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MARCELLO SALVAGGIO Kalki

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Na tradição hindu, Kalki é considerado o avatar que dará um fim à Kali Yuga, o período das trevas, e estabelecerá uma nova era. Mas o que Kalki poderá fazer pelo indivíduo? Neste livro temos a história de um homem em sua jornada espiritual, que abrange mais do que uma única vida, rumo ao encontro com a verdadeira face ao ultrapassar as sombras.

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MARCELLO SALVAGGIO

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Copyright © 2010 by Marcello Salvaggio

LIVROS ILIMITADOS

Conselho Editorial:

Bernardo Costa

John Lee Murray

Leonardo Modesto

Direitos desta edição reservados à

Red Pepper Consultoria Marketing e Assessoria Ltda

Rua do Joaquim Nabuco, 81 – 101

Copacabana – Rio de Janeiro – RJ – CEP: 22080-030

Tel.: (21) 4063-7763

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www.livrosilimitados.com.br

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

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Na tradição hindu, Kalki é considerado o avatar que dará um fim àKali Yuga, o período das trevas, e estabelecerá uma nova era. Mas o queKalki poderá fazer pelo indivíduo? Quiçá ele não venha como uma más-cara, e sim como um movimento. Neste livro, que se encaixa dentro dasaga da Trissência, anterior a O Fim... e a O Ser de Cristal, a ação principalse passa na Terra dos dias de hoje, espalhando-se pela (s) vida (s) de umhomem do nosso tempo que busca compreender seu verdadeiro Ser.

Os ciclos de criação, preservação e transformação se manifestam aquiportanto na existência de uma única pessoa, discutindo tanto temas liga-dos ao ocultismo, como a projeção astral e vidas passadas, quantoquestões sociais e éticas, abordando as conseqüências de certas decisõese atitudes humanas.

Boa leitura!

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1 Esposa do deus Vishnu, o sustentador do universo na religião hindu. É a personificação da beleza e da prosperi-dade.2 Deus criador da Trimurti, a parte manifesta tripla da divindade suprema, proveniente de Brahman, que é a parteimpessoal e transcendente. A Trimurti é composta pelos três principais deuses do hinduísmo: Brahma (não confundircom Brahman), Vishnu e Shiva, que simbolizam respectivamente a criação, a conservação e a destruição.

Prólogo

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Sachinanda só podia olhar para dentro de si, enxergando em seu umbigo ocentro da roda que não parava de girar e se expandia para fora de seu corpo, paraalém do lugar onde se encontrava ao mesmo tempo que permanecia firmementeestabelecida em seu interior, com um rodopio que preenchia sua consciência esimultaneamente não a limitava; via a grama brotar em seu estômago, as árvoresque se enraizavam em seus intestinos, as montanhas de seus rins, os vulcões deseu fígado, a lava que subia para o coração, as nuvens em sua garganta, os paláciosdos deuses em sua testa brilhante, na qual as duas pétalas do lótus cósmico queos abarcava, uma vermelha-clara, quase rosa, e outra azul, se uniam para formara grande terra-pura de flores púrpuras e lagos violetas, as moradas brancas dosdevas interligadas por pontes de diamantes, com a próspera Sri Lakshmi1 que sur-gia do maior lótus que se abria numa das lagoas, as mãos em prece, e suas jóiasse transformavam em esferas de luz multicoloridas que erguiam seus raios na di-reção dos céus, encontrando-se no alto da cabeça do monge com Vishnu que re-pousava sobre a serpente cósmica Ananta, no oceano de pedraria preciosa líquida,e de seu umbigo paria Brahma2, cuja abertura na cabeça, um novo lótus de quatropétalas celestes com um núcleo vermelho, jorrava a explosão de seu Dia, lançandoa poeira brilhante que formava as galáxias e emanando o calor que condensava eaquecia os blocos amorfos e excessivamente espaçados, tornando-os estrelas, cadaqual com seus colares de planetas, nos quais desciam os milhares de avatares;Krishna sorria, com uma flauta em seus lábios doces, anunciando o grande Kalki,o qual, montado em seu cavalo branco, ainda sem a face discernível, surgia co-berto de neve no alto do monte Meru.

