jean starobinski - jean-jacques rousseau transparencia e obstaculo

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1 DISCURsa saBRE AS CIENCIAS E AS ARTES o Discurso sobre as ciencias e as artes [Discours sur les sciences et les arts] come9a pomposamente por um elogio da cultura. Nobres frases se desdobram, descrevendo em resumo a hist6ria inteira do pro- gresso das luzes. Mas uma subita reviravolta nos poe em presen9a da discordancia do ser e do parecer: "As ciencias, as letras e as artes ... estendem guirlandas de f10res sobre as cadeias de ferro com que eles (os homens) sao esmagados". J Belo efeito de retorica: urn toque de varinha magica invcrte os val ores, e a imagem brilhante que Rousseau pusera sob os nossos olhos nao e mais que urn cenario mentiroso - bela demais para ser verdadeiro: Como seria doce viver entre nos, se a atitude exterior fosse sempre a imagem das disposir;:oes do corar;:ao. 2 Cava-se 0 vazio atras das superficies mentirosas. Aqui vao come9ar todas as nossas infelicidades. Pois essa fenda, que impede a "atitude exterior" de corresponder as "disposi9oes do cora9ao", faz 0 mal penetrar no mundo. Os beneficios das luzes se encontram compensados, e quase anulados, pelos inumeraveis vicios que decorrem da mentira da aparencia. Urn impeto de eloquencia descrevera a ascensao triunfal das artes e das ciencias; urn segundo lance de eloquencia nos arrasta agora em inverso, enos mostra toda a extensao da "corrup9ao dos costume's". 0 espirito humane triunfa, mas 0 homem se perdeu. 0 contraste C. vi.olcllto, pois 0 que esta em jogo nao eapenas a n09ao abstrata do ser e do p:ueC('f, mas 0 destino dos homens, que se divide entre a inocencia rl'lI egada I' a perdis:ao doravante certa: 0 parecer e 0 mal sao lIma mesilla coif-a. H

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Page 1: Jean Starobinski - Jean-jacques Rousseau Transparencia e Obstaculo

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DISCURsa saBRE AS CIENCIAS E AS ARTES

o Discurso sobre as ciencias e as artes [Discours sur les sciences et les arts] come9a pomposamente por um elogio da cultura Nobres frases se desdobram descrevendo em resumo a hist6ria inteira do proshygresso das luzes Mas uma subita reviravolta nos poe em presen9a da discordancia do ser e do parecer As ciencias as letras e as artes estendem guirlandas de f10res sobre as cadeias de ferro com que eles (os homens) sao esmagados J Belo efeito de retorica urn toque de varinha magica invcrte os val ores e a imagem brilhante que Rousseau pusera sob os nossos olhos nao e mais que urn cenario mentiroso - bela demais para ser verdadeiro

Como seria doce viver entre nos se a atitude exterior fosse sempre a imagem das disposiroes do corarao2

Cava-se 0 vazio atras das superficies mentirosas Aqui vao come9ar todas as nossas infelicidades Pois essa fenda que impede a atitude exterior de corresponder as disposi9oes do cora9ao faz 0 mal penetrar no mundo Os beneficios das luzes se encontram compensados e quase anulados pelos inumeraveis vicios que decorrem da mentira da aparencia Urn impeto de eloquencia descrevera a ascensao triunfal das artes e das ciencias urn segundo lance de eloquencia nos arrasta agora em s(~ntido inverso enos mostra toda a extensao da corrup9ao dos costumes 0 espirito humane triunfa mas 0 homem se perdeu 0 contraste C violcllto pois 0 que esta em jogo nao eapenas a n09ao abstrata do ser e do pueC(f mas 0 destino dos homens que se divide entre a inocencia rllIegada I a perdisao doravante certa 0 parecer e 0 mal sao lIma ~ mesilla coif-a

H

o tema da mentira da aparencia nao tern nada de original em 1748 No teatro na igreja nos romances nos jomais cada urn a sua maneira denuncia falsas aparencias convencoes hipocrisias mascaras No vocashybulario da polemica e da satira nenhum termo que retome mais freqiienshytemente que desveZar e desllascarar Tartufo foi lido e relido 0 perfido o vii bajulador 0 celerado dissimulado pertencem a todas as comedias e a todas as tragedias No desfecho de uma intriga bern conduzida e preciso traidores desmascarados Rousseau (Jean-Baptiste) permanecera na memoria dos homens por ter escrito

A lIIascara cai permallece 0 hOllell E 0 her6i se esvaece 3

Esse tern a esta bastante difundido bastante vulgarizado bastante automatizado para que qualquer um possa retomi -Io e ai acrescentar algumas varia~oes sem grande esforo de pensamento A antitese sershyparecer pertence ao lexico comum a idei3 tornou-se locucao

No entanto quando Rousseau en contra 0 deslumbramento da vershydade na estrada de Vincelmes e durante as noites de insonia em que vira e revira4 os period os de seu discurso 0 lugar-comum recobra vida incendeia-se toma-se incandescente A oposicao do ser e do parecer se anima pateticamente e confere ao discurso sua tensao dramatica Esempre a mesma antitese extraida do arsenal da retorica mas exprime uma dor um dilaceramento A despeito de toda a enfase do discurso urn sentimento verdadeiro da divisao se impoe e se propaga A ruptura entre 0 ser e 0

parecer engendra outros conflitos como uma serie de ecos amplificados ruptura entre 0 bern e 0 mal (entre os bons e os maus) ruptura entre a natureza e a sociedade entre 0 homem e seus deuses entre 0 homem e ele proprio Enfim a historia inteira se divide em urn antes e urn depois outrora havia patrias e cidadaos agora nao ha mais Roma mais uma vez fomece 0 exemplo a virtuosa republica fascinada pelo brilho da aparencia perdeu-se por seu luxe e suas conquistas Insensatos 0 que fizestes 75

Dirigida contra 0 prestigio da opiniao deplorando a decadencia de Roma entao entregue aos retoricos a deciamacao obedece a todas as regras do genero oratorio Para urn concurso de Academia nada Ihe falta apostrofes prosopopeias gradacoes Ate mesmo a epigrafe revela a preshysen~a da tradicao literaria Decipimur specie recti6 De imediato 0 tema essencial nos e oferecido sob a garantia de uma sentenca romana Mas a citac3o e oportuna 0 que ela anuncia e que subjugados pela ilusao do bern cativos da aparencia deixamo-nos seduzir por uma falsa imagem da justica Nosso erro nao conta na ordem do saber mas na ordem moral Enganar-se etomar-se culpado enquanto se acredita fazer 0 bern Apesar

I h

de nos a nos sa revelia somos arrastados para 0 mal A ilusao nao e apenas 0 que turva nosso conhecimento 0 que vela a verdade falseia todos os nossos atos e perverte nossas vidas

Essa retorica serve de veiculo a urn pensamento amargo obsedado pela ideia da impossibilidade da comunicacao humana No primeiro Discurso Rousseau ja faz ouvir 0 lamento que repetira incansavelmente nos anos da perseguicao as almas nao sao visiveis a amizade nao e possivel a confianca jamais pode durar nenhum sinal certo permite reconhecer a disposicao dos coracoes

]a nao se ousa parecer 0 que se e e nessa sujeiltao perpetua os homens que fonnam esse rebanho que se chama sociedade colocados nas mesmas circunstancias farao todos as mesmas coisas se motivos mais poderosos delas nao os desviam Portanto jamais se sabera bem com quem se trat sera preciso en tao para conhecer 0 amigo esperar as grandes ocasioes isto e esperar que nao seja mais tempo pois que e para essas mesmas ocasioes que teria sido essencial conhece-Io

Que cortejo de vicios nao acompanhara essa incerteza Nao mais ami middot zades sinceras nao mis estima real nao mais confianlta fundada As sus peilas as desconfianltas os temores a frieza reserva 0 odio a trailt iio serao ocultados incessantemente sob esse veu unifonne e perfido de polidcz sob essa urbani dade tao louvada que devemos as luzes de nosso seculo7

Que ser e parecer sejam diversos que urn veu dissimule os verdadeiros sentimentos esse e 0 escandalo inicial com que Rousseau se choca esse e 0 dado inaceitavel de que buscara a explicac3o e a causa essa e a infelicidade de que deseja ser libertado

Esse tema e fecundo Abre a possibilidade de urn desenvolvimento inesgotavel No proprio testemunho de Rousseau 0 escandalo da mentira deu impulso a toda a sua reflexao teorica Muitos anos depois do primeiro Discurso volt an do a sua obra para interpreta-Ia e fazer a historia de suas ideias ele declarara

Assim que fui capaz de observar os homens olhava-os agir e escutava-os falar depois venda que suas alt6es nao se pareciam de modo algum com seus discursos procurei a razao dessa dessemelhana e descobri que seudo ser e parecer para eles duas coisas tao diferentes quanto agir e pensar essa segunda diferena era a causa da outras

Tomemos nota dessa declaracao Mas coloquemos tambem algumOls questoes

Assim que fui capaz de observar os homens Rousseau se airiblli aqui 0 papel do observador posta-se na atitude do naturalista fiI 6sof~) que traduz suas observacoes em conceitos e que remonta indutivam(ntt as razoes e as causas primeiras Ao atribuir-se esse gosto pela 3niliSI desinteressada Rousseau nao racionaliza emocoes l11uilo mais turV31i

