kempinska, o conceito de neutralidade no discurso da história

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Kempinska, O Conceito de Neutralidade No Discurso Da História

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  • O conceito de neutralidade no discurso da histria:entre os Geschichtliche Gundbegriffe e Le Neutre

    The concept of neutrality in the discurse of history: between GeschichtlichGundbegriffe and Le NeutreOlga Guerizoli KempinskaProfessora SubstitutaUniversidade Federal Fluminense (UFF)[email protected] de Letras - Bloco CCampus do Gragoat - So DomingosNiteri - RJ24210-200

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    ResumoEste estudo consiste numa reflexo sobre dois sentidos possveis do conceito deneutralidade. Uma confrontao do sentido dado ao conceito pelo discurso dahistria no verbete intitulado Neutralitt do dicionrio GeschichtlicheGrundbegriffe com a proposta de Roland Barthes em seu curso sobre o Neutro,mostra um contraste entre um discurso regido pela hierarquia, completude econflito, e um outro discurso que, fragmentrio e aproximativo, tenta evitar oconflito como seu princpio de organizao.

    Palavras-chaveHistria dos conceitos; Neutralidade; Roland Barthes.

    AbstractThis paper aims to reflect on two possible senses of the concept of neutrality. Aconfrontation between the sense given to this concept by the historical discoursein the dictionary Geschichtliche Grundbegriffe and Roland Barthess propositionin his lectures about the Neutral, shows a contrast between a discourse dominatedby hierarchy, exhaustivity and conflict, and an other discourse witch is fragmentaryand approximate, and tries to avoid the conflict as the principle of its organization.

    KeywordHistory of concepts; Neutrality; Roland Barthes.

    Enviado em: 18/12/2008Aprovado em: 04/02/2009

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    Neutrality is no longer feasible or desirablewhere the peace of the world is involvedand the freedom of its peoples.Presidente Wilson, em 1917 (BROWN SCOTT1921, p. 89)

    Este estudo tem por objetivo uma anlise crtica do conceito deneutralidade, bem como uma reflexo sobre os lugares, reais e possveis,passados e presentes, deste conceito no discurso da histria. Duas perspectivasmuito diferentes serviro de base a essa tentativa de mostrar o carterproblemtico do conceito em questo. Primeiramente, o verbete intituladoNeutralitt do dicionrio Geschichtliche Grundbegriffe (SCHWEITZER eSTEIGER 1978), que apresenta o desenvolvimento histrico completo doconceito em trs domnios distintos: na poltica externa (e, posteriormente, nodireito internacional), na poltica interna e no mbito de questes ligadas religio. Em segundo lugar, ser levada em conta a proposta de Roland Barthesque, em seu curso ministrado no Collge de France em 1977-1978 (BARTHES2002), leva a cabo uma anlise interdisciplinar da noo de Neutro dentro deum horizonte de reflexo fortemente marcado pela preocupao tica.

    Antes de passar anlise das duas reflexes sobre o conceito deneutralidade, preciso perguntar-se o que significa neutro na linguagemcotidiana e que aspectos do campo semntico desta palavra foram assimiladospelo discurso da histria. No suprfluo lembrar que a palavra neutro provmdo latim ne-uter, que significa nenhum dos dois, de modo que o conceito deneutralidade nos remete propriedade de um elemento ao qual no se atribuinenhum dos valores de uma contraposio (AUROUX 1990, p. 1744). Noentanto, atravs da maneira como esse conceito foi tratado no verbeteNeutralitt do dicionrio Geschichtliche Grundbegriffe (SCHWEITZER eSTEIGER 1978), percebe-se que, analisada a partir da perspectiva de suaformao histrica, a neutralidade no se nutre desta falta de atribuio de umdos valores de uma contraposio, mas, antes, parece estar sempre ligada aum sistema de oposies em que logo se revela um imperativo tico, quejustamente exige a opo por um determinado campo de valores. Assim, asacepes histricas de neutralidade que se desenvolveram nas esferas dapoltica externa e da poltica interna parecem sempre remeter no simplesmenteao estado neutro nenhum dos dois, onde a escolha entre campos ou valoresest suspensa , mas, antes, ao problema da necessidade da escolha entredois campos em tenso. Dessa maneira, o conceito de neutralidade, tal comoelaborado concretamente no discurso da histria, costuma remeter, de fato, existncia real ou potencial, manifesta ou latente, passada, presente ou futura,de um conflito.