O período era de Ekadasi, durante o qual os monges seguiam um jejum de ce-reais; berinjela, vagem, mel, dormir de dia, cortar unhas e cabelos e barbear-setambém estavam excluídos, buscando uma redução das atividades corpóreas paramelhor fixar a mente no Senhor, com Maya a derreter diante de seus olhos.

O sinal distintivo daqueles devotos de Kalki, além das cabeças raspadas e das

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3 Devotos de Vishnu.

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túnicas em uma tonalidade de pergaminho velho, que passava uma impressão deuso excessivo e desgaste mesmo que não fosse o caso, residia nas três linhas pa-ralelas brancas desenhadas em suas testas, uma média à esquerda para o passado,valorizando a importância de todos os avatares e aprendizados idos, a maior parao presente, que ia do centro da testa até a nuca, com a intenção de simbolizar oseventos em curso e os princípios opostos da escravidão e da libertação, contidosna mesma linha e no mesmo tempo mas em pólos distintos, e a menor à direitapara o futuro, que de certo só tinha a vinda e o triunfo do último avatar, pequenapara que cada um a traçasse e a conduzisse de acordo com seus próprios caminhose posturas.

O templo ficava a quatro mil metros de altitude, na árdua região de Parbat,no Nepal, escassamente povoada e com mercadores e pastores que passavameventualmente, seu portal antecedido pelas esculturas metálicas de Hanuman,que parecia balançar sua cauda e surfar no mar de neve, e Garuda, com a cabeçae o bico voltados para o alto, em busca do sol, na intenção de fazer cair uma chuvade luz quente, derreter o gelo e deixar a água escorrer para voar sobre ela e en-xergar seu reflexo, cujos olhos refletiriam toda a claridade potencial do universo,mesmo na maior escuridão, com a jóia candente no olho do lótus negro; na en-trada, esculpidos em pedra, uma dezena de gárgulas-dragões dispostos em círculo,cada um com mais de três metros de altura, as presas prontas para abocanharmaus espíritos, e o cavalo de Kalki ainda vazio, esperando por aquele que viriamontá-lo.

Vaishnavas3 centrados na devoção ao avatar que ainda viria, sem no entantoesperarem dele a resolução de todos os seus problemas particulares, que depen-diam muito mais do esforço próprio e da vontade de se aproximarem de Deusem sentimentos, pensamentos, atos e meditações, contavam em suas fileiras comgente de diferentes castas, etnias e origens geográficas, unidos pela entrega queanulava as diferenças sem suprimir os tesouros dos olhos que tomavam a Luz em-prestada, do coração em suas ternas flores de amor e do umbigo revestido de jú-bilo único.

Mais de duzentos anos antes, no dia do Prana Pratistha da mais importanteimagem do templo, uma estátua de Kalki no santuário principal (o garbha-griha,um pequeno ambiente quadrado cuja porta de acesso estava voltada ao leste,acima da qual se erguia do lado fora a shikhara central, uma torre arredondanteladeada por costelas verticais e curvas e hipérboles de pedra terminada num topo

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4 As ninfas da religião hindu.5 Músicos e dançarinos celestiais.

