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Monografia apresentada como requisito para graduação em Direito, em novembro de 2011. Aprovada com nota 10.TRANSCRIPT
FACULDADE ESTÁCIO DE SÁ DE SANTA CATARINA
JORGE HENRIQUE COSTA JÚNIOR
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, DEMOCRACIA E DIREITOS FUNDAMENTAIS
SÃO JOSÉ 2011
JORGE HENRIQUE COSTA JÚNIOR
CONSTIUIÇÃO FEDERAL DE 1988, DEMOCRACIA E DIREITOS FUNDAMENTAIS
Monografia apresentada ao curso de Graduação de Direito da Faculdade Estácio de Sá de Santa Catarina – FESSC, como requisito para aprovação na disciplina de Monografia II. Orientador de Conteúdo Prof. MSc. Almir José Pilon – Orientador de Metodologia Profª. MSc. Roziliane Oesterreich de Freitas.
SÃO JOSÉ 2011
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
C837c COSTA JÚNIOR, Jorge Henrique.
Constituição Federal de 1988, Democracia e Direitos Fundamentais. / Jorge Henrique Costa Júnior. – São José, 2011.
114 f. ; 31 cm. Trabalho Monográfico (Graduação em Direito) – Faculdade Estácio
de Sá de Santa Catarina, 2011. Bibliografia: f. 112-114.
1. Constituição Federal. 2. Efetividade. 3. Materialismo. 4. Democracia. I. Título
CDD 341.2
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho aos mortos. Aos que ofertaram a vida e a juventude ao povo, aos que com dignidade lutaram, e com a mesma dignidade serão lembrados. Também aos que perderam a vida nas mãos do Estado, mesmo que sequer soubessem o que é um Estado, estes também merecem ser lembrados; ainda, dedico, com maior pesar e lástima, aos mortos que não se deram conta de que estão vivos.
AGRADECIMENTOS
Meus sinceros agradecimentos a todos que participaram da minha vida até aqui e que
de certa forma contribuíram com isto, direta e indiretamente. Em especial à Kamila,
companheira e incentivadora de tanto tempo, e aos meus pais e irmãos que sentem
cotidianamente a dificuldade de viver nestes tempos. Sintam-se contemplados, também,
familiares e amigos que materialmente dão o suporte para o meu avanço, tendo sempre em
vista que este não é individual, mas coletivo.
Liberdade
“Não ficarei tão só no campo da arte, e, ânimo firme, sobranceiro e forte, tudo farei por ti para exaltar-te, serenamente, alheio à própria sorte.
Para que eu possa um dia contemplar-te dominadora, em férvido transporte, direi que és bela e pura em toda parte, por maior risco em que essa audácia importe.
Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma, que não exista força humana alguma que esta paixão embriagadora dome.
E que eu por ti, se torturado for, possa feliz, indiferente à dor, morrer sorrindo a murmurar teu nome”
(MARIGHELLA, Carlos. São Paulo, Presídio Especial, 1939)
RESUMO
Através de um estudo da Constituição federal de 1988 e sua construção, de forma materialista, método de apreensão da realidade superficialmente demonstrado em seu plano básico, intenta-se responder o problema da inefetividade dos direitos fundamentais por meio desse instrumento jurídico. Faz-se um mínimo resgate da história brasileira como elemento para o entendimento da atualidade e o reconhecimento do Estado disputado por classes antagônicas, mas hegemonizado e controlado pela burguesia no atual momento histórico, agindo o Estado portanto com o intuito de preservar os interesses de classe desta. Busca-se demonstrar, também, a atuação da classe burguesa no processo constituinte, com o intuito de controlar e “amansar” a Assembleia, eminentemente com o emprego de seu aparato logístico e econômico. Estabelece-se uma discussão acerca da contradição entre a propriedade privada como um direito fundamental elencado no artigo 5º da referida Constituição, e suas implicações no âmbito da efetividade dos demais direitos. Bem como busca-se explicitar o caráter ideológico da referida carta no sentido de pretender esconder o posicionamento de classe que todo Estado encerra. Palavras-chave: Constituição. Efetividade. Materialismo.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO …....................................................................................................................... 09
2 EMBASAMENTO TEÓRICO …........................…................................................................... 11
2.1 O MATERIALISMO HISTÓRICO …....................................................................................... 11
2.2 FERRAMENTAS CONCEITUAIS MÍNIMAS PARA UMA COMPREENSÃO
MATERIALISTA DA HISTÓRIA DO BRASIL …....................................................................... 12
2.2.1 Produção, meios de produção e força de trabalho …........................................................ 12
2.2.2 Mercadoria …...…................................................................................................................. 14
2.2.3 Relações de produção e agentes da produção …......................…...................................... 15
2.2.4 Forças produtivas e sua reprodução ….................….......................................................... 18
2.2.5 Relações de distribuição …................................................................................................... 19
2.2.6 Estrutura econômica da sociedade ….................................................................................. 19
2.2.7 Infraestrutura, superestrutura e reprodução das condições de produção …................... 20
2.2.8 Superestrutura jurídico-política …................….................................................................. 22
2.2.9 Superestrutura ideológica ….............…................................................................................ 25
2.2.10 Modo de produção e formação social ….................…....................................................... 27
2.2.11 Classes sociais e luta de classes …....................................................................................... 28
2.2.12 Interesse de classe, consciência de classe e posição de classe .......................…................ 30
3 BREVE ANÁLISE MATERIALISTA HISTÓRICA DA FORMAÇÃO SOCIAL
BRASILEIRA ….........................................................................................................…............... 32
3.1 A CONSTRUÇÃO SÓCIO-ECONÔMICA DO BRASIL: APONTAMENTOS ...…............... 32
4 “REDEMOCRATIZAÇÃO” E CONSTITUINTE …............................................................... 61
4.1 TRANSFORMAÇÕES NO BRASIL PÓS-64 …....................................................................... 61
4.2 PERÍODO CONSTITUINTE (1986-1988) …............................................................................ 77
4.2.1 Preparação de uma constituinte classista …........................................................................ 78
4.2.1.1 Cedes – câmara de estudos e debates econômicos e sociais …................................…......... 79
4.2.1.2 IL – Instituto Liberal ….........…............................................................................................ 81
4.2.1.3 CNF – Confederação Nacional das instituições Financeiras …........................................... 81
4.2.1.4 UB – União Brasileira de Empresários ….................…........................................................ 82
4.2.1.5 UDR – União Democrática Ruralista …................…........................................................... 85
4.2.1.6 ABDD – Associação Brasileira de Defesa da Democracia ….............................................. 87
4.2.1.7 Grupos menores de ultradireita …......................................................................................... 89
4.2.2 Configuração da Assembleia Nacional Constituinte .......................................................... 91
5 CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 ….......................................................................... 93
5.1 A CONSTITUIÇÃO …............................................................................................................... 96
5.1.1 Capital, capitalismo e trabalho …....................................................................................... 99
5.1.2 Artigo 5º …...…..................................................................................................................... 104
6 CONCLUSÃO …........................................................................................................................ 109
REFERÊNCIAS …........................................................................................................................ 112
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1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por tema a Constituição de 1988, suas normas em direitos
fundamentais e a sua formação histórica.
Tal tema foi escolhido em virtude de uma inquietude crítica em relação à sociedade
brasileira contemporânea. Nos centros acadêmicos lê-se a constituição de 1988 como o
cristão a bíblia ou o muçulmano o corão, todavia, entre o que se põe num papel e o que se
efetiva na prática há um abismo. A comparação com as religiões é proposital: tanto Deus
quanto a Democracia não existem, pelo menos não hoje. E não será por força de um livro, seja
ele “sagrado” ou “cidadão”, que inaugurarão suas existências.
A democracia tão esperada e “endeusada”, pela qual morreram tantos nas décadas
que a precederam, nada se parece com a democracia que se faz hoje presente. É difícil
compreender recentes episódios de opressão com o conceito de “democracia pura” em mente.
O simples contato com o mundo real delata uma outra democracia: plutocraticamente
burguesa. A democracia brasileira é burguesa, e como forma de organização da sociedade
capitalista que é, possui características próprias. Formalmente, no plano das ideias, perfeição;
realmente, no plano material, despotismo do capital.
Objetiva-se, com este estudo, a mínima resolução teórica no que concerne a
efetividade das normas que visam a proteção dos direitos fundamentais em face da proposta
da Carta Constitucional. Como objetivos específicos, assumiu-se os seguintes enunciados:
Identificar o caráter de classe do Estado brasileiro, assim como de suas instituições,
estabelecendo a relação entre Forças Armadas e classes dominantes; proceder um breve
estudo das forças presentes na assembleia constituinte; reconhecer na CF/88 elementos de
uma constituição burguesa cujo texto estabelece a manutenção do status quo anterior
incompatível com os interesses da maioria da população e os objetivos democráticos que a
constituinte alegou defender.
Para tanto, utiliza-se do método dedutivo para buscar resolver o problema proposto.
Inicia-se o trabalho com o estudo do materialismo histórico-dialético, mesmo que
superficialmente, como fonte categórica para de maneira segura trazer à tona as respostas
pretendidas. O método de Marx, com seu estudo aprofundado da realidade material, trará o
aporte teórico mínimo para o desenvolvimento do trabalho.
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Após, resgata-se a história do Brasil, de forma materialista, para demonstrar o
processo de desenvolvimento desta sociedade hoje erguida. O aspecto da atuação estatal e de
suas relações na luta de classes será o foco da breve análise. Em seguida, como decorrência
histórica, traz-se alguns fatores classistas da Assembleia Constituinte que deu origem à atual
constituição, bem como os grupos que destacadamente influenciaram e compuseram a
referida Assembleia.
Por fim, o último capítulo se dedica a esboçar os traços que fazem a Carta Magna ser
ineficaz no que se propõe, em termos de democracia e direitos fundamentais.
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2 EMBASAMENTO TEÓRICO
Antes de mais nada, para uma mínima compreensão do assunto a ser tratado, é
preciso delimitar, mesmo que minimamente, alguns dos mais importantes conceitos
científicos concernentes à base da teoria materialista histórica, muito embora, pela brevidade
inerente ao trabalho e ao limitado tempo de elaboração, seja carente da profundidade que tal
método suscita. Porém, ao fim das escassas páginas seguintes, a noção do materialismo
histórico deve estar mais clarificada e menos suscetível a vulgarismos e reducionismos.
A teoria materialista da história instrumentaliza a compreensão científica do estudo
da realidade, no contexto brasileiro, da “transição” das últimas décadas. Tais instrumentos
permitem entender a transição de quê a quê, ou seja, entender não apenas a superfície, mas a
realidade concreta e científica, apartadas do senso comum e vulgaridades ideológicas.
As categorias utilizadas no presente trabalho são aquelas em cuja pesquisa Marx
buscou apreender do movimento real da sociedade. Portanto, as categorias expressas aqui
encontram sua plena existência em se tratando da totalidade do pensamento marxiano. O que
se faz, nesta etapa do trabalho, é a uma mera ilustração sumária que não tem o escopo de
esgotar o acúmulo teórico das categorias apresentadas. Não é o intuito apresentar de forma
completa o pensamento marxiano, complexo para poucas linhas, mas trazer as ferramentas
categóricas necessárias para o entendimento mínimo da abordagem deste trabalho.
2.1 O MATERIALISMO HISTÓRICO
O ramo científico fundado por Marx, o materialismo histórico, possui este nome
justamente para opor sua existência, como concepção científica da história, ao idealismo pelo
qual vinha – ainda hoje vem – sendo analisada a história. A obra de Marx contempla a teoria
científica: o materialismo histórico; e a filosofia: materialismo dialético. Por isso:
materialismo histórico dialético para designar a contribuição marxista (HARNECKER, 1983).
Stalin, ao discorrer sobre o materialismo histórico, de forma singela, explicitou a
essência da teoria. Não é o meio geográfico o causador determinante do desenvolvimento
social, pois este permanece quase invariável há dezenas de milhares de anos, mesmo diante
dessa relativa estagnação geográfica, “no transcurso de três mil anos, a Europa viu
desaparecer três regimes sociais: o comunismo primitivo, a escravidão e o regime feudal, e na
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parte oriental da Europa, na URSS, feneceram quatro”. (STALIN, apud HARNECKER, 1983,
p. 246). O crescimento da população também não é o fator determinante do desenvolvimento
da sociedade, pois “o crescimento da população por si mesmo não nos oferece a chave para
explicar porque um regime social dado seja substituído precisamente por um determinado
regime novo e não por outro [...]”. (STALIN, apud HARNECKER, 1983, p. 246). Se o fosse,
o desenvolvimento social deveria proporcionalmente acompanhar a densidade demográfica, o
que sabidamente não é verdade (STALIN, apud HARNECKER, 1983). Assim, de forma
correta, conclui que segundo o materialismo histórico o modo de obtenção dos meios de vida
necessários à existência do homem – o modo de produção dos bens materiais – que abrange
tanto as forças produtivas quanto as relações de produção, que é o fator determinante do
desenvolvimento social (STALIN, apud HARNECKER, 1983).
O materialismo histórico aponta que a compreensão em última instância dos
processos históricos e sociais deve ser buscada “na forma pela qual os homens produzem os
meios materiais”. (HARNECKER, 1983, p. 31), seus meios de subsistência, que não se
limitam à existência física, mas todas as necessidades humanas “seja qual for a natureza, a
origem delas, provenham da estômago ou da fantasia”. (MARX, 1994, p. 41).
É através do processo de trabalho a “transformação de um objeto determinado, seja
este em estado natural ou já trabalhado, em um produto determinado, transformação efetuada
por uma atividade humana determinada, utilizando instrumentos de trabalho determinados”
(HARNECKER, 1983).
Dessa forma, como estabelece o marxismo, “não se deve partir do que os homens
dizem, imaginam ou pensam, mas da forma em que produzem os bens materiais necessários à
sua vida”. (HARNECKER, 1983, p. 94).
2.2 FERRAMENTAS CONCEITUAIS MÍNIMAS PARA UMA COMPREENSÃO
MATERIALISTA DA HISTÓRIA DO BRASIL
2.2.1 Produção, meios de produção e força de trabalho
Como dito, a história deve ser compreendida, em última instância, pelo estudo da
produção social dos meios de subsistência:
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a produção, e com ela a troca dos produtos, é a base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela história, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em classes ou camadas, é determinada pelo que a sociedade produz e como produz o pelo modo de trocar os seus produtos. De conformidade com isso, as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas nas cabeças dos homens nem na idéia que eles façam da verdade eterna ou da eterna justiça, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca; devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata. (ENGELS, 2010).
O naturalismo dos economistas clássicos é veementemente combatido pelo
materialismo histórico de Marx, colocando o caráter social da produção em primeiro plano,
como motor da história:
quanto mais se recua na história, mais o indivíduo – e, por conseguinte, também o indivíduo produtor – se apresenta num estado de dependência, membro de um conjunto mais vasto; este estado começa por se manifestar de forma totalmente natural na família, e na família ampliada até as dimensões da tribo; depois, nas diferentes formas de comunidades provenientes da oposição e da fusão das tribos. Só no século XVIII, na “sociedade burguesa”, as diferentes formas do conjunto social passaram a apresentar-se ao indivíduo como um simples meio de realizar seus objetivos particulares, como uma necessidade exterior. Mas a época que dá origem a este ponto de vista, o do indivíduo isolado, é precisamente aquela em que as relações sociais (revestindo deste ponto de vista de caráter geral) atingiram o seu máximo desenvolvimento. O homem é, no sentido mais literal, um dzôon politikhón [animal político], não só um animal sociável, mas um animal que só em sociedade pode isolar-se. A produção realizada à margem da sociedade pelo indivíduo isolado – fato excepcional que pode muito bem acontecer a um homem civilizado transportado por acaso para um lugar deserto, mas já levando consigo em potência as forças próprias da sociedade – é uma coisa tão absurda como o seria o desenvolvimento da linguagem sem a presença de indivíduos vivendo e falando em conjunto. (MARX, 2003, p. 226-227).
A produção de que se fala é a produção de indivíduos vivendo em sociedade, sob
determinado desenvolvimento social. Todas as épocas de produção – nas quais o homem é o
sujeito e a natureza o objeto – apesar de substancialmente distintas, possuem características
comuns, que servem como regras para o estudo da produção em geral (MARX, 2003).
Consequentemente, a produção é imediatamente consumo, e o consumo é também
imediatamente produção. O indivíduo, ao produzir, consome suas forças vitais e consome os
meios de produção; ao consumir, o indivíduo produz “o seu corpo. Ora, isto é igualmente
válido para qualquer outra espécie de consumo que, de uma maneira ou de outra, contribui
com qualquer aspecto para a produção humana”. (MARX, 2003, p. 235).
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Assim, todo consumo cria a necessidade de uma nova produção, e a produção
demanda o consumo. “Sem necessidade não há produção. Ora, o consumo reproduz a
necessidade”. (MARX, 2003, p. 236) .
Os instrumentos com os quais se emprega o trabalho a fim de que se produza mais,
com mais eficiência e com menos trabalho, consequentemente diminuindo o valor de
determinada mercadoria, dá-se o nome de meios de produção (HARNECKER, 1983). Os
meios de produção, por sua vez, foram também objeto de produção, portanto são trabalho
acumulado.
A energia humana que põe em marcha os meios de produção e consequentemente o
processo de trabalho de uma sociedade chama-se força de trabalho (HARNECKER, 1983).
“A fadiga, após uma jornada de trabalho, não é senão a expressão física deste dispêndio de
energia, produto da atividade humana desenvolvida durante o processo de trabalho. A boa
alimentação, o descanso, permitem recuperá-la”. (HARNECKER, 1983, p. 35).
A força de trabalho diferencia-se do próprio trabalho, uma vez que o trabalho é o
rendimento da força de trabalho (HARNECKER, 1983). A força de trabalho é também um
produto, sendo assim sua produção se dá na consumição dos meios de subsistência pelo
trabalhador (alimentação, descanso, lazer, etc.).
O resultado do processo de produção é um produto, que necessariamente deve ser um
valor de uso (que corresponde a uma necessidade humana determinada), mas nem sempre
uma mercadoria (valor de troca) pois pode ter sido produzida para ser de uso de seu produtor.
2.2.2 Mercadoria
A riqueza das sociedades, como a capitalista, dá-se pela acumulação de mercadorias.
Considerada isoladamente, a mercadoria é, antes de tudo,
um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, ou indiretamente como meio de produção. (MARX, 1994, p. 41).
“Qualquer mercadoria se apresenta sob o duplo aspecto de valor de uso e valor de
troca”. (MARX, 2003, p. 11). Como valores de uso as mercadorias possuem as qualidades
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mais diversas, mas como valores de troca, no âmbito da circulação, tais mercadorias
diferenciam-se apenas quanto a quantidade de trabalho empregado na produção de cada uma,
medida pelo tempo de trabalho gasto para produzi-las, uma vez que são ambas as mercadorias
a serem trocadas fruto do trabalho humano abstrato (MARX, 1994).
o que determina a grandeza do valor, portanto, é a quantidade de trabalho socialmente necessário para a produção de um valor de uso. Mercadorias que contêm iguais quantidades de trabalho, ou que podem ser produzidas no mesmo tempo de trabalho, possuem, consequentemente, valor da mesma magnitude. (MARX, 1994, p. 46).
Esses produtos, então, como valores de troca “passam a representar apenas a força de
trabalho humana, gasta em sua produção, o trabalho humano que neles se armazenou”.
(MARX, 1994, p. 45).
2.2.3 Relações de produção e agentes da produção
Por não estarem sós no processo de transformação da natureza, os homens
estabelecem entre si determinadas relações: “relações de colaboração e ajuda mútua, relações
de exploração, ou relação de transição entre ambos os extremos”. (HARNECKER, 1983, p.
37).
São essas relações que os homens estabelecem entre si em torno do trabalho que
determinam o caráter do processo de produção em determinado período histórico de uma
sociedade. Processo de produção, portanto, é o processo de trabalho sob relações de produção
historicamente determinadas (HARNECKER, 1983).
Nesse contexto de relações de produção socialmente estabelecidas, ocorrem as
divisões do trabalho. Neste sentido, dão-se: a divisão de produção social, que se dá em
diferentes ramos e esferas de produção (ex.: agrícola, industrial); a divisão técnica do
trabalho, no interior de um mesmo processo de produção (ex.: divisão de tarefas em uma
indústria de automóveis); a divisão social do trabalho, determinada pelas relações sociais,
condicionando as tarefas que os indivíduos desempenham na sociedade à função que têm na
estrutura social (ex.: trabalho manual e intelectual) (HARNECKER, 1983).
Quanto à divisão social do trabalho:
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[…] começa historicamente com a divisão entre trabalho manual e o trabalho intelectual. A este último só tinham acesso os indivíduos que provinham das classes dominantes. […] a distribuição dos indivíduos da sociedade nestas diferentes tarefas não depende de critérios puramente técnicos (melhores aptidões, maior preparo) mas de critérios sociais. Certas classes sociais têm acesso a certas tarefas, outras classes não. (HARNECKER, 1983, p. 40).
No âmbito das relações de produção, conforme acima colocadas, os diferentes
indivíduos que participam do processo de produção são denominados “Agentes da produção”,
que, por sua vez, podem se agrupar de acordo com as relações técnicas de produção e relações
sociais de produção. Quanto às relações técnicas de produção, dividem-se em individuais
(processo de trabalho individual) e cooperativas (processo de trabalho cooperativo). Quanto
ao primeiro agrupamento, individual, “caracteriza-se, fundamentalmente porque nele existe
uma clara unidade do trabalhador e de seu meio de trabalho. […] é ele quem controla todo o
processo de trabalho ou o tem sob o domínio absoluto”. (HARNECKER, 1983, p. 46). Quanto
ao segundo, cooperativo, caracteriza-se pela organização de um trabalho social comum:
todo processo baseado na cooperação em grande escala implica, portanto, que os trabalhadores individuais percam o controle e o domínio do processo de trabalho. Produz-se, assim, uma separação entre o trabalho individual e o conjunto do processo de trabalho. Quem põe em marcha este processo já não é o trabalhador individual mas o trabalhador coletivo que exige, como um de seus elementos, um grupo de trabalhadores que execute funções de direção e controle do processo de produção. Juntamente com a função de transformação direta da matéria-prima [trabalhadores diretos] surge a função de direção e controle do processo de trabalho em seu conjunto [trabalhadores indiretos]. (HARNECKER, 1983, p. 47).
O processo de produção não está isolado das condições sociais que o tornam
possível, sendo historicamente determinado. Em uma sociedade na qual vige o regime da
propriedade privada os agentes da produção sofrem mais uma divisão, agora determinada pela
relação social de produção: “existem indivíduos proprietários dos meios de produção e
indivíduos que devem trabalhar para aqueles: os trabalhadores”. (HARNECKER, 1983, p.
49).
nas sociedades em que existe a propriedade privada dos meios de produção os proprietários desses meios têm um papel no processo geral de produção, sem figurar necessariamente como produtores diretos, pois sendo donos dos meios de produção, tornam possível o processo. Como os meios de produção representam as condições materiais indispensáveis a todo processo de produção, como é impossível produzir sem meios de produção, os homens que não possuem estes
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meios, ou que dispõem de uma quantidade demasiado pequena deles, terminam por trabalhar para os que possuem os meios fundamentais de produção. (HARNECKER, 1983, p. 49).
Assim, de acordo com as relações sociais de produção, aquelas que se estabelecem
em torno da propriedade dos meios de produção, proprietários e produtores diretos. Pode-se
distinguir dois tipos fundamentais de relação: relação de explorador-explorado e relação de
colaboração recíproca (HARNECKER, 1983). A primeira relação existe na medida em que
“os proprietários dos meios de produção vivem do trabalho dos produtores diretos”.
(HARNECKER, 1983, p. 53).
Nessa relação de exploração, distinguem-se basicamente três formas históricas:
[…] as relações de escravidão, nas quais o amo não só é proprietário dos meios de produção mas também o é da força de trabalho (o escravo), as relações de servidão, nas quais o senhor é proprietário da terra e o servo depende dele e deve trabalhar gratuitamente para ele durante certa quantidade de dias por ano, e, por último, as relações capitalistas, nas quais o capitalista é o proprietário dos meios de produção e o operário deve vender sua força de trabalho para poder viver. (HARNECKER, 1983, p. 54).
No que diz respeito às segundas relações, de colaboração recíproca, se estabelecem
uma propriedade social dos meios de produção e não há exploração de um setor da sociedade
por outro, como as relações firmadas em comunidades primitivas e o modo de produção
capitalista (HARNECKER, 1983).
Cabe salientar que as relações sociais de produção não são simplesmente relações
humanas mas também dos homens como agentes da produção. As relações sociais de
produção se estabelecem independentemente da vontade dos homens, “quando os marxismo
afirma que é necessário destruir as relações capitalistas de produção, que é necessário que
'morra o empresário', não significa que os capitalistas devam ser destruídos fisicamente”.
(HARNECKER, 1983). Sem o trabalho humano os meios de produção não são produtivos,
mas potencialmente produtivos, apenas o trabalho humano produz (HARNECKER, 1983).
O processo de produção, além de produzir produtos materiais, deve reproduzir suas
condições sociais de produção, no caso do modo de produção capitalista, as relações de
produção capitalista: o capital e o trabalho assalariado (HARNECKER, 1983).
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2.2.4 Forças produtivas e sua reprodução
Pode-se definir o termo “forças produtivas” como a conjugação dos fatores meios de
produção e trabalhadores, em determinado período histórico de determinada sociedade
(HARNECKER, 1983). Mede-se medir o grau de desenvolvimento das forças produtivas
através do grau de produtividade do trabalho, isto é, da relação tempo/produção
(HARNECKER, 1983).
as forças produtivas de uma sociedade crescem, desenvolvem-se e se aperfeiçoam no decorrer da história. […] A passagem dos instrumentos de pedra para os de metal permite, por exemplo, um aumento importante da produtividade do trabalho nos povos primitivos, aumentando assim o desenvolvimento das forças produtivas. Ocorre o mesmo com a introdução da máquina-ferramenta na produção capitalista. O grau de desenvolvimento das forças produtivas cresce, a partir daí, de uma forma vertiginosa. (HARNECKER, 1983, p. 69).
Porém, o desenvolvimento das forças produtivas não é linear, cumulativo e
constante, “é um desenvolvimento que depende da estrutura do processo de produção: das
relações dos agentes entre si e dos agentes com os meios de produção, isto é, das relações de
produção”. (HARNECKER, 1983, p. 69). Ademais, o desenvolvimento científico não
significa desenvolvimento das forças produtivas. Aquele cria somente a possibilidade do
desenvolvimento destas. O desenvolvimento mútuo depende das condições econômicas e
sociais da produção (HARNECKER, 1983).
Dissociados, um do outro, tanto meios de produção quanto força de trabalho, são
apenas forças produtivas potenciais, só se transformam em forças produtivas propriamente
ditas quando unidas, quer dizer, quando a força de trabalho atua sobre os meios de produção
(HARNECKER, 1983).
As forças produtivas, com seu desenvolvimento, passam pelo processo de
socialização, na medida em que seu caráter se torna a cada dia mais socializado, o que
aprofunda a interdependência entre os diversos setores da produção. Essa socialização,
englobando cada vez mais relações, não se confunde à socialização da propriedade dos meios
de produção, um não necessariamente acompanha outro (HARNECKER, 1983). “O crescente
caráter social das forças produtivas entra, assim, em contradição cada vez mais aguda com o
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caráter privado da apropriação capitalista dos meios de produção”. (HARNECKER, 1983, p.
74).
2.2.5 Relações de distribuição
Pode-se concluir que, na estrutura social, a distribuição do produto social depende da
distribuição prévia dos meios de produção, isto é, das relações sociais de produção. Destarte,
é a maneira como foram “distribuídos os meios de produção (elementos do processo de
produção) o que determina fundamentalmente a forma pela qual será distribuído o produto
social. […] as relações de distribuição se acham determinadas pelas relações de produção”.
(HARNECKER, 1983, p. 83).
A distribuição
[...] antes de ser distribuição de produtos, ela é: 1º distribuição dos instrumentos de produção e 2º distribuição dos membros da sociedade pelos diferentes gêneros de produção, o que é uma outra determinação da relação anterior. (subordinação dos indivíduos a relações de produção determinadas.) A distribuição dos produtos é manifestamente o resultado desta distribuição que, incluída no próprio processo de produção, lhe determina a estrutura. Considerar a produção sem ter em conta esta distribuição, nela incluída, é sem dúvida uma abstração vazia de sentido, visto que a distribuição dos produtos é implicada por esta distribuição, que constitui na origem um fator da produção. (MARX, 2003, p. 242).
Portanto o resultado da produção social – valores de uso destinados ao consumo
individual e produtivo da sociedade (suprir necessidades existentes) – é distribuído de acordo
com as relações sociais de produção (HARNECKER, 1983).
2.2.6 Estrutura econômica da sociedade
O conceito de estrutura, em Marx, não se confunde com “totalidade”, que denota
uma disformidade em sua constituição. O que não acontece no conceito de estrutura elaborado
por Marx, seus elementos encontram-se distribuídos segundo determinada organização
(HARNECKER, 1983). Assim, é a estrutura a “totalidade composta por um conjunto de
relações internas e estáveis que determinam a função que os elementos desempenham dentro
desta totalidade”. (HARNECKER, 1983, p. 89).
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na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência. (MARX, 2003, p. 5).
A partir daí pode-se conceituar a estrutura econômica como o conjunto de relações
de produção; e sistema econômico, como processo econômico global: produção, distribuição,
troca e consumo (HARNECKER, 1983).
2.2.7 Infraestrutura, superestrutura e reprodução das condições de produção
O marxismo distingue duas dimensões de estrutura em determinada formação social,
são elas: infraestrutura e superestrutura.
A infraestrutura trata-se justamente da base da sociedade, sua estrutura autêntica,
econômica. É na infraestrutura, então, que se deve buscar o substrato essencial para se
explicar os fenômenos sociais. Porém, isso não significa que puramente tudo se reduza ao seu
caráter econômico, há o importante papel da superestrutura nesse contexto (HARNECKER,
1983).
[...] Marx concebe a estrutura de toda a sociedade como constituída por “níveis” ou “instâncias” articuladas por uma determinação específica: a infraestrutura ou base econômica (“unidade” de forças produtivas e relações de produção), e a superestrutura, que compreende dois “níveis” ou “instâncias”: a jurídico-política (o direito e o Estado) e a ideológica (as distintas ideologias, religiosa, moral, jurídica, política, etc...). (ALTHUSSER, 1998, p. 60).
Determinada infraestrutura de determinada formação social, para existir, “ao mesmo
tempo que produz, e para poder produzir, deve reproduzir as condições de sua produção. Ela
deve, portanto, reproduzir: 1) as forças produtivas [meios de produção e força de trabalho] 2)
as relações de produção existentes”. (ALTHUSSER, 1998, p. 54).
Além das condições materiais de produção (meios de produção, matéria prima,
instalações, etc.), é necessário que se reproduza também a força de trabalho. Basicamente a
reprodução da força de trabalho, no modo de produção capitalista, se dá através do salário.
21
[...] o salário representa apenas a parte do valor produzido pelo gasto da força de trabalho, indispensável para sua reprodução, quer dizer, indispensável para a reconstituição da força de trabalho do assalariado (para a habitação, vestuário e alimentação, em suma, para que ele esteja em condições de tornar a se apresentar na manhã seguinte – e todas as santas manhãs – ao guichê da empresa); e acrescentemos: indispensável para a criação e educação das crianças nas quais o proletariado se reproduz (em X unidades: podendo X ser igual a 0,1,2, etc...) como força de trabalho. (ALTHUSSER, 1998, p. 56).
A reprodução da força de trabalho também deve reproduzir a qualificação da força de
trabalho, o que nas formações sociais escravistas e servis se dava no local do trabalho, no
capitalismo é eminentemente feito fora da produção, nos bancos escolares (ALTHUSSER,
1998).
ora, o que se aprende na escola? É possível chegar-se a um ponto mais ou menos avançado nos estudos porém de qualquer maneira aprende-se a ler, escrever, a contar, ou seja, algumas técnicas, e outras coisas também, inclusive elementos [...] de “cultura científica” ou “literária” diretamente utilizáveis nos diferentes postos (uma instrução para os operários, uma outra para os técnicos, uma terceira para os engenheiros, uma última para os quadros superiores, etc...) Aprende-se o “know-how”. [...] junto com essas técnicas e conhecimentos, aprende-se na escola as “regras” do bom comportamento, isto é, as conveniências que devem ser observadas por todo agente da divisão do trabalho conforme o posto que ele esteja “destinado” a ocupar; as regras de moral e de consciência cívica e profissional, o que na realidade são regras de respeito à divisão social-técnica do trabalho e, em definitivo, regras da ordem estabelecida pela dominação de classe. (ALTHUSSER, 1998, p. 57-58).
A reprodução da força de trabalho exige, concomitantemente, a reprodução material
da força de trabalho (energia), a reprodução da qualificação desejada da força de trabalho, e a
reprodução da submissão da força de trabalho à ordem social vigente. “Em outras palavras, a
escola (mas também outras instituições do Estado, como a igreja e outros aparelhos como o
exército) ensina o ‘know-how’ mas sob formas que asseguram a submissão à ideologia
dominante ou o domínio de sua ‘prática”. (ALTHUSSER, 1998, p. 58).
É com o intuito da reprodução das condições de produção e das relações de produção
que se constitui a superestrutura (ALTHUSSER, 1998).
A superestrutura é, portanto, composta por dois níveis da sociedade: “a estrutura
jurídico-política e a estrutura ideológica. À primeira corresponde o Estado e o direito; à
segunda, as chamadas 'formas de consciência social'”. (HARNECKER, 1983, p. 94). Os
instrumentos da superestrutura, assim, estão sempre “à serviço dos interesses da classe
22
dominante, as quais servem de instrumentos de luta”. (HARNECKER, 1983, p. 97). Porém,
“Marx e Engels nunca reduziram a superestrutura à infraestrutura. As estruturas jurídico-
políticas e ideológicas, que fazem parte da superestrutura, têm uma relativa autonomia em
relação à infraestrutura e suas próprias leis de funcionamento e desenvolvimento”.