    Situado no mbito de um conflito, o conceito de neutralidade revela-se,no domnio da poltica externa, de fato no apenas to antigo quanto o prprioconceito de guerra, como tambm se pode dizer que ele um reflexo dasguerras. Por isso, j no mundo antigo, a neutralidade pode ser compreendida,

  • enquanto fenmeno, somente em relao a uma guerra em curso ou futura(SCHWEITZER e STEIGER 1978, p. 317). Ser neutro significa, assim, para umestado, no tomar parte em uma guerra entre outros dois ou mais estados.Com o surgimento, no sculo XVI, do conceito de direito internacional, queencontrar sua consolidao no sculo XVIII, a neutralidade v-se ento cadavez mais associada a um conjunto de direitos e obrigaes legais. Os difceisdebates que tm como foco a definio desse aparato legal e a verificao dacompatibilidade das decises econmicas, estratgicas e morais com os direitose obrigaes resultantes do estatuto do neutro, retomados com freqncia emdiferentes momentos da histria moderna, continuam na poca contemporneasem encontrar seu termo e, nesse sentido, a questo da neutralidadefreqentemente aparece como um impasse ou como um estado teoricamentedesejvel e, no entanto, impossvel de ser atingido na prtica:

    A histria das duas Guerras Mundiais mostrou com uma grande clareza queos neutros, para proteger a sua neutralidade, tm de aceitar muito maisobrigaes do que est previsto por lei. Naturalmente, isso vale para ofuturo sobretudo no que diz respeito aos pontos litigiosos. Tentativas decodificao dos direitos ligados neutralidade antes de mais nada levando-se em conta as variaes de opinio como uma progressiva codificao no esto em vista. (SCHWEITZER e STEIGER 1978, p. 366)

    Aqui se deve colocar em evidncia que, embora direitos e obrigaestenham sido por vrias vezes redefinidos, o sentido fundamental da neutralidadeno contexto da poltica externa, a saber, abster-se de tomar parte em umconflito, permanece, ao contrrio, perfeitamente estvel ao longo dos sculos.

    O uso da noo de neutralidade no domnio da poltica interna que, iniciadoainda no sculo XVI, permanece todavia durante muito tempo dependente dosproblemas da poltica externa, encontra, por fim, no sculo XIX, sua expanso.Seu mbito de validade encontra-se na relao entre o estado e a sociedade.Esse uso da noo de neutralidade tem suas origens em um uso historicamenteconcreto e ligado ao conflito entre estado e Igreja. Na esfera da poltica interna,o conceito de neutralidade aparece sobretudo no contexto dos diversos conflitosentre o poder poltico (governo, instituies) e os outros processos, interesses,questes econmicas, atitudes espirituais etc. presentes na vida social.

    A estreita relao que a noo de neutralidade mantm com a idia deconflito encontra sua confirmao tambm na esfera da religio, bastantecomplexa porque relacionada a trs tipos de conflito: conflitos no mbito dapoltica externa (como, por exemplo, as guerras de religio), da poltica interna(a atitude do poder poltico em relao s questes da f, sobretudo) e,finalmente, o conflito no mbito interno da Igreja (conflito teolgico). possveltambm classificar, de maneira mais simples, os conflitos de religio comoexternos (polticos) ou internos (teolgicos) Igreja. necessrio, porm, levarsempre em conta a dificuldade de traar limites ntidos entre essas esferas.

    Assim, no mbito das disputas teolgicas que tiveram lugar entre os sculosXI e XV, o problema da neutralidade relaciona-se simultaneamente aos conflitos

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    chamados externos e aos internos: A estrutura particular da atitude da Igrejana Idade Mdia como uma fora poltica e como uma instituio espiritual emrelao s unidades polticas vistas como corpos autnomos e, ao mesmotempo, como membros da Igreja, torna difcil a qualificao ntida da neutralidade(SCHWEITZER e STEIGER 1978, p. 342). Percebe-se que a neutralidade nosignifica aqui indiferena s questes da f, mas, antes, uma recusa de tomarposio frente ao conflito entre os pretendentes ao trono papal. Nesse contexto,a busca da neutralidade tem por objetivo, por um lado, a conservao daunidade da Igreja contra as aspiraes dos pretendentes (conflito interno) e,por outro, a luta do estado pela independncia frente influncia eclesistica(conflito externo).

