os
académicos têm de dizer “n~o”, sabem como é este pessoal que estuda
muito, tem sempre a mania de enrolar quando não querem algo. Mas para o
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azar dele aquele dia foi dos melhores da minha vida, foi aquela chamada que
fez o meu destino.
Depois do chato do meu amigo recusar prestar aquela simples ajudinha não
tive escolha, chamei a seguradora do carro e liguei para o mecânico
informando que lhe enviaria o meu carro. Tinha apenas uns trocados na
carteira e julguei que eram suficientes para apanhar um táxi.
Dentro do carro amarelo ouviam as mais famosas músicas do momento e
algo que me chamou atenção era a forma como aquele taxímetro corria. Era
mais rápido que a velocidade do próprio táxi. Vi as minhas moedas correrem
risco de extinção, o meu império a desmoronar, a minha vida a ficar mais
estreita ainda, mas como sou um “ganda patr~o ”ignorei o velho e o aparelho
fiquei na minha inocência esperando pelo minuto em que o taxímetro exibir
“9.50” a fim de o imobilizar e completar a minha viagem com a minha bota;
sorte minha porque quando cheguei a porta do hospital o maravilhoso
aparelho dizia “7.75”. Sorri…
Quando entrei havia lá uma grande fila, não aquilo era mais bicha do que
fila.
Toda gente com dente estragado e a espera dum milagre, uns falavam no
telemóvel, outros liam jornais e algo que me chamou atenção foi a morena
que l| estava sentadinha a ler uma revista “Vidas” que j| l| estava a primeira
vez que fui, dois anos antes. Tive inveja e até apeteceu pedir a revista
porque afinal de contas também me queria desatualizar.
Foi ai que decidi beber um café e atravessei a rua.
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Quando lá chego, a gorda da senhora que servia falava que não dava. Sempre
no bla bla…, e mais irritante ainda pergunta-me: que vai querer filho? Eu?
Filho daquela senhora que nunca vi?
A minha ideia era tomar um café mas dada a escala de higiene do local
decidi: totoloto com jackpot! E lá entregaram-me a minha desgraça. Pobre
de mim! Não tinha um pingo de responsabilidade, só depois de deitar o
dinheiro é que pensei que os autocarros não são do meu pai. Não tinha volta,
naquele dia de azar voltei de botas…
No dia seguinte o culpado disto tudo contou-me que depois de falar
comigo tinha decidido levar a Sheila para casa e que por sorte dele rolou
muita coisa no carro. Fiquei ainda mais irritado e resolvi peneirar este
fingido do raio, como teve ele a coragem de abandonar um amigo num
hospital para levar a Sheilinha do raio para casa? Enfim, também já o tinha
dado esta naquela vez com a Trica…, e só por isso bati a minha bolinha
baixo. Mas para não ficar um clima podre entre nós, desatei a contar-lhe o
meu sofrimento e sobretudo a parte da decisão de trocar o café pelo
totoloto.
Quando terminei a minha parábola a única coisa que o meu amigo disse
foi: a senhora que te atendeu como era?
Estranhei o interesse por aquela gentinha do café porque este amigo é muito
fino e no meu lugar tenho a certeza que nem o café, nem o totoloto, nem o
tanas o rapaz iria querer. Ele sempre se orgulha de ter muitos dotes e capim
nos bolsos, não bebe café na faculdade porque diz que as serventes não
lavam a loiça, apenas a mergulham num balde cheio de agua e: mais um
café? Não tinha dúvida nenhuma de que o rapaz se passaria com a outra
velhota.
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Naquele nosso tom de jovem, falei mal e muito mal, aliás porcamente do
café porco e culpei a senhora pela falta de higiene naquele estabelecimento
comercial, e para colocar a cereja no topo do bolo lhe disse: fosse eu da
ASAE voltava para encerrar aquele curral.
Notei que a cara dele estava meia desfeita porque já há tempos que não lhe
deixava interromper o discurso, então perguntei: que achas?
Respondeu: eu acho que ao fechares aquele café, jamais conseguiria eu
custear este curso…é a única fonte de financiamento!
Engoli um seco…
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O grande desabafo
Formei-me durante seis anos. Seis anos de uma vida dura e caracterizada
por sacrifícios; noites perdidas, olheiras constantemente, má disposição e
tudo o que compacta a reclamação dum jovem que sofreu como eu sofri para
me formarem.
Os meus pais não são pobres, nunca admite que alguém invocasse a pobreza
como escudo da sua apreciável e estampada distração pelos livros, por isso,
antes que investigasse sobre o vocábulo “pobre”, concluo, nunca fui. E nunca
conheci um homem pobre ao menos que este não conheça a palavra de
Deus, porque, realmente quando algum dos meus conhecidos se diz pobre,
eu corrijo: ateu!
Tão cedo aprendi a valorizar os meus pertences e a estimar os pertences
dos outros, tudo porque nunca tive na vida um tostão para repor danos que
criaria por desleixo. Por conseguinte, quando alguém me emprestava um
lápis, tinha receio em afiar, porque as tantas teria que comprar outro para
“pagar”. Eu tinha muito medo do pedir emprestado seja l| o que fosse. Mas
por força das minhas necessidades não havia margem de manobra, tinha
que pedir emprestado tudo o que não tivesse. Lembro-me aquando do
término da distribuição das arrufadas no ensino primário, desta vez sim, o
governo tirou-me uma coisa que não podia pedir emprestado. Pois porque
sinceramente não dava para devolver depois que engolia.
Foi então que decidi começar o meu rico negócio.
Havia lá em casa uma torneira que por sorte saía água, digo por sorte por
não ser habitual o meu pai poder honrar as faturas inerentes ao consumo.
Nós, só pagávamos água se os fiscais viessem cortar, senão, não havia
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necessidade de prescindir do açúcar para pagar um bem que banha o
oceano Índico. Criei o negócio da “água gelada”, que na verdade devia se
chamar “água fresca”. Assim, logo que largasse da escola, o velho não proibia
de ir desenrascar uns trocados para me sustentar na hora do recreio do dia
seguinte.
No principio cantava bem baixinho para que ninguém soubesse que sou eu
que vendia o liquido precioso naquelas trincheiras do mercado
Xiphamanine. Eu queria ser médico, razão pela qual não era muito a favor de
andar por ai no meio da lama a cantar “aguaaaaa gelaaadou” para toda
gente.