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com uma urna em forma de semente, pela qual proliferavam esculpidas as ima-gens de inúmeros deuses, deusas e seres mágicos), dera-se um tremor na monta-nha acompanhado de uma irradiação que não pertencia ao sol e que derreteraparte da neve circundante, levando enfim água pacífica e limpa ao vilarejo maispróximo, que durante meses sofrera com o frio excessivo, e a partir de então seushabitantes seriam os visitantes leigos mais freqüentes no templo. A cerimôniafora realizada pelos quatro monges mais experientes, dispostos em círculos e en-toando mantras a Vishnu, Krishna e Kalki. Todos os colares e pêndulos de ouro,rubis e outras pedras tremeram em volta, assim como se rasgaram alguns tapetesnos quais estavam representados, vivamente coloridos, Garuda, a serpenteAnanta e Lakshmi em seu lótus; a imagem de Kalki, sem rosto, branca, empu-nhando em cada mão uma espada reta e sem gume, de anéis de prata dispostospelas lâminas, uma coroa de ouro de quatro andares sobre cabeça, com as pontasarredondadas, e um manto de seda revestindo o corpo, adquirira um semblantesorridente e tingira-se de azul. Ao menos isso dizia uma das lendas de fundaçãodo maior templo dedicado a Kalki que já existiu, mas que infelizmente não ficariafamoso devido à sua breve existência em se tratando de uma residência de tama-nha magnitude, o que já é assunto para outra história...

Todas as portas eram ricamente ornamentadas com pinturas e esculturas decenas da Bhagavad Gita, da Gita Govinda e dos puranas, da mesma maneira quea maioria dos pilares de bases arredondadas, enquanto os de base quadrada pos-suíam apenas riscos cândidos com a aparência de pequenos relâmpagos discreta-mente dispostos pelas superfícies vermelhas e azuis; em plataformas pouco acimade cada andar, acessíveis por meio de escadas em espiral, ficavam templos me-nores, dedicados a Ganesha, Sita, Rama e outras divindades, cada qual com suasrespectivas estátuas, pinturas e alto-relevos.

Sachinanda meditava em seu aposento, que quase não existia, considerando-se que além do fino colchão no qual dormia e meditava, envolvido pelas paredesclaras esculpidas com rostos sorridentes e corpos exuberantes de voluptuosas ap-saras4 dançarinas (o monge verdadeiro tinha que resistir a todas as tentações...),sua extraordinária mandala ocupava todo o espaço.

Tratava-se da Kalkichakra, cujo primeiro círculo era formado por pássaros defogo e ouro, seguido por uma roda de ar, povoada por gandharvas5 e seus instru-mentos, com uma música que dava a impressão de ressoar serenamente para além

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6 Shava em sânscrito significa cadáver.

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das imagens; no terceiro ciclo, de água, derramavam-se nagas e naginis dos marese rios, sem falar nas que se faziam de pontes ou aparavam a chuva para os sábios;o último revestimento, um quadrado de terra com quatro portões, dava estabe-lecimento e firmeza, fixando as montanhas ao leste e permitindo que Shiva sedeitasse sem se tornar shava6; quando Kalki viesse, as montanhas dos céus des-ceriam para se encaixarem às montanhas da terra e o deus da transformação po-deria exibir seu cândido sorriso...

Um esplêndido lótus branco se abria ao centro, pontilhado por centenas de pe-quenas figuras, que eram nada mais nada menos que devas como Indra, montadoem seu sagrado elefante Airavata, que carregava um tronco de árvore com a trombaerguida; Varuna, sentado num trono de vime rodeado por pássaros e músicos e dan-çarinos alados numa corte sobre as nuvens; o sol Mitra ao seu lado, fulgurante; omensageiro e deus do fogo Agni próximo dos homens, vermelho de olhos negrose dentes dourados, a incendiar os altares com as chamas do Sacrifício e enviar parao alto as colunas de fumaça repletas de inscrições e os relâmpagos que forneciambrilho às estrelas; correntes ferozes de vento conduziam e eram conduzidas porVayu... Estes e outros deuses e heróis feito formigas, numa procissão minúsculaquando comparados a Kalki em seu palácio no alto do monte Meru.