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sentimentos muito mais interessados Nao adota ele 0 tom do saber abstrato na inten9ao mais ou menos consciente de compensar e de dissishymular certas decep90es e certos fracassos muito pessoais 0 proprio Rousseau nos autoriza a fazer essas perguntas Bem antes que a psicologia modema houvesse dirigido nossa aten9ao para as fontes afetivas e as subestruturas inconscientes do pensamento 0 Rousseau das Confissoes [Les confessions] nos convida a buscar a origem de suas proprias teorias na experiencia emotiva e 0 Rousseau dos Devaneios [Les reveries du promeneur solitaire] chegani a dizer na experiencia sonhada Minha vida inteira quase nao passou de um Iongo devaneio9

A discordancia do ser e do parecer revelou-se entao a Rousseau ao fim de um ate de aten9ao critica Foi uma calma compara9ao que alertou seu pensamento 0 leitor poderia ficar tentado a duvidar disso Sabendo quanta 0 tern a do parecer se tomara moeda corrente no vocabulario intelectual da epoca hesitara em admitir que a reflexao de Rousseau tenha encontrado ai seu ponto de partida autentico e seu impulsD original Se algum dia fosse possivel apreender esse pensamento em sua fonte e em sua origem nao seria preciso remontar a um nivel psiquico mais profundo em busca de uma em09ao primeira de uma motiva9ao mais intima Ora a1 encontraremos 0 maleficio da aparencia nao mais a titulo de lugar-coshymum retorico ou na qualidade de objeto submetido aobserva9ao metodica mas sob a forma da dramaturgia intima

AS APARENCIAS ME CONDENA VAM

Releiamos 0 primeiro livro das Confissoes Eu me mostrei tal como fuiIO (tal como ele acredita ter side tal como quer ter sido) Nao se preocupa em retra9ar 0 historico de suas ideias deixa-se invadir pela lembran9a afetiva sua existencia nao Ihe parece constituida como uma cadeia de pensamentos mas como uma cadeia de sentimentos urn enshycadeamento de afei90es secret as 11 Se 0 tema do parecer mentiroso nao fosse mais que uma superestrutura intelectual quase nao teria lugar nas Confissoes Ora 0 contrario e que e verdadeiro

Sem duvida nao e sem importancia que a consciencia de si date para Jean-Jacques de seu encontro com a Iiteratura Ignoro 0 que fiz ate cinco ou seis anos nao sei como aprendi a ler lembro-me apenas de minhas primeiras leituras e de seu efeito sobre mim e 0 tempo de que data sem interrupriio a consciencia de mimmesmo Minha mae deixara romances 12 0 encontro de si coincide com 0 encontro do imaginario eles constituem uma mesma descoberta Desde a origem a consciencia de si esta intimamente ligada apossibilidade de tomar-se um outro (Eu

I U

me tomava a persona gem da quallia a vida I3) Porem por mais perigoso que Rousseau considere esse metodo de educa9ao - que desperta 0 sentimento antes da razao 0 conhecimento do imaginario antes do das coisas reais -0 parecer a1 nao se impoe como uma influencia malefica A ilusao sentimental despertada pel a leitura comporta certamente um risco mas 0 risco nesse caso particular esta acompanhado de um privishylegio precioso Jean-Jacques se forma como urn ser diferente Essas em090es confusas que eu experimentava uma apos a outra nao alteravam absolutamente a razao que ainda nao tinha mas elas me formaram uma de uma outra tempera 14 A singularidade de Jean-Jacques tem sua fonte nos fantasmas fascinantes suscitados pela ilusao romanesca Esta aqui 0

primeiro dado biografico que vem confirmar a declara9ao do preambulo Nao sou feito como nenhum daqueles que viY Jean-Jacques deseja e deplora sua diferen9a e simultaneamente uma infelicidade e urn motivo de orgulho Se as com090es ficticias se a exalta9ao imaginaria tomaramshyno diferente ele lan9ara contra elas uma condena9aO ambigua esses romances sao urn vestigio da mae perdida

Vamos encontrar uma recorda9ao de infancia que descreve 0 enshycontro do parecer como uma perturba9ao brutal Nao ele nao come90u por observar a discordancia do ser e do parecer come90u por sofremiddotmiddotla A memoria remonta a uma experimiddotencia original do maleficio da aparencia Jean-Jacques retra9a-lhe a revela9ao traumatizante aqual atribui uma importancia decisiva Desde esse momenta deixei de gozar de uma felicidade pura1 6 Nesse instante se produz a catastrofe (a queda) qlle destroi a pureza da felicidade infantil A partir desse dia a injusti9a existe a infelicidade e presente ou possive Essa lembran9a tern 0 valor de um arquetipo e 0 encontro da acusa9ao injustificada Jean-Jacques pareo culpado sem 0 ser realmente Parece mentir enquanto esincero Aqueles que 0 castigam agem injustamente mas falam a linguagem da justi9a E aqui a puni9ao fisica nao tera as conseqiiencias eroticas da soya nas nadegas aplicada pela srta Lambercier Jean-Jacques a1 nao descobre seu carpo e seu prazer descobre a solidao e a separa9ao

Urn dia eu estudava sozinho minha liao no quarto contiguo it cozinhn A criada pusera para secar na chapa os pentes da senhorita Lambercicr Quando voltou para apanha-Ios havia um com todo urn lade de delltes quebrado A quem atribuir a culpa desse estrago Ninguem al6m de milll entrara no quarto Interrogam-me nego ter tocado no pente 0 sCllhor ~

a senhorita Lambercier se reunem exortam-me pressionam--ml Ilnwfl~alll shy

me persisto com obstinaao mas a convicao era forte dcmais prevnhc(~ IJ

sobre todos os meus protest os embora fosse a primeira vez que me livesshysem encontrado tanto audacia em mentir A coisa foi levada II serio IIIIt(Ol il

sc-Io A maldllde a rnentira a obstinllrao parc~ccralJl igualnllllt l di)IIImiddot

de puni~~ iio

Ul

Faz agora quase cinqiienta anos dessa aventura e nao tenho medo de ser hoje punido uma segunda vez pelo mesmo fato Pois bern Declaro diante do Ceu que eu era inocente

Nao tinha ainda bastante raziio para sentir quanta as aparencias me condenavam e para me colocar no lugar dos outros Mantinha-me no meu lugar e tudo 0 que sentia era 0 rigor de urn castigo terrivel por urn crime que nao cometera 17

Rousseau esta aqui em situa9ao de acusado (No primeiro Discurso ele desempenha 0 papel do acusador mas a partir do momento em que encontrar a contradi9ao ele se achara novamente em situa9ao de acusado) A experiencia cuja descri9ao acabamos de ler nao confronta abstratamente a n09ao de realidade e a n09ao de aparencia e a oposi9ao perturbadora do ser-inocente e do parecer-culpado Que desarranjo de ideias Que desorshydem de sentimentos Que perturba9ao 18 Ao mesmo tempo em que se revela confusamente a ruptura ontologica do ser e do parecer eis que 0 misterio da injusti9a se faz sentir de modo intoleravel a essa crian9a Ela acaba de aprender que a intima certeza da inocencia eimpotente contra as provas aparentes da culpa acaba de aprender que as consciencias sao separadas e que e impossivel comunicar a evidencia imediata que se experimenta em si mesmo Desde entao 0 paraiso esta perdido pois 0 paraiso era a transparencia reciproca das consciencias a comunica9ao total e confiante 0 proprio mundo muda de aspecto e se obscurece E os termos de que Rousseau se serve para descrever as conseqiiencias do incidente do pente quebrado assemelham-se estranhamente as palavras pelas quais 0 primeiro Discurso pinta 0 cortejo de vicios que irrompe des de que nao se ousa rna is parecer 0 que se e Nos dois textos Rousseau fala de urn desaparecimento da confianfa depois evoca urn veu que se interpoe

Permanecemos ainda em Bossey alguns meses Ali estivemos como nos representam 0 primeiro homem ainda no paraiso terrestre mas tendo deixado de goza-lo Era em aparencia a mesma situa9ao e de fato toda uma outra maneira de ser 0 apego 0 respeito a intimidade a confia1Ua nao uniam mais os alunos a seus guias ja niio os olhavamos como deuses que liam em nossos cora90es ficavamos menos envergonhados de agir mal e mais temerosos de ser acusados com~avamos a nos esconder a nos rebelar a mentir Todos os vicios de nossa idade corrompiam nossa inocencia e enfeiavam nossas brincadeiras Ate 0 campo perdeu aos nossos olhos esse atrativo de d09ura e de simplicidade que chega ao cora9ao Parecia-nos deserto e sombrio como que se cobrira de urn veil que nos ocultava-lhe as

belezas19

As almas nao se encontram mais e tern prazer em ocultar-se Tudo esta perturbado e a crian9a pun ida descobre essa incerteza do conheshycimento de outrem de que se lamentani no primeiro Discurso Portanto

II

jamais se sabera bern com quem se trata A catastrofe e tanto maior para Jean-Jacques quanta 0 separa precisamente das pessoas que estima e que mais respeita20 A ruptura constitui urn pecado original mas urn pecado tanto mais cruelmente imputado quanta Jean-Jacques nao e por ele responsavel

