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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
JORNALISTAS NEGRAS DO RIO DE JANEIRO:
INTERSECCIONALIDADES E TRAJETÓRIAS PESSOAIS
Andréia Coutinho da Silva Louback1
Resumo: Este trabalho, ainda em fase preliminar, pretende analisar trajetórias geracionais de
jornalistas negras do Rio de Janeiro, atuantes em diferentes mídias cariocas. Partindo da perspectiva
de que gênero e raça são eixos que estruturam as múltiplas desigualdades sociais existentes no Brasil,
a pesquisa propõe fazer um recorte sobre o significa ser mulher e ser negra dentro do universo do
jornalismo. Recorrendo à análise metodológica das narrativas orais, os relatos serão coletados por
intermédio de entrevistas em profundidade - com pautas que falam de escolhas, caminhos, desafios,
desenvolvimento da profissão, enfrentamento do racismo, relatos pessoais, entre outras possibilidades
de temáticas. Assim, um dos principais objetivos é encontrar pontos de convergência e divergência
entre as trajetórias analisadas, considerando as idades e atuações no mercado de trabalho, como
também as vivências cotidianas de racismo e exclusão em espaços de poder. Esta reflexão mais
profunda sobre essa dupla discriminação tem como aporte teórico os estudos de interseccionalidade,
gênero e raça. Mediante a entrevistas semiestruturadas, analisaremos como as contribuições de
discursos individuais podem refletir em uma percepção coletiva - a partir da posição de sujeito que
cada uma delas ocupa.
Palavras-chave: Jornalistas. Mulheres negras. Interseccionalidade. Raça. Trajetórias.
Introdução
Apresentar trajetórias é como desenhar as entrelinhas de um caminho. Não apenas um, na
verdade. É possível avistar uma infinidade de possibilidades em direção aos passos de cada ser
humano que protagoniza sua própria história – a partir de realidades, superações, enfrentamentos,
dedicações, lutas, desafios e tantos outros pilares que compõem o conjunto do que chamamos de
“vivência”. Fazemos inúmeros trajetos em diferentes fases da vida, que resultam na singularidade
de quem nos tornamos. Sonhos, valores, perspectivas, tudo. A bagagem é extensa – em um acúmulo
ininterrupto de saberes e memórias individuais e coletivas.
Em especial, quando a pauta é, especificamente, sobre trajetória de mulheres negras, não nos
faltam similaridades para compartilhar. Nas palavras de Jurema Werneck: elas são ‘uma e muitas’.
“Trata-se da mulher negra, sujeito singular construído a partir da validação política da raça, do sexo,
do gênero e mais: da construção de diferenças e hierarquia entre humanos” (WERNECK, 2012, p.
7). Logo, sob a ótica de enfrentamento do racismo e do sexismo, temos derrubado os estereótipos
1 Aluna do Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-Raciais (PPRER), sob orientação do professor doutor Roberto
Carlos da Silva Borges. Andréia, 26 anos, é formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela PUC-
Rio e seu atual projeto de pesquisa é pautado em trajetórias de mulheres negras e jornalistas atuantes em mídias do Rio
de Janeiro.
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e invisibilizações de uma sociedade profundamente desigual, que nos descreve como “seres
inferiores, hipersexualizadas, trabalhadoras braçais desqualificadas e ignorantes, com reduzidas
qualidades humanas e incapazes de transpor o profundo fosso das carências” (WERNECK, 2012,
p. 8).
Para toda trajetória, há uma expectativa em questão. Ela varia de acordo com as subjetividades
existentes, pois, ao longo do curso e etapa da vida, cada indivíduo faz escolhas estratégicas. Sejam
de sucessos ou insucessos, construções e desconstruções, as experiências são dotadas de histórias
que fazem parte do processo identitário, o qual transita entre práticas, discursos e posições. Para
Hall, “as identidades estão sujeitas a uma historização radical, estando constantemente em processo
de mudança e transformação” (HALL, 2015, p.108). Ela é, em sua essência, um processo articulado
entre os aspectos pessoais, históricos e sociais.
