joselia almeida
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Politica, educação, religião.TRANSCRIPT
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JOSLIA DA SILVA ALMEIDA
POLTICA E TRAGDIA
Tese apresentada como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutora de Teoria da Literatura do Curso de Ps-Graduao em Teoria Literria do Departamento de Teoria Literria e Literaturas da Universidade de Braslia.
Instituto de Letras Universidade de Braslia
2006
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Tese defendida perante a banca examinadora composta pelos seguintes professores:
Prof. Dr. Flvio Ren Kothe UnB
Orientador
Prof. Dr. Ricardo Arajo UnB
Departamento de Teoria Literria e Literaturas
Prof. Dr. Estevo Rezende Martins UnB
Departamento de Histria
Prof. Dr. Wilton Barroso Filho UnB
Departamento de Filosofia
Prof. Dr. Antnio Flvio Testa - FGV
Fundao Getlio Vargas
Prof. Dr. Maria Isabel Edom Pires UnB
Departamento de Teoria Literria e Literaturas
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DEDICATRIA
Para minhas razes maiores: Andr, Lua e Geraldo. Tambm para os Brancos e os Pretos, inclusive os que j se foram.
Especialmente para minha av e me, Francisca Cardoso de Souza, In memoriam.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo ao meu orientador, prof. Dr. Flvio R. Kothe, pela orientao leal e competente. Biblioteca Central da UnB e a seus funcionrios, especialmente diretora, Sra. Maria Jos (Zez). Biblioteca da Cmara dos Deputados, em especial Sra. Sylvia Regina e ao Sr. Carmelino, pela ateno e pelo indispensvel apoio na liberao de livros fundamentais. Ao Departamento de Teoria Literria e Literaturas - TEL, seus professores e funcionrios.
Agradeo ainda a Dga, minha irm, a Mariana Marcuzzo e a Mrcia pela corrente de positividade. Tambm agradeo ao Alfredo (ITA) pelas excelentes sugestes.
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RESUMO
Este trabalho visa a contribuir para o campo de pesquisa que engloba a esttica
trgica e a poltica, apresentando, portanto, um carter interdisciplinar. Seu objetivo
mostrar que h relao entre o fenmeno do trgico e a poltica, na tragdia. Para tanto,
utilizam-se quatro tragdias de expoentes da poesia trgica e mostram-se evidncias que
comprovam a relao entre o fator poltica e a estrutura do trgico. Dividido em duas
partes, o estudo comea por tratar o conceito de trgico, comentando textos de alguns
filosfos e estetas, como Schelling, Hegel, Nietzche, Schopenhauer. Com relao ao
trgico, considera-se, ainda, autores como Emil Staiger, Gerd Bornheim e outros. As
diversas definies so analisadas visando a um conceito geral do trgico. Em seguida,
trata-se a dimenso poltica, abordando-se a questo do poder como uma estrutura
desptica internalizada pelo homem a partir de sua prpria constituio psquica. So
apresentadas diferentes formulaes do poder, segundo Freud, Marx, Clausewitz e
Maquiavel. Cada qual em seu domnio especfico: teoria do inconsciente, teoria histrica,
teoria da guerra e teoria de Estado.
Na segunda parte do trabalho, analisam-se quatro tragdias que representam duas
grandes pocas da poesia trgica: antigidade clssica e modernidade. So analisadas dipo-
Rei, de Sfocles; Ricardo II e Ricardo III de Shakespeare, e, A morte de Danton, de
Bchner. As tragdias estudadas caracterizam-se pela presena do fenmeno do trgico,
apontando, por meio da bipolaridade entre elementos antagnicos, a aparncia da
realidade especfica de seus personagens. Dessas anlises, verifica-se o fenmeno do
trgico denunciando a verdade ou falsidade do campo da aparncia, que o da poltica.
Conclui-se que a poltica a prpria aparncia que o trgico denuncia, aquele campo de
aparncia em que o submetimento ao poder se encontra encoberto. Da a relao do
fenmeno do trgico com a poltica.
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ABSTRACT
This works purpose is to collaborate with the field of research that involves
tragical aesthetics and politics, having, thus, an interdisciplinary character. Its objective is
to reveal the relationship between the tragical phenomenon and politics tragedy. To
achieve its purpose, four tragedies of the tragical poetrys great authors are used and
proofs of the connection between the political factor and the tragedys structure are
presented. Divided in two parts, the study begins with the analysis of the concept of
tragical, reviewing texts of some philosophers and aesthetes, like Schelling, Hegel,
Nietzsche, Schopenhauer. Concerning tragedy, Emil Staiger, Gerd Bornheim and other
authors are considered. The various definitions are analyzed aiming a general concept of
what is tragical. Then, the side of politics is discussed, treating power as a despotic
structure internalized by man through its own psychological nature. Distinct formulations
of power are exhibited, according to Freud, Marx, Clausewitz and Machiavelli. Each one
works in its specific domain: psychoanalytic theory, historical theory, war theory and
Estate theory.
In the second part of the work, four tragedies that represent two great periods of
tragical poetry, classical antiquity and modernity, are analyzed: Sfocles Oedipus the
King, Shakespeares Richard II and Richard III and Bchners Dantons Death. The
referred tragedies are characterized by the presence of the tragical phenomenon, showing,
with bipolarity between conflicting elements, the appearance of their characters specific
reality. From this analysis, the tragical phenomenon reveals the truth or non-truth of the
respective field of appearance that is the politics. One can conclude that politics itself is
the appearance that tragedy denounces, the field of appearance in which submission to
power lies sealed. That is the connection between the tragical phenomenon and the
politics.
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ndice
Introduo 1
PARTE I
Captulo I: Tragdia e o trgico
1.1 Idia da poesia trgica 7
1.2 O pensamento pr-socrtico 8
1.3 Potica e estetas contemporneos 11
1.4 Algumas concepes filosficas do trgico
a) Schelling 14
b) Hegel 15
c) Schopenhauer 16
d) Nietzsche 18
e) Scheler 19
1.5 Natureza dialtica do trgico 20
Captulo II: O trgico e a poltica
2.1 Pensamento grego 22
2.2 Os gregos e o Estado 26
2.3 Pensamento e mentalidade atenienses 27
2.4 Identidade cvica ateniense e a poltica 28
a) Os espetculos pblicos da cidade 31
b) As festas como lazer 33
c) Festa de Dionsio 35
2.5 Atualidade da tragdia e pensamento poltico 40
Captulo III: A subjetivizao do poder e o complexo de dipo
3.1 Abordagens sobre o poder 44
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3.2 Interiorizao do poder 47
3.3 O complexo de dipo 50
3.4 A lei do outro 54
3.5 Lugar do pai 59
Captulo IV: A origem do poder desptico segundo Marx
4.1 Homem e natureza 62
4.2 Devir histrico do aparato psquico 64
4.3 Mercadoria e fetichismo 68
4.4 Cooperao e manufatura 71
4.5 O poder da cooperao 73
Captulo V: A teoria da guerra
5.1 Clausewitz 76
5.2 Guerra no duelo 81
5.3 Fundamento popular da fora militar 85
Captulo VI: Maquiavel e O prncipe
6.1 O prncipe 91
6.2 Perspectiva da histria 92
6.3 Natureza humana 93
6.4 Maldade dos homens 96
PARTE II
Captulo VII: dipo-Rei, de Sfocles
7.1 Sfocles 102
7.2 A tragdia de dipo-Rei 103
7.3 Tragdia e profecia 106
7.4 Reconhecimento e peripcia 108
7.5 Confronto entre saber e mito 111
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7.6 Descendncia 116
7.7 Pensamento laico 118
7.8 Aniquilamento 120
Captulo VIII: Ricardo II de Shakespeare
8.1 Shakespeare e o trgico moderno 122
8.2 Era elizabetana 123
8.3 Contextualizao 125
8.4 Ricardo II 126
8.5 Ricardo II e Maquiavel 136
8.6 Os dois corpos do rei 140
8.7 Metfora do jardim 149
8.8 Comparao entre Ricardo II e O prncipe 153
8.9 Mudana de Ricardo 156
8.10 Fim de Ricardo II 162
Captulo IX: RICARDO III
9.1 Contextualizao 168
9.2 Ricardo III histrico (1592-1593) 169
9.3 O drama Ricardo III 171
9.4 Ricardo e Lady Ana 179
9.5 Atualidade de Shakespeare 186
9.6 Luta interna entre os Yorks 188
9.7 Yorks contra Lancasters 193
9.8 A coroao 200
9.9 Ricardo no trono 206
9.10 Rebelio e queda 210
Captulo X: A morte de Danton, de Georg Bchner
10.1 Breve cenrio histrico da Revoluo Francesa 213
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10.2 Apresentao e anlise da pea 222
10.3 Discurso de Robespierre 226
10.4 Tragicidade e revoluo 228
10.5 Anlise de Peter Szondi 237
10.6 A revoluo devora seus filhos 240
CONCLUSO 246
Bibliografia primria 263
Dicionrios consultados 263
Site Internet consultado 264
Bibliografia terica e histrica 264
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INTRODUO
Os estudiosos so unnimes em admitir que a tragdia alcanou a sua forma mais
perfeita na Grcia antiga. Foram os gregos que estabeleceram os marcos que determinariam a
prpria evoluo da tragdia. De modo que sempre que se pergunta o que a tragdia, o que
caracteriza o fenmeno do trgico, volta-se Grcia e a ler a obra dos clssicos da tragdia como
squilo, Sfocles e Eurpides. Assim, para que se possa tentar compreender a essncia da tragdia
necessrio partir do estudo dos antigos, pois a comparao com os gregos que permite avaliar
o sentido da evoluo do trgico e medir o que se mantm constante.
Contudo, no obstante a perfeio da tragdia antiga, v-se que no nada fcil penetrar
o sentido do fenmeno do trgico. A fonte terica que os gregos deixaram, A potica, de
Aristteles, apenas delimita o objeto da tragdia, dizendo como ela se estrutura, quais so suas
partes constituintes e o lugar destas partes, mas com relao elucidao do fenmeno do trgico
ela nada diz.
A caracterizao do fenmeno do trgico, a partir exclusivamente do horizonte grego,
limita-se aos elementos religiosos presentes na origem da tragdia na Grcia antiga. Todavia, o
trgico no se explica pela reverncia aos deuses gregos. Tampouco, no parece ser o trgico
explicado pelas vicissitudes na vida do homem diante da busca desses deuses ou mesmo pela sua
condio ontolgica.