De fato e preciso observar que em todo 0 relato do incidente do pente ninguem carrega a responsabilidade da intrusao inicial do mal e dOl separa9ao E urn concurso infeliz de circunstancias Urn simples mal-enshytendido Em parte alguma Rousseau diz que os Lambercier sao rna us e injustos Descreve-os ao contrario como seres doces bastante razoashyveis e de uma justa severidade Apenas estao erradosjoram enganados pela aparencia dajustifa (segundo a senten9a liminar do primeiro Discurshyso) e a injusti9a se produz como pelo efeito de uma fatalidade impessoa As aparencias estao contra Rousseau A convic9ao era forte demais Portanto nao ha culpado em parte alguma ha apenas uma imputa9ao de crime urn parecer-culpado que surgiu como por acaso e precipitou autoshymaticamente a puni9ao As pessoas sao todas inocentes mas suas rela1oes estao corrompidas pelo parecer e pel a injusti1a

o maleficio da aparencia a ruptura entre as consciencias poem fim a unidade feliz do mundo infantil Doravante a unidade devera ser reconquistada redescoberta as pessoas separadas deverao reconciliar-se a consciencia expulsa de seu paraiso devera empreender uma longa viagem antes de retornar a felicidade ser-Ihe-a preciso buscar uma outrn ventura totalmente diferente mas na qual seu primeiro estado nao cleishyxara de ser-Ihe totalmente restituido

A revela9ao da mentira da aparencia e sofrida a maneira de um ferimento Rousseau descobre 0 parecer como vitima do parecer No instante em que percebe os limites de sua subjetividade ela Ihe e imposta como subjetividade caluniada Os outros 0 desconhecem 0 eu sofre sua aparencia como uma denega9ao de justi9a que the seria infligida por aqueles pelos quais queria ser amado

A estrutura fenomenal do mundo e portanto posta em questao apenas indiretamente A descoberta do parecer aqui nao e de modo algum 0 resultado de uma reflexao sobre a natureza ilusoria da realidade percebida Jean-Jacques nao e urn sujeito filosOfico que analisa 0

espetaculo do mundo exterior e que 0 poe em duvida como uma aplTencia formada pela media9ao enganadora dos sentidos Jean-Jacques descobrl que os outros nao vao ao encontro de sua verdade de sua inocencia lil sua boa-fe e e apenas em seguida que 0 campo se obscurcce eo s( wla Antes que ele se experimente distante do mundo 0 eu sofrell a exp~ricllcia de sua distancia em rela9ao aos outros 0 maleficio da aparcllcia 0 afingt em sua propria existencia antes de altcrar a figura clo nlulldl) B 110

II

coraryao do homem que esta a vida doespetaculo da natureza21 Quando o coraryao do homem perdeu sua transparencia 0 espetaculo da natureza se empana e se turva A imagem do mundo depende da relaryao entre as consciencias sofre-lhe as vicissitudes 0 episodio de Bossey tennina pela destruiryao da transparencia do coraryao e simultaneamente por urn adeus ao brilho da natureza A possibilidade quase divina de ler nos coraryoes nao existe mais 0 campo se vela e a luz do murido se obscurece

o veu desceu entre Rousseau e ele proprio Ocultou-lhe sua natureza primeira sua inocencia E por certo entao Jean-Jacques se pas a fazer 0 mal (ficavamos menos envergonhados de agir mal comeryashyvamos a nos esconder 22) mas nao e responsavel pela entrada do mal no mundo e se comerya a se esconder e porque em primeiro lugar a verdade se escondeu Sua historia comeryara de maneira diferente A infancia fora de inicio confianrya e transparencia totais A memoria ainda pode mergulha-lo novamente nela e devolve-Io a limpidez de urn mundo rna is claro mas ele nao pode fazer com que ela nao tenha sido perdida e que tudo nao esteja obscurecido

Nao vemos a alma de outrem porque ela se esconde nem a nossa porque de modo algum temos espelho intelectuaP3

E preciso viver na opacidade24

o TEMPO DIVDDO E 0 MITO DA TRANSPARENCIA

Esse momen to de crise - em que desce 0 veu da separaryao em que 0 mundo se empana em que as consciencias se tornam opacas umas para as outras em que a desconfianrya torna para sempre a amizade impossivel - esse momenta tern sua data em uma historia marca 0

comeryo de uma perturbayao na felicidade infantil de Jean-Jacques Entao corney a uma nova epoca uma outra era da consciencia E essa nova era se define por uma descoberta essencial pela primeira vez a consciencia tern urn passado Mas ao enriquecer-se com essa descoberta ela descobre tambem uma pobreza uma falta essencial Com efeito a dimensao temshyporal que se cava atras do instante presente tornou-se perceptivel pelo proprio fato de que se esquiva e se recusa A consciencia se volta para urn mundo anterior do qual percebe simultaneamente que ele the pertenshyceu e que esta para sempre perdido No mom en to em que a felicidade infantillhe escapa ela reconhece 0 valor infinito dessa felicidade proibida Entao nao resta mais do que construir poeticamente 0 mito da epoca finda outrora antes que 0 veu se houvesse interposto entre nos e 0 mundo havia deuseuroamp lilt Iiam em nossos coraryoes e nada alterava a transpashy

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rencia e a evidencia das almas Pennaneciamos com a verdade Na bio shygrafia pessoal assim como na historia da humanidade esse tempo esta situado rna is proximo do nascimento na vizinhanrya da origem Rousseau foi urn dos primeiros escritores (seria preciso dizer poetas) a retomar 0

milo platanico do exilio e do retorno para orienta-Io em direryao ao estado de infancia e nao mais a uma patria celeste

Quando se trata de evocar 0 tempo da transparencia 0 primeiro Discurso desenvolve imagens singularmente analogas as que se encollshytram no relato das Confissoes Como no epis6dio de Bossey ele fala da presenrya proxima dos deuses e urn tempo em que testemunhas divinas permanecem entre os hom ens e It~em em seus coraryoes e urn mundo em que as consciencias humanas se reconhecem por urn tinico olhar

E uma bela costa adomada apenas pelas maos da natureza para a qual s voltam incessantemente os olhos e da qual se sente afastar-se a contragosto Quando os homens inocentes e virtuosos amavam ler os de uses COIIIO

testelllunhas de suas aci5es moravam juntos sob as mesmas cabanas ums logo tomando-se maus cansaram-se desses incomodos espectadores 2j

Antes que a arte houvesse moldado nossas maneiras e ensinado noss paixoes a falar uma linguagem afetada nossos costumes eram rusticos mas naturais e a diferenca dos procedilllelltos alZull ciava ao primeiro oLhar ( do caraler A natureza hllmana no fundo nao era melhor mas os homens encontravam sua seguransa na facilidade de se penetrar reciprocalllente2(j

Previamente a toda teoria e a toda hipotese sobre 0 estado de natureza ha a intuiryao (ou a imaginaryao) de uma epoca comparavel ao que foi a infancia antes da experiencia da acusaryao injustificada A humanidadc s(gt esta entao ocupada em viver tranqiiilamente sua felicidade Urn infalivel equilIbrio ajusta 0 ser eo parecer Os homens se mostram e sao vistos tais como sao As aparencias extern as nao sao obstaculos mas espelhos fieis em que as consciencias se encontram e se harmonizam

A nostalgia se volta para uma vida anterior Mas se ela nos afasta do mundo contemporaneo nao nos faz abandonar 0 munch) humano nem a paisagem terrestre no horizonle da felicidade anterior ha essa mesma natureza e essa mesma vegetaryao que nos cercam hoj( ha essa floresta que mutilamos mas da qual restam ainda extensc)(s intactas por onde posso enveredar Sem que seja necessario invoc1I a intervenryao sobrenatural de urn demonio tentador e de uma Eva tentada a origem de nossa decadencia e explicavel por razoes bern hnmanas Porque 0 homem e perfectivel nao cessou de acrescentar suas invenqoes aos dons da natureza E desde entao a hist6ria universal euromhara~-ada pelo peso continuamente crescente de nossos artificios e de nosso or gulho adquire 0 andamento de uma queda aceleracla na corrupr fi n nbri mos os olhos com horror para urn mundo d( mascaras I ell ihl50cl

2 I

mortais e nada assegura ao observador (ou ao acusador) de que ele proprio seja poupado pel a doen~a universal

o drama da queda nao antecede portanto a existt~ncia terrestre Rousseau transporta 0 mito religioso para a propria historia divide-a em duas eras uma tempo estavel da inocencia reino tranqiiilo da pura natureza a outra historia em devir atividade culpada negayao da na shytureza pelo homem

