jovens que re-criam, experiÊncias que insurgem: o ... · uma feira de ciências está em...
TRANSCRIPT
1
JOVENS QUE RE-CRIAM, EXPERIÊNCIAS QUE INSURGEM:
O CURRÍCULO DAS FEIRAS DE CIÊNCIAS NO DEBATE SOBRE
CONHECIMENTO E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES NA EDUCAÇÃO
Gabriel Nascimento da Silva Santos1
Universidade Federal de Minas Gerais
1 Situando o percurso: quando o “comum” torna-se irregular e objeto de estudos e
possibilidades
Nós criamos CAPITU: um sistema com tecnologias de alerta e socorro para mulheres vítimas
de violência doméstica em nossa região; Nosso projeto chama-se BIBO – o robôteca – e ele é
um ROBÔ simpático com o objetivo de incentivar o gosto pela leitura entre as crianças;
Cosmética indígena: Que tal usarmos tinta de URUCUM e produzirmos ESMALTE
NATURAL?; Meu projeto chama-se CURTO-CIRCUITO; com ele eu busco melhorar a
qualidade de vida de pessoas sem acesso à energia elétrica na minha região. Antibióticos
alternativos? usamos sementes de MAMÃO como antibactericidas!; Nós criamos uma
BENGALA INTELIGENTE com sensores de celular para auxiliar deficientes visuais;
Possibilidades com a chuva!; O nosso CHUVEIRO ALTERNATIVO reaproveita água e tem
sensores para ligar e desligar sozinho!
Esses são apenas alguns exemplos de projetos de pesquisa científica produzidos por
estudantes2 e apresentados nas mais diversas feiras de ciências escolares por todo país e
naquelas de níveis regional e nacional – que reúnem jovens pesquisadoras/es dos níveis de
ensino Fundamental e Médio, de vários estados. Na produção deste tipo de prática curricular,
1 É filósofo e mestrando em educação pela UFMG. 2 Os trabalhos mencionados aqui foram selecionados a partir dos depoimentos de estudantes durante a 14ª edição
da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (FEBRACE), que nas edições de 2016 e 2017 reuniu centenas de
projetos de criação científica de jovens de escolas por todo o país. Mais informações, conferir no site do evento,
www.febrace.org.br e nos links https://www.youtube.com/watch?v=1l2k1zi9uy8 e
https://www.youtube.com/watch?v=4QAhKkm8hOE. Acesso em 15 de mar. 2017.
2
entendida comumente na literatura sobre ensino de ciências como uma “exposição pública de
trabalhos científicos produzidos por jovens, na qual estes oferecem explicações, respondem
perguntas sobre seus métodos e conclusões” (SECAB/UNESCO, 1985, p.101), as/os
estudantes são incentivadas/os a desenvolverem projetos de pesquisa, mediadas/os por
suas/seus professoras/es.
Nesse sentido, as/os alunas/as, individualmente ou em pequenos grupos, a partir de
temas e debates desenvolvidos em sala de aula, ou de outras questões que lhe despertarem
atenção, poderão organizar-se para investigar e produzir pesquisas inventivas de toda ordem
(LIMA; MANCUSO; BORGES 2006). Há, pois, para a produção de uma feira de ciências,
uma série de procedimentos e outras ações que, embora realizadas no ambiente escolar, dizem
respeito a uma série de criações: diários de bordo, relatórios, pôsteres, protótipos, paineis,
banners, colagens (Brasil, 2006), por exemplo. Pode-se apontar, todavia, com Michel
Foucault (2008) e a problematização da racionalidade científica moderna, que essas criações
demandadas nas feiras se relacionam “ao domínio de certos objetos, a um tipo de linguagem
que se utiliza, a conceitos disponibilizados” (FOUCAULT, 2008, p.111) que dizem respeito,
por sua vez, a certas “condições de cientificidade interiores ao discurso científico, que fazem
uma ciência tornar-se ciência” (FOUCAULT, 2008, p.111-112). Tais procedimentos, desse
modo, podem vir a exercer efeitos diretos nos processos de subjetivação dos sujeitos
envolvidos.