Eu colocava a água morna da arca todos os dias a noite e nos dias
seguintes por volta da uma da tarde, lá estava eu a distribuir. No princípio
não rendia quase nada, mas, o suficiente para mandar uma massa de trigo
cozida e recheada de açúcar para percorrer o meu precioso sistema
digestivo. Como conhecia muito bem o sofrimento que passava quando não
havia sol, inventei a modalidade inversa da minha ideia primordial, ou seja,
nos dias de sol vendia “água gelada” e nos dias de frio vendia “ch|”. Mas, o
chá só podia vender longe das salas de refeição que existiam dentro do
Xiphamanine, visto que certa vez fui escorraçado e até retiveram dois
“pucares”, o que obrigou o pessoal lá de casa a ficar sem “pucar” quando eu
saía para trabalhar.
Quando transitei para o secundário notei que estavam a aparecer-me uns
quantos pelos no corpo e que cada vez que gritasse, alguém me identificava.
Por isso, comecei a pensar num negócio que me pudesse dar dinheiro e
mérito. Mas, para minha tristeza, ali vivia o verdadeiro oligopólio em tudo
que é bem de consumo e até mesmo na prestação de serviços.
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Não podia ajudar as senhoras com as bagagens porque alguém muito
mais crescido e forte o fazia. Não podia vender umas bolachinhas, umas
chuingas porque não havia espaço e pior ainda não pagava a taxa municipal
sobre as bancas daquele mercado, resumindo, não havia mais negócio
porque até o negócio da água já era um nicho.
Apesar de não o achar muito culto para a minha imagem, orgulhava-me de
ser o fundador ou inventor como se queira chamar do grito “aguaaaaa
geladooou” e do anúncio “ch| quente”.
Parei por uns tempos com essa vida de desenrasca porque acima de tudo
estavam os meus objetivos na esfera académica e pior que isso a minha
reputação da rua onde morava e nas turmas onde estudava.
No décimo ano de escolaridade sucedeu que um colega perdeu a mãe e eu
que era chefe da limpeza na minha turma, fui um dos nomeados para
acompanhar as cerimónias. No princípio não gostei da ideia, mas, comovia-
me o facto de pensar que o tipo tinha ficado órfão e dava pena, então, aceitei
o desafio de estar num cemitério por algumas horas.
Durante as cerimonias, dentro da capela que já se encontrava lotada, dei
oportunidade aos familiares e os demais próximos para poderem aproximar
e despedir da promotora do triste evento matinal. E, fui forçado, pela
convicção de que quando alguém morre existe a possibilidade do azar dessa
pessoa passar para um vivo que esteja por perto a qualquer momento.
Então, eu que já nasci azarado, do que me valia estar dentro da capela?
Acomodei-me com um grupo de amigos que silenciosamente escutavam
as inúmeras bandas filarmónicas no cemitério, sem sequer pronunciar uma
palavra e enquanto isso descobri o meu segundo negócio: vender agua!
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No princípio tinha receio que ao invés de encontrar um comprador
carnal, viesse um homem de branco, voador, a pedir que o fosse regar o
espaço onde descansa. E pior ainda que esse tal me visitasse em casa nas
horas em que não houvesse mais sol.
Aquele negócio era para homens mesmo a serio e melhor que o negócio do
mercado porque não vendia pouco, vendia “five litre”, e sequer emprestava
aos clientes porque nestas novas trincheiras muitos dos clientes estavam a
dormir e quando aparecesse um acordado, só voltava seis meses depois.
Bom negócio sem vale.
Mas com o tempo me fui apercebendo que me tornava mais triste,
porque aquelas pessoas que todas manhãs de sábado compravam o meu
produto, tinham os olhos avermelhados e nunca em ocasião alguma sorriam.
Tal que, certo dia sem propósito e justa causa abandonei o meu ganha-pão e
fiquei em casa.
Aproximava-se a minha época de exames de admissão para a universidade e
de qualquer forma, tinha de concentrar-me. Afinal apesar de nascer sem
dinheiro, necessitado e meio-azarado, eu queria a todo custo ser médico, e
nisso centralizavam-se todas as minhas ações.
Sou a primeira sorte que os meus pais tiveram e queria ser o exemplo
dentre todos nós. Mas, como sou mesmo azarado e sem gozo nenhum, fui
repescado para lista dos admitidos, ou seja primeiro reprovei e fiquei a
depender dum sinistro dentre os admitidos. O que custava pela primeira
vez, eu brilhar sem sofrer? Entrei para o ensino superior e para um dos
cursos mais exigentes da minha universidade, medicina.
Desde então nunca mais tive tempo para os meus negócios, pelo menos fora
da universidade, porque lá dentro, era eu o único estudante quem
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assimilava matéria o mais rápido possível, para poder vender umas
perguntas durante os testes. Eu ia sempre ao exame propositadamente,
porque tinha um bom instinto para descobrir que era nos exames onde
estavam os que precisavam de comprar umas respostas.
Nunca vendi “1. A)”, eu vendia o teste em partes, “parte I/II/III” e n~o
apenas a ultima resposta da parte I. Era muito serio e exigente nesse
negócio, pois, que não quisesse não era obrigado a comprar e nem a
reprovar.
Era esperto demais e bom comerciante, mas, no último exame de
“anatomia patológica” dei-me mal, alguém se tinha revoltado por ter
comprado uma resposta errada e consequentemente reprovado a disciplina.
Denunciou-me, e testemunhas não faltaram.
Pessoas que ajudei, pessoas que emprestei resposta, que se não fosse eu, o
canudo jamais teriam. Estas sim, foram testemunhar durante o inquérito
aberto pela reitoria.
Não sei se era fama por mérito de resolver os testes ou por ser um
comerciante, mas, confesso que naquelas duas semanas em que o processo
veio a superfície, fiquei conhecido tanto na faculdade como a nível do
hospital onde exercia como estagiário.
Naquela manhã de sexta-feira fui notificado para reitoria, o que eu precisava
saber era se podia fazer parte da lista dos recém-graduados ou dos expulsos
por fraude, aliás, fraudes durante seis anos? E sucedeu que me rendi à
verdade, o que nunca enxerguei é que apesar de ser necessitado, carente,
desenrascado, de ter perdido noites, ter olheiras constantemente e andar
sempre mal disposto, eu sou sortudo.