(HARNECKER, 1983, p. 98).
2.2.8 Superestrutura jurídico-política
Uma das estrutura que compõe a superestrutura de toda sociedade é a jurídico-
política, que produz normas e regulamenta o funcionamento da sociedade em sua totalidade.
Possuí constituição variável, assim como a estrutura ideológica, de acordo com o aspecto da
infraestrutura (estrutura econômica) que lhe sustenta (HARNECKER, 1983). O centro da
estrutura jurídico-política consiste no Estado:
o Estado é, antes de mais nada, o que os clássicos do marxismo chamaram de o aparelho de Estado. Este termo compreende: não somente o aparelho especializado (no sentido estrito), cuja existência e necessidade reconhecemos pelas existências da prática jurídica, a saber: a política – os tribunais – e as prisões; mas também o exército, que intervém diretamente como força repressiva de apoio em última instância (o proletariado pagou com seu sangue esta experiência) quando a polícia e seus órgãos auxiliares são “ultrapassados pelos acontecimentos”; e, acima deste conjunto, o Chefe de Estado, o Governo e a Administração. (ALTHUSSER, 1998, p. 62-63).
Desta forma, na sociedade de classes a infraestrutura é assegurada pelo aparelho
autônomo que é o Estado, “que monopoliza a ‘violência legítima’ e cuja principal função é
manter sob a sujeição de uma classe dominante todas as demais classes que dependem dela”.
(HARNECKER, 1983). O papel desta instância da superestrutura se resume em manter as
relações de produção intactas, mesmo que haja discordância da parte explorada. “O papel do
aparelho repressivo do Estado consiste essencialmente, como aparelho repressivo, em garantir
pela força (física ou não) as condições políticas da reprodução das relações de produção, que
são em última instância relações de exploração”. (ALTHUSSER, 1998, p. 74).
A manutenção dessas contradições entre as classes em detrimento de uma delas, a
mais numerosa: precípua motivação do Estado. Aqui se atinge o conceito mais acertado de
Estado e sua atuação:
23
a sociedade, que se movera até então entre antagonismos de classe, precisou do Estado, ou seja, de uma organização da classe exploradora correspondente para manter as condições externas de produção e, portanto, particularmente, para manter pela força a classe explorada nas condições de opressão (a escravidão, a servidão ou a vassalagem e o trabalho assalariado), determinadas pelo modo de produção existente. (...) O Estado era o representante oficial de toda a sociedade, sua síntese num corpo social visível; mas o era só como Estado que, em sua época, representava toda a sociedade: na antiguidade era o Estado dos cidadãos escravistas, na Idade Média o da nobreza feudal; em nossos tempos, da burguesia. Quando o Estado se converter, finalmente, em representante efetivo de toda a sociedade, tornar-se-á por si mesmo supérfluo. Quando já não existir nenhuma classe social que precise ser submetida; quando desaparecerem, juntamente com a dominação de classe, juntamente com a luta pela existência individual, engendrada pela atual anarquia da produção, os choques e os excessos resultantes dessa luta, nada mais haverá para reprimir, nem haverá necessidade, portanto, dessa força especial de repressão que é o Estado. (ENGELS, 1880).
O Estado não é, pois, um poder imposto à sociedade de fora, mas sim um produto da
própria sociedade. É este a “confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável
contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não
consegue conjurar”. (ENGELS, 2002, p. 191).
[...] essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da “ordem”. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado. (ENGELS, 2002, p. 191).
Aponta ainda Engels o traço característico de todo Estado que é instituição de uma
força pública especial, que não se confunde com o povo em armas, incompatível com a
sociedade dividida em classes tendo em vista que para a manutenção da ordem social o povo
não pode se organizar como força militar espontaneamente (ENGELS, 2002, p. 192). Tal
força pública especial “[...] é formada não só de homens armados como, ainda, de acessórios
materiais, os cárceres e as instituições coercitivas de todo gênero, desconhecidos pela
sociedade da gens”. (ENGELS, 2002, p. 192). Asseverava ainda, o autor, que essa força
pública “se fortalece na medida em que exacerbam os antagonismos de classe dentro do
Estado e na medida em que os Estados contíguos crescem e aumentam de população”.
(ENGELS, 2002, p. 192). Nota-se, como é evidente, desta última citação, que a força
repressiva do Estado é proporcional ao nível de atrito entre as classes antagônicas que
compõem a sociedade.
24
O Estado é sempre o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente
dominante, assim, o
Estado dos senhores de escravos para manter os escravos subjugados; o Estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza para manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes; e o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado. (ENGELS, 2002, p. 193).
Na medida em que a sociedade se divide sob o aspecto da divisão do trabalho, maior
é a necessidade de se desenvolver as funções organizativas e administrativas do Estado. Da
mesma forma, nas sociedades divididas em classes, verifica-se outra função primordial: a
dominação política (HARNECKER, 1983).
os aparelhos institucionais e normas já existentes são utilizadas para submeter as diferentes classes da sociedade aos interesses das classes dominante, e se criam novos aparelhos e instituições com fins fundamentalmente repressivos: destacamentos armados, cárceres, instituições de todo tipo, etc. (HARNECKER, 1983, p. 116).
Portanto,
o Estado tem uma dupla função: técnico-administrativa e de dominação política. Esta última é a que define propriamente o Estado, sobredeterminando a função técnico administrativa, isto é, orientando-a, colocando-a a serviço da função de dominação política. Não há, portanto, tarefas técnico-administrativas com caráter neutro. (HARNECKER, 1983, p. 117).
Assim, chama-se “poder político” aquela capacidade de se utilizar o aparelho do
Estado para cumprir os objetivos políticos de classe dominante, que é, exatamente, o objetivo
fundamental da luta de classes (HARNECKER, 1983).
O caráter do Estado varia de acordo com o caráter das relações de produção. É
possível, pois, distinguir-se diferentes relações de produção: escravista, feudal, capitalista, etc.
(HARNECKER, 1983). Nos limites desses tipos de Estados, por sua vez, “podem ocorrer
diferentes formas de governo; por exemplo, dentro do tipo de Estado capitalista ou burguês
podem existir formas de governos que vão desde a república ‘democrática’ até a ditadura
militar”. (HARNECKER, 1983, p. 122).
25
toda pessoa ou grupo que se mova dentro das margens estreitas da ideologia dominante, em uma sociedade capitalista, tenderá a substituir o problema da natureza do Estado pelo das formas de governo, e deste modo se oculta a natureza de classe do Estado que é o problema essencial e decisivo. (HARNECKER, 1983, p. 122).
Lenin, quanto a natureza do Estado: “Um estado, seja ele qual for, não poderá ser
livre nem popular”. (LENIN, 2005, p. 39).
2.2.9 Superestrutura ideológica
A ideologia permeia invisivelmente todos os alicerces da sociedade, dando coesão
aos indivíduos em seus papéis e razão de ser às relações sociais da sociedade. Abrange um
sistema de ideias sob a forma de diversas representações do mundo e do papel do homem
nele, podendo conter elementos de conhecimento, mas predominam aqueles que têm por
função a adaptação à realidade (HARNECKER, 1983).
a ideologia impregna todas as atividades do homem, compreendendo entre elas a prática econômica e a prática política. Está presente nas atitudes em face das obrigações da produção, na ideia que os trabalhadores fazem do mecanismo da produção. Está presente nas atitudes e nos juízos políticos, no cinismo, na honestidade, na resignação e na rebelião. Governa os comportamentos familiares dos indivíduos e suas relações com os demais homens e com a natureza. Está presente em seus juízos acerca do “sentido da vida” e assim por diante. (HARNECKER, 1983, p. 102).
Pode-se enumerar, no campo ideológico: “as ideias políticas, jurídicas, morais,
religiosas, estéticas e filosóficas dos homens de uma determinada sociedade”.
(HARNECKER, 1983, p. 102).
Numa sociedade estratificada em classes, a ideologia tem a função de
assegurar a coesão dos homens na estrutura geral da exploração de classe. Destina-se a assegurar a dominação de uma classe sobre as demais, fazendo os exploradores aceitar suas próprias condições, de exploração como algo fundado na “vontade de deus', na “natureza”, ou no “dever moral” e assim por diante. (HARNECKER, 1983, p. 103-104)
26
A ideologia, assim, possui dupla serventia, na medida em que justifica a relação
social dos dois polos, isto é, a ideologia justifica a dominação ao dominado e ao dominador
(HARNECKER, 1983).
Apresentam-se regiões ideológicas distintas e relativamente autônomas, como a
moral, a religiosa, a jurídica, a política, a estética, a filosófica, sendo que, nas diferentes
sociedades, umas desenvolvem-se mais que outras (HARNECKER, 1983).
Conclui-se que
[...] a deformação da realidade própria ao conhecimento ideológico não se explica por uma espécie de “má consciência” ou “vontade de enganar” das classes dominantes, mas se deve fundamentalmente à necessária opacidade das realidades sociais que são estruturas complexas que, só podem chegar a ser conhecidas mediante uma análise científica dessas estruturas. (HARNECKER, 1983, p. 108).
A ideologia é um conhecimento deformado e falseado, que não é fruto da pura e
simples ignorância ou uma fantasia criada inteiramente por uma classe, mais que isso, é uma
necessidade de perpetuação das relações sociais inseridas na estrutura econômica
(HARNECKER, 1983). Sem receio, pode-se afirmar que “em uma sociedade de classes a
ideologia é sempre uma ideologia de classe, determinada, em seu conteúdo, pela luta de
classes, e que nela a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante”. (HARNECKER,
1983, p. 109). Afirmar, destarte, que toda ideologia é uma ideologia de classe é explicar que a
ideologia trabalha no sentido de preservar as relações sociais que concedem privilégios àquela
classe.
Althusser contribui com o conceito de “Aparelhos ideológicos de Estado”, que não se
confundem com o aparelho repressivo de estado, pois enquanto este funciona
predominantemente através da repressão, aquele funciona primordialmente através da
ideologia (ALTHUSSER, 1998). Pode-se considerar as seguintes instituições como aparelhos
ideológicos de Estado:
AIE religiosos, AIE escolar (o sistema das diferentes ‘escolas’ públicas e provadas), AIE familiar, AIE jurídico, AIE político (o sistema político, os diferentes partidos), AIE sinical, AIE de informação (a imprensa, o rádio, a televisão, etc...), AIE cultural (Letras, Belas Artes, esportes, etc...). (ALTHUSSER, 1998, p. 68).
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Mesmo que alguns dos aparelhos citados acima não possuam caráter público, a
própria distinção entre público e privado decorrem do direito burguês e é válido apenas onde
domina este. “O Estado, que é o Estado da classe dominante, não é público nem privado, ele é
ao contrário a condição de toda distinção entre público e privado”. (ALTHUSSER, 1998, p.
69).
todos os aparelhos ideológicos de Estado quaisquer que sejam, concorrem para o mesmo fim: a reprodução das relações de produção, isto é, das relações de exploração capitalistas. Cada um deles concorre para este fim único na maneira que lhe é própria. O aparelho político submetendo os indivíduos à ideologia política do Estado, a ideologia “democrática”, “indireta” (parlamentar) ou “direta” (plebiscitária ou fascista). O aparelho de informação despejado pela imprensa, pelo rádio, pela televisão doses diárias de nacionalismo, chauvinismo, liberalismo, moralismo, etc. O mesmo ocorre com o aparelho cultural (o papel do esporte no chauvinismo é de primeira importância), etc. O aparelho religioso lembrando nos sermões e em outras cerimônias do Nascimento, do Casamento e da Morte que o homem é cinza e sempre o será, a não ser que ame seu irmão ao ponto de dar a outra face àquele que primeiro a esbofetear. O aparelho familiar... Não insistamos. (ALTHUSSER, 1998, p. 78).
De todos os aparelhos ideológicos de estado, um desempenha o papel predominante
na sociedade atual: a escola. “[...] nenhum aparelho ideológico do Estado dispõe de tantos
anos da audiência obrigatória (e por menos que isso signifique gratuita), 5 a 6 dias num total
de 7, numa média de 8 horas por dia, da totalidade das crianças da formação social
capitalista”. (ALTHUSSER, 1998, p. 80).
2.2.10 Modo de produção e formação social
Modo de produção refere-se à totalidade social global em todos os seus níveis
estruturais (infraestrutura e superestrutura); é o conceito que permite pensar na totalidade
social (HARNECKER, 1983).
Todo modo de produção é constituído por uma estrutura global composta pelas três
estruturas já apresentadas: estrutura econômica (infraestrutura), e estruturas jurídico-políticas
e ideológicas (superestrutura). No âmbito dessas estruturas, em cada modo de produção, uma
domina as demais. Porém, em última instância, a estrutura econômica é a determinante. No
modo de produção capitalista, por exemplo, o nível econômico exerce o papel determinante
em última instância e o papel dominante na sociedade (HARNECKER, 1983).
28
no caso do modo de produção capitalista, sua reprodução está assegurada por leis inerentes à estrutura econômica. Isso não quer dizer que os elementos superestruturais estejam ausentes, mas que sua presença não é o elemento fundamental na reprodução do sistema. São as leis do desenvolvimento econômico capitalista (acumulação, reprodução ampliada, etc.) que determinam a forma em que se reproduz o sistema e lhe dão caráter específico. Os fatores superestruturais só intervêm de forma manifesta quando surgem obstáculos para o desenvolvimento destas lei. Esta seria a razão que permite afirmar que no modo de produção capitalista é a estrutura econômica que ocupa o lugar dominante na estrutura global do modo de produção. (HARNECKER, 1983, p. 137).
O conceito de “formação social”, por sua vez, é empregado para designar uma
totalidade social concreta historicamente determinada, na qual se encontra: uma estrutura
econômica complexa, coexistindo diversas relações de produção, uma delas dominante; uma
estrutura ideológica complexa, formada por diversas tendências ideológicas, uma delas
dominante; uma estrutura jurídico-política complexa, desempenhando a função de dominação
da classe dominante (HARNECKER,1983).
o conceito de modo de produção se refere a uma totalidade social abstrata (capitalista, servil, escravista, etc.). O conceito de formação social se refere a uma totalidade social concreta. Esta não é uma combinação de modos de produção, de totalidades sociais abstratas ou ideais; é uma realidade concreta, historicamente determinada, estruturada a partir da forma em que se combinam as diferentes relações de produção coexistentes a nível da estrutura econômica. (HARNECKER, 1983, p. 141).
2.2.11 Classes sociais e luta de classes
Conforme o já tratado ao longo das últimas páginas, “em todo modo de produção no
qual existem relações de exploração apresentam-se dois grupos sociais antagônicos”.
(HARNECKER, 1983, p. 156).
Lenin, em texto datado de 1919, conceituou de forma bastante didática a expressão
“classe social”:
chama-se classes a grandes grupos de pessoas que se diferenciam entre si pelo seu lugar num sistema de produção social historicamente determinado, pela sua relação (as mais das vezes fixada e formulada nas leis) com os meios de produção, pelo seu papel na organização social do trabalho e,
29
consequentemente, pelo modo de obtenção e pelas dimensões da parte da riqueza social de que dispõem. As classes são grupos de pessoas, um dos quais pode apropriar-se do trabalho do outro graças ao fato de ocupar um lugar diferente num regime determinado de economia social. (LENIN, 1919).
A luta de classes tem ditado a história de todas as sociedades:
homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, membro das corporações e aprendiz, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em contraposição uns aos outros e envolvidos em uma luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre com a transformação revolucionária da sociedade inteira ou com o declínio conjunto das classes em conflito. (MARX; ENGELS, 2008, p. 8).
O conceito de luta de classes, amplamente difundido pelo pensamento marxista, e de
vital importância para o presente trabalho, define-se como o “confronto que se produz entre
duas classes antagônicas quando lutam por seus interesses de classe”. (HARNECKER, 1983,
p. 184).
Esse incessante embate entre classes antagônicas e irreconciliáveis sepultou as que
não resistiram e criou outras em seu lugar. A época atual, que marcou a consolidação da
burguesia como classe dominante, “caracteriza-se, contudo, por ter simplificado os
antagonismos de classe. Toda a sociedade se divide, cada vez mais, em dois grandes campos
inimigos, em duas grandes classes diretamente opostas: a burguesia e o proletariado”.
(MARX; ENGELS, 2008, p. 9).
por burgueses entende-se a classe dos capitalistas modernos que são proprietários dos meios sociais de produção e utilizam o trabalho assalariado. Por proletários, a classe dos modernos trabalhadores assalariados que, não possuindo meios de produção, dependem da venda de sua força de trabalho para sobreviver. (MARX; ENGELS, 2008, p. 66).
Portanto, todos aqueles que não são proprietários dos meios sociais de produção são,
por terem apenas sua força de trabalho como produto a ser vendido para ter acesso aos seus
meios de subsistência, consequentemente, proletários. A burguesia “transformou o médico, o
jurista, o sacerdote, o poeta e o homem de ciência em trabalhadores assalariados”. (MARX;
ENGELS, 2008, p. 13).
A luta de classes pode aparecer em germe, em determinadas fases de
desenvolvimento, como nas lutas isoladas entre operários e patrões ou nas lutas que, embora
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compreendendo toda a classe, não atingem os interesses desta. Dá-se, tal embate, nos três
níveis estruturais da estrutura social global, assim, pode-se falar em: luta econômica; luta
ideológica; e luta política (HARNECKER, 1983).
A luta econômica é produzida na estrutura econômica em torno da resistência das
classes exploradas buscando condições favoráveis. A luta ideológica, sob a qual ocorrem os
embates da ideologia da classe exploradora e a da classe explorada. A luta política, por fim, é
aquela travada em torno da luta pelo poder político, o que quer dizer apoderar-se do Estado.
Os três tipos de luta de classe não o são se separados, tão só fundidas constituem a luta de
classes propriamente dita (HARNECKER, 1983).
A luta de classes, em cada um dos tipos descritos pode assumir diversas formas, de
acordo com a conjuntura social: legal ou ilegal, pacífica ou violenta (HARNECKER, 1983).
[...] na frente econômica – greves, marchas de fome, diminuição do ritmo de trabalho, ocupação de fábricas e assim por diante. Na frente ideológica: publicações, emissões de rádio e televisão de orientação revolucionária; utilização revolucionária das concentrações políticas e campanhas eleitorais etc. Na frente política: luta eleitoral, insurreição armada, guerra popular (com suas diferentes formas: guerra de guerrilhas, guerra de posições e guerra de movimentos), e assim por diante. (HARNECKER, 1983, p. 187-188).
É importante delimitar, também, os conceitos de interesse de classe e consciência de
classe.
2.2.12 Interesse de classe, consciência de classe e posição de classe
Os interesses de classe propriamente ditos não se confundem com os interesses
espontâneos imediatos de uma classe: conseguir melhorias em seu bem estar, a solução de um
mal atual, melhor participação na distribuição; ou seja, são estes interesses limitados e
influenciados pela ideologia dominante, que fazem nunca alcançar o fundo do problema. O
proletariado, tomando por exemplo o modo de produção capitalista, nos termos de seus
interesses imediatos, não consegue avançar além da luta puramente reformista na superfície
do sistema (HARNECKER, 1983).
Os interesses de classe, aqueles que representam realmente as aspirações de
determinada classe, são os interesses estratégicos a longo prazo, aqueles que que surgem da
situação própria de cada classe na estrutura econômica (HARNECKER, 1983). “O interesse
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estratégico da classe dominante a longo prazo é perpetuar sua dominação; o da classe
dominada é destruir o sistema de dominação”. (HARNECKER, 1983, p. 166). Tomando
novamente por exemplo o modo de produção capitalista: “O interesse estratégico do
proletariado, por exemplo, é destruir o sistema de produção capitalista, origem de sua
condição de explorado, destruindo aquilo que é seu fundamento: a propriedade privada dos
meios de produção”. (HARNECKER, 1983, p. 166).
Muito embora os interesses estratégicos sejam os verdadeiros interesses de classe na
concepção materialista histórica, estes só se podem fazer compreender à classe partindo-se
dos interesses espontâneos imediatos (HARNECKER, 1983).
A consciência de classe encontra-se diretamente ligada ao conceito de interesse de
classe: “um indivíduo ou grupo social tem consciência de classe quando está consciente de
seus verdadeiros interesses de classe” (HARNECKER, 1983, p. 168).
Insere-se aqui, em grande proporção, a estrutura ideológica da sociedade, justamente
para impedir que os integrantes da classe dominada tomem consciência de suas existências
como integrantes de sua classe, e não passem a agir de acordo com seus interesses de classe.
Posição de classe, é, assim, a tomada de partido por uma classe em determinada
conjuntura política, que nem sempre corresponde ao interesse de classe (HARNECKER,
1983).
32
3 BREVE ANÁLISE MATERIALISTA HISTÓRICA DA FORMAÇÃO SOCIAL
BRASILEIRA
É o conceito de Estado explicitado anteriormente que se buscará sucintamente
identificar, como demanda a brevidade do presente trabalho, diante da construção do Brasil
desde que a história se debruçou sobre essas terras. Principalmente através das obras clássicas
da historiografia brasileira.
A história do Brasil não começou, ou recomeçou do zero, em 1988. A história
brasileira remonta aos primórdios da época colonial em que foram edificadas as bases da
sociedade vigente. Desta forma, o cenário atual em desconformidade com o proposto pela
carta constitucional de 1988, só poderia ser incompreendido, ou parcialmente compreendido,
partindo-se do estudo da promulgação da constituição sem que se levasse em conta o processo
através do qual a sociedade brasileira se formou. Com este intuito, este capítulo visa à
elaboração do mínimo conhecimento acerca do processo histórico que formou o Brasil
contemporâneo.
3.1 A CONSTRUÇÃO SÓCIO-ECONÔMICA DO BRASIL: APONTAMENTOS
A época dos “descobrimentos” nada mais é do que um capítulo da história do
comércio europeu:
tudo o que se passa são incidentes da imensa empresa comercial a que se dedicam os países da Europa a partir do séc. XV e que lhes alargará o horizonte pelo oceano afora. Não tem outro caráter a exploração da costa africana e o descobrimento e a colonização das Ilhas pelos portugueses, o roteiro da Índias, o descobrimento da América, a exploração e ocupação de seus vários setores. É sempre como traficantes que os vários povos da Europa abordarão cada uma daquelas empresas que lhes proporcionarão sua iniciativa, seus esforços, o acaso e as circunstâncias do momento em que se achavam. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 14).
Portugal havia desenvolvido, até então, o chamado capital comercial com o qual
obtinha seus lucros através da troca de mercadorias, as quais transportava aos mercados
consumidores da Europa. Dessa atividade mercantil, diante de sua inerente necessidade de
contínuas descobertas de novos produtos a serem comercializados e novos consumidores para
33
seus produtos, deu-se a expansão marítima que caracterizou os séculos XV e XVI, da qual
resultou a descoberta das terras hoje brasileiras (SODRÉ, 1979).
A colônia brasileira assumiu desde logo o aspecto de empresa comercial destinada a
exploração de seus recursos naturais em proveito do comércio europeu (PRADO JÚNIOR,
1986).
A economia do período colonial caracteriza-se por ser
altamente especializada e complementar à economia metropolitana. Esta complementaridade traduz-se num determinado padrão de comércio: exportam-se produtos coloniais e importam-se produtos manufaturados e, no caso de economias fundadas na escravidão negra, escravos. [...] esse padrão de comércio efetiva-se através do monopólio de comércio pela burguesia comercial metropolitana, do exclusivo metropolitano, como então era chamado. (CATANI, 1999, p. 62-63).
No contexto da época na qual se insere o descobrimento e o colonialismo da América
por parte dos Estados europeus o que se almejava eram os dividendos que as explorações dos
horizontes marítimos poderiam render junto à atividade mercantil. Pensamento natural a
qualquer dispêndio econômico: lucro. A Europa viu o “novo mundo” como quem encontra
um poço de petróleo.
A colonização moderna se insere no processo de constituição do modo de produção
capitalista (CATANI, 1999). “Absolutismo, sociedade estamental, capitalismo comercial,
política mercantilista, expansão ultramarina e colonial são partes de um todo, interagem
reversivamente nesse complexo que se poderia chamar Antigo Regime”. (CATANI, 1999, p.
63). Isso posto, o colonialismo foi grande propulsor da acumulação primitiva que permitiu a
consolidação do modo de produção capitalista na formação social europeia1.
A formação social portuguesa, na época dos descobrimentos, passava já pela
transição gradual do modo de produção feudal ao capitalista. Segundo Marx, a acumulação
primitiva é o ponto de partida para o modo de produção capitalista. “É sabido o grande papel
desempenhado na verdadeira história pela conquista, pela escravização, pela rapina e pelo
assassinato, em suma, pela violência”. (MARX, 2001. p. 828). A acumulação primitiva, em
1 “se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde, ouro e diamante; depois algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais do que isto. […] Este início, cujo caráter manter-se-á dominante através dos séculos da formação brasileira, gravar-se-á profunda e totalmente nas feições e na vida do país. Particularmente na sua estrutura econômica. E prolongar-se-á até nossos dias, em que apenas começamos a livrar-nos deste longo passado colonial”. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 23).
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curso na época, consiste no “processo histórico que dissocia o trabalhador dos meios de
produção. É considerada primitiva porque constitui a pré-história do capital e do modo de
produção capitalista”. (MARX, 2001, p. 828).
Portanto, a reinvenção do escravismo e servilismo nas colônias foi a mola propulsora
que impulsionou o modo de produção capitalista na Europa. O retrocesso é ingrediente
indispensável ao progresso (CATANI, 1999).
A primeira vantagem econômica que o Brasil propiciou ao mercado europeu –
legalmente aos Portugueses cujas terras foram concedida pelo tratado de Tordesilhas e a bula
papal que dividia o novo mundo entre Portugal e Espanha – foi o Pau-Brasil.
Concorrentemente, de forma clandestina, sabe-se que os franceses também traficaram de
forma frequente essa abundante mercadoria da costa brasileira. Tal exploração pode se dar
com facilidade diante da mão de obra indígena também abundante na região que podia ser
adquirida por um preço irrisório: miçangas, tecidos, facas e outros objetos de valor ínfimo
garantiam a adesão do Índio à empreitada comercial. Assim, a mercadoria podia ser vendida a
um preço relativamente alto na Europa, tendo em vista que o trabalho de extração era
particularmente barato (PRADO JÚNIOR, 1986).
Utilizaram a força de trabalho dos povos nativos nos primeiros períodos, pois, a
princípio, não ocorreram grandes embates bélicos, o que é explicado pela não conflitância
imediata entre os interesses portugueses e os dos indígenas. O acordo de trabalho entre eles
era bastante singelo, e os indígenas trabalhavam em troca de objetos de valor não condizente
ao de sua força de trabalho. Não eram assalariados, pois não dependiam do que recebiam pelo
trabalho para sobreviver, trabalhavam para os portugueses esporadicamente. Não estavam,
pois, privados dos seus meios de subsistência, dos quais podiam usufruir comunalmente.
Assim, não estavam obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver, utilizavam-na
na produção no interior das relações de produção tribais e só eventualmente trocavam-na
pelos objetos lusitanos.
Como dito, a formação social portuguesa passava pelo processo de acumulação
primitiva do capital, sob a qual se reestruturava em torno do novo modo de produção,
desvinculando o produtor dos meios de produção, fazendo-os vender sua força de trabalho
para sobreviver. A economia colonial, como instrumento de acumulação primitiva de capital,
devia estabelecer relações de produção – no caso, de exploração – que permitissem a
produção de excedentes altamente lucrativos, a criação de mercados coloniais para o
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escoamentos das mercadorias da metrópole e, além disso, o lucro dessas atividades deviam ser
apropriados em sua quase integralidade pela burguesia metropolitana. A produção colonial, da
mesma forma, não poderia competir com a metropolitana, deveria apenas complementá-la
com gêneros agrícolas e metais preciosos (CATANI, 1999).
Como o objetivo primordial da empresa colonial era o lucro mercantil, a força de
trabalho deveria ser a mais barata possível, ao mesmo tempo em que compulsória (servil ou
escrava), pois não estavam dadas ainda as condições de se implementar o trabalho
“voluntário” a níveis lucrativos, pois:
havendo abundância de terras apropriáveis, os colonos contariam com a possibilidade de produzir a própria subsistência, transformando-se em pequenos proprietários e, especialmente, em posseiros. Em tais condições, obter produção mercantil em larga escala significava assalariar a sua força de trabalho, o que exigiria que os salários oferecidos fossem suficientemente elevados para compensar aos olhos dos colonos, a alternativa da auto-subsistência. Assim sendo, o trabalho compulsório era mais rentável que o emprego de trabalho assalariado. Além disso, o tráfico negreiro abriu um setor do comércio colonial altamente rentável e representou poderosa alavanca à acumulação de capitais. (CATANI, 1999, p. 64-65).
O monopólio do comércio, exercido pela metrópole, era o mecanismo fundamental
que possibilitava a transferência dos excedentes à burguesia comercial metropolitana, assim,
rebaixava-se ao máximo o preço do produto adquirido da colônia e vendia-se ao máximo
preço à colônia o que vinha da metrópole (CATANI, 1999).
A corte portuguesa comerciava por intermédio de empresários privados com suporte
do aparelho estatal (FAORO, 2004):
o sistema armava-se em três lados: o rei concessionário e garante da integridade do comércio, com suas armadas e suas forças civis de controle do território; o contratador, armador de naus, vinculado aos financiadores europeus, interessados, por sua vez, na redistribuição da mercadoria na Europa; e o estabelecimento americano, a feitoria, de velha tradição, largamente utilizada na Índia e na África, reduzida, no Brasil, a apenas abrigos para reunião e proteção das diferentes mercadorias à espera de transporte. Com estes três elementos – o político, o comercial e o territorial – articula-se mais um elo na expansão marítima e comercial europeia, cujo molde remonta à Idade Média, com a precedência de venezianos e genoveses. (FAORO, 2004, p. 105-106).
Porém, o sistema de feitorias, em mãos dos arrendatários, “não protegia a conquista
contra a cobiça internacional, inconformada em ser excluída do testamento de Adão, lavrado
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pelo papa em favor da península ibérica. O Estado […] veio em socorro do seu negócio”.
(FAORO, 2004, p. 102). Com o intuito principal de manter sob seu poder as novas terras,
procedeu-se a efetiva ocupação das terras pela colonização propriamente dita.
A ocupação era uma tarefa complicada à metrópole uma vez que pouquíssimas
pessoas se interessavam em se tornar colonizadores das novas terras, primeiro porque as
atenções de Portugal estavam voltadas ao oriente onde o comércio atingia seu apogeu, e
segundo, a população já debilitada do Reino, na época, não suportaria um considerável êxodo.
Desta forma, a solução encontrada pela corte foi conferir aos colonizadores boas vantagens
para que aceitassem a empreitada, no caso, o poder soberano das novas terras. Mesmo assim,
entre os que aceitaram a tarefa, não figurava nenhum grande nome da nobreza ou do alto
comércio de Portugal, mas indivíduos de pouca expressão social e econômica (PRADO
JÚNIOR, 1986)2.
A partir do momento que se tornou severamente incômoda a presença dos Índios,
quando Portugal tomou a posição de efetiva colonização, mesmo que por motivos outros que
não necessariamente a colonização, os embates passaram a ser frequentes e violentos. Aliás,
Índios nas Américas tecnicamente nunca existiram. Os “Índios” que aqui viviam nunca foram
Índios. Nunca se viram como uma unidade “Índios” e nunca se denominaram como tal, sequer
por nomenclatura equivalente. Cada tribo possuía sua própria estrutura social e étnica. Os
integrantes de determinadas tribos diferenciavam-se, inclusive, fisicamente dos de outras. De
qualquer forma, o interesse português nas recém-encontradas terras virgens e os lucros que
poderiam proporcionar não tinha vertentes humanistas, nem teriam atravessado o oceano
atlântico para fazer uma pesquisa etnográfica. Os olhos etnocêntricos, sedentos de pilhagem e
luxúria, viu apenas “Índios”, humanoides simiescos inconvenientes e facilmente liquidáveis.
Da mesma forma que praticamente a totalidade dos povos que viviam no “novo mundo”, que
para os quais era apenas o “único mundo”, foram “retirados” da propriedade portuguesa.
Como que esbulhada, nos termos jurídicos de hoje, a Coroa portuguesa viu-se no direito de
ver sua propriedade reintegrada. Com a chancela do Clero, o qual ainda hoje mantém uma
posição de poder sobre a sociedade – não por coincidência existam ainda slogans como
“Tradição, Família e Propriedade” e marchas da família, com deus, pela liberdade – o direito
2 “o plano, em suas linhas gerais, consistia no seguinte: dividiu-se a costa brasileira […] em doze setores lineares com extensões que variavam entre 30 e 100 léguas. Estes setores chamar-se-ão capitanias, e serão doadas a titulares que gozarão de grandes regalias e poderes soberanos; caber-lhes-á nomear autoridades administrativas e Juízes em seus respectivos territórios, receber taxas e impostos, distribuir terras, etc”. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 32).
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à propriedade se fez. Como eram apenas posseiros, e a posse pacífica e ininterrupta por
milhares de anos não gerava o direito de usucapir seu lar, não tinham o título de propriedade
da terra, esta dada pela lei divina, pelos despachantes da fé, únicos que conhecem e têm
acesso ao cartório de deus. Deu-se, nessa época, a primeira reintegração de posse da história
do Brasil, muitas ainda viriam, tão violentas quanto e sob o mesmo embasamento jurídico3.