Neste ensaio proponho-me a discutir sobre as possibilidades de produção de
experiências de subjetivação no currículo de feiras de ciências, com estudantes do ensino
médio. Este trabalho é fruto especialmente dos estudos advindos de minha pesquisa de
mestrado, em desenvolvimento, na qual proponho acompanhar a preparação e participação de
jovens estudantes de uma escola estadual de Belo Horizonte, Minas Gerais, em uma feira de
ciências de caráter nacional. Nesse sentido, entendo currículo como “um artefato cultural que
produz ideias, práticas coletivas e individuais, sujeitos que existem, vivem, sofrem e alegram-
se, num mundo que se produz por complexas redes de relações de poder” (CORAZZA, 2001,
p. 14).
Desse modo, “o currículo está centralmente envolvido nos processos de formação dos
sujeitos, de produção de identidades e de subjetividades” (SALES, 2014, p. 231). Isso
3
significa que ele é, “por excelência, um local de subjetivação e individuação” (CORAZZA E
SILVA, 2003, p. 53). No caso específico do ensino médio, o currículo tem, portanto, um
papel crucial na produção das subjetividades juvenis (SALES, 2014). Entendo que investigar
um currículo implica, portanto, “analisar seus conhecimentos, linguagens, formas de
raciocínio, ciências, tipos de experiências, técnicas normativas, enquanto vinculadas às
relações de saber e poder que atravessam os corpos para gravar-se nas consciências”
(CORAZZA, 2001, p. 57).
Subsidiado, assim, pelos estudos pós-críticos de educação, entendo uma feira de
ciências em seu amplo processo de produção curricular, isto é, tanto como um evento de
caráter social, científico e cultural (LEITE; MANCUSO, 2006), quanto também como um
currículo de possibilidades e disputas. E por ser um currículo, nos pressupostos pós-críticos,
uma feira de ciências está em composição com o currículo escolar e seria um território de
disputas, porque pode vir a circular discursos, engendrar relações de poder-saber e articular
uma série de práticas para produção de subjetividades e de saberes muitas vezes
hierarquizados – como na seleção de quais áreas do conhecimento participarão de uma feira.
Nesse mesmo movimento de disputas, porém, o currículo de uma feira de ciências, que aqui
discuto, pode ser espaço de possibilidades, isto é, um lugar de “rompimentos com as linhas do
ser, de contágios que podem nascer e se mover por caminhos insuspeitados, de construção de
modos de vida que podem se desenvolver de modos particulares” (PARAÍSO, 2004, 153).
Apresento, a seguir, dois tópicos a partir dos quais desenvolvo esta discussão. Num
primeiro movimento, contextualizo e problematizo a emergência das feiras de ciências na
educação básica, com jovens estudantes, especialmente no que diz respeito às relações entre
currículo, cultura e conhecimento. Como desdobramento desse primeiro momento, traço um
fio argumentativo que versará sobre os atuais desafios do ensino médio brasileiro, no que
tange à sua relação com as subjetividades juvenis na atualidade e, nesse sentido, os efeitos
possíveis que os espaços curriculares de feiras de ciências podem produzir nas culturas
juvenis contemporâneas.
2 Ciência, cultura e sociedade: contextualização e problematizações em torno do
currículo das feiras de ciências na educação básica brasileira
4
A partir da década de 1960 a educação básica brasileira passou a vivenciar as
chamadas “campanhas para a melhoria do ensino das ciências naturais” (KRASILSHIK,
1987; WORTMAN e VEIGA-NETO, 2001; LIMA, 2004; MORAES, 2006; PAVÃO, 2006;
WORTMANN, 2007). Essas campanhas tinham por objetivo incentivar de forma intensiva a
reformulação dos currículos formais, com prioridade para as áreas de Física, Química,
Biologia e Matemática, para voltá-los à realização de ações que, embora ligadas ao trabalho
escolar, eram voltadas para fora do ambiente da classe. Instituía-se, portanto, um “modo
científico” de ensinar que se estendia e passava a caracterizar as disciplinas escolares ligadas
às ciências naturais (WORTMANN, 2007).