Ora se a queda e nossa obra se e urn acidente da historia humana e preciso admitir que 0 homem nao esta naturalmente condenado a viver na desconfianya na opacidade enos vieios que as escoltam Estes sao a obra do hom em ou da sociedade Entao nao ha nada a1 que nos impeya de refazer ou de desfazer a historia tendo em vista redescobrir a transparencia perdida Nenhuma proibiyao sobrenatural a isso se opoe A essencia do homem nao esta comprometida mas apenas sua situar iio historica Talvez quisesses tu poder retroceder27 A pergunta perrnashynece suspensa mas em todo caso nao ha espada flaI1lejante que nos impeya 0 acesso do paraiso perdido Para alguns (em distantes costas) que dele nao sairam talvez ainda seja tempo de deter-sea E mesmo que por uma fatalidade puramente humana 0 mal seja irreversivel mesmo que nos seja preciso admitir que urn povo vicioso nao retoma jamais a virtude a historia nos propoe uma tarefa de resistencia e de recusa 0 minimo que poderiamos fazer se nao podemos tomar bons aqueles que nao 0 sao mais e conservar assim aqueles que tern a felicidade de se-Io29 Porque 0 advento do mal foi urn fato historico a luta contra 0 mal cabe tambem ao homem na historia

Rousseau nao duvida de que uma ayao seja possivel de que uma livre decisao possa consagrar-nos ao serviyo da verdade velada Mas quanta a natureza dessa decisao e dessa ayao ele ouve varios apelos e os exprime sucessivamente (ou simultaneamente) em sua obra reforma moral pessoal (vitam impendere vero) educayao do individuo (Emilio [Emile]) forrnayao politica da coletividade (Economia politica [Discours sur leconomie politique] Contrato social [Le contrat social)) A que se acrescenta em Jean-Jacques uma hesita~ao que orienta seu desejo ora no sentido de uma regressao temporal ora no sentido do presente mais proximo refugio de uma consciencia que se basta a si mesma mais raramente no sentido de uma SUperayaO em direyao ao futuro Alternadamente ele se entregara ao devaneio arcadico de urn retorno a floresta primitiva ou entao fara a defesa de uma estabilizayao conshyservadora em que a alma e a sociedade salvaguardariam 0 que Ihes resta ainda de puro e de original ou ainda trayara a ideia da felicidade futura do genero humano30 ou enfim construira fora do tempo uma Cidade virtuosa Instituiroes po[[ticas ideais De tantos designios desshy

2l

semelhantes que e tao dificil harrnonizar de maneira inteiramente satis shyfatoria e preciso reter esta unica coisa que tem em comum sua unidade de i1ltenpio que visa a salvaguarda ou a restaurayao da transparencia comprometida No apelo apaixonado que Rousseau dirige a seus cooshytemporaneos pode nao haver nada mais que urn convite a cultivar 1

moral da boa vontade e da boa consciencia e ai pode-se ler tambClII um convi te a transforrnar a sociedade pela a9ao politica efetiva Essa ambigiiidade e emharayosa Mas de uma maneira nao ambigua Rousseau em primeiro lugar nos convoca a querer 0 retorno da rransparencia para nos e em nossas vidas Nao ha como equivocar-se sobre esse desejo tao poderoso quanta simples 0 mal-entendido come~ani no momento em que esse desejo se vir confrontado com tarefas concretas com sishytua90es problematicas Pois do desejo de transparencia a transparencia possuida a passagem nao e instantanea 0 acesso nao e im ediato Sc se empreende libertar-se da menti ra cedo ou tarde nao se pode impedir colocar a questao dos meios (que sao diversos e contraditorios) e dOl afiio que tanto pode fracassar como ter exito e que corre 0 risco dmiddot~

nos fa zer recair no mundo da ment ira e da opacidade

SABER HIST6R1CO E VISAO POETICA

Mas a que distancia estamos da transparencia perdida Que espesshysuras dela nos separam Qual e 0 espa~o a transpor para redescobri-la 1

No Discurso sobre a origem da desigualdade [Disc ours sur jorigillC de inegaire1 Rousseau interpoe multidoes de seculos 0 afastamento e imenso e a I uz da prime ira felicidade parece quase apagar-se na distanci das eras 0 que se pode saber de urn periodo tao longinquo A razao nao pade evitar a formulayao de algumas duvidas 0 tempo da transparencia realmente ocorreu ou ai nao est amais que uma fic~iio que inventamos para poder reconstruir especulativamente a bist6ria a partir de uma ori shygem Em uma passagem do segundo Discurso em que Rousseau vigia manifestamente seu pensamento nao chega ele a supor que 0 estado de natureza Utalvez nao lenha absolutamente existido 0 estado de natureza e pois tiio-somente 0 postulado especulativo que uma historia hipote shytiea se confere principio sobre 0 qual a deduyao podeni apoiar-se em busea de uma sene de ca usas e de efe itos bem encadeados para conslruir a expLicayao genetiea do mundo ta l como ele se oferece aos nossos olhos Assim procedem quase todos os homens de ciencias e os fil6sofos un epoca que creem nada ter demonstrado se na o remontaram as fO llt simples e necessarias de todos os fenomenos fazem-se ent aCI CIS hb t riadores das ori2ens da terra da vida das fnc lIlrlulfgts cia alllla ds qoci

H

dades Dando aespeculayao 0 nome de observayao esperam estar isentos de qualquer outra prova

De fato amedida que Rousseau desenvolve sua ficyao historica esta perde seu carater de hipotese uma especie de confianya e de emshybriaguez vern abolir toda prudencia intelectual a descriyao desse estado primeiro muito proximo ainda da animalidade torna-se a evocayao enshycantada de urn Iugar onde viver Vma nostalgia elegiaca se comove a ideia dessa vida errante e sa com seu equilIbrio sensitivo com sua justa suficiencia Imagem por demais imperiosa por demais profundashymente satisfatoria para nao corresponder no espirito de Rousseau aestrita verda de historica Vma certeza ganha corpo que e de essencia poetica mas que se engana sobre sua natureza quer falar a linguagem da historia e tomar por testemunha a erudiyao mais seria A convicyao se impoe irrefutavelmente tais foram sem contestayao os primordios da humanishydade tal foi a primeira fisionomia do homem Rousseau conta a si mesmo a historia objetiva de uma Idade da transparencia para legitimar sua nostalgia A certeza de Rousseau e a de alguem que se lembra ela e acanyada no contato e seus discipulos ja nao verao nele 0 autor de uma historia hipotetica mas 0 vidente (Seher dira H6lderlin) que detem a memoria de urn passado muito antigo de um tempo rna is belo Na ode inacabada intitulada Rousseau H6lderlin escreve

auch dir auch dir Erfreuet die feme Sonne dein Haupt

Und Strahell ails der sclollem Zeit Es Haben die Boten dein Herz gefllndell 31

[para ti tarn bern para ti tambern o distallte sol ilumina lua fronte com Slla alegria E os raios vindos de uma epoca mais bela Eles os rncnsageiros encontraram tell caratiio]

H61derlin aqui faz de Rousseau urn desses interpretes a quem e concedido ser tocado pela luz de uma era vindoura ou de urn passado desaparecido

o DEUS GLA UCO

Pode-se dizer ainda que a transparencia original desapareceu Reshydescoberta na memoria nao e ela entao retomada na transparencia propria da memoria e por isso mesmo salva Desertou-nos inteiramente ou estamos ainda em sua vizinhanya Rousseau hesita entre duas respostas nntradit-cirias lZrn dado momento 0 mito bifurca em duas versoes A

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primeira afirma que a alma humana degenerou que se desfigurou que sofreu uma alterayao quase total para jamais reencontrar sua beleza prime ira A segunda versao em lugar de uma defonnayao evoca uma especie de encobrimento a natureza primitiva persiste mas oeulta cershycada de veus superpostos sepultada sob os artificios e no en tanto sempre intacta Versao pessimista e versao otimista do mito da origem Rousseau sustenta ambas alternadamente e por vezes mesmo simultaneamente Diz-nos que 0 homem destruiu de modo irremediavel sua identidade natural mas proclama tambem que a alma original sendo indestrutivel permanece para sempre identica a si mesma sob as manifestayoes externas que a mascaram

Rousseau retoma por sua conta 0 mito platonico da estatua de Glauco

Semelhante aedtatua de Glauco que 0 tempo 0 mar e as tempestades haviam desjigurado tanto que se parecia menos com um deus do que com urn animal feroz a alma humana alterada no seio da sociedade por mil causas continuashymente renascentes pela aquisitiio de uma multidao de conhecimentos e de eITOS pelas mudantas ocoITidas na constituitiio dos carpos e pelo choque continuo das paix6es por assim dizer mudou de aparencia a ponto de 5(r quase irreconhecivel 32

Mas ha aqui um por assim dizer e urn quase que devolvem todas as esperanyas A imagem da estatua de Glauco no contexto de Rouss~au conserva algo de enigmatico Seu rosto foi corroido e mutilado pelo tempo perdeu para sempre a forma que tinha ao sair das maos do escultor Ou entao foi ele recoberto por uma crosta de sal e de algas sob a qual a face divina conserva sem nenhuma perda de substancia seu modelo original Ou ainda a fisionomia original nao e mais que uma ficy ao destinada a servir de norma ideal para quem quer interpretar 0 estado atual da humanidade

Nao e uma empresa leve deslindar 0 que ha de originario e de artificial 111

natureza atual do homem e conhecer bem urn estado que nao existe milis que provavelmente nao existira jamais e sobre 0 qual entretanlo enecesshysario ler not6es justas para bern avaliar nosso estado presenteD