A colonização das novas terras exigiu por parte de Portugal a implementação de uma
atividade produtiva no novo território que deveria ser viável de acordo com as condições
dadas (SODRÉ, 1979)4.
O gênero eleito por Portugal, por considerá-lo mais propício ao Brasil foi o açúcar,
em grande parte por ser já tradicional produtor deste gênero e possuir bom mercado
consumidor na Europa. Porém, a coroa portuguesa não detinha os recursos necessários para
tal empreitada em condições de semelhante adversidade, logo, entendeu por delegar a
particulares que possuíssem recursos para tanto. Não havendo quem consumisse no Brasil, a
produção deveria se voltar para a exportação, desenhou-se, assim, em larga escala, por ser a
única forma economicamente viável nas condições brasileiras. Logo, a força de trabalho
deveria ser abundante para se produzir um gênero agrícola em larga escala (SODRÉ, 1979).
Desta forma, com a grande propriedade rural e a demanda por uma quantidade de
mão de obra fez instalar-se no Brasil o trabalho escravo5. Apesar de ter inicialmente
explorado em larga escala o trabalho indígena na extração do Pau-Brasil, estes não se
ofereciam com a mesma facilidade ao trabalho na cultura do açúcar. Em grande medida
porque os índios, por sua cultura nômade, não se adaptavam satisfatoriamente ao regime
3 “o selvagem americano devia ser subjugado, para se integrar na rede mercantil, da qual Portugal era o intermediário. Sem esta providência perder-se-ia o pau-brasil, e, sobretudo, a esperança dos metais preciosos se desvaneceria. Ainda uma vez, a atividade oficial, pública, da realeza assentaria o novo esquema, do qual o açúcar é um resultado, não a inspiração”. (FAORO, 2004, p. 107). 4 “não se tratava de produzir qualquer coisa, mas sim de produzir um gênero que a terra, largamente disponível, estivesse em condições de fornecer, pelas suas exigências ecológicas; que fosse tradicionalmente aceito no mercado consumidor europeu; que estivesse na experiência portuguesa e que fosse susceptível, pelo seu volume e pelo seu valor, de superar outros impedimentos, como o das distâncias e do frete correspondente, o da força de trabalho e o do investimento inicial, particularmente destinado a assegurar a continuidade da ocupação entre o momento da chegada dos elementos humanos destinados à produção e o início da produção”. (SODRÉ, 1979, p. 16). 5 “[...] só a escravidão pode permitir que essa numerosa força de trabalho seja subordinada às exigências da grande produção. E não a escravidão indígena, que nem é numeroso nem acomodado ao trabalho obrigado e sedentário, mas a escravidão do africano, deslocado de seu continente de origem e objeto de tráfico, convertido ele próprio em mercadoria, a mais cara do tempo”. (SODRÉ, 1979, p. 17).
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sedentário da agricultura, e, também, pela sua melhor compreensão do valor das
quinquilharias com que os portugueses pagavam seu trabalho, o que acabou por diminuir o
lucro do negócio. Desta forma, também o índio passou a ser escravizado, já que se recusava a
trabalhar livremente por quase nada. Neste contexto, muitos foram os conflitos bélicos
travados pelos colonos e a população nativa que, por se tratarem de povos guerreiros, nada
temiam. As bandeiras surgem com esse interesse, buscar a maior quantidade possível dos
índios, que fugiam para o interior na tentativa de preservar suas vidas, para usá-las como mão
de obra escrava, mesmo que de menor produtividade em comparação à africana que realmente
propulsionará a economia açucareira (PRADO JÚNIOR, 1986).
Muito embora o Brasil fizesse parte da consolidação capitalista na Europa o modo de
produção que predominou na formação social brasileira foi o escravista. A formação de um
Estado escravista no Brasil é justificada pela conjuntura sócio-econômica encontrada aqui.
Não havia a propriedade privada das terras, tal status quo não impedia que a natureza fosse
utilizada para a obtenção dos meios de subsistência, esta condição, como já apontada, fere o
pressuposto essencial do capitalismo. Com amplas terras desabitadas e acesso livre à natureza,
uma mão de obra lucrativa só se pode impor sob violência e rígido sistema de vigilância.
No negócio açucareiro a metrópole se limitava à circulação dos produtos, mas de
nenhuma forma na produção. Assim, a coroa desvinculava-se da produção, onde a grande
parte da onerosidade recaía, para reservar-se a circulação, onde a maior parte da renda se
concentrava. Decorre que, como a coroa portuguesa não interferia na produção, delegava aos
produtores, também os poderes administrativos e políticos, tornando os senhores da terra
autoridades públicas. Os Donatários eram, também, incumbidos da defesa da colônia,
destarte, exerciam o poder militar, eram ao mesmo tempo governador e capitão. Exerciam a
tutela da ordem social e soberania da colônia por conseguinte. Tinham por incumbência,
igualmente, a expansão territorial inerente ao colonizador e o consequente extermínio das
tribos indígenas inconvenientes (SODRÉ, 1979).
Portanto, o poder militar encontrava-se nas mesmas mãos que detinham o poder
econômico e político: a metrópole em última instância. O aparato repressivo do Estado
lusitano, sendo pois o Brasil território deste, era delegado aos possuidores dos meios de
produção aqui instalados, estando todo o resto do que aqui existia, subordinado a eles6.
6 “ocupar, povoar trabalhar, era pois um mister que exigia esforço armado, vigilância constante, atribulações continuadas, mobilização permanente. Não é de surpreender, assim, que a organização mais ampla e mais estável tenha sido a das ordenanças, em que os povoadores eram postos em armas e
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O caráter capitalista comercial da colonização brasileira era nítido. O sistema de
capitanias, significou um aperfeiçoamento do sistema de feitorias, que em seu conjunto
mostrava-se como um incremento da empresa comercial de exploração dos recursos naturais
(FAORO, 2004). “A capitania seria um estabelecimento militar e econômico, voltado para a
defesa externa e para o incremento de atividades capazes de estimular o comércio português”.
(FAORO, 2004, p. 117).
A capitania tinha o caráter inalienável, indivisível e plenamente hereditário, o capitão
era o representante legítimo dos poderes reais, entre os quais era prerrogativa sua a
distribuição das terras aos moradores que as deviam cultivar sob regime semelhante ao das
sesmarias. Nesse contexto, podiam os colonos, sob o rígido regime de concessão de utilização
das terras, exercer a agricultura, o comércio e a indústria, porém, excluíam-se de suas
possíveis atividades as “[...] moendas e engenhos, bem como dos monopólios reais, como o
pau-brasil, escravos, especiarias e drogas, expressa, desde logo, a reserva do quinto dos
metais e pedras preciosas”. (FAORO, 2004, p. 118).
As decisões políticas de nomeações que não cabiam ao rei, nem ao donatário, eram
tomadas pelos sesmeiros, nesse sentido os cargos políticos das câmaras locais eram
escolhidos pelos chamados homens bons, cujo conceito abrangia a todos, menos os operários,
os mecânicos, os degredados, os judeus e os estrangeiros, ou seja, “homens bons eram todos
os que exploravam o trabalho alheio; os que do seu viviam eram livres ou escravos: nem os
primeiros entravam naquele rol”. (SODRÉ, 1979, p. 31).
agremiados para o combate em conjunto. O caráter dos estabelecimentos coloniais, na tarefa preliminar de apossamento das terras, de expulsão dos habitantes primitivos e ainda de sua escravização em muitos casos, fazendo do índio capturado o escravo da lavoura e fazendas de criação, ou o servo, neste último caso principalmente, impunha essa mobilização, adrede prevista e preparada. A propriedade assemelha, por isso mesmo, a uma fortaleza, o engenho é quase sempre uma casa-forte, amuralhada, com as suas grossas paredes protetoras, dominando a paisagem como um castelo roqueiro por vezes. E as povoações parecem burgos medievais, com os seus muros, valos, cercados e fortificações. E os povoadores se organizam em bandos armados, como no medievalismo, com o senhor de terras à frente. [...] o grosso da tropa é de índios, na maioria das vezes, enquadrados apenas por uns poucos colonizadores, por eles ajudada com armas, e ajudando-os com sua técnica específica de combate, a sua agudeza no conhecimento das manhas do adversário, a sua experiência, o seu conhecimento da terra. São, também muitas vezes, índios contra índios, dilacerando-se e destruindo-se em benefício dos dominadores portugueses. [...] É sobre essa organização militar improvisada sob a necessidade do meio e calcada na sua estrutura social e econômica que repousa a segurança e a obra de estabelecimento e de expansão do colonizador. Assim, ele consegue levantar engenhos, ao longo da costa e à beira dos rios, cativar indígenas para as suas lavouras ou para o tráfico, proporcionar espaço para as suas criações de gado, destruir aldeamentos transitórios da indiada ou arrasar reduções jesuíticas. Assim, começa a gerar um tipo de organização militar específico da colônia, que espelha de alto para baixo a forma de exploração aqui estabelecida e a posição relativa das classes nessa obra. (SODRÉ, 1979, p. 25-26).
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De acordo com o crescimento da população colonial e a procura desta de outras
atividades econômicas para se ocupar, surgem importantes restrições com o intuito de impedir
a produção de determinados gêneros que não interessassem à metrópole ou que fizessem
concorrência a esta (PRADO JÚNIOR, 1986). O que a metrópole aspirava era que a colônia
fosse
uma simples produtora e fornecedora de gêneros úteis ao comércio metropolitano e que se pudessem vender com grandes lucros nos mercados europeus. Este será o objetivo da política portuguesa até o fim da era colonial. E tal objetivo ela o alcançaria plenamente, embora mantivesse o Brasil, para isto, sob um rigoroso regime de restrições econômicas e opressão administrativa; e abafasse a maior parte das possibilidades do país. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 55).
No seu período colonial, o Brasil se assemelha a uma empresa capitalista, com suas
particularidades, cujo proprietário era o Reino de Portugal que aqui empregava seu capital
humano e econômico além do aparato repressivo do estado, necessário para a manutenção
desse status quo colonial, e com isso esperava arrecadar os lucros desejados de seus
investimentos.
Na fase colonial em que o mercantilismo da extração e da cultura do açúcar as forças
militares irregulares e semi-regulares das bandeiras e ordenanças satisfaziam o interesse de
manutenção dessa ordem da classe dominante colonial, porém, com a descoberta de metais
preciosos, os interesses da metrópole se modificam, a fim de arrecadar para si a maior
quantidade de riquezas (SODRÉ, 1979). Portugal não mais apenas comercia, mas também
passa a se dedicar à produção, o que imperiosamente demandou a implantação de um largo
aparelho estatal, principalmente no que se refere às atividades de fisco, justiça e milícias, estas
últimas com um caráter especificamente repressor7. Os quadros militares deveriam, agora
centralizar-se em elementos de confiança, no que as ordenanças perderam espaço às milícias
(SODRÉ, 1979).
7 “[...] a organização militar, que repousava na ordem privada, na confusão desta com a ordem pública, no provimento dos postos pelos elementos da classe dominante colonial, passa inteiramente ao controle da metrópole e assume o aspecto repressivo que tão bem a caracteriza na época do ouro. É uma força destinada a fiscalizar o povo, a vigiar as suas ações , a reprimir qualquer manifestação de rebeldia, – é uma força contra o povo. [...] Para exercer a sua dominação, a metrópole tem agora a necessidade da violência”. (SODRÉ, 1979, p. 50).
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As necessidades da classe dirigente institucionalizada determinam as estruturas sob
as quais o aparato repressivo do Estado se organizará e exercerá, sob o aspecto militar8.
Na época das grandes minerações as atividades mineradoras da colônia passaram a
um regime especial mais minucioso e rigoroso de disciplina, o sistema se organizava da
seguinte forma:
[...] para dirigir a mineração, fiscalizá-la e cobrar tributo (o quinto, como ficou denominado), criava-se uma administração especial, a intendência de Minas, sob a direção de um superintendente; em cada capitania em que se descobrisse ouro, seria organizada uma destas intendências que independia inteiramente de governadores e quaisquer outras autoridades da colônia, e se subordinava única e diretamente ao governo metropolitano de Lisboa. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 57).
Dentre as medidas tomadas para a rentabilidade à metrópole do negócio minerador,
cuja fiscalização era muito difícil, tendo em vista a criatividade para a sonegação, foi proibida
a circulação do ouro que não estivesse na forma de barras com o selo real. Para isso, criou-se
as casas de fundição que recolhia todo o ouro extraído procedendo a fundição e a dedução do
quinto, produzindo as barras quintadas que então podiam circular livremente. Quem fosse
encontrado com ouro em formas diferentes das barras quintadas era severamente punido, da
perda de todos os bens até o degredo perpétuo às colônias africanas de Portugal (PRADO
JÚNIOR, 1986).
Apesar de todo o esforço no sentido de desestimular o tráfico ilegal do ouro, tais
medidas foram ainda insatisfatórias:
8 “nas áreas em que se estabelece a agricultura, o inimigo é ou o indígena, que é preciso desalojar ou escravizar, para o que o colonizador se vale de sua superioridade em meios materiais, armas em particular, e do divisionismo estabelecido entre as tribos; e o pirata, que investe do exterior, e para deter suas investidas organiza-se o recrutamento baseado na ordem privada, na contribuição obrigatória da população, que se organiza nas Ordenanças, ao comando dos próprios senhores de terras e de escravos, com reforço eventual de expedições metropolitanas, pertencendo à metrópole sempre as operações no mar, e levantando-se progressivamente, a rede de fortificações, particularmente para a defesa de portos por onde a produção se escoa para o exterior. Com a mineração o inimigo passa a ser outro: passa a ser o próprio povo, que sofre da tributação extorsiva, enquanto permanece a ameaça de investida externa, no litoral, e aparece uma zona de conflito permanente, no sul pastoril. A organização militar reflete essa transformação pela intervenção agora do poder público, pela organização das Milícias numerosas, com as discriminações dos elementos coloniais, com o serviço permanente, enquanto surgem as forças vindas da metrópole, regimentos inteiros deslocados para a colônia. [...] As Milícias, que crescem extraordinariamente com a mineração, assumem caráter permanente, absorvidas nas missões próprias ao policiamento, à vigilância e à repressão que começa a definir-se nas inconfidências, preludiando a autonomia: a força militar tende a antagonizar-se com a população”. (SODRÉ, 1979, p. 59-60).
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[...] para obviar os descaminhos que apesar de toda fiscalização ainda se verificassem, fixou-se uma certa quota anual mínima que o produto do quinto devia necessariamente atingir. Esta quota, depois de algumas oscilações, foi orçada em 100 arrobas (cerca de 1.500 quilos). Quando o quinto arrecadado não chegava a estas 100 arrobas, procedia-se ao derrame, isto é, obrigava-se a população a completar a soma. Os processos para consegui-lo não tinham regulamento especial. Cada pessoa, minerador ou não, devia contribuir com alguma coisa, calculando-se mais ou menos ao acaso suas possibilidades. Criavam-se impostos especiais sobre o comércio, casa de negócio escravos, trânsito pelas estradas, etc. Qualquer processo era lícito, contanto que se completassem as 100 arrobas do tributo. Pode-se imaginar o que significava isto de violências e abusos. Cada vez que se decretava um derrama, a capitania atingida entrava em polvorosa. A força armada se mobilizava, a população vivia sob o terror; casa particulares eram violadas a qualquer hora do dia ou da noite, as prisões se multiplicava. Isto durava não raro muitos meses, durante os quais desaparecia toda e qualquer garantia pessoal. Todo mundo estava sujeito a perder de uma hora para outra sues bens, sua liberdade, quando não sua vida. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 58-59).
O Estado cultiva, pois, uma relação direta de proporcionalidade, em sua atuação,
com os interesses de classe dominante. Desnuda-se diante da transcrição acima as intenções
puramente econômicas de Portugal perante a sua colônia. Era o Brasil propriedade da coroa,
devendo qualquer um que aqui vivesse contribuir com a manutenção da metrópole. Mesmo
que nessa época já serem maioria os brasileiros natos, já não se tratava, portanto, de um
arrendamento de terras como a dos primeiros colonizadores, mas de uma identificação
materna como a dos indígenas despojados para com estas terras.
A mineração no Brasil se desenvolveu colocando de lado as demais atividades da
colônia, principalmente a agricultura, o que, por outro viés, possibilitou a colonização do
centro do continente até então inexplorado (PRADO JÚNIOR, 1986).
Já na última parte do século XVIII, com o declínio da mineração – em grande parte
pela exaustão das jazidas e o baixo conhecimento técnicos dos mineradores – a agricultura
volta ao plano de destaque na colônia. Agora o açúcar dividia espaço com o algodão como
principal expoente da economia brasileira, que possuía grande mercado na Europa (PRADO
JÚNIOR, 1986).
Caio Prado Júnior sintetiza a natureza econômica da colonização brasileira como
uma
[...] empresa mercantil exploradora dos trópicos e voltada inteiramente para o comércio internacional, em que, embora peça essencial, não figura senão como simples fornecedora dos gêneros de sua especialidade. Nos diferentes aspectos e setores da economia brasileira constatamos repetidamente o fato, que pela sua importância primordial merece tal destaque, pois condicionou inteiramente a
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formação social do país. Observamo-lo no povoamento, constituído, ao lado de uma pequena minoria de dirigentes brancos, da grande maioria de outras raças dominadas e escravizadas, índios e negros africanos, cuja função não foi outra que trabalhar e produzir açúcar, tabaco, algodão, ouro e diamantes que pediam os mercados europeus. [...] Cerca de dois terços da exportação do Reino para outros países se fazia com mercadorias da colônia; e os dados conhecidos não incluem o ouro e os diamantes [...]. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 118-119)
Desta forma, com o surgimento do capitalismo industrial em substituição ao
capitalismo mercantil, em meados do século XVIII, o sistema colonial que representava o
exclusivismo do comércio da colônia com a metrópole entra em declínio. A indústria
capitalista fundada na produção manufatureira, tomando o espaço do capitalismo comercial,
começa a assumir o domínio da economia europeia. Para essa nova vertente econômica o
ideal é um comércio inteiramente livre, apátrida, indo de encontro, portanto, a todo tipo de
monopólio, como o sistema colonial, da época (PRADO JÚNIOR, 1986).
[…] quando em fins do séc. XVIII os conflitos internacionais se agravam, arrastando as monarquias ibéricas, elas não resistirão ao choque, e seu império se desagrega. Desta desagregação sairá a independência das colônias americanas; e para o mundo em geral, uma nova ordem. Terá sido removido afinal este obstáculo de dois impérios imensos que fechados hermeticamente dentro de um conservantismo colonial obsoleto, estavam obstruindo a marcha dos acontecimentos mundiais. Aos estanques impérios ibéricos substituir-se-ão as livres nações ibero-americanas, abertas ao comércio e intercurso do universo. Desafogava-se o mundo, livre daqueles tropeços imensos que lhe embargavam o desenvolvimento. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 125).
Em virtude do poderio bélico e econômico que ostentava a Inglaterra, cujas forças
eram medidas frente à França napoleônica, mantinha sob seu círculo de tutela o reino
português, com quem tinha lucrativos negócios:
o plano inglês de compensar-se de suas derrotas no continente europeu com a conquista das colônias ibero-americanas é óbvio. No caso do Brasil, as circunstâncias favoreceram e facilitariam este plano. Não precisará aí de exércitos e de intervenções armadas, pois o soberano português, temendo a sorte de Fernando VII da Espanha, entendeu mais conveniente aceitar o oferecimento inglês e embarcar sob proteção britânica para o Brasil. Conservava com isto sua coroa e títulos, mas terá cedido ao aliado inglês a sua independência e liberdade de ação. A monarquia portuguesa não será daí por diante mais do que um joguete nas mãos da Inglaterra. […] A Inglaterra se prevalecerá deste domínio; no que se refere ao Brasil, cuidará zelosamente de preservar a liberdade do seu comércio de que se fizera a grande beneficiária. A abertura dos portos brasileiros representa assim uma concessão que embora de caráter provisório, estava assegurada pelos dominante interesses ingleses. Fazia-se impossível o
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retorno ao passado. E o Brasil entra assim definitivamente na nova etapa do seu desenvolvimento. […] A situação ainda se agrava com o tratado de comércio firmado com a Inglaterra m 1810. O soberano português concede aí favores à sua aliada, que praticamente exclui Portugal do comércio brasileiro. No decreto de abertura dos portos fixara-se um direito geral de importação para todas as nações de 24% ad valorem. As mercadorias portuguesas seriam beneficiadas pouco depois com uma taxa reduzida de 16%. Pelo tratado de 1810, a Inglaterra obterá uma tarifa preferencial de 15%, mais favorável portanto que a própria outorgada a a Portugal. Tão estranha e absurda situação, que mostra a que ponto chegara a subserviência do soberano português e o predomínio da Inglaterra nos negócios da monarquia, manter-se-á até 1816, quando se equiparão as tarifas portuguesas às inglesas. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 128-129).
A fuga da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, é o estopim da independência
econômica da colônia, rompendo-se os laços com a a metrópole (PRADO JÚNIOR, 1986):
[…] o regente, apenas desembarcando em terra brasileira, e ainda na Bahia onde arribara em escala para o Rio de Janeiro, assina o decreto que abre os portos da colônia a todas as nações, franqueando-os ao comércio internacional livre. Destruía-se assim, de um só golpe, a base essencial em que se assentava o domínio colonial colonial português. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 127).
Muito embora o sistema colonial desempenhasse papel vital, a partir do momento em
que a acumulação capitalista puder caminhar sozinha – com o surgimento de forças
produtivas propriamente capitalistas, o capitalismo industrial – as relações de produção
coloniais passam a atravancar o desenvolvimento do novo modo de produção, “o que era
solidariedade transforma-se em oposição; o que era estímulo converte-se em empecilho.
Economia colonial e capitalismo passam a guardar entre si, de agora em diante, relações
contraditórias”. (CATANI, 1999, p, 66).
As contradições essenciais entre os dois modelos giram em torno do trabalho
compulsório que não permite a mercantilização da força de trabalho representada pelo
assalariamento e a amplificação de mercados; e do monopólio colonial que evidentemente
impõe uma barreira ao livre comércio com os territórios colonizados. Ou seja, era necessário
para o salutar desenvolvimento do capitalismo o surgimento de uma periferia produtora de
produtos primários de exportação, sob a égide do trabalho assalariado, a qual deveriam fazer
parte as colônias latino-americanas (CATANI, 1999).
Com a desmonopolização do comércio brasileiro, e o intenso movimento imigratório,
o capital passa a se acumular também em território nacional. O capital mercantil nacional, que
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havia se formado até então, deu origem à economia mercantil-escravista cafeeira9 (CATANI,
1999).
Como já visto, o custo de reprodução da força de trabalho escrava é, nesse momento,
mais rentável pelo fato de a reprodução do trabalho assalariado pressupor o desenvolvimento
compatível da superestrutura jurídico-política e ideológica, além das condições materiais de
implementação das relações de produção capitalistas.
Com a “independência”10, o Brasil, em 1822, desvincula-se da coroa portuguesa,
consegue uma relativa autonomia política, mas se encontra longe de sua efetiva
independência. Economicamente, e em consequência politicamente, o país torna-se
dependente do imperialismo britânico.
Na história brasileira, tal independência
resultou de uma alteração política praticamente sem luta, ou sem as prolongadas e profundas lutas de que foi teatro a América espanhola. As contradições de classe foram transferidas a uma etapa imediatamente superior, a das rebeliões provinciais que encheram a época da Regência. A separação entre o Brasil e Portugal não trouxe à colônia, assim, grande abalo social, e não correspondeu a alterações profundas: a estrutura de produção permaneceu a mesma, a posição das classes sociais permaneceu a mesma. A independência não teve caráter revolucionário. Foi uma empresa comandada pela classe dominante de senhores de terras, dentro de suas limitações de classe. Estas limitações impunham, desde logo, que não se realizasse nenhuma modificação significativa e que tudo permanecesse, na essência, como nos tempos coloniais, menos a dependência para com a metrópole. Para realizar a independência dentro de tais limitações, entretanto, a classe dominante colonial deveria conjugar os seus esforços aos interesses do capitalismo em ascensão, e em particular do capitalismo britânico (SODRÉ, 1979, p. 64).
Houve, entretanto, a mudança de dependência, de Portugal para a Inglaterra: 9 “[...] a empresa cafeeira do início do século XIX surge como latifúndio escravista. Como latifúndio porque havia uma determinada repartição de terras anterior à sua constituição; e, principalmente porque, dados os preços dos recursos produtivos e definindo-se a produção cada vez mais como produção em massa, as margens de lucro eram reduzidas, o que impunha uma escala mínima de produção lucrativa e, reversivamente, determinava investimentos vultosos, que funcionavam como barreira à entrada. E surge como latifúndio escravista não somente porque escravos estavam disponíveis mas, principalmente, tendo em vista o caráter da demanda exterior e o investimento exigido. Assim, o trabalho escravo, superexplorado, mostrou-se mais rentável. Excluía-se o trabalho assalariado em virtude de o custo de reprodução do escravo ser menor que o do trabalhador livre”. (CATANI, 1999, p. 70-72). 10 “a Independência não foi uma revolução, no sentido de que não alterou a relação entre as classes, manteve o regime da grande propriedade e do trabalho escravo e da economia de exportação: não gerou tipos novos de organização, portanto, e menos ainda tipos novos de organização militar”. (SODRÉ, 1979, p. 60).
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a aliança entre a classe dominante colonial, escravista ou feudal, e a classe dominante inglês, a burguesia, substitui, a partir da autonomia, a antiga aliança entre a classe dominante colonial e a classe dominante portuguesa. Se a Inglaterra dominava a economia lusa, desde a Restauração, e firmara a sua ascendência em acordos diplomáticos de que os mais característicos foram os de 1654 e de 1703, passaria a dominar, e diretamente, a economia brasileira, após a separação entre a colônia e a metrópole. Para chegar a essa situação estava dispensada inclusive de empregar a força, pois tinha Portugal sob seu inteiro domínio. […] O primado inglês no processo da autonomia brasileira estabelece as condições de submissão da economia brasileira à economia inglesa, que se prolonga durante todo o século, com altos e baixos. […] a necessidade, para os ingleses, de dominar o mercado consumidor brasileiro, inundando-o com as suas mercadorias, e a necessidade, para a classe dominante brasileira, dos recursos financeiros ingleses, para assegurar a continuidade de sua dominação econômica e social. De dominadores da política externa brasileira, e orientadores de sua ação no Prata, passaram os ingleses a dominadores das finanças brasileiras, através do comércio desigual e dos empréstimos, passando, depois, ao campo dos investimentos públicos, na segunda metade do século XIX. A subordinação do Brasil é Inglaterra é o traço definidor da situação internacional do nosso país. (SODRÉ, 1979, p. 64-65).
Através da série de empréstimos contraídos, as finanças brasileiras passaram a se
subordinar aos interesses britânicos11. Abolido o sistema colonial em proveito de Portugal, o
Brasil continuou como colônia, agora tendo a Inglaterra como metrópole (SODRÉ, 1979).
Diante da emancipação política e econômica do Brasil, o centro-sul do país inicia a
tomada da dianteira das atividades econômicas, e na segunda metade do século XIX já
consolida esta posição deixando para trás o norte decadente (PRADO JÚNIOR, 1986). A
cultura do café não se diferenciou da tradição agrícola do país, promoveu-se a exploração em
larga escala (plantation) de propriedade monocultural cuja força de trabalho fora
primeiramente escravos negros, e mais tarde trabalhadores assalariados. Por três quartos de
11 “a série de empréstimos faria com que as finanças brasileiras passassem ao controle britânico, de tal sorte que, entre muitas observações no mesmo sentido, M. A. Jay poderia escrever: “A abolição aparente do sistema colonial não foi, portanto, mais que uma mudança de metrópole: o Brasil cessou de depender de Portugal para tornar-se uma colônia da Inglaterra.” Ou o economista Normano, quando escreve: “O Brasil foi, durante longo período, um membro não oficial do império econômico da Grã-Bretanha.” […] A autonomia, pois, tem, como consequência, a aliança de subordinação à Inglaterra, dominadora dos mares e dominadora das trocas, que será a dominadora do mercado interno e a dominadora das finanças. Para conseguir manter-se no poder, a classe dominante, quando enfrenta os tremendos riscos decorrentes das rebeliões provinciais, pois, deve apoiar-se principalmente nessa aliança externa. É essa aliança que lhe vai permitir sufocar as manifestações de rebeldia nas mais diversas regiões, organizar o seu aparelho militar, uma vez que, de início, nem possui aparelho militar em condições para uma tarefa de tal envergadora, nem de condições materiais para organizá-lo”. (SODRÉ, 1979, p. 67).
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século o café foi a principal fonte de riqueza do Brasil, sendo o grande produtor mundial da
mercadoria12 (PRADO JÚNIOR, 1986). “Social e politicamente foi a mesma coisa. O café
deu origem, cronologicamente, à última das três grandes aristocracias do país, depois dos
senhores de engenho e dos grandes mineradores, os fazendeiros de café se tornam a elite
social brasileira” (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 167).
A questão da imigração europeia encontra-se diretamente ligada à escravidão, ambas,
nesse período, são elementos da transformação do regime de trabalho de que a infraestrutura
necessitava (PRADO JÚNIOR, 1986). A segunda metade do século XIX apresenta a mais
significativa transformação econômica, a qual foi resultado, em última instância, da
emancipação política e econômica do Brasil, embora a primeira metade desse século tenha se
caracterizado por uma crítica transição que remonta à 1808. A partir de meados de 1850, as
forças produtivas expandem-se largamente (PRADO JÚNIOR, 1986).
um incipiente capitalismo dava aqui seus primeiros e modestos passos. A incorporação das primeiras companhias e sociedades, com seu ritmo acelerado e apesar dos exageros e certo artificialismo, assinala assim mesmo o início de um processo de concentração de capitais que embora ainda acanhado, representa ponto de partida para uma fase inteiramente nova. Ele servirá de motor para a expansão das forças produtivas do país cujo desenvolvimento adquire um ritmo apreciável. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 193).
O capitalismo brasileiro, embora nitidamente incipiente, começa a se desenhar. A
acumulação de capitais se acentua, principalmente os provenientes do setor agrícola cafeeiro.
A própria utilização do trabalho assalariado passa a impulsionar a mobilização dos capitais
antes imobilizados na propriedade humana do escravo, fazendo-os circular e produzir uma
acumulação capitalista apreciável (PRADO JÚNIOR, 1986).
Devido ao rompimento do monopólio mercantil com a metrópole, e a formação do
Estado Nacional, ocorreu a nacionalização da apropriação do excedente e investimentos
internos. A economia marcantil-escravista cafeeira edificava-se sobre as relações de produção
escravistas que necessitam da disponibilidade de trabalho escravo a preços vantajosos, o que
12 “quase todos os maiores fatos econômicos, sociais e políticos do Brasil, desde meados do século passado até o terceiro decênio do atual, se desenrolam em função da lavoura cafeeira: foi assim com o deslocamento de populações de todas as partes do país, mas em particular do Norte, para o Sul, e São Paulo especialmente; o mesmo com a maciça imigração européia e a abolição da escravidão; a própria Federação e a República mergulham suas raízes profundas neste solo fecundo onde vicejou o último soberano, até data muito recente, do Brasil econômico: o rei café, destronador do açúcar, do ouro e diamantes, do algodão, que lhe tinham ocupado o lugar no passado”. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 167).
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passou a ser um problema desde meados de 1850, quando o tráfico de escravos foi
oficialmente proibido por imposição inglesa (CATANI, 1999). Destarte:
1. para que se acumulasse ou ao menos se mantivesse a produção no mesmo nível após a interrupção do tráfico internacional era absolutamente necessário “produzir” escravos internamente; 2. a produção interna equivaleria à redução substancial da taxa de exploração; 3. isso acabaria levando a uma redução na taxa de lucro das unidades em operação; 4. para que a economia cafeeira fosse capaz ou não de absorver este aumento de preços dependeria da queda necessária da taxa de exploração e da taxa de lucro prévia a ele; 5. ainda que isso fosse inviável, a acumulação prosseguiria até absorver a totalidade da escravaria existente; 6. essa situação-limite seria alcançada apenas se a economia cafeeira conseguisse suportar a elevação brutal e inevitável dos preços; 7. caso contrário o teto seria atingido muito antes, porque os preços subiriam até certo ponto e a partir daí “explodiriam”, no momento em que já se tivesse absorvido o contingente de escravos existentes nos outros setores exportadores. (CATANI, 1999, p. 73-74).
Para sua manutenção a economia mercantil-escravista cafeeira também necessitava
de terras abundantemente disponíveis para a lucratividade da produção. A acumulação
sucessiva pressupunha a monocultura de forma extensiva e invariável e a consequente
utilização de novas terras, já que as técnicas predatórias exauriam os solos. Essa necessidade
obrigava a interiorização, o que elevou consecutivamente os custos de transporte. Dependia-se
em muito, também, da situação do mercado o qual seria despejada a produção cuja
generalização e concorrência promovia sensíveis quedas nos preços (CATANI, 1999).
Esse sistema econômico conseguiu manter-se bem até meados de 1860 quando
começou a precipitar em crise, em muito pelos custos de transporte e a carência de trabalho
escravo conveniente, como já mencionado (CATANI, 1999).
Nesse contexto, a indústria escravista será opção inviável:
[...] não é difícil compreender que os custos da indústria escravista deviam ser nitidamente superiores aos da indústria capitalista. Mesmo que irreal, admita-se igual técnica, idêntico grau de utilização da capacidade produtora, mesmo preço e eficiência produtiva igual para o escravo e para o trabalhador assalariado. Ainda assim, a taxa de lucro da indústria escravista seria muito inferior por dois motivos. Primeiro, porque o pagamento da força de trabalho é inteiramente adiantado quando há escravos, enquanto a remuneração do trabalho assalariado é realizada após seu consumo no processo produtivo. Ademais, a rotação do capital variável é mais rápida que a do capital fixo, representado pelo escravo, que se distende por toda sua “vida útil”. Assim, a produtividade do trabalhador assalariado, mesmo admitindo idênticas técnicas, utilização da capacidade produtiva e preços, haveria de ser muito maior, o que acrescentaria o diferencial
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de custos. Finalmente, o fosso aumentaria devido às despesas com o trabalho de vigilância. (CATANI, 1999, p. 78-79).