Assim, este artigo – que faz parte de um projeto maior – embarca na investigação das trajetórias
que duas mulheres negras jornalistas têm cruzado no Rio de Janeiro. Para isso, levamos em
consideração o dado geracional, as diferentes atuações em setores profissionais no estado do Rio, a
autodeclaração da identidade racial negra e as experiências de racismo vivenciadas ao longo da
formação pessoal. A seleção foi feita de acordo com o posicionamento de cada uma no que tange às
questões raciais, assim também como a dedicação à profissão escolhida. As narrativas e experiências
individuais são pontes para compreender a problemática racial apresentada.
Trabalharemos, então, conceitos teóricos de raça, racismo, interseccionalidade, gênero e
branquidade no campo da comunicação social, no mercado de trabalho e no estudo específico das
mulheres negras. Destacamos a interseccionalidade como instrumento analítico para se
compreender os elementos em questão. Nosso objetivo é mapear os cruzamentos (e interligações)
das vulnerabilidades desse grupo.
Raça e racismo: causa e consequência X consequência e causa?
Refletir sobre exclusão, racismo e discriminação – de mulheres negras e homens negros – nos
remetem a inúmeras discussões cada vez mais relevantes e necessárias às agendas e aos contextos
sociais pelos quais transitamos. Isso não apenas tem nos impulsionado à produção teórica de conteúdo
nos campos de pesquisa, como também tem nos levado a práxis de iniciativas de inclusão e
desconstruções epistemológicas. Para falar de raça é preciso compreendê-la como uma categoria de
análise socialmente, historicamente e discursivamente construída. Tratamos, pois, de um sentido
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sociológico – no qual a cor de pele negra é associada a uma ancestralidade marginalizada. Conforme
afirma Du Bois (1911), a cor tem a operacionalidade de um “distintivo da herança social da
escravidão, da disseminação e do insulto dessa experiência”.
Stuart Hall ainda postula a raça como um significante flutuante, que seria um fator que dá
significado às questões. O autor explica que ela é “um dos principais conceitos que organiza os
grandes sistemas classificatórios das diferenças operam em sociedades humanas” (HALL, 1995, p.1).
O termo consegue dar dimensão da discriminação que afeta a população negra desde a escravização.
Ainda assim, como tratamos de um tipo de linguagem, o sentido não é fixo e está sujeito, sim, a um
“deslizamento” de significação e “flutua em um mar de diferenças relacionais”. Quando a definimos
como categoria discursiva, reconhecemos que “todas as tentativas de fundamentar esse conceito na
ciência, localizando as diferenças entre as raças no terreno da ciência biológica ou genética, se
tornaram insustentáveis” (HALL, 1995, p.1).
Logo, raça se reflete em uma representação social, atingindo negros e negras, em termos
individuais (culturais, institucionais, ambientais, etc). Ela estipula como as pessoas são vistas – “ser
branco” ou “ser negro”, por exemplo, está carregado de uma simbologia de privilégios e de exclusão,
respectivamente. Trata-se de uma dimensão social e política, pois “o abismo racial entre os negros e
brancos existe de fato” (GOMES, 2005, p.47). Diante disso, como bem sintetiza Munanga (2004), é
“um fenômeno social e analítico”, fundamental para a compreensão das relações sociais postas em
nosso cotidiano.
Já no que tange à relação entre a definição de raça com a aparência física, Hall “tenta justificar as
diferenças sociais e culturais que legitimam a exclusão racial em termos de distinções genéticas e
biológicas, isto é, na natureza” (HALL, 2006, p. 66). Embora a atribuição não seja exclusivamente
uma questão de marcador da cor da pele, o significante conota uma diferença por extensão discursiva.
Esse “efeito de naturalização” parece transformar a diferença racial em um “fato”
fixo e científico, que não responde à mudança ou à engenharia social reformista.
Essa referência discursiva à natureza é algo que o racismo contra o negro compartilha
com o antissemitismo e com o sexismo (em que também “a biologia é o destino”),
porém, menos com a questão de classe. O problema é que o nível genético não é
imediatamente visível. Daí que, nesse tipo de discurso, as diferenças genéticas
(supostamente escondidas na estrutura dos genes) são “materializadas” e podem ser
“lidas” nos significantes corporais visíveis e facilmente reconhecíveis, tais como a
cor da pele, as características físicas do cabelo, as feições do rosto (por exemplo, o
nariz aquilino do judeu), o tipo físico e etc., o que permite o seu funcionamento
enquanto mecanismos de fechamento discursivo em situações cotidianas (HALL,
2006, p. 66 e 67).