    A essa segunda meta, ligada ao surgimento da neutralidade religiosa,corresponde um longo processo histrico de emancipao do estado, que ganhavulto sobretudo na poca da Reforma e da Contra-Reforma. Nesse perodo, otermo neutralidade costuma ser usado em dois sentidos. No primeiro, que seliga dimenso externa e poltica da religio, neutralidade se identifica com aautorizao de vrias confisses, sejam essas as grandes religies ou novasseitas. nesse sentido que se costuma tambm usar a noo de tolerncia,que ser, porm, profundamente revista ao longo do sculo XVIII. O segundosentido caracterstico do termo neutralidade nos sculos XVI e XVII exprimeo distanciamento interno das trs grandes confisses (luterana, calvinista ecatlica) e tem, assim, uma dimenso fundamentalmente interna ou teolgica(SCHWEITZER e STEIGER 1978, p. 342).

    No sculo XVIII tem lugar uma discusso em torno ao conceito detolerncia, elaborado no mbito de conflitos ligados ao cristianismo. Confundidaat ento com a neutralidade, a tolerncia comea a se distinguir nitidamentedaquela. Com efeito, no caso da tolerncia, existe o pressuposto de uma verdadenica, mas, apesar disso, a atitude tolerante justifica a existncia do erro comoalgo que tem por base o desconhecimento da verdade. Roland Barthes, quetambm reflete sobre essa distino, sempre muito frgil mas, ao mesmotempo, importante porque diz respeito aos limites da prpria neutralidade, notaa esse propsito: (...) para que haja tolerncia necessrio que ela faa partede um sistema de discurso, da ideosfera (esfera verbal): o prprio sistemaque coloca e limita a tolerncia (BARTHES 2002, p. 204). Dessa maneira, aneutralidade, querendo-se uma recusa de ser parte de um conflito, deve serrigorosamente distinguida da tolerncia. No caso da tolerncia existe, com efeito,uma autoridade ligada ideosfera, que toma parte no conflito religioso emtorno f verdadeira e nica, e que somente tolera uma atitude diferente.

    A anlise do desenvolvimento histrico do conceito de neutralidade mostra,assim, por um lado, uma variedade e uma multiplicidade de ocorrncias e usosdo termo e, por outro, uma surpreendente estabilidade de seu sentido bsico,essencial e imutavelmente ligado idia de conflito. A proposta de RolandBarthes, apresentada em seu curso no Collge de France, tenta, ao contrrio,deslocar a neutralidade para fora do conflito. O que Barthes chama de Neutro

  • uma categoria geral e interdisciplinar, originalmente induzida do gnerogramatical neutro nem feminino nem masculino. O caracterstico do Neutro o fato de ele sempre tender a suspender um paradigma, ou seja, um sistema deoposies, e de justamente impedir que haja a necessidade de uma escolha:Defino o Neutro como o que quebra o paradigma, ou, antes, chamo de Neutrotudo isso que quebra o paradigma (BARTHES 2002, p. 31).

    Referindo-se ainda ao conceito de paradigma, definido como oposio dedois termos dos quais atualizo um para falar, para produzir sentido (BARTHES2002, p. 31), Barthes situa sua reflexo numa herana da perspectivaestruturalista. Ao mesmo tempo, ele tenta ultrapassar a nica maneira deproduo de sentido proposta pelo estruturalismo, a saber, a produo quesempre tem por base uma oposio, uma escolha diferencial binria de umtermo contra outro, ou, noutras palavras, a idia de conflito. A idia do neutrotorna-se assim, para Barthes, um empreendimento que visa anular a necessidadede conflito no processo de produo de sentido.