O fato é que a crise da economia mercantil-escravista nacional não se resolveria
permanecendo mercantil e escravista (CATANI, 1999):
isto por um motivo muito simples: o da existência de homens livres e pobres. Quando se expandia a economia mercantil-escravista, aos homens livres e pobres era dado ceder terreno, deslocando-se para o interior ou, então, fixando-se em faixas inaproveitadas para a produção mercantil e escravista. Quando chegava a crise, a situação desses homens em nada era afetada, uma vez que continuavam a ser produtores da própria subsistência. Nada os punha em xeque: nem a expansão nem a crise da economia mercantil-escravista. [...] os homens livres e pobres abandonariam a produção da própria subsistência apenas se impelidos pela necessidade. Assim, o cerne da questão encontra-se nas condições de expropriação. Após a expropriação, se esta não fosse maciça e concentrada, o mercado de trabalho não se constituiria. Não havendo condições para a transformação da força de trabalho em mercadoria – pré-requisito indispensável – estaria bloqueada a industrialização capitalista. (CATANI, 1999, p. 79-80).
Em busca da lucratividade perdida, introduziu-se estradas de ferro, apoiado pelo
capital financeiro inglês, que possibilitou a diminuição dos custos com transporte13.
Introduziu-se, também, a máquina, que aumentou a produtividade e a qualidade do produto, o
que consequentemente proporcionou maior rentabilidade ao negócio (CATANI, 1999).
A solução para o preço da força de trabalho no Brasil será encontrada na introdução
de um fluxo abundante de imigração de proletários europeus pobres. Estes deveriam ser
completamente despossuídos para que fossem compelidos a se tornarem assalariados; e em
grande quantidade para que se criasse um “mercado de trabalho” e seu preço fosse reduzido
(CATANI, 1999).
O Estado possuía a atribuição de atrair os proletários imigrantes:
o núcleo da política imigratória consistiria no custeio das despesas de transporte e instalação, colocando desde logo dois problemas importantes: de um lado, os gastos não poderiam recair sobre o empresário, pois o trabalhador importado era
13 “a estrada de ferro e a maquinização do beneficiamento não somente reforçam a economia mercantil-escravista cafeeira nacional. Ao mesmo tempo, opõem-se a ela, criando condições para a emergência do trabalho assalariado. Estimula-se a acumulação, e a acumulação repõe, a cada instante, o problema da falta de braços, que assume, a cada momento, maior gravidade. Assim, não é preciso esperar que o escravismo desintegre-se porque não oferece nenhuma rentabilidade às empresas existentes; E quem sente o problema é quem comanda a acumulação, que é o grande capital cafeeiro (dominante mercantil)”. (CATANI, 1999, p. 81).
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livre; de outro, definindo-se como tarefa do Estado subsidiar a imigração, impunha-se saber quem arcaria com o peso da medida. Em resumo pode-se dizer que a partir de 1881 o estado de São Paulo passa a financiar 50% da passagem. [...] É exatamente em 1885 que o governo de São Paulo decide financiar a totalidade dos gastos com a imigração e, também, contratar a importação de trabalhadores livres junto a companhias privadas. A União também decide subsidiar a imigração, imigração esta que era para o café, pagando-se a passagem apenas para os colonos que se dirigissem a estabelecimentos agrícolas. (CATANI, 1999, p. 83).
De 1885 a 1888 quase 260 mil trabalhadores europeus imigraram ao Brasil. Em
consequência os salários foram reduzidos substancialmente e a economia cafeeira pôde se
expandir (CATANI, 1999). A força de trabalho será também encontrada em abundância nos
grandes centros, onde encontrar-se-á uma população marginal, esta “sem ocupação fixa e
meio regular de vida, era numerosa, fruto de um sistema econômico dominado pela grande
lavoura trabalhada por escravos. A população livre, mas pobre, não encontrava lugar algum
naquele sistema que se reduzia ao binômio 'senhor e escravo'”. (PRADO JÚNIOR, 1986, p.
198). Esta população será, portanto, a gênese do proletariado industrial brasileiro (PRADO
JÚNIOR, 1986).
Portanto, com as condições objetivas de desenvolvimento do modo de produção
capitalista brasileiro, este torna-se dominante na formação social brasileira. Cabe assinalar,
também, que a industrialização capitalista brasileira se dá com muito atraso em relação à
europeia, que se encontrava já na etapa monopolista do capitalismo quando o Brasil
engatinhava (CATANI, 1999).
Os períodos subsequentes ao advento da república serão marcados pela expansão das
forças produtivas e o apogeu da economia até então engendrada (PRADO JÚNIOR, 1986).
[…] a mudança de regime não passou efetivamente de um golpe militar, com o concurso apenas de reduzidos grupos civis e sem nenhuma participação popular. O povo, no dizer de um dos fundadores da República, assistira 'bestilizado' ao golpe, e sem consciência alguma do que se passava. Mas a República agiu como um bisturi num tumor já maduro; rompeu bruscamente um artificial equilíbrio conservador que o Império até então sustentara, e que dentro de fórmulas políticas e sociais já gastas e vazias de sentido, mantinha em respeito as tendências e os impulsos mais fortes e extremados que por isso se conservavam latentes. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 208).
A República, rompendo com o conservadorismo imperial, desperta um novo ideal
social mais condizente à prosperidade econômica vivida no momento. Transpassa-se alguns
51
dos aspectos anacrônicos da superestrutura ideológica do império em virtude da nova
estrutura econômica. A ambição do lucro e o desejo do enriquecimento passarão a vigorar
com toda ênfase e ditar as bases da estrutura ideológica do novo regime (PRADO JÚNIOR,
1986).
A ideologia jurídica burguesa surgiu, no Brasil, impulsionada não pelas classes
dominantes, mas pelas classes médias, com o intuito de transformar o Estado14, “a classe
média bloqueou a formação de uma frente escravo-camponesa contra o latifúndio, condenou o
campesinato pobre ao isolamento político e impediu que a revolução política burguesa se
fizesse acompanhar de uma revolução agrária”. (SAES, 1985, p. 346). Ainda, “as demais
classes trabalhadoras urbanas (classe operária fabril, proletariado comercial e dos transportes)
também se colocaram sob a direção da classe média no processo de transformação burguesa
do Estado”. (SAES, 1985, p. 346).
O capitalismo não foi advento da revolução burguesa de 1888-1891, mas a
restruturação superestrutural efetuada15 foi de suma importância para que o novo modo de
14 “o processo de transformação burguesa do Estado se fez por etapas: extinção legal da escravidão (1888), reorganização do aparelho de Estado (Proclamação da República em 1889, Assembleias Constituinte em 1890/1891). A classe média foi a força dirigente do processo de transformação, no seu conjunto; já os escravos rurais foram a força principal da primeira etapa, abandonando depois a cena política. Desde então, a classe média acumulou os papéis de força dirigente e força principal. Após a Abolição e a Proclamação da República, as classes dominantes de São Paulo (fazendeiros, comissários, exportadores), apoiadas pelo capital imperialista inglês, intervieram no processo de reorganização do aparelho de Estado (participação no governo provisório, atuação como grupo de pressão no episódio da Assembleia Constituinte); visavam, desse modo, fazer com que o Estado burguês nascente assumisse uma forma (Federação, democracia presidencialista) conveniente à sua luta pela conquista da hegemonia política. Atingiram parte do seu objetivo (a república federativa) e, acionando os instrumentos políticos (autonomia financeira, capacidade tributária, força armada própria: a Força Pública) propiciados pela descentralização do aparelho de Estado, passaram a acumular forças para liquidar a ditadura militar burguesa instaurada em 1889, controlar diretamente o aparelho central de Estado e tornar-se politicamente hegemônicas no plano nacional. Isto ocorreu em 1894: ao cair a ditadura militar burguesa, eliminaram-se os últimos vestígios, subsistentes ao nível do aparelho central de Estado, do papel dirigente desempenhado pela classe média no processo de transformação burguesa do Estado. Subtraindo ao grupo militar o controle imediato e direto do aparelho de Estado, o bloco cafeeiro paulista retirou simultaneamente à classe média a condição de classe reinante, mantida ao longo do período chamado jacobino. A reação termidoriana do bloco cafeeiro paulista transformou as classes dominantes da província, de classes derrotadas (obrigadas, pelo processo, a se transformarem em classes dominantes não-escravistas), em classes vitoriosas. Liquidada a ditadura militar burguesa e estabelecida uma democracia presidencial federativa, o bloco cafeeiro paulista logrou conquistar em 1894 a hegemonia política no plano nacional. Saliente-se, de passagem, que esse bloco regional, no seu conjunto, não conservou por muito tempo a hegemonia política”. (SAES, 1985, p. 346-347). 15 “essa transformação superestrutural foi condição necessária para que o modo de produção capitalista se tornasse dominante na formação social brasileira. As relações de produção capitalistas germinaram no Brasil pós-1850: em algumas das indústrias, instaladas nesse período, já se configurava a existência da relação capital-trabalho assalariado, do processo capitalista de trabalho. Todavia, tais relações
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produção se consolidasse e se desenvolvesse sem entraves na formação social brasileira
(SAES, 1985).
Muito embora a transformação jurídico-política empreendida entre 1888-1891 fosse
essencial para a consolidação do modo de produção capitalista, tal sistema não se tornou
dominante de imediato, “ainda algumas décadas após esse processo, as relações de produção
servis continuaram a ser dominantes no campo, e a indústria permaneceu subordinada à
agricultura”. (SAES, 1985, p. 349).
Os acontecimentos que culminaram, com o 15 de Novembro16, portanto, “não foram
mais do que o coroamento de longo processo. A República não teve nada de acidental; muito
ao contrário, resultou de desenvolvimento progressivo de condições que, no penúltimo
decênio do século, tinham se agravado consideravelmente”. (SODRÉ, 1979, p. 161).
Agora em terreno propício, os interesses financeiros internacionais passarão a
participar ativamente das atividades brasileiras, em toda sua plenitude. Em todos os setores
fundamentais da economia brasileira os interesses financeiros internacionais far-se-ão
presentes (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 209-210). O incremento da cultura cafeeira, em muito,
foi viabilizada pelos créditos disponibilizados pelo capital estrangeiro (PRADO JÚNIOR,
1986).
A economia brasileira, ao ver se desenvolver o comércio externo, tornar-se-á um dos
maiores produtores de matérias-primas e gêneros tropicais. Desenvolvem-se, além do café, a
borracha, o cacau, o mate e o fumo, cada qual com sua peculiaridade geográfica e de
coexistiam com as relações de produção servis (colonato, moradia, quarta, etc.) que se difundiam no campo; e eram, como estas, subordinadas às relações de produção escravistas, dominantes. A extinção legal da escravidão e a formação do direito burguês (capacidade jurídica para todos os homens, contrato de trabalho, etc.) imprimiram entretanto um novo ritmo – inviável sob um Estado escravista – ao desenvolvimento do mercado de trabalho urbano e, consequentemente, à difusão do trabalho assalariado industrial. Essa transformação júridico-política, de um lado, “libertou” uma parte dos trabalhadores do campo (escravos) e os constituiu em ofertantes de sua força de trabalho no mercado urbano; permitiu, de outro lado, a “libertação” de massas camponesas em outras formações sociais (Itália, Espanha, Portugal), e converteu grande parte delas (após breve passagem pelo campo) na componente central do mercado de trabalho urbano. Esse segundo ponto foi crucial: a liquidação do direito escravista e a formação do direito burguês fizeram com que o processo de imigração experimentasse um salto qualitativo. A Abolição, na verdade, “estimulou” a imigração; desde então, o ritmo de entrada de imigrantes na província de São Paulo se acelerou consideravelmente”. (SAES, 1985, p. 347-348). 16 “só após 1930, quando a indústria foi progressivamente subordinando a agricultura (esta, já em processo de transformação capitalista), as relações de produção capitalistas se tornaram dominantes. Desse modo, foi a classe dos capitalistas industriais, e não a dos proprietários fundiários ou a dos capitalistas mercantis, a grande beneficiária, no longo prazo, da revolução política burguesa de 1888-1891”. (SAES, 1985, p. 349).
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importância ao país. Consequentemente a produção para consumo interno que precisará ser
importado largamente crescem, contudo, os compromissos externos decorrentes da inserção à
nova lógica econômica, entre eles o serviço da dívida pública, o pagamento dos dividendos e
lucros das empresas estrangeiras e as remessas de fundos por imigrantes aos seus países. Para
fazer frente aos compromissos, recorrem às inversões de capitais estrangeiros e
principalmente aos empréstimos públicos (PRADO JÚNIOR, 1986). “A dívida externa do
Brasil cresce de pouco menos de 30 milhões de libras por ocasião da proclamação da
República, para quase 90 milhões em 1910. Em 1930 alcançará a cifra espantosa de mais de
250 milhões”. (PRADO JÚNIOR, 1986).
A boa situação do comércio internacional, aliada às crescentes inversões de capital
estrangeiro, serão os principais fatores para o equilíbrio das finanças brasileiras no período
que segue a consolidação da república burguesa. Há um considerável progresso produtivo, no
qual as forças produtivas se desenvolvem vigorosamente, mas tal progresso dar-se-á nos
ditames da economia brasileira tradicional, ou seja, a estrutura fundamental perpetua-se, o
Brasil continua a produzir poucos gêneros em grandes propriedades, sempre voltando-se ao
mercado internacional (PRADO JÚNIOR, 1986).
A crise enfrentada no fim do Império foi uma crise de crescimento, na qual as
superestruturas imperiais não mais condiziam à necessidade conjuntural da nova ordem
econômica internacional, na qual estava necessariamente inserido em fins do século XIX:
a abolição da escravidão e a consequente transformação do regime de trabalho [...]; o rompimento dos quadros conservadores da monarquia e a eclosão de um novo espírito de negócios e especulação mercantil; a acentuação e consolidação do domínio da finança internacional na vida econômica do país […], estes fatores não são senão passos preliminares e preparatórios que farão do Brasil uma nação ajustada ao equilíbrio mundial moderno, e engrenada, se bem que no lugar próprio de semicolônia para que a preparara a evolução anterior, no círculo internacional do imperialismo financeiro. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 224).
Inserido definitivamente na lógica capitalista internacional, o capital estrangeiro
passa a possuir papel determinante na economia brasileira. O que antes dependia de
empréstimos estatais, vínculos entre nações, nesta etapa, rompidos os entraves
superestruturais à nova ordem, ocorrem diariamente de forma facilitada:
a penetração do capital financeiro no Brasil tem sua origem naqueles primeiros empréstimos concedidos pela Inglaterra, logo depois da Independência […]
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estes empréstimos têm um caráter especial e não representam ainda o papel específico do capital financeiro dos tempos mais recentes. Sua função é sobretudo política, e sua finalidade puramente comercial. Destinavam-se aqueles empréstimos a realizar e consolidar a autonomia política do país, e assegurar com isto a liberdade do seu comércio, o que significava então o predomínio mercantil inglês. […] A evolução para o capitalismo financeiro que se processa no correr do séc. XIX e que chega à maturação na sua última parte, modificará estas relações primárias e muito elementares entre as grandes nações capitalistas e os demais povos do universo. Substituiu-se o simples objetivo de vender produtos industriais, a ampla expansão do capital financeiro que, sob todas as modalidades, procurará explorar em seu proveito as diferentes atividades econômicas do universo. A economia mundial evolui para um vasto sistema dominado pelo capital financeiro e disputado pelos vários grupos nacionais que repartem entre si aquele capital. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 270-271).
Os empréstimos públicos, nos antigos moldes, tornam-se um meio e não o fim da
política econômica imperialista, que os utiliza, agora, como instrumento de penetração e
conquista de posições17. O capital internacional, em sua incessante necessidade de reprodução
e acumulação, embrenhar-se-á em qualquer negócio suficientemente rentável. A economia
cafeeira será largamente explorada, além da especulação financeira, devido à instabilidade
monetária, da qual os grandes bancos internacionais saberão tirar o melhor proveito (PRADO
JÚNIOR, 1986).
No contexto imperialista que se impõe, o Brasil é mera massa de manobra nas
batalhas dos grandes monopólios e grupos financeiros internacionais. “O que conta nele são
os braços que podem ser mobilizados para o trabalho, as possibilidades naturais que seu solo
encerra, o consumidor potencial que nele existe e que, eventualmente, uma campanha
publicitária bem dirigida pode captar”. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 279).
A atuação do imperialismo consiste na exploração da riqueza nacional, extrair na
máxima medida a mais-valia do trabalho brasileiro por meio de qualquer atividade. Tal
exploração é feita em proveito essencialmente de uma burguesia estrangeira, cujos interesses
são completamente alheios ao país explorado. As riquezas e recursos escoam em proveito das
potências imperialistas. A acumulação capitalista nacional, brasileira, torna-se nessas
17 “o principal negócio dos bancos estrangeiros no Brasil será operar com as disponibilidades do país no exterior e provenientes das exportações. A massa dos cambiais [...] estará sempre em suas mãos, porque até data muito recente os bancos brasileiros não operavam no estrangeiro; concentravam-se por consequência, com aqueles, todas as operações de cobrança no exterior. E assim o setor mais importante das finanças brasileira, o ligado à exportação, será inteiramente por eles controlado. Outro campo de operações para o capital financeiro internacional no Brasil foram os empreendimentos industriais. Isto se verificou a princípio sobretudo em empresas de serviços públicos: estradas de ferro, serviços e melhoramentos urbanos, instalações portuárias, fornecimento de energia elétrica. Praticamente tudo que se fez neste terreno desde a segunda metade do século passado (XIX) é de iniciativa do capital estrangeiro, ou financiado por ele”. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 224).
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condições muito mais lenta e debilitada. Há nesse sentido, a intervenção imperialista na
economia brasileira que impede qualquer normalidade no desenvolvimento econômico do
país18, como os esforços empreendidos para manter a economia brasileira na função primária,
colonial, de mero fornecimento de gêneros tropicais ao mercado internacional (PRADO
JÚNIOR, 1986).
Os problemas com a balança comercial decorrentes dos compromissos com o capital
estrangeiro são periodicamente “resolvidos” com mais compromissos do mesmo tipo, o que
levará o Brasil a uma marcha à insolvência19 (PRADO JÚNIOR, 1986).
O capitalismo industrial brasileiro surgiu da economia cafeeira sob relações de
produção capitalistas:
[...] a economia cafeeira assentada em relações capitalistas de produção engendrou os pré-requisitos fundamentais ao surgimento do capital industrial e da grande indústria. A economia cafeeira capitalista conseguiu: 1. gerar, previamente, uma massa de capital monetário, concentrada nas mãos de
18 “[…] o capital internacional invertido no Brasil representa um importante fator de desequilíbrio das consta externas e deficits crônicos. Não há correspondência necessária entre inversões […], e o aumento da capacidade do país para efetuar tais pagamento. Crescem as obrigações exteriores sem um progresso paralelo dos meios de satisfazê-las. Esta tem sido a história financeira contemporânea do Brasil. Os nossos meios normais de pagamentos no exterior provêm unicamente das exportações; e enquanto o seu valor (em ouro) estaciona ou progride lentamente depois de 1910 (em queda brusca e considerável de 1930 em diante), as obrigações resultantes das inversões de capital estrangeiro, pelo contrário, não cessam de crescer. O desequilíbrio é portanto contínuo e se agrava cada vez mais. O que o disfarça muitas vezes é o afluxo constante de novos capitais, o que representa apenas alívio momentâneo, mas que na realidade agrava o mal”. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 281-282). 19 “[…] posto de lado esse congestionamento urbano, com leves retoques de modernismo de fachada que acrescentou aqui e acolá à paisagem brasileira, não se assinala efetivamente do decurso da fase que presenciamos nestes últimos anos [segunda metade da década de 1970] nenhum sinal significativo de mudança essencial e fundamental das arcaicas estruturas herdadas de nosso passado colonial. Embora numa forma mais complexa e exteriormente revestido de aspectos mais conformes com maneiras de ser dos dias de hoje, o que é fato universal, o sistema sócio-econômico brasileiro continua, no essencial, o mesmo daquele passado. Isto é, uma sociedade apoiada inteiramente, em última instância, e essencialmente organizada com esse objetivo, na produção primária de gêneros demandados em mercados estranhos. É com essa produção e exportação consequente que fundamentalmente se mantém a vida do país, pois é com a receita daí proveniente que se pagam importações essenciais à nossa subsistência, inclusive e em particular a instalação e manutenção da rudimentar e precária atividade industrial que é a nossa; bem como se pagam os serviços financeiros e outros dos bem remunerados trustes imperialistas – as “multinacionais”, se preferirem – aqui operando. Atividades e serviços esses com que se enfeita a existência de relativamente restritos setores da população, de um conforto e trem de vida que aspiram a canhestramente imitar a sociedade de consumo dos grandes centros capitalistas do mundo moderno. Relegando-se para o outro lado do abismo que separa esses setores do resto da população – tal como no modelo que nos legou o passado de nossa formação histórica – a massa popular que vegeta, material e culturalmente, no nível da simples subsistência física e do mínimo de desenvolvimento intelectual; ou excepcionalmente pouco mais que isso”. (PRADO JÚNIOR, 1986, p. 355).
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determinada classe social, passível de transformar-se em capital produtivo industrial; 2. transformar a própria força de trabalho em mercadoria; 3. promover a criação de um mercado interno de proporções consideráveis. (CATANI, 1999, p. 86).
A burguesia cafeeira, portanto, transformou-se em burguesia industrial. Não
necessariamente todos e não necessariamente os que empreenderam essa atividade
prosperaram. O capital industrial foi gestado pelo capital cafeeiro quando este se beneficiava
de um bom momento financeiro, ademais, beneficiou-se por condições muito favoráveis de
financiamento provenientes da política econômica do Estado (CATANI, 1999). O complexo
exportador cafeeiro
[...] ao acumular, gerou o capital-dinheiro que se transformou em capital industrial e criou as condições necessárias a essa transformação: uma oferta abundante no mercado de trabalho e uma capacidade para importar alimentos, meio de produção e bens de consumo assalariado, o que só foi possível porque se estava atravessando um auge exportador. (CATANI, 1999, p. 88).
O capital estrangeiro e o Estado arcaram com os grandes investimentos com os quais
não podiam o capital privado brasileiro e sem os quais não se desenvolveriam
satisfatoriamente. O Estado, “ no mais das vezes não servirá senão de empresário , levantando
empréstimos no exterior para realizar os empreendimentos. Em outros casos, como se deu na
maior parte das estradas de ferro, intervirá apenas estimulando o capital estrangeiro com a
concessão de garantia de juros”. (PRADO JÚNIOR, 1986).
O capital industrial nasce e consolida-se no período de 1988 à 1933. De 1933 a 1955
ocorre a industrialização restringida, pois apesar de haver industrialização, esta não possui as
bases técnicas e financeiras para a implantação do núcleo fundamental da indústria de bens de
produção, o que permitiria fazer desenvolver a capacidade produtiva além da demanda
momentânea (CATANI, 1999).
Assim, manteve-se a industrialização materialmente restringida, pois estava o setor
de bens de produção defasado em seu núcleo central: “sua implantação deu-se de maneira
limitada e relativamente lenta, ampliando-se as bases técnicas da acumulação pouco a pouco,
sempre a reboque da demanda”. (CATANI, 1999, p. 92).
Esse foi, sem dúvida, um dos maiores problemas quanto a colocação industrial tardia
da economia brasileira. Esta industrialização retardatária produziu sérios obstáculos
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uma vez que requeriam agora gigantescas economias de escala, maciço volume do investimento inicial e tecnologia altamente sofisticada. Tecnologia essa praticamente não disponível no mercado internacional, pois era controlada pelas grandes empresas oligopolistas dos países industrializados. (CATANI, 1999, p. 92).
O papel do Estado brasileiro, no campo econômico, nesse período foi de:
1. garantir forte proteção contra as importações concorrentes; 2. Impedir o fortalecimento do poder de barganha dos trabalhadores (que poderia surgir com um sindicalismo independente); 3. Realizar investimentos em infra-estrutura, assegurando economias externas baratas ao capital industrial. Quer dizer, um tipo de ação político-econômica inteiramente solidária a um esquema privado de acumulação que repousava em bases técnicas ainda estreitas. (CATANI, 1999, p. 93).
Apesar dos esforços estatais, a siderurgia no Brasil só foi implantada através de
financiamento externo e auxílio logístico do governo dos Estados Unidos da América, por
motivos político-militares, desencadeados pela segunda guerra mundial20 (CATANI, 1999).
Assim, o Estado e a grande empresa monopolista internacional arcaram com o
processo de implementação da industrialização pesada, já que a burguesia industrial nacional
não poderia assumir tal tarefa (CATANI, 1999).
A “revolução” de 1930 configurou-se como uma etapa do desenvolvimento da
revolução burguesa no Brasil21, com o intuito de aprofundar as modificações as quais
necessitava o modo de produção capitalista para seu pleno desenvolvimento22.
20 “são essas razões que explicam, basicamente, por que foi limitada, lenta e a reboque da demanda a implantação do núcleo fundamental da indústria de bens de produção. Como também são elas que esclarecem por que coube ao Estado papel de relevo no alargamento das bases produtivas do capitalismo, quer como empresário na indústria de base, quer promovendo o rompimento dos “pontos de estrangulamento” em energia e transportes. Uma vez restringida a industrialização, a acumulação industrial continuou submetida ao limite em última instância imposto pela capacidade para importar, e a economia brasileira persistiu ocupando uma posição subordinada na economia mundial capitalista”. (CATANI, 1999, p. 95). 21 “a Revolução de 1930 permitiu à burguesia ascensional, num primeiro lance, e com o apoio do Tenentismo, apoderar-se do Estado, utilizando-o em seguida para realizar as alterações que a interessavam, vigilante para não aprofundá-las. Na medida em que o Tenentismo representava o sentido de aprofundamento, foi alijado da composição, voltando-se a burguesia para o latifúndio e apoiando-se nele para deter as novas forças que emergiam no cenário nacional, as forças populares, com o proletariado à frente. “O recalcamento do Tenentismo – dirá o autor [Martins de Almeida] – o levará talvez a acompanhar o movimento extremista das massas, a seguir, pela força dos acontecimentos, o comunismo em marcha, se pretende violentar as situações dominantes. Aí é que, em termos vindouros, outras revoluções virão.” É
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Cuidando sempre para não ultrapassar os limites do status quo vigente, a burguesia
promoverá a remodelação do aparelho do Estado de acordo com suas necessidades e
interesses23 (SODRÉ, 1979). Tal período marcou o crescimento da ANL24, cujo programa
“preconizava o cancelamento das dívidas imperialistas, a liberdade individual assegurada, a
entrega dos latifúndios aos trabalhadores no campo, a liquidação das relações feudais e
semifeudais”. (SODRÉ, 1979, p. 254).
A ditadura imposta pelo Estado Novo, em 1937, se mostrou que “um processo de
ascensão burguesa em país de economia colonial da época do imperialismo pode revestir-se,
naturalmente, por vezes inevitavelmente, de envólucro bonapartista de tipo também colonial e
imperialista”. (SODRÉ, 1979, p. 270). Pois era, nesse sentido, “a forma possível de ascensão claro que, nessa altura do desenvolvimento histórico, o Tenentismo estava liquidado”. (SODRÉ, 1979, p. 250-251). 22 “a composição de forças que permitira o triunfo da revolução, em 1930, não resistiria à prova do poder: as contradições que a sociedade brasileira apresentava, e que se aprofundavam aceleradamente, refletir-se-ia, de imediato, na luta que começou a se processar na própria área do poder, desde o instante em que passou este às mãos dos elementos revolucionários. Um dos aspectos mais significativos dessa luta, no que se refere aos militares, este na liquidação progressiva do Tenentismo. […] Para poder alijar esse componente incômodo, a burguesia teria de recompor-se com o latifúndio e de conciliar-se com o imperialismo. Quanto a este, tratava-se, desde o primeiro momento, de mostrar que o movimento revolucionário não tinha nenhum sentido anti-imperialista, dispostos que estavam os seus principais elementos a prosseguir na senda antiga. Para a luta interna, pois, recompor-se-ia uma velha aliança, entre o imperialismo, o latifúndio e a burguesia, que se voltava, agora, contra correntes que tentavam levar as reformas a limites mais amplos”. (SODRÉ, 1979, p. 251). 23 “o ano de 1934, em que se reuniu a Constituinte, e em que Getúlio Vargas, por escolha indireta, foi investido da condição de Presidente da República, marcou a ascensão do movimentos popular e democrático, definindo-se em grandes greves. Em 1935, portanto, surgiria a Aliança Nacional Libertadora, forma encontrada, aqui e então, para reunir as forças que se antepunham à marcha para a ditadura fascista. A partir do momento em que a Aliança Nacional Libertadora conseguiu arregimentar as forças democráticas e realizar amplas manifestações de massa, definindo sua posição anti-imperialista, contra ela se concentrou a composição política que eliminara o Tenentismo e marchava decididamente para um regime de força”. (SODRÉ, 1979, p. 254). 24 “na medida e que a Aliança Nacional Libertadora conquistava adeptos nos meios militares, os perigos que anunciava para a ordem vigente cresciam. A saída imediata foi o financiamento dos grupos de choque, as milícias integralistas, que passaram a disputar adeptos também nas fileiras dos militares. Para criar as condições necessárias a essa arregimentação fascista, o governo pediu e o Congresso concedeu medidas de exceção que culminaram com o fechamento da Aliança Nacional Libertadora, sob acusação de ser uma organização comunista e ligada a Moscou e dali apoiada materialmente. Na medida, pois, em que as forças populares buscavam formas de organização e travavam a luta, as forças reacionárias vedavam todas as saídas pacíficas, lançando-se às soluções de violência. As esperanças depositadas pelas camadas populares na revolução de 1930 vinham sendo frustradas: a caminhada para a ditadura de fato era inevitável e constituía, naquela fase, a necessidade da burguesia. […] o governo fechava a Aliança Nacional Libertadora e dava início à repressão de todos os movimentos e iniciativas de caráter popular e democrático, encontrando ampla conivência no Legislativo e com apoio de propaganda como o país ainda não conhecera. Tratava-se, em primeiro lugar, de desfigurar o caráter da organização de frente, acoimando-a de extremista e criando as condições para o seu enquadramento policial”. (SODRÉ, 1979, p. 255).
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burguesa em nosso país, na época: a forma que continha as características ostensivas de
repressão ao avanço da classe operária e de realização das reformas burguesas”. (SODRÉ,
1979, p. 270). Por fim, “o bonapartismo colonialista assumiria, assim, forma específica,
levando à ditadura pretoriana, aquele tipo de ditadura em que a fonte de poder provém de
forças militares. A cúpula militar estava preparada para o exercício dessa função, desde que se
desencadeara a reação”. (SODRÉ, 1979, p. 270).
Em 29 de outubro de 1945, Getúlio Vargas seria deposto por um golpe militar de
cúpula (SODRÉ, 1979).
era preciso extirpar da vida nacional qualquer possibilidade de avanço de qualquer manifestação popular, ainda no nível do trabalhismo que se originara no ventre do Estado Novo. Tratava-se, agora, de realizar, com fachada democrática, a política do imperialismo e do latifúndio, sem meias medidas. […] Tratava-se para o governo do general Eurico Gaspar Dutra de realizar, com a vigência de alguns instrumentos democráticos, o funcionamento do legislativo, por exemplo, aquela tarefa que é peculiar aos governos de força, agora difíceis. Para chegar a esse fim, era necessário reduzir a possibilidade de resistência do Legislativo e da opinião popular. […] Começou, assim, em 1946, a duríssima repressão policial que caracterizou o período de governo do general Eurico Gaspar Dutra. Dentro dos mesmos moldes estadonovistas, assassinavam ou espancavam, nas prisões ou em público, trabalhadores, intelectuais e até chefes militares, igualados no tratamento. Era indispensável, entretanto, reduzir o Legislativo ao silêncio, submetê-lo, tal como fora feito antes, na preparação do Estado Novo. Assim, em 1947, o governo conseguiu da Justiça Eleitoral o fechamento do Partido Comunista e, em 1948, do Legislativo, a cassação do mandato dos representantes desse partido. Rasgados os seus diplomas, desrespeitada a vontade do eleitorado que os escolhera, arrancados de suas cadeiras, foram os deputados e o senador Prestes reduzidos à clandestinidade, obrigados a foragir-se. (SODRÉ, 1979, p. 290-291).
Uma década depois o governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1961) objetivava, com
seu plano de metas, investir maciçamente na infraestrutura, além de estimular os
investimentos privados e efetivar a expansão da indústria de base, pesada, de material elétrico
e automobilística (CATANI, 1999).
Nota-se, em todo o período histórico estudado, principalmente o republicano (da “res
publica”), a ação estatal no sentido de prover relações desejadas e propagadas. O Estado
Escravista propulsionava e garantia as relações de produção escravistas, o Estado burguês
agirá da mesma forma quanto às relações de exploração capitalistas. A posição do aparelho
militar na história das sociedades, especificamente na brasileira, fica clara: agem de acordo
com seus interesses de classe, quase sempre em defesa da classe dominante, e interferem
60
diretamente – quando não produzem o episódio histórico por si sós – nos acontecimentos
sociais.