Desse modo, os efeitos de tal momento histórico contribuíram para uma real
reformulação dos currículos escolares, especialmente entre os norte-americanos, no intuito de
repensar o processo educativo, de maneira particular o ensino de ciências. “Começaram a
surgir, então, os embriões do que viriam a ser os ‘projetos de ensino’ (na área científica) e os
‘projetos curriculares’, dirigidos aos sistemas educacionais do Hemisfério Norte e estendidos,
mais tarde, aos dos países da América Latina” (BRASIL, 2006, p. 13).
Neste sentido, o surgimento da chamada “educação científica” ou ainda ensino
científico constituiu-se por uma série de discursos – dentre eles o científico de maneira
especial –, passando a reivindicar nos currículos a necessidade da adoção de modos de agir
orientados por regras e procedimentos ligados ao próprio método científico-experimental – e
que estes fossem aprendidos pelas/os jovens, não só nas salas de aulas das escolas e
universidades, mas também fora dela (WORTMANN, 2007). É nesse contexto que, no Brasil,
mais precisamente a partir do fim da década de 1980, “começou-se a produzir as feiras de
ciências escolares, regionais e nacionais3 e proliferaram em todo o país os cursos de
treinamento para professores de ciências, introduziram-se outras licenciaturas e modificaram-
se os currículos das que estavam em funcionamento” (WORTMANN, 2007, p. 18). Assim,
“os professores das disciplinas ditas científicas foram os primeiros a incorporarem o método
3 Alguns exemplos de feiras de ciências criadas com base nesse contexto: Feira Brasileira de Ciências e
Engenharia (FEBRACE, 2002 - atual); Mostra Internacional de Ciência e Tecnologia (MOSTRATEC, 1986 -
atual); Feira de Ciências e Tecnologia do Sul do Maranhão (FECITEC, 2007 – atual); Movimento Científico
Norte-Nordeste (MOCINN, 2012 – atual), Feira de Ciências UFMG Jovem (1999 – atual), entre outras.
5
científico em suas atividades práticas, ocasionando na ideia de que as feiras de ciências seriam
produtos de suas pesquisas-experimentações com os alunos” (BRASIL, 2006, p. 19).
Houve, contudo, a partir dos anos 2000, no curso desse cenário aqui composto, uma
intensa multiplicação de descrições, visões, significados, cursos e centros de treinamentos
para professoras/es e outras demandas sociais advindas de regiões diversas do país, em torno
das feiras de ciências - na busca por uma modalidade das mesmas que melhor atendesse às
realidades das escolas, seus currículos, espaços e sujeitos. No intuito de orientar tais
demandas, foi criado, por incentivo do Ministério da Educação, o Programa de Apoio às
Feiras de Ciências na Educação Básica (MANCUSO e LEITE, 2006) – conhecido como
Brasil Fenaceb.
Esse documento serviria como uma espécie de manual de orientações para as
secretarias municipais e estaduais de educação e posterior circulação na rede pública de
ensino, de modo a auxiliar em dois aspectos. Em primeiro, como um subsídio teórico, isto é,
como um panorama histórico com uma visão sobre a emergência das feiras de ciências no
currículo e sistematização de estudos e pesquisas em torno desses eventos em suas relações
com a educação básica e o ensino de ciências. E em segundo - e principalmente –, serviria
como um guia de orientações que auxiliaria organização de feiras escolares, regionais e
nacionais.
Com base nessa espécie de composição descritiva a respeito “do que são” Feiras de
Ciências, suas condições de emergência e possíveis relações de aproximação com práticas
curriculares brasileiras, percebe-se, embora sejam também múltiplas as definições, um
componente comum, vinculado à questão do conhecimento e da verdade. Afinal, por se tratar
da adoção do método científico-experimental, baseado e tomado pela racionalidade científica
e técnica no desenvolvimento das forças produtivas e no jogo de decisões políticas
(FOUCAULT, 2008, P. 357), somos conduzidas/os a uma questão central das teorias de
currículo, a saber, o que deve ser ensinado? ou, numa indagação mais ampla: o que constitui
um conhecimento como válido ou verdadeiro?