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Não nasci azarado e penso que ninguém nasce azarado, fazemos nós o nosso
próprio azar, através dos nossos atos e dos erros que vamos acumulando em
torno da nossa vida. Não fui expulso porque três dias antes da minha
sentença, distraído esqueci-me deste desabafo na sala de aulas, e alguém
que não sei donde apareceu, entregou em mão ao Conselho de Disciplina.
Safei-me! Não, negócios? Agora só se for com doentes do bairro onde vivo,
porque sou médico, mas, mesmo sou assim, sempre a desenrascar a vida.
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Obsessão? Não! É amor…
Podia qualquer um dos amigos referir um nome que lhe conviesse,
menos obsessão ao que ela, Lia, chamava de amor incondicional. Quando
uma mulher ama, ama até as dobras que vão saindo da cintura, ama a forma
como o tipo é feio e assume normalmente que “ este é o meu feio, o meu
barrigudo”, e se “a mim faz feliz, se calhar n~o deva emagrecer”. Porque na
verdade, amor que é amor da volta e cai no mesmo ponto: amor.
Obsessão também é amor, mas na vertente menos lucida da vida. Assim se
descreve o amor de Leo e Lia. Lia era jovem e resumidamente atraente, os
lábios carnudos, os olhos verdes e o cabelo de luz de grilos, brilhante de
ponta em ponta faziam dela uma rapariga diferente de todas as outras, e
pior que esta diferença, Lia jamais sorriu para os putos lá da zona. Pra quê?
Bando de jovens…dependentes, desempregados, sem experiencia,
conquistadores galardoados e um pouco de tudo misturados com
infantilidades.
Aquilo ou aqueles não eram para Lia, significava voltar anos e anos da
vida que se tinham ficado para trás. E não seja por isso necessariamente que
se apaixonou por um homem de ombros largos, voz grossa que a partida se
traduz em responsabilidade e que coincidentemente tinha
responsabilidades assumidas, homem casado. Mas, casado lá na casa dele e
não no relacionamento.
Aquele homem quem as amigas de Leo intitulavam “paizinho”, era mesmo
um paizinho e já levava a título uma filha dois anos menos velha que a
própria amante. Embora tivesse quarenta e nove anos, Leo tinha atributos
dum homem jovem e com ar de muito por dar. Não existia qualquer tipo de
compromisso a partida entre ambos, mas cumplicidade e demais.
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Paizinho era amado e venerado, mas não tinha o domínio completo da
relação feita num asfalto de promessas. Namorar tem limites, é preciso
promessa depois dos vinte e quatro anos da vida duma jovem mulher, e, era
óbvio que paizinho não quebrava a regra dos homens honestos, prometia
loucamente. Estranho era que a partida, não existia qualquer interesse por
ambas partes senão ser noiva da parte dela, e lhe ter nos braços, da parte
dele.
Mas difícil era manter uma relação oculta quando ela vivia na dependência
dos pais. Mentir não é dourador nem benéfico, mas quebra preocupações
pontuais. E assim, o fazia Lia sempre que confrontada sobre o facto de
namorar ou não.
Entretanto, este doce cenário não durou muito até que certo dia o
telefone de Lia revelou a vida que levava, quando o pequeno aparelho tocou
na sala, bem ao lado do chefe de família. Aquela chamada que se intitulava
“paizinho” deixou algumas dúvidas para o próprio pai, se calhar talvez a
filha não fosse verdadeiramente dele. Na maior inocência, sem sequer
desconfiar o velho pai resolve conhecer o outro pai doutro lado da linha. E
como em dois anos nunca ninguém atendeu “paizinho”, este sequer
estranhou a ausência de voz na chamada, tendo apenas proferido “j| c|
estou em frente a mercearia, cinco minutos, ok?”. O pai da Lia desligou o
telefone e voltou a colocar no mesmo lugar.
A chamada era apenas para confirmar a chegada o encontro já era
habitual, de tal forma que naquela casa já se tinha conhecimento do curso de
inglês frequentado naquele dia de semana e sempre a mesma hora. Juro que
qualquer pai morreria de curiosidade naquela situação, e, o senhor dono da
filha não foi diferente, deixou sair e seguiu-a.
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Logo que a rapariga entrou no carro o namorado espetou-lhe um abraço e
um beijinho um pouco demorado. A inocente pediu-o que arrancasse. E lá se
foram os pombinhos, digamos pombos.
Eleutério, o dono da filha conhecia aquele carro, aquela matricula e não
tinha porque se enganar pois já se haviam cumprimentado naquele lugar
varias vezes nos últimos dois anos. Leo e Eleutério eram os dois juristas e
embora não partilhassem muita simpatia um pelo outro, já partilhavam uma
filha de vinte e quatro anos, h| sensivelmente dois anos. Pouco tempo…
No regresso a casa, Eleutério foi pensando na forma mais fácil de evitar uma
confusão naquele dia e decidiu carinhosamente ceder a verdade. Chamou a
esposa e partilhou a sua última descoberta. Aquela mãe não se conteve e
chamou injusto ao nosso senhor Jesus Cristo, porque raio não podia ser a
vizinha do lado, ou a sobrinha a ter aquela vida…n~o havia nenhuma outra
rapariga que Deus podia usar para aquela vergonha? Claro que não, cada um
com seus “macacos”, os macacos do nariz do outro no nosso cheira. Mas os
nossos jamais fizeram diferença ao nosso próprio olfato.
Marido e mulher recolheram para cama com mil perguntas por fazer. Era
bom se pudessem adormecer, mas não aconteceu até que pouco antes da
meia-noite a fechadura destrancou-se e lá entrou Lia, a santa filha do casal.
Eleutério não se conteve, não era pai suficiente para adormecer diante
de tanta dor e lá se fez para a sala. Sentou-se na habitual cadeira onde
resolvia todos os conflitos familiares e anunciou uma reunião de ultima
hora, urgente. A moça na maior inocência sentou-se.
Pai, mãe e filha, todos nervosos e todos com razão.
Iniciou-se naquela sala pela primeira vez, algo que não se compara a uma
simples discussão. A mãe no papel de juíza e advogada, ia e vinha, contra
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tudo e contra todos. Ainda durante o convívio, Leo liga para confirmar se Lia
já estava dentro de casa, como era o habitual de namorado atencioso. O pai
arrancou-lhe o telefone “ j| sei meu caro colega e agradecia que viesse
buscar ainda hoje, antes que eu próprio a traga!”. Era a decis~o, embora n~o
muito raciocinada, já estava tomada. Cumpriu-se.