Permanecer 0 que se era deixar-se alterar pela mudanya tocamos aqui em categorias que para Rousseau sao 0 equivalente das categorias teologicas da perdiyao e da salvayao Rousseau nao cre no inferno mas em compensayao acredita que a perda da semelhanya e uma infeliddad( essencial enquanto que permanecer semelhante a si mesmo euma malcirtl de salvar sua vida ou ao menos uma promessa de salvarao 0 11111raquo0

historico que para Rousseau nao exclui a ideia do des(llvolvilll(ntn organico permanece carregado de culpabilidade 0 movilflcnto dn hlslOliI

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e urn obscurecimento e mais responsavel por uma deformal)ao do que por urn progresso qualitativo Rousseau apreende a mudan9a como uma corruP9aO34 no curso do tempo 0 homem se desfigura se deprava Nao e apenas sua aparencia mas sua propria essencia que se torna irreconheshycivel Essa versao severa (e por assim dizer calvinista) do mito da origem Rousseau a pro poe em diversos momentos de sua obra Descobre-se na origem dessa ideia uma angustia muito real avivada pelo sentimento do irreparavel Rousseau muitas vezes afirmou que 0 mal era sem retorno que uma vez transposto urn certo Iimiar fatal a alma estava perdida e nao tinha outr~ recurso senao aceitar sua perda Urn natural sufocado nos diz ele nao volta jamais e perde-se entao ao mesmo tempo 0 que se destruiu e 0 que se fez 35

Desafortunadosl 0 que nos tomamos nos Como deixamos de ser 0 que fomos36

Deforma9aO em que parece mais nada subsiste da forma original Ele pr6prio sentiu-se atingido e ameal)ado

Os gostos rna is vis a mais baixa molecagem sucederam-se as minhas amaveis diversoes sem delas me deixar mesmo a menor ideia Epreciso que a despeito da educa9ao mais honesta eu tivesse ulna grande inclinafGo a degenerar pois isso se deu muito rapidamente sem a menor dificuldade e jamais Cesar tao precoce tomou-se tao prontamente Laridon37

A essa passagem que segue de perto 0 episodio de Bossey pode-se acrescentar urn texto do final da vida de Rousseau testemunho tanto mais significativo quanto data de uma epoca em que este nao cessa de afmnar sua permanente fidelidade a si mesmo

Tal vez sem me dar conta eu meslIlo tenha 11ludado lais do que seria preciso Que natural resistiria sem se alterar a uma situa9ao semeIhante a minha38

Pergunta que ele se apressa em responder pela negativa Pois preshycisamente no momenta em que tudo muda para ele no momento em que acredita viver em urn sonho Rousseau se opoe com todas as suas forl)as aangustia da aItera9ao interior e luta pel a salvaguarda de sua identidade Alguma coisa mudou mas sua alma permaneceu a mesma Ele repele para 0 exterior a responsabilidade da alteral)ao Foram os outros que sofreram a metamorfose mais surpreendente e que eles proprios irrecoshynheciveis desfiguram sua imagem e suas obras Quanto a ele mesmo permaneceu 0 que era Seus sentimentos mudaram porque as realidades externas nao sao mais as mesmas

Mas as coisas mudaram muito de figura desde que minhas infelicidades COlle~aram Vivi desde entao em uma gera9ao nova que nao se parecia de modo nenhurn com a prinnira e meus proprios sentimentos pelos outros

2M

sofreram mudan9as que encontrei nos deIes A mesmas pessoas que vi sucessivamente nessas duas gera90es tao diferentes assimitaram-se por assim dizer a uma e a outra39

[] Eu 0 mesmo homem que era 0 mesmo que sou ainda

Sob a mascara que os outros impoem de fora a sua fisionomia Jean-Jacques nao deixou de ser Jean-Jacques No momento em que esta mais sombriamente obsedado pela perseguil)ao replica contando a si mesmo a versao otimista do mito da origem nada foi perdido 0 tempo nao alterou 0 essencial s6 corroeu na superficie 0 mal vern de fora mas permanece fora 0 rosto de Glauco permaneceu intacto sob a espuma que o desfigura Jean-Jacques apIica entao a si mesmo (e s6 a ele) uma ideia que formulara anteriormente a respeito do homem em geral e que opunba a nOl)ito da natureza perdida e da natureza oculta de uma natureza que se pode mascarar mas que jamais sera destruida Demasiadamente poshyderosa e talvez demasiadamente divina para que possamos transforma-Ia ou suprimi-Ia ela elude nossos empreendimentos profanadores e se reshyfugia nas profundezas onde esta apenas dissimulada sob involucros exteriores Esta esquecida mas nao realmente perdida e se a memoria nos faz entreve-Ia no fundo do passado e porque estamos ja proximos de Iiberta-la de seus veus e de redescobri-Ia presente e viva em nos mesmos

Os males da alma [ ] alterap5es extemas e passageiras de urn ser imortal e simples apagam-se insensivelmente e deixam-no elll suaorilla origial que nada poderia mudar41

Entao Rousseau invoca com confianl)a uma natureza que nada destroi torna -se 0 po eta da permanencia desvelada Descobre em si mesmo a proximidade da transparencia original e esse homem da nashytureza que ele buscara na profundeza das eras agora reencontra-Ihe os tral)os originais na profundeza do eu Aquele que sabe recolher-se em si mesmo pode ver resplandecer novamente a fisionomia do deus subshymerso liberta da ferrugem que a mascarava

De onde 0 pintor e 0 apologista da natureza hoje tao desfigurada e tao caluniada pode haver tirado seu modelo se nao de seu proprio corarao Descreveu-a como eIe proprio se sentia Os preconceitos aos quais nao estava subjugado as paixOes facticias de que nao era presa nao ofuscavam de modo ncnhum aos seus olhos como aos dos outros esses prirnciros traros till) geralmente esquecidos ou ignorados Esses traros tao novos para ncgts l~ tilt) verdadeiros uma vez tra9ados encontravam ainda no fundo dos corarOcs II atestarao de sua justeza mas jamais se teriam mostrado novarncntc p)r si mcslllos se 0 historiador da natureza nao hOllvcsse cOIll~fld() por wtirlr 1

ferrugem que os oCllltava S6 lima vida rctirada c solitaritl l1Il gosto vivo pete dcvaneio e pela contclllpla9ao 0 lubito dc lc()lIll~r-s( ()III si c I( II I

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buscar na calma das paixoes esses primeiros trayos desaparecidos na multishydao podiam-no fazer redescobri-los Em uma palavra era preciso que um homem se houvesse pintado a si mesmo para nos mostrar assim 0 homem primitivo 42

o conhecimento de si equivale a uma reminiscencia mas nao e de maneira nenhuma por urn esfonyo de memoria que Rousseau reencontra esses primeiros traltyos que pertencem contudo a urn mundo anterior Para descobrir 0 homem da natureza e para tornar-se seu historiador Rousseau nao teve de remontar ao comeltyo dos tempos bastou-Ihe pintar a si mesmo e reportar-se it sua propria intimidade it sua propria natureza em urn movimento a uma so vez passiv~ e ativo buscando-se a si mesmo abandonando-se ao devaneio 0 recurso a interioridade atinge a mesma realidade decifra as mesmas normas absolutas que a exploraltyao do pass ado mais remoto Assim 0 que era primeiro na ordem dos tempos historicos se redescobre como 0 que e mais profundo na experiencia atual de Jean-Jacques A distancia historica nao e rna is que distancia interior e essa distancia e logo transposta para aquele que sabe abandonar-se plena mente ao sentimento que se desperta nele Doravante a naturezamiddot (como a presenltya de Deus para santo AgostinhO)43 deixando de ser 0

que ha de mais longinquo atras de nos oferece-se como 0 que e mais central em nos Como se ve a norma ja nao e transcendente e imanente ao eu Basta ser sincero ser eu mesmo e entao 0 homem da natureza nao e mais 0 distante arquetipo ao qual me refiro ele coincide com a minha propria presenltya com a minha propria existencia A transparencia antiga resultava da presenltya ingenua dos homens soh 0 olhar dos deuses a nova transparencia e uma relaltyao mterlor 10 eu uma relaltao cc sigo mesmo realiza-se na limpidez do olhar sobre si mesmo que permite a Jean-Jacques pintar-se tal como e Vma imagem pode entao surgir que equivale (Rousseau nos garante isso) it historia autentica da especie inteira e que ressuscita 0 passado perdido para revela-lo como 0 presente etemo da natureza Os homens ai redescobrem a certeza de uma semelhanltya comum (Cada homem carrega a forma inteira da humana condi9ao dizia Montaigne) Porque Jean-Jacques soube abandonar-se a si mesmo os homens se reconhecerao por sua vez Atras de suas falsas verdades reencontram uma presenltya esquecida uma forma que permanecia intacta sob os veus ei-Ios libertos do esquecimento

Pode-se entao recobrar a natureza primeira do homem sem ter de remontar as origens rea is e sem se aventurar nas r~construltyoes historicas Rousseau se ex plica sobre isso de uma maneira bastante clara no segundo Discurso on de 0 vemos renunciar bern facilmente a toda asser9ao sobre as verdadeiras origens para se reservar 0 direito de esclarecer por via de hipotese a natur(za das coisas

w

Nao se devem tomar as investigayoes nas quais se pode entrar sobre esse assunto por verdades historicas mas apenas por raciocfnios hipoteticos e condicionais mais aptos a esclarecer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem 44