A morada do avatar vindouro subdividia-se em quatro quadrantes, preto nooeste, vermelho no sul, amarelo no leste e branco ao norte, cada qual protegidopor um asura da respectiva cor, de aparência irada mas de peito reluzente, comguirlandas de pérolas brancas em volta de seus pescoços; o do sul com um leãode oito patas e duas cabeças puxando sua carruagem, o do leste em padma asana,as pernas cruzadas, segurando um cetro firmemente, o do norte deixando umaimensa cabeleira que ia até os pés, e o do oeste no meio de um tufão.

Kalki, a maior das figuras desenhadas, residia no jardim, sobre seu cavalobranco e alado, com a espada alçada a abrir os céus, dando uma impressão de mo-vimento incansável no silêncio. Sachinanda só pôde sorrir quando abriu os olhosnovamente, satisfeito com seu trabalho... Já era noite e meditara por quase dezhoras seguidas, sem ver o tempo passar.

Criado em uma família vaishnava ortodoxa, com o tempo deixara seu tinopelo comércio falar mais alto, abandonando aos poucos os ritos e tradições e sedeixando levar pelo mundo de kama, encantado com tudo aquilo que o dinheiropodia comprar: freqüentara a corte de vários príncipes e reis, comprara as mais

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belas cortesãs, promovera banquetes extravagantes, não abrira mão das bebidasmais caras. Principalmente após a morte de seus pais, tornara-se cada vez maismundano, até conhecer numa viagem ao Tibete um monge budista local, umlama, com sua veste laranja e olhos muito puxados, que o conduzira gentilmenteaté seu templo, onde a princípio ficara impressionado com os tesouros culturaise materiais.

Encantava-o em especial a arte das tankas, cujo processo de criação desco-nhecia; não imaginava que o algodão utilizado para tecer as telas só era colhidopor iniciados, posteriormente purificado pela repetição de alguns mantras, aben-çoado por um lama num ritual específico na presença de uma virgem, à qual com-petia a tarefa da fiação e, encerrada essa etapa, o fio resultante era entregue a umtecelão experiente e de bons antecedentes, isento de doenças e vícios, que pas-saria por um período de purificação e meditação antes de iniciar seu trabalho.

– Tudo aqui pode ser realmente esplendoroso... – Dissera-lhe o monge, emresposta a um comentário seu a respeito da beleza do lugar. – Mas devemos sem-pre ter em mente que um dia tudo isto pode desaparecer e ser esquecido, sim-plesmente como se não tivesse jamais existido.

– Mas preciosidades de tanto valor não podem ser desconsideradas jamais.– Alguns bárbaros não pensam assim. Não hesitariam duas vezes em saqueá-

lo e fundir as peças mais valiosas ou vendê-las. Além disso, avalanches e outrosdesastres naturais podem soterrar e fazer desaparecer este lugar em um piscar deolhos. Todas as obras do homem são vãs e transitórias, por mais belas e firmesque aparentem ser, tanto que cada um vê aqui apenas o que seus olhos lhe per-mitem: homens gananciosos enxergam ouro e pedras; os de sensibilidade artísticaa beleza estética; os religiosos um local de meditação; poucos são os que vêemneste mosteiro o que ele é realmente.

– Realmente o quê?– Realmente nada; ele não é... Como tudo neste mundo. Um dia, tudo deixará

de existir...– Isso não me parece ter qualquer sentido. – Estava confuso. – E ao mesmo

tempo me deixa meio amedrontado. Se tudo vai deixar de existir, então não háesperanças para nada? Tudo o que fazemos é inútil e vão?

– Nada é tudo e tudo é nada. O seu temor deriva do seu apego. Tente soltarum pouco as coisas e olhar para dentro. O que você vê?

– Não consigo olhar para dentro. Só vejo o que está fora. Dentro não há luzalguma...

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– Por que não aceita então as trevas? Não adianta lutar contra elas... Se a luzestá apagada, é porque ainda está tateando em busca de uma tocha. Só que vocênão precisa de nenhuma tocha!