    A tentativa realizada por Barthes de situar o neutro para fora do paradigmaserve a contradizer a necessidade de conflito e revela, nesse sentido, umadimenso fortemente tica:

    (...) na medida em que o nosso Neutro se procura em relao ao paradigma,ao conflito, escolha, o campo geral de nossas reflexes seria: a tica,que discurso da boa escolha (...) ou da no-escolha, ou da escolha-ao-lado: do alm da escolha, o alm do conflito do paradigma. (BARTHES2002, p. 33)

    No mbito deste trabalho parece fundamental anlise do conceito deneutralidade confrontar essa tentativa de situ-la para alm da necessidade daescolha com a evidente dificuldade que, ao longo dos sculos, acompanha umatal atitude. Trata-se aqui, sobretudo, de se pensar a frmula que aparece pelaprimeira vez na poca do Imprio Romano: Quem no est comigo, estcontra mim, que reflete uma avaliao altamente negativa da neutralidade eque baseia at mesmo a sua proibio. De acordo com essa regra, os pactosde paz assinados por Roma excluam definitivamente a possibilidade daneutralidade (SCHWEITZER e STEIGER 1978, p. 318), de modo que, nessecontexto, aquela se encontrava impossibilitada justamente pela necessidade daescolha. Uma mesma ameaa de aniquilao completa da neutralidade pelaexigncia da escolha reaparece com fora na Idade Mdia, sobretudo na pocadas Cruzadas, com a formulao da doutrina da iusta causa:

    Esta doutrina, como encontrada em Agostinho e, mais tarde, em Toms deAquino, considerava uma guerra como justa e, assim, como autorizada,quando esta correspondia s seguintes regras: auctoritas principis, iustacausa, recta intentio e iusta pax. Uma iusta causa aparecia quando aguerra representava uma reao a uma injustia. Conseqentemente, nosomente era proibido apoiar de qualquer maneira o lado injusto, mas tambmo fato de no tomar parte nesse conflito era considerado como uma infraos obrigaes. (SCHWEITZER e STEIGER 1978, pp. 319-320)

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    A doutrina da iusta causa, que exclui totalmente a possibilidade da atitudeneutra, progressivamente abandonada a partir do sculo XVI. , porm, muitosignificativo que ela reaparea com fora, e como legitimao para aes blicas,durante a guerra dos Trinta Anos. A ocorrncia dessa guerra, ligadavigorosamente a questes de ordem confissional, mostra assim, desde umoutro vis, at que ponto o uso da doutrina da iusta causa pode ser destrutivo.Em conseqncia, a direo da poltica europia comea a visar, a partir deento, preservao do equilbrio entre as foras dominantes e, no bojo desseesforo, a neutralidade revela possuir um lugar preponderante. Finalmente,apenas no sculo XVIII, a doutrina da iusta causa parece ser definitivamenteabandonada. Para esse sculo, a discusso sobre a neutralidade no se ligamais sua legitimidade mas, antes, s suas conseqncias jurdicas. Oenfraquecimento da doutrina da iusta causa permite tambm que se fortaleaa formulao do conceito de imparcialidade (SCHWEITZER e STEIGER 1978,pp. 326-327), mais geral e extensivo que o de neutralidade, que, historicamente,relacionara-se sempre a um conflito concreto.

    No entanto, no sculo XX, durante as duas guerras mundiais, a neutralidadevolta a ser posta em questo: A fortuna da neutralidade no sculo XX foi amais instvel. As duas guerras mostraram que a neutralidade no pode esperarnenhuma salvaguarda (SCHWEITZER e STEIGER 1978, p. 331). A neutralidadeencontra, nessa poca, uma avaliao univocamente negativa. No decurso dasduas grandes guerras, enfatiza-se com freqncia a dimenso coletiva dasegurana e, por causa disso, as tentativas de no tomar parte num conflitoso vistas como, na realidade, um apoio ao inimigo. Com isso, a doutrina daiusta causa entra de novo em vigor e a prpria neutralidade volta, assim, a serimpossvel.

    Essas consideraes sobre o carter problemtico da neutralidade quandoconsiderada a partir o contexto do discurso da iusta causa demonstram o pesoque adquire, no discurso histrico, o questionamento da legitimidade, tica ejurdica, da neutralidade. tambm evidente que essa discusso se torna maistensa e mais urgente nos momentos de grandes conflitos polticos e que aavaliao da neutralidade nesses perodos costuma ser particularmentenegativa.