Antes de sair de casa Leo avisou a mulher - Letícia que aquela era a ultima
vez que voltava como um pai decente, havia problemas e tinha de os
resolver urgentemente.
Leo foi até a casa do colega e tomou o presente mais recente da sua vida.
Opinou que aquela noite fosse numa pensão ou hotel, como a jovem
preferisse, mas para casa dele não! A menina não podia ir a casa do
“paizinho”.
Homem consegue quando quer e na maior inocência se gaba de ser
determinante nas decisões, mas o que até hoje muitos não descobriram é
que mulher não lado fraco, cede ao fracasso por objetividade.
Dirigiram-se os dois para pensão e conversaram bastante, até que o tipo
decidiu voltar para casa sozinho e explicar a própria mãe dos filhos o que
significava o anterior discurso de saída.
Durante dois anos Leo garantiu que a esposa não desconfiasse de uma
outra mulher no meio do casamento. E que não houvesse necessidade por
parte de Lia que a obrigasse a contacta-lo em casa, o que era perigosíssimo e
desconfortável para um pai de uma família devidamente constituída, a luz
dos mandamentos e sacramentos da igreja. Pouca vergonha.
Só que a vida de mentira é uma farsa indomável, molda-se tudo e estraga-se
tudo no momento certo. Verdade amadurece e cai sem tempestade. Lia ao
invés de ficar sozinha aquela noite, segui o namorado, tal qual o pai a tinha
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seguido, porque na verdade pensava que estava mais que na hora dela ser
honrada e assumida.
Naquela vivenda duas pessoas entraram num intervalo de uma hora.
Primeiro o “paizinho”. Este mal conseguiu dar a volta ao discurso anterior e
a campainha já tocava. Muito longe de pensar, o casal com bodas de prata já
comemoradas, dirigiu-se lentamente para porta e abriram-na. Para surpresa
do marido l| estava a namorada, amante, filha, colega…l|, estava na cara e
resumida a personalidade da rapariga que deixara na pens~o, com “tudo
controlado”.
E não tardou que a dúvida de Letícia, a esposa oficial do jurista se
decidisse “entra”. N~o havia explicaç~o para uma coisa t~o óbvia e nunca
desconfiada. Aquele lindo matrimónio do qual se padronizavam muitos
afilhados se tinha equacionado num mar de desespero, e para a surpresa de
todos, o valentão amava as duas mulheres. A do prazer da vida e a da
amizade pra vida.
Não era traição para Lia porque sempre soube da existência de Letícia.
Não era traição para Leo porque amava as duas mulheres e as tratava
delicadamente. Era traição para Letícia, que o marido fiel em vinte e seis
anos andasse a fornicar com a filha. Mas alguém devia torcer …ou aceitar a
humilhação ou virar as costas aos vinte e seis anos de vida conjugal.
A rapariga pernoitou naquela residência. Letícia sentia desgosto por olhar
para Lia e sentir como se tivesse saído do seu ventre, havia um sentimento
profundo por aquela idade e inocência.
Mas o impacte sentimental não foi reversivo porque aquela menina que já
não era menina, mas mulher, se tinha deslocado em busca do namorado.
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Aceitava perder os pais, mas de forma alguma perder o amor da sua vida,
Leo. Vinte e tal anos, mais velho e gostoso.
Aquele era verdadeiro amor! Quem diz que amor é somente para dois
engana-se. Dependo da situação o amor se pode repartir em pedaços
suficiente para todas e todos. Podiam até existir dúvidas se realmente Leo
amasse as duas mulheres, mas, que elas o amavam era uma realidade. E na
verdade só Deus sabe quem realmente o merecia, porque se depois de vinte
quatro anos de casado descobriu uma parte que o completasse, então viveu
uma vida incompleta. Culpa toda de Letícia que não era exuberante e
compulsiva ao gemer, não tinha o peito a cruzar o chão em noventa graus. E
os atributos já se tinham sido atribuídos no seculo passado.
E sucedeu que ninguém abriu a mão do amor que sentia porque todos se
amavam em pé de igualdade e todas eram mulheres e deviam ser honradas.
A ameaça duma mulher não é outra mulher do seu nível ou faixa etária, mas
simplesmente tudo que seja do mesmo sexo, desde que tenha ultrapassado a
virgindade. E provou-se naquela situação que um homem renova o espirito
e nunca deixa cair a alma antes que se consagra feliz. Precisava aquele
homem de duas mulheres e realmente era muito feliz com as duas. Mas, não
propriamente feliz porque detrás daquela alegria estão as pessoas próximas,
os amigos, filhos, família, colegas: a sociedade.
O que um homem faz por prazer e que não seja moralmente correto tem
um preço alto, mas não o impede de pagar. O que uma mulher assume por
vergonha ou medo do destino tem outro preço mais ou menos caro que do
homem, porque o que pode um homem fazer dura uma semana a sair da
boca da sociedade, em contra partida dura a eternidade até que o nome
duma mulher se limpe.
Amar n~o é proibido, mas…o que é amor?
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As combinações do amor
Se calhar devia eu ficar chateado com esta barbaridade a que
estou sujeito por ter nascido no dia e lugar errado. Se calhar se nascesse
no dia a seguir, ou na hora a seguir teria sido um pouco mais sortudo,
pelo menos nesta vida.
Podem existir coisas que quando dizemos podem não ter sentido para os
outros mas que para nós tem, e atos dos outros que para estes têm
sentido, mas para nós não. Mas é este ciclo que faz de nós seres
imperfeitos porque mesmo que queiramos apreciar algo que não
gostemos, não conseguimos. Podemos, até mentir que gostamos mas
essa mentira não é para os outros. Por um lado pode até ser para iludir a
pessoa, mas por outro não acho!
Dizer uma mentira a alguém não fará de nós uma pessoa
perfeita, mas demasiado imperfeita ou indiferente, não é nada mau.
Sempre que puderes, diz a verdade! Ela pode ser amarga, fria e ate pode
estragar uma amizade ou outro género de relacionamento, mas, não
deixa de ser verdade. Não o faças pelos outros mas sim por ti, porque no
final de tudo os azares serão teus.