A elaborao de um conceito geral que d conta do fenmeno do trgico antigo e
moderno envolve inmeras dificuldades, decorrentes da incompreenso das dimenses que
constituem o prprio conceito: a relao do homem com os deuses, a compreenso que o homem
tem de si prprio, sua viso de mundo e a relao do homem com os outros homens: na plis, na
poltica.
Segundo Peter Szondi, quanto mais o pensamento se aproxima do conceito geral do
trgico, menos se fixa a ele o elemento substancial que deve impulsion-lo para o alto
(SZONDI,2004, p. 77). Albin Lesky acredita que quanto maior a proximidade do objeto, tanto
menor a possibilidade de abarc-lo numa definio (LESKY, 1996, p.31). A sada apontada
por Gerd Borheim, segundo o qual se se quiser encontrar teorias ou interpretaes do que seja a
tragdia, deve-se consultar os filsofos e os estetas modernos e contemporneos (BORNHEIM,
1992, p. 71).
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A tese central deste trabalho que h relao entre o fenmeno do trgico e a poltica,
na tragdia. Para tanto, foram analisadas as tragdias consideradas mais representativas desse
gnero literrio. Na primeira parte do trabalho, recorre-se s elucidaes de sistemas de alguns
filsofos e estetas modernos quanto possibilidade de se definir o trgico. Tais elucidaes sobre
o trgico, que convergem para um fator estrutural comum do trgico, que o fator dialtico, no
tm a pretenso de aprofundar os sistemas dos quais as concepes do trgico foram retiradas;
elas se contentam apenas em perguntar pelo valor que o trgico assume na respectiva estrutura de
pensamento. Os comentrios precisam tornar evidentes as diversas concepes do trgico com
referncia a um fator estrutural, que comum a todas elas.
Outro ponto fundamental com relao ao estudo do trgico o que diz respeito
diferenciao entre tragdia e trgico. Emil Staiger diverge da tradio antiga ao diferenciar
trgico e tragdia (STAIGER, 1975,p.147). Para ele, nem toda obra chamada tragdia poder
ser considerada trgica. Para que haja o trgico, ele dever atingir um homem que viva coerente
com sua idia e no vacile um momento sequer sobre a validade dessa sua idia de mundo. O que
implica que nem toda desgraa pode ser definida como trgico, pois este no frustra apenas um
desejo ou uma esperana casual, mas destri a lgica do mundo mesmo. dipo acreditava que
vivia coerentemente com os princpios morais-religiosos da poca, mas, no final do caminho, v a
ordem de seu mundo desmoronar. Da mesma forma, Ricardo II e Ricardo III vem a ordem de seu
mundo, baseado na obteno e manuteno do poder, ruir. E Danton, de Bchner, teria
compreendido o mundo revolucionrio como uma ordem e, ao v-lo desmoronar, vive a
tragicidade da situao, o aniquilamento mesmo de seu ser. Todos estes personagens tm sua
tragicidade relacionada perda do poder.
Com relao ao poder e sua ao poltica sobre os homens, recorre-se a diferentes
formulaes, pois relacionar o trgico com a poltica exige a considerao de distintas leituras da
realidade social. Freud, Marx, Clausewitz e Maquiavel so os principais tericos considerados na
abordagem da questo do poder e da ao poltica deste sobre os homens. E, por fim, na segunda
parte, procede-se s anlises de quatro tragdias: uma de Sfocles, duas de Shakespeare e uma de
Bchner.
Segundo Weber, a poltica a aspirao a participar no poder ou a influir na distribuio
do poder entre os diversos Estados ou, dentro de um mesmo Estado, entre os diversos grupos de
homens que a compem. Assim como todo o trgico se baseia numa contradio inconcilivel, da
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mesma forma aquela procura conciliar em sua ao de poder elementos conflitantes que emergem
do confronto entre o homem e a ordem de seu mundo. E a tragdia, enquanto gnero literrio,
aparece como um lugar privilegiado desse debate. Ao estudar a tragdia grega como arte poltica,
Meier (MEIER, 2004) analisa primeiro a emergncia da democracia ateniense e os conflitos que a
atravessam, pois sobre o fundo de querelas que se desenvolve a tragdia, sendo esta uma
dimenso esttica fundamental da vida poltica ateniense.
A primeira parte do trabalho dedica-se s formulaes tericas e abstratas. O primeiro
captulo apresenta uma reflexo integrada aos sistemas estticos de filsofos contemporneos
com Schelling, Hegel e outros. A reflexo desses filsofos busca o conceito que est no gnero da
tragdia: o conceito do trgico, cujo sentido filosfico sempre pensado a partir de uma estrutura
dialtica. Nesse caso, uma potica filosfica investiga as tragdias como exemplos, a partir dos
quais torna-se possvel visualizar a presena da estrutura trgica se movimentando em diferentes
tragdias antiga e moderna.
O segundo captulo contextualiza a tragdia numa poca de desenvolvimento de uma
identidade cvica aliada ao exerccio da poltica enquanto prtica de cidadania, em Atenas. Aliada
tambm tragdia tm-se ainda os espetculos e festas pblicas na cidade, principalmente com as
Grandes Dionsias. Nesse perodo, os atenienses viviam um cotidiano s avessas, com a subverso
da ordem das coisas e da vida social, de modo que as leis, as proibies e as restries so
revogadas enquanto duravam as festas.
As formulaes dos trs captulos seguintes centram-se na questo do poder como uma
estrutura desptica1 internalizada pelo homem a partir de sua prpria constituio psquica. Tal
estrutura aliena o homem da conscincia de sua origem como um ser da natureza e da realidade
que explora o elemento da cooperao, e ainda o separa da coletividade, expropriando-o em seu
poder enquanto fora coletiva quando junto aos outros homens.
O sexto captulo centra-se no poder de Estado sob a perspectiva de Maquiavel, seguindo
o seu manual de como deve o governante agir no sentido de conquistar e manter-se no poder.
Receiturio que toma por base um conhecimento da natureza humana, exposto nas repeties de
eventos no desenrolar da prpria histria da humanidade.
1Termo conforme utilizado pela traduo em espanhol em MARX, Karl. Elementos Fundamentales para la critica de la economia poltica - vol. 1. Traduo Pedro Scaron. Buenos Aires. Siglo XXI Argentina Editores S.A, 1973.
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Percebe-se que destas teorias emerge uma contradio entre ser e aparncia. Em Freud
esta contradio surge a partir do confronto entre foras psquicas antagnicas que lutam
constantemente entre si, sendo a resultante uma aparncia de estabilidade do sujeito com o mundo
exterior. Para Freud, a psicologia uma cincia ou um conhecimento de tipo histrico, e a
compreenso do mais individual deve recorrer origem coletiva e ao devir histrico para
compreender, no presente, a constituio do sujeito. No obstante, nesta origem, o ocultamento do
poder coletivo opera nas massas chamadas artificiais e persiste, nas formaes coletivas, a forma
da psicologia individual.
Em Marx, a contradio surge da expropriao dos poderes histricos a que foram
submetidos os homens antes proprietrios da terra e dos instrumentos dos meios de subsistncia,
da converso do capital em dono do produto da cooperao coletiva que o aproveita e o utiliza em
benefcio prprio, e do predomnio de uma forma de encobrimento: a do poder coletivo que
submete e organiza os homens em funo da dominao industrial, que tambm
simultaneamente aparente, na medida em que subsiste o processo de cooperao coletiva como
base de seu crescimento e de sua explorao.
Em Clausewitz tambm est presente esse campo de aparncia, portanto inconsciente, na
medida em que a poltica surge como o campo de paz como se no fosse resultado de uma guerra
anterior, ou seja, como se no se tratasse de uma trgua em que o dominadores, os que venceram,
impem essa aparncia de um tempo regulado pela lei da justia e no pela lei do mais forte. Essa
aparncia encobre, por meio da palavra, a realidade violenta de que a paz se originou; como se
no fossem os dominadores, aqueles que venceram, que impuseram essa aparncia de um tempo
regulado pela lei da justia e no pela vontade do mais forte, como sua verdade. Sendo os
extremos: ou pura guerra ou pura poltica; ambos campo de aparncia. Este campo, que o campo
da poltica, esconde a luta constante entre foras que se antagonizam, esconde o confronto de
classes sociais.
Em Maquiavel, aquilo que uma sociedade considera como valores morais no faz parte
dos princpios do conhecimento poltico, o seu estatuto apenas o de meios de ao. A forma
como esto construdas as proposies no d lugar s questes concernentes a uma justificao
das regras morais, pois se trata de partir do que uma sociedade dada com o intuito de intervir
nesta realidade. No h, de acordo com Maquiavel, nenhum procedimento que permita passar do
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que uma sociedade a um dever ser moral ou religioso, seno o da instituio do Estado, meta
ltima de toda ao.
Pode-se agir no somente contra a filosofia crist, mas contra a humanidade como um
todo, e a justificativa de tais aes dada pelas regras gerais da poltica, esfera soberana dentre os
campos do saber e cujos princpios se derivam de suas prprias mximas. Aquilo que uma
sociedade considera como valores morais no faz parte dos princpios do conhecimento poltico.
No entanto, na figura do prncipe, a qual encarna a forma de agir voltada para a criao e
conservao de uma realidade estatal, deve-se concentrar a imagem de um ser justo, caridoso,
penitente e de moral ilibada. Aqui se encontra a sua natureza aparente e encobridora do real, pois
ele no nem penitente, nem moral, nem caridoso; pois para manter-se no poder ele tem que
submeter os homens, no importando por que meios. Mas, ele precisa parecer ser justo, piedoso e
detentor de moral inquestionvel.
Emerge, pois, tambm da teoria do Estado como fundao absoluta, aquele campo da
aparncia, visto nas demais formulaes tericas, bem como aquele poder, denominado
desptico por Marx, que submete os homens.
A segunda parte do trabalho apresenta a anlise de quatro tragdias, nas quais se verifica
o fenmeno do trgico denunciando a verdade ou a falsidade do campo da aparncia, que o da
poltica. O stimo captulo analisa a tragdia de dipo-Rei, de Sfocles; o oitavo e nono analisam
as criaes shakespeareanas Ricardo II e Ricardo III. Estas aparecem aqui na ordem, no de
escritura, mas na ordem cronolgica dos eventos histricos relacionados aos personagens. O
ltimo captulo, finalmente, analisa A morte de Danton, de Bchner.