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Logo, quando fazemos referência a um ponto de vista social e de acesso, é uma raça excluída.
Hall (2006), que por um viés teórico e didático propõe que:
Conceitualmente, a categoria “raça” não é científica. As diferenças atribuíveis à
“raça” numa mesma população são tão grandes quanto àquelas encontradas entre
populações racialmente definidas. “Raça” é uma construção política e social. É uma
categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder,
socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o racismo (HALL, 2006, p. 66).
Presente de forma latente na história da humanidade, o racismo é estrutural e estruturante.
Geralmente, analisamos o passado histórico, mas o racismo é um fator que se atualiza. Em cada época,
ele se manifesta de uma forma e os “sujeitos-vítimas” são outros, frutos de novas construções de
classificação. Carlos Moore (2007) define-o como um enraizamento em diversas esferas da
sociedade:
A dinâmica própria do racismo se desenvolve dentro do universo de atitudes, valores,
temores e, inclusive, ódios – mesmo quando inconfessos –, infiltrando-se em cada
poro do corpo social, político, econômico e cultural. Ambos os fenômenos surgiram
historicamente de uma só vez, a partir de situações e condições sui generis e
irreproduzíveis, mas que se replicaram ao longo dos tempos. (MOORE, 2007, p.
281).
Ele está inserido em um processo social e econômico maior, como instrumento hierarquizante
de poder de exclusão na sociedade e manifestado por atos discriminatórios. Segundo Patricia Hills
Collins, “a experiência das mulheres negras funciona como um indicador social peculiar para analisar
pontos de intereseção entre múltiplas epistemologias” (COLLINS, 2000, p. 271). Quando se parte da
perspectiva da mulher negra como objeto de estudo, as experiências de cada uma escondem diferentes
estratégias que as ensinaram a lidar com o racismo, buscando novo sentido, identidade e
pertencimento por intermédio da militância no sentido de uma mudança sociorracial e de gênero na
realidade brasileira. Outra marca forte são os eixos de subordinação de gênero, raça, classe social,
geração e idade que, por sua vez, trazem à tona as diferentes facetas da discriminação racial e
exploração de classe.
Jurema Werneck pontua o quanto o contexto de agenda das mulheres negras é encoberto pela
invisibilidade, resultando em quadros de violência, recusa e abandono. “Capturada nesse cenário, a
mulher negra ganha sentido nos papéis de “inferior” e “passiva, a partir daí, o Brasil republicano se
organiza e se afirma como terra inóspita (para dizer o mínimo) para nós” (WERNECK, 2012, p.8).
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Interseccionalidade e gênero
No final da década de 80, a ativista norte-americana na área dos direitos civis Kimberlé Crenshaw
“resgatou” o conceito disponibilizado como fonte de análise da III Conferência Mundial contra o
Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas (Durban, 2001): a interseccionalidade. Crenshaw o
descreve como um instrumento analítico para a identificação de como a discriminação racial e a
discriminação de gênero operam juntas, limitando as chances de sucesso entre as mulheres negras.
Em uma entrevista sobre a temática, a autora contextualiza e justifica a continuidade do uso do termo:
Em cada geração, em cada esfera intelectual e até mesmo em cada momento político,
existiram mulheres afro-americanas que se articularam a partir da necessidade de
pensar e falar sobre raça através de uma lente que observe a questão de gênero, ou
pensar e falar sobre feminismo através de uma lente que observe a questão de raça
(CRENSHAW, 2014, p.1).
Conforme reforça Ina Kerner (2012), as discussões e embates sobre a interseccionalidade
alcançaram um espaço pertinente na pesquisa sobre gênero. Tendo-o como uma categoria de análise
relacional, é possível identificar as relações sociais em suas tantas dimensões – “respeitando os
múltiplos modos de ser masculino e feminino fora do determinismo de uma divisão biológica e única
entre os sexos” (BASTHI, 2011, p. 33).