Os azares caraterizam-me e duns tempos para cá, me fui habituando e os
namoriscando. Tive que aprender a babar a vida, a engana-la, domestica-
la para que ela, aminha vida se sentisse valorizada.
Quando estou “muito abaixo” penso pra mim que é sempre cedo para
ficar desiludido, se calhar devia guardar o meu baú de mágoas para mais
tarde, para aquela idade em que os homens se revoltam consigo mesmos;
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idade em que forçamos as coisas a ficar em pé quando já não podem. É
cedo para me revoltar…
Nunca disse adeus as mulheres porque nunca tive a certeza que
realmente me ia embora, sou estratega nesta área e confundo tudo e toda
gente; gente com corpo macio, sensível, formoso e amigável. A minha
grande técnica é a música. Nunca falha, eu decoro tudo, faço
ornamentações da vida e todas mulheres admiram-se; admiram-se até
um dia, o dia em que a festa acaba e alguém vem recolher o material.
As estórias que contam sobre a minha pessoa começam com amor e
terminam com amor, bem ou mal. Toda gente fala mal de mim. Não gosto
de ser dominado, e quando isto acontece me sinto um cachorro sem-
abrigo, precisando de ração e duma dona. Mas o problema é que eu sou
mesmo um cão, aparentemente, porque não penso além do que posso e
sequer do futuro.
Sempre que sou colocado a prova e questionado sobre os meus
planos para o futuro, se quero ou não me casar, eu respondo duas vezes.
A primeira vez, respondo-lhe bem baixinho que só meu coração ouve:
prefiro acasalar; a segunda resposta é a mais vulgar, aquela que quem
pergunta tenciona ouvir como resposta: quero casar contigo e ter uns
quantos coiotes, um time de futsal, e até imagino-os correndo aqui na
sala de casa, seremos felizes e vou lutar para isso.
E como sempre, quando toco esta música, ela cai feito uma
patinha. Esta é a melhor parte da música que lhes dou para ouvir, devia
chamar esta parte de “coro”, mas prefiro que fique assim, porque sen~o a
música era toda feita de corinhos.
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Não consigo perceber por que razão as mulheres são
complicadas. E complicadas é favor, as mulheres são estranhas. Gingam
quando não devem, negam quando querem, aceitam quando não é
oportuno e usam-nos (nós homens) quando precisam. Porquê? Porque
somos muito sensíveis e temos certas partes que quando nos tocam
morremos de desespero; porque enviamos as nossas preocupações para
órgãos mais decisivos do nosso corpo deliberarem sobre o sim ou não de
arriscar.
“Homem n~o presta”, quem nunca foi esfregado com essa na
cara não é Homem, pode ate ter um grande calhau, uns músculos e umas
medalhas de mérito, mas, se nunca foi dito isto, ainda que seja por
brincadeira então que não se preocupe pode jogar noutro time. Homem
que é homem não presta e digo isto todos dias a mim, mas, nunca me
convenci desta treta de que homem não presta, porque mulher é
inteligente e esperta. Conseguiu Deus colocar num só corpo duas
qualidades, inteligência e esperteza, mas como foi tão notável que estas
qualidades não as tornava mais que os homens, então, atribui-lhes mais
três qualidades, vaidade, orgulho e interesse.
Qualquer mulher tem estas cinco qualidades, umas têm mais que
as outras e outras menos ou em proporções diferentes, mas, nunca na
vida encontrareis duas mulheres iguais. Porquanto que penso na minha
dúvida, sempre.
Homem não presta, então porque será que seres tão inteligentes, como
as mulheres são, precisam, vivem, cooperam, e amam homens?
Por isso definitivamente digo: se os homens não prestam e
mulheres não valem nada, porque só uma falhada iria querer uma treta
que não prestasse, ou então, homens prestam e mulheres falham na
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escolha certa do homem. Não existe tipologia para a classe dos homens.
Fisicamente são todos iguais, com músculos mais desenvolvidos, peito
uniforme, com o mastro entre as pernas, ancas menos desenvolvidas, voz
roca e muito mais.
Mas depois da parte física ficam mais coisas por ver, quem é
quem, que faz o que, e o mais importante que tudo, o que tem o quem?
Não chamo as mulheres de interesseiras no sentido negativo das coisas,
embora tenha motivos e aparentemente justos, mas, quando me refiro ao
voc|bulo, tenciono dizer “objetividade”.
A função objetivo é utilizada por todas as mulheres depois de
tanto brincarem (ou não) e descobrirem que o osso está cada dia mais
crescido, portanto, quando elas chegam a conclusão que está ficar difícil
encontrar um labrador que consiga roer o tal osso. Porque ao final das
contas, o amor também é um interesse.
Interesse para mim é tudo aquilo que motiva quer seja um homem ou
uma mulher a fazer algo, portanto, ser interesseiro é uma forma de viver;
de viver por objetivos. Então não é uma má qualidade quando algum de
nós pretende alcançar um certo objetivo quer seja na vida ou para a vida.
E aqui está a grande diferença entre as mulheres e os homens, e entre as
mulheres e mulheres, e entre os homens e homens.
Ter objetivos…
Objetivos na hora, no momento ou na vida. Parece claro que os
que tem objetivos no momento, na hora, no minuto quando se trata de
relacionamentos, são os maus da fita. Porque não pensam no amanha e
nas possibilidades da vida, tanto que a grande preocupação é satisfazer o
seu interesse naquele momento. Vendo por outro lado, objetivos para o
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amanha, para a vida é coisa de um grande homem ou então dum
submisso, grande animal que loucamente domesticado foi.
Amar não é estranho, há seculos que o homem vem amando uma
mulher. Todos os dias existem exemplos que nos chegam aos tímpanos,
quer seja no trabalho, no transporte público, na radio, sempre alguém
nos fala de amor e nos encante com lindas estórias da vida feita por
vinculo do amor. Mas, o amor não é essa merda toda que se fala por ai,
não esta asneira toda que os seres humanos vomitam quando estão de
bem com a vida. Se tivesse que existir o amor seria uma razão de vida e
uma forma comportamental de ser. Eu amaria, tu amarias, nós os
homens, amaríamos a forma de ser, antes da forma física de ser.