Procuro, pois, neste trabalho, pensar em Ficções, isto, é, entendo que “toda verdade e
todo conhecimento não passam de ficções” (CORAZZA e TADEU, 2003, p. 40). E se, então,
a verdade e o conhecimento, científicos, outrora fundamentados em teorias epistemológicas
6
da representação - como correspondência com alguma realidade preexistente, ou à priori,
imutável - não fossem, ao invés disso, pura interpretação? E se, a posição de sujeito da jovem-
cientista, forjada também na racionalidade moderna, cartesiana, do sujeito como senhor e
dominador do mundo e da natureza (CORAZZA e TADEU, 2003) fosse, também, ao invés de
fixa e permanente, uma produção do(s) discurso(s)? Sim! Entendo a verdade e o
conhecimento como ficção. Invenção. Interpretação. Nenhum significado oculto, à priori, por
ser desvelado.
Os argumentos deste ensaio voltam-se, portanto, para problematizar a feira de ciências
e olhar através de lentes que permitam enxergar um pouco mais além, ou talvez apenas de
maneira “desfocada”, em relação àquela questão-mote explorada até então por muitas/os
estudiosas/os, a saber, “o que são Feiras de Ciências?”. Enxergo, assim, as feiras de ciências,
no campo dos estudos curriculares, como espaços de possibilidades e de produção de
subjetividades. Pergunto, pois, em uma ampla margem de pensamento, como funciona uma
Feira de Ciências? e, estando mais à espreita e sem sair, no entanto, deste mesmo movimento
investigativo, que experiências de subjetivação seriam possíveis entre as/os jovens, no
currículo de uma feira? Ao problematizar os espaços das feiras de ciências no currículo
escolar, intenciono, portanto, apresentar outros horizontes possíveis para os estudos que
articulam currículo, cultura e educação, questionando o lugar da ciência, enquanto um
constructo cultural e discursivo, na constituição das subjetividades juvenis na atualidade.
3 “Onde vamos chegar com isso?”: possibilidades de sentidos e disputas por
subjetividades no currículo de feiras de ciências
O currículo escolar é atravessado na contemporaneidade por diferentes forças, textos,
artefatos e discursos que apontam para novas constituições nas subjetividades juvenis e,
assim, convocam para um urgente diálogo os sujeitos envolvidos com os desafios e
perspectivas do Ensino Médio brasileiro (ARROYO, 2014; DAYREL, 2007, 2009, 2017;
KRAWCZYK; MARANDINO; SALES, 2014). A partir deste inquietante apontamento,
intenciono justificar, primeiramente, uma relevância social e pedagógica desta proposta de
pesquisa de mestrado, para as pesquisas que articulam juventude, educação e currículos.
7
Gostaria, nesse sentido, de indagar: com quais lentes, então, poderíamos enxergar
esses sujeitos que chamamos jovens? Como pensar este termo, juventude, em nossas
pesquisas? Junto às teóricas/os da educação, evocadas/os acima, que me mobilizam a discutir
sobre esta questão, entendo que a juventude é uma categoria histórica e culturalmente
produzida. Isso significa que os sentidos, os significados que são endereçados a esses sujeitos,
como também o tratamento que lhes é atribuído pela sociedade ganham contornos particulares
em contextos históricos, sociais e culturais distintos (DAYRELL, 2017, p. 26). É possível,
desse modo, pensar nos processos de produção das subjetividades juvenis a partir do
pressuposto foucaultiano acerca da historicidade e discursividade como fatores diretamente
implicados na constituição do sujeito (FOUCAULT, 2010).