As tragdias analisadas caracterizam-se pela presena do fenmeno do trgico
apontando, por meio da bipolaridade entre elementos e idias antagnicas, a aparncia da
realidade especfica de seus personagens. Em dipo encontra-se o confronto poltico entre o
universo conceitual do saber e da ao e o universo mtico-religioso. Enquanto representante do
lgos, dipo busca se guiar por um mtodo que abranja fundamentos como inteligncia racional,
saber emprico e busca de evidncias; ele representa o mundo laico baseado em fundamentos no
religiosos, mas sim, objetivos e jurdicos da plis. Do outro lado, encontra-se Tirsias,
representante do universo do mthus, em que vigoram valores religiosos baseados em princpios
como saber extra-sensorial e mundo mtico-lendrio.
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Em Ricardo II, o fenmeno do trgico expe, por meio do confronto, dois modos
distintos de se encarar a poltica de governo e desvenda a mentira que sustenta um soberano
incapaz de governar. Assim, a articulao de golpe de Estado que se processa em torno do poder
plenamente justificada luz da teoria poltica de Maquiavel. Neste drama, Shakespeare encara o
fato poltico em termos que indicam j ter ele entrado em contato com a obra de Maquiavel, em
sua forma original e no mais apenas por intermdio das usuais leituras elizabetanas deformadas.
Segundo Brbara Heliodora, Ricardo II parece ilustrar as convices de um perodo mais maduro
da carreira de Shakespeare (HELIODORA,1978, p.277).
A tragdia Ricardo III abre com o famoso monlogo inicial de Ricardo, que
continuao de solilquio similar em Henrique VI, comemorando a vitria de sua Casa, a dos
Yorks, e se apresentando ao pblico. Nele, Ricardo III revela a face que, no desenrolar dos
acontecimentos, manter sob a mscara da aparncia. A bipolaridade de sua existncia, os
extremos do ser e do parecer, caracterstica do heri trgico, est colocada logo nas primeiras
linhas da tragdia shakespeariana.
Na tragdia A Morte de Danton, de Bchner, o protagonista caracterizado como um
revolucionrio que cai vtima da Revoluo Francesa por ter tentado salv-la. Ou melhor: quando
a Revoluo ameaa se desvirtuar de seu projeto original, ele se coloca contra, e, por isso, cairia
vtima da Revoluo. Est posto o paradoxo: Danton, o revolucionrio que lutou na Revoluo,
torna-se vtima das instituies revolucionrias e condenado guilhotina.
Durante a realizao do trabalho e da anlise das tragdias, observou-se que a poltica
a prpria aparncia que o trgico denuncia, aquele campo de aparncia em que o submetimento do
poder se encontra encoberto. Da a relao do fenmeno do trgico com a poltica.
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PARTE I
I. TRAGDIA E TRGICO
1.1 Idia da poesia trgica
Com relao ao trgico no se pode pretender desenvolver o problema em toda a sua
extenso, mas apenas tentar uma aproximao do entendimento desse fenmeno e sua relao
com a poltica. Tampouco trata de propor a fixao numa simples formulao da essncia do
trgico, nem isto seria possvel dada a complexidade que o tema, por si s, envolve. O objetivo
deste trabalho , sem inteno de desenvolver uma teoria sobre o trgico, tentar evidenciar uma
parte importante de uma problemtica que, por muitos lados, permanece em aberto. A comear
pela discusso que perdura at hoje referente origem do trgico, passando pelo entendimento de
alguns aspectos que permitam entender a vigncia ou a situao do fenmeno trgico na literatura
dramtica contempornea.
Neste captulo, tentar-se- conhecer a idia, e no a lei formal, normativa da poesia
trgica. A idia do trgico tida como algo que est ligado a uma situao histrica, porm segue
um mtodo que no considera o trgico em si, como algo que no est ligado nem a uma situao
histrica, nem necessariamente forma da tragdia.
Segundo Bornheim (1992, p.71), a todas conceituaes do trgico comum o fato de ser
prprio de sua natureza no se deixar pegar numa definio nica, geral e definitiva. Para Szondi
(2004, p.77), quanto mais o pensamento se aproxima do conceito geral do trgico, menos se fixa
a ele o elemento substancial que deve impulsion-lo para o alto. A partir dessas formulaes, j
se pode sentir a dificuldade que o tema do trgico envolve. Como se pressente, este tema
controverso e possui um abundante campo de discusso.
Segundo Gerd Bornheim (1992, p.70), se se quiser encontrar teorias ou interpretaes do
que seja a tragdia, deve-se consultar os filsofos e os estetas modernos e contemporneos. Partir-
se.- de um breve quadro da opinio geral destes sobre a possibilidade de uma conceituao geral
e definitiva do trgico, limitando a mencionar os filsofos mais importantes. Importa apenas a
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prpria semelhana essencial entre suas definies do trgico. Em seguida, ser introduzida a
questo do trgico e sua relao com a poltica, com uma breve exposio histrica em que esto
presentes as origens de uma mentalidade poltica e cvica do povo ateniense, bem como o vnculo
da manifestao trgica com as festas populares das Dionsias.
destacado que, simultaneamente ao fenmeno do trgico com as tragdias, inaugura-se,
em Atenas, a prtica da poltica como exerccio regrado dos conflitos e hostilidades internos por
intermdio da palavra e da persuaso numa cena pblica que os torna possveis, ou ainda da
poltica enquanto exerccio do poder que decide sobre o que pode ou no ser feito em relao
coletividade, e o surgimento de um conceito de Estado.
O objetivo construir um quadro que contextualize a sociedade grega dos sculos VI e V
a.C., quando foram criadas as mais antigas tragdias que nos foram legadas; momento em que o
corpo dos cidados atenienses adquiriu uma vasta esfera de dominao e Atenas est prxima de
se tornar a potncia preponderante no mar Egeu.
1.2 O pensamento pr-socrtico e o trgico
Segundo Bornheim (1992, p.72), o trgico possvel na obra de arte porque ele inerente
prpria realidade humana, pertence, de um modo precpuo, ao real. Para explicar tal inerncia e
a dimenso trgica da realidade humana poder-se-ia buscar algo que no homem possibilite a
vivncia trgica. Porm, antes de avanar com o raciocnio relativo presena no homem do
elemento possibilitador do trgico, desenvolver-se- o raciocnio pr-socrtico do que seria o
princpio do real.
A palavra princpio quer dizer estar no incio de tudo, do todo, e o que no incio est
domina, atravessa o todo. Assim, no se pode entender o princpio maneira crist, como algo
anterior ao desenvolvimento daquilo ao qual o princpio d origem, como algo datado. Ao
contrrio, o princpio (arke) determina o desenvolvimento, e a seu modo estar presente nesse
desenvolvimento. Se isto assim, o grande problema o do entrelaamento de unidade e
multiplicidade, de justia e injustia, de medida e desmedida, atravs de seu acontecer, ou no seu
processo csmico. Em outras palavras, no suficiente dizer que a unidade fundamento da
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multiplicidade ou que esta fundamento daquela. Coloca-se, em conseqncia, o problema de
saber qual o fundamento da unidade e da multiplicidade, da justia e da injustia.
Para os pr-socrticos, desde Nietzsche tornaram-se freqentes as comparaes entre a
tragdia grega e o pensamento pr-socrtico, no qual unidade e multiplicidade so formas de ser,
e o ser a physis, a natureza. A physis, estendendo-se ao todo do real, permite compreender
unidade e multiplicidade, pois ambas so interiores natureza. Ela est em tudo o que , se
manifesta no real, mas de diversas maneiras. E o modo de ser da multiplicidade, na medida em
que se afirma como tal e no reconhece a sua unidade no ser, faz com que se troque o ser pela
aparncia de ser. A recusa em ouvir a voz da physis ou a teimosia da multiplicidade que se afirma
como independente e se recusa a confessar a unidade de todas as coisas, o princpio dos
pseudos, do erro, que gera culpa e injustia. Nesse sentido que a aparncia deve voltar a
integrar-se no ser. A compreenso da sabedoria como um saber escutar a voz do ser patrimnio
comum da filosofia pr-socrtica (BORNHEIM, 1992, p.72).
Ao transportar essas idias para o plano da tragdia, v-se que nela se depara com a
existncia humana entregue ao conflito que deriva do entrelaamento do ser e da aparncia. O
heri trgico est como que retesado entre esses dois extremos, retesado, porque os vive,
conscientemente ou no, como extremos, e a sua vida balana, entre a verdade e a mentira.
Portanto, considerado dessa maneira, o objeto fundamental da tragdia seria no o destino nico
do heri inocente que deve ser sacrificado. O objeto precpuo da tragdia seria muito mais a
aparncia que envolve toda existncia humana, acompanhada da densidade que se alia a tal
aparncia. O desenvolvimento da ao trgica consistiria na progressiva descoberta da verdade,
esta no sentido de manifestar, descobrir-se.
No a essncia do heri, restrita a sua individualidade, que vem tona, mas a aparncia
na qual est submerso: a aparncia descoberta, e nela mostra-se a prpria physis do heri. Se se
tratasse simplesmente da essncia do heri, ele seria total negatividade, e em si mesmo, enquanto
homem, seria pseudos. O problema no reside, porm, no seu ser, mas no seu modo de ser - algo
que pode pr em jogo inclusive o seu ser. A partir dos equvocos da situao humana do heri
revela-se a verdade.
Fazer do homem a medida do real prprio de quem vive entregue ao mundo da
aparncia, fazendo com que ele recuse uma medida que o transcenda. Nessa recusa da
transcendncia estaria a raiz do pseudos, da injustia, da culpa. Enquanto vive a teimosia de sua
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particularidade, o homem se torna princpio da lei, e rejeita um princpio que transcenda essa sua
condio. A lei divina por ele preterida. Assim, ele passa a ser presa da aparncia ou de uma
medida aparente, porque sua, particular; ele incide na desmedida, o oposto da existncia que
encontra a sua medida na lei divina, e que por isso justa. O heri adota, de um modo consciente
ou no, uma espcie de falso semblante; ele age como se toda medida que o transcende tivesse
perdido o sentido. E ele trgico precisamente porque esta sua posio se revela falsa. E ento,
ele se depara com uma injustia que o obriga ao reconhecimento da justia.