– Detesto metáforas. Acho que foi por isso que deixei de lado a religião.Nunca vi valor em fazer sacrifícios para um deus, sendo que eu que preciso comer,outras pessoas precisam comer, os seres espirituais não. A simbologia é um bandode parafernália inútil, sendo que a religião verdadeira é simples; não precisa deintermediários.

– Está se aproximando da verdade, meu amigo. – Caminhavam por corredorescheios de ouro, tapetes ricamente trabalhados, estátuas de leões e dragões comolhos de safiras, rubis, esmeraldas e ametistas; o chão e as paredes eram de umacor semelhante à veste do monge e, com o silêncio que havia, parecia não havermais ninguém. – Por que não tenta mais um pouco? – Num sorriso modesto,abrira um portão duplo e pesado, que o visitante não conseguira empurrar, comum leve estender das mãos. Parecia até que o ar o obedecia e fazia o esforço porele. – Lembre-se que quando você deixa de existir é que pode fazer o que quiser.Afinal, você não existe mais; e todos os seres se movem no vácuo. Quando vocêse torna o vácuo, o que os outros seres viram?

– Eu não sei, você sabe?– Nós não... – O lama tinha uma pele muito lisa e reluzente, nenhum pêlo,

um nariz largo e na boca alguns dentes de ouro; de tão puxados que eram os olhos,não se viam suas pupilas; suas orelhas eram amplas, bem formadas, sem nenhumadeformidade. – Só se deixarmos...

– Deixarmos o quê? – Começava a ficar irritado.– De carregar... – Depois de entrarem no novo recinto, os portões se fecharam

sozinhos num baque e o susto em Sachinanda, que então se chamava Mukunda,fora tremendo; as tochas daquela sala, antes escura, se acenderam; sentira comose seu corpo, bruscamente, tivesse ficado pelo menos dez vezes mais leve.

Viera ao Tibete em busca de mercadorias raras e aproveitara para fazer umfavor a um sócio e amigo de longa data, trazendo consigo o excedente de arrozde suas terras para negociar e vender; por curiosidade e conseqüência do destino,acabara por se aventurar em um templo budista. Não conhecia nada sobre o bu-dismo e Buda sempre lhe parecera apenas um asceta exótico, com opiniões he-terodoxas e que não respeitava as castas, nem os Vedas, nem a ordem natural domundo, apesar de lhe passar uma impressão de anti-ritualismo que lhe propiciavaalguma simpatia.

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Cria em Vishnu e em sua Maya como respectivamente a fonte do universo eseu reflexo, que jamais teria uma existência autônoma; no entanto, para ter cons-ciência de sua divindade, Vishnu sempre necessitaria ver seu reflexo e, caso o es-pelho se quebrasse, seria o sono e o fim. Às vezes se sentia atingido por suaimaginação, refletia como a existência humana era frágil, bastando um piscar so-nolento dos olhos da Divindade para que tudo deixasse de existir... E, se era assim,por que então se entregar a práticas ascéticas, ao fogo interno de tapas, se no fimdas contas apenas a fonte de todas as coisas existia efetivamente? Melhor usufruirda felicidade ilusória, tendo consciência de sua natureza vã, gozando da alegriaaparente e mínima. Para que tantas superstições e filosofias se o mundo era tal equal Deus assim planejara? Pensar em mudar, em alterar tanto a natureza quantoas estruturas sociais, ou a determinação interna, não podia ser uma atitude sensata;os sábios não deviam portanto ser tão sábios assim: melhor viver espontanea-mente, aceitando as coisas como são, sem revoltas e sem formalismos.