A juventude pode ser vista, pois, como uma categoria dinâmica (DAYRELL, 2017),
ou seja, “ela é transformada no contexto das mutações sociais que vêm ocorrendo ao longo da
história” (DAYRELL, 2017, p. 27). Entendo, assim, que não há uma juventude, isto é, uma
identidade fixa e substancial a respeito do que significa ser jovem. Ao contrário, faz-se
necessário falar em jovens, enquanto sujeitos que experimentam e se constituem a partir de
práticas que são da ordem da diversidade e que são produzidas de acordo com o contexto
sociocultural, com suas formações discursivas bem como as relações de forças engendradas,
onde esses sujeitos se inserem e elaboram inúmeros modos de ser jovem (DAYRELL, 2009;
2017). Isso significa dizer que as/os jovens apresentam múltiplas formas de viver e, portanto,
é importante entender a juventude no plural, isto é, como juventudes, para se afirmar a
multiplicidade de modos de ser jovem existentes ( DAYRELL, 2007; 2014; 2017; SALES,
2014).
Tal pluralidade de práticas de vida constitui-se como expressões simbólicas das/os
jovens e se insere no âmbito da cultura e da sociabilidade (DAYRELL, 2009), articulando-se
a “fatores econômicos, políticos e, sobretudo, de classe e frações de classe ou grupos sociais”
(DAYRELL, 2007, p. 25). Essas expressões simbólicas são percebidas, por exemplo, nos
modos de vestuário pessoal, de se experimentar a sexualidade, nas produções culturais – como
estilos musicais e ocupação de espaços urbanos - na comunicação individual e coletiva,
especialmente em relação ao uso das tecnologias digitais (DAYRELL, 2007; SALES, 2014).
8
As/os jovens estão, pois, constantemente diante das suas existências enquanto sujeitos
marcados por uma atitude de intensa experimentação (SPOSITO,2005).
E é justamente a partir desse ponto de entendimento a respeito das juventudes que se
pensa nos desafios enfrentados pelo ensino médio brasileiro, quando se questiona “para que
serve a escola?” (SIBILIA, 2012 p. 09). Tal questionamento pode nos levar a reconhecer a
existência de um movimento de obsolescência o qual a escola vem tomando (SIBILIA, 2012)
atualmente, especialmente no que diz respeito à incompatibilidade entre as demandas juvenis
na contemporaneidade (DAYRELL, 2007) e a maquinaria escolar (SIBILIA, 2012), que
insiste em atualizar-se numa lógica de controle e normalização dos corpos (FOUCAULT,
2014b). Nesse cenário, diante de mudanças sociais, políticas, culturais e econômicas que
impactam diretamente na constituição dos sujeitos jovens de hoje, a escola enfrenta a
dificuldade de acompanhar tais mudanças para, nesse caminho, possibilitar a produção de
novos sentidos da/do jovem em relação a si própria/o e ao currículo escolar, garantindo um
espaço de aprendizado que esteja vinculado às demandas dos sujeitos desse currículo.
Trata-se, pois, de “compreender a juventude em suas práticas e símbolos como a
manifestação de um n1ovo modo de ser jovem (...) que coloca em questão o sistema
educativo, suas ofertas e as posturas pedagógicas que lhes informam” (DAYRELL, 2007, p.
110). Estamos diante, assim, de um desafio complexo e de imensas proporções, uma vez que
implicaria, dentre inúmeros investimentos, em repensar as escolas, ou seja, “redefini-las como
espaços de encontro e diálogo, de produção de pensamento e decantação de experiências
capazes de insuflar consistências nas vidas que as habitam” (SIBILIA, 2012, p. 211) Desse
modo, assumir o fato de que a escola, em especial o ensino médio brasileiro, estão cada vez
distantes da vida das/os jovens - diante das atuais configurações na cultura e nos modos de
constituição dos sujeitos - torna-se uma postura imprescindível para que, em resposta a essa
desafiadora ausência de sentidos, alguma coisa aconteça nas aulas (SIBILIA, 2012), no
currículo.