    Na perspectiva proposta por Barthes, a doutrina da iusta causa, da qualse deduz com freqncia a frmula Quem no est comigo est contra mime que acompanha o conceito de neutralidade no decorrer do seudesenvolvimento histrico, significa a necessidade imperativa da escolha, asituao na qual no possvel no escolher, porque tudo uma tomada deposio de um partido contra um outro. Essa necessidade anloga necessidade de escolher um termo contra outro para produzir sentido, prpriaao paradigma em sua acepo estruturalista. Toda tentativa de neutralidade,de evitar a escolha, resulta, nesse contexto, como fundamentalmente negativae acaba sendo sempre um fracasso, pois dentro do paradigma rgido no sepode no escolher e a no-escolha tambm uma escolha.

  • Com efeito, segundo Barthes, essa depreciao da neutralidade encontraseus traos no discurso, sobretudo na conotao pejorativa que se costumadar palavra neutro e aos adjetivos que expressam a idia de neutralidade, asaber: ingrato, fugitivo, feltro, frouxo, indiferente, vil. a imagem depreciativado Neutro ligada, antes de mais nada, conotao do adjetivo fugitivo que,segundo a proposta por Barthes, se relaciona diretamente aos argumentoscontra a neutralidade deduzidos, atravs de sculos, da doutrina da iusta causa:

    Fugitivo: sujeito ao Neutro: reputado fugir suas responsabilidades, fugir aoconflito, numa palavra muito infame: fugir. Com efeito doxa = vivecomodamente no paradigma (a oposio conflituosa): a nica maneira deresponder (de corresponder a um termo): contest-lo. No imagine queexiste uma outra resposta: resvalar, desviar, fugir; uma marca infame quese baseia num sofisma lgico: no se opor ser cmplice. (BARTHES 2002,p. 103)

    No se opor ser cmplice aparece, assim, como uma reformulaoperfeita da regra Quem no est comigo est contra mim, recorrente emvrios contextos histricos e cuja recorrncia depende diretamente da extensoe fora do conflito em questo. A popularidade dessa frmula e, em conseqncia,a recusa da neutralidade, baseiam-se numa viso de realidade submetida forma de conflito, o que Barthes chama de banalidade da noo de conflitona cultura ocidental:

    Que tudo no universo, o mundo, a sociedade, o sujeito, o real, seja submetido forma de conflito: no existe proposio mais banal: as filosofias ocidentais,as doutrinas, as metafsicas, os materialismos, as sensibilidades, aslinguagens correntes, tudo enuncia o conflito (o conflituoso) como a prprianatureza. (BARTHES, 2002, p. 165)

    Nesse contexto, o discurso da histria ocidental aparece no somenteimpregnado, mas tambm rigorosamente condicionado pela idia de conflito.Antes de mais nada porque esse discurso se liga ao que Barthes chama dearrogncia, ou de vocao vontade, prprios ao ocidente: (...) toda nossahistria, nossa narrativa histrica = sempre uma histria de guerra e poltica;nos concebemos a Histria unicamente como uma diacronia de lutas, dedominaes, de arrogncias, e isso bem antes de Marx (...) (BARTHES 2002,p. 197).

    Na perspectiva proposta por Barthes, o prprio discurso da histria ocidental, assim, fundamentalmente arrogante e isso, a saber, em dois sentidos. Emprimeiro lugar, porque a histria se d o direito de deter a memria ou deesquec-la, de conserv-la ou destrui-la e isso tudo atravs de uma intervenodogmtica. Em segundo lugar, porque ela se constitui em um discurso que querse apoderar dos, dominar os fatos escolhidos do passado (BARTHES 2002,p. 195). justamente esse paradigma, essa arrogncia, essa inscrio nombito de um conflito, que o Neutro, tal proposto por Barthes, pretendesuspender e, finalmente, quebrar:

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    Digo ento que o desejo do Neutro o desejo de:- primeiro, suspenso (poch) das ordens, leis, cominaes, arrogncias,terrorismos, ultimatos, desejos de apossar-se.- depois, por aprofundamento, recusa de um simples discurso decontestao. (BARTHES 2002, p. 38)

