jornal plural n.9 | 2015

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JORNAL CULTURAL NÚMERO 9 | MARÇO A MAIO DE 2015 | BH | MG ISSN 2319-0000 plural Fotos divulgação Artimanha Nota-se que ao inserir a Arte, seja pelo Teatro, seja pela Literatura, seja pelo Cinema dentro do estudo do Direito, o aluno descobre um novo sabor, o ensino torna-se mais prazeroso, é o saber com sabor. A professora Flávia Oliveira da Universidade Federal de Uberlândia, que encampa junto com os seus alunos o coletivo Artimanha mostra a importância da arte no Direito. “O Teatro consegue dar capacidade interpretativa para ser um bom juiz, para ser um bom promotor você tem de ter capacidade interpretativa.” Páginas 4 e 5 A professora Flávia Oliveira da Universidade Federal de Uberlândia em momento de atuação Cena da peça “As Três Viúvas” exibida em abril desse ano O saber com muito sabor

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Publicação da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

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JORNAL CULTURAL

NÚMERO 9 | MARÇO A MAIO DE 2015 | BH | MG IssN 2319-0000plural

Fotos divulgação Artim

anha

Nota-se que ao inserir a

Arte, seja pelo Teatro, seja pela Literatura, seja

pelo Cinema dentro do estudo

do Direito, o aluno descobre

um novo sabor, o ensino torna-se mais prazeroso,

é o saber com sabor.

A professora Flávia Oliveira

da Universidade Federal de

Uberlândia, que encampa junto

com os seus alunos o coletivo

Artimanha mostra a

importância da arte no Direito.

“O Teatro consegue dar

capacidade interpretativa

para ser um bom juiz, para ser um

bom promotor você tem de

ter capacidade interpretativa.”

Páginas 4 e 5

NÚMERO 9 | MARÇO A MAIO DE 2015 | BH | MG IssN 2319-0000

A professora Flávia Oliveira da

Universidade Federal de Uberlândia em

momento de atuação

Cena da peça “As Três Viúvas” exibida em abrildesse ano

O saber com muito

sabor“

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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 9 | MARÇO A MAIO DE 20152

MEDIUM TERMINUM

ExPEDIENTE

JORNAL CULTURAL PLURALProjeto de Extensão Direito e Cultura da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva

Editor: Bernardo G.B. Nogueira

APOIO TÉCNICO: Núcleo de Publicações Acadêmicas Newton Paiva:

Projeto Gráfico, Editora de Arte e Diagramação: Helô Costa - Registro Profissional: 127/MG

CONTATOs, sUGEsTõEs E ANÚNCIOs: [email protected]

Os textos são de inteira responsabilidade dos seus autores.

EDITORIAL

Amor a gente não fala

Não irei falar neste editorial que a arte é neces-sária ao direito. Tampouco que a questão interdisci-plinar ressoa hoje como uma alternativa ao aprisio-namento ideológico dantes privilegiado. Menos ainda direi que o tempo de hoje, líquido, precisa ser repen-sado - água acima do peito afoga. Não poderia me demorar a dizer que a mediação hoje nem pode ser mais considerada uma saída - posto que é ela a porta mesma. Como gastar este papel, rabiscá-lo, apenas a dizer que os olhares coloridos encantam o humano, que pode ser quatro, dois ou apenas um amor. Difi-cilmente conseguiria encontrar interesse na leitura de um texto que repetisse: “o inferno são os outros”. Imagina só que o humano não é natureza e, portanto, talvez passemos do líquido para um estado sólido – o amor não pode ser gasoso. E como iria insistir em dizer que a poesia é o próprio professor. Que profes-sa vida mesmo em silêncio. Mas o que não gostaria mesmo era apenas dizer que os alunos da Universi-dade Federal de Uberlândia que compõem o Grupo Artimanha, inspirados pela sua Professora Flávia Oliveira, trouxeram para nossa Escola uma vida que realmente não poderia caber em um mero editorial. As atuações dos alunos, tornadas ciência com sua fala, fizeram com que toda a palavra restasse desnecessá-ria, a cada grito por justiça encenado na peça, a cada laivo de esperança restado no discurso, foi por si só, o que nos furtou a palavra. Daí um editorial que não quer falar. O Grupo Artimanha criou tempo novo em nossa Escola de Direito. Tempo do silêncio. Tempo da mistura. Da inter-disciplina. Da arte, do humano novo que caiu do palco, tropeçou na sala e agora es-cuta o mundo com novos olhares. Renascidos e recém chegados ao mundo, inaugurados por vocês, Artima-nhas, choramos em letras para agradecer esse gesto inaugural de criar justiça em jeito de amor...enquanto escrevo deixo minhas lágrimas primeiras a acariciar o rosto de todos, pois que depois de Ismene Mendes será assim, justiça ou luta, sem amor, nunca!!!

Por Bernardo G.B. NogueiraPor Karla Batista Machado e Ludmila Stigert

Durante anos, fomos condicionados a recorrer a alguém para termos nossos con-flitos resolvidos. Na infância quando brigá-vamos com nosso irmão, chamávamos os nossos pais, na escola a professora, e quando adultos batemos às portas do judiciário que através da figura do juiz decide quem está certo e quem está errado. Por vezes, as de-cisões que são tomadas não se tornam efeti-vas, pois como são impostas por um tercei-ro, acabam trazendo um descontentamento generalizado para todos que estão evolvidos no conflito. Por consequência, as partes não aderem ao que foi decidido.