Assim, pode-se dizer que o conflito trgico deriva de um no-estar, ou no poder estar,
completamente na justia: o homem como que vive entre a justia e a injustia, entre o ser e a
aparncia. E a evoluo do trgico consiste na descoberta da aparncia e na conquista
conseqente do ser. Em outras palavras, dir-se-ia que o homem um ser hbrido, no sentido de
que pode perder de vista a sua medida real, transcendente, e emaranhar-se na aparncia ou na
desmedida, confinando-se sua prpria imanncia. Em ltima anlise, toda tragdia quer saber
qual a medida do homem. Toda tragdia pergunta se o homem encontra sua medida em sua
particularidade ou se ela reside em algo que o transcende; e a tragdia pergunta para fazer ver que
a segunda hiptese a verdadeira. O no reconhecimento dessa medida do homem acarreta, pois,
o trgico.
Esclarecida a questo do real, volta-se ao elemento possibilitador do trgico. Este poderia
ser chamado de finitude, ou, ainda, de imperfeio. No entanto, fundamental acrescentar que
nem a finitude nem a separao ontolgica2, que caracterizam no s o homem, mas os seres
vivos da natureza em geral, no so em si mesmas trgicas. O homem como homem, em sua
condio, no trgico. O trgico pertence esfera dos valores; preso a um valor que o trgico
pode aparecer no real. Sem ser um valor, ele adere a certos valores, vindo ento a manifestar-se
(BORNHEIM, 1992, p.72).
Explica-se, desse modo, que esse gnero dramtico que a tragdia, no possa surgir
arbitrariamente; que de fato a tragdia s tenha surgido na cultura ocidental, e mais, em certos
momentos dessa cultura.
Portanto, para que se possa verificar o trgico, alm do elemento bsico exigido para que
ele se d, que a existncia de um homem trgico, h um outro pressuposto no menos
2Expresso consagrada por Sartre.
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importante. Este se constitui pela ordem ou pelo sentido que forma o horizonte existencial do
homem. A natureza da ordem pode variar. Pode ser o cosmo, os deuses, a justia ou o bem. s a
partir destes dois pressupostos que se torna compreensvel o conflito que caracteriza a ao
trgica. Estar em ao trgica remete, pois, a esses dois pressupostos, e a partir da bipolaridade da
situao faz-se possvel o conflito. A polaridade dos pressupostos uma exigncia indispensvel,
ela que torna vivel a ao trgica. No momento em que estes dois plos entram em conflito
temos a ao trgica.
A natureza hbrida do homem se debate entre esses dois plos que so os pressupostos
ltimos do trgico: o homem e o mundo dos valores que constitui o seu horizonte de vida. Ou
melhor: o trgico reside no modo como a verdade (ou a mentira) do homem desvelada. E o que
vale para a tragdia grega vale tambm para o fenmeno do trgico como tal. Quer-se dizer que
naqueles dois pressupostos se encontram os critrios que permitem avaliar o sentido da evoluo
do trgico. Evidentemente que no se trata de essncias permanentes, mas de realidades
histricas. Na medida em que os dois plos mudam de natureza, se metamorfoseiam, o prprio
sentido do trgico que se transforma, porque desse modo eles perdem o sentido, e o fenmeno
trgico deixa de existir.
1.3 Potica e estetas contemporneos
A possibilidade de definir o trgico aparece como geradora de um debate que permanece
em aberto. E para melhor entender esse debate, sero consultadas brevemente as idias principais
de sistemas de alguns filsofos modernos, que sero pinados arbitrariamente de um grupo maior,
a fim de se ter um quadro mais abrangente desta discusso e um conceito de trgico que permita a
anlise das tragdias, bem como poder estabelecer uma relao do trgico com a poltica.
Os estudiosos so unnimes em admitir que a tragdia alcanou o seu mximo esplendor,
a sua forma mais perfeita, na Grcia clssica. Hegel (1965, p.390) diz que a fase mais bem
acabada, tanto da tragdia quanto da comdia, foi atingida com os gregos:
Cest chez les grecs qul faut donc chercher les vrais dbuts de lart dramatique; cest dailleurs chez eux que le principe de la libre individualit a, dune faon gnrale, rendu possible pour la premier fois la naissance et la parfaite laboration de lart classique.
(HEGEL, 1965, p. 390)
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, pois, estudando os antigos que se pode tentar compreender a essncia da tragdia; a
comparao com os gregos deixa avaliar o sentido do trgico por meio do teatro do Ocidente, e
medir o que permanece constante. Todavia, no nada fcil penetrar o mistrio de seu sentido
ltimo. Para penetr-lo, a primeira fonte terica que se costuma consultar so as pginas de
Aristteles, mas ele no nos diz o que a tragdia; ele apenas delimita o seu objeto, e nos diz,
sobretudo, como a tragdia se estrutura, quais so as suas partes constituintes e qual o lugar
destas partes. Contudo, exatamente em relao ao problema central e mais importante, a
elucidao da essncia do fenmento trgico, Aristteles silencia.
Assim, se se quiser encontrar teorias ou interpretaes do que seja a tragdia, deve-se
consultar os filsofos e os estetas modernos e contemporneos. A bibliografia sobre o assunto
bastante vasta; mesmo to vasta quanto confusa, sendo a principal dificuldade que oferece a
compreenso da tragdia a que advm da resistncia que envolve o prprio fenmeno do trgico.
Sua natureza complexa provm do fato de que, como diz Bornheim (1992, p.71), ele se mantm
rebelde a qualquer tipo de definio e no se submete integralmente a teorias. De modo que as
interpretaes permanecem aqum do trgico, e lutam com uma realidade que no pode ser
reduzida a conceitos.
Lesky (1996, p.31) acredita que quanto maior a proximidade do objeto, tanto menor a
possibilidade de abarc-lo numa definio. E mais adiante lembra lembra as seguintes palavras de
Goethe: todo o trgico se baseia numa contradio inconcilivel. To logo aparece ou se torna
possvel uma acomodao, desaparece o trgico (GOETHE apud LESKY, 1996). At aqui se
pode perceber que h uma certa unanimidade desses estudiosos com relao dificuldade de uma
conceituao do fenmeno do trgico, mas essa constatao no se encerra aqui.
Para Emil Staiger (1975, p.147), somente Goethe, Schelling, Hegel e Hebbel, quando
tentam interpretar a crise acerca da viso de mundo do idealismo, aproximam-se da explicao do
termo trgico. Contudo, ele chama a ateno para o fato de que essa interpretao s se adapta a
uma modalidade especial do que se costuma denominar de crise trgica, a que nasce da
contradio insolvel entre livre arbtrio e destino. Para ele, a nova definio do conceito procura
libertar-se desta limitao. Assim, no seria trgica, apenas, a crise do mundo idealista, mas a de
qualquer mundo possvel, antigo burgus, cristo ou germnico. E com isso, ele se refere, no
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apenas crise, mas a um fracasso irrecorrvel, que no visualiza salvao. Para ele, nem toda
obra chamada tragdia poder ser considerada trgica.
A trgica no se relacionaria dramaturgia, mas metafsica. Assim, para ele, um ctico
que fracassa pode, desesperado, dar cabo de sua vida ou ainda um amante como Werther, para
quem a paixo o valor supremo e que chega concluso de que sua paixo destri a ele e aos
outros, so figuras trgicas e terminam naquela situao-limite em que se rompem todas as
normas e anula-se a realidade humana. Contudo, nem toda desgraa trgica, mas apenas aquela
que rouba ao homem seu pouso, levando-o a cambalear fora de si. Desse modo, o trgico no
frustra apenas um desejo ou uma esperana casual, mas destri a lgica do mundo mesmo. Assim,
para que o trgico cause efeito e espalhe sua fora fatal, dever atingir um homem que viva
coerente com sua idia e no vacile um momento sobre a validez dessa idia (STAIGER,1975,
p.148). Assim, para que o trgico aparea como verdadeira catstrofe mundial necessrio
inferir um mundo e compreend-lo como a ordem generalizada.
dipo acreditava que vivia coerentemente com os princpios morais-religiosos da poca,
para no final do caminho, ver a ordem de seu mundo desmoronar. Da mesma forma, Ricardo II e
Ricardo III viram a ordem de seu mundo, baseado na obteno do poder, desmoronar. E Danton,
de Bchner, teria compreendido o mundo revolucionrio como uma ordem e, ao v-lo
desmoronar, vive a tragicidade da situao, o aniquilamento mesmo de seu ser. Todos os
personagens aqui citados tm sua tragicidade relacionada perda do poder.
Portanto, para que o trgico cause efeito e espalhe sua fora fatal, dever atingir um
homem que viva coerente com sua idia e no vacile um momento sobre a validade desta idia. E
somente o esprito dramtico satisfaz essas exigncias, na medida em que retm com firmeza a
singularidade e a relaciona como o objetivo central. Diferentemente do esprito pico que
contempla estarrecido a fatalidade e volta-se para novos acontecimentos e do lrico que s fala
quando em unssono com as coisas, o esprito dramtico est sempre exposto ao perigo do trgico.
Este esprito no tem obrigatoriamente que irromper conforme se aproxime do final.
Porm, dependendo da impetuosidade do poeta na conduo sempre adiante do questionamento
do porqu das coisas, sendo o mundo finito, logo chegar-se- aos limites do homem, detendo-se o
ser vivente apenas perante um deus desconhecido. A Trgica apresenta-se, assim, como resultado
sempre possvel - embora no obrigatrio - do estilo dramtico (STAIGER ,1975, p.148). Esse
entendimento leva a uma diferenciao entre trgico e tragdia, que diverge da tradio
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antiga, pois relaciona o trgico metafsica, a um sentido, a uma ordem de mundo que quando
desaba o homem, um povo ou uma classe no pode sobreviver.
Essa concepo de trgico de Staiger que prev a destruio da lgica do mundo de uma
existncia, de um fracasso irrecorrvel, que no visualiza salvao, semelhante ao conceito de
trgico de Szondi, quando este diz que no no declnio do heri que se cumpre a tragicidade,
mas no fato de o homem sucumbir no caminho que tomou justamente para fugir da runa. Ou seja,
uma salvao que se torna o aniquilamento e o fracasso irrecorrvel do homem (SZONDI, 2004,
p.29).
Com isso, chega-se aos comentrios dos vrios filsofos modernos onde so apresentadas
definies para o trgico, mas nenhum chega a apontar para uma definio nica e definitiva. No
entanto, como se ver, as tentativas de definir o fenmeno do trgico levam exposio de um
denominador comum: o fator dialtico, cuja presena recorrente na filosofia do trgico, fundada
por Schelling e que atravessa o pensamento dos perodos idealista e ps-idealista, assumindo
sempre uma nova forma.
Como o objetivo aqui no elucidar os diversos sistemas de todos os estetas
contemporneos, cita-se apenas os mais significativos, com o intuito de neles apontar a existncia
de um fator estrutural, que comum a todos, de Schelling a Scheller3: que o fator dialtico.