Mas a natureza do homem pode ser apreendida independentemente da hisforia humana Rousseau hesita De fato se nao pode dispensar a n09ao de uma natureza humana essencial tam bern nao pode renunciar it ideia de urn devir historico que Ihe permita dar uma explicaltyao plausivel da aIteraltyao que a humanidade sofreu ao afastar-se de suas bem-aventushyradas origens Rousseau desejaria reservar-se conjuntamente a possibilishydade de acusar a perversao pela qual a sociedade e responsavel e conservar o direito de proclamar a permanencia da bondade original Ha a1 uma dupla afirmaltyao que pode passar por contraditoria e que nao se deixou de criticar em Jean-Jacques Pois na medida em que a sociedade e obra humana deve-se admitir que 0 homem e cuJpado e carrega a culpa de todo 0 mal que fez a si mesmo mas por outro lado na medida em que o homem nao deixa de ser urn filho da natureza ele conserva uma inocencia indestrutivel Como conciliar a afinna9aO 0 homem e natushyralmente born e esta outra Tudo degenera entre as maos do homem

UMA TEODICEIA QUE INOCENTA 0 HOMEM E DEUS

Cassirer mostrou-o bem 45 os postulados de Rousseau permitem resolver 0 problema da teodiceia sem imputar a origem do mal nem a Deus nem ao homem pecador

[Nao e) necessario supor 0 homem mau por sua natureza quando se [pode] assinalar a origem e 0 progresso de sua maldade Estas reflexoes me conduziram a novas investigayoes sobre 0 espirito humano considerado no estado civil e julguei entao que 0 desenvolvimento das luzes e dos vicios sc fazia sempre na mesma proporyao nao nos individuos mas nos povos distinyiio que sempre fiz cuidadosamente e que nenhum daqueles que me atacaram jamais pode conceber46

o mal se produz pela historia e pela sociedade sem alterar a essencia do individuo A culpa da sociedade nao e a culpa do homem essencial Illas a do homem em relaltyao Ora com a condiltyao de dissociar 0 hommll cssencial e 0 homem em relaltyao com a condi9aO de separar sociabilidadtgt e natureza humana pode-se atribuir ao mal e a alteraltyiio hist6rica lima s itu1ltyiio periferica em relaltyao a permanencia central cia natureza original o n1 tI t partir dar podera confundir-se com a paixao do h OIllNn 101

tqlli lo que Iha 6 exterior peo de fo ra a prtlig io 0 pnrect r a P OSSl uu

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bens materiais 0 mal e exterior e e a paixao pelo exterior se 0 homem se entrega inteiro asedwao dos bens externos sera inteiramente submeshytido ao imperio do mal Mas recolher-se em si sera para ele em qualquer tempo 0 recurso da salvatao Rousseau nao se content a portanto em reprovar a exterioridade como quase todos os moralistas haviam feito antes dele incrimina-a na propria definisao do mal Essa condenatao nao passa da contra partida de uma justificasao que pretende salvar - de uma vez por todas - a essencia interna do homem Repelido para a periferia do ser rechasado para 0 mundo da relasao 0 mal nao tera 0 mesmo estatuto ontologico que a bondade natural do homem 0 mal e veu e velamen to e mascara tern acordo com 0 facticio e nao existiria se 0

hom em nao tivesse a perigosa liberdade de negar pelo artificio 0 dado natura l E entre as maos do homem e nao em seu corayao que tudo degenera Suas maos trabalham mudam a natureza fazem a h istoria ordenam 0 mundo exterior e produzem com 0 tempo a diferenya entre as epocas a luta entre os povos a desigualdade entre os particulares

Em uma mesma pagina (prefacio de Narciso) Rousseau protestara contra falsa m osofia que sustenta que os homens sao por toda parte os mesmos mas que as vicios do mundo middot contemporaneo nao pershytencem tanto ao homem quanta ao homem malgovemado 47 Contradisao si gnificativa Rousseau desse modo afinna ao mesmo tempo a pershymanencia de uma inocencia essencial e 0 movimento da historia que e alterasao corruptao moral degenerescencia politica e que promove o estado de conflito e a injustisa entre os homens 48

Nas teorias do progresso que serao propostas rna is tarde intervira uma hipotese bastante analoga que visara conciliar 0 postulado da pershymanencia da natureza human a com a ideia de uma mudansa coletiva 0 homem pem1anece 0 mesmo a humanidade progride sempre dira Goethe A validade do pessimismo historico do segundo Discurso foi contestada e admitiu-se mais comumente a tese otimista de Goethe Entretanto do ponto de vista filosOfico 0 problema e ide ntico Tanto em urn como no outro e preciso conci liar a estabilidade da natureza humana e a mobilidade do desenvolv imento real da hist6ria e preciso explicar por que 0 homem (enquanto individuo) possui 0 privilegio de pennanecer 0 mesmo ao passo que a human idade (enquanto coletishyvidade) esta sujeita a mudansa

Rousseau contudo nao tern necessidade da hist6ria a nao ser para the pedir a explicasao do mal E a ideia do mal que da ao sistema sua dimensao historica 0 devir e 0 movimento pelo qual a humanidade se toma culpada 0 homem nao e naturalrnente vicioso tornou-se vishycioso 0 retorno ao bern coincide entao com a revolta contra a hist6ria e em particular contra a situayao historic a atual Se e verdade que 0

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pensamento de Rousseau e revolucionario e preciso acrescentar de imeshydiato que ele 0 e em nome de uma natureza humana eterna e nao em nome de urn progresso historico (Sera preciso interpretar a obra de Rousseau para ver nela urn fator decisivo no progresso politico do seculo XVIII) Como veremos seu pensamento social consciente da necessidade de afrontar 0 mundo e os homens tais como sao visa sobretudo insshytaurar ou restaurar a soberania do imediato isto e a reino de urn valor sobre 0 qual a duratao nao tern poder

H

2

CRiTICA DA SOCIEDADE

Rousseau situa-se em seu seculo entre os escritores que contestam os valores e as estruturas da sociedade momirquica Por mais distintos que tenham sido a contestayao cria entre esses autores uma semeihanya e Ihes da urn ar de fratemidade cada urn deles podera ser considerado a algum titulo como urn agente ou urn anunciador da proxima Revoluyao Assim se ex plica a reconciliayao postuma de Rousseau e de Voltaire sUa comum apoteose sua promoyao a ciasse de divindade bifronte ou de diade tutelar A gravura popular os imortahzani lade a lade metamorfoshyseados em genios lampadOforos com urn candelabro na mao propagando diante deles as luzes e radiantes de brilho luciferiano

Rousseau quer apreender 0 principio do mal Poe em causa a soshyciedade a ordem social em seu conjunto 0 esforyo critico nele nao se dispersa e nao se atribui como tarefa afrontar uma a uma as multiplas manifestayoes do mal Ele remonta a uma causa geral que 0 dispensa de atacar isolada mente tal abuso particular tal usurpayao tal impostura (De resto ele e por demais egocentrico para assumir 0 papel de defensor dos oprimidos Voltaire tem seu caso Calas e dez outros semelhantes Rousshyseau esta sobrecarregado pelo caso Rousseau)

Rousseau faz a historia de seus pensamentos observou uma discorshydancia eotre os atos e as palavras dos homens essa diferenya se explica por uma outra diferenya a do ser e do parecer mas e preciso ainda buscar-Ihe a causa Rousseau assim a formula

Ellcontrei-a em nossa ordem social que em todos os sentidos tontnlria a natureza qlle nada destr6i tiraniza -a continuamente e sem cessar a faz exigir

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seus direitos Acompanhei essa contradiriio em suas conseqiiencias e vi que tao-somente ela explicava todos os vicios dos homens e todos os males da sociedade I

Nessa passagem que resume muito firmemente a substancia dos dois Discursos Rousseau define da maneira mais clara 0 objeto eo aIcance de sua eritica social a contestayaO diz respeito a sociedade enquanto esta e contraria a natureza Essa sociedade negadora da natureza (da ordem natural) nao suprimiu a natureza Mantem com ela urn eonflito permanente de onde nascem os males e os vcios de que sofrem os homens A critica de Rousseau esboya portanto uma negayao da negayao acusa a civili shyzayao cuja caracteristica fundamental e sua negatividade em relayao a natureza A cultura estabelecida nega a natureza - e essa a afirmayao patetica dos dois Discursos e do Emilio As falsas luzes da civilizayao longe de iluminar 0 mundo humano velam a transpareneia natural separam os homens uns dos outros particularizam os interesses destroem toda possibili dade de confianya reciproca e substituem a eomunicayao esseneial das almas por urn comercio faeticio e desprovido de sineeridade assim se constitui uma soeiedade em que cada urn se isola em seu amor-proprio e se protege atnis de uma aparencia mentirosa Paradoxo singular que de urn mundo em que a relayao economica entre os homens parece rna is estreita faz efetivamente um mundo de opacidade de mentira de hipocrisia