Esse acontecimento poderia estar justamente no fluxo de experiências que
potencializem a vida dos sujeitos que habitam o currículo escolar, isto é, trata-se de, “contra o
tédio e a dispersão, dar densidade à experiência, despertando entusiasmo e vontade de
aprender” (SIBILIA, 2012, p. 209). Por isso, com o desafio atual de se re-construir uma
9
escola em sintonia com o mundo contemporâneo (SIBILIA, 2012; KRAWCZYK, 2014),
espaços curriculares como as feiras de ciências apresentam-se não apenas como mecanismos
de produção e disseminação do conhecimento científico, mas também como uma das
possibilidades buscadas para se travar novas relações com a vida estudantil, profissional e
pessoal das/os jovens na atualidade (MARANDINO, 2014). Tal quadro argumentativo pode
ser ilustrado, de modo especial, com narrativas que jovens participantes de feiras de ciências
elaboram de si mesmas/os e disponibilizam em sites relacionados a essa temática no
ciberespaço. É o caso, por exemplo, do depoimento de um grupo de estudantes de ensino
médio, do estado da Bahia, que relatam suas experiências4 de participação na Mostra
Internacional de Ciências e Engenharia (MOSTRATEC5), no ano de 2013,
Éramos alunos de escola pública, do interior da Bahia e havíamos passado por
tantas dificuldades que nem sonhávamos em participar de algo como a
MOSTRATEC (...) Se você é aluno de escola pública, sabe que as dificuldades
existem a todo momento, e também sabe que desistir é sempre a opção mais
próxima e inquestionavelmente viável. Estávamos na maior feira de ciências da
américa latina, e isso era demais! Mas, sempre surgiam questionamentos do
tipo: o que faremos depois daqui? Onde vamos chegar com isso? Quais são
nossas chances? Infelizmente não fazíamos ideia alguma do que fazer. Ainda
achávamos que éramos “sortudos” e que logo voltaríamos à realidade. Mas as
coisas não são bem assim. Continuamos passando por diversos apertos, a
diferença é que a motivação fez com que os problemas fossem insignificantes
frente à nossa determinação. Não desistimos do nosso sonho e seguimos adiante
com nossa pesquisa (...) Tivemos a oportunidade de representar o Brasil no
Chile, Paraguai, México, Austrália e Peru.
A partir deste relato e associado às discussões feitas até então, entendo que os
processos de desenvolvimento de projetos e investigações científicas podem favorecer
exponencialmente à problematização de realidades sociais e culturais pelas/os jovens, que
passam a serem demandadas/os a tomarem decisões sobre questões em relação aos seus
corpos, à vida afetiva, sexual, e profissional (MANCUSO, 2006; LEITE, 2006; BRASIL,
2013; MARANDINO, 2014). É preciso, contudo, assumir uma atitude de constante suspeita e
espreita em relação a qualquer discurso que venha a enunciar verdades para uma realidade
(FOUCAULT, 2008; DELEUZE, 2013). Tais potencialidades deste currículo são evocadas,
4 Os relatos aqui trazidos fazem parte de um repositório online de depoimentos de estudantes brasileiras/os que
participaram de feiras de ciências escolares, nacionais e internacionais. Esse banco de relatos é organizado pela
Associação Brasileira de Incentivo à Ciência (ABRIC) e está disponibilizado, com este (realizado em 2016) e
outros depoimentos, no link http://incentivoaciencia.com.br/categoria/inspire-se/. Acesso em 05 mai. 2017. 5 A Mostra Internacional de Ciências e Engenharia (MOSTRATEC) é uma feira de ciências e tecnologia
realizada anualmente na cidade de Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul.
10
pois, a partir da postura analítica deste projeto, a saber, a de tomar a feira de ciências como
um currículo de disputas e possibilidades.