Pouco antes de chegar ao templo do lama, observara os mendigos velhos nasruas da cidade, rodando seus amuletos e entoando mantras. Se assim diminuíamsua miséria, que fossem felizes dessa maneira, mas aquele não era o seu caminho;não acreditava em rezas, muito menos em medalhões, conquanto admirasse a be-leza dos símbolos e imagens cravados nestes, e preferia as lascas de queijo deiaque e os cogumelos acompanhados de chá com manteiga derretida de leite deiaque, que comera com seu novo amigo. Atravessara uma estrada montanhosa,sob uma fina nevasca, no meio das sacas de arroz que ia vender, para chegaràquela terra exótica, sem perceber que aos poucos era invadido por um silêncioque o gelava muito mais do que o clima externo, afinal podia agasalhar o corpo,porém não a alma.

Mukunda tinha os cabelos pretos limpos e bem tratados, olhos e pele de aze-viche brilhante, rechonchudo e com um ar preguiçoso; vendera a última saca dearroz justamente para o monge com o qual fizera amizade, que o pagara com asesmolas que conseguira no dia.

– Você gosta de viver assim, dependendo dos outros? – Questionava aquelemodo de vida.

– Mas não dependo de ninguém; não tenho senhor, nem escravos. – O lamarespondera com um sorriso. – Não preciso fazer o que não gosto para me sus-tentar, nem aturar companhias e situações indesejáveis. Gosto de conviver comas pessoas, e é isso que fornece o meu sustento.

– Monges vivem isolados. Tem certeza que gosta de conviver com as pessoas?

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– Nós aqui não ficamos isolados, sempre vamos à cidade, conversamos, brin-camos com as crianças e os cachorros. Acho que os monges que o senhor conhe-ceu não eram de confiança! – O lama soltara uma boa gargalhada e batera-lhe nascostas, calorosamente.

Quando chegaram à entrada do templo, foram recebidos por uma comitivaespecial: três pequenos cães, que vieram pulando e latindo, imediatamente aco-lhidos pelos braços carinhosos do monge; pareciam-se um pouco com pequenasovelhas e um pouco com dragõezinhos peludos...

– Estes não são cachorros comuns... – Pareciam ter algum ciúme um do outro,disputando a atenção do dono enquanto brincavam.

– O que são então?– Encarnações de lamas antigos, que voltam ao mundo para nos proteger. Nos-

sas sentinelas; nossos guardas.– Tão pequenos assim? Qualquer ladrão pode se livrar deles.– Um lama nunca voltaria ao mundo como um cão agressivo e violento, que

pode machucar as pessoas e outros animais. Nossos pequenos leões rugem, nosavisam quando há um perigo próximo, pois possuem uma audição extremamenteapurada. A função deles é nos avisar. Além disso, trazem boa sorte!

– Como pode ter certeza disso?– Trouxeram o senhor até aqui; ainda acredita que não tragam sorte?– Pode ser que para vocês eu não seja um bom augúrio.– Não diga isso! Todas as pessoas são bons augúrios. Todos os pés que pisam

aqui são especiais.Deixara os cachorros livres para brincar e experimentar o ar da montanha.– Padma, Liu e Kibo: são os nomes dos três. E são como seres humanos; é

preciso educá-los com firmeza, para que recobrem suas memórias, mas ao mesmotempo não se pode jamais ser agressivo; magoam-se feito crianças. No fundo, sãocrianças; gente que voltou a ser criança.

– Mas se têm sabedoria, como podem ser infantis?– A sabedoria das crianças é imensa, e a informação de outras vidas nelas está

mais fresca se for devidamente vasculhada. Deveria dar menos importância àsaparências, amigo. – Acariciara a barbinha de Kibo, e Padma e Liu vieram no en-calço, com as patinhas peludas em busca de carinhos.

Quanta ternura lhe fazia falta! Sentira vontade de brincar com os cachorros,mas permanecera preso, contido, pesado...

Nesse instante que olhara bem para o templo e vira-o como um imenso arco-

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íris que se abria para os lados e para o alto, com os beirais detalhados com dra-gões, o telhado curvo e os ornamentos de cobre no ponto mais alto apontandopara o centro do céu (onde quer que este se encontrasse...) e para o seu centrointerno ao mesmo tempo, ao lançar raios verticais e diagonais. “Ilusão” apenas;“miragens”. ”Alucinação”. Nada que se comparasse ao que viria depois...