Outro aspecto importante a se ponderar sobre a história do Brasil é a formação
econômica da sua formação social. Desde logo fundada na desigualdade e exploração
desvelada, o país produziu a acumulação necessária ao desenvolvimento do modo de
produção capitalista sobre as bases escravistas, tirando proveito dela mesmo após o
rompimento com as relações de produção anteriores. A classe possuidora de então,
proprietária dos meios de produção, os senhores de engenho, mineradores, cafeicultores,
puderam se inserir com facilidade no novo modo de produção que se desenvolvia. O mesmo
não se pode falar dos pobres, escravos libertos, proletários imigrantes, e tantos outros que
embarcaram na mesma “viagem econômica” sem qualquer patrimônio, apenas com a força de
trabalho a ser vendida em troca do salário.
Sempre aliada e severamente subordinada à grande burguesia internacional, a
burguesia nacional nasceu numa posição menor daquela dos países europeus, devido ao atraso
com que o Brasil se inseriu no contexto capitalista e os resquícios coloniais da relação com a
Europa.
O Brasil que se segue com os acontecimentos de 1964 e sua história contemporânea
é fruto direto dessa formação histórica típica e de certa forma semelhante à de seus vizinhos
latino americanos.
61
4 “REDEMOCRATIZAÇÃO” E CONSTITUINTE
4.1 TRANSFORMAÇÕES NO BRASIL PÓS-64
A transformação capitalista das estruturas sociais possui uma enorme amplitude de
variações determinadas por condições históricas postas. Não se pode dizer que exista um
modelo “democrático-burguês” nos moldes das revoluções burguesas clássicas (mesmo essas
não foram todo o tempo democráticas). Tais revoluções, ocorridas na Europa, detinham o
caráter histórico revolucionário, de avanço econômico-social. As revoluções ocorridas no
contexto da dependência capitalista, o que é o caso da América latina e do Brasil
especificamente, não se apresentam, desde o primeiro momento, como transformações
propriamente revolucionárias, mas contrarrevolucionárias. O modo de produção capitalista já
posto e cristalizado encarna o conservadorismo da preservação de privilégios,
antirrevolucionário. Em outras palavras, a revolução burguesa no contexto do capitalismo
dependente decorre da necessidade inerente às leis da acumulação, assim, dada a revolução
burguesa nos países da vanguarda industrial, as revoluções burguesas nas periferias são
induzidas e não gestadas por elas próprias; fazem parte das necessidades do capital
hegemônico, não da sociedade periférica (FERNANDES, 1987).
o que a parte dependente da periferia “absorve” e, portanto, “repete” com referência aos “casos clássicos”, são traços estruturais e dinâmicos essenciais, que caracterizam a existência do que Marx designava como uma economia mercantil, a mais-valia relativa etc. e a emergência de uma economia competitiva diferenciada ou de uma economia monopolista articulada etc. Isso garante uniformidades fundamentais, sem as quais a parte dependente da periferia não seria capitalista e não poderia participar de dinamismos de crescimento ou de desenvolvimento das economias capitalistas centrais. No entanto, a essas uniformidades – que não explicam a expropriação capitalista inerente à dominação imperialista e, portanto, a a dependência e o subdesenvolvimento – se superpõem diferenças fundamentais , que emanam do processo pelo qual o desenvolvimento capitalista da periferia se torna dependente, subdesenvolvido e imperializado, articulando no mesmo padrão as economias capitalistas centrais e as economias capitalistas periféricas. (FERNANDES, 1987, p. 291).
No contexto histórico no qual as condições materiais não caminham para o
aprofundamento da revolução burguesa as transformações capitalistas são impostas em
completa contraposição aos valores democráticos preconizados pelos modelos clássicos. As
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transformações são produzidas, dessa forma, artificialmente numa associação racional entre
desenvolvimento capitalista e autocracia (FERNANDES, 1987).
Na realidade, a burguesia se colocou como democrática contrapondo o poder da
minoria comprometida com os valores e interesses feudais. Por introduzir uma nova ordem
estratificada em classes, a burguesia, logo após o início de sua revolução, tornou-se
contrarrevolucionária, reprimindo as classes não-proprietárias que desejavam outro modelo de
sociedade. Assim, ao assumir o poder do Estado a burguesia já não aparecia como
revolucionária, reprimindo a maioria que desejava radicalizar os valores democráticos de
então.
as burguesias que só agora chegaram ao vértice de suas possibilidades – e em condições tão difíceis – viram-se patrocinando uma transformação da ordem que perdeu todo o seu significado revolucionário. Ela é parte da “Revolução Burguesa” porque se integra a um processo que se prolonga no tempo e se reflete nas contradições das classes que se enfrentam, historicamente, com objetivos antagônicos. No fundo tais burguesias pretendem concluir uma revolução que, para outras classes, encarna atualmente a própria contra-revolução. A maioria já não é cega, mesmo quando compartilha as “opções burguesas”, ou se volta abertamente contra elas, identificando-se com as esperanças criadas pelo socialismo, revolucionário ou reformista. Nessas condições, há uma coexistência de revoluções antagônicas. Uma, que vem do passado e chega a termo sem maiores perspectivas. Outra, que lança raízes diretamente sobre “a construção do futuro no presente”. (FERNANDES, 1987, p. 295).
As estruturas capitalistas, ao aprofundarem sua atuação nas nações centrais,
necessitavam de parcerias sólidas que transportassem aos países dependentes e
subdesenvolvidos o novo modelo sócio-econômico, a fim de saciar, mesmo que
momentaneamente, a ferocidade da acumulação capitalista. Tais parcerias seriam encontradas
na figura das elites nacionais – no caso brasileiro a burguesia nacional – que visavam a
inserção no novo contexto histórico (FERNANDES, 1987).
As burguesias nacionais das nações dependentes – aquelas que surgem atrasadas
economicamente e quase sempre por um processo autocrático de transformação burguesa –
atuam como elite econômica, social e política nos países em que estão domiciliados
(FERNANDES, 1987). Como já visto, o poder do qual se utilizam para se afirmarem elites é
aquele advindo dos modos de produção pré-capitalistas. No caso brasileiro a burguesia
nacional se afirma da acumulação produzida pelo modo escravista de produção.
63
Tais elites são “donas” do aparato estatal nacional e “contam com suporte externo
para modernizar as forças de socialização, de cooptação, de opressão ou de repressão
inerentes à dominação burguesa”. (FERNANDES, 1987, p. 296). O que torna essa burguesia
nacional “blindada” em sua própria ordem político-social.
Nas nações periféricas a burguesia não se esforça apenas para manter privilégios de
classe, mas também para sobreviver enquanto classe, mantendo as relações de produção
intactas. Em casos de grave ameaça a sua ordem, a burguesia se dissocia de qualquer
ideologia ou utopia burguesa para assegurar a realidade de sua dominação (FERNANDES,
1987).
o idealismo burguês precisa ser posto de lado, com seus compromissos mais ou menos fortes com qualquer reformismo autêntico, com qualquer liberalismo radical, com qualquer nacionalismo democrático-burguês mais ou menos congruente. A dominação burguesa revela-se à história, então, sob seus traços irredutíveis e essenciais, que explicam as “virtudes” e os “defeitos” e as “realizações históricas” da burguesia. A sua inflexibilidade e a sua decisão para empregar a violência institucionalizada na defesa de interesses materiais privados, de fins políticos particularistas; e sua coragem de identificar-se com formas autocráticas de autodefesa e de autoprivilegiamento. O “nacionalismo burguês” enceta, assim, um último giro, fundindo a república parlamentar com o fascismo. (FERNANDES, 1987, p. 296).
Nos períodos em que a essência autocrática da burguesia se faz necessária, no
contexto de crise hegemônica, o poder burguês aparece:
em sua manifestação histórica mais extrema, brutal e reveladora, aq qual se tornou possível e necessária graças ao seu estado de paroxismo político. Um poder que se impõe sem rebuços de cima para baixo, recorrendo a quaisquer meios para prevalecer, erigindo-se a si mesmo em fonte de sua própria legitimidade e convertendo, por fim, o Estado nacional e democrático em instrumento puro e simples de uma ditadura de classe preventiva. (FERNANDES, 1987, p. 297).
A burguesia nacional coloca, através do Estado, seus interesses de classe – que ao
mesmo tempo são os interesses da burguesia imperialista – como sendo os interesses de toda a
nação. A revolução nacional, nesse ambiente, significa “integração horizontal, em sentido e
em escala nacionais, dos interesses das classes burguesas”. (FERNANDES, 1987, p. 301). E a
“probabilidade de impor tais interesses a toda a comunidade nacional de modo coercitivo e
'legítimo'”. (FERNANDES, 1987, p. 301).
64
não é só a Primeira República e a “revolução institucional”, de 1964, que fornecem evidências em píricas a essa interpretação. Bem avaliadas as coisas, a “revolução liberal”, de 1930, o Estado Novo e os Governos “nacionalistas-desenvolvimentistas” de Getúlio Vargas e de Juscelino Kubitschek palmilharam a mesma rota, embora suas aberturas políticas para baixo os apresentem sob um manto mais propício, como se fossem exceções que confirmam a regra. (FERNANDES, 1987, p. 301 - 302).
A burguesia, através da estrutura de dominação opressora montada nas periferias,
impõe seu modelo de sociedade e nação, para assim alimentar e fomentar
a existência e o aperfeiçoamento da versão que nos coube do capitalismo, o capitalismo selvagem. O “capitalismo possível” na periferia, na era da partilha do mundo entre as nações capitalistas hegemônicas, as “empresas multinacionais” e as burguesias das “nações em desenvolvimento” - um capitalismo cuja realidade permanente vem a ser a conjugação do desenvolvimento capitalista com a vida suntuosa de ricas e poderosas minorias burguesas e com o florescimento econômico de algumas nações imperialistas também ricas e poderosas. Um capitalismo que associa luxo, poder e riqueza, de um lado, à extrema miséria, opróbrio e opressão, do outro. Enfim, um capitalismo em que as relações de classe retornam ao passado remoto, como se os mundos das classes socialmente antagônicas fossem os mundos de “nações” distintas, reciprocamente fechados e hostis, numa implacável guerra civil latente. (FERNANDES, 1987, p. 304).
No Brasil pré-64, o povo não possuía legítimos mandatários que defendessem seus
interesses, o populismo era o radicalismo burguês que pregava uma ordem democrático-
burguesa mas sem que com isso representasse qualquer pluralismo real no trato da estrutura
política (FERNANDES, 1987):
a “demagogia populista” não procedia de qualquer pluralismo real : ela era uma aberta manipulação consentida das massas populares. O povo não possuía nem mandatários responsáveis nem campeões leais no “campo burguês”; e quando o jogo democrático se tornou demasiado arriscado, os verdadeiros atores continuaram o baile sem máscaras. Em suma , não existia uma democracia burguesa fraca, mas uma autocracia burguesa dissimulada. (FERNANDES, 1987, p. 339-340).
Diante da mera tentativa de afirmação da massa composta pela classe dos que não
detêm a propriedade dos meios de produção, a reação auto-defensiva da burguesia foi
imediata (FERNANDES, 1987).
65
a contra-revolução burguesa, por sua vez, explica como se passa do econômico e do social para o político: como as classes e os estratos de classe burguesas impuseram às demais classes sua própria transformação econômica, social e política, a qual acarretava profundas alterações nos padrões institucionais de relações de classes, de organização do Estado nacional e de vinculação dos interesses de classe burgueses com os ritmos econômicos, sociais e políticos de integração da Nação como um todo. No plano histórico, passava-se, pura e simplesmente, de uma ditadura de classe dissimulada e paternalista para uma ditadura de classe burguesa aberta e rígida. (FERNANDES, 1987, p. 342).
A ditadura de classe burguesa, nesse sentido, de forma dissimulada ou aberta, busca
essencialmente atingir seus objetivos de classe:
as classes e estratos de classe burgueses patrocinam e estão patrocinando, portanto, um intervencionismo estatal sui generis. Controlado, em última instância, pela iniciativa privada, ele se abre, em um pólo, na direção de um capitalismo dirigido pelo Estado, e, em outro, na direção de um Estado autoritário. […] O Estado adquire estruturas e funções capitalistas, avançando, através delas, pelo terreno do despotismo político, não para servir aos interesses “gerais” ou “reais” da Nação, decorrentes da intensificação da revolução nacional. Porém, para satisfazer o consenso burguês, do qual se tornou instrumental, e para dar viabilidade histórica ao desenvolvimentismo extremista, a verdadeira moléstia infantil do capitalismo monopolista na periferia. (FERNANDES, 1987, p. 346).
A revolução burguesa no Brasil é revolução no sentido em que transforma as
estruturas sociais, mas não revolucionária no sentido progressista da palavra.
Se é possível caracterizar um modus operandi de transformação político-econômica,
ou simplesmente social,
a marca registrada das transformações do período republicano brasileiro – seja em sua velha, moderna, recente ou prematuramente envelhecida – é a da transição social e política morosa e arrastada, imediatista e preservadora de conteúdo. Trata-se de um constante realinhamento político conservador, apoiado no transformismo institucional e escorado na intervenção corretiva, geralmente administrativa (burocrático-partidária), policialesca ou manipulativa de opinião pública e, muitas vezes, por via militar. (DREIFUSS, 1989, p. 9).
O período objeto deste trabalho não foi diferente,
a recente transição do regime autoritário empresarial-militar para a presente situação pluralista não fugiu à regra: transcorreu como mais um processo de
66
realinhamento conservador entre os setores dominantes do país, gestado e 'conchavado' no interior da Sociedade Política dominante. E o contínuo realinhamento conservador tem, por sua vez, uma contrapartida no sistemático desarranjo da sociedade civil-popular, permanentemente destruída, desarticulada ou distorcida pela intervenção repressiva das elites dominantes. (DREIFUSS, 1989, p. 9).
Isso se deve, em muito, por que a Sociedade Política Brasileira “não nasceu de
rupturas profundas entre estratos sociais, camadas e segmentos dominantes tradicionais e as
novas classes capitalistas, mas de um processo de convergência de classes e elites
dominantes”. (DREIFUSS, 1989, p. 9). Sem sequer uma ruptura tímida do status quo
constituído, o período da recente “redemocratização” se apresentou como perpetuador das
desigualdades e vícios sociais característicos da sociedade burguesa. Tais problemas não
foram resolvidos, foram antes mantidos, aprimorados e ideologicamente manejados.
O processo de “transformação” social brasileiro, como apresentado, apenas segue
uma lógica de aperfeiçoamento de superestruturas sociais para a melhor gestão da coisa
privada, como no passado, “o Brasil oligárquico-imperial transformou-se em Re(s)pública no
final do século passado, mas continuou como 'coisa privada' das elites dirigentes e classes
dominantes”. (DREIFUSS, 1989, p. 10).
Nesse sentido, historicamente, a sociedade política empresarial que se formou no
Brasil, aglutinada por interesses político-ideológicos nacionalmente, realizou “um 'pacto
social' com as oligarquias rurais e outros agrupamentos localistas e da administração regional
e central, absorvendo, nesse processo, a mentalidade escravagista, o servilismo oligárquico e a
complacência despótica estamental-estatal para dentro do seu universo de percepções e
atitudes”. (DREIFUSS, 1989, p. 10-11). Tal organização política composta essencialmente
pelo empresariado industrial e os setores comerciantes e agrários impediu que o mesmo nível
de organização fosse atingido pelas demais forças sociais, “impedindo-as de se constituírem
em classes predispostas, política, legal, e legitimamente, a lutar por seus próprios interesses”.
(DREIFUSS, 1989, p. 11). A classe burguesa, instituída e consciente de si, atuando de acordo
com seus interesses25, manifesta-se historicamente de forma aberta no Brasil, “a intervenção
25 “ao apropriar-se do conjunto da máquina gerencial, com esta sobredeterminação de comportamento personalista, oligárquico, caudilhesco, patrimonial e clientelista, as elites urbano-rurais impediriam a generalização conseqüente e a descaracterização de sua própria dominação, abortando com isso, a consolidação do Estado como um dissimulado disciplinador das relações de classe. Mais: as camadas dirigentes (na política) e dominantes (na economia), com suas práticas excludentes e exclusivistas, em seu constante realinhamento conservador e em sua permanente convergência elitista, nem sequer criaram a ilusão geral dos interesses sociais, ou a ilusão do interesse geral. O Estado para funcionar nesse contexto,
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sindical, o controle estatal dos sindicatos, a interrupção das suas atividades, a repressão
partidária e de movimentos sociais são aspectos visíveis do veto organizado. Outras formas
mais sutis de desarticulação foram empregadas no campo cultural ou da identidade étnica”.
(DREIFUSS, 1989, p. 11).
O Estado constituído pela convergência das elites se afirma, no Brasil, como
preservador e sintetizador das características da sociedade de classe escravista,
o Estado será o instrumento negador da individualidade e cidadania, sem as quais as próprias formações concretas, noções e práticas de classe, sociedade e nação são incompreensíveis, porque inexistentes no âmbito da população subordinada, a não ser como referência ideológica e ilusão transportada de outros espaços nacionais e tempos políticos. Assim, resta ao Estado funcionar como afirmador dos privilégios e interesses coletivos das classes dominantes. (DREIFUSS, 1989, p. 12).
No Brasil, a questão política tornou-se cada vez mais coisa dos “homens bons” e
cada vez menos do povo, “carente de cidadania , o país se dividia entre os crimes 'hediondos'
e os de 'colarinho branco'. A justiça era para os ricos, a PM para os pobres”. (DREIFUSS,
1989, p. 12).
Não se pode caracterizar as superestruturas institucionais como representantes da
sociedade civil-popular, “mas sim de um estado geral de dominação a que as elites submetem
o país. Seus partidos nunca conseguiram ser mecanismos de governo ou de incorporação das
'partes societárias' ao universo estatal, mas apenas agentes de manipulação e partes
interessadas pelo espólio deste”. (DREIFUSS, 1989, p. 13). Tais partidos convencionais
foram concebidos como
máquinas, retalhadas entre politiqueiros profissionais e pelegos partidários, de extração empresarial, burocrática, militar, ou simplesmente recrutados no seio da população, como saída individual para a ascensão social ou a realização de ambições pessoais. Formou-se, assim uma virtual sociedade de políticos partidários e burocratas, munida de mecanismos de auto-reprodução e expansão, instalada na Sociedade, isto é, situada e posicionada no lamentável estado de
teve de ser paternalista e autoritário, não cívico. O tratamento coercitivo da questão social foi alicerçado na prática de um estado, percebido e justificado como sendo uma associação política que reclama o monopólio do legítimo uso da violência, tendo um único fim: o de salvaguardar, e em certos casos mudar, a distribuição interna do poder. O Estado foi projetado como preservador das relações sociais de poder e produção […] Assim, suas premissas foram esvaziadas, bem como sua autoridade, que só poderia ser constituída e exercida na medida em que o Estado se apresentasse como superador das particularidades classistas e não como agente dos segmentos dominantes”. (DREIFUSS, 1989, p. 11-12).
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coisas da política nacional, desvirtuadora do Estado e, mais ainda, flagrantemente desestruturada para dirigi-lo. (DREIFUSS, 1989, p. 13).
O Estado brasileiro, cujos aparelhos coercitivos a maioria despossuída da população
interage cotidianamente, “se estruturou num processo de convergência político-ideológica dos
agrupamentos dominantes, seria consolidado como patrimônio exclusivista de elite e
excludente de representação popular”. (DREIFUSS, 1989, p. 13). Ainda, a constituição do
Estado como instrumento de classe, no caso flagrante do Brasil26, exige, de outro lado, a
mutilação da consciência de classe do povo trabalhador, plano impecavelmente levado a cabo
(DREIFUSS, 1989, p. 13).
As elites dominantes, encabeçadas pela burguesia, dessa forma, como detentoras das
rédeas do Estado veem a preservação das estruturas socioeconômicas vigentes como questão
primordial da segurança nacional, nação esta nascida não da sedimentação histórica mas
militarmente. Assim, no âmago da “nação, gestada e preservada por ação estatal (e não social)
–, toda ação política que pretenda transformar as relações sociais será vista como
desagregador da entidade nacional e, em consequência, como uma ameaça às prerrogativas do
Estado”. (DREIFUSS, 1989, p. 14). Entende-se, por aí, o motivo pelo qual a ação política
visando aos objetivos das classes subordinadas serem consideradas antipatrióticas e
subversivas da ordem nacional27.
O Estado brasileiro se edificou como “ineficaz e autoritário, que, dependendo da
situação, oportunidade e correlação de forças circunstancial e em perspectiva, será de feitio
civil (burocraticamente partidário) ou militar (policialmente burocrático)”. (DREIFUSS,
1989, p. 16).
26 “em plena República, a res publica no Brasil não passa de ficção, justamente por falta objetiva de 'estado cívico' da população, ou seja, por ausência induzida-coercitiva ou repressivamente – dos ingredientes culturais, sociais e políticos básicos, que lhe dariam sustentação e que em outros lugares foram constituídos e sedimentados historicamente: cidadania, individualidade, legalidade, organização e manifestação política autônoma (cultural, sindical e partidária) e delegação responsável e responsabilizável de autoridade legítima. Enfim, o país carece de uma verdadeira Sociedade Civil e Política Popular e nesse contexto e sentido, o Estado é uma quimera”. (DREIFUSS, 1989, p. 14). 27 “assim, será fácil às elites dirigentes e classes dominantes deslizarem por cima das diferenças que separam o questionador social do status quo do ativista antinacional. A seus olhos, será plenamente justificada a transposição, via militar, do marco da legalidade em nome da salvação social e contra os que reivindicam a sua redenção social. É nesta equiparação tupiniquim da nação 'estatizada' com o 'estado social' do país – e não na importação ideológica – que se deve procurar o embrião do autoritarismo e a matriz da doutrina de 'Segurança Nacional'”. (DREIFUSS, 1989, p. 14-15).
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e isto porque, é bom repetir, foram as elites – não a população, repetidamente reprimida, golpeada e marginalizada por intervenções políticas, administrativas e militares – que fizeram das instituições políticas e administrativas uma intrincada rede de aparatos, mecanismos e recursos de poder e um conglomerado de privilégios a serem usufruídos. Criaram, enfim, um 'estado geral de manipulação administrativa', que foi imposto às camadas subalternas. A administração regional e nacional tornou-se patrimônio de setores econômicos, profissionais, político-partidários, burocráticos e militares, todos eles pertencentes a este particular e excludente clube civil dominante, encastelado na Associação Política de elites, e compondo uma Sociedade Política dominante, que se coloca como ordenadora do 'estado de coisas' e como dirigente das coisas públicas. Esta apropriação das instituições (que deveriam ser assunto ou coisa pública) pelo governo de elites dá a medida da desapropriação de que a sociedade foi objeto e da alienação do produto final – o Estado – em relação à sociedade civil-popular. (DREIFUSS, 1989, p. 16).
Nesses termos, a atuação classista das elites dominantes fez com que a dominação –
necessária à preservação das relações de produção vigentes – não passasse despercebida,
exercida através de constantes intervenções que ferem a legalidade que outrora as próprias
impuseram28. “Embora exerçam a dominação de classe, impedem a sua opacidade, isto é, a
tão propalada institucionalização, obrigado a constantes intervenções extra-legais das classes
dominantes e ao apoio na Sociedade Política Armada”. (DREIFUSS, 1989, p. 16).
O Estado brasileiro não é um Estado da sociedade brasileira, senão um Estado de
classe, portanto não reconhece e não está construído para reconhecer as demandas do povo.
De qualquer forma,
se porventura ou descuido, a imposição de normas e valores dominantes for questionada, o governo e as elites descambarão rapidamente para o autoritarismo, de corte militar, já que a massa é incontrolável de outra forma, tamanha a carência e as demandas reprimidas. Em suma: as elites dominantes não encaminharão a institucionalização tão propalada e reclamada e, numa inversão perversa, imputarão à índole da população as consequências negativas de suas ações e omissões. (DREIFUSS, 1989, p. 17).
Ser ou não um governo “democrático” (governo civil por sufrágio universal), trata-
se, nesse Estado, de mera situação momentânea. Se o Estado está democrático é porque não
precisa para manter a dominação de classe e o status quo, no momento, recorrer às
28 “aos olhos das elites civis e militares, os manifestantes são sempre agitadores estranhos à massa ou militantes profissionais portadores de ideologias exóticas – já que, ao recusar a estratificação social vigente estariam insurgindo-se contra a nação concretizada como sociedade – , e não cidadãos, no exercício de seus plenos direitos (de rejeitar o 'estado de coisas' e almejar uma realidade diferente)”. (DREIFUSS, 1989, p. 17).
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instituições mais autenticamente repressivas, apesar de a polícia militar não deixar de atuar
um só dia29.
A polícia, da forma como hoje se encontra institucionalizada, é um braço militar
especializado do aparelho repressivo estatal. É a força militar encarregada da primeira linha
de repressão e controle de conflitos que ameacem a ordem social. As polícias militares, nesse
sentido, por manterem um vínculo orgânico de subordinação às forças armadas militares, são
sub-aparelhos destas. Ou seja, como aparelhos repressivos de Estado possuem a mesma
essência e atuam de formas semelhantes (BORGES FILHO, 1994).
Como o já exposto, o Estado brasileiro, como qualquer Estado, é um Estado de classe
e age com o objetivo primordial de manter determinado complexo social que sustentam
determinadas relações de produção. Portanto, os aparelhos repressivos de Estado são os
mantenedores diretos da ordem.
No Brasil, a figura policial foi inaugurada no processo de colonização, quando D.
João III concedeu plenos poderes para que Martim Afonso de Souza administrasse as “novas
terras”. O mesmo ocorreu com os donatários, que eram responsáveis pela administração da
justiça e das atividades policiais em suas terras (BORGES FILHO, 1994, p. 33). Nesse
momento histórico o poder estatal era exercido, de forma privada, diretamente pelos
donatários a quem foram concedidas a utilização das terras brasileiras. Os detentores das
terras e dos meios de produção eram também os promotores de justiça e chefes de polícia, ou
seja, dominavam a produção e, em consequência, o poder supremo de vida e morte na sua
jurisdição.
Como instituição, as PPMM (Polícias Militares) brasileiras têm suas origens nas
diversas corporações que eram utilizadas pelo Estado para reprimir colonos, escravos e outros
setores marginalizados. Com a criação da divisão militar de guarda real de polícia do Rio de
Janeiro, em 1809, sedimenta-se a instituição “Polícia militar”, como se conhece hoje30. A
29 “a indiferença absoluta à reivindicações destas agremiações sociais populares e, quando necessário, a sua desarticulação, realiza-se através do governo de turno, que as distorce, corrompe, ou até se apossa delas, de variadas formas – clientelismo, incorporação, mandonismo, 'cabresto', paternalismo, populismo, burocratismo, etc. –, ou, em sua versão extrema, na base da desagregação coercitiva, por meio de capangas e pistoleiros, se o conflito é de baixa intensidade e e circunstancial; através de policiais militares, quando é localizado e de situação; e acionando os militares, quando é geral e de estado”. (DREIFUSS, 1989, p. 18). 30 “os Corpos de Guardas Nacionais, muito embora tenham sido criados para funções policiais, mantinham caráter militarizado, ensejaram o nascimento das corporações militares nas Províncias, constituindo-se na origem de várias PPMM da atualidade. O caráter militarizado dessas corporações tinha a sua razão de ser, uma vez que eram chamadas, com frequência, a colaborar com as tropas de 1ª linha na repressão às rebeliões armadas que ocorriam em várias províncias, assumindo assim o que hoje se conhece como força de reserva do Exército”. (BORGES FILHO, 1994, p. 37-38).
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referida divisão estava diretamente subordinada ao intendente geral de polícia e ao
governador de armas da corte, tal como ocorre hoje com as atuais PPMM, vinculadas ao
governo estadual e à inspetoria de polícia – órgão das Forças Armadas (BORGES FILHO,
1994, p. 36).
De fato, a constituição federal de 1988 em seu art. 144, §6º, atribui o status de força
auxiliar e reserva do exército às Polícias militares e Bombeiros Militares: “As polícias
militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército,
subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito
Federal e dos Territórios”. (BRASIL, 2011).
As Polícias Militares não restringem sua atuação na segurança pública, atuam,
também, no sentido de garantir uma “segurança interna”. Esta abrangida pelo conceito de
segurança nacional31 segundo a qual os antagonismos e pressões são produções estranhas à
sociedade (BORGES FILHO, 1994, p. 38-39).
Por sua vez, o conceito de segurança pública denota o sentido de segurança da
coletividade, elemento para a permanência da vida comum. Portanto, ao se mobilizar para
combater um inimigo interno e engajar-se na segurança interna, as PPMM se distanciam do
seu papel de segurança pública para se confundir com a atuação das próprias Forças Armadas
(BORGES FILHO, 1994, p. 39-40).
ocorre, entretanto, que as PPMM são treinadas para ações de segurança interna, cujos métodos não se coadunam com a segurança pública. Salienta-se, ademais, que toda a sua estrutura organizacional está voltada, também, para a segurança interna, que passa a ser a sua missão principal. A segurança pública aparece como missão secundária. Na medida em que as PPMM são consideradas forças auxiliares do Exército, a sua militarização é conditio sine qua non para o pleno exercício de um quadro considerado de grave perturbação da ordem ou de guerra externa, quando mobilizadas pelo governo federal. […] Apesar de que a missão básica das PPMM deveria ser voltada para o quadro de segurança pública, toda a sua estrutura organizacional está montada para questões de segurança interna. Além de que, na prática, fica muito difícil estabelecer o que vem a ser “grave perturbação da ordem com ameaça da comoção social violenta”. (BORGES FILHO, 1994, p. 40).
31 “para o coronel Carlos Alberto Gomes, Chefe do estado Maior da PM de Santa Catarina [à época], “a Polícia Militar tem decisiva participação neste processo, sob a direção do Governo Estadual e sob o controle da Expressão Política do Poder Nacional, em ações contra tumultos, distúrbios ou agressões generalizadas, empregando suas tropas de choque”. (BORGES FILHO, 1994, p. 39).
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Muito embora, atualmente, de acordo com a Constituição Federal de 1988, as
Polícias Militares exerçam a função de polícia administrativa e as polícias civis a função de
polícias judiciárias, “tanto uma quanto outra, atuam mais como forças repressivas do que
como forças preventivas. Não fosse assim, não haveria necessidade das PPMM organizarem
seus pelotões de choque”. (BORGES FILHO, 1994, p. 42).
Os aparelhos repressivos refletem a estrutura econômica da sociedade. No Brasil
colônia, as forças a repressão eram controladas geralmente por superiores portugueses que
possuíam interesses intimamente ligados à manutenção da apropriação no seu modelo colonial
(BORGES FILHO, 1994, p. 42-43):
a participação dos colonos (nativos) proprietários das armas (tropa de 2ª linha) consistia no prestígio que a farda lhes davam e reforçava seus laços de dominação e poder sobre os colonos não-proprietários. Nesse contexto, os colonos proprietários se identificavam com os fundamentos da própria força repressiva colonial, pois ela lhes garantia a ordem interna (relações sociais de produção) e permitia a manutenção ou reforçamento dos laços de dominação sobre os colonos não-proprietários. Já os colonos não-proprietários viam a carreira militar como ascensão na escala social, muito embora essa ascensão fosse bem modesta, em face de sofrerem barreiras formais ou não, que se interpunham à promoção de nativos aos postos superiores do oficialato. (BORGES FILHO, 1994, p. 43).
Com a mudança estrutural que significou a abolição do modo de produção escravista
e a instauração da República burguesa,
já não eram os escravos nem os abolicionaistas que ameaçavam o status quo. A contestação partia, agora, da classe operária, uma vez que o desenvolvimento industrial dos grandes centros acelerava a expansão desta classe e também seuas possibilidades contestatórias, o que levava à reorganização das forças repressivas. (BORGES FILHO, 1994, p. 44).
Historicamente as instituições policiais brasileiras foram instituições repressivas de
classe, burguesa desde 1889, no sentido em que defende a ordem da classe dominante.
com isso ocorreria uma militarização das forças estaduais. Na verdade, o que aconteceu por parte das forças estaduais foi um processo de militarização controlado pelo poder civil e colocado a serviço das classes dominantes. Assim, a militarização era fruto da política dos governadores e visava imprimir às forças repressivas estaduais os princípios de subordinação aos interesses de uma nova classe emergente: o empresariado industrial. Essa militarização, dentro do processo de desenvolvimento econômico do país, ia se acentuando à medida que cresciam as reivindicações da sociedade civil. Desta forma, a reorganização das
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forças repressivas acompanhava pari-passu a mobilização dos movimentos de base, sendo que, a partir de 1964, essas forças repressivas se colocam a serviço do governo militar e dos segmentos que promoveram o golpe de Estado. (BORGES FILHO, 1994, p. 45).
João Goulart assumiu o poder após o então presidente Jânio Quadros renunciar.
Emergindo da oposição da época, o PTB, Goulart atravessou, durante seu mandato, o que se
pode chamar de três etapas políticas. A primeira etapa é caracterizada pela tentativa de
reconquistar os poderes presidenciais que lhe foram negados no ato de sua posse (1961) até
janeiro de 1963; a segunda diz respeito ao período que compreende de janeiro a junho de
1964, no qual Goulart passa a seguir as orientações contidas em seu plano trienal; por fim, a
terceira etapa, caracterizada pela crise política e agitação social, em que passa a caminhar na
direção das reformas de base32 tão prometidas (BORGES FILHO, 1994, p. 48).
As tais reformas de base do presidente Goulart – burguesas, mas que iam de encontro
aos interesses imediatos dos setores mais reacionários – foram o estopim para o
recrudescimento da conspiração golpista33, existente desde a posse, contra o governo
constituído.