1.4 Algumas concepes filosficas do trgico
a) Schelling
Para Schelling (apud SZONDI, 2004, p.29), o fundamento da contradio presente na
situao em que um mortal, destinado pela fatalidade a ser um criminoso, lutando contra a
fatalidade e, no entanto terrivelmente castigado pelo crime que foi obra do destino, encontra-se
em um nvel mais profundo. Encontra-se no conflito da liberdade humana com o poder do mundo
objetivo, em que o mortal tinha necessariamente que sucumbir, e por no ter sucumbido sem luta,
precisa ser punido por sua prpria derrota. A tragdia grega honrava a liberdade humana ao fazer
3At hoje, os conceitos de tragicidade e de trgico continuam sendo fundamentalmente alemes. por isso que se encontram nesta primeira parte deste estudo a parte que trata das concepes do trgico apenas nomes de filsofos e poetas alemes.
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seu heri lutar contra o poder superior do destino: para no ultrapassar os limites da arte, tinha de
faz-lo sucumbir.
medida que o heri trgico, na interpretao de Schelling, no s sucumbe ao poder superior do elemento objetivo como tambm punido por sua derrota, ou simplesmente pelo fato de ter optado pela luta, volta-se contra ele prprio o valor positivo de sua atitude, a vontade de liberdade que constitui a essncia do eu. (SZONDI, 2004, p.31)
Assim, o sistema de Schelling, cuja essncia a identidade de liberdade e necessidade,
culmina em sua concepo do processo trgico como o restabelecimento dessa indiferena no
conflito. Com isso, o trgico compreendido como um fenmeno dialtico.
b) Hegel
Hegel (apud SZONDI, 2004, p.37) ao se opor ao formalismo dualista da filosofia de sua
poca, condena a contraposio rgida entre lei e individualidade, universal e particular da
filosofia de seu tempo. Ele se ope a essa filosofia com a idia absoluta da eticidade, algo que
contm, em completa identidade, o estado de natureza e a majestade e divindade de todo o estado
de direito alheio ao indivduo. Com isso, ele pretende substituir o conceito abstrato de eticidade
por um conceito real, que apresente o universal e o particular em sua identidade, sendo a
contraposio entre eles causada pela abstrao do formalismo. A eticidade absoluta e real, como
Hegel entende, de modo imediato a eticidade do singular, e a essncia desta ltima, por sua vez,
a eticidade real, sendo, por isso, universal e absoluta.
No entanto, Hegel no volta a sua ateno apenas para a identidade, mas tambm para o
confronto permanente dos poderes compreendidos nela, para o movimento imanente sua
unidade, pelo qual a identidade se torna possvel com o real. Por isso, a contraposio entre lei
inorgnica e a individualidade viva, entre o universal e o particular, no descartada, ela
suprimida no interior do conceito de identidade como contraposio dinmica. Hegel compreende
esse processo como autodiviso, como sacrifcio. Esse processo, Hegel equipara ao processo
trgico como tal.
Interpretado por Hegel como autodiviso e autoconciliao da natureza tica, o processo
trgico manifesta, pela primeira vez e de modo imediato, sua estrutura dialtica. Para Szondi
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(2004, p.39), em Hegel tragicidade e dialtica coincidem. O processo trgico , num primeiro
momento, para ele, a dialtica da eticidade; que, ele, a princpio, procura mostrar como sendo o
esprito do cristianismo, e mais tarde postula como fundamento de uma nova doutrina tica.
Assim, a dialtica muda, torna-se lei do mundo e mtodo do conhecimento. E elevada a um
princpio universal, ela no tolera nenhum reino que lhe permanea inacessvel.
verdade que o destino do heri trgico visto em seu contexto metafsico, que se baseia
no surgimento do divino na realidade efetiva, submetida ao princpio da particularizao.
Contudo, essencialmente, mais tarde, o trgico se altera no que diz respeito idia do divino.
Em oposio primeira concepo, a segunda parece no ser imediatamente proveniente
de um sistema filosfico, e assim, de acordo com o seu posicionamento em uma esttica, pretende
abarcar toda a variedade das possibilidades trgicas. O fator do acaso que se insinuou em sua
concepo provm do trgico dos modernos, cujos heris encontram-se em meio a um leque de
relaes e condies ocasionais, nas quais possvel agir de um modo ou de outro. Como observa
Szondi, a conduta deles determinada por seu carter prprio, que no incorpora,
necessariamente, como o caso dos antigos, um pathos tico (2004, p.43).
Com essa interpretao da tragdia grega tem incio a histria da teoria do trgico, que
volta sua ateno no mais para o efeito da tragdia, e sim para o prprio fenmeno trgico.
medida que o heri trgico no s sucumbe ao poder superior como tambm punido por sua
derrota, ou seja, pelo fato de ter optado pela luta, volta-se contra ele prprio o valor positivo de
sua atitude. O processo, ento, poder ser chamado, segundo Hegel, de dialtico.
c) Schopenhauer
Para Schopenhauer, o antagonismo da vontade consigo mesma que entra em cena (na
tragdia), desdobrado da maneira mais completa, com todo o pavor desse conflito, no mais alto
grau de sua objetidade (apud SZONDI, 2004, p.52). Esse antagonismo torna-se evidente no
sofrimento da humanidade, que produzido, em parte, pelo acaso e pelo erro, que aparecem
como dominadores do mundo, personificados como o destino em sua perfdia, quase com a
aparncia de uma vontade deliberada. Por outro lado, esse antagonismo tambm produzido pela
prpria humanidade, pelo entrecruzamento dos esforos voluntrios dos indivduos, por meio da
maldade e da tolice da maioria.
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Schopenhauer entende o processo trgico como auto-supresso daquilo que constitui o
mundo. Sua concepo do trgico tem como base unicamente o conceito de vontade4. Para ele, o
universo, a partir do inorgnico, consiste em gradaes da objetivao da vontade em uma
seqncia de estgios que vai do vegetal at o homem. Considerada em si, a vontade destituda
de conhecimento, consistindo apenas num impulso cego. Mas, no processo dessa ascenso das
suas formas de objetivao, a vontade adquire o conhecimento de seu querer, por meio do mundo
da representao, desenvolvido a servio dela. Assim, o processo de objetivao culmina no
homem e na arte (SZONDI, 2004, p.51-54).
Nos conflitos que constituem a ao da tragdia, Schopenhauer enxerga a luta da vontade
contra si mesma. A concluso que essa dialtica trgica da vontade no se encontra no espao
temtico da tragdia, mas surge apenas por meio de seu efeito sobre os espectadores e leitores: no
conhecimento que comunica (SZONDI, 2004, p.51-54).
No entanto, segundo Schopenhauer, mesmo o conhecimento provm originalmente da
prpria vontade, pertence essncia de seu grau mais alto de objetivao e um meio para a
conservao do indivduo e do seu modo de ser. A servio da vontade, determinado a cumprir os
seus objetivos, esse conhecimento em geral permanece quase totalmente servil a ela: assim no
caso de todos os animais e no de quase todos os homens (SZONDI, 2004, p.51-54).
Mas o conhecimento pode escapar dessa servido em casos isolados, e assim, livre de
todos os objetivos da vontade, estabelecer a arte como espelho claro do mundo. Portanto, tem
lugar na tragdia a possibilidade que est contida em toda arte: o conhecimento, que est
enraizado na prpria vontade e deveria servi-la, volta-se contra ela mesma. A apresentao da
autodestruio da vontade fornece ao espectador o conhecimento de que a vida, como objeto e
objetidade dessa vontade, no digna de afeio, levando-o, assim, resignao.
Com isso, na resignao, a prpria vontade, cuja manifestao o homem, suprimida em
uma dialtica dupla. Pois no s a vontade se volta contra si mesma no conhecimento que ela
prpria acendeu como uma luz, mas tambm traz tona esse conhecimento por meio da ao
trgica, cujo nico heri a vontade, que aniquila a si mesma. Tudo o que trgico, no importa
a forma como aparea, recebe o seu caracterstico impulso para o sublime com o despontar do
4A vontade a coisa em si, a fonte de todo fenmeno.
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conhecimento de que o mundo e a vida no podem oferecer nenhum prazer verdadeiro, portanto
no so dignos de nossa afeio. Nisso consiste o esprito trgico: ele nos leva resignao.
d) Nietzsche
Nietzsche vai reencontrar o impulso cego do conceito de vontade, que em Schopenhauer
havia se transformado em resignao, no mundo dionisaco da embriaguez, e o conceito de
representao no mundo apolneo do sonho e da imagem5. O nascimento da tragdia tem como
pathos a rejeio da doutrina da resignao de Schopenhauer, mas o seu texto marcado at nos
ltimos detalhes pelo sistema desse filsofo. Os conceitos de Schopenhauer de vontade e
representao podem ser vistos como antepassados dos dois princpios artsticos nietzscheanos, o
dionisaco e o apolneo (SZONDI, 2004, p.67).
A exegese que Nietzsche faz do trgico parece ser proveniente de sua interpretao da
tragdia tica, entendida como a conciliao dos dois princpios artsticos (o apolneo e o
dionisaco) que, nos perodos anteriores da arte grega, encontravam-se permanentemente em
conflito, como o coro dionisaco que sempre desemboca em um mundo apolneo da imagem.
Nietzsche acredita que, at Eurpides, Dionsio nunca deixou de ser o heri trgico, e que todas as
figuras famosas do palco grego, Prometeu, dipo, e outros, so apenas mscaras daquele heri
original, dionsiaco. Esse seu destino, de ser esfacelado, comprendido por Nietzsche como
smbolo da individuao, de modo que possvel ver no heri trgico o deus que experimenta em
si o sofrimento da individuao (SZONDI, 2004, p.67-69).
5 O apolneo para Nietzsche o princpio da individuao, um processo de criao do indivduo, que se realiza como uma expresso da medida e da conscincia de si. E se Nietzsche d a esse processo o nome de apolneo porque, para ele, Apolo, deus da beleza, a expresso, a imagem divina do princpio de individuao. J o dionisaco pensado por Nietzsche a partir do culto das bacantes: cortejos orgisticos de mulheres que, em transe coletivo, danando, cantando e tocando tamborins em honra de Dionsio, noite, nas montanhas, invadiram a Grcia vindas da sia. Em vez de um processo de individuao, trata-se de uma experincia de reconciliao das pessoas com as pessoas e com a natureza, uma harmonia universal, um sentimento mstico de unidade. A experincia dionisaca a possibilidade de escapar da diviso, da individualidade, e se fundir ao uno, ao ser; a possibilidade de integrao da parte na totalidade (MACHADO, 2005, p.7).