Na sala fechada, sentiu o calor das tochas primeiro incendiando e depois in-cinerando seu bigodinho; a seus pés, uma mandala, não tendo muito tempo paraenxergá-la como uma criação plana, pois em poucos instantes já mergulhara nocastelo de muralhas quadradas na porta ao leste, saudado pelos gongos de umaestranha criatura azul, de mais de três metros de altura, braços esqueléticos maspernas e tronco musculosos, cabeça de focinho alongado, bigode comprido e umleque de pele na nuca, que inicialmente o deixou com medo porém logo o acolheucom gentileza; uma vez acolhido, olhou para cima e viu os andares concêntricosque se sucediam, às dezenas, cada qual povoado por uma multidão de seres e or-namentos. Uma música de flautas e tambores começou a ressoar, vinda do alto;subiu com a consciência e deparou-se enfim com um bodhisattva em seu tapetetrançado, sorrindo amavelmente, de pele azul e cabelos claros, com olhos de lótusbranco, em vestes de príncipe, acompanhado por uma corte de músicos celestiaislevitadores. Ajoelhou-se sem raciocinar, movido por um intenso sentimento decompaixão que nunca sentira, mas que conscientemente sempre lhe faltara. Suaausência era o que “gerava” vazio, e concluiu em poucos segundos que aquele te-souro sempre estivera ali, só que nunca se dera conta, em exílio de si mesmo, aternura da qual até os cachorrinhos tinham mais consciência do que ele. Só lherestou perguntar, boquiaberto:

– Quem é o senhor, e como vim parar aqui?– Sou o que você é, mas esqueceu de ser. Ter um nome não faz a menor dife-

rença. Alguns me chamam Maitreya, outros me chamam Kalki, assim como vocêjá teve muitos outros nomes, o que não tem a menor importância para a sua ver-dadeira identidade.

– Kalki, o último avatar?– Qual a diferença entre o último e o primeiro? Aqui você está comigo, eu

contigo; o ontem será, o amanhã é e o hoje foi...Qual a sua crença?– Isso tudo só pode ser um sonho... – Foi o que conseguiu pronunciar após

dois segundos de silêncio.– O sol, as estrelas e a lua são todos sonhos. – A música cessou quando a figura,

muito maior do que um ser humano comum, levantou seu dedo indicador, que

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começou a brilhar, e abriu-se um portal no qual podia ser vista a escuridão ilumi-nada do espaço. – Veja como abarco a todos eles com a ponta de um dedo, e vocênão é diferente de mim. – Mukunda olhou para as próprias mãos e viu que setransformava: estas começaram a crescer, a mudar de coloração e brilho; todo oseu corpo se alterou para se tornar um reflexo perfeito de Kalki-Maitreya.

– Não sou merecedor de tamanha glória!– E quem seria? Quem é mais do que você? Quem é menos que você?– O meu passado não me permite... – Ficou ainda mais constrangido quando

os músicos largaram os instrumentos e prostraram-se a seus pés. – Sempre fuimuito, muito tolo...Nunca fui santo!

– Seja santo de agora em diante. Todo santo um dia foi pecador; pecado é es-quecimento, e não erro.

– Estranho...O santo não deve esquecer seus pecados para deixar de ser peca-dor? Ou o pecado é o esquecimento? Não sei se compreendi.

– O santo não deve esquecer nunca. Essa é a única coisa que diferencia o santodo pecador, que é um esquecido por natureza, que nunca se lembra que tem umvéu sobre os seus olhos, enquanto o santo deve Ser sempre: Ser o que guarda epreserva com carinho em sua mente, e jamais se desgasta, mesmo quando esque-cido. O ouro é sempre o mesmo e não enferruja, mas pode ficar na gaveta, em-poeirado, ou rutilante num belo colar que envolve o coração do homem.