Que raio de amor existe num homem que olhou para o tamanho
do rabo da mulher antes que lhe visse a cara? Amor é tudo, sentimento,
objetivo, interesse, vaidade, violência, desprezo, estupidez, tudo, menos
solidão. É verdade que no amor não há solidão, porque a única prova
viva e indiscreta de que o amor existe é a solidão. Os homens amam as
mulheres para não ficarem sozinhos e as mulheres não fogem a regra,
um dia sentem a necessidade de desencalhar, de limpar as teias de
aranha, de sentir um calor ou então de sentir sufocadas tentando
respirar quando ao mesmo tempo sentem a vontade de não respirar,
sentem que respirar é desvantagem e que se calhar o melhor é beijar.
Amor e ternura combinam, amor e odio equilibram-se, amor e
interesse vinculam-se, amor e sacanagem contemplam-se, amor e sexo
sustentam-se, amor e homem enganam mulheres, amor e mulher
aprisionam homens, então, o amor faz tudo, faz milagres.
Costuma-se dizer que amar é atitude de uma pessoa decente e
naturalmente sustentável por sentimentos nobres. Eu também sou
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decente, falo bem, visto formalmente, converso normalmente, não
ofendo ninguém, sou calmo no relacionamento profissional, nas
amizades, gosto de mulher, faço sexo, beijo, creio em tudo que seja
credível, mas não sou parvo para aceitar que amor seja atitude de pessoa
decente, porque repito que amor não existe, e se, supostamente amor e
decência tem algo a ver, então extinguimos a decência dos vocábulos
sérios da língua falada pelos homens. Não existe decência, existe uma
asneira qualquer que ainda não tem nome.
Ou então digamos que é impossível viver sem amor e
concordamos com todos os românticos. Se for por ai, volto a ser músico e
busco as minhas letras para encantar para meninas, o meu corinho,
aquele que nenhuma rapariga resiste.
Mas na verdade há muito que um homem precisa aprender antes
que ignore a sua própria vida, alias, aprender que na vida nada é por
acaso e raramente os caminhos mais curtos são os melhores para se
chegar a um destino ou objetivo. São as experiencias da vida que mudam
as pessoas, que mudam os homens e as mulheres.
Embora a sociedade pense que as mulheres são mais frágeis que
os homens e procure mil argumentos para esta fragilidade, a mulher vive
tranquila e indiferente ao assunto, muitas das vezes se fazendo passar
por “distraída” quando na verdade “mulher só se distrai por mero
interesse”. Entretanto, a mulher n~o é um ser estranho { natureza em
termos comportamentais, tanto que, é participativa, responsável e acima
de tudo boa ouvinte. Exatamente! Uma mulher definitivamente é boa
ouvinte, escuta, trata e armazena a informação duvidosa que recebe,
porquanto que quando as evidencias venham a convergir, possa fazer
justiça. Então a justiça de uma mulher é sempre imprevisível.
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A minha primeira paixão foi coisa de novela, e marcou-se
fortemente pela vontade de estar com a rapariga por quem tinha uma
forte simpatia. Era muito cedo para perceber o que era amor de verdade,
e, se realmente o amor existia? Amor era o sentimento de proximidade e
confiança que tinha pela minha mãe, era a vontade louca que tinha de
estar nos braços dela, chorando por algo que sequer me fazia falta. A
paixão que tinha pela minha progenitora resumia-se numa dependência
direta, não podia viver sem ela, e, como era óbvio nem ela sobrevivia sem
a minha nobre criatura. Eu e a minha mãe nos amávamos loucamente,
até que certo dia comecei a ter um enorme interesse em ver a rapariga
do liceu onde frequentava.
Independentemente da idade do homem, existe sempre uma
mulher em equilíbrio na sua consciência. Os ensinamentos divinos
explicam ao certo do porquê desta constante ligação do homem para
com a mulher. Aprendi através de um homem indicado por Deus para
ministrar a catequese na igreja onde vagueava nos sábados à tarde, que
certo dia o homem adormeceu tanto, devido ao trabalho que tinha num
mundo onde somente ele era capaz de raciocinar.
O tal homem, o “adormecido” estava t~o cansado do trabalho
que vinha efetuando em torno da terra que hoje pilhamos
desrespeitosamente. Por ver que sozinho o homem n~o conseguia “dar
conta do recado” ent~o foi dele arrancada uma parte bem grossa da
costela. Entretanto, dessa parte foi construída a mulher, esta que hoje
não vive sem o homem e vice-versa. Naquela noite durante o sono do
homem, o pai divino explicou ao homem que aquele ser a quem o
entregava para cuidar, seria a sua companheira e viveriam anos e anos
juntos até que um traísse o outro. Porém, como o homem sempre foi
lento nas ideias, demorou um pouco até que a mulher o traísse. A traição
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existe desde que este triste episódio se sucedeu. Foi a mulher a primeira
a trair segundo o velho testamento.
Apesar de terem passado dois mil e tantos anos desde a primeira
e histórica traição que o mundo viu, continua a mulher traindo o homem
e homem traindo duas vezes mais a mulher. Se tivesse que prestar as
contas das traições que os seres humanos se submetem, claramente que
perceberíamos que nenhum homem é estritamente fiel. E, não precisava
de o ser. Por isso eu nunca me dei ao luxo de ser fiel, e julgo que nem as
mulheres se dão o luxo de serem fiéis; porque nos são fieis os animais
irracionais, estes obedecem aos nossas vontades, quer esteja estas bem
ou mal. Mas, na verdade amor e fidelidade conjugam porque é tudo
parvoíce. Há quem por amor mata para agradar ao companheiro, há
quem por amor se suicida, há quem por amor rouba, há quem por amor
espanca, viola, agride.
Será que o amor nas suas artimanhas é digno e justo? Pode ser
que sim, depende de como a pessoa define o amor. Se quem ama tem o
dever de fidelidade, então obedece as vontades do amado e mata. Se
matou por amor então não deve ser julgado por tal ato, mas, condenado
por ter tirado a vida doutro ser. Outrora, o amor aumentou de nível e a
consideração duplicou por tal prova de amor.
Daqui pude perceber que o amor não é justiça, mas cumplicidade.
Na minha vida o amor só tem duas grandes bases, a sustentação
e a dependência. Toda gente que ama depende; as suas vidas são
totalmente vinculadas pela vida da pessoa quem ama, e, bem-haja que
quando está dependência se estende nos dois sentidos, se torna
sustentável. Sustentar um amor, digamos que seja, fazer tudo que seja
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possível para que este sentimento cresça e se torne mais significativo
que tudo ao redor; tudo ate a natureza.