A conspiração para a derrubada de um presidente constitucionalmente eleito foi
empreendida e endossada pelo império norte-americano por diversas vezes, principalmente na
32 “as Reformas de Base do Presidente Goulart tinham como principais metas os seguintes pontos: reforma agrária, com emenda do artigo da Constituição que previa a indenização prévia em dinheiro; reforma política, com extensão do direito de voto aos analfabetos e praças, segundo a doutrina de que os alistáveis devem ser elegíveis; reforma universitária, assegurando plena liberdade de ensino e abolindo a vitaliciedade de cátedra; reforma da Constituição para delegação de poderes legislativos ao Presidente da República; e consulta à vontade popular, através de plebiscito, para o referendum das Reformas de Base. Evidentemente que essas reformas não tinham qualquer cunho socializante, ao contrário elas visavam sobretudo modernizar o capitalismo brasileiro dando-lhe uma maior autonomia e não permitir que houvesse um aumento de tensões nas zonas rurais. Goulart entendia que a reforma agrária, por ele proposta, serviria como instrumento para ampliação do mercado interno, necessária ao desenvolvimento industrial do país”. (BORGES FILHO, 1994, p. 49). 33 “em Minas Gerais e São Paulo irromperam conflitos. Os partidos políticos, com exceção do PTB, pediam o impeachment do Presidente. Entidades como a campanha da Mulher Democrática (CAMDE), Fraterna Amizade Urbana e Rural (FAUR), União Cívica Feminina (UCF), Sociedade Rural Brasileira (SRB) e outras, articularam a realização, nas principais cidades do país, das chamadas Marchas da Família com Deus pela Liberdade. O empresariado se agrupava em torno de duas instituições, o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Mais tarde o IBAD seria fechado com respaldo em documentação que os membros da Comissão Parlamentar de Inquérito encaminharam aos Poderes Judiciário e Executivo, “comprovando sua intervenção no processo de escolha dos representantes políticos do povo brasileiro, para a tomada do Poder através da corrupção eleitoral. A conspiração contra o governo Goulart era uma rede que contava com a colaboração não só de militares, mas também de latifundiários, comerciantes, industriais e profissionais liberais”. (BORGES FILHO, 1994, p. 50).
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Amárica Latina. Na esteira da “Aliança para o progresso”, viam no Brasil a necessidade de
intervir para não perder seu poder e total domínio sobre a região34.
nas vésperas do golpe militar, os Estados Unidos acionaram a Operação Brother Sam, que consistia na expedição para o Brasil de uma força-tarefa, composta pelos porta-aviões Forrestal, destróieres de apoio, navios carregados de armas e mantimentos, bem como de petroleiros carregados de combustível, além de aviões de transporte de tropas e armas. A Operação Brother Sam não visava das apenas apoio logístico, mas, se necessário, intervir militarmente no Brasil. (BORGES FILHO, 1994, p. 51).
A fundamentação filosófica para a manutenção das ditaduras latino-americanas,
logicamente, foi mais uma importação enlatada do norte das Américas, a chamada DSN –
Doutrina de Segurança Nacional.
Tal doutrina visava repelir qualquer empreendimento socializante nas terras em que
os EUA possuíam influência. “A DSN é a manifestação de uma ideologia que repousa sobre
uma concepção de uma guerra permanente e total entre o comunismo e o Ocidente”.
(BORGES FILHO, 1994, p. 52).
Nesse contexto a guerra não se trava puramente entre nações, mas entre propostas
político-econômicas completamente distintas. Não é mais apenas a nacionalidade do outro
que o faz inimigo, mas a sua ideologia e, em muitos casos, quando não se podia definir
claramente suas ideias, sua capacidade intelectual.
Nos tempos mais ardentes da guerra fria a DSN propagava que
a segurança dos Estados Unidos estava ligada à segurança do bloco ocidental, uma vez que com o clima permanente da guerra fria, um sistema de segurança isolado não era mais admissível no mundo capitalista. A noção de guerra total deve ser entendida em muitos sentidos. Primeiramente, ela faz um apelo a todas as formas de participação, excluindo a neutralidade. Em segundo lugar, a guerra é sobretudo total no sentido de que antagonismo dominante se encontra, igualmente, nas fronteiras nacionais. A agressão pode vir tanto do exterior quanto do interior. Portanto, as propostas sobre a infiltração generalizada do comunismo consolida e justifica a repressão interior. O bipolarismo dominante
34 “Lincoln Gordon, diplomata norte-americano, diria mais tarde ao governador Carlos Lacerda: “estou muito feliz com a sublevação de Minas Gerais, porque evitou uma coisa muito desagradável que seria a necessidade de intervenção militar americana no Brasil”. […] sabiam os militares brasileiros que poderiam contar com o apoio imediato dos Estados Unidos no caso de uma guerra civil. O governo norte-americano, através do Pentágono e da CIA e seus agentes, colaborava full-time com os conspiradores brasileiros e exigia uma decisão urgente dos sediciosos: “o Presidente Goulart deve ser removido às pressas. Não há possibilidade de resolução legal. Se as Forças Armadas não agirem agora, cedo ou tarde elas ficarão sem líderes” [último excerto, conforme nota do Autor, do telegrama da CIA de 30/03/64, intitulado: Plano dos conspiradores revolucionários em Minas Gerais]”. (BORGES FILHO, 1994, p. 51).
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trabalha, portanto, de igual forma com a conjuntura internacional e nacional, dentro do quadro geopolítico. […] a geopolítica dos militares latino-americanos visa não somente estabelecer os limites geográficos do Estado, mas trabalhar com as fronteiras ideológicas, um tipo de fronteira que não separa um Estado-Nação de outro, mas uma parte do povo de outra parte do povo, no interior de cada Nação. (BORGES FILHO, 1994, p. 52-54).
A DSN, adotada pelo governo militar brasileiro após o golpe de abril de 1964, como
dito, implementa na sociedade a guerra total que se internaliza na figura do elemento nacional
“subversivo” ou “terrorista”.
No contexto da guerra fria e da luta anti-subversiva que servem de pano de fundo à doutrina, o mito da guerra é um tratamento permanente e fundamental que é fortemente sentido pelos militares e passado para a sociedade. Desta forma, o mito da guerra e o inimigo interno permitem ao Estado instaurar sua política repressiva e converter a polícia em instrumento moralizador de que dispõe o regime, fatores indispensáveis para desmobilizar a população. (BORGES FILHO, 1994, p. 56).
Empreendida pelos governos sob a égide da DSN norte-americana, o estado de
guerra, o qual convertia lutas populares de modificação social em ações do inimigo
antinacionalista, não se limitava ao belicismo tradicional, mas também de travar uma guerra
psicológica35.
O terror se transforma na principal arma do Estado guiado pela doutrina imperialista.
O terrorismo de Estado vigorou e vigora nas Américas.
o terror é utilizado diretamente a fim de intimidar o inimigo e dissuadir os indecisos. O uso sistemático dos aparelhos repressivos, através da tortura, do assassinato, do desaparecimento de pessoas e de prisões arbitrárias, são formas de guerra psicológica colocadas em prática pelo Estado de Segurança Nacional. (BORGES FILHO, 1994, p. 56).
Todo ato ou pensamento que não compatibilize com os objetivos das elites, aos olhos
da DSN, em seu discurso, não são produzidas pelo povo, mas ideias implantadas pelo inimigo
35 “para que a DSN possa impor seu projeto político é fundamental que se apele para a guerra psicológica. Trata-se de aniquilar moralmente o inimigo e de separá-lo dos demais cidadãos e, de outra parte, de assegurar a não-oposição ativa contra o projeto político da DSN. As técnicas psicossociais e os meios de comunicação adquirem uma grande importância na manifestação das massas. A partir de uma tipologia que distingue os inimigos, os indecisos e os neutros dos engajados, o esforço da DSN visa desmoralizar o inimigo, a produzir deserções, a criar o silêncio, a fazer cooperar, a denunciar e a fazer aderir às políticas do Estado”. (BORGES FILHO, 1994, p. 56).
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para corroer a nação por dentro. Para essa doutrina o povo não é a população do país, mas
aqueles que teriam o nível político e sócio-econômico para decidir pela Nação. Os cidadãos,
ao estilo “democrático” da Grécia antiga. Portanto, “para a DSN, a legitimidade do poder não
emana e não depende de uma eleição popular. Assim, a legitimidade baseada somente na
legalidade formal não é suficiente e nem assegura o pleno exercício da autoridade”.
(BORGES FILHO, 1994, p. 57).
Os objetivos nacionais, os quais são ardorosamente defendidos contra os inimigos,
mesmo nacionais36, não são os objetivos do país, pois um país não possui objetivos, mas da
classe que se considera detentora e porta-voz de tais objetivos. Para que a Nação caminhe,
então, para o seu “verdadeiro destino”, a vontade popular deve ser esmagada pela vontade da
classe dirigente (BORGES FILHO, 1994, p. 57-58).
No âmbito da América latina a DSN cumpriu as vezes de ideologia filosófico-
político-militar, impulsionada, principalmente pelo “papel dos Estados Unidos que se
colocam como o bastião da defesa da civilização ocidental, fator determinante para a
expansão da DSN nos países latino-americanos”. (BORGES FILHO, 1994, p. 61). No Brasil,
especificamente, tal doutrina passou a ser introduzida nos círculos militares com a criação da
Escola Superior de Guerra (ESG).
é com a criação da ESG, fundada em 20 de agosto de 1949, que a DSN se inscreve na vida política brasileira. Os estudos que nela se organizam e as propostas que daí resultam vão garantir a presença política dos militares no interior do aparelho de Estado. Nessa direção a ESG assume um papel fundamental no processo político brasileiro, através da criação e propagação da doutrina, com os diversos cursos que ali são realizados. Os cursos programados pela Escola, que de início eram dirigidos somente a militares, atingem também os segmentos civis, notadamente profissionais liberais, empresários, sindicalistas e professores universitários (BORGES FILHO, 1994, p. 61).
A linha de pensamento propagada pela ESG visava dar respaldo a atuação estatal
sobre os “desmandos” e “irresponsabilidades” do povo, que não saberia decidir o que é bom
para o país. O povo estaria suscetível a ameaça estrangeira, comunista, que o seduziria e o
36 “a principal razão da figura do inimigo interno é manter a coesão e o espírito do corpo do grupo que detém o poder. Por outro lado, a existência do inimigo interno e a necessidade da existência de uma guerra permanente servem, também, para manter um estado permanente de crise, que mesmo sobre uma base fictícia, é muito efetivo do ponto de vista policial e jurídico. O estado de crise permite impor restrições do ponto de vista das liberdades e dos direitos individuais e criar procedimentos arbitrários. Isto facilita o controle policial da população, autoriza o uso discricionário das forças de repressão e permite isolar o inimigo”. (BORGES FILHO, 1994, p. 57).
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levaria ao pior dos infernos imagináveis. Como representantes dos “legítimos conhecedores
da verdade”, “guiados por deus”, a burguesia, junto aos seus fiéis escudeiros, “magnânimos
defensores da liberdade”, os militares, vinham como que para abrir os olhos da população
para fazê-la enxergar o real “espírito brasileiro”.
Nesse caminho a DSN desenvolvida pela ESG transfigurava o intelectual
questionados ou o estudioso social, assim como todos que questionavam a ordem econômico-
social brasileira, em inimigos do Brasil, traidores da pátria:
uma vez sendo impossível detectar quem seja, de imediato, o inimigo interno, o Estado passa a se utilizar de um aparato de espionagem para selecionar os setores da oposição que possam estar infiltrados pela ação comunista. Em consequências disso, o Estado organiza o seu aparelho repressivo e de controle armado para impor a sua vontade e coagir a população (BORGES FILHO, 1994, p. 63-64).
Dessa forma, toda a repressão e produção ideológica após a tomada do poder pelos
militares foi alicerçada na DSN.
4.2 PERÍODO CONSTITUINTE (1986-1988)
O esforço que partiu do empresariado para a “desmilitarização” do Estado, quando
muito, decorria do peso do Estado militar
esta ação política nascia no interior do próprio sistema dominante, como manobra de pinças, composta de ações de envolvimento e de isolamento. Um braço da pinça estava na Sociedade Política Armada, cujo realinhamento interno e externo permitiria e orientaria a transição possível, que já se processava sob a égide da tutela militar. Esta definiria os limites desta mudança e os seus próprios, no processo de recomposição interna e rearticulação externa, com aliados preferenciais (DREIFUSS, 1989, p. 42).
A transição
processou-se de forma lenta e gradual (assim definida pelo então presidente Geisel), além de segura – para as elites dominantes. Durou doze longos anos e passou por vários estágios: descompressão (1975-1977), distensão (1978-1979), abertura (1980-1984) e presidência civil tutelada (1985 em diante). Foi, realmente, o que Galeno de Freitas batizara de 'transição transada'. A busca da institucionalização do regime de 1964 pela via partidária – através do Congresso
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e com sustentação militar – passou a ser o esforço central do sistema de poder e do Planalto. (DREIFUSS, 1989, p. 43).
A missão da classe burguesa na constituinte era exatamente essa: manter a ordem
socioeconômica garantida após o golpe de 64 e, se possível, potencializá-la37. Após o
talentoso trabalho exercido pelas forças armadas aos seus interesses, estas se tornavam, cada
dia mais, um peso desnecessário à economia. Sem a necessidade de extraordinária repressão,
em virtude da completa destruição da organização da classe trabalhadora durante a ditadura
aberta, as forças armadas poderiam voltar ao segundo plano.
4.2.1 Preparação de uma constituinte classista
Dreifuss define três fases de atuação da burguesia no processo constituinte: a dos
pivôs político-ideológicos; a dos eixos de poder e das frentes móveis para a ação política; e a
dos comandos unificados e Estado-maior geral.
Os pivôs político-ideológicos38 foram instituições criadas por dirigentes
empresariais, tendo em vista o processo constituinte, a fim de direcionar os trabalhos em
convergência aos interesses de classe burgueses.
Dentre as mais atuantes organizações de classe, aglutinadas de acordo com o ramo de
atuação, voltadas a questão da Constituinte, destacam-se: a Câmara de Estudos e Debates
37 “apesar da indiferença de muitos, estava em curso um diligente e apressado trabalho de reestruturação política do empresariado, que dava a medida do empenho e combatividade de certas elites dispostas a enfrentar os novos desafios. Assim, o brasileiro descobriu na envelhecida Nova República uma classe empresarial que passara a se envolver na política de forma aberta e vocal – mas sem desdenhar meios e métodos mais sub-reptícios […] Em outras palavras: os empresários se preparavam para defender não somente a existência do atual regime e sistema, mas a sua readequação, desenvolvimento e estabilidade, assim como a sua reinserção ou reboque na nova configuração transnacional. Tal empreitada, porém, estava comprometida na origem, pois os reajustes propostos esbarravam, mais uma vez, nos limites do realinhamento conservador, da convergência elitista e do transformismo institucional”. (DREIFUSS, 1989, p. 44-45). 38 “os pivôs não são instrumentos estratégicos nem de projeto político, mas conjunturais e de alcance tático-operacional. Sua função é desenhar cursos de ação imediata, discernindo meios e métodos, apoiando e escorando os giros e evoluções ideológico-políticas de sua categoria social. Os pivôs são lideranças provisórias, com objetivos limitados a alvos imediatos – tais como a luta pela configuração da Assembléia Nacional Constituinte ou a eleição de governadores, em 1986. Mas do seu bom desempenho depende o sucesso de uma ação coletiva posterior e mais ampla, já que preparam o terreno para a emergência de estruturas mais 'densas', do ponto de vista da ação classista. A forma com que os diversos pivôs das classes empresariais se prepararam e agiram para eleger seus representantes constitucionais e governadores, influenciando o resultado geral das eleições de 86, foi um claro exemplo do seu poder político: uma expressão integrada de meios de propaganda, capacidade doutrinária, músculo para a coação econômica, apoio ministerial, recursos técnicos, políticos e humanos, que foram predispostos eficaz e eficientemente para as suas batalhas políticas”. (DREIFUSS, 1989, p. 50).
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Econômicos e Sociais (CEDES); o Instituto Liberal (IL); a Confederação Nacional das
Instituições Financeiras (CNF); a União Brasileira de Empresários (UB); a União
Democrática Ruralista (UDR); a Associação Brasileira de Defesa da Democracia (ABDD);
além de pequenos grupos de extrema direita (DREIFUSS, 1989, p. 50).
4.2.1.1 Cedes – câmara de estudos e debates econômicos e sociais
Em funcionamento desde 1980, tendo sua atuação expandida e intensificada em
virtude da eleição dos representantes para a futura constituinte. Tinha em Delfim Netto seu
principal projeto para a Assembleia Constituinte, além de uma lista de 30 nomes (de vários
estados e partidos) com os quais o ex-ministro pretendia, através da sua articulação, levar à
Constituinte (DREIFUSS, 1989, p. 50).
Delfim não apenas desejava ser eleito, mas desembarcar na Constituinte com um grupo que apoiasse seus projetos e ideias, e possibilitasse uma ação contundente. Foi isto que ele defendeu, diante dos empresários que recharam o cofre de sua campanha, ao distribuir uma lista de 30 nomes de candidatos de todo o país e de vários partidos – inclusive do PMDB – que precisavam de auxílio financeiro. Na lista preparada por Delfim havia pessoas ligadas ao presidente José Sarney – como o maranhense Edison Lobão (PFL), que representa interesses dos moinhos de trigo –; deputados pouco conhecidos dos corredores do Congresso – como o paranaense Jorge Arbage, o goiano Siqueira Campos, o pernambucano Josias Leite –; e até peemedebistas como Francisco Salles, de Rondônia. Também estavam na lista Vasco Netto (PFL-BA), Geraldo Guedes (PDS-PE) e Eurico Ribeiro (PDS-MA). Para assegurar um bom resultado à sua campanha em São Paulo, Delfim ainda dechou 25 dobradinhas com candidatos a deputado estadual do PDS, PTB, PFL e de outros partidos, cujos nomes não foram revelados. (DREIFUSS, 1989, p. 50-51).
Com um orçamento milionário a CEDES39 não se projetou como potência apenas em
torno de Delfim Netto, “seu grande trunfo foi ter reunido um elenco de empresários influentes
39 “como presidente da CEDES, assumiu Renato Ticoulat Filho – ex-presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB) –; como vice-presidente, Fernando Vergueiro (à época, secretário-geral do Partido da Frente Liberal e dirigente da SRB); e como secretário-geral, Gastão Alves de Toledo. Vergueiro foi quem compôs, em 1986, a chapa de um dos aspirantes ao governo de São Paulo, o empresário Antônio Ermínio de Moraes, e como candidato ao Senado, indicado pelo presidente da Associação Comercial, Guilherme Afif Domingos. A CEDES contava também com a assessoria técnica de Julian Chacel – que foi do grupo de Estudos e Doutrina do IPES carioca –, hoje da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Além disso, são sócios-fundadores, entre outros, Antônio Ermínio de Moraes (Grupo Votorantin); Olacyr Francisco de Moraes, conhecido como o 'rei da soja' (por ser o mais produtor individual e o dono da mais extensa plantação do mundo, localizada em Mato Grosso do Sul) e proprietário do Banco Itamaraty e da quinta maior empresa de construção do país, a Constran de São Paulo; Paulo Cunha (Grupo Ultra); Roberto Bornhausen (Unibanco); Ney Bittencourt Araújo (Agroceres); e os fazendeiros Flávio Telles de Menezes
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em torno de suas propostas, estado de espírito e intenções mobilizadoras”. (DREIFUSS, 1989,
p. 51).
A CEDES foi criada para atuar intensivamente como aparelho ideológico da
burguesia, a fim de fazer uma grande apologia ao liberalismo econômico e o neoliberalismo,
utilizando os EUA como referência, para influenciar a opinião pública (DREIFUSS, 1989, p.
52-53). “O empresariado se reunia em torno de teses desestatizantes, mobilizadoras da classe,
e de discussões sobre a conjuntura, calçadas numa percepção do processo econômico
determinado, na década de 80, pela monstruosa dívida externa”. (DREIFUSS, 1989, p. 53). O
esforço maior da organização, todavia, era no sentido de construir um bloco parlamentar que
assegurasse que a Assembleia Constituinte tivesse uma configuração favorável para a classe.
para tanto, o empresariado da CEDES, correspondendo a seu perfil classista, não enfiava todos os ovos num mesmo cesto, mas jogava, segundo Rabello de Castro, com “palpite triplo”, isto é, não agindo através de um partido específico, mas multiplicando apoios, independentemente da agremiação, além de apoiar, em muitos casos, diversos candidatos que concorriam entre si numa mesma localidade ou estado. E ele explicava: “A partir do contingente que conseguirem eleger, é possível que o movimento seja, então, batizado com algumas ideias e ganhe coerência interna. Hoje, une-os o sentimento de que é preciso conter a ação econômica do Estado”. (DREIFUSS, 1989, p. 53).
No ideário socioeconômico difundido pela organização:
abertura ao exterior, na forma de incremento das exportações e atração de capitais estrangeiros; abandono da excessiva proteção contra as importações; redução do déficit orçamentário e redução do papel do Estado, além da 'desregulamentação' da economia, como meios de promover um desenvolvimento sustentado. Para muitos, esta 'receita' parecia sair da cozinha do FMI. Para outros observadores, no entanto, ela se ajustava às expectativas 'neo-liberais' dos banqueiros e industriais multinacionais, reunidos sob a égide do Americas Society. Em contrapartida, os países latino-americanos ganhariam dos Estados Unidos e de outras nações capitalistas industriais, novos
(presidente da SRB), Antônio Sobrinho e o próprio Fernando Vergueiro. A CEDES passou a ser mantida por cinquenta empresas e associações, nacionais e transnacionais. Seu orçamento para 1986 foi de 1.2 milhões de cruzados. Uma lista parcial daqueles que providenciaram apoio monetário e material para a instituição paulista nos dá uma ideia de seu músculo econômico e poder político potencial: o já citado Antônio Ermínio de Moraes; Luiz Eulálio Bueno Vidigal (Grupo Cobrasma, ex-presidente da Fiesp), Roberto Bornhausen (Unibanco, presidente da Febraban e Fenaban), Romeu Chap Chap (presidente do Conselho Consultivo do Sindicato das Empresas de Construção e Administração de Imóveis de São Paulo e presidente, desde março de 1988, da divisão brasileira da Federação Internacional das Profissões Imobiliárias); Olacyr de Moraes; Guilherme Afif Domingos (candidato a deputado federal pelo Partido Liberal, ex-presidente da Associação Comercial de São Paulo e vice-presidente da Indiana Seguros); e até Luiz Boccalato (presidente da Cia. Paulista de Fertizantes – Copas), que pertencia ao grupo de íntimos colaboradores de Sarney”. (DREIFUSS, 1989, p. 51-52).
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empréstimos, spreads mais favoráveis, importações sem restrições ou tarifas alfandegárias adicionais e uma queda real na taxa de juros. (DREIFUSS, 1989, p. 53-54).
Segundo as contas feitas pelas mais eminentes figuras entre os empresários40, o setor
empresarial facilmente elegeria “100 representantes com o poder do empresariado urbano, e
outros 40 com a força da área rural. Aos 140 que a CEDES pretendia eleger, deveriam ser
somados outros 20 deputados que a Associação Comercial do Rio, liderada por Amaury
Temporal, garantia poder enviar à Constituinte”. (DREIFUSS, 1989, p. 55).
4.2.1.2 IL – Instituto Liberal
Existiu desde 1983 em Porto Alegre e Rio de Janeiro, posteriormente, em 1987, em
São Paulo41. “O Instituto, definido por sua direção como 'uma organização lítero-cultural
voltada para atividades políticas', passou a contar entre seus patrocinadores com empresas e
grupos como a Votorantin, Sharp, Gradiente, Nestlé, Banco de Boston, Dow Química, Philco,
Copersucar, Banco Itaú, Unibanco e Aços Villares”. (DREIFUSS, 1989, p. 56).
Atuando em caráter eminentemente ideológico, contava “com o esforço de diversos
acadêmicos e de oficiais graduados, entre eles o general Manoel Teixeira”. (DREIFUSS,
1989, p. 56).
4.2.1.3 CNF – Confederação Nacional das instituições Financeiras
A burguesia financeira estabeleceu seu pivô próprio, em 1985, a CNF, que marcou a
40 “de fato, a capacidade da Ação Empresarial foi testada naquelas eleições. E ficou patente no esforço bem-sucedido de eleger deputados do Oiapoque ao Chuí, todos eles identificados com os interesses do empresariado. […] Mais ainda: a Ação Empresarial chegaria a reunir importantes recursos, que seriam utilizados na campanha de lobby e assessoramento dos Constituintes simpáticos à causa, 'com excelentes resultados', segundo avaliação de seus integrantes”. (DREIFUSS, 1989, p. 56). 41 “foi presidido em vários momentos por Jorge Simeira Jacob (grupo Arapuã/Fenícia – um dos 100 maiores do país, segundo a Gazeta Mercantil), Roberto Konder Bornhausen (Unibanco) e Jorge Gerdau Johannpeter (grupo Gerdau); e conta com a adesão e ativismo de alguns pesos pesados do meio empresarial, tais como Enrico Misani (Olivetti), José Mindlin (Metal Leve), Abílio Diniz (Pão de Açúcar), o presidente a Fiesp, Mário Amato (Springer-Nacional), Rudolf Hohn (IBM), Donald Stewart, Paulo Cunha (grupo Ultra) e Henry Maksoud (presidente do grupo Visão)”. (DREIFUSS, 1989, p. 56).
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atuação político-institucional do conjunto de empresas que constituem o sistema financeiro nacional privado, incluindo os bancos comerciais e de investimento, corretoras, distribuidoras de valores, instituições de crédito imobiliário, leasing e empresas financeiras, representando ao todo 280 empresas. […] segundo Roberto Bornhausen, seu presidente eleito – que acumulava a presidência da CNF com a mesma função na Federação Brasileira das Associações dos Bancos (Febraban) e na Federação Nacional dos Bancos (Fenaban) –, a nova organização tinha como objetivo a “coordenação das associações de classes representando empresas financeiras, com vistas a permitir uma ação unificada político-institucional, frente aos poderes constituídos, à mídia e outros setores, e ao público em geral, em defesa de seus legítimos interesses”. (DREIFUSS, 1989, p. 57).
Seu norte político era o mesmo dos demais pivôs burgueses, como principais anseios
a redução ao mínimo da regulamentação econômica pelo Estado e a privatização dos setores
cuja atuação estivesse vinculada ao Estado. Para tanto, também se esforçou para garantir uma
configuração favorável na Constituinte, especificamente, no seu caso, apostou em
constituintes que defendessem não só o sistema econômico capitalista, mas dua fração de
classe, a burguesia financeira (DREIFUSS, 1989).
4.2.1.4 UB – União Brasileira de Empresários
A UB42 foi constituída em 1986 como uma grande frente de operações, cuja pedra
angular foi posta pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI) e com o avala dos
presidentes das maiores confederações de empresários: Albano Franco – Confederação
Nacional das Indústrias (CNI); Flávio da Costa Brito – Confederação Nacional da Agricultura
(CNA); Antônio de Oliveira Santos – Confederação Nacional do Comércio (CNC); Roberto
Konder Bornhausen – CNF; Hermínio Mendes Cavaleiro – Confederação Nacional dos
Transportes Rodoviários e Carga; Amaury Temporal – Confederação Brasileira das
Associações Comerciais (DREIFUSS, 1989).
42 “embora se tenha transformado numa das siglas mais poderosas do país, a UB nasceu sem sede nem presidente, e sem um único funcionário, mantendo esta característica ao londo de sua luta constituinte. Constava, no entanto, com cerca de 100 associados-contribuintes e utlizaria as facilidades da Confederaçõ Nacional do Comércio, em Brasília. A UB passou a ser dirigida por um Conselho Consultivo de 78 membros; um secretário-geral, Sylvio Pizza Pedroza; e um coordenador geral, o presidente da CNI, Albano Franco. Este logo seria substituído pelo engenheiro Antônio de Oliveira Santos, também presidente da Confederação Nacional do Comércio, que tem sob sua orientação 648 sindicatos patronais e cujas empresas empregam cerca de 14 milhões de comerciários em todo o país. A UB fala em nome das seis grandes confederações e de mais de 100 associações empresariais, representando um universo de 4 milhões de empresas de todos os tipos e tamanhos, onde seus 40 milhões de empregados produzem a maior parte do PIB nacional”. (DREIFUSS, 1989, p. 62-63).
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Com a CNA e a CNF nessa frente, a posição da entidade quanto a reforma agrária e
reestruturação do sistema econômico mostra-se em todo seu conservadorismo. Se depender da
UB não existiriam, sequer em ideia.
A UB, assim como as demais organizações instituídas para autuar na Constituinte,
visava à eleição de uma combativa bancada para defender seus interesses de classe na AC.
preocupados com a configuração da Constituinte, mas sem organizações de base e partidos políticos confiáveis e com poucos políticos profissionais comprovadamente leais, o empresariado se viu obrigado a apoiar candidatos cuja plataforma era basicamente a defesa da livre iniciativa. Não era muito para começar, mas alguma coisa, e rapidamente o empresariado definiria algumas prioridades e metas. O apoio econômico às campanhas seria dado principalmente aos candidatos que buscavam a reeleição, e isto por várias razões. Além de provados na luta e verificados ideologicamente, era mais barato, segundo um empresário da Fiesp, apoiar economicamente um candidato já conhecido. Assim mesmo, alguns candidatos óbvios, como Francisco Dornelles e Afif Domingos, foram apoiados, mesmo sendo marinheiros de primeira viagem. Estes critérios também valiam para a Cedes, a Sociedade Rural Brasileira (SRB) e a Federação Brasileira de Associações de Bancos (Febraban). (DREIFUSS, 1989, p. 64).
Ao mesmo tempo em que era levada a cabo a ação difusa de classe, pela qual a
burguesia defendia seus interesses de classe comuns, suas frações de classe tratavam de, tendo
em vista suas especificidades e interesses econômicos mais imediatos, agir individualmente
para mais a frente receber uma maior fatia das riquezas do país que se iria dividir.
Para uma maior segurança, a burguesia, não contente em eleger seus representantes
comprometidos com sua causa, partiu também à intensificar o processo de cooptação de
quadros sindicais e lideranças populares (DREIFUSS, 1989).
almejando a estabilização do quadro econômico, dentro da óptica da classe, procurava-se realçar figuras ditas “moderadas” do âmbito sindical, com as quais o empresariado se sentisse à vontade para dialogar em posição de supremacia, isolando ao mesmo tempo (ou, ao menos, criando fendas na pretensa frente sindical), as lideranças mais combativas da CUT e assim, procurando minar a suposta base de ação do Partido dos Trabalhadores. Para o empresariado, era (e é) fundamental, que, não havendo como “domesticar” o movimento sindical, ao menos se tentasse formar e incentivar os dirigentes de trabalhadores mais empenhados “na defesa do capital do que na luta pelos direitos das categoria que representavam” - um pessoal que servisse de base de manobra no meio operário. (DREIFUSS, 1989, p. 65).
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Ao contrário do setor empresarial, muito bem organizado e unido em seus interesses
de classe, o sindicalismo – muito pela própria organização atrelada ao Estado garantida pela
CLT – encontrava-se fracionado e sem uma mínima unicidade para impor os interesses dos
trabalhadores, a ponto de algumas entidades sindicais – de “representação” dos trabalhadores
– defenderem abertamente as propostas dos inimigos de classe43:
o empresariado soube incentivar e direcionar um canal de penetração, através da criação da União Sindical Independente, instalada efetivamente no final de 1985. Um ano depois, a USI reuniria 450 sindicatos, federações e confederações, trazendo como princípio 'o combate ao comunismo e a toda ideologia estranha ao sindicalismo', com seu lema 'Deus, propriedade Privada e Livre Empresa'. Assim, passou a ser um cavalo de batalha útil, alvejando a CUT e outros setores sindicais de oposição na CGT, com seu rufar de tambores anticomunista, situada em posição privilegiada no meio sindical e posicionada como coro popular de uma possível Santa Aliança Conservadora. (DREIFUSS, 1989, p. 66-67).
Felizmente, para a burguesia, o buffet de “lideranças” sindicais “dispostas a
colaborar” era farto44. Além dos sindicalista moldados a partir dos cursos promovidos pelo
Instituto Cultural do Trabalho (ICT) – ideologicamente comprometida com o capital -muitas
lideranças sindicais foram cooptadas pelos patrões. O exército de pelegos cresceu nesses
tempos.
43 “seu principal principal organizador não é outro senão Antônio Pereira Magaldi [...] [dentre muitos cargos ocupados] além de Presidente da Federação dos Empregados no Comércio,, além de Presidente da Federação dos Empregados no Comércio de São Paulo e vice-presidente da própria USI – foi, nos idos de 60, uma das figuras de maior destaque do Movimento Sindical Democrático (MSD), o braço sindical do complexo civil-militar que sob o nome de Ipes/Ibad, conduziu a desestabilização do governo Goulart. […] Além dos cargos já mencionados, Magri ainda coordena a ação do Instituto Cultural do Trabalho, onde é responsável por uma farta verba anual destinada pela AFL-CIO, dos Estado Unidos, ao desenvolvimento de “um movimento sindical livre, independente e apartidário”. Os recursos chegam ao Brasil através do Iadesil e do Free trade Union Institute”. (DREIFUSS, 1989, p. 66-67). 44 “o empresariado tinha várias opções. E também se sentiu em condições de contar com o morno 'joaquinzão' (Joaquim dos Santos Andrade), líder da CGT e um pelego tradicional, que comandava um dos maiores sindicatos da América Latina. Ou mesmo com José Calixto Ramos, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da indústria (CNTI), que reúne cerca de seis milhões de industriários. Calixto que também era vice-presidente da CGT, já tinha participado da diretoria da CNTI quando ela era presidida pelo arquipelego Ary Campista, interventor nomeado pelo governo militar e deposto em 1983, por corrupção. […] Quando chegou a hora de nomear um representante dos trabalhadores no Conselho Monetário Nacional, […] o escolhido não foi outro senão José Calixto Ramos, guindado a uma das cadeiras inefetivas, na posição de pelego-auxiliar dos empresários que compõem o restante de seus membros”. (DREIFUSS, 1989, p. 67-68).