Por isso, as possibilidades potentes (PARAÍSO, 2014) deste currículo não estariam
dissociadas das formas aprisionadoras de forças, das relações de poder em torno da demanda
por certo tipo de subjetividade, em um campo discursivo autorizado, pois “um currículo está
sempre cheio de ordenamentos, de linhas fixas, corpos organizados, identidades majoritárias”
(PARAÍSO, 2004, p.153). Ao contrário, linhas duras e linhas de fuga se misturam, isto é, as
formas dominantes e as forças liberadoras de um território curricular co-implicam-se,
trabalham umas nas outras, interagem entre si, num constante e dinâmico fluxo conflitivo
(DELEUZE; PARNET, 1998; PARAÍSO, 2014). Neste mesmo movimento, portanto, o
currículo das feiras de ciências pode ser também uma oportunidade para a insurgência de
contágios múltiplos, encontros potentes entre os corpos, experiências que possibilitem às/os
jovens insuflarem suas vidas e gerar sentidos outros para si próprias/os, para a escola e para
suas comunidades de inserção.
Com base, pois, nessa discussão, considero que operar com a perspectiva de pesquisas
pós-críticas implica em “movimentar-se constantemente para olhar qualquer currículo,
qualquer discurso como uma invenção” (PARAÍSO, 2014, p. 44). Entendo e justifico, assim,
que os espaços curriculares das feiras de ciências são vistos nesta proposta de pesquisa como
um objeto analítico de relevância social e pedagógica para se pensar em novas possibilidades
do currículo escolar em suas relações com as juventudes na atualidade. Isso, de modo especial
no intuito de oportunizar espaços de multiplicação dos sentidos de aprendizagem e de vida
para as/os estudantes, uma vez que “o núcleo da transformação do ensino médio está na
reinvenção dos currículos, da concepção e da prática da educação” (ARROYO, 2014, p. 54).
Referências
ARROYO, Miguel. Repensar o Ensino Médio: por que?. In: DAYREL, J.; CARRANO, P.;
LINHARES, M., C. (Orgs) Juventude e Ensino Médio: sujeitos e currículos em diálogo. 1ª
ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. p. 53-73.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica-SEB. Programa Nacional
de Apoio às Feiras de Ciências na Educação Básica - Fenaceb, Brasília, 2006.
11
CORAZZA, Sandra. O currículo como modo de subjetivação do infantil. In: CORAZZA,
Sandra. O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em educação. Petrópolis: Vozes,
2001. p. 56-77.
CORAZZA, Sandra. Uma vida de Professora. Ijuí: Unijuí, 2005.
DAYRELL, Juarez. A escola "faz" as juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil.
Educação & Sociedade, v. 28, n. 100, p. 105-128, out. 2007.
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos II. Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas
de Pensamento. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder [1982]. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P.
Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 273-295.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 42ª ed. Petrópolis: Vozes,
2014b.
DELEUZE, Gilles. Foucault. 9ª reimpressão da 1ª ed. de 1988. ed. Braziliense. São Paulo:
2013
DELEUZE, Gilles e PARNET, C. Diálogs. Ed. Escuta. São Paulo: 1998.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 22ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
KRASILCHIK, Miriam. O professor e o currículo das ciências. São Paulo: EPU; EDUSP,
1987.
KRAWCZYK, Nora. Uma roda de conversa sobre os desafios do Ensino Médio. In:
DAYREL, J.; CARRANO, P.; LINHARES, M., C. (Orgs) Juventude e Ensino Médio:
sujeitos e currículos em diálogo. 1ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. p. 75-98.
LIMA, Maria Edite Costa. Feiras de Ciências: a produção escolar veiculada e o desejo de
conhecer no aluno. Recife: Espaço Ciência, 2004.
http://www.espacociencia.pe.gov.br/artigos/ ?artigo= consulta em 17.05.2016
LIMA, Valderez M. R.; MANCUSO, Ronaldo; BORGES, Regina M. R. Feira ou Mostra de
Ciência e Tecnologia como consequência da educação científica na escola. In: REUNIÃO
REGIONAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA, 2.
2006, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: SBPC/RS, 2006. 1 CD- ROM.
MANCUSO, R; LEITE FILHO, I. FENACEB. Feiras de Ciências no Brasil: Uma
trajetória de quatro décadas. Brasília, 2006. p. 11-40.