Então depois de tanto pensar sobre o amor e a vida, eis que dou
de cara com a verdade de que o amor é o que nós próprios queremos que
seja. Amor pode ter muitas formas de se manifestar; amor não tem um
significado certo, mas, tem o preço certo.
O preço do amor que tive foi retificar o conceito de amor, e torna-lo um
pouco mais serio do que já o imaginei.
Cresci pensando que o amar é coisa de mulher e que para o
cúmulo, coisas de homem eram ajudar a mulher a alcançar o amor.
Tarefa tão fácil e aconchegante; tarefa para passar o tempo e ter
recompensa. Só que se pode pensar assim até o dia em que se cresce
emocionalmente, porque a dada altura, o juízo nos torna conscientes das
nossas responsabilidades e atribui-nos uma companheira, a quem
teremos o dever de lealdade sem exceção.
Eu era um rapaz sortudo e um feliz músico.
Tinha grandes potenciais na conquista do sexo oposto; até aos
dezasseis anos eram todas tao pacificas e achavam-me engraçado. Nas
turmas do primário por onde passei, destaquei-me por pautar duma
inteligência extremamente estranha e brutal. Não era muito de rever
lições e quando por doença alguma o decidisse fazer, tinha sempre o
coeficiente máximo das provas, ou seja, se era um bom aluno, então
obviamente que tinha uma boa namoradinha e de preferência a mais
cobiçada pela rapaziada. Portanto, tao cedo, notei que uma mulher que é
boa para um homem casar, deve ser aquela que todo homem quer e
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ninguém a consegue; toda gente lhe quer e ela rejeita toda gente, menos
eu.
Os primeiros sinais de que seria maluco por mulheres como sou
hoje surgiram nessa época, aos dezassete anos era incontrolável e já
partia muitos corações. Lembro-me de como elas choravam cada vez que
me viam a estrear uma substituta. Mas, por outro lado, esta minha forma
de ser pode estar ligada aos genótipos e fenótipos passados durante anos
e anos na minha família. Várias vezes ouvi conversas entre primas e tias,
reclamando dos comportamentos dos homens da minha família
relativamente ao casamento. Tal que não me espanto, não é novidade ter
mais uma companheira.
Nessa época era muito perigoso ter apenas uma companheira,
eramos todos adolescentes e por azar, totalmente dependentes dos
ideais dos nossos progenitores. Qualquer que fosse o programa que
tivesse com uma das meninas, era suscetível de adiamentos, se por
descuido alguém de casa se lembrasse de sair para compras, cemitério,
igreja em família. Era uma merda de vida ficar a espera da menina a
tarde toda de sábado e ela não pudesse aparecer, e sequer tinha como
enviar uma mensagem; telemóvel é coisa duma geração que não vivi em
tempo certo. Portanto, eu tinha sempre uma em cima do programa e
outra a margem do programa, mas, de qualquer forma todas dentro do
planeamento de atividades para sábado depois da catequese.
Tive uma sorte muito grande na época porque a principal
menina, a que prefiro chamar “number one”, tinha um encarregado de
educação suficientemente ausente. O tipo trabalhava a quilómetros do
nosso bairro e vinha uma vez e outra ver a família, mas, bom que isso é
que por vezes tinha que ser a mãe da number one a deslocar-se para
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junto do pai. Quando isso acontecesse, só, e somente podia ser uma
bonança do senhor meu Deus, porque a vida não é fácil o quanto parece.
Havia eu que desconfiar. Então, nos felizes dias em que a dona de casa se
destacava em busca do amor, para terras onde Judas perdeu as botas, eu
me destacava por ordens dos meus sentimentos para terras que não
distavam mais de um quilómetro, em busca do meu primeiro amor.
Aproveitávamos tanto aqueles momentos que nos fomos
viciando a cada encontro. Lembro-me que havia uma árvore junto ao
portão da casa de number one, a famosa árvore da qual originou o nome
“cidade das ac|cias”. A ac|cia fazia uma penumbra extremamente útil
para camuflagem em momentos de tensão, quando por descuido algum
aparecessem pessoas imprevisíveis ou então quando no meio da festa, o
casal que devia estar a quilómetros de terra fazia-se
surpreendentemente ao lugar. Admirava-me a forma como
conseguíamos gerir o tempo e as oportunidades que nos vinham
aparecendo, mas, não podia de forma alguma viver sem um plano
alternativo de amor. Tinha sempre a “number two” pendente.
A number two carecia de mais cuidados que a primeira uma vez
que tão poucas vezes lhe podia ver. Era uma espécie de Serviço
Individual de Salvação (SIS), contactada muitas vezes para apagar fogos
de origens desconhecidas. Posso até atrever-me dizer que mulheres SIS
geralmente deixam muito a desejar, estas quando não estão presentes
não sentimos tanto, mas, também reconheço que quando estão presentes
fazem uma enorme diferença.
Sempre tive uma ótima desculpa para as vezes em que previa que a
number one iria desiludir-me, porquanto que deixava sempre claro que
viria ter com a number two e certas vezes tive de sair da casa da number
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one bem apressado, a fim de conseguir tomar uma duche e visitar a
number two no mesmo dia. Um luxo que nunca dei a qualquer das
minhas amadas era que desconfiassem do verdadeiro ser que vivia em
mim, eu.
Mas porque antes da primeira traição que o mundo viu, foi
arrancada uma costela do homem e se atribui aquele pedaço de costela
para a mulher se constituir; tal pedaço foi tão grande que justifica o
porquê das mulheres do mundo terem um corpo extremamente formoso
e doce de se apreciar. Foi Deus que deu as minhas colegas, aqueles
formatos e aquelas simpatias, tal que sem querer, senti que ainda podia
ter mais uma. E não falhei, conheci e criei fortes ligações com a minha
adjunta “subchefe de turma”. Este cargo era atribuído a rapariga mais
inteligente da turma quando o chefe de turma fosse um rapaz e vice-
versa. Embora fosse aparentemente parvinha, a rapariga é dotada dum
relevo extremamente complicado de se estudar. Tinha as planícies bem
definidas, os planaltos com configuração divina e feitos aos critérios da
perfeição para aconchegar as inocentes himalaias. Aquela
mulher,menina, rapariga, como queiram chamar, era um exemplo da
retificação que Deus fez da number one e number two, então, nessa
época veio um anjo até a mim que disse “n~o lhe consideres number
three, atualize a lista”. E, eu que sempre fui obediente assim o fiz, passei
a one para two e a two para three. Quando fiz isto, dei de conta que havia
uma vaga privilegiada para gestora principal ou seja tinha um lugar para
uma nova gerente na minha vida.