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4.2.1.5 UDR – União Democrática Ruralista
A UDR45 surge para satisfazer a ala radical dos proprietários latifundiários que não
se sentiam representados entre os políticos da época. Como principal estandarte o combate à
reforma agrária, ou qualquer medida democratizante da terra e da economia
a UDR estabeleceu para si mesma a meta de organizar-se em todo o país o mais rapidamente possível, com o intuito de participar das eleições para o Congresso Nacional e obter uma representação adequada na Assembleia Constituinte. […] Como parte do seus esforço propagandśitico, a UDR iniciou a luta por um programa semanal de televisão, em cadeia nacional, onde procuraria mostrar aos produtores rurais a necessidade de 'participarem ativamente do momento democrático que o país vive'. Além disso, tentaria orientá-los a escolherem 'os homens certos, defensores da livre iniciativa e, principalmente, do direito inalienável da propriedade privada'. (DREIFUSS, 1989, p. 71).
Diante da imagem ligada a episódios violentos veiculados na mídia, a UDR contratou
uma empresa de marketing para, mesmo que fosse verdade, “convencer a opinião pública de
que a UDR desenvolve 'um trabalho bonito e honesto'” 46.(DREIFUSS, 1989, p. 76).
45 “a entidade mantém, em todos os níveis, uma estrutura de assessoria e consultoria jurídica, uma imponente máquina de tesouraria e apoio logístico, e dispõe de quadros capacitadíssimos para a ação política e propagandística, não dispensando o uso aberto de empresas de marketing e discreta utilização de gráficas. O presidente da regional de Rondonópolis, Jorge Eduardo Raposo de Medeiros, e os diretores Ednaldo Carvalho de Aguiar (administrativo) e Edílson Vilela Duarte (financeiro) seriam condenados pela Justiça Federal em Mato Grosso, a três anos de reclusão, como responsáveis pela impressão de panfletos – falsamente atribuídos ao Partido Comunista do Brasil e disseminados nas eleições de 1986 – com texto grosseiro, que pretendia denegrir a imagem do PC do B. O mais relevante fato, porém, é que a UDR cresceu por si própria, tornando-se um fator de poder crucial, em função de sua capacidade de mobilizar recursos, provocar impactos ideológicos entre os grandes e médios proprietários de terra e gado, e até no público em geral, fazendo valer também a pressão. O dinheiro farto e a intimidação. No terceiro trimestre de 1986, a entidade já estaria com sedes em 15 estados da federação, um total de 40 regionais e mais de 40 mil associados, enquanto a 'caixinha' já somava mais de 20 milhões de cruzados, dinheiro que – assegurava Caiado – não era para financiar a eleição de deputados, mas sim “para os gastos com a mudança da imagem distorcida que criaram dos produtores rurais e para financiar a montagem de regionais, a contratação de técnicos especializados em questões do Incra e outras coisas em defesa da classe””. (DREIFUSS, 1989, p. 73). 46 “e tinha razões de sobra para se preocupar, já que a questão da intimidação ganhara amplo destaque nas manchetes da época, incluindo o confronto da UDR com posseiros e com a Igreja. O nome da organização foi vinculado a diversos episódios violentos no campo, inclusive ao atentado de que foi vítima, em Goiás, o padre Francisco Cavazzuti, que ficou cego; à morte a tiros, nas proximidades de Belém, do ex-deputado estadual Paulo Fontelles, líder regional do PC do B; e às denúncias do padre Ricardo Rezende Figueira, de Conceição do Araguaia. Ele afirmou, no final de 1987, que 65 pessoas da região sul do Pará – agentes de pastoral, líderes sindicais, trabalhadores rurais e advogados ligados à sua missão pastoral – estavam ameaçados de morte pela UDR, sendo que ele próprio encabeçava a macabra lista. Em Tocantins, o padre Martinho Murray também estava marcado para morrer”. (DREIFUSS, 1989, p. 76).
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O paramilitarismo do setor mais reacionário dos latifundiários era, e ainda é,
evidente:
no marco da violência organizada, um episódio chamou a atenção. O nome da entidade e de alguns fazendeiros de Presidente Venceslau, em São Paulo, a ela ligados, foram envolvidos nas averiguações da polícia Federal a respeito do contrabando de seis toneladas de armamentos e da presença de oito mercenários norte-americanos, todos veteranos da guerra do Vietnã, no rebocador Nobistor, que saíra da Argentina, com destino a Gana. A vinculação com os fazendeiros foi constatada pelas ligações telefônicas que dois oficiais reformados da Marinha Mercante argentina, representantes da empresa proprietária do rebocador fizeram para Presidente Venceslau e Santo Amaro. Roosevelt Roque dos Santos negou que a UDR tivesse “interesse em comprar armas ou formar milícias”, embora admitisse que os proprietários rurais insatisfeitos com o encaminhamento da reforma agrária pudessem “até ter adquirido algum armamento para defender as suas propriedades”. (DREIFUSS, 1989, p. 76).
No pior estilo do paramilitar conhecido entre os latinos-americanos, a atuação da
UDR era não apenas de engajamento político mas em grande parte de engajamento militar
para defender seus reinos particulares no interior do Brasil47.
Ronaldo Caiado, então dirigente da UDR, foi o principal articulador político para a
atuação na Constituinte, percorrendo todo o Brasil para aglutinar o setor48
47 “outro assassinato, desta vez de ressonância internacional, agitaria o país e torpedearia, de vez, as tênues tentativas governamentais de lidar com a violência no campo: a morte do seringueiro e líder sindicalista do PT, Chico Mendes – conhecido mundialmente por sua militância ecológica –, que foi vinculada à ação uderristas. Seu sucessor na presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, Júlio Barbosa de Aquino, denunciava a UDR como a “principal responsável pela morte do sindicalista”. Entre outros nomes de ativistas rurais ameaçados, ainda citou Raimundo Bastos, vereador do PT de Xapuri; Gumercindo Clóvis, agrônomo e assessor do sindicato; e Osmarino Amâncio, da oposição sindical da cidade de Brasiléia, próxima a Xapuri. Enquanto isso, o presidente do Centro dos Trabalhadores da Amazônia, Arnóbio Marques, acusava o ex-prefeito de Rio Branco, Adalberto Aragão, e o presidente regional da UDR no Acre, o fazendeiro João Branco – que deixou a cidade num jato fretado, no dia seguinte ao do enterro de Chico Mendes, com destino a São Paulo –, de estarem implicados”. (DREIFUSS, 1989, p. 77). 48 “para eleger seus representantes, a UDR se engajou numa frenética sucessão de leilões eleitorais, angariando fabulosas somas em dinheiro e fazendo com que seus associados participassem do esforço, num movimento de retroalimentação de engajamento e afirmação da entidade. Ficou óbvio, nessas ameaças que, se os gastos para eleger um deputado federal se mantivessem no limite dos 500 mil cruzados, como era calculado, a UDR já contava com dinheiro para eleger 60 representantes. Em agosto de 1986, a entidade já tinha escolhido candidatos em 12 estados (que comportavam 27 regionais da organização), mas Caiado avisava que seus nomes jamais seriam revelados, “nem mesmo depois de eleitos”. No entanto, alguns nomes vazaram, mostrando que a lista de 'confiáveis' era pragmaticamente eclética e nela não faltariam peemedebistas, além dos óbvios postulantes do PTB, PDS e PFL, sem falar de alguns partidos menores, auxiliares ou funcionando como siglas de aluguel. A UDR esperava obter uma bancada de pelo menos 50 parlamentares, apoiando diversos candidatos, nos quais pretendia despejar o dinheiro arrecadado nos leilões. […] O presidente da UDR de São Paulo estimava, já em julho de 86, que seriam eleitos, pela entidade, de 3 a 4% da Assembleia Nacional Constituinte. Mas se ele somasse a isto os candidatos apoiados
87
4.2.1.6 ABDD – Associação Brasileira de Defesa da Democracia
O setor militar, principalmente os que se tinham jogado de cabeça no antigo regime,
também se organizou maciçamente no sentido de agir na Constituinte49.
a direita militar – na realidade, é a confluência de pelo menos quatro vertentes, articulando não somente os setores considerados mais rígidos no final da transição, mas também os mais 'duros' do regime militar, assim como alguns expoentes da Escola Superior da Guerra. A intenção deste pivô era estabelecer e relembrar os limites da abertura e da transição, preservando aquelas questões irremediavelmente comprometidas com o passado e evitando que se remexesse no baú das lembranças. (DREIFUSS, 1989, p. 85).
A ABDD surgiu como um dos braços da aglutinação da direita militar, gestada no
departamento de Subversão e no dep. de Contrainformação e Contrapropaganda do CIE
(Centro de Informações do Exército) (DREIFUSS, 1989).
Além dos militares,
os membros-fundadores da ABDD também contavam com alguns civis, como os jornalistas Aécio Diniz Almeida, diretor do Jornal de Alagoas, (décimo-quarto sócio-fundador da entidade), Lenildo Tabosa Pessoa, de O Estado de São Paulo (que Frei Beto acusaria de ter participado dos interrogatórios no Doi-Codi de São Paulo, de Frei Tito de Alencar Lima, e de algumas ações junto ao ex-delegado Sérgio Paranhos Fleury), Fernando Luiz da Câmara Cascudo, ex-chefe da TV Manchete de Recife, que foi transferido para o Rio. Além desses, faziam parte da ABDD o ex-embaixador José Oswaldo de Meira Pena, professor da
em conjunto com banqueiros, industriais e empresários do setor comercial, chegaria a 70% do novo Congresso”. (DREIFUSS, 1989, p. 82). 49 “a entidade foi formalmente fundada no dia 9 de janeiro de 1985, e registrada em cartório por um grupo de 45 pessoas, mas sua ata de fundação apresenta algumas irregularidades. Dos nove nomes de civis residentes em Brasília, que constam da lista de fundadores, pelo menos cinco têm endereços fictícios. A finalidade da ABDD, de acordo com o Diário Oficial do Distrito Federal, de 14 de Janeiro, era: “a defesa dos postulados do verdadeiro regime democrático; a defesa dos valores morais e espirituais da nação brasileira e de seus sentimentos cristãos; a valorização do país através da promoção de seus valores, seus símbolos, suas tradições, seus ideais, seus objetivos, do espírito de civismo de seu povo, do amor à pátria e à nacionalidade; a defesa dos postulados da propriedade privada e da livre iniciativa no domínio econômico; e a defesa dos fundamentais direitos da pessoa humana, através da divulgação de estudos, pesquisas, publicações, cursos, conferências e outras atividades correlatas”. Na lista de fundadores, estão os nomes de 31 militares, sendo dois terços da ativa. Destes, 17 são coronéis, dos quais oito são oficiais da área de informações. Muitos dos membros militares também apresentam desencontros entre as informações sobre ocupação ou profissão e a realidade,, provavelmente para contornar o Regulamento Disciplinar do Exército (RDE), que prevê punição para quem discuta ou provoque discussão sobre assuntos políticos”. (DREIFUSS, 1989, p. 87).
88
Universidade de Brasília, o jurista Mário Pessoa (amigo pessoal de general Íris Lustosa) catedrático da Universidade Federal de Pernambuco, ex-membro do corpo permanente da Escola Superior de Guerra, na divisão de assuntos políticos, que se tornaria conselheiro jurídico da entidade; e o professor Jorge Boaventura, da Escola Superior de Guerra, ideólogo da ABDD. O presidente da ABDD é o coronel da reserva José Leopoldino Silva, atualmente na diretoria regional da Poupex (caderneta de poupança do Exército), que funciona num anexo da Esplanda dos Ministérios (DREIFUSS, 1989, p. 89-90).
A organização procurou difundir seu ideário publicando a revista “pontos de vista”,
com tiragem de 5000 cópias, uma para cada suposto membro, com conteúdo produzido em
grande parte por lideranças religiosas e empresários eminentes (DREIFUSS, 1989).
mas o trabalho propagandístico e de afirmação da direita militar não se limitou à revista 'pontos de vista'. Outra publicação – o jornal mensal 'Letras em Marcha', que funciona desde 1971 – também cumpriu este papel. Com 12 páginas em formato tablóide e tiragem (totalmente distribuída aos assinantes e a algumas instituições e entidades culturais do país) de 15 mil exemplares, 70% de cada edição são despachados para a área militar. Fiel ao lema “Uma prontidão constante contra a comunização de nossa Pátria”, o jornal – ideológico e doutrinário do princípio ao fim – tem sua redação num conjunto de salas da Avenida Prado Júnior, em Copacabana. No expediente constam nomes de militares da reserva, incluindo o editor-chefe, tenente-coronel Antônio Gonçalves Meira (DREIFUSS, 1989, p. 90).
Entre os colaboradores do jornal, figuravam muitos militares dos mais altos cargos
das corporações e seletos civis50 (DREIFUSS, 1989).
Eram numerosos e importantes, nos meios militar e empresarial, os que apoiavam
materialmente, como assinantes “beneméritos”, a publicação de extrema-direita guiada pela
ABDD – direcionada a doutrinar as lideranças militares e garantir uma transição sem
quaisquer mudanças sociais de fundo –, tais como:
gen. Aurélio de Lyra Tavares; Antônio Erasmo Dias; Alfredo Buzaid (ex-ministro da Justiça do governo Médici); gen. Arnaldo Calderani, ex-superintendente da Imbel; gen. Carlos Alberto da Fontoura (ex-chefe do SNI no
50 “o jornal também recebia a colaboração de diversos civis, destacando-se o ex-deputado do MDB Anísio Rocha, que lançou a candidatura de Costa e Silva em 1966; Paulo Zingg (ex-secretário municipal de cultura em São Paulo, na administração Jânio Quadros); o advogado Américo Barbosa de Paula Chaves (esguiano [relativo a ESG]); Herculano Martins Franco; Adirson de Barros (jornalista); editor Gumercindo Rocha Dorea (esguiano); o advogado Emílio Mallet Nina Ribeiro (ex-deputado federal; esguiano); o professor Francisco Pinto Cabral (da UNB, membro do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil e membro da adesg); Henrique Alves; o vereador Wilson Leite Passos; o Senador Irapuan Costa Júnior; Fernando Nobre Filho (ex-delegado do Trabalho e ex-deputado federal de São paulo); o advogado Américo Barbosa de Paula Chaves; e o procurador Mário Portugal Fernandes Pinheiro”. (DREIFUSS, 1989, p. 91).
89
período Médici); Cecil Borer; Charles Borer; gen. César Montagna de Souza; gen. Edmundo Macedo Soares e Silva, cel. Hélio Ibiapina Lima, Itiberê Gouveia do Amaral; engenheiro Jayme Rotstein; prof. Luiz Mdeiros Neto (sócio-correspondente do IGHMB [Instituto de Geografia e História Militar do Brasil]); Mário de souza Pinto; gen. Milton Câmara Senna; Manoel Pio Corrêa Jr.; Oscar H. Biolchini (ex-membro do Ipes-Rio); Antônio Corrêa Celestino; Antônio Pereira de Almeida; Décio de Azambuja Velho; cel. Amphilóphio Vianna de Carvalho; brig. João Paulo Moreira Burnier; gen. Moacyr Barcellos Potyguara; Nelson de Souza Mendes; gen. Sebastião José Ramos de Castro; gen. Walfrido Alvares de Azevedo; gen. Augusto Cid de Camargo Osório; Theóphilo de Azeredo Santos (presidente do Sindicato dos Bancos do Estado do Rio de Janeiro); Brasílio Branco Pereira (Cosipa); e as empresas Novatração Artefatos de Borracha. (DREIFUSS, 1989, p. 91-92).
Entre os poucos anunciantes, ainda, figuravam “a Construtora ERG, da Bahia; a
Associação Brasileira de Exportadores de cacau-Abec; a Sedil Segurança Ltda.; a Loja Super
Sport, da zona franca de Manaus; e a Corrfa Previdência Privada (DREIFUSS, 1989, p. 92).
4.2.1.7 Grupos menores de ultradireita
Sem a amplitude almejada, fora do grande circuito político, mas com intensa
mobilização, outros grupos ultradireitistas também se dedicaram à questão constituinte, como
o Partido de Ação Nacionalista (PAN), “auto-intitulado de 'associação de resistência
ideológica”. (DREIFUSS, 1989, p. 92). Juntamente com o PAN, “o Movimento Jovem Jânio
Quadros e a Juventude Janista, ambos de corte anticomunista, bem ao estilo de agrupamentos
que foram celeiros de entidades menos alvissareiras, como o MAC [Movimento
Anticomunista] e o CCC [Comando de caça aos Comunistas] da década de 60”. (DREIFUSS,
1989, p. 92).
Nesse mesmo sentido, “outra formação recriada nesse período foi o Movimento de
Defesa do Brasil, liderado pelo octogenário general Bragança, que congregou remanescentes
da antiga união civil-militar da década de 60 – os 'Novos Inconfidentes' mineiros – e novos
militantes”. (DREIFUSS, 1989, p. 93).
Taticamente, através de um viés religioso, a Igreja da Unificação do Brasil,
conhecida como Seita Moon, teve uma importante participação nesse período histórico.
Organizada de forma bastante ampla e descentralizada (DREIFUSS, 1989):
compreende o Colegiado Acadêmico para a Reflexão de Princípios (Carp), órgão de atuação no meio estudantil; a Associação Internacional Cultural (AIC),
90
que promove seminários de introdução à doutrina da seita e faz o trabalho de relações públicas; a Associação Mundial de Assistência e Amizade (Amasa), que possui creches e distribui alimentos a populações carentes, num trabalho de penetração ideológica e busca de legitimação; a Associação Internacional para a Unificação das Religiões (Assinur), que realiza o proselitismo e o trabalho de confrontar as outras crenças organizadas; a Associação Mundial dos Meios de Comunicação (Ammce), que reúne jornais, revistas, empresários e empregados do setor, e está encarregada do trabalho de divulgação – em cujo contexto se situa o projeto de lançasr a 'Folha do Brasil'; e a Mundial Assessoria Contábil. Entre seus braços nitidamente políticos estão: a Causa-Brasil – Núcleo nacional da Confederação de Assistência para a Unidade das Sociedades Americanas (Causa) – que faz proselitismo e desenvolve uma linha de ação anticomunista, e a Associação do Movimento da Unificação para a Salvação da Pátria (Ausp), que reúne militares, profissionais liberais e políticos (DREIFUSS, 1989, p. 93-94).
Com enorme patrimônio e trânsito entre importantes políticos e oficiais militares a
Causa-Brasil “se propôs a investir cerca de 600 milhões de cruzados na campanha de 60
candidatos à Constituinte, em 16 estados da federação. Pretendia combater o 'comunismo ateu'
e conquistar, se possível, novos adeptos para o 'Pai', o Reverendo Sun (sol) Myung moon
(lua)”. (DREIFUSS, 1989, p. 94).
Outro grupo que reaparecia com alguma força era a Ação Integralista Brasileira
(AIB) “cujos integrantes […] dispunham-se a reiniciar 'a grande marcha por Cristo e pela
Nação', para instituir no Brasil 'uma democracia orgânica', sem partidos políticos e com
eleições indiretas para presidente, governadores e prefeitos”. (DREIFUSS, 1989, p. 95).
Negando, por intuito classista, qualquer método materialista de análise da realidade, a AIB
pregava, segundo seus documentos, “a 'eliminação progressiva da luta de classes [!], do
conflito entre o capital e o trabalho [!]' […] a luta contra a esquerda, a direita e o centro,
precisamente por serem 'integrais' [!]”. (DREIFUSS, 1989, p. 95). Entre as ambições da
organização, estava a criação do Partido de Ação Integralista (PAI) e o intento de se lançar
um candidato à Presidência, “chegou-se a pensar em nomes como o do jurista Miguel Reale –
ex-militante do Ipes e camisa-verde na década de 40. Mas o fato é que a ideia do partido não
era consensual. Embora o 'PAI' continuasse a ser presença marcante na vida de muitos
integralistas, a AIB ainda teria de se contentar com o apoio de generais do Exército […] e
com a eleição de 'constituintes integralistas', além de limitar-se a dar o seu apoio a candidatos
de outros partidos nas eleições de 88”. (DREIFUSS, 1989, p. 97).
Semelhantes a AIB, em atuação e ideologia (integralista/fascista) outros grupos
intensificaram-se na época, tais como: Carecas de Subúrbio, Ação Nacionalista, movimento
Pátria e Liberdade e Pátria Livre (DREIFUSS, 1989).
91
Não faltaram, ainda, no campo direitista, as clássicas facções abertamente
neonazistas, como o Partido Nacional Socialista (Panaso), em 1985. Seu principal líder,
Armando Zanini Júnior, declarou, na época, “que 'só haverá democracia estável no Brasil
quando houver um movimento de direita popular'. E mais: que os problemas brasileiros só
seriam solucionados 'com a adoção do ideário nazista'”. (DREIFUSS, 1989, p. 98). Os
neonazistas enxergavam, como parcelas mais facilmente passíveis de assumir sua ideologia “a
jovem oficialidade das Forças Armadas, a classe média e alguns contingentes operários e
universitários”. (DREIFUSS, 1989, p. 98). Em seus discursos, “pregavam contra a corrupção,
os tóxicos e a licenciosidade, e a favor da desburocratização do Estado e da livre iniciativa.
Finalmente, como não poderia deixar de ser, eram férreos divulgadores do anticomunismo”.
(DREIFUSS, 1989, p. 98).
4.2.2 Configuração da assembleia nacional constituinte
De fato, após todo o esforço da classe burguesa em dominar a Assembleia
Constituinte, esta foi efetivamente abarrotada por deputados comprometidos – quando não a
própria personificação – com os ideias da classe.
O poder econômico fez valer a antiga ordem para a criação da “nova”. O novo,
destarte, foi construído pelo velho, sob suas regras e de acordo com seus interesses. “Diversos
grupos empresariais se encarregaram de constituir e administrar 'caixinhas', dividindo o mapa
eleitoral entre eles e canalizando recursos para candidatos específicos e agrupamentos
políticos, evitando a sobreposição de esforços”. (DREIFUSS, 1989, p. 102). Nesse sentido,
muitas grandes empresas “investiram” na Constituinte, sob a rubrica de custo de produção,
seguramente repassado ao consumidor, para a manutenção de sua posição político-
econômica51. “'Investido' é a palavra certa no caso, pois tratava-se de assegurar um negócio
altamente rentável, o 'Brasil S.A.', no valor aproximado de 300 bilhões, o PIB do momento,
não incluindo neste cálculo, mais 30% (pelo menos), por conta da 'economia paralela' de
grandes e pequenos”. (DREIFUSS, 1989, p. 102).
e ainda foram utilizados outros recursos, inclusive a colocação a disposição dos candidatos da parafernália de apoio logístico, transportes, e material de uso das
51 “segundo denúncias, até recursos de agências governamentais de outros países foram usados. De acordo com o deputado federal João Hermann (à época, do PMDB-SP), haveria 'dinheiro sujo' na Assembleia Nacional Constituinte. “O dinheiro da CIA está lá” - garantia ele”. (DREIFUSS, 1989, p. 102).
92
empresas. Firmas de marketing e relações públicas foram contratadas, trabalhando de mãos dadas com as tradicionais associações empresariais e com as novas organizações políticas, dedicadas as esforço comum de consolidação da presença da direita na Constituinte, como também nos governos dos estados e nas legislaturas estaduais. Em meio a estes esforços, um mês antes das eleições, numa reunião reservada em São Paulo, 140 grandes empresários calcularam como certa a eleição de 100 constituintes favoráveis às suas teses. (DREIFUSS, 1989, p. 102).
Afinal, como a expectativa, “as eleições produziram um Congresso Constituinte de
maioria conserviológica (conservadora e fisiológica). Um grupo numeroso de deputados
passou a representar os interesses do capital urbano e rural, independente dos partidos de que
fossem parte” (DREIFUSS, 1989, p. 103).
Os pivôs surtiram o efeito esperado, elegendo grande número de deputados através
de suas articulações:
quando as favas foram contadas, o empresariado comemorou, com a satisfação da missão cumprida. Afinal de contas, tinha dado mais do que certo um esforço que 'veio à luz e tomou corpo' no interior da articulação empresarial, em forma de uma união nacional de empresários, para influir na elaboração da Constituição. Desta empreitada, foram protagonistas de primeira linha os capitães da indústria e os banqueiros de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, entre os quais Luís Eulálio Bueno Vidigal Filho (Fiesp/UB), Roberto Konder Bornhausen (CNF), Pedro Conde (MCRN), Jorge Gerdau Johannpeter (MCRN/Cedes) e Paulo Vellinho. […] Após um bem-sucedido esforço de reorientação da categoria social a qual estavam vinculados, e tendo configurado uma maioria esmagadora na Assembleia Nacional Constituinte, os pivôs tenderam a estabelecer eixos de poder entre si. (DREIFUSS, 1989, p. 106).
“A produção de uma Constituinte 'mansa' não foi, realmente, uma empresa fácil,
apesar da fraqueza da esquerda, em desvantagem numérica acintosa e, ainda por cima,
desagregada e pulverizada em vários agrupamentos”. (DREIFUSS, 1989, p. 110). Diante
dessa conjuntura histórica, bastava a mínima organização da direita, até por que as Forças
Armadas não iriam possibilitar uma guinada que não fosse para a direção estabelecida.
93
5 CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988
Pode-se dizer que a Constituição brasileira de 1988 tem muito dos preceitos
inspirados pela revolução francesa, cravados em sua “Declaração dos Direitos do Homem e
do cidadão”52, de 1789, “os direitos do homem ou da liberdade, se assim podemos exprimi-
los, eram ali 'direitos naturais, inalienáveis e sagrados', direitos tidos também por
imprescritíveis, abraçando a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.
(BONAVIDES, 2008. p. 562).
Em tal período histórico, séculos XVIII e XIX, as declarações de direitos visavam à
consolidação da liberdade burguesa frente ao Estado e a tomada deste (DA SILVA, 2007). A
burguesia “que desencadeara a revolução liberal, estava oprimida apenas politicamente, não
economicamente. Daí por que as liberdades da burguesia liberal se caracterizam como
liberdades-resistência ou como meio de limitar o poder, que, então, era absoluto”. (DA
SILVA, 2007. p. 159).
Ao conquistar o Estado, a burguesia, portanto, só consegue dar conta das suas
conquistas em face da monarquia absolutista. O Estado liberal e a liberalização da economia
são os únicos avanços de que podem proporcionar sem que viabilizem a sua própria extinção
como classe. Todos os problemas decorrentes e posteriores a estes não encontram solução no
interior da ordem burguesa. Em outras palavras, a nova classe se apodera do Estado, com o
apoio popular e após os sucessivos golpes de hegemonia durante a revolução francesa se
assenta como detentora do poder. Após, reprime, coopta, e domina as camadas populares que
serviram de base para a revolução.
A propriedade privada existia antes da revolução francesa, e a classe burguesa, que
efetivamente dava direção à revolução, por ser especialmente detentora do poder econômico e
da propriedade privada, não desejava ser revolucionária quanto a isso. A burguesia guiou a
52 “seu título – “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” - dá a impressão de que contém dois tipos de direitos: Direitos do homem e Direitos do Cidadão, que seriam distintos. Os primeiros, de caráter pré-social [!] [Pré-humano?], concernentes ao homem independentemente de sua integração em uma sociedade política, são, nos seus termos, a liberdade, a propriedade e a segurança […] Os segundos são direitos que pertencem aos indivíduos enquanto participantes de uma sociedade política, e são o direito de resistência à opressão, o direito de concorrer, pessoalmente ou por representantes, para a formação da lei, como expressão da vontade geral, o direito de acesso aos cargos públicos […] O texto da Declaração de 1789 […] em dezessete artigos, proclama os princípios da liberdade, da igualdade e da legalidade e as garantias individuais liberais que ainda se encontram nas declarações contemporâneas, salvas as liberdades de reunião e de associação que ela desconhecera, firmado que estava numa rigorosa concepção individualista”. (DA SILVA, 2007. p. 158).
94
revolução francesa no sentido de ser revolucionária até o máximo que seus interesses de
classe permitiam. Pode-se dizer que a burguesia revolucionou a superestrutura jurídico-
política particular para o domínio de sua classe e hegemonizou o modo de produção
capitalista que já tomava espaço antes da ruptura com o feudalismo.
Assim o Estado liberal, na apresentação de suas intenções, em suas declarações e
Constituições, idealiza um indivíduo abstrato, “o cidadão como um ente desvinculado da
realidade da vida. Estabelecia-se igualdade abstrata entre os homens, visto que deles se
despojavam as circunstâncias que marcam suas diferenças no plano social e vital. Por isso o
Estado teria que abster-se. Apenas deveria vigiar, ser simples gendarme”. (DA SILVA, 2007.
p. 159). Essa igualdade se apresenta como igualdade fictícia, apenas no sentido de que o
Estado não interferirá na relação entre os cidadãos, mesmo que isso, numa sociedade
capitalista, seja entregar a maioria da população à sub existência.
Mesmo no calor do processo da revolução francesa e do impacto da bandeira
“liberdade, igualdade e fraternidade” – que ideologicamente cumpriu um papel muito
importante no enraizamento da ordem burguesa – havia uma fração que já reconhecia o
caráter meramente formal dessa igualdade, e exigia sua efetiva aplicação. O grande exemplo é
o “Manifesto dos iguais” de Gracchus Babeuf, publicado em 1796, meses antes da sua
execução:
a igualdade! - primeira promessa da natureza, primeira necessidade do homem e elemento essencial de toda a legítima associação! Povo da França, tu não ficaste mais favorecido do que as outras nações que vegetam sobre esta mísera terra! Sempre e em qualquer lado, a pobre espécie humana, vítima de antropófagos mais ou menos astutos, foi joguete de todas as ambições, pasto de todas as tiranias. Sempre e em qualquer lado se adulou os homens com belas palavras, mas nunca e em lugar nenhum obtiveram eles aquilo que, através das palavras, lhes prometeram. Desde tempos imemoriais se vem repetindo hipocritamente: os homens são iguais. Mas desde há longo tempo que a desigualdade mais vil e mais monstruosa pesa insolentemente sobre o gênero humano. Desde a própria existência da sociedade civil, o atributo mais belo do homem vem sendo reconhecido sem oposição, mas nem uma só vez pôde ver-se convertido em realidade: a igualdade nunca foi mais do que uma bela e estéril ficção da lei. E hoje, quando essa igualdade é exigida numa voz mais forte do que nunca, a resposta é esta: "Calai-vos, miseráveis! A igualdade não é realmente mais do que uma quimera; contentai-vos com a igualdade relativa: todos sois iguais em face da lei. Que quereis mais, miseráveis?" Que mais queremos? Legisladores, governantes, proprietários ricos; é agora a vossa vez de nos escutardes. Todos somos iguais, não é verdade? Este é um princípio incontestável, porque ninguém poderá dizer seriamente, a não ser que esteja atacado de loucura, que é noite
95
quando se vê que ainda é dia. Pois bem, o que pretendemos é viver e morrer iguais já que como iguais nascemos: queremos a igualdade efetiva ou a morte. (BABEUF, 2011).
A mera igualdade formal trazida como inovação pelas declarações e constituições
burguesas é a de decorrência direta da liberdade frente ao Estado, ou seja, todos são
igualmente desatados e desvinculados do Estado. Porém, para quem não é possuidor de
propriedades, essa liberdade se torna opressora, garantindo sua completa desigualdade
material.
Os direitos de primeira geração, aqueles que, em tese, limitam as liberdades do
Estado, basicamente garantindo as liberdades individuais, são parcialmente verdadeiros. O
Estado não interfere nas liberdades dos seus cidadãos, os que as têm, obviamente. Como se o
seres humanos fossem livres, bons, perfeitos e acabados em sua individualidade. O Estado
deveria intervir apenas para que outros não homens não estraguem a perfeição da existência
individual dos outros. O fundamento do direito individualista que não enxerga o homem como
parte do todo, e sim como seres atomizados que se organizam em sociedade apenas por desejo
de socializar aos fins de semana. O Estado aparece, portanto, com seu caráter mais puro, de
polícia.
A segunda geração de direitos é concebida com o intuito de remediar essa primeira
condição para aqueles cuja liberdade não emancipa, oprime. Estar livre, sem propriedades,
numa sociedade capitalista, pode ser mais degradante do que estar cativo de um Senhor de
escravos. Essa segunda geração propõe igualdade. Porém, tais direitos, sociais, contradizem a
primeira geração, ou seja, precisam negá-la para que se efetivem. Precisam agir de forma a
limitar a liberdade de alguns de seus cidadãos para que a liberdade dos outros seja menos
opressora. Igualdade pressupõe não igualdade teórica de direitos, mas igualdade material de
vida numa sociedade.
O simples fato de o Estado colocar a liberdade como seu principal fundamento, já
caracteriza sua posição de classe. Um Estado, para garantir a liberdade – aqui se fala
eminentemente de liberdade econômica obviamente, a única liberdade de que precisa o Estado
garantir – deve agir objetivamente, e não deixar de agir, como parece. O Estado liberal é um
Estado extremamente ativo a fim de fazer valer suas postulações. É, sobretudo, um Estado
policial. Um Estado que age em prol da classe possuidora, garantindo-lhes a liberdade e a
legitimidade da sua dominação. Uma ditadura de classe, portanto.
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Ideologicamente se coloca como pai de todos, provedor dos direitos da coletividade,
imparcial, justo. O que, de fato, não passam de argumentos ideológicos para encobrir sua
essência classista. O Estado burguês, “que exerce a ditadura da burguesia por meio da
república democrática, não pode reconhecer perante o povo que serve à burguesia, não pode
dizer a verdade, é obrigado a se hipócrita”. (LENIN, 2005. p. 195).
a democracia burguesa, sendo um grande progresso histórico em comparação com a idade média, continua a ser sempre – e não pode deixar de continuar a ser sob o capitalismo – estreita, amputada, falsa, hipócrita, paraíso para os ricos, uma armadilha e um engano para os explorados, para os pobres. (LENIN, 2005. p. 140).