Queixo-me de que a filosofia afrouxe os laros da sociedade que sao formados pela estillQ e pela bellevolencia IIttuas e queixo-me de que as ciencias as artes e todos os outros objetos de comercio estreitem os laros da sociedade pelo inleresse pessoal E que com efeito niio se pode estreitar urn desscs laros sem que 0 outro nao se afrouxe na mesma proporriio Portanto nada ha nisso de contradiriio2

Rousseau confronta aqui de maneira signifieativa dois tipos de relacao que se opoem como a transparencia a opaeidade A estima e a benevolencia eonstituem urn layo pelo qual os homens se reunem imediatamente nada se interpoe entre as consciencias elas se oferecern espontaneamente numa evideneia total Em compensayao os layos orshydenados pelo interesse pessoal perderam esse carater imediato A relayao ja nao se estabeleee diretamente de consciencia a conscieneia ela agora p3ssa por coisas A perversao que da resulta provem nao apenas do fato de que as eoisas se interpoem entre as eonseiencias mas lambcm do fato de que os homens deixando de identificar seu interesse com sua existencia pessoal identificam-no doravante com os objetos illiN postos que acreditam indispensaveis a sua felicidade 0 eu do hOllwllI social nao se reconheee mais em si mesmo mas se buse no exlcmiddotrim

ntrl as coisns sells meios se tornam sell filn 0 homclIl illkirll

torna coisa ou escravo das coisas A critica de Rousseau den uncia essa alienaYao e propoe como tarefa um retorno ao imediato

A sociedade civilizada desenvolvendo sempre mais sua oposiYao a natureza obscurece a relaYao imediata das consciencias a perda da transparencia original vai de par com a alienaYao do homem nas coisas materia is A analise de Rousseau sobre esse ponto prefigura as de Hegel e de Marx tanto mais se lhes assemelha quanta se apoia em uma descriYao do devir historico da humanidade Com efeito 0 Discurso sabre a origem da desigualdade e uma historia da civilizaYao como progresso da negaYao do dado natural progresso ao qual corresponde uma degradaYao da inoshycencia original A historia das tecnicas e ex posta em estreita ligaYao com a historia moral da humanidade Mas a diferenYa do esforYo filosOfico do seculo XIX e em contraste com as pretensoes positivistas de alguns de seus contemporaneos Rousseau procura fundar urn julgamento moral referente a historia de preferencia a estabelecer um saber antropologico E como moralista que ele escreve a historia da moral Dai 0 aspecto ambiguo de sua demonstraYao As fases pelas quais 0 homem passou 0

est ado a que chegou devem em primeiro lugar ser estabelecidos como fatos uma vez estabelecidos de vern ser aceitos a humanidade sofreu transformaYoes inelutaveis com isso chegou fatalmente a seu estado presente eis 0 que est a fora de contestaYao Mas a validade do fato nao nos permite prejulgar do direito Os fatos historicos nao justificam nada a historia nao tern legitimidade moral e Rousseau nao hesita em condenar em nome dos val ores eternos 0 mecanismo historico do qual mostrou a necessidade e que estendeu as proprias funYoes mora is

Tendo retraYado a progressao da cultura e tendo-a definido como negaYao da natureza Rousseau opoe a cultura uma recusa uma nova negaYao que e a consequencia de urn juizo moral e que se vale de urn absoluto etico A indignaYao de Rousseau (ele proprio homem natural) contra a sociedade (criaYao historica) e a expressao patetica desse conflito Ele toma a palavra para dizer nao a antinatureza A situaYao presente com seu luxe e sua miseria e ao mesmo tempo historicamente motivada e moralmente inaceitavel Rousseau compreende a sociedade de seu tempo mas the opoe uma reprovaYao escandalizada 0 pensamento de Rousseau nao podera portanto deter-se ai Pois compreender urn mundo opaco nao e ainda redescobrir ou restabelecer a transparencia Longe de equivaler para Rousseau a uma adesao intelectual a compreensao so estabelece 0 fato para opor-Ihe imediatamente 0 direito Ele protesta contra 0 metodo de Grotius sua maneira de raciocinar e de estabelecer sempre 0 direito pelo fato) Rousseau julga e condena em nome do direito os fatos dos quais prova a necessidade historica E como precisa para realizar 0 ideal da transparencia de urn mundo em que 0 fato coincide

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com 0 direito buscara esse mundo ora aquem da historia - nos antigos tempos em que 0 progresso corruptor nao existe ainda - ora alem em urn futuro abstrato em que a desordem atual seria superada por uma ordem rna is perfeita

Page 2: Jean Starobinski - Jean-jacques Rousseau Transparencia e Obstaculo

o tema da mentira da aparencia nao tern nada de original em 1748 No teatro na igreja nos romances nos jomais cada urn a sua maneira denuncia falsas aparencias convencoes hipocrisias mascaras No vocashybulario da polemica e da satira nenhum termo que retome mais freqiienshytemente que desveZar e desllascarar Tartufo foi lido e relido 0 perfido o vii bajulador 0 celerado dissimulado pertencem a todas as comedias e a todas as tragedias No desfecho de uma intriga bern conduzida e preciso traidores desmascarados Rousseau (Jean-Baptiste) permanecera na memoria dos homens por ter escrito

A lIIascara cai permallece 0 hOllell E 0 her6i se esvaece 3

Esse tern a esta bastante difundido bastante vulgarizado bastante automatizado para que qualquer um possa retomi -Io e ai acrescentar algumas varia~oes sem grande esforo de pensamento A antitese sershyparecer pertence ao lexico comum a idei3 tornou-se locucao

No entanto quando Rousseau en contra 0 deslumbramento da vershydade na estrada de Vincelmes e durante as noites de insonia em que vira e revira4 os period os de seu discurso 0 lugar-comum recobra vida incendeia-se toma-se incandescente A oposicao do ser e do parecer se anima pateticamente e confere ao discurso sua tensao dramatica Esempre a mesma antitese extraida do arsenal da retorica mas exprime uma dor um dilaceramento A despeito de toda a enfase do discurso urn sentimento verdadeiro da divisao se impoe e se propaga A ruptura entre 0 ser e 0

parecer engendra outros conflitos como uma serie de ecos amplificados ruptura entre 0 bern e 0 mal (entre os bons e os maus) ruptura entre a natureza e a sociedade entre 0 homem e seus deuses entre 0 homem e ele proprio Enfim a historia inteira se divide em urn antes e urn depois outrora havia patrias e cidadaos agora nao ha mais Roma mais uma vez fomece 0 exemplo a virtuosa republica fascinada pelo brilho da aparencia perdeu-se por seu luxe e suas conquistas Insensatos 0 que fizestes 75

Dirigida contra 0 prestigio da opiniao deplorando a decadencia de Roma entao entregue aos retoricos a deciamacao obedece a todas as regras do genero oratorio Para urn concurso de Academia nada Ihe falta apostrofes prosopopeias gradacoes Ate mesmo a epigrafe revela a preshysen~a da tradicao literaria Decipimur specie recti6 De imediato 0 tema essencial nos e oferecido sob a garantia de uma sentenca romana Mas a citac3o e oportuna 0 que ela anuncia e que subjugados pela ilusao do bern cativos da aparencia deixamo-nos seduzir por uma falsa imagem da justica Nosso erro nao conta na ordem do saber mas na ordem moral Enganar-se etomar-se culpado enquanto se acredita fazer 0 bern Apesar

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de nos a nos sa revelia somos arrastados para 0 mal A ilusao nao e apenas 0 que turva nosso conhecimento 0 que vela a verdade falseia todos os nossos atos e perverte nossas vidas

Essa retorica serve de veiculo a urn pensamento amargo obsedado pela ideia da impossibilidade da comunicacao humana No primeiro Discurso Rousseau ja faz ouvir 0 lamento que repetira incansavelmente nos anos da perseguicao as almas nao sao visiveis a amizade nao e possivel a confianca jamais pode durar nenhum sinal certo permite reconhecer a disposicao dos coracoes

]a nao se ousa parecer 0 que se e e nessa sujeiltao perpetua os homens que fonnam esse rebanho que se chama sociedade colocados nas mesmas circunstancias farao todos as mesmas coisas se motivos mais poderosos delas nao os desviam Portanto jamais se sabera bem com quem se trat sera preciso en tao para conhecer 0 amigo esperar as grandes ocasioes isto e esperar que nao seja mais tempo pois que e para essas mesmas ocasioes que teria sido essencial conhece-Io

Que cortejo de vicios nao acompanhara essa incerteza Nao mais ami middot zades sinceras nao mis estima real nao mais confianlta fundada As sus peilas as desconfianltas os temores a frieza reserva 0 odio a trailt iio serao ocultados incessantemente sob esse veu unifonne e perfido de polidcz sob essa urbani dade tao louvada que devemos as luzes de nosso seculo7

Que ser e parecer sejam diversos que urn veu dissimule os verdadeiros sentimentos esse e 0 escandalo inicial com que Rousseau se choca esse e 0 dado inaceitavel de que buscara a explicac3o e a causa essa e a infelicidade de que deseja ser libertado

Esse tema e fecundo Abre a possibilidade de urn desenvolvimento inesgotavel No proprio testemunho de Rousseau 0 escandalo da mentira deu impulso a toda a sua reflexao teorica Muitos anos depois do primeiro Discurso volt an do a sua obra para interpreta-Ia e fazer a historia de suas ideias ele declarara