Para compreender a operação da interseccionalidade, é preciso refletir na “coexistência de
diferentes fatores (vulnerabilidades, violências, discriminações), também chamados eixos de
subordinação, que acontecem de modo simultâneo na vida das pessoas” (WERNECK, 2007, p.3).
Ela aponta que, dessa forma, o conceito facilita a compreensão a respeito da “complexidade da
situação de indivíduos e grupos”.
Em consonância, a discussão sobre gênero também é de extrema importância para este
trabalho. É inevitável não retomar à celebre frase de Simone Bevoir (1970) quando afirmou que “Não
se nasce mulher, torna-se mulher”. O que foi um grande impulso e transformação na prática e na
agenda dos estudos feministas, cujo movimento revolucionou a trajetória de resistências e lutas das
mulheres.
Com o desenvolvimento e aperfeiçoamento dos estudos de gênero, a mulher enquanto categoria
de análise passou por diversos questionamentos quanto à definição de uma única, intacta e indivisível
identidade biológica. A difusão das perspectivas pós-estruturalistas direcionadas pela noção
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foucaultiana apresentou, então, a ideia de que a sexualidade é uma construção sócio-histórica forjada
por discursos e instituições (FOUCAULT, 2005).
Em retorno à teorização da questão de gênero, pontuamos que nos cabe aqui limitarmo-nos
ao eixo das desigualdades de raça e gênero entre as mulheres negras, especificamente as jornalistas
negras protagonistas do trabalho. Enquanto categoria de análise, a intenção é analisar as questões de
opressão e do sexismo. Como Sueli Carneiro (2003) coloca:
Em conformidade com outros movimentos sociais progressistas da sociedade
brasileira, o feminismo esteve, também, por longo tempo, prisioneiro da visão
eurocêntrica e universalizante das mulheres. A consequência disso foi a incapacidade
de reconhecer as diferenças e desigualdades presentes no universo feminino, a
despeito da identidade biológica. Dessa forma, as vozes silenciadas e os corpos
estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas de opressão além do sexismo
continuaram no silêncio e na invisibilidade (CARNEIRO, 2003, p. 118).
Não obstante, o papel da mulher negra nas relações de trabalho enfrenta a dupla barreira do
sexismo e racismo no movimento de inserção e ascensão. A mídia, em especial, como instrumento
formador de opinião, padroniza, molda e constrói o inconsciente de uma sociedade. Assim, forma-se
um espaço privilegiado, influenciando comportamentos, pensamentos e um imaginário representativo
branco. Vamos abordar no próximo tópico a respeito da atuação da atividade jornalística,
problematizando com o conceito de branquidade, que “se caracteriza por exprimir posição de
privilégio estrutural, determinada por uma combinação de fatores históricos e de mecanismos ligados
ao presente” (COROSSACZ, 2014, p. 204).
O imagético da mídia: os privilégios da branquidade
Os privilégios estão mapeados e distribuídos desde a padronização estética da mídia à
ocupação dos espaços de representação e poder. Pouco se reflete nas significações da branquitude
em nossa cultura e naturalização de ideais representativos em diferentes meios. Maria Aparecida
Bento fez uma menção desta realidade como “cotas de 100%”, fruto do silêncio, disparidades e
omissão:
As cotas de 100% nos lugares de poder em nossa sociedade não são explicitadas.
Foram construídas silenciosamente, ao longo de séculos de opressão contra negros e
indígenas, e foram naturalizadas. Muitos brancos convivem com naturalidade com
essa cota de 100%. Alguns mais progressistas reconhecem que ela traz consigo o
peso da exclusão do negro, mas essa dimensão é silenciada. Isto porque reconhecer
a desigualdade é até possível, mas reconhecer que a desigualdade é fruto da
discriminação racial, tem custos uma vez que este reconhecimento tem levado à
elaboração de legislação e compromissos internos e extremos do Brasil, no sentido
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do desenvolvimento de ações concretas com vista a alteração do status quo (BENTO,
2005, p. 1).