Não é por motivos desconhecidos, paranormais, ou cármicos, que os direitos de
segunda geração – sociais, promovedores da igualdade e justiça social – não são postos em
prática com a importância que merecem. Não o são por não poderem, por ser a efetivação
destes a dilapidação do reino das “liberdades” desiguais de classe.
no mais democrático Estado burguês, as massas oprimidas deparam a cada passa com a contradição flagrante entre a igualdade formal, que a “democracia” dos capitalistas proclama, e os milhares de limitações e subterfúgios reais que fazem dos proletários escravos assalariados. É precisamente essa contradição que abre os olhos às massas para a podridão, a falsidade e a hipocrisia do capitalismo. (LENIN, 2005. p. 143).
É de se destacar, dessa forma, que os direitos que visam a uma atuação estatal, no
sentido de garantir a igualdade, de proporcionar a todos uma existência digna, possuem uma
contradição essencial com o caráter de classe do Estado burguês. Quanto ao Estado brasileiro,
como já estudando, historicamente, não é diferente.
5.1 A CONSTITUIÇÃO
O Preâmbulo da Constituição de 1988 encanta e resume o estado de espírito da
maioria dos então deputados constituintes. Defensores da visão liberal de mundo, em sua
esmagadora maioria53. Dos partidos que historicamente defenderam bandeiras populares,
53 Trabalharam na Constituinte 305 deputados do PMDB, 134 do PFL, 36 do PDS, 25 do PDT, 24 do PTB, 16 do PT, 9 do PL, 7 do PDC, 6 do PSB, 5 do PcdoB, 3 do PCB, 2 do PMB, e 1 do PTR (DIAP,
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mesmo que nos limites do Estado liberal e com graves contradições internas – PCB, PCdoB,
PT, PSB, PDT, PTB –, elegeram juntos 79 deputados, contra 494 dos partidos historicamente
ligados à burguesia (DIAP, 1988). Egressos de um mundo bipolarizado, em uma época em
que se dava como certa a vitória do capitalismo como estrutura sócio-econômica única e a-
histórica. Desejosos defensores e propagadores do mundo de uma só ideologia, como fizeram
crer os “vencedores” da guerra fria. Época em que tal ideologia corrente propunha o fim da
história – como propôs mais tarde Fukuyama – e de qualquer materialidade nas relações de
produção, em que tudo seria informação e sua fluidez havia tornado supérfluas as categorias
antes reais.
O que fez, porém, essa ideologia que prega o pós-modernismo, foi simplesmente
caracterizar o mundo contemporâneo como algo radicalmente novo, que socialmente se
tornou completamente diferente do que era na modernidade, baseando-se em suas aparências
mais superficiais, sem se ater ao caráter ontológico, essencial, da realidade. Pregou-se o fim
das relações de produção, das classes sociais, do valor, da mais-valia, e de todo argumento
teórico que fosse edificado sobre uma base materialista (TONET, 2006).
Nesse contexto o preâmbulo mencionado expõe a tamanha confusão vivida pelo
mundo nesses tempos. Se todo referencial teórico materialista foi pelo ralo, em última
instância, para a ideologia que se havia hegemonizado, a realidade já não era mais real. Como,
a partir dessa nova concepção, o mundo era o que se desejava dele, bastava-se criar uma nova
realidade; sim, bastava escrever na constituição o mundo desejado que ele floresceria porta
afora do Congresso nacional como se o dia da promulgação fosse o oitavo da criação. Eis o
mencionado trecho da CF/88:
nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (BRASIL, 2011).
1988).
98
Se o mundo pode agora ser construído como se quer, sem se importar que exista uma
realidade material que o limite, é compreensível que um preâmbulo desse gênero seja redigido
sem que se tenha qualquer mudança, mesmo que superficial, na forma com que se estrutura a
sociedade.
Obviamente essa ideia ideológica de uma “nova ordem” apenas servia (e serve)
como artifício para a manutenção da antiga ordem. A própria essência da ideologia se coloca
dessa forma, pois “é um dos meios usados pelos dominantes para exercer a dominação,
fazendo com que esta não seja percebida como tal pelos dominados”. (CHAUI, 1980. p. 86).
O fenômeno ideológico é um complexo sistema de ideias engendradas para o não
reconhecimento da essência das relações base desse fenômeno.
a ideologia não é um processo subjetivo consciente, mas um fenômeno objetivo e subjetivo involuntário produzido pelas condições objetivas da existência social dos indivíduos. Ora, a partir do momento em que a relação do indivíduo com a sua classe é a da submissão a condições de vida e de trabalho pré-fixadas, essa submissão faz com que cada indivíduo não possa reconhecer-se como fazedor de sua própria classe. Ou seja, os indivíduos não podem perceber que a realidade da classe decorre da atividade de seus membros. (CHAUI, 1980. p. 78).
Todo o texto constitucional está permeado por essa ideologia que nada tem de nova;
não reconhece a luta de classes, sequer reconhece as classes que predominantemente
compõem a sociedade brasileira desde 1889; não está preocupado em operacionalizar a
realidade, mas sim falsear as razões pelas quais a sociedade brasileira é a antítese do que se
propõe no preâmbulo.
O artigo 3º e seus incisos só demonstram mais claramente a fantasiosa concepção da
realidade com que trabalharam os deputados constituintes. Não cabe aqui analisar cada inciso,
mas vale a enumeração de cada um dos “objetivos”, pois estarão implícitos no decorrer deste
capítulo, são eles:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (BRASIL, 2011).
99
Cabe-nos, todavia, uma mínima análise do que se refere aos direitos fundamentais na
atual carta constitucional, o que se propôs o presente trabalho. Mais precisamente do artigo 5º,
que se apresenta como a maior inovação dessa Constituição.
5.1.1 Capital, capitalismo e trabalho
Os Constituintes, ratificaram o sistema sócio-econômico capitalista, defendido com
unhas e dentes pelos governos militares, como principal motivação deste para a deflagração
do golpe de 1964,
aqui, como no mundo ocidental em geral, a ordem econômica consubstanciada na Constituição não é senão uma forma econômica capitalista, porque ela se apoia inteiramente na apropriação privada dos meios de produção e na iniciativa privada (art. 170). Isso caracteriza o modo de produção capitalista, que não deixa de ser tal por eventual ingerência do Estado na economia nem por circunstancial exploração direta de atividade econômica pelo Estado e possível monopolização de alguma área econômica, porque essa atuação estatal ainda se insere no princípio básico do capitalismo que é a apropriação exclusiva por uma classe dos meios de produção, e, como é essa mesma classe que domina o aparelho estatal, a participação deste na economia atende a interesses da classe dominante”. (DA SILVA, 2007. p. 786).
De fato, o capitalismo foi endossado e levado a um nível superior, tanto de eficiência
quanto de dominação ideológica, com a nova carta magna. Além de aprimorar o sistema
econômico, dando ao Estado prerrogativas para garantir a eficiência do sistema, e de
internalizar e acoitar a repressão passada – até o ano de 2011 não houve a criação de uma
comissão para apurar, processar e julgar os crimes de tortura durante o recente regime militar
–, a nova Constituição trouxe uma sensação de novidade no país, um clima de recomeço, de
partida de um novo Brasil. Habilidosos foram todas as estruturas ideológicas envolvidas nesse
teatro, pois nada mudou essencialmente, nem em aparência. Enfim, a ordem burguesa está
posta.
O modo capitalista de produção traz em seu modus operandi a mais avançada forma
de dominação de classe, e as mais avançadas relações do produção exploratórias que a
humanidade engendrou.
100
a força de trabalho não é uma mercadoria em qualquer sociedade. Nem da escravidão, nem do modo de produção servil, nem na produção mercantil simples os trabalhadores vendiam livremente sua força de trabalho. No primeiro caso, o seu ser pertencia ao amo; no segundo, existia um determinado tipo de relação de dependência que obrigava o servo a realizar uma determinada quantidade de trabalho para o senhor; no último caso, trata-se de produtores independentes que trabalham por conta própria. (HARNECKER, 1983. p. 232).
Duas são as condições que devem ser historicamente colocadas para a força de
trabalho se tornar uma mercadoria: primeiramente a existência do trabalhador livre,
desvinculado de senhores e do Estado, que disponha livremente do seu corpo e de suas
propriedades físicas; e em segundo lugar que esse trabalhador esteja despojado dos meios de
produção, precisando, para a manutenção da sua vida, vender sua força de trabalho a quem
possui os meios de produção, aos capitalistas (HARNECKER, 1983).
A Constituição prevê ambos fatores em seu texto, precisamente no caput do artigo 5º,
figurando como direitos fundamentais do homem: a liberdade, e a propriedade.
Como mercadoria, o valor de força de trabalho é aferido como o de qualquer outra
disponível no mercado: o tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la. Assim,
“o valor da força de trabalho é igual ao valor de todos os produtos necessários para sua
conservação e reprodução em uma sociedade determinada”. (HARNECKER, 1983. p. 233). O
que quer dizer que o valor da força de trabalho é o correspondente ao que foi gasto em sua
produção. Mas há aí particularidades, aspectos da reprodução das condições essenciais que
devem ser verificados, pois além da reprodução individual da força de trabalho individual,
compreendida no valor destinado a recompor a energia gasta, pelos meios de subsistência,
é necessário que esta força de trabalho aflua constantemente ao mercado, e para isso é preciso assegurar a multiplicação natural dos operários. O trabalhador de ter, portanto, os meios suficiente para sustentar a família […] a manutenção de uma família média deve estar compreendida obrigatoriamente no valor da força de trabalho. (HARNECKER, 1983. p. 233).
Além disso, o valor de força de trabalho pode variar conforme as condições
históricas e culturais de cada país. Conquistas históricas da classe trabalhadora podem compor
em maior ou menor número esse montante, bem como as concessões feitas pela burguesia no
processo de tomada do poder em determinado país (HARNECKER, 1983).
101
Pois bem, como já visto no primeiro capítulo deste trabalho, toda mercadoria é
compreendida em dois aspectos: valor de uso e valor de troca. Quanto ao segundo aspecto, o
valor de troca – ou apenas valor –, sabe-se que é fixo, e determinado pelo custo de sua
reprodução. Mas quanto ao valor de uso?
O valor de uso da força de trabalho encerra o segredo por trás da acumulação
capitalista: o mais-valor.
O capitalista compra a força de trabalho pelo seu valor, salário, que é o custo de sua
reprodução e pode, então, dispor dessa força de trabalho pelo período que a legislação lhe
permite – no caso brasileiro. Como qualquer outra mercadoria, o capitalista compra a força de
trabalho pelo seu valor e dispõe do seu valor de uso. Ocorre que o valor de uso da força de
trabalho é justamente produzir valor, trabalhar. O trabalhador trabalha utilizando os meios de
produção do seu patrão e o produto desse trabalho revertem-se à disposição do capitalista.
Na relação de produção capitalista, então, o trabalhador vende sua força de trabalho
ao burguês, que a conjuga aos meios de produção de que é proprietário para produzir novos
valores que serão vendidos no mercado e lhe renderão sua fatia na distribuição social da
riqueza. O trabalhador recebe seu salário e o capitalista a renda do seu capital, seu lucro. Mas
o que é o lucro na relação de produção capitalista?
Nenhum meio de produção – máquina, insumo, espaço físico, etc – se torna um novo
valor por si só, mas apenas pela ação da força de trabalho. Assim, o trabalhador produz novos
valores consumindo os meios de produção. Nesse sentido, o capital aplicado pelo burguês se
reverte e dois tipos: Capital constante, aquele investido em meios de produção, cujo valor não
muda durante o processo produtivo; e o Capital variável, aquele que se investe em força de
trabalho. O valor invertido em capital constante é proporcionalmente repassado ao novo valor,
como custo de produção, assim como o valor referente ao custo da força de trabalho
(HARNECKER, 1983).
Por ora sabe-se que o valor do capital investido pelo capitalista compõe a nova
mercadoria. Então, mais uma vez, de onde vem o lucro?
Numa economia mercantil simples, fundada na troca de produtos no mercado, o
produtor precisa trocar a sua produção, que para si não são valores de uso, senão valores de
troca, pelos efetivos valores de uso que por si serão consumidos. O produtor consegue, assim,
o dinheiro necessário para que possa comprar o que lhe interessa no mercado. Num
intercâmbio mercantil simples a trajetória da mercadoria é esta: M – D – M, isto é, mercadoria
102
trocada por dinheiro, trocado por mercadoria. Já numa economia capitalista, o que interessa
ao capitalista é que saia do intercâmbio mercantil algo a mais do que investiu, que a venda de
sua mercadoria não sirva apenas para comprar outra mercadoria de mesmo valor. O capitalista
precisa que o dinheiro que investiu retorne com um valor adicional, sem o qual não faria
sentido sua atuação. Assim: D – M – D+d. Neste caso o intercâmbio é diferente, a mercadoria
se torna meio de obtenção de mais dinheiro (HARNECKER, 1983). “Se antes se tratava de
vender mercadorias (M) para obter dinheiro (D) que permitisse comprar outras mercadorias
(M), agora se trata de ter dinheiro que permita comprar mercadorias que permitam obter mais
dinheiro”. (HARNECKER, 1983. p. 231).
Todavia, o lucro do capitalista não vem da mera venda da mercadoria por um valor
maior do que seu valor real, como queriam (ou querem) os economistas burgueses, pois o
capitalista está inserido nesse sistema como consumidor e vendedor de mercadorias. Para pôr
em marcha sua produção precisa consumir meios de produção e força de trabalho
(HARNECKER, 1983).
poderá vir de uma superelevação de preços, isto é, da venda das mercadorias acima de seu valor? Se os capitalistas constituíssem um grupo que só vendesse e nunca tivesse que comprar, enquanto existisse outro grupo com dinheiro suficiente para comprar continuamente sem produzir nada, talvez se pudesse explicar assim o fato. Mas a realidade é diferente; o capitalista, ao mesmo tempo que vende seus produtos, tem de comprar outros para poder produzir. Tem que comprar matérias-primas e instrumentos de trabalho de outros capitalistas. Sendo assim, se estes aumentassem os preços também, produzir-se-ia uma espécie de compensação a nível social. Os que lucrassem como vendedores, perderiam como compradores. Portanto, o lucro que o capitalista obtém não pode ser explicado por via do intercâmbio, isto é, dizendo que vende seus produtos a um preço mais alto do que valem. (HARNECKER, 1983. p. 231).
De fato, se buscamos a resposta para a pergunta de onde vem o lucro do capitalista,
devemos olhar a relação de produção mais atentamente.
O capitalista, pagando o valor da força de trabalho e dispondo dela o tempo que
desejar – ou que a legislação permitir, na maior parte dos casos – a coloca em processo de
produção, consumindo seus meios de produção e cria novas mercadorias, as quais precisa
vender por um valor maior do que aquele que investiu na produção. Se o lucro não advém do
intercâmbio acima do valor da mercadoria, e também não advém do consumo dos meios de
produção, que apensa repetem seu valor na nova mercadoria, então o novo valor só pode ser
103
criado pela força de trabalho. O novo valor surge da propriedade única inerente da força de
trabalho, “produzir mais trabalho do que o necessário para reproduzi-la”. (HARNECKER,
1983. p. 234). Não só, a força de trabalho além de produzir novo valor, possui a prerrogativa
de fazer com que o valor dos meios de produção sejam transferidos a nova mercadoria
(HARNECKER, 1983).
Se para a reprodução de um dia de vida do trabalhador gasta-se, hipoteticamente, 2
horas de trabalho – como já visto no primeiro capítulo, o valor de uma mercadoria se mede
por quantidade de trabalho – que é o seu salário – o qual será gasto em valores de uso para seu
consumo –, e o mesmo trabalhador trabalha 8 horas por dia, de acordo com seu contrato de
trabalho, sobram 6 horas de trabalho não pago. Esta diferença entre o trabalho pago e o
trabalho não pago é o que constitui a mais-valia, a fonte de lucro do capitalista
(HARNECKER, 1983). Mais-valia é, portanto, o “valor que o operário cria além do valor de
sua força de trabalho”. (HARNECKER, 1983. p. 234).
Assim compreendemos superficialmente a dinâmica das relações de produção
capitalistas, as quais nossa constituição institui e operacionaliza. Reconhece a Constituição de
1988, por exemplo, o conceito de valor da força de trabalho, o salário, que não é o valor do
seu efetivo trabalho, mas o necessário à reprodução da força de trabalho, em seu artigo 7º,
inciso IV:
salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; (BRASIL, 2011).
Porém, nem esse mínimo garante a carta constitucional frente a ordem capitalista. O
DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – instituto
que calcula periodicamente os gastos básicos do trabalhador para apontar o valor necessário
para prover sua vida e de sua família, estipulava, para agosto de 2011, um salário mínimo
necessário de R$ 2.278,77, sendo o salário mínimo, vigente à época, R$ 545,00 (DIEESE,
2011).
104
5.1.2 Artigo 5º
Inicia-se o art. 5º com os seguintes dizeres:
todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, […]. (BRASIL, 2011).
A todos os que vivem neste país é garantido, pelo artigo acima transcrito, o direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, sem, de nenhuma forma
questionar a possibilidade histórica e econômica de se garantir tais direitos aos seus cidadãos.
Todos os seus 78 incisos (em 2011) são perpassados pela mesma contraditoriedade
irreconciliável do caput, ideal versus real. Um estudo exaustivo de cada inciso seria
enriquecedor, porém tornaria o trabalho por demais dificultoso e cujos resultados
ultrapassariam os objetivos aqui assumidos, além do mais, apesar de não em toda sua
especificidade, todas essas contradições específicas se fundem numa única contradição
essencial, entre a Humanidade e a propriedade privada, esta atualmente em sua forma mais
aguda e nociva: o Capital.
A forma com que a propriedade privada conflita com os direitos fundamentais
previstos pela própria Constituição Federal de 1988 será o objeto do estudo a ser
desenvolvido nas próximas páginas. Sucintamente, pois muito já foi falado e adiantado nas
páginas anteriores. Para tanto retomaremos muitos dos conceitos enunciados até o momento.
Por onde começar a análise da contradição fundamental entre propriedade e vida?
Começaremos com a afirmação de que a propriedade privada priva os não-possuidores de
suas próprias vidas.
O Ser humano é um animal. Muitos não se reconhecem assim, mas o são. Essa
afirmação nos leva a concluir que, como animais, regidos pela dialética da vida, temos
necessidades naturais, como qualquer outro animal, além das necessidades sociais que nos são
específicas na natureza. Destarte, o Ser humano, para simplesmente continuar vivo, como
animal (natural) ou como humano (social), precisa satisfazer suas necessidades, fazendo-o
através do consumo de seus meios de subsistência, que são valores de uso que satisfazem
“necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou
da fantasia”. (MARX, 1994. p. 41).
105
Na medida em que a propriedade, no período histórico em que se consolida, que se
confunde com o surgimento do modo de produção escravista mais primitivo, privatiza os
meios de produção, consequentemente priva os demais seres humanos de seus meios de
subsistência, sendo estes os valores de uso que satisfazem as necessidades humanas. A partir
daí, os que não se incluem entre os proprietários, são excluídos da partilha da vida.
Dessa forma, tornar propriedade privada, individual, os meios de produção significa
dizer que apenas seus proprietários têm direitos sobre o que se é produzido, privando os não
proprietários, mesmo que sejam os que produzam diretamente, do produto proveniente da
utilização dos referidos meios de produção. Pouco importa se a produção é trabalho individual
ou social.
Historicamente o primeiro meio de produção privatizado é a terra, a fonte de toda a
riqueza. O próprio homem se transformou em meio de produção mais à frente, durante um
longo período, basta lembrar dos impérios escravistas que se deglutiram até a formação do
monumental Império Romano. Com a desagregação do escravismo como modo de produção
dominante, por inúmeros motivos, o feudalismo se desenvolveu baseando-se completamente
na propriedade da terra e na dominação religiosa, até que o Capital se consolidasse e as
condições históricas engendrassem o novo modo de produção, capitalista.
No atual momento histórico brasileiro, de capitalismo desenvolvido, como em
qualquer outra época, não há outra forma de um ser humano se fazer existir senão
consumindo os meios de subsistência que sua existência requer. O que é peculiar ao modo de
produção capitalista é que só poderá produzir conjugando sua força de trabalho aos meios
sociais de produção, porém, uma vez que estes se encontram privatizados, não poderá fazê-lo.
Aliás, poderá, mas deverá se entregar a uma relação de produção exploratória.
Precisando recorrer ao mercado para adquirir as mercadorias (meios de subsistência,
valores de uso) de que necessita, o ser humano só poderá adquiri-los trocando por algo que o
equivale. Deverá, então, levar ao mercado um valor que seja suficiente para se trocar pelos
seus meios de subsistência. Portanto, se o cidadão em foco não é proprietário de meios de
produção dos quais retire alguma renda, só terá sua vida para vender, isto é: sua energia, seu
tempo, sua capacidade intelectual, sua força de trabalho. Só alienando sua força de trabalho
poderá, o humano sem propriedades, adquirir o valor necessário para trocá-lo por sua
existência no mercado.
106
Sem que aliene sua vida a outro, ao Capital genericamente, destarte, não há direito à
vida àquele que não é proprietário de meios de produção. A dinâmica de manutenção da vida
dos não proprietários, assim, consiste em alienar uma parcela diária, maior ou menor, da sua
vida a um proprietário de meios de produção para que este lhe retribua com o mínimo de
valores de uso para que sobreviva e volte ao trabalho no dia posterior.
A relação de produção capitalista se dá entre cidadão “livres” e “iguais”, cada qual
vendendo sua mercadoria ao outro. O proprietário dos meios de produção vende ao
trabalhador o valor necessário para que este compre seus meios de subsistência pelo dia
trabalhado. O trabalhador, vende ao proprietário sua força de trabalho, única propriedade de
que pode dispor, e que muito interessa ao capitalista.
Traduzindo-se o direito à vida, inscrito no caput do artigo 5º, chega-se a conclusão
que este nada mais é do que o direito do Capital consumir a vida para se valorizar
incessantemente. Não é o povo que tem o direito de dispor da sua vida, mas o Capital. Eis a
vida no capitalismo.
Num sistema capitalista – cujas características principais são a propriedade privada
dos meios de produção e a plena liberdade do trabalhador dispor do próprio corpo – a
liberdade consiste aí numa verdade, mas uma verdade absolutamente dolorosa, pois o
despossuído que se encontra nessa sociedade, por ser livre, e ninguém se responsabilizar por
sua vida, perece livremente. O cidadão que quiser exercer sua liberdade e não vender uma
considerável parcela da sua vida a um capitalista, não se perpetuará no mundo. Se, exercendo
a mesma liberdade, desejar vender uma parcela da sua vida por um preço que considera
adequado e não conseguir, por conta da competição de outros despossuídos no mercado,
também perecerá. Ainda, mesmo que deseje com toda sua vontade, mas por inúmeros
motivos, não consiga vender sua força de trabalho, também não sobreviverá. Enfim, de muitas
formas possíveis a liberdade, quando dissociada à propriedade, se torna um flagelo à maioria.
Não é, obviamente, esta a liberdade apregoada pelo discurso da constituição. Na
Carta magna, a liberdade aparece no sentido mais idealista de dispor do próprio corpo e gozar
de suas faculdades, o que, porém, só é de fato proporcionado à classe proprietária.
O simples fato da existência da propriedade privada já anula qualquer esperança de
igualdade. O próprio termo já se explica, “Propriedade Privada”, que priva os que não a
possuem. Se o mundo material é finito, não há como todos serem proprietários, por mais que
107
realmente se deseje isso. Não só, com o capitalismo da nossa época, monopolista, a
propriedade tem se acumulado em poucas mãos.
tomemos as leis fundamentais dos Estados contemporâneos, tomemos a sua administração, tomemos a liberdade de reunião ou de imprensa, tomemos a “igualdade dos cidadãos perante a lei”, e veremos a cada passo a hipocrisia da democracia burguesa, bem conhecida de qualquer operário honesto e consciente. Não há Estado, nem mesmo o mais democrático, onde não haja escapatórias ou reservas nas constituições que assegurem à burguesia a possibilidade de lançar as tropas contra os operários, declarar o estado de guerra etc., “em caso de violação da ordem”, de fato em caso de “violação” pela classe explorada da sua situação de escrava e de tentativas de não se comportar como escrava. (LENIN, 2005. p. 141).
A hipocrisia a que Lenin chama atenção, diz respeito justamente a impossibilidade de
que tal igualdade se faça valer, mesmo que minimamente, sob a ordem capitalista. Decorrente
da privação da propriedade, e a consequente privação da partilha da produção social, a
desigualdade é material, já que a igualdade é formal. Se a igualdade apenas formal, não
garante de forma alguma, a efetiva igualdade, sua postulação como elemento constitutivo da
sociedade brasileira não passa de uma falácia.
A existência da propriedade privada divide a sociedade em classes, possuidores e
despossuídos. Não há como existir qualquer igualdade diante desse fato.
Num contexto social desigual, que dissemina a pobreza e miséria, e que faz do
homem um ser a cada dia mais animalesco, a segurança é um mito. Aliás, a segurança existe
para a parcela que dela pode dispor, para o resto: a lei selva.
Grande parte dos crimes cometidos no Brasil são empreendidos por motivação
econômica, direta ou indiretamente. O que se justifica em relação a impossibilidade de se
prover uma vida digna com o salário mínimo instituído por lei. Além disso a taxa de
desemprego que oscila, mas está sempre presente, por característica inerente ao capitalismo –
em tempos de euforia desenvolvimentista fomentada pelo Estado, eram cerca de 6% de
desempregados em meados de julho de 2011, um dos menores índices de todos os tempos
(IBGE, 2011), ajudam a compor um alto número de pessoas dispostas a engrossar as
estatísticas da criminalidade. Além, é óbvio, das motivações colaterais que tornam o Ser
humano perverso sob uma sociedade construída sobre a perversidade.
O pensamento burguês, com esse tipo de incongruência fatal, como a do artigo 5º
acima exposto, e o seu idealismo pueril, ao negar as condições materiais em que vive e as
108
relações postas, “[...] prefere condenar a humanidade ao absurdo, ao nada, do que pôr-se a si
mesmo em discussão.” (BEAUVOIR, 1972. p. 14). Para manter seus privilégios, busca
“inventar uma justiça superior em nome da qual a injustiça seja justificada.” (BEAUVOIR,
1972. p. 10). Destarte, “[...] mesmo mantendo a pretensão universalizadora do seu
pensamento [...] não desiste da vontade particularista de sua classe.” (BEAUVOIR, 1972. p.
13). Nesse contexto, “[...] todo burguês está praticamente interessado em dissimular a luta de
classes; o pensador burguês é obrigado a fazê-lo, se quiser aderir ao seu próprio pensamento.”
(BEAUVOIR, 1972. p. 13).
109
6 CONCLUSÃO
O presente trabalho procurou demonstrar que o problema da efetivação da
Constituição – nos termos em que se propõe a inovar, democracia e direitos fundamentais
principalmente –, não é simplesmente pontual, de ineficiência deste ou daquele governo. O
discurso é de que a constituição é boa, o povo brasileiro que não ajuda, os políticos, a
sociedade civil e a economia não ajudam; resumindo, a constituição é boa, a realidade que não
ajuda. Se uma Constituição serve para reger a realidade, a brasileira de 1988 pouco serve, pois
dissociada da realidade. O problema é estrutural, que coloca o sistema em constante colapso
social.
Para tanto o trabalho recorreu ao estudo, mesmo que superficialmente, face a
limitação de uma monografia, do materialismo histórico-dialético a fim de entender
historicamente o processo pelo qual se deu a construção no Brasil contemporâneo. Assim
pôde-se estudar com alguma materialidade, sucintamente, o contraditório processo
constituinte e sua formação, e, Por fim, o texto constitucional, no que tange o objetivo do
trabalho.
Quanto ao problema assumido, muitas são as ponderações conclusivas a se fazer. Em
um primeiro momento, aparentemente, a CF/88 arremessa uma infinidade de normas e espera
que alguma vingue, como sementes no fértil solo “em que se plantando tudo dá”; espera que a
realidade material coincida com alguma de suas normas, numa perspectiva pós-moderna de
que “o mundo é o que queremos que ele seja”. Mas uma análise um pouco mais aprofundada
delata as reais intenções, menos ingênuas, da Carta constitucional. Não se trata de simples
idealismo, pois, para alguns privilegiados, a Constituição não tem nada de programática.
Trata-se, em grande parcela, de ideologicamente legitimar a dominação da classe oprimida
pela superestrutura jurídico-política. Passa-se a imagem de que o Estado brasileiro não é mau,
mas neutro. Ou melhor, não apenas neutro, mas “cidadão”, defensor dos “pobres e
oprimidos”. A classe burguesa cumpriu seu papel muitíssimo bem ao forjar, em todos os
sentidos, tal instrumento jurídico com tamanha destreza – e rios de dinheiro.
A constituição se tornou, em 1988, o alicerce não apenas da superestrutura jurídico-
política mas também da ideológica. Com seus direitos e garantias, princípios e fábulas, a carta
introduz ao povo um sentimento de amparo da norma constitucional. O povo – não todo, mas
aquela pequena parcela que sabe ler e interpretar – lê o deslumbrante título II da constituição
110
e não vê nada de errado; vê, aliás, um mundo que não o dele. Os direitos individuais e sociais
lá elencados são lindos, muitos se emocionam com a “conquista democrática da constituição
cidadã”. Acontece que, porém, tais direitos são postos em prática apenas na medida em que
não conflitem com outros “mais importantes”, ou com mais intensidade os que, não
conflitando, ainda potencializem aqueles direitos.
A Constituição trabalha na perspectiva de aprofundamento das relações de produção
capitalistas e, pela sua própria forma e discurso, cristaliza na sociedade a ideologia
dominante. Por meio de um discurso pós-moderno virulento de fim de anos 80, com o qual se
apregoa o fim da luta de classes como motor da história, a constituição irracionaliza o sistema
jurídico-político brasileiro.
Além disso, a Constituição se propõe como simples “remendadora” da realidade,
aquela que “ajuda” sem, todavia, “poder mudar o mundo”. Porém, não é a Constituição o
instrumento jurídico que institui e edifica um Estado? Não é a Constituição o instrumento
jurídico que estabelece a atuação estatal e o complexo social que existirá sob a sua figura?
Não é o Estado que estabelece os ditames da produção, reprodução e distribuição da riqueza
numa sociedade? Qual então a impossibilidade de uma Constituição frente a criação do novo?
Pois bem, o ponto crítico está no fato de que a Assembleia Constituinte que promulgou a
CF/88 não foi plena em sua liberdade, ou no mínimo não foi fiel ao que propagava como
intenção. A recente Assembleia Constituinte, como demonstrado, foi uma Assembleia
condicionada a interesses preexistentes. A construção do “novo” foi a simples remodelação do
velho. A Constituição de 1988 foi um passo para a sedimentação da ordem conquistada e
reafirmada pelo golpe de 1964. Carregada do conteúdo ideológico da classe dominante,
impondo-se quase como uma revolução, a Carta maior de 88 tem precipuamente esse papel
ideológico de “recomeço”. Muito embora, evidentemente, após mais de 20 anos de existência,
seu simbolismo e romantismo vêm sendo postos em xeque, em virtude da medíocre aplicação
de direitos ditos fundamentais, mas pouco usuais desde sua promulgação.
Em outras palavras: a ordem capitalista é essencialmente o oposto do que prega
ideologicamente a Constituição em seus principais artigos e princípios. Como abraçou a
classe burguesa, ao invés da classe trabalhadora, o Estado brasileiro não pode, e não poderá,
cumprir nem de perto o que promete em seus avançados postulados. Ainda, a Constituição de
1988 propõe que, garantido a burguesia o direito de continuar como tal e acumular Capital a
uma taxa que seja – supondo que exista – suficientemente aprazível, os trabalhadores podem
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enriquecer, e os marginalizados podem se integrar. Pouco importando, nessa equação, as
consequências econômicas conflitantes daquelas afirmações.
O Estado, como em todos os sistemas sociais em que é protagonista, age em prol da
classe dominante, em nossa democracia: a burguesia. O Direito, como aparelho coercitivo do
Estado, viabiliza o jugo. No caso brasileiro arrancaram, pois, os dois olhos da deusa Têmis.
Decretaram-na cega, incapaz, para serem seus curadores e agirem em seu nome da forma
como bem entendem. Então dizem que a justiça é cega, mas não esclarecem que outros,
“menos imparciais”, fazem as vezes dos seus olhos.
A constituição não é aplicada, e não será, porque seu próprio texto possui severos
conflitos. A ordem econômica e social existente, e reiterada pela CF/88, não pode recepcionar
e comportar medidas sociais ao mesmo tempo em que se funda na propriedade privada. O
texto constitucional fabrica fantasias, e as mesmas se repetem nos períodos eleitorais
periodicamente, como estabelece a própria constituição.
A Carta de 88 foi concebida em meio ao cinismo da “redemocratização” promovida e
viabilizada pelos que antes integravam a força ditatorial. O relaxamento das forças de
contenção ideológica e de liberdades – condicionadamente – asseguradas pela CF/88, sem
dúvida tem muito a ver com o, desde então, nível de consciência do povo brasileiro, que não
mais põe em perigo o status quo definido. Não restam dúvidas de que, havendo novo perigo
ao poder constituído, uma nova “ameaça vermelha”, as liberdades e garantias constitucionais
serão rapidamente suprimidas em prol de um conceito qualquer de “democracia” porcamente
formulado em gabinetes Norte-americanos.
Para que pudessem se tornar realidade os direitos inscritos na CF/88, dever-se-ia,
junto a eles, ter-se construído uma nova estrutura social e econômica, como isso não ocorreu,
temos lido, desde 1988, o conto de fadas com o maior número de autores da história: 559
escritores/deputados.
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