    A proposta de Barthes de como se evitar a arrogncia do discursoaparece atravs da prpria exposio do curso. Longe de ter a pretenso daordem, da hierarquia e da completude manifestas no verbete Neutralitt dodicionrio Geschichtliche Grundbegriffe, o Neutro de Barthes apresentadoem trinta figuras, numa exposio livre que uma seqncia descontinua ealeatria de fragmentos. Cada fragmento , por sua vez, no sobre o Neutro,mas no qual, de maneira mais vaga, h Neutro (BARTHES 2002, p. 35). Barthesinsiste repetidas vezes na necessidade do carter no-exaustivo e aleatriodessa exposio: Princpio assumido de no-exaustividade: criar um espaoprojetivo, sem lei do sintagma (BARTHES 2002, p. 35). Essa organizao dodiscurso em seqncias descontinuas e aleatrias, sem lei do sintagma, querenuncia exaustividade, permite, segundo Barthes, escapar ao carterdogmtico, ou arrogante, do discurso, principalmente porque nessa exposiotem lugar a recusa de uma concluso. Dessa maneira, o Neutro mostradoou descrito, e no demonstrado, explicado ou definido, podendo, nessesentido, escapar do paradigma:

    O acaso. Em que ordem dispor as figuras, pois necessrio que o sentidono pegue? (...) Todo plano (grupamento temtico) sobre o Neutroacabaria fatalmente opondo o Neutro arrogncia, quer dizer, reconstruindoo paradigma que o Neutro precisamente quer quebrar: o Neutro se tornariadiscursivamente termo de uma anttese: expondo-se, ele consolidaria osentido que queria dissolver. (BARTHES 2002, p. 37)

    Assim, para tornar-se neutro, o discurso sobre o Neutro deve constituir-se no numa forma de conflito, mas, antes, num espao projetivo. De maneiraanloga, o conceito da neutralidade no discurso da histria pode adquirir seuverdadeiro sentido nica e exclusivamente quando deslocado para fora da idiade conflito. Analisado a partir de seu grau de afastamento da idia de conflito, odesenvolvimento histrico do conceito de neutralidade mostra dois momentosparticularmente interessantes. O primeiro, ligado neutralidade no mbito dareligio, coincide com o processo de separao entre estado e Igreja, aceleradopela Revoluo Francesa. O segundo, que tem lugar depois da segunda GuerraMundial, diz respeito s tentativas modernas de introduzir algumas nuances nadefinio de neutralidade.

    No que diz respeito ao primeiro momento, somente no sculo XIX aneutralidade comea, no mbito da religio, a no mais se ligar exclusivamentes confisses particulares para adquirir, como um novo campo, a esfera daespiritualidade em geral: [A neutralidade] no existe mais somente em relaos confisses e seitas de base crist, mas tambm em relao aos judeus,

  • maes e ateus. Tornando-se cada vez mais a-crist, ela se desenvolve nadireo da neutralidade espiritual em geral, social ou ligada poltica interna(SCHWEITZER e STEIGER 1978, pp. 351-352).

    Depois da separao definitiva entre estado e Igreja, a questo da f reconhecida cada vez mais como fazendo parte da vida privada. , porm,muito significativo que, na primeira parte do sculo XIX, o termo neutralidadeseja extremamente raro no contexto dos problemas ligados religio(SCHWEITZER e STEIGER 1978, p. 352), justamente porque a separao entreestado e Igreja faz com que o conflito desaparea.

    Em suas aplicaes no contexto da vida espiritual, o termo neutralidadepassa a ser utilizado acima de tudo no sentido de indiferena a esse tipo deproblemas, sentido prximo do no levar em conta. E parece que justamentenesse sentido que o estado moderno secularizado neutro. O estado tende,assim, a existir no exterior de toda Igreja (SCHWEITZER e STEIGER 1978,p.355) e a no atribuir privilgios nem obrigaes especiais que tivessem comojustificao questes ligadas confisso. Aqui deve-se colocar em evidnciaque indiferente , segundo Barthes, um dos adjetivos que expressam, de maneirapejorativa, a idia de Neutro. A imagem depreciativa do Neutro enquantoindiferente significa, para Barthes, a nfase na vida individual, estritamente ligada tendncia de despolitizao. Numa palavra, o conceito de neutralidade nombito da religio tende a se deslocar para fora da idia de conflito poltico.