Com o objetivo de estimular a auto com-posição e de trazer efetividade e celeridade para o jurisdicionado, o novo Código de Processo Civil formalizou em nosso ordena-mento jurídico os chamados meios adequa-dos de solução de conflitos que estimulam a autonomia das partes, fazendo com que elas sejam os atores principais da sua demanda. Dentre os procedimentos, destaca-se a me-diação que proporciona uma oportunidade de tratar o conflito por um viés mais cons-trutivo e democrático.

Fundamentando-se pelo princípio da pessoalidade, da confidencialidade, da im-parcialidade e da voluntariedade, essa mo-derna percepção do conflito volta-se para pessoas que precisam tratar sobre direitos disponíveis e manter uma convivência que seja no mínimo civilizada, como por exem-plo familiares, pais, vizinhos. Através de um terceiro facilitador do diálogo, o mediador, esse método estimula as partes a trabalhem de maneira cooperativa para que todos

saiam ganhando. O mediador não oferece sugestões, mas por outro lado, auxilia às par-tes a criarem suas próprias opções e a refletir sobre elas.

A mediação trata o problema no seu âmago subjetivo e entrega aos envolvidos o merecido empoderamento para tratar e de-cidir sobre as questões e seus interesses, e é este empoderamento que capacita as partes a revolverem, sozinhas, outros conflitos fu-turos. Com o envolvimento e empenho das partes no procedimento o resultado final acaba por receber uma grande adesão e um efetivo cumprimento.

Ao contrário do que se pensa, a media-ção não visa à um acordo, mas sim à pacifi-cação social. Para isso, o conflito é tratado de maneira individual, personalizada e huma-nizada e às pessoas é dada a oportunidade de crescimento, de renovação das relações e de auto-reflexão sobre seus atos. As partes con-seguem perceber e refletir que o que importa muitas vezes é ter o direito atendido, porém sem ferir o direito alheio, cooperar para ga-nhar. Diante disso, o acordo é fruto do em-penho e da contribuição das partes.

A mediação é um procedimento moder-no que proporciona benefícios muito além da efetividade, da economia, da satisfação e do descongestionamento do judiciário. O maior benefício que uma mediação bem-su-cedida traz é uma pessoa com o sentimento de dignidade enraizado que consegue resol-ver seus conflitos por si próprio através do diálogo cooperativo. E, além disso, tal pro-cedimento, também transforma os media-dores que a cada sessão realizada, enxergam o direito, a alteridade e o respeito como sig-nos linguísticos dotados não apenas de teor sintático mas também pragmático.

Mediação

Estava em pé, no centro da noite, o professorCentrado com suas dúvidas de ausência Afinal, são tantas as questões da vida...

À margem, só, respondia e mais se perguntava, nada clareava: garantia sua dor.

Até que o aluno chegouCom dúvidas que não eram suas...Eram do autor.Foram-lhe incorporadas pela leitura.Melhor não houvesse lido: eterno dissabor.

Enfrentamento? Antes, calaram-se.Investigaram-se sem palavras.Nem mais resposta, nem mais pergunta: nada.Era tarde da noite e era a pouco do diaAfinal, a sociedade exige-os, igualmente, em pé, sem mais palavra: foram, perplexos, pelo mesmo caminho.Foram para casa.

(Marco Túlio Figueiredo)

Cedo

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Por Emerson Luiz de Castro

Para o estudante do curso de Direito e até, muitas vezes, para os professores de cur-sos jurídicos, pensar interdisciplinarmente é um grande desafio. E podemos acreditar que muitos não conseguem visualizar a permanen-te interligação e entrelaçamento dos temas ju-rídicos, seus desdobramentos e inclusive suas permanentes mutações.

Podemos pensar que o Direito como refle-xo da sociedade humana não pode dissociar-se nunca da realidade e da natureza próprias do ho-mem e da sociedade a que ele se insere.

Como o nascimento está para a vida, tam-bém estará para o Direito, bem como a morte e todos os reflexos de uma existência humana e social.

Não se pode pensar em vida e morte e tudo o que existe entre esses dois pontos se não pensar-mos complexamente sobre a existência humana e todas as repercussões no campo do Direito.

Interdisciplinar pois é o Direito assim como é a própria vida! Abster-se a dar um locus inter-displinar a cada tema jurídico estudado é abster--se a ter uma visão ampliada de si mesmo, da so-ciedade e do mundo em que estamos inseridos. E mais do que isso é surpreender por meio das inúmeras interligações advindas das relações ju-rídicas seus reflexos no indivíduo e na sociedade, no sucesso e fracasso social, nos desafios e reali-dades a serem enfrentadas.

Por isso não podemos, nos conformar em colocar em caixas, disciplinas, períodos ou áre-as temas que por sua dimensão de formação e de reflexão carecem de uma robustez interdisci-plinar que justifica e amplia a atuação do estu-dante de direito.

Tratar de forma interdisciplinar os temas afeitos à ciência do Direito é obrigação de todos nós educadores, onde a interdisciplinaridade dará a ressonância necessária ao entendimento e compreensão do Direito ampliando seu mais precioso objetivo que é a paz e o bem social.

Bem como a tecnologia nos tempos atuais, a regra é a interconectividade entre temas e áreas jurídicas por possuírem uma base comum: a so-ciedade e o homem.

Sejamos então mais juridicamente interco-nectados, esse é o nosso grande desafio!

ENCONTROs E ENCONTROs vIDA DE áRvORE

vida e Direito: uma questão

interdisciplinar

A ClaraboiaPara Emily ou Ana RuteSofia ou Ana Paula Quando quatro, são apenas duas.Duas formas infinitas de presente e futuroA elas: meu imenso amor!

Por Tânia Cristina Dias Mendanha

Da pequena janela, redonda, localiza-da bem no alto da casa, próxima ao forro do telhado, via-se todo o andar superior. Os cômodos sem paredes, se comunican-do. A vida entrelaçando no ambiente. En-quanto a mulher magra e ligeira transpor-tava tecidos até a máquina e da máquina para a mesa de passar. A menina com o cabelo dividido por fitas em duas grossas mechas, ora brincava aqui, ora ali com sua boneca de pano. Em sua cabeça apenas o vento. Leve. Sem nenhum tipo de pensa-mento mal, ou apreensão frente ao futuro iminente. Porque a vida era magnifica-mente simples e boa.

Era a casa toda, um grande vão aluga-do, com móveis dispostos em conjuntos de cômodos. Paredes apenas imaginárias. De tal forma, que poderia dividi-la em duas grandes alas, a da esquerda e da di-reita. Nesta última, no seu extremo, via-se a sala de costuras, com os tecidos organi-zadamente dispostos nas prateleiras. Em-baixo a mesa e o ferro, a poucos passos, a máquina de costurar. Lateralmente ficava a sala, onde, sua mãe e irmão, descansa-vam à noite. Próximo à claraboia era a co-zinha. Uma mesa pequena, quatro luga-res, o fogão, um armário alto que parecia varar o telhado e um refrigerador velho, mas de grande utilidade. No outro lado do grande cômodo, estavam os três quar-tos. De sua mãe, irmão e o dela no meio dos dois. E, por último, talvez o cômodo mais atraente da casa, uma pequena bi-blioteca. Composta por livros doados por clientes e comprados com dinheiro eco-nomizado, moeda a moeda.

Esse era quase todo o mundo da me-nina cabeça de vento. Exceto, a praça que ficava a poucas quadras do pequeno pré-dio onde morava, a escola, as ruas estreitas, a padaria e o trabalho do irmão, que nunca conhecera, mas que achava sem utilidade. Sair para trabalhar não fazia nenhum sen-tido. Tamanho o volume de tarefas que sua

mãe tinha em casa. Porque não ajudá-la? Mas o irmão insistia que o dinheiro pre-cisava vir de outra fonte. E menina conti-nuava a não entender a origem do dinhei-ro e de um tanto de outras coisas.

Às vezes, a avó vinha visita-los e era instalada no sofá da biblioteca. A avó pare-cia com a mãe. Só que mais leve e mais en-rugada. Como um tecido jogado para o ar e que ao cair na mesa se amontoa formando vários sulcos e formas. E o mesmo tecido rosado conserva se o mesmo. Porém, um é liso e o outro enrugado sobre o número de anos que carrega a mesa. Quando a avó chega, ela traz consigo a Gertrudes. Sua gata com olhos de cores diferentes. O que causa uma impressão extrema no coração da menina. Um dia lhe disseram que a gata era assim porque seus olhos tinham fun-ções diferentes. Um via o passado e o ou-tro o futuro. A menina achava tudo aquilo um desperdício do olhar. Para ela bastava o gato dar conta de olhar sua casa, dentro daquele dia, brincar e lhe fazer companhia.

Acompanhava o movimento felino do bicho. Ao saltar da mesa, para a máquina, ao chão e deste para a cadeira, da cadeira ao sofá, ou para a cama. Trazia lhe migalha de pão ou qualquer bola de lã ou tecido e se deleitavam durante a tarde. Enquanto a avó ajudava alinhavar um ou outro vesti-do. Depois fazia o café e bolinhos de chu-va. Todos sentavam à mesa, comiam, con-versavam e ouviam histórias de quando a avó era criança e tinha outro gato. Parente remoto deste que está agora aqui lutando com restos de pano.

E a avó discorria sobre todo tipo de olho que seus vários gatos tiveram e suas infinitas e bizarras utilidades. Mas para a menina a vida se bastava naquele cômo-do, que até podia ser visto, todo ele, pela claraboia. Isso é, se fosse possível se po-sicionar àquela altura, do lado de fora do velho prédio. Para contemplar uma vida harmônica em família. De uma menina que não tinha olhos azul e verde como os da gata. Mas castanhos, da mesma cor dos olhos da avó e da mãe. E o único poder que tinham era o de enxergar o presen-te, da forma mais real e simples que todo o tempo que se vive deveria ter. Tudo se basta, nada se antecipa ou retorna. Cheiro de tecido recém passado à ferro quente. E a vida que, apenas por agora, é.

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ENTREvIsTA

A arte no DireitoFlávia Oliveira, professora multidisciplinar da

Universidade Federal de Uberlândia é a entrevistada dessa edição. Ela fala sobre

a magia da arte no saber do Direito.

Bernardo: Muito bem, estamos aqui hoje com a professora Flávia Oliveira, professora mul-tidisciplinar da Universidade Federal de Uber-lândia, que encampa junto com os seus alunos o coletivo Artimanha e que estiveram aqui hoje, na nossa quarta semana Jurídico Cultural, apre-sentando a peça Ismênia que tem uma conotação trágico grega, também, obviamente, fundada em um processo real, mas o que eu gostaria de saber da professora, primeiramente, já agradecendo, o que ela pensa metodologicamente da relação e da inserção da arte no Direito.