Decide vender um pouco do meu pescado e fui sempre com a
mesma cantiga, como já tinha dito, está música não falhava, com a ajuda
do meu mérito e cargo na turma, acertei na mosca. E passei a desfilar nos
intervalos com a nova moeda, a mais recente numero um.
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Para os meus amigos, eu era um acontecimento impossível na estória da
turma, podia não ser o mais capacitado financeiramente, não vestir a
melhor roupa ou calçado, mas, de todas vezes que anunciava “ a abertura
da época de caça” eu “matava a melhor gazela”. Era um caçador furtivo. E
assim vive durante quatro anos da minha vida no secundário. Sempre no
mesmo ritmo e na mesma rotina com novas presas, tal que, a dada altura
senti que tinha de mudar de palco. Aquela escola já não tinha nada de
especial em matéria de meninas, tinha que alargar os meus horizontes na
zona onde morava ou nas escolas dos meus amigos do bairro.
Quando fiz dezoito anos senti que algo estava a mudar na minha
vida e o quão me estava tornando impaciente para as três mulheres da
minha vida. Já estávamos todos crescidos e tínhamos a noção das nossas
responsabilidades com o mundo e com as epidemias que assolam o
mundo. Percebi que estava mais que na hora de dispensar pelo menos
uma das três raparigas que namorava.
A decisão não me era muito comoda porque ainda precisava do
SIS muito mais que na época em que fundei o conceito de SIS. Mas, a
pressão exercida pela comunidade de amigos e familiares era superior
que o meu desejo em ser polígamo de namoradas, tive de ceder. Foi ai
que então resolvi estabelecer os princípios de seleção de mulheres pela
primeira vez na minha vida, e perguntei a mim mesmo “ o que era uma
verdadeira namorada?”. Para a minha pouca sorte n~o tive grandes
respostas como esperava, dai que, resolvi compartilhar a minha
preocupação com um grande amigo, contei-o.
Naquele dia, o meu amigo me fez entender que na vida as vezes é
preciso usar uma coisa que se chama timing; o tal timing era uma forma
de olhar para as nossas preocupações a distancia e deixar que se
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resolvam por si só. Pareceu-me comodo e fácil observar os problemas
que eu mesmo criei e de certa forma até poder pensar em torno deles
sem interferir no dia-a-dia das minhas relações. E, sucedeu que segui o
conselho.
Certa tarde a number one ligou para o número da minha casa e
pediu que alguém me chamasse urgentemente, era sempre assim quando
era a suposta sogra a atender-lhe, fingia que havia uma ficha de
exercícios pendentes e sei lá mais um monte de coisa. Pobre da mãe que
tenho, não percebia o porquê da aflição da miúda, mas sempre a ajudava-
a e para tal gritava “filhooo”, e, eu j| sabia quem era “number one” a
única que sabia que podia ligar para o meu fixo. As outras não podiam
nem deviam ligar porque sabiam que a minha mãe era uma ferra e não
suportava essa brincadeirinhas no telefone dela. Assim, limitei eu as
chamadas da number two e three por algum tempo.
“Estou sim”, respondi calmamente para n~o deixar ares de quem falava
com a namoradinha, “oi amor, tudo bem?”. “Tudo e contigo?”
“Também estou, mas, assim, assim. Ser| que te posso vir ver?”
“Claro colega passa daqui {s quinze e tal que eu já terei separado a ficha
que precisas…” e falava eu um monte de coisas sobre os senos e
cossenos, que a minha mãe, mesmo ao lado do telefone e ouvindo do
fundo a conversa, se convencia que aos sábados o filho abria os livros, e
mais, tinha colegas dedicadas.
Eu também tinha o domínio dos turnos da minha mãe que era
copeira numa empresa de catering. A empresa para a qual minha mãe
trabalhava, prestava serviços para os aviões e servia em regimes de
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turnos. Portanto, eu sabia quando saía a senhora copeira de casa e
quando saía a senhora copeira do trabalho.
A partir desta época passei a namorar em casa e evitava
encontros em casa ou na zona das raparigas com o receio de ser visto por
ai com qualquer uma das três, mas, não sei se existia um outro grande
risco além do que corria quando as levava para paragem de autocarro.
Certa vez minha mãe decidiu passar um tempo em casa por
gozar de direito de férias e para mim foi a maior tortura de sempre. A
minha mãe raramente saía de casa ou então recebia muitas visitas num
curto intervalo de tempo, não dava sequer para esconder quaisquer das
numbers no quarto, porque o acesso ao quarto só era possível a através
do corredor que passa pela sala de estar ou pela janela do quarto, mas, o
que mais me irritava é que nenhuma mulher gostava de entrar pela
janela, e todas elas gostavam de sair da janela quando a velha lembrava e
tentava abrir a porta do quarto. Nesses momentos fingia estar embalado
num grande sono, quando na verdade ela se estava vestindo e eu
recolhendo os preservativos do chão.
Chamavam-me irresponsável porque namorava três meninas,
mas, sempre me intitulei de homem. Porque só pode namorar três
mulheres, simultaneamente, um homem com um bom instinto de gestão
de recursos humanos e sobretudo na área do pessoal feminino, o que não
é fácil. Gerir uma relação é fácil, mas, não significa necessariamente ter
controlo desta mesma relação. Certas vezes os homens gozam de ter
feito tantas porcarias na vida enquanto as mulheres vão fazendo
porcarias sem que haja gozo. Se costuma dizer que o homem precisa de
uma oportunidade para trair e a mulher de uma raz~o. Treta…
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Tanto como a mulher, o homem apenas carece de uma vítima ou
oportunidade, mas, em contrapartida o homem se comporta como hiena
e a mulher como leão. Enquanto para o homem é formidável caçar a
presa mais frágil do grupo, para a mulher é melhor que seja o mais
oportuno, o mais isolado, o que come erva longe dos outros, porque esse
sim, come e cala.
E qual a mulher que não gosta quer tem um bom leão?
Outras coisas!?
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