    O segundo momento privilegiado no desenvolvimento histrico do conceitode neutralidade, importante com vistas ao afastamento dessa idia com relao noo de conflito, liga-se experincia do fracasso da neutralidade no decorrerdas duas grandes guerras. Na seqncia desses conflitos, vrios autores, semmudar o sentido bsico do conceito de neutralidade, que permanece sempre omesmo (no tomar parte em um conflito entre dois ou mais estados),entrevem, porm, a necessidade de refletir sobre a situao desse conceitotambm nos tempos de paz: A significao decisiva do conceito moderno deneutralidade encontra-se no entanto no na guerra, mas j na paz, para apreservao da paz (SCHWEITZER e STEIGER 1978, p. 336).

    A reflexo sobre a neutralidade em tempos de paz tem suas origens aindano sculo XIX, no conceito de neutralidade perptua ou neutralizao(SCHWEITZER e STEIGER, 1978, p. 330), que significa a atitude de um Estadoque, tal como a Sua, visa neutralidade em todas as futuras guerras e, porisso, j em tempo pacfico, renuncia a tudo o que poderia ser considerado umapreparao blica. No entanto, essa atitude foi fortemente comprometida pelasduas grandes guerras e parece necessitar de profundas reformulaes.

    A confrontao do conceito de neutralidade desenvolvido no discurso dahistria com a reflexo de Roland Barthes sobre o Neutro mostra a dificuldadede a neutralidade ser usada no seu sentido original, a saber, nenhum dos dois,e a tendncia de se deslocar o sentido da neutralidade para o problema de sualegitimidade. Essa dificuldade e esse deslocamento tm como origem apreponderncia e a valorizao do conflito na cultura ocidental, o que influencia

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    o discurso da histria e conduz formulao de conceitos que constituem umverdadeiro impasse para a idia de neutralidade. Dessa maneira, a partir dadoutrina da iusta causa, elabora-se uma argumentao contra a neutralidadeque sempre acompanha os grandes conflitos. Esse mesmo impasse daneutralidade exprime-se tambm atravs de sua confuso com o conceito detolerncia que, entretanto, est sempre longe do sentido original da neutralidade,visto que pressupe precisamente o comprometimento com a escolha de umaverdade, de um dos dois lados em contraposio.

    No contexto do presente trabalho, o valor da reflexo de Roland Barthessobre o Neutro situa-se na nfase dada ao impasse da neutralidade. A nicamaneira de se evitar esse impasse e restituir o verdadeiro sentido da neutralidade, segundo Barthes, o seu deslocamento para fora da idia de conflito e danecessidade de escolha. O que est aqui em jogo , sobretudo, uma visualizaoda importncia de um tal esforo, realizado contra a arrogncia inerente maneira ocidental de pensar a realidade e ao discurso que a mediatiza.

    Para o discurso da histria, essa confrontao de duas maneiras de seconceber a neutralidade pode constituir uma oportunidade para se debruarsobre a necessidade de levar mais em conta a dimenso tica de um tal discurso.Esse tipo de confrontao mostra tambm a necessidade de reformulaes deconceitos, o que j , por sua vez, um convite atividade terica. Ou atmesmo uma maneira prpria de estar presente nas lutas da atualidade:Acrescento: uma reflexo sobre o Neutro, para mim: uma maneira de procurar de uma maneira livre meu prprio estilo de presena nas lutas de meutempo (BARTHES, 2002, p. 33).

    Referncias Bibliogrficas:

    AUROUX, Sylvain (dir.). Encyclopdie Philosophique Universelle: Les notionsphilosophiques. Paris: PUF, 1990.BARTHES, Roland. Le Neutre: cours au Collge de France (1977-1978). Paris:Seuil, 2002.BROWN SCOTT, James (ed.). Official Statements of War Aims and PeaceProposals: December 1916 to November 1918. The Endowment. Washington:1921.JACOB, Andr. (dir.). Encyclopdie Philosophique Universelle: LUniversPhilosophique. Paris: PUF, 1990.SCHWEITZER, Michael, STEIGER, Heinhard. Neutralitt. In BRUNNER, Otto,CONZE, Werner, KOSELLECK, Reinhart. Geschichtliche Grundbegriffe:Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland. Stuttgart:Klett-Cotta, 1978.