Assim que fui capaz de observar os homens olhava-os agir e escutava-os falar depois venda que suas alt6es nao se pareciam de modo algum com seus discursos procurei a razao dessa dessemelhana e descobri que seudo ser e parecer para eles duas coisas tao diferentes quanto agir e pensar essa segunda diferena era a causa da outras

Tomemos nota dessa declaracao Mas coloquemos tambem algumOls questoes

Assim que fui capaz de observar os homens Rousseau se airiblli aqui 0 papel do observador posta-se na atitude do naturalista fiI 6sof~) que traduz suas observacoes em conceitos e que remonta indutivam(ntt as razoes e as causas primeiras Ao atribuir-se esse gosto pela 3niliSI desinteressada Rousseau nao racionaliza emocoes l11uilo mais turV31i

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sentimentos muito mais interessados Nao adota ele 0 tom do saber abstrato na inten9ao mais ou menos consciente de compensar e de dissishymular certas decep90es e certos fracassos muito pessoais 0 proprio Rousseau nos autoriza a fazer essas perguntas Bem antes que a psicologia modema houvesse dirigido nossa aten9ao para as fontes afetivas e as subestruturas inconscientes do pensamento 0 Rousseau das Confissoes [Les confessions] nos convida a buscar a origem de suas proprias teorias na experiencia emotiva e 0 Rousseau dos Devaneios [Les reveries du promeneur solitaire] chegani a dizer na experiencia sonhada Minha vida inteira quase nao passou de um Iongo devaneio9

A discordancia do ser e do parecer revelou-se entao a Rousseau ao fim de um ate de aten9ao critica Foi uma calma compara9ao que alertou seu pensamento 0 leitor poderia ficar tentado a duvidar disso Sabendo quanta 0 tern a do parecer se tomara moeda corrente no vocabulario intelectual da epoca hesitara em admitir que a reflexao de Rousseau tenha encontrado ai seu ponto de partida autentico e seu impulsD original Se algum dia fosse possivel apreender esse pensamento em sua fonte e em sua origem nao seria preciso remontar a um nivel psiquico mais profundo em busca de uma em09ao primeira de uma motiva9ao mais intima Ora a1 encontraremos 0 maleficio da aparencia nao mais a titulo de lugar-coshymum retorico ou na qualidade de objeto submetido aobserva9ao metodica mas sob a forma da dramaturgia intima

AS APARENCIAS ME CONDENA VAM

Releiamos 0 primeiro livro das Confissoes Eu me mostrei tal como fuiIO (tal como ele acredita ter side tal como quer ter sido) Nao se preocupa em retra9ar 0 historico de suas ideias deixa-se invadir pela lembran9a afetiva sua existencia nao Ihe parece constituida como uma cadeia de pensamentos mas como uma cadeia de sentimentos urn enshycadeamento de afei90es secret as 11 Se 0 tema do parecer mentiroso nao fosse mais que uma superestrutura intelectual quase nao teria lugar nas Confissoes Ora 0 contrario e que e verdadeiro

Sem duvida nao e sem importancia que a consciencia de si date para Jean-Jacques de seu encontro com a Iiteratura Ignoro 0 que fiz ate cinco ou seis anos nao sei como aprendi a ler lembro-me apenas de minhas primeiras leituras e de seu efeito sobre mim e 0 tempo de que data sem interrupriio a consciencia de mimmesmo Minha mae deixara romances 12 0 encontro de si coincide com 0 encontro do imaginario eles constituem uma mesma descoberta Desde a origem a consciencia de si esta intimamente ligada apossibilidade de tomar-se um outro (Eu

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me tomava a persona gem da quallia a vida I3) Porem por mais perigoso que Rousseau considere esse metodo de educa9ao - que desperta 0 sentimento antes da razao 0 conhecimento do imaginario antes do das coisas reais -0 parecer a1 nao se impoe como uma influencia malefica A ilusao sentimental despertada pel a leitura comporta certamente um risco mas 0 risco nesse caso particular esta acompanhado de um privishylegio precioso Jean-Jacques se forma como urn ser diferente Essas em090es confusas que eu experimentava uma apos a outra nao alteravam absolutamente a razao que ainda nao tinha mas elas me formaram uma de uma outra tempera 14 A singularidade de Jean-Jacques tem sua fonte nos fantasmas fascinantes suscitados pela ilusao romanesca Esta aqui 0

primeiro dado biografico que vem confirmar a declara9ao do preambulo Nao sou feito como nenhum daqueles que viY Jean-Jacques deseja e deplora sua diferen9a e simultaneamente uma infelicidade e urn motivo de orgulho Se as com090es ficticias se a exalta9ao imaginaria tomaramshyno diferente ele lan9ara contra elas uma condena9aO ambigua esses romances sao urn vestigio da mae perdida

Vamos encontrar uma recorda9ao de infancia que descreve 0 enshycontro do parecer como uma perturba9ao brutal Nao ele nao come90u por observar a discordancia do ser e do parecer come90u por sofremiddotmiddotla A memoria remonta a uma experimiddotencia original do maleficio da aparencia Jean-Jacques retra9a-lhe a revela9ao traumatizante aqual atribui uma importancia decisiva Desde esse momenta deixei de gozar de uma felicidade pura1 6 Nesse instante se produz a catastrofe (a queda) qlle destroi a pureza da felicidade infantil A partir desse dia a injusti9a existe a infelicidade e presente ou possive Essa lembran9a tern 0 valor de um arquetipo e 0 encontro da acusa9ao injustificada Jean-Jacques pareo culpado sem 0 ser realmente Parece mentir enquanto esincero Aqueles que 0 castigam agem injustamente mas falam a linguagem da justi9a E aqui a puni9ao fisica nao tera as conseqiiencias eroticas da soya nas nadegas aplicada pela srta Lambercier Jean-Jacques a1 nao descobre seu carpo e seu prazer descobre a solidao e a separa9ao

Urn dia eu estudava sozinho minha liao no quarto contiguo it cozinhn A criada pusera para secar na chapa os pentes da senhorita Lambercicr Quando voltou para apanha-Ios havia um com todo urn lade de delltes quebrado A quem atribuir a culpa desse estrago Ninguem al6m de milll entrara no quarto Interrogam-me nego ter tocado no pente 0 sCllhor ~

a senhorita Lambercier se reunem exortam-me pressionam--ml Ilnwfl~alll shy

me persisto com obstinaao mas a convicao era forte dcmais prevnhc(~ IJ

sobre todos os meus protest os embora fosse a primeira vez que me livesshysem encontrado tanto audacia em mentir A coisa foi levada II serio IIIIt(Ol il

sc-Io A maldllde a rnentira a obstinllrao parc~ccralJl igualnllllt l di)IIImiddot

de puni~~ iio

Ul

Faz agora quase cinqiienta anos dessa aventura e nao tenho medo de ser hoje punido uma segunda vez pelo mesmo fato Pois bern Declaro diante do Ceu que eu era inocente

Nao tinha ainda bastante raziio para sentir quanta as aparencias me condenavam e para me colocar no lugar dos outros Mantinha-me no meu lugar e tudo 0 que sentia era 0 rigor de urn castigo terrivel por urn crime que nao cometera 17

Rousseau esta aqui em situa9ao de acusado (No primeiro Discurso ele desempenha 0 papel do acusador mas a partir do momento em que encontrar a contradi9ao ele se achara novamente em situa9ao de acusado) A experiencia cuja descri9ao acabamos de ler nao confronta abstratamente a n09ao de realidade e a n09ao de aparencia e a oposi9ao perturbadora do ser-inocente e do parecer-culpado Que desarranjo de ideias Que desorshydem de sentimentos Que perturba9ao 18 Ao mesmo tempo em que se revela confusamente a ruptura ontologica do ser e do parecer eis que 0 misterio da injusti9a se faz sentir de modo intoleravel a essa crian9a Ela acaba de aprender que a intima certeza da inocencia eimpotente contra as provas aparentes da culpa acaba de aprender que as consciencias sao separadas e que e impossivel comunicar a evidencia imediata que se experimenta em si mesmo Desde entao 0 paraiso esta perdido pois 0 paraiso era a transparencia reciproca das consciencias a comunica9ao total e confiante 0 proprio mundo muda de aspecto e se obscurece E os termos de que Rousseau se serve para descrever as conseqiiencias do incidente do pente quebrado assemelham-se estranhamente as palavras pelas quais 0 primeiro Discurso pinta 0 cortejo de vicios que irrompe des de que nao se ousa rna is parecer 0 que se e Nos dois textos Rousseau fala de urn desaparecimento da confianfa depois evoca urn veu que se interpoe

Permanecemos ainda em Bossey alguns meses Ali estivemos como nos representam 0 primeiro homem ainda no paraiso terrestre mas tendo deixado de goza-lo Era em aparencia a mesma situa9ao e de fato toda uma outra maneira de ser 0 apego 0 respeito a intimidade a confia1Ua nao uniam mais os alunos a seus guias ja niio os olhavamos como deuses que liam em nossos cora90es ficavamos menos envergonhados de agir mal e mais temerosos de ser acusados com~avamos a nos esconder a nos rebelar a mentir Todos os vicios de nossa idade corrompiam nossa inocencia e enfeiavam