Diante desse cenário crítico, a estética branca se tornou um padrão de referência e tal lógica
se reproduz no universo do jornalismo quando, por exemplo, observamos os setores televisivos
de emissoras. Além de um baixo número de negras e negros ocupando as bancadas de noticiários,
os que podemos identificar raramente se encontram em locais de destaque. Em um artigo
intitulado A força de um desejo – a persistência de um padrão estético audiovisual, o autor Joel
Zito denuncia a problemática da branquidade exemplificando o contexto de atores e atrizes de
elenco e reforça que:
Em qualquer parte da América Latina sempre prevaleceu a ideologia de branquitude
como formadora do padrão ideal de beleza e, ao mesmo tempo, como legitimadora
da ideia de superioridade do segmento branco. A escolha dos galãs, dos protagonistas
de modelos ideais de beleza europeia, em que quanto mais nórdicos os traços físicos
mais destacados ficarão o ator ou a atriz na escolha do elenco” (ZITO, 2006, p.76 e
77).
A branquidade, então, ocupa um lugar de modelo universal nas relações raciais e de benefício
simbólico. Ela se consolida por intermédio do silêncio – que não se trata apenas do que não é
verbalizado, mas tudo o que é apagado e que fomenta a opressão. Em Branqueamento e
Branquitude no Brasil, Bento analisa os desdobramentos e dimensões subjetivas do privilégio de
ser branca/branco no país. Em sua crítica, a autora coloca que “este silêncio e cegueira permitem
não prestar contas, não compensar, não indenizar os negros: no final das contas, são interesses
econômicos em jogo” (BENTO, 2002, p. 3). A falta de reflexão, consequentemente, resulta na
perpetuação e manutenção das desigualdades raciais. Segundo ela, há um “componente narcísico”
de autopreservação imagética “porque vem acompanhado de um pesado investimento na
colocação desse grupo como grupo de referência da condição humana” (BENTO, 2002, p.5 e 6).
Logo, a branquidade é estruturada na dominação, ou seja, um segmento de vantagens
estruturais, demarcando lugares, posições beneficiadas, referenciais. Estamos falando de uma
categoria relacional (Frankberg, 2004).
Análises de fragmentos de entrevistas
Em vista de todos os conceitos apresentados e relacionados, escolhemos trechos breves de duas
narrativas2 de entrevistadas com diferentes perfis – tanto no que concerne à geração quanto no nicho
2 Sabrina: de material empírico de análise, temos aproximadamente 90 minutos de gravação.
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profissional. Sabrina3 tem 41 anos e ocupa um lugar de destaque em uma TV pública há 12 anos. Ela
é formada pela Pontifícia Universidade Católica e atua como âncora de uma TV pública. Já Amélia,
tem 53 anos, formada pela Universidade Federal Fluminense e atua como professora universitária da
rede privada atualmente, dividindo-se entre freelas de produções editoriais.
Primeiro, vamos destacar um trecho da narrativa da Sabrina, quando questionada em relação
ao seu crescimento e destaque profissional na televisão pública. Aparentemente, a entrevista teve
dificuldades de formular a resposta – entre pausas e pensamentos. O que podemos interpretar uma
possível dificuldade de compreensão do que, de fato, significa se “destacar” como jornalista, negra
e mulher.
Você preço você pagou para se destacar? Qual foi ou qual é, na verdade? (Andréia)
É, esse destacou é relativo, por quê? É, eu costumo pensar muito sobre isso e ultimamente tenho
pensado cada vez mais. Primeiro que eu me destaquei numa TV com pouca audiência e não era o
que exatamente eu gostaria.
Uhum.
Então, assim. O espaço que eu abri, tudo bem que era um espaço que nem ali estava aberto, mas o
espaço que eu abri era um espaço de uma TV pública que estava querendo que esse espaço fosse
aberto, só ainda não tinha tido, entendeu? Não sei se foi uma questão de oportunidade, mas enfim. O
que eu faço aqui, que acho que a TV pública, qualquer outra pessoa que chegasse aqui pra fazer o
que eu faço, ela já estava pronta pra receber. Eu acho que é mais ou menos, o raciocínio por aí. Por
quê? Porque o jornalismo público tem essa, essa veia. A gente pegou uma fase, é que a TV estava
querendo ser a BBC do Brasil, entendeu, assim no formato. Então, eu vim dessa fase. Ele queria que
esse espaço fosse aberto com essa cara do Brasil. Então foi muito mais fácil, eu só precisei fazer.