– Sentir medo de perder a individualidade é normal? Talvez seja isso o quesempre me distanciou de Deus, que sempre me fez ter medo de sentir o que osmeus semelhantes sentem, que me fez achar que se um dia vou mesmo deixar deexistir, por que então acelerar esse processo? Posso usufruir dos prazer oníricosà vontade, eles me fazem sentir que eu existo! Só que às vezes a angústia é tãogrande que chego à conclusão que os meus pensamentos são só o fluxo automá-tico de uma máquina, e quando o universo se contrair não vou mais pensar emnada e não vou saber mais quem sou e onde estou. Em suma, não serei mais nada.

– Por que se apegar tanto a uma máscara passageira? Você jamais se perderá, amenos que queira, que voluntariamente escolha o entorpecimento; é a personali-dade, não a individualidade, que é perdida. A santidade é fazer com que a dualidadedeixe de existir, que aquilo que o separa do Todo se dissipe, o que evidentementenão significa adormecimento e inconsciência, pelo contrário; você ficou muitopreocupado com o que o lama lhe disse...Contudo, não refletiu corretamentesobre o Vazio essencial, que a tudo permeia sem que sua Natureza seja afetada eao mesmo tempo é permeado por Tudo. Você não precisa pensar para existir; o

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Vazio e o Todo fluem com muito mais facilidade, sem obstáculos e obstruçõesconceituais, sem permitir argumentos, quando a consciência é pura. O pensa-mento bem-dirigido semeia e deixa as plantas nascerem e florescerem por contaprópria; você quer que o pensamento queime as sementes, como a maioria faz?

Abaixou a cabeça; e, sem qualquer aviso prévio, a figura de Maitreya-Kalki etodo o resto começou a se desmanchar; o imenso palácio, tão sólido aparente-mente, pareceu feito de areia, dissipado por um vento inesperado.

– Espere só mais um pouco, Senhor! Ainda tenho muitas dúvidas! – Entre-mentes, era tarde demais. A cabeça do avatar se desmanchara e o resto de seucorpo também ia se desfazendo. Os muros e andares começaram a desabar. – Es-pere, por favor... – Implorou, choroso, mas quando se deu conta retornara ao am-biente do salão, com o lama; estava ajoelhado no chão. A mandala não existiamais e as tochas haviam se apagado.

– Muito bem, amigo. Agora é hora de irmos. – O monge lhe falou; Mukundasentiu um golpe no estômago, somado a um calafrio.

– Onde foi parar tudo? Por que acabou?– O mundo é assim, efêmero e impermanente. Mas tenha a certeza de que

você esteve o necessário diante Dele. O resto das respostas deverá encontrar porconta própria.

– Então você sabe o que me aconteceu??– Tenho uma idéia. Para cada um é diferente, mas é que já passei por esta sala

uma vez. Todos os lamas deste mosteiro passam por aqui em sua iniciação. Etodas as vezes a mandala é desfeita pelo iniciador e depois refeita. Sempre emareia colorida.

– Mas só os lamas? Então por que me trouxe aqui?– Você tem pressa. Antes que se responda o que me perguntou, serei bem

claro: de certa forma, você também é um lama. Só não sei explicar como.– Será que fui um lama em outra vida e devo ficar aqui para descobrir a ver-

dade?– Não sei se foi, mas é. E não, não deve ficar aqui; seu caminho é outro, mas

não sei para onde.– Parece que você sabe e esconde alguma coisa.– Não, amigo. Se eu soubesse de tudo, pode ter certeza que falaria. A questão

é que sei e não sei...Saber e não saber...O paradoxo, incrivelmente, não soou absurdo aos ouvidos

de Mukunda. Ele também vivia o mesmo dilema naquele instante.

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