12
MANCUSO, Ronaldo. Feiras de Ciências, das escolares às nacionais: conflitos e sucessos.
. In: REUNIÃO REGIONAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA
CIÊNCIA, 2: 2006; Porto Alegre, RS, Anais. Porto Alegre: SBPC/RS, 2006. 1 CD- ROM.
MARANDINO, Martha. Ciência, Tecnologia e Educação: promovendo a alfabetização
científica de jovens cidadãos. In: DAYREL, J.; CARRANO, P.; LINHARES, M., C. (Orgs)
Juventude e Ensino Médio: sujeitos e currículos em diálogo. 1ª ed. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2014. p. 269-307.
MORAES, Roque; MANCUSO, Ronaldo. Museus interativos e feiras de ciências: brincando,
fazendo ciência e tecnologia. In: Caminhos da Ciência, Tecnologia e Inovação em Porto
Alegre, 2.ed (ampliada), Porto Alegre: SBPC/RS, out. 2005. encarte. Não paginado.
NETO, Manoel Lopes Bezerra. construção de uma feira de ciências que visa à integração
de atividades de iniciação científica e tecnológica para o ensino médio a partir de
questões ambientais e da prática social. Dissertação de mestrado. UNIVERSIDADE DE
BRASÍLIA. 2015.
PARAÍSO, Marlucy Alves. Pesquisas pós-críticas em educação no Brasil: esboço de um
mapa. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 34, n. 122, mai./ago. 2004, p. 283-303.
PARAÍSO, Marlucy Alves. Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação e currículo:
trajetórias, pressupostos, procedimentos e estratégias analíticas. In: MEYER, D. E.;
PARAÍSO, M. A. (Orgs.) Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação. 2ª ed. Belo
Horizonte: Mazza Edições, 2014. p. 25-47.
PARAÍSO, Marlucy Alves. É possível um currículo fazer desejar?. In: PARAÍSO, M. A.
(Org.) Pesquisas sobre Currículos e Culturas: temas, embates, problemas e possibilidades.
Curitiba: Editora CRV, 2010. p. 153-168.
PINTO, Jose Antonio Ferreira. feira de ciências, iniciação a pesquisa e comunicação de
saberes: o relato de uma experiência'. Dissertação de mestrado UNIVERSIDADE
ESTADUAL DA PARAIBA, 2014.
SALES, Shirlei Rezende. Etnografia+netnografia+análise do discurso: articulações
metodológicas para pesquisar em Educação. In: MEYER, D. E.; PARAÍSO, M. A.
Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação. 2ª ed. Belo Horizonte: Mazza
Edições, 2014. p. 113-134.
SALES, Shirlei Rezende. Tecnologias digitais e juventude ciborgue: alguns desafios para o
currículo do Ensino Médio. In: DAYREL, J.; CARRANO, P.; LINHARES, M., C. (Orgs)
Juventude e Ensino Médio: sujeitos e currículos em diálogo. 1ª ed. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2014. p. 229-248.
13
SECAB/UNESCO. Convênio “Andrés Bello”. Manual para el fomento de las actividades
científicas y tecnológicas juveniles. Bogotá, 1985.
SIBILIA, Paula. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Tradução de Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. 224p.
SPOSITO, Marilia Pontes. Juventude e Educação: interações entre a educação escolar e a
educação não-formal. Educação e Realidade. N 33(2): 83-98 jul/dez 2008.
TADEU, Tomaz e CORAZZA, Sandra. Dr. Nietzsche, curriculista – com uma pequena ajuda
do Professor Deleuze. In.: TADEU, Tomaz e CORAZZA, Sandra. Composições. Belo
Horizonte: Autêntica, 2003. p. 35-57.
WORTMANN, Maria Lúcia Castagna & VEIGA-NETO, Alfredo. Estudos Culturais da
Ciência & Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
WORTMANN, Maria Lúcia Castagna. A Educação Científica e os Estudos Culturais.
Porto Alegre: P&B, 2007.