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e) Scheler
Scheler (apud SZONDI, 2004, p.73) quer superar a diferena que a filosofia crtica
estabeleceu entre o mundo a priori do formal e o mundo da matria. Para fundamentar uma tica
do formal e o mundo do material, ele esboa como sua base uma fenomenologia das qualidades
de valor. O ponto mais importante dessa fenomenologia, na viso de Szondi (2004, p.73-74) a
aceitao de valores positivos e negativos, assim como de valores superiores e inferiores. A
existncia do trgico deve se localizar, portanto, na essncia dos valores.
Diferenciando os valores positivos e negativos, superiores e inferiores, Scheler demonstra
assim, que o trgico se mostra como conflito entre valores positivos e negativos e, no caso ideal,
entre valores de grau igualmente elevado. Ele tambm estabelece uma gradao dos fenmenos
trgicos, cuja concluso se d por meio de uma hierarquia de identidades dos valores em conflito.
Essa concluso ocorre quando uma mesma fora permite a uma coisa a realizao de um valor
altamente positivo (apud SONDI, 2004, p.73-75), e exatamente por meio desse processo torna-se
a causa do aniquilamento dessa mesma coisa como portadora de valor (Szondi, 2004, p.74-75)
entende que, ao estabelecer um mundo autnomo dos valores e da diferenciao fenomenolgica
desses valores, Scheler chega a uma estrutura dialtica do trgico como a que aparece em
Schelling e Hegel.
O fato de a concepo do trgico de Scheler se enraizar na tica do valor no prejudica, a
sua validade, uma vez que todo o trgico move-se na esfera de valores e relaes de valores
(SZONDI, 2004, p.73). Por outro lado, essa tica dos valores no alcana nenhum conhecimento
novo acerca do trgico, expressando apenas algo j implcito em todas as definies anteriores.
Esses comentrios, que se referem a textos extrados dos escritos filosficos e estticos de
alguns dos principais filsofos, no tm a pretenso de aprofundar criticamente os sistemas dos
quais as concepes do trgico foram retirados. Eles se contentam apenas em identificar a
concepo de trgico em cada estrutura de pensamento. A utilizao de tais comentrios visa a
tornar evidentes as diversas concepes do trgico com referncia a um fator estrutural, que
comum a todas elas: sua natureza dialtica.
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1.5 Natureza dialtica do trgico
No que esses filsofos so unnimes, de Schelling a Scheller, dentre outros, quanto
natureza dialtica do trgico. Esta ubiqidade do fator dialtico no afetada nem por fronteiras
histricas nem metodolgicas. Ou seja, esse fator dialtico que expe o denominador comum
das diversas definies idealistas e ps-idealistas do trgico e, com isso, constitui uma possvel
base para o seu conceito geral.
Mas, segundo Szondi, o significado do fator dialtico para o conceito de trgico resulta,
tambm, do fato de que o trgico j perceptvel mesmo quando no h meno a ele, mas
apenas tragdia como obra de arte: na Potica de Aristteles e nas obras de seus discpulos
(2004, p.82). Ele observa que, em busca do tipo da ao mais apropriado para despertar medo e
compaixo, Aristteles chega exigncia de que a peripcia ocorre em conseqncia de grave
transgresso de uma pessoa de qualidade mediana, ou antes melhor do que pior 6.
Szondi refere-se a outro captulo da Potica de Aristteles para destacar especialmente a
dialtica de dio e amor, mais uma vez com base em uma reflexo sobre o efeito trgico. Segundo
ele, o grau de criticidade dos acontecimentos pode elevar, sendo considerados terrveis e tocantes
no mais alto grau quando ocorrem em relaes de afeto, quando por exemplo um irmo mata um
irmo ou a me mata o filho...7 Ou seja, a estrutura dialtica do trgico no se restringe ao ponto
de vista filosfico, ela conhecida tambm do ponto de vista da dramaturgia, embora quase
sempre com uma particularizao conceitual, de modo que no se considera a dialtica como
trgica. Apesar disso, ela deve se valer como critrio para as definies do trgico.
Segundo Szondi (2004, p.82), apesar da ubiqidade do fator dialtico devemos considerar
que a esttica do idealismo alemo e do perodo posterior se recusou rigorosamente a deslocar o
elemento dialtico para o centro da considerao do trgico. Um dos motivos para isso, mas no o
nico, que a preocupao primordial dos pensadores mais significativos, como Schelling, Hegel,
Schopenhauer, dentre outros, no era definir o trgico, mas eles se depararam, no mbito de suas
filosofias, com um fenmeno a que denominaram o trgico, embora fosse um trgico: a concreo
do trgico no pensamento de cada um deles.
6ARISTTELES. Potica, cap. 13, Apud Szondi, p. 82.
7Idem. cap. 14.
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21
Contudo, como nem toda dialtica trgica, o trgico teria que ser reconhecido como uma
determinada forma da dialtica em um determinado espao, sobretudo por meio da diferenciao
em relao a seus conceitos opostos, que so igualmente estruturados de modo dialtico. No
possvel reduzir o conceito lgico dialtico a um fenmeno como o trgico, ao qual se deve o
mais alto estgio da poesia, e que muitas vezes foi concebido como sendo intimamente ligado ao
significado da existncia.
A partir da chega-se apenas a uma concluso: no existe o trgico, pelo menos no como
essncia. Ele um modo determinado de aniquilamento iminente ou consumado, justamente o
modo dialtico. trgico apenas o declnio que ocorre da unidade dos opostos, a partir da
transformao de algo em seu oposto, a partir da autodiviso.
Segundo Szondi (2004, p.77), a prpria histria da filosofia do trgico no est livre de
tragicidade. Quando uma filosofia, como a do trgico, torna-se mais do que o reconhecimento da
dialtica a que seus conceitos fundamentais se associam, ela deixa de ser filosofia. E a, ento,
parece que a filosofia no capaz de apreender o trgico. Ou ento que no existe o trgico.
Com efeito, o denominador comum das diversas definies do trgico, idealistas e ps-
idealistas, que constitui uma possvel base para o seu conceito geral, o fator dialtico, uma
estrutura que perpassa todas as definies do trgico, como seu nico trao constante. Importa-
nos aqui apenas a semelhana essencial entre as definies.
Aps termos feito este breve resumo do quadro da opinio geral sobre a possibilidade de
uma conceituao geral do trgico, introduzir-se- uma breve exposio histrica em que esto
presentes as origens de uma mentalidade poltica e cvica do povo ateniense, bem como o vnculo
da manifestao trgica com as festas. E, por fim, ser intoduzida a relao do trgico com a
poltica.
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II. O TRGICO E A POLTICA
2.1 Pensamento grego
Foram os gregos que tiveram a primeira conscincia do que seria o verdadeiro trgico.
Eles criaram a arte trgica numa poca em que se comea a esboar a primeira concepo de
Estado. A participao efetiva na poltica da cidade por parte do povo tambm se d pela primeira
vez. No obstante possa ser dito que a poltica esteve presente a partir do momento em que as
primeiras e mais primitivas associaes se formaram, foi entre os gregos que pela primeira vez na
histria do mundo ocidental, uma sociedade chegou ao ponto em que os mais largos segmentos do
corpo cvico obtiveram o direito, primeiro de intervir de maneira regular e importante na poltica,
e enfim de nela tomar parte decisiva (MEIER, 2004, p. 8).
A grande crise da poca arcaica que se caracteriza notadamente pelo endividamento e pela
escravizao de muitos povos, por revoltas, guerras civis e usurpaes de poder chega a Atenas j
bastante tarde. No incio do sculo VI a.C., Slon, figura que marcou o pensamento poltico grego
como um grande homem de Estado, tentou restaurar a ordem na cidade; mas os resultados obtidos
por ele foram limitados. Perto de 560 a.C., Pisstrato, encontrando na cidade muitos descontentes,
neles se apia e instaura uma tirania com a ajuda de mercenrios. Segundo Herdoto (1985, p.
I:64), Peisstratos conquistou Atenas pela terceira vez; chegando l, ele tratou de dar razes
tirania, com a ajuda de numerosos mercenrios e a imposio de tributos.
Contudo, pouco depois de 510 a. C., os tiranos caem, e Atenas se recupera, graas, tudo
indica, s reformas instauradas por Clstenes. Este homem compreendeu que as grandes ambies
que o levariam a encontrar um papel relevante, de primeiro plano teriam mais chances de se
realizar se ele atrasse grandes contingentes populares para seu lado. Com isto em mente, ele
aumentou os direitos polticos do povo.
Poltico perspicaz, ele percebeu que, para mobilizar as massas contra as grandes famlias,
era preciso benefici-las com vantagens econmicas e maior assistncia jurdica. A ordem
fundada por Clstenes garantia a cada cidado igualdade perante a lei. Pela primeira vez na
histria, o governo passara, apesar de srias limitaes, a considerar o povo, que tinha o direito
de, diretamente, na Assemblia, intervir nos destinos da plis.
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A nova organizao da cidade dava, pela primeira vez, um papel importante ao todo do
corpo cvico ateniense, excepcionalmente numeroso, e esse corpo se tornou poderoso no s no
mbito da poltica grega, como tambm da internacional, pois pouco depois das reformas de
Clstenes, os atenienses marcharam contra os calcdios em Eubea e contra os Becios; eles
desafiaram seus inimigos e se apoderaram de uma parte do territrio de Clcis para a instalar
seus prprios cidados. Para Herdoto, estes eventos do uma amostra do quanto um regime em
que os direitos polticos tendem a ser repartidos propicia mais potncia a uma cidade:
Assim cresceu o poder dos atenienses. No se evidencia num caso isolado, e sim na maioria dos casos, que a igualdade instituio excelente; governados por tiranos, os atenienses no eram superiores na guerra a qualquer dos povos seus vizinhos, mas libertos dos tiranos eles assumiram de longe o primeiro lugar. Isso prova que, na servido, eles se conduziam como covardes, ( ...) livres, porm, cada um agia com todas as suas foras para cumprir a misso em seu prprio benefcio.
(HERODOTO, Cap. V:78, p.280)
Herdoto d aqui o seu testemunho de uma poca em que o imperialismo grego comea a
se fundamentar. Antes dos anos 500 a.C., Atenas tornou-se a cidade mais poderosa da Grcia,
com Esparta. Segundo Maquiavel:
(...); a experincia nos mostra que as cidades crescem em poder e em riqueza enquanto so livres. maravilhoso, por exemplo, como cresceu a grandeza de Atenas durante os cem anos que se sucederam ditadura de Pisstrato.