Claro que eu não tinha consciência de nada disso quando eu fui fazendo. Consciência zero desse
processo. Hoje olhando pra trás, eu percebo isso. Agora o que eu gostaria. Eu gostaria que as TVs
abertas no Brasil abrissem esse espaço. E elas não abrem, não estão nem perto.
Sabrina encara seu lugar de destaque com uma oportunidade “do momento/casual”, cuja
emissora já desejava estrear “com a cara do Brasil”. Como jornalista negra, ela justifica seu destaque
e sua estreia na TV por duas razões: I) por ser uma TV de baixa audiência; II) porque a TV já
desejava abrir esse espaço para uma representação da diversidade brasileira na condução de um
Amélia: de material empírico de análise, temos aproximadamente 150 minutos de gravação.
3 Todos os dados foram livremente consentidos e por uma questão de ética de privacidade, usaremos
pseudônimos para apresentar a narrativa.
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telejornal diário. Reconhecendo-se como exceção, a profissional expressa seu desejo de ver as TVs
abertas com altos índices de audiência com a mesma iniciativa, a qual foi contemplada. Lembrando
que ela exerce a função de âncora diariamente em horário comercial.
Ao longo da entrevista, Sabrina confessa que sua consciência de identidade racial negra se
construiu após sua graduação e ingresso ao mercado de trabalho. Sendo assim, ela não possui tantas
memórias precisas de experiências pessoais de vivenciar e sentir o racismo na pele. Nilma Nilo
Gomes o descreve como um fenômeno capaz de abalar processos identitários no decorrer da
formação como indivíduo:
O racismo imprime marcas negativas em todas as pessoas, de qualquer
pertencimento étnico-racial, e é muito mais duro com aqueles que são vítimas
diretas. Abala os processos identitários. Por isso a reação antirracista precisa ser
incisiva. Para se contrapor ao racismo faz-se necessária a construção de estratégias,
práticas, movimentos e políticas antirracistas concretas” (GOMES, 2005, p. 52).
No caso da Amélia, não há espaço para cogitar que se destacou por acaso, pois do início ao
fim da entrevista, ela se mostrou extremamente confiante e, como ela mesmo se autodescreveu,
“intelectualmente agressiva”. A consciência racial se deu durante a graduação, na qual teve contato
próximo com grandes homens intelectuais negros que, na condição de professores universitários,
lhe ensinaram o valor da negritude.
Eu queria saber como você se autodeclara? (Andréia)
Em que termos? Profissionais, de raça?
De raça.
Ah, eu sou negra! Eu sou negra, sou uma mulher negra.
E essa consciência racial sempre foi clara?
Não. Eu tive o privilégio de ter um percurso acadêmico que me colocou em contato com três grandes
intelectuais negros. Eu fui aluna do Muniz Sodré, na UFF. Fui aluna do Júlio César Tavares, na UFF. E
fui muito amiga do professor Joel Rufino dos Santos. Porque eu nasci num meio de classe média baixa,
morava próximo de uma comunidade.
Essa associação aos seus grandes mestres, responsáveis pelo desenvolvimento de sua luta e
militância na mídia é ressaltada várias vezes no diálogo. Ao adentrarmos na pauta sobre ser mulher
negra, houve uma interrupção, na qual Amélia novamente citou os intelectuais negros em sua fala.
Você como mulher negra, nos seus primeiros anos, depois de formada ou logo após se formar,
quais desafios – apesar da sua paixão, facilidade de escrita, afinidade com a profissão – quais
desafios como mulher negra diante de um mundo de privilégios, você...
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Privilégios racialmente pré-distribuídos, porque estavam na mão de algumas pessoas. Eu tive a sorte de
ser, eu digo sempre, eu sou filha da esquerda brasileira. Por quê? Porque eu tive como um dos meus
grandes, é, mentores intelectuais, digamos assim, o professor Joel Rufino dos Santos. E o professor Joel
Rufino dos Santos era um quadro político intelectual importante diante do PDT, que tinha por sua vez,
um núcleo intelectual muito forte – que era o Instituto Pascoaline. E, Neiva Moreira (Deus o tenha, que
já faleceu) era o presidente nacional do PDT e o Brizola era o presidente de honra, alguma coisa
parecida. E ele tinha uma editora, Editora Terceiro Mundo, que foi meu primeiro lugar, o segundo lugar,
né, como repórter. Eu tive muitas oportunidades ali. Primeiro eu passei por uma ONG, que agora está
fechado, era o Instituto de Pesquisa de Culturas Negras, levado pelo Julinho, Júlio Cesar Tavares. Nós
fizemos um único número de jornal. Com a indústria editorial eu faço mil restrições, mas foi uma coisa
interessante. Depois, eu me lembro que veio com uma entrevista muito bonita com o Muniz Sodré, que
sempre foi pra mim um grande, um grande... Eu sou discípula do Muniz Sodré e todo mundo sabe disso.
Que me deu bolsa de estudo, enfim, que me ensinou, que, a gente uma dinastia, que elogiava os meus
textos...
Embora não tenha usado em nenhum momento o conceito de branquidade em sua fala, Amélia
faz uma alusão ao que ele significa ao organizar sua fala e, assim, descrever seu processo de
crescimento profissional. O racismo não aparece como impedimento à ascensão e oportunidades da
trajetória desta jornalista – não que seja um fator inexistente, mas, segundo os relatos da narrativa,
ele não foi um percalço significativo e traumatizante.
Considerações finais
O título deste artigo nos remete a muitas perguntas e algumas respostas. Quando falamos de
interseccionalidades e trajetórias, conjugamos as múltiplas opressões em vivências: racismo,
sexismo, invisibilidade, preterimento, exclusão, silêncio, etc. São fenômenos que parecem
redundantes na descrição, mas que se reinventam a todo instante. As jornalistas negras do Rio de
Janeiro como objeto de estudo nos impulsionam à categoria de análise de gênero, da situação da
mulher negra (saúde, profissional, relações hetero e homoafetivas, entre outras).
Considerando a exclusão como uma marca que todos os indivíduos negros carregam – seja na
realidade do Brasil ou do mundo afora –, a interseccionalidade aparece como instrumento importante
de avaliação de vulnerabilidades no que tange à raça e ao gênero. Instrumento que traz lente às nossas
interpretações e análises de contextos sociais.
Embora o quadro de protagonismo negro no exercício da atividade jornalística apresente um
leve salto na inclusão de profissionais ativos, o teor minoritário de representação ainda permanece. O
que não é diferente de outras profissões de representatividade e de atuação em espaços privilegiados.
A branquidade reina (e o silêncio, em parte, também). Não estamos perto ainda de uma mídia plural
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e livre de estereótipos no que tange à diversidade brasileira. Diante disso, nosso objetivo é dar
visibilidade, por intermédio de uma perspectiva de gênero e raça a mulheres que não estão em lugares
de subalternidade, mas ainda assim, não estão igualmente presentes nas redações, nas assessorias, nas
revistas, jornais, nas bancadas televisivas. Por fim, esperamos que essa breve análise contribua para
a reflexão e possível alteração dessa realidade por intermédio de ações de inclusão e de igualdade.
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BLACK JOURNALISTS IN RIO DE JANEIRO : INTERSECTIONALITY AND PERSONAL
TRAJECTORIES
Abstract: This project, which is still in a preliminary phase, intends to analyze generational
trajectories of black journalists, who work in different media in Rio de Janeiro. From the perspective
of gender and race as structuring axes of social inequality that exist in Brazil, the study explores what
it means to be a woman and to be black in the universe of journalism. Oral narratives will ground the
methodological analysis and will be collected through in-depth interviews - where subjects will talk
about their choices, paths, challenges, professional development, confronting racism, personal stories,
among other topics related to the theme. One of the main objectives is to find convergence and
divergence points among the trajectories being analyzed, considering age and activity in the job
market, as well daily experiences of racism and exclusion in spaces of power. This deeper reflection
about double discrimination is supported by intersectionality theory, gender and race. With semi-
structured interviews we will analyze how individual’s speech can reflect a collective perception -
considering the positionality of each person.
Keywords: Journalists. Black women. Intersectionality. Race. Trajectories.