Flávia: Boa noite, primeiro agradecer você, Bernardo, agradecer à Newton Paiva, esse con-vite, essa oportunidade belíssima na verdade. Na verdade, para gente é uma construção co-letiva, cada apresentação é uma construção coletiva. Indo no que você me pergunta, o pri-meiro: muitas experiências e experimentações a gente conhece entre Direito e Arte, não só no Brasil, primeiro diria não só em Minas, mas não só no Brasil. A Europa conhece um festi-val de teatro e Direito, e eles já realizam isso com muita qualidade. O que a gente nota é que ao se inserir a Arte, seja pelo Teatro, seja pela Literatura, seja pelo Cinema dentro do estudo do Direito, a gente consegue vários objetivos, um deles é aquele ensino mais prazeroso, o en-sino fica mais saboroso, é o saber com sabor. Então o estudante, aquele que faz Direito, ele adquire um gosto novo pelo estudo, então isso dá gosto, dá sabor, ele começa a ver um novo sabor e isso, já é em si, muito importante. Só isso já seria importante. Você tem um outro efeito fantástico, que é a descoberta daquele que vêm para esse trabalho, da necessidade de uma formação mais ampla. A gente vai fazer um trabalho desses, a gente precisa, os alu-nos precisam, eles têm de estudar História. O aluno vai conhecer Ismênia. Ismênia fala de um período do Golpe Civil Militar, você tem de conhecer o período do Golpe Civil Militar e toda legislação da época para poder fazer a compreensão correta. Mas para fazer isso, eles têm que ter uma base literária, então eles visita-ram Saramago, visitaram João Cabral de Melo Neto. Nossa, mas isso ainda não foi suficiente, porque a gente precisa de mais argumentos, de mais elementos, então eu preciso estudar técnicas teatrais, técnicas de oratória. Então, para esses alunos que participam de um pro-

jeto desses, a formação é de uma amplitude, quer dizer, a evolução é mágica. A realidade é essa, ela é mágica. Ele se transforma. Hoje, os meninos que participaram, por exemplo, da construção de Ismênia, do coletivo Arti-manha, eles conseguem, ao conversar com eles, te dar referencias históricas, referencias jurídicas, referencias literárias do período, en-tão a formação ficou muito melhor e é gostoso fazer isso. Olha, você conseguir dar formação ampla, interdisciplinar, transdisciplinar, plural, com prazer. Então, isso é muito bom. Não bas-tasse isso tudo, tem um outro impacto, alguns outros impactos, na verdade, que é o impacto de se comunicar, de como se comunicam, o Teatro consegue trazer para o aluno do Direito um processo comunicacional fantástico, inclu-sive como ferramenta, e uma capacidade de dialogo social, que eu acho belíssima e talvez para mim, pessoalmente, seja o maior impacto e seja, dentre esses aspectos metodológicos, o mais relevante. É dar ao estudante do Direito um instrumental de comunicação social do Direito em si, do próprio Direito.

Bernardo: Muito bem, realmente é uma pergunta que se desdobra em várias possibi-lidades de resposta. Mas, ainda dentro dessa nossa prosa, que é uma prosa que se propõe a fazer uma leitura técnico-objetiva dessas nossas transcendências literário-jurídicas e teatrais e jurídicas. Quando nós olhamos os instrumentos de avaliação dos Cursos do Ministério da Educa-ção, essas obrigações de um curso estar pareado com uma boa aprovação no Exame de Ordem. Enfim, todas essas determinações que nos soam, por algum momento, talvez até um pouco con-trárias a esses movimentos de uma abertura epistemológica um pouco maior. Eu gostaria que você, como professora e como participante, como que você enxerga esse problema, que eu le-vanto aqui, mas ao mesmo, se esse trabalho não é uma solução para o fim desse ensino técniciza-do e distante da realidade, que por vezes nós en-contramos tanto nas Instituições e por vezes nos próprios instrumentos que levam as Instituições à esse tipo de problema.

Flávia: Muito interessante a sua pergunta, Bernardo, porque já estou na Federal há mais de quinze anos e nós tivemos outra experi-mentação com outro grupo de alunos há mais de dez anos e ás vezes a pergunta vem: mas isso não desvia os alunos, mas esses meninos vão fa-zer outra coisa. Daquele grupo de alunos, uma hoje é Procuradora da Fazenda Nacional, um é Defensor Público, outra é Doutora. Então, veja

que não desviou ninguém do caminho e os me-ninos hoje, do grupo, são os melhores alunos, são alunos que os professores tem como refe-rencia na sala de aula, os colegas tem como re-ferencia da sala de aula. Então, primeiro vamos desconstruir essa ideia de intervir, de colocar a Arte no Direito, vai de alguma forma atrapa-lhar o próprio conhecimento formal, ela ajuda o conhecimento formal, porque ele primeiro fez com que esses alunos precisassem se dedi-car, pois eles tem dois compromissos: mostrar que há uma interface, então eles assumem isso, que existe uma interface entre Direito e Arte e por isso eles adquirem; segundo, eles tem que conhecer, porque se não eles vão transformar em Arte o que? Eles precisam do Direito para transformar em Arte. Então, primeiro isso. Se-gundo, essa capacidade de nova comunicação dá para eles uma facilitação na própria assi-milação do conhecimento formal e tira deles qualquer traço de medo, traço de “ah, eu não consigo alguma coisa”, esses desafios se tornam mais fáceis. Então, falando de OAB, de ECC, quem subiu em um palco fechado, então eles tiram deles essas limitações e isso facilita mui-to para qualquer pessoa e evidentemente, para um aluno do Direito, os desafios que o próprio Direito dá, sem o fato de que, um aluno que fez teatro, subiu em um palco e apresentou, ele vai fazer uma audiência brilhantemente, até como técnica de oratória, mesmo quando a gente fala de um conhecimento formal. Então veja, é interessante pensar sobre isso porque e a gente reflete muito sobre isso, como ah sim, a gente trabalha Direito e Arte como um viés novo, como uma nova forma de construção de conhecimento e de diálogo com a socieda-de, mas não é só isso não. No plano formal, no plano, digamos, de aquisição desse saber jurídico, de competências formais, seja para a prova da OAB, seja para concurso, ele é efi-cientíssimo e isso é comprovado não só pela qualidade desses meninos, mas pelos outros que nós também conhecemos. Hoje o Tribu-nal do Rio de Janeiro, os Desembargadores trabalham com peças, eles fazem peças, pois eles entenderam que o Teatro consegue dar capacidade interpretativa para ser um bom juiz, para ser um bom promotor você tem de ter capacidade interpretativa. Então eles trabalham isso lá, o Paulo Autran uma época deu um curso para eles, para que eles utili-zem isso. Então, mesmo se for no plano do Direito formal, te diria que é hoje um cami-nho sem retorno e é necessária essa relação de Direito e Arte.

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Bernardo: Bom professora, eu quero deixar bem claro que minha pergunta foi apenas pro-vocativa. Nós estamos no mesmo barco. Então, a gente teria várias possibilidades de abordar, mas eu quero insistir nos efeitos, tanto nos efei-tos dos atores, como já foi dito, até também no efeito que o Artimanha leva para a própria Ins-tituição, mas eu queria te fazer uma pergunta. socialmente, olhando para também as expec-tativas metodológicas do Curso de Direito, que ele tem uma expectativa de atenção social. será, e se essa é a impressão da professora, da atriz e da colega de trabalho, se isso afeta a sensibilida-de social das pessoas envolvidas, e se de alguma maneira é possível nós atingirmos o público fora da faculdade com esse trabalho que a gente faz aí dentro, de relacionamento do Direito com a Arte e no caso de vocês do Direito e do Teatro.

Flávia: Bernardo, essa sua pergunta fala do que a gente mais gosta, do que é mais impor-tante para gente, porque se às vezes para um publico do Direito o falar formalmente, aca-demicamente, palestralmente sobre o Direito, nem sempre é tão agradável, quando você vai para uma comunidade, quando você vai para sua cidade, numa democracia, o mais impor-tante é que a sociedade conheça o Direito e o vivencie, porque isso é democracia, eu saber dos meus Direitos e vivenciá-los. Então aca-bou, porque as pessoas não entendem, porque o Direito já é difícil, e também não tem mui-ta fé no Judiciário, toda demora, todas essas legislações muitas vezes injustas, tem criado uma desesperança muito grande e isso é um risco democrático, isso é um grande risco de-mocrático. Então, quando a gente se apropria do Teatro, no nosso caso, ou apropriação pela Literatura ou apropriação pelo Cinema, e você vai falar de Direitos e muito especialmente di-reitos sociais, direitos fundamentais, direitos humanos, para essa sociedade, ela redescobre a fé, ela recupera a fé no Direito e ela começa a pensar que existe alguma luz. Então, é esse o papel que a gente considera o mais importante, que nós fazemos, quando nós vamos para uma comunidade e a gente apresenta um trabalho e essa comunidade escuta e sai com fé no Direi-to, que é possível transformar, nós cumprimos

com excelência o nosso papel e a Instituição cumpriu com mais excelência ainda seu papel, porque isso é o que a gente entende como efe-tivação de uma democracia através de um en-sino fundamental jurídico revisitado pela arte.

Bernardo: Muito bem, adorei sua fala. A gente não pode alongar muito, mas a gente poderia dizer então que além do conhecimento crítico que apa-rece com essa relação que é inevitável, é inevitável a construção do pensamento critico, será que a re-lação de Direito e arte hoje seria uma boa resposta para os anseios do MEC numa boa Universidade, para alcançar os pilares que eles nos cobram, que é a pesquisa, o ensino e a extensão.

Flávia: Certeza absoluta disso, e a gente já teve algumas conversas com outras pessoas que trabalham com essas questões dentro do próprio MEC, os consultores, eu me lembro de uma vez, há um tempo atrás, há muito tempo atrás, que a gente cooperou com uma Univer-sidade que estava com essa proposta e a ideia foi construir uma experimentação de teatro na linha de ensino, pesquisa e extensão e foi, de um dos consultores do MEC, foi dito como uma das melhores experiências, que ele estava verifi cando naquele instante, porque para você poder realizar um trabalho desse você tem que ter a pesquisa, porque se não não é possível, nós precisamos pesquisar, como eu te disse, o perí-odo histórico, a metodologia, diálogo, comuni-cação, é um processo de ensino, como eu acabei de dizer agora, de ensino de Direitos à pessoas que não são do Direito. E, ao mesmo tempo, é evidente, notoriamente, a questão da extensão é clara. Então, esse projeto ele constrói na práti-ca, na realidade, a junção entre ensino, pesquisa e extensão e isso hoje é reconhecido, inclusive na nossa Instituição, tanto pelas nossas instan-cias superiores, quanto pelos nossos colegas de conselho, que reconhecem a efi cácia dessa metodologia a ponto de que em palestras, em atividades do Direitos não dá para ter nem que seja um esquetezinho, porque eles percebem que é isso que consegue trazer a sensibilização. Muitas vezes você faz um esquete pequeno, mas você prepara para aquela fala ser registrada. A nossa Instituição, a nossa TV Universitária, TV

UFU fez uma parceria conosco para construir um projeto chamado “Pensando o Direito”, e um dos pedidos deles é que tivesse toda vez um esquete do Artimanha, porque eles falaram que isso facilita o entendimento do nosso público. Acho que isso prova essa realidade que é ensino, pesquisa e extensão, a vivencia de uma experi-ência como essa.

Bernardo: É isso professora, eu vou te agra-decer mais uma vez, eu fi z vários agradecimen-tos à você, eles são infi nitos, porque eu acho que esse trabalho é infi nito. A nossa luta para inserção da Literatura, do Cinema, da Música, do Teatro dentro do Direito, é uma tentativa, na verdade, de humanização dos nossos alu-nos e também a nossa própria humanização, eu obviamente há de refl etir na maneira como esse profi ssional vau trabalhar e obviamente como esse profi ssional vai infl uenciar a própria sociedade na qual ele está inserido. Então, em nome da Escola de Direito do Centro Univer-sitário Newton Paiva eu queria agradecer ao grupo ou ao coletivo Artimanha, eu acho mais bonito coletivo, que é uma coisa de construção plural, pela parceria. Espero que a nossa semana jurídico-cultural tenha sido à altura do que vo-cês fi zeram para gente aqui nessas três apresen-tações, que eu não tenho duvida nenhuma que vão mudar o direcionamento da subjetividade e da maneira como nós iremos construir o nosso conhecimento aqui dentro da Escola de Direito e como nossos alunos também irão ver. Então, muito obrigado. Espero que nós tenhamos vá-rias outras oportunidades de nos vermos.

Flávia: Bernardo, em nome do coletivo Ar-timanha a gente agradece a casa Newton Paiva, a gente já vai chamar de nossa casa também, casa Newton Paiva. Aqui em BH é nossa casa, que nos acolheu, por isso casa que me acolhe e à você pelo carinho que já da família Artima-nha. Aqui é a casa, você é a família, é isso que a gente sente. Queria lembrar, para a gente encer-rar, uma frase de um poema de um poeta que eu adoro, Fernando Pessoa, “tudo vale a pena, se a alma não é pequena” e a alma dessa casa Newton Paiva, desse professor Bernardo são imensas, então, tudo vai valer a pena demais.

Fotos divulgação Artimanha

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Por Tatiana Ribeiro de Souza

A peça “Entre qua-tro paredes”, de Jean Paul

Sartre, pode ser considera-da uma das maiores referên-

cias para tratar do olhar do outro como forma de subjetivação, espe-

cialmente quando se leva em considera-ção que foi precedida pela publicação de A náusea e O ser e o Nada. Destaco essas duas obras porque, no fi nal das contas, o proble-ma ali tratado persiste sendo o do “ser em si” e da necessidade do seu preenchimento de sentido, lançando-o ao “ser para si”. É nessa esteira, de psicanálise existencial, que Sartre fez uso do teatro para confi rmar seu argu-mento de que é a existência que precede a essência, e não o contrário.

Depois de mortos, os três personagens de “Entre quatro paredes” se encontram no inferno, sem saberem exatamente o moti-vo de terem sido confi nados juntos em um salão modesto, sem janelas e sem espelhos. Ao longo da peça cada um dos três vai se despindo do personagem que representava diante dos outros dois colegas de inferno e revelando os motivos que provavelmente os levaram à condenação eterna. Nada de fogo, demônios ou enxofre, o inferno de Sartre é apenas um salão, estilo segundo império, com três peças de sofá e um bronze sobre a lareira. A primeira impressão dos hóspedes

do inferno é a de que em breve receberão um carrasco para dolorosas sessões de tor-tura, no entanto, aos poucos descobrem que sua condenação é à pena ainda mais dura: o olhar do outro.

O caminho natural para uma fi losofi a de “Entre quatro paredes” tem sido o do existir pelo olhar do outro, o que leva à famosa e trágica conclusão do personagem Garcin de que “o inferno são os outros”. Exatamen-te por valorizar tudo que se tem produzido a esse respeito, pretendo me dedicar, nesta breve refl exão, à outra perspectiva da peça: a do olhar como um palco.

Ao ser encaminhado para o salão do inferno, Garcin tenta, em vão, desvendar qual será o castigo que tornará os seus dias dolorosos. Dando-se conta de que lá não poderá dormir, observa que o criado que o conduz possui as pálpebras atrofiadas, impedindo-o de piscar, o que, na opinião de Garcin, explicaria a “indiscrição gros-seira e insustentável” do seu olhar. Apres-sadamente Garcin conclui que o castigo doloroso no inferno é o que ele chama de “a vida sem interrupção”, como é o olhar sem a piscada. A fim de explicar ao criado o que é o ato de piscar, Garcin o descreve como “um pequeno relâmpago negro, uma cortina que cai e se ergue”.

Partindo da ideia do piscar como esta cortina que cai e se ergue, podemos com-parar o olhar a um palco de teatro, onde a fantasia da representação está separada dos bastidores, do real por detrás da coxia. Sob esta perspectiva, não estamos tratando da subjetivação daquele que se lança ao olhar do outro, como se vem tratando o drama dos personagens de “Entre quatro paredes”, mas

da inti-m i d a d e mesma do olhar.

O olhar como palco é a fronteira entre o ser em si e o ser para si, pois quando as cor-tinas se levantam o artista é para o juízo da plateia (ser para si), ele representa um papel e o resultado da obra não é nem o que estava previsto no roteiro nem o que cada espectador viu, mas a combi-nação texto/ato/percepção do texto-ato. Quando a cortina cai encerra o espetáculo, mas o artista ainda é (ser em si). Agora só ele e o espelho, seu novo olhar, juiz de si. Esse cair da cortina é aquele momento de evasão da vida que foi subtraído de Gar-cin, Inês e Estelle, personagens de Sartre.

Para descrever o cair da cortina, Gar-cin explica que “os olhos se umedecem e o mundo se aniquila”. A cada piscada uma pequena evasão e uma chance de sonhar. O castigo em “Entre quatro paredes” é exa-tamente o de nunca mais haver descanso, de não haver o fechar das cortinas. Mesmo quando o personagem mantido pelo ator é desmascarado, o que emerge não é o ser em si, mas novo personagem, indefi nidamen-te. É a condenação à representação eterna. Olhos abertos. Sempre. Não se pode tirar a maquiagem porque lá está a plateia jul-gando sua atuação. Para eles a vida é sem intervalo. O inferno é a representação sem trégua, sem o cair da cortina, sem espelho, sem chance de sonhar.

O Teatro do Olhar

OUTROs INFERNOs

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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 9 | MARÇO A MAIO DE 2015 7JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 9 | MARÇO A MAIO DE 2015

QUANDO CAI O PANO

Por José Luiz Quadros de Magalhães

A tentativa de segurança por meio de aprisionamento dos sentidos das palavras é uma das características da modernida-de. Segurança é uma das palavras chave para a compreensão do direito e do estado moderno. Entretanto, uma pergunta é ne-cessária: segurança para quem? Se pode-mos extrair da história moderna os reais interesses que permitem a construção do estado moderno, este desocultamento, esta descoberta, nos ajudar a perceber qual o caminho precisamos percorrer para a construção de uma nova ordem constitu-cional que possa contemplar toda a diver-sidade que foi negada e ocultada por esta mesma modernidade. Se da aliança entre o rei, a nobreza e a burguesia começa a cons-trução do estado moderno, e, da afirmação do poder político da burguesia, a partir do seu poder econômico, surge o constitucio-nalismo, o desafio contemporâneo é a bus-ca da construção de um sistema jurídico constitucional e de uma ou várias jurisdi-ções constitucionais que permitam, cada vez mais, a existência do diverso em uma relação que não seja mais de subalternida-de ou de exclusão.

Subalternidade ou exclusão sim, pois, o outro subalternizado na modernidade faz parte do sistema, é necessário ao sistema, e logo sua exclusão do acesso a vários direitos é necessária ao funcionamento deste mesmo sistema. Assim, existem duas formas de ex-clusão: a exclusão do acesso a direitos dos que integram o sistema como subalternos (o outro que justifi ca a hegemonia do “nós” ci-vilizado) e o outro que não é necessário nem

mesmo para a justifi cativa de superioridade do mesmo “nós”, e logo não conta nem mes-mo para a construção da imagem do “civili-zado” superior ao “incivilizado”.

O primeiro é o “índio”, “o negro”, “o mu-çulmano”, o “judeu”, a “mulher”, as “prostitu-tas”, o “drogado”, o “terrorista”, o “vândalo”, o “menor-infrator”, o “gay”, a “lésbica”, enfi m, aquele que precisa existir como exemplo de subalternidade, o “eles”, aquele objeto de desprezo que reforça a “bondade” e o “bom exemplo” do opressor, portador de direitos. O segundo grupo aumenta a cada dia. Neste grupo estão os não nomeados. Se a nome-ação é fundamental para a subalternização, os que pertencem a este grupo são desneces-sários até mesmo para justifi car a “missão civilizadora”, a “evangelização”, a “salvação”, por parte dos que oprimem. São os não no-meados, invisíveis.

Como construir uma sociedade que su-pere esta lógica da modernidade colonial bi-nária do incluído e excluído, do civilizado e do incivilizado. Como construir um sistema mundo e um sistema constitucional onde as pessoas e grupos de pessoas, comunidades, possam construir o seu próprio roteiro de vida social sem passar pelo censor civiliza-do, neste triste teatro do cotidiano de papeis mal interpretados. O fato é que não cabemos nos papeis sociais limitados que nos são im-postos. Dentro de cada pessoa, e em cada co-munidade, fervilham desejos e insatisfações que ameaçam a explosão. Se na teatralização do bom pai de família cabia a amante e o pe-cado escondido; se na teatralização do bom cidadão trabalhador cabe a corrupção e a sa-canagem, este escape oculto não mais satis-faz. A puta e a santa; o médico e o monstro;

o cidadão de bem e o sacana, não precisam coexistir se permitirmos a explosão, se não nos limitarmos a esta peça moderna do bem e do mal. É difícil interpretar vários papeis simultâneos. Não é para qualquer ator. Pa-peis, representações de uma triste peça in-terpretada por péssimos atores.

Aí está a grande diferença que o novo constitucionalismo democrático latino americano pode fazer: a construção de um espaço de diversidade. A igualdade é para os igualados. A ideia de igualdade pressu-põe o desejo do “excluído necessário” inte-grar o sistema que o exclui. Nesta igualda-de, o excluído deve desejar fazer parte do sistema excludente. Na ideia de diferença, um passo é dado: agora o excluído é acei-to dentro do sistema com sua esquisitice. É mais ou menos assim: você é diferente, você foge dos papéis sociais até então aceitos, mas, se você se comportar te aceitamos em nosso teatro como fi gurante. Aceitar o di-ferente pressupõe uma pergunta: diferente de quem? Neste caso o roteiro ainda é es-crito por aquele que é visto como o padrão, o estereótipo do bom moço anglo saxão que agora aceita o “mexicano” de dentes de ouro como sendo portador de direitos. Já no direito à diversidade estamos falando de ruptura. Cada grupo social escreve seu roteiro. O excluído não será incluído, pois ele não quer representar esta peça. Ele quer fazer o seu próprio roteiro. Não há excluí-dos porque cada grupo poderá estar onde quer estar, poderá viver segundo seus va-lores e construir sua própria “história”, sem ser forçado, para que possa existir, em se transformar no que não corresponde à sua “estória” (memória).

O teatro do diverso

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Por José Carlos Henriques

Compreender nosso tempo é desafio que sempre nos provoca, nos convoca, como uma necessidade inarredável. Mas, como em todas as épocas, compreender o momento de nossa situação histórica é tarefa sobrema-neira complexa.

De fato, estamos muito perto de nossa história, vemos os acontecimentos, quase sempre, de uma distância temporal não su-ficiente para a madura compreensão de sua ocorrência e sentido.

Isto é certo: de muito perto, a vista se turva, vemos, assim, tortuosamente. A his-tória, para ser compreendida, precisa se as-sentar em um passado, algo distante, ao me-nos o bastante para ser pensada, antes que apenas vivida.

De outro lado, se o desafio de nos com-preendermos, e à nossa história, é algo com-plexo, nem por isto deixa de ser uma neces-sidade e um destino. Um destino porque não seria possível viver em um tempo, sem nele interagir, reagir. Uma necessidade, porque decidimos, nos inventamos, no tempo, no nosso tempo, e não poderia ser diferente. Os acontecimentos do tempo presente nos atin-gem, alguns podemos dirigir, outros tantos nos chegam impositivos.

De nosso tempo, certo poder dizer que seja líquido, padecente de uma fluidez, sem par na história. Tudo parece se flui-dificar, em uma velocidade cada vez mais ampliada, a gerar uma demanda por subs-tituição, por novidades, por atualizações. Tudo parece correr para um lugar em que o sentido é o sem-sentido, ou seja, não se pergunta pelo sentido do que se faz, a pos-sibilidade e a necessidade do fazer são o próprio sentido.

Nietzsche já denunciava a “moral de

rebanho”, própria de quem adota senti-dos que não pertencem a suas escolhas, própria da imitação, da inautenticidade do seguir, sem se perguntar pelas razões pelas quais segue.

A fluidez de nosso tempo parece ser uma marca registrada da exigência, impen-sada e impensável, do seguir, do imitar, veloz e sem sentido. Não se trata de uma lamenta-ção. Parece que estamos diante de uma cons-tatação: nosso tempo tem nos empurrado para o abismo do non-sense.

Zygmunt Bauman é um sociólogo con-temporâneo, alheio a fronteiras disciplinares e que não se funda em meros dados estatísti-cos para construir suas interpretações, como tem ocorrido com a ampla maioria daqueles que se dedicam a pensar o tema da socieda-de. Por isto, bem pode ser contado entre os representantes da chamada “sociologia hu-manística”.

Autor prolífico, cujas obras atingem campos muito variados da construção so-ciológica, Bauman escapa do academicismo, pretendendo, com isto, atingir um público mais ampliado. Sociólogo comprometido, denuncia a desumanização, pelo domínio da técnica, e parece mostrar que o mundo, tal como se apresenta em nossos dias, não pre-cisa ser como tem sido, líquido, mas poderá ser melhor.

Autor de mais de duas dezenas de livros, muitos deles já vertidos para o português, Baumann tem sido chamado de “profeta da pós-modernidade”, muito embora rejeite esta designação.

Alheio a formalismos exagerados, Bau-mann tem se dedicado a muitos temas, com especial atenção à vida cotidiana. Ho-locausto, globalização, sociedade de consu-mo, amor, comunidade, individualidade são alguns dos temas a que se dedica, sempre

pensando a condição humana implicada nestes temas, nunca desistindo de insistir na dimensão ética e humanitária, que deve per-mear tudo que é humano.

Contra os neoliberais, procura demons-trar que há saídas. Por isto, pode afirmar, “hoje em dia, os maiores obstáculos para a justiça social não são as intenções... invasi-vas do Estado, mas sua crescente impotên-cia, ajudada e apoiada todos os dias pelo cre-do que oficialmente adota: o de que ‘não há alternativa’”.

Sua biografia confirma uma história de lutas. Engajado, como autor, defende um tipo de socialismo que, como explica, não se opõe “a nenhum modelo de sociedade, sob a condição de que essa sociedade teste per-manentemente sua habilidade de corrigir as injustiças e de aliviar os sofrimentos que ela própria causou”.

Enfim, se, hoje, como constatação, ve-rifica-se uma liquidez, em tudo que toca ao humano viver, é chegada a hora de se pensar acerca de deste estado de coisas, antes que a desumanização seja suficiente para impedir uma reflexão desta ordem.

O grau de aceleração dos acontecimen-tos, de acúmulo de tarefas, de sobrecarga de atividades, de colonização até mesmo do tempo livre, como lembrava Adorno... são sintomas de uma doença, já endêmica. Nosso tempo escorrega entre nossos dedos, porque líquido.

Talvez, assim alertados, seja hora de abrir a mão e estagnar a liquidez. Sim aos alicerces, que precisam durar! Contra tudo que nos dissolve, sim á solidez de compreen-dermos o que somos, como somos e porque somos! Talvez Baumann, ressalvados seus enganos, poderá nos sugerir uma adequada compreensão para nosso tempo presente.

A liquidez do tempo presente

ALICERCE QUE vEM?