(MACHIAVELLI, 1979, p.203)
Quando a cidade tomou conscincia de sua potncia, ela parece igualmente ter
privilegiado uma poltica mais ativa e de maior envergadura. Em todo caso, a assemblia do povo
se deixa convencer a sustentar a revolta que as cidades gregas da Jnia desencadearam contra a
dominao persa. Foi assim que Atenas entrou na poltica internacional. O interesse da histria
mundial foi aqui decidido. Aqui se confrontaram o despotismo oriental e os Estados divididos e
reduzidos em termos de extenso e meios, mas que eram animados por uma livre individualidade.
Desde ento, tudo acontece muito rpido. A reao esmagada em 494 a.C., sendo a armada
persa vencida em Maratona.
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Cerca de 483 a. C., aps um perodo de calmaria, os persas se lanam em preparativos
para uma segunda ofensiva, cujo objetivo, desta vez, a conquista da Grcia inteira. Quase no
mesmo momento, os atenienses decidem construir uma frota de guerra, mais importante que todas
as que a Grcia j havia conhecido at ento. A cidade foi transformada; e tudo tinha que
acontecer rpido. Pelo menos a metade dos atenienses adultos devia consagrar todas as suas horas
e seus dias a aprender a remar.
Com a confederao martima, vastos territrios de colonizao grega puderam ser ligados
e seu lao federativo, antes frouxo, adquiriu formas cada vez mais slidas e, em muitos aspectos,
comeavam a delinear-se os contornos de um imprio tico.
O trgico tem, pois, relao direta com a poltica, na medida que o exerccio desta passa a
se dar historicamente numa sociedade que viver essa prtica no seu cotidiano. Tanto a poltica
quanto o trgico emergem como expresso de um povo, num momento e local especficos. Apesar
de no haver a participao livre de todos indistintamente - escravos e mulheres eram excludos
deste grande debate -, os cidados, pela primeira vez, passam a ter acesso efetivo s grandes
decises polticas da cidade, conforme apreende-se das palavras de Protgoras, segundo o qual em
Atenas:
Quando porm, vo deliberar sobre a virtude poltica, (...), muito natural que admitam todos os cidados, por ser de necessidade que todos participem dessa virtude, sem a qual nenhuma cidade poderia subsistir.
(PLATO, 1980, Vols III-IV, p 59)
Eurpides expendeu a mesma opinio em sua obra As suplicantes (II,438-41),(...):citando as palavras do arauto, na reunio da assemblia - Que homem tem um bom conselho a oferecer cidade (plis) e deseja torn-lo conhecido? - comentou Teseu: Isso liberdade. (...). Para a cidade, que poderia ser melhor?.
(FINLEY, 1998, p. 31)
Tais julgamentos, de Protgoras e de Eurpides s foram possveis devido a uma inovao
grega fundamental: a poltica. Os gregos adotaram uma deciso radical e dupla. Localizaram a
fonte da autoridade na prpria comunidade, e decidiram-se pela poltica de discusso aberta. Isso
, pois, poltica, e os dramas e a historiografia grega do sculo V revelam at que ponto a poltica
chegou a dominar a cultura grega.
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Tambm discutia-se poltica em sociedades vizinhas e mais antigas como Egito, Assria e
Prsia. Entretanto, tais discusses no constituam poltica propriamente, como se dava em
Atenas. Essas discusses no eram nem obrigatrias nem abertas. O rei recebia conselhos, mas
no era obrigado a dar-lhes ateno, nem mesmo solicit-los. Assim, havia os que planejavam,
tramavam e conspiravam, a fim de imporem decises.
Houve ainda algumas comunidades polticas primitivas no-gregas, pelo menos entre os
fencios e os etruscos; todavia, segundo Finley (1998, p.32) na tradio Ocidental, a histria
poltica se inicia com os gregos, a comear pela prpria palavra poltica, cuja raiz se encontra
na palavra plis.
Em termos polticos, a comunidade exercia poder total, porm nos limites impostos pela
lei, o que significa que o corpo soberano era incondicionalmente livre quanto s decises que
tomava. Em certas reas do comportamento humano, ele normalmente no interferia, mas apenas
por no o desejar, ou por no pensar em faz-lo. O indivduo no possua direitos naturais de
interditar um ato do Estado.
De modo ideal, uma participao total no processo decisrio significava todo o direito a
influir nas decises, no s pelo pronunciamento, no corpo soberano, mas tambm pelo voto, quer
se tratasse de uma oligarquia ou de uma democracia. Na forma final da democracia ateniense e
possivelmente de outras democracias gregas, cada cidado tinha, em princpio, o direito de redigir
ou de emendar projetos, de pronunciar-se a favor ou contra os requerimentos apresentados por
outros.
Contudo, na prtica, as coisas eram diferentes. A assemblia ateniense normalmente se
reunia num anfiteatro natural, e surpreendente que, em semelhante ajuntamento de milhares de
homens, freqentemente com uma pauta que devia ser cumprida em um nico dia, o cidado
comum desejasse ou ousasse pedir a palavra e fosse ouvido. Para Finley (1998, p.37), a evidncia
epigrfica e literria no deixa dvida de que os pronunciamentos e a real formulao de polticas
e de proposies constituam um monoplio do que podemos chamar de pequena classe poltica.
Portanto, qualquer avaliao da poltica na plis requer cuidadoso equilbrio entre ideal e
realidade, entre ideologia e prtica. No constitui grande desvantagem que s se possa tentar faz-
lo no que concerne a Atenas, uma vez que essa cidade era a quinta essncia da plis poltica. O
que se segue, aplica-se, pois, especfica e unicamente a Atenas, embora o mesmo se possa
presumir a propsito das outras democracias, sob aspectos importantes, mas no sob todos.
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A restrio mais evidente para atingir-se esse ideal, com sua nfase na igualdade, advinha
da pondervel desigualdade entre os membros da populao de cidados. Basta limitar as
diferenas riqueza. Sem meios nem tempo para obter educao adequada, ou para manter os
padres das finanas, das relaes exteriores e de outros assuntos de interesse pblico,
dificilmente se poderia esperar que um cidado se pronunciasse e fosse ouvido por ocasio das
deliberaes. Ele poderia, mesmo, considerar excessivamente custoso e incmodo freqentar com
regularidade as reunies da Assemblia, em particular se se tratasse de um campons que vivesse
nas aldeias mais afastadas. Isso era to evidente que foram adotadas providncias, na tentativa de
diminuir a desigualdade entre os cidados, de modo artificial. Os cargos pblicos, em quase toda
totalidade, eram escolhidos ao acaso e exercidos em rodzio, de maneira a no s tornar acessveis
ao povo, mas tambm a assegurar a disseminao de experincia direta nos negcios estaduais do
dia-a-dia a uma proporo notavelmente grande do corpo de cidados. Introduziram, ainda, o
princpio de que quem prestasse servios nos corpos administrativo e judicial deveria ser
recompensado com um pequeno subsdio dirio.
Por outro lado, paradoxalmente, segundo nos conta Finley (1998, p.39), o comparecimento
s reunies da Assemblia constitua o ltimo dos deveres a serem pagos com um subsdio dirio,
no incio do sculo IV.
Portanto, a julgar pela existncia dessa diferena entre o que seria o ideal e o real quanto
participao real do cidado ateniense nas decises de Estado, deduz-se que a to propalada
igualdade pregada pelos gregos, ficava restrita apenas a alguns segmentos sociais. A igualdade e
a liberdade preconizadas pelos gregos poca se assemelha mesma democracia imperialista
norte-americana, cujo discurso de igualdade e liberdade esconde em seu interior um outro
discurso, este real, de dominao e submetimento dos demais povos.
2.2 Os gregos e o Estado
, ainda, neste momento histrico de surgimento da tragdia que aparecem os primeiros
princpios do Estado poltico. Segundo Cassirer (1946, p.69), na filosofia grega surgiu, pela
primeira vez, uma teoria racional do Estado. Ela elabora seu primeiro mtodo poltico com a
filosofia platnica. Mais tarde, a concepo de Estado ganha terreno, tornando-se predominante
em todas as teorias dos sofistas. A tese de que poder direito era a mais simples, a mais
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plausvel, a mais radical das frmulas. Agradava no somente aos sbios ou sofistas, mas tambm
aos homens prticos, aos dirigentes da poltica ateniense.
Assim, as novas idias polticas vo se desenvolvendo no sentido de uma concepo de
Estado. E a partir de ento, na trajetria histrica da civilizao ocidental, este fundamento estatal
vai se organizando e sua formulao passando por vrias transformaes a partir dos filsofos
gregos, at chegar ao que na atualidade. Em todas as concepes formuladas no curso da
histria ocidental, o elemento divino uma constante, como um dos recursos para fundamentar a
presena do Estado. S com Maquiavel, haver uma ruptura. A religio no sistema de Maquiavel
transforma-se numa simples ferramenta na mo dos dirigentes polticos. J no tem qualquer
relao com uma ordem transcendente das coisas e perdeu todos os seus valores espirituais.
2.3 Pensamento e mentalidade atenienses
passvel de identificao nas tragdias um pensamento antigo que se contrape s
mudanas de mentalidade do povo ateniense, ao lgos, que comea a se insinuar por meio da
filosofia racional. Aquele pensamento exalta o poder do mito religioso, talvez como forma
didtica de levar a cidade a recuperar seus valores morais. Diferente da burguesia moderna, os
gregos no utilizaram, antes de ceder poltica, os sculos para desenvolver caractersticas
particulares, modos de pensamento prprios, uma disciplina e uma moral prpria deles. O
domnio sobre o qual eles edificam sua ordem, em comparao com o mundo moderno, mais
limitado. Em todo lugar o mito est presente; no apenas na epopia, na tragdia, na poesia oral e
nos templos, mas igualmente nos contos que so contados na infncia e nas imagens pelas quais
eles tomam conhecimento do mundo. No mundo moderno, sem dvida, o mito ainda est
presente, todavia, h um discurso cientfico que j desmitificou parte de alguns mitos e outros se
debilitaram. No era o caso dos gregos.
Assim, com relao a essa ubiqidade do elemento mtico-religioso, no se pode deixar de
observar que, no obstante tenha assumido novas formas e nova colorao, ela ainda constitui um
elemento de atualidade. Afinal, ainda hoje, continuaria a persistir a crena de que a justia
estabelece, como no passado, um vnculo necessrio entre delito e castigo.
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Com relao antigidade, a nica fonte que pode nos ensinar alguma coisa nesse aspecto
a tragdia, na medida em que ela representa, de alguma maneira, o local de uma discusso
institucionalizada e bastante original de problemas fundamentais que se pem a um corpo de
cidados. Problemas que nascem de divises e de afrontamentos provocados por tal ou qual
situao. Muitos destes, suscitados ao nvel das representaes coletivas, do pensamento, da
crena tradicional. Em dipo-Rei, de Sfocles, clara a discusso que se move no interior do
poder entre os limites da racionalidade poltica e dos valores religiosos.
Disso conclui-se que as questes que surgiam nela no se limitavam poltica, que ela no
cessava de questionar os espritos, e que, por conseqncia, os tragedigrafos, confrontados s
transformaes profundas, trabalharam em pblico seu saber nomolgico8. Esse saber, nos
sculos VI e V a. C., pode-se supor, no era muito diferente de um indivduo para o outro. O
passado provavelmente lhes teria transmitido muitos traos comuns, e a identidade cvica que eles
desenvolveram em seguida no podia mais que acentuar esta tendncia. Alis, essa
homogeneidade funda uma indispensvel solidariedade entre as camadas mais populares como
uma necesssidade para fazerem face aos nobres.
2.4 Identidade cvica e poltica
Com a instaurao da isonomia interna, os cidados das plis gregas, sobretudo de Atenas,
sofreram uma transformao rpida e importante no plano antropolgico. Trata-se de uma
transformao real, sem a qual, segundo Meier (2004, p.21), a isonomia no teria sido possvel.
As isonomias gregas, cuja validade era restrita apenas aos nativos e do sexo masculino,
repousam sobre a participao regular e estendida de um nmero relativamente grande de
cidados nos negcios da cidade. O Conselho dos Quinhentos, desde Clstenes, encarregado de
representar em Atenas a vontade coletiva e de preparar os decretos da Assemblia do povo. Este
precisa participar das decises, no apenas pelo voto isolado, mas tambm para movimentar e ser
movimentado, h a necessidade de criar-se a atmosfera de que todo homem est envolto pelo
calor das discusses e das decises. necessrio, pois, que as reunies da Assemblia sejam
8Segundo Cristian Meier (2004: 47), Max Weber chama de saber nomolgico aquele conhecimento geral, genrico, normativo ao qual se costuma relacionar o pensamento, a ao e a vivncia humanos.
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freqentes e que a quantidade de cidados a participar seja numerosa, pois o Conselho dos
Quinhentos se encontra em posio de clara inferioridade em relao instituio aristocrtica do
Arepage, dependendo, por conseguinte, da sustentao de uma quantidade significativa de
pessoas do povo.
Uma presso considervel era exercida para conduzir o cidado a participar ativamente da
poltica da cidade. Entre os notveis, quem quer que renuncie poltica se expe a perder sua
reputao. Isto significa que uma parte relativamente grande do corpo cvico, membros de
camadas mdias, pessoas, em todo caso, que no podem se especializar suficientemente em
poltica para fazer dela uma profisso, esto, no entanto, prontas a se engajar. De modo que elas,
at certo ponto, so obrigadas a negligenciar seus prprios negcios, para consagrar tempo,
energia e ateno vida de cidado.
Nesse contexto, se forma um pensamento poltico independente, que no ligado a
nenhuma tendncia particular e no interior desse pensamento desenvolve-se uma nova concepo
da ordem da plis. Diante da arbitrariedade dos dominantes, quase impossvel de conter, diante da
agitao potencial dos dominados, a idia seguiu seu curso: necessrio dar aos membros das
camadas mdias meios institucionais de fazer frente aos excessos dos aristocratas de sangue.
Assim, as situaes intolerveis para os que agora se encontram no comando, as quais, no
passado, originaram revoltas tendem a acabar e a plis pode, at um certo ponto, alcanar um
ponto de equilbrio.
Trata-se, portanto, de transformar o descontentamento popular em reivindicaes polticas.
As chances de sucesso crescem com o retorno da prosperidade econmica. O fato de Clstenes e
outros antes dele estimarem que o melhor meio de conciliar os favores do povo lhe assegurar
uma participao maior no domnio da deciso poltica, mostra o quanto os germes da novidade
conseguiram fincar suas razes.
A isonomia torna-se a palavra de ordem; e a partir dela se liberta uma grande fora
mobilizadora e colonizadora dos povos por eles considerados brbaros. Visto que a vida cvica
toma importncia, em relao a ela, antes de tudo, que se determinam a categoria e o valor de
um homem, no seno na poltica que se pode galgar uma melhor posio social.
Mas essa chance existe para aqueles que dispem de bastante tempo. Todavia, eles s
podem melhorar sua condio quando includos no grupo, j que o nmero era importante para
fazer frente ao poder dos aristocratas. Individualmente, eles permanecem inferiores aos nobres em
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riqueza, cultura e experincia. Sem contar ainda que, quase por todos os lugares - em Atenas, por
exemplo - o conselho dos nobres subsiste, de modo que a Assemblia do povo no chega a
assentar sua influncia seno batalhando duramente contra aqueles. O principal instrumento de
seu sucesso , sem dvida, a apario dos conselhos de colegiados, cuja composio renovada
com regularidade. somente todos juntos, e somente assim, que os membros das categorias
mdias podem contrabalanar a influncia aristocrtica. Nisto, precisamente, reside a isonomia.
Neste mundo que se pretende isonmico, abre-se espao a um poder que ou decorre do
saber ou por ele qualificado. Num contexto poltico no qual se passa a valorizar acima de tudo o
talento oratrio e administrativo, a capacidade de compreender os reais problemas da cidade,
administrar um grande domnio poltico, formular alternativas pragmticas e exp-las com clareza
assemblia, torna-se elemento essencial.
Para fazer nascer esta solidariedade da isonomia, diversos fatores se encontram. A teoria
da responsabilidade dos cidados, a conscincia de que, talvez, eles fossem suficientemente
capazes ou at melhor que os nobres, associada convico de que no havia outra maneira de
combater a arbitrariedade deles; o fato de velar pelos interesses da cidade; o encorajamento ao
engajamento poltico, o fato, enfim, de que a poltica o meio de chegar esfera central, at ento
reservada apenas aos nobres, tudo isso so fatores que concorrem para incentivar a solidariedade
entre eles.
Para qualificar essa organizao, o melhor falar de uma identidade cvica
institucionalizada: entre as diversas dependncias do indivduo, aquela que o liga plis toma o
primeiro lugar. Fora a famlia, ela no encontrava quase nenhuma concorrncia. Da sua solidez.
Muito estimada, a atividade pblica inspira a altivez, e ela assim fortemente estimada, porque
o principal domnio em que se pode atrair a considerao dos outros. Assim, nos segmentos mais
amplos, a igualdade determina necessariamente a natureza mesma do cidado e a vontade comum
tende a uma mesma coisa: ser cidado.
A este respeito, assiste-se no somente a uma modificao na relao entre os diferentes
segmentos deste corpo social que se torna cvico, mas ao mesmo tempo a uma mudana ao nvel
antropolgico, ou seja, h a formao de uma identidade nova.
Assim se explica a implicao dos cidados na poltica. Eles se consideram como
elementos de uma cidade que formada por todos eles juntos, um todo como uma comunidade de
iguais. Ao lado das subdivises da cidade, das Assemblias do povo e do Conselho, as festas
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populares tambm cumpriam o seu papel: o gora era no s lugar de reunio, mas igualmente
lugar de teatro. Parece evidente que a poltica , ento, de domnio geral, superior, diante do qual
todo o resto perde importncia. O que os gregos chamavam poltica se traduz literalmente em
negcios de cidado.
Pode-se dizer que as novas instituies da constituio clisteniense, permitem no s
liberar como, sobretudo, concentrar um grande nmero de impulsos e de energias; a curto prazo,
elas produziram toda uma vida cvica intensa em direo do exterior. Em um lapso de tempo
bastante reduzido, o corpo dos cidados atenienses se encontra completamente transformado.
Aliada a estas mudanas, que trazem o cidado para o centro das decises polticas da
plis, a poltica fazia surgir de forma constante problemas impossveis de resolver politicamente,
mas que se tinha de ser resolvidos. Na Assemblia do povo, os argumentos foram sem dvida se
tornando mais e mais racionais. Aumentando, assim, o fosso entre a tradio e o presente, entre a
religio e a moral de uma parte e a poltica de outra: as tenses em nvel cada vez maior. E esses
grandes problemas deviam aparecer justamente na tragdia.
Para descarregar a tenso desses grandes problemas, no havia outras instncias, a no ser
a tragdia que podia discutir tais problemas em estruturas novas. Como gnero literrio original, a
tragdia instaura, no sistema das festas pblicas da cidade, um novo tipo de espetculo.
Nesta cultura festiva sobressaa o culto das dionisacas, como uma das mais importantes e
tambm considerada uma das mais interessantes, conforme ver-se- a seguir.
a) os espetculos pblicos da cidade
Os atenienses tinham alguns dias de interrupo da vida cotidiana em que podiam
abandonar a ordem social e poltica e transformar a vida em festa. Neste perodo, eles viviam um
cotidiano s avessas, subvertendo a ordem das coisas e da vida social, de modo que as leis, as
proibies e restries so revogadas durante esse perodo.
Estes espetculos ou festas so um elemento completamente essencial na vida dos gregos
nessa poca. E de fato dito que havia na Grcia antiga uma multido e uma diversidade infinita
de festas. Pricles avalia que a cidade as celebra num nmero particularmente elevado. E tudo
leva a crer que ele tem razo. As Nuvens, de Aristfanes, contemplando Atenas, foram tocadas
sobretudo pelos templos nas festas elevadas e as esttuas sagradas, e para as muito santas
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procisses beatificadas, os sacrifcios e as danas que, a cabea coroada, executadas para os
deuses em todas as estaes, e, quando chega a primavera, a graciosa festa de Dionsios, a
exaltao dos coros melodiosos e o sussurro das flautas. Do que se pode inferir que Atenas
observava mais festas que nenhuma outra cidade grega (MEIER, 2004, p.72).
Parece que Pisstrato multiplicou as festas comunitrias no conjunto da cidade e lhes deu
mais brilho. certamente a ele que remontam os concursos de tragdias. Foi sob a tirania de
Pisstrato que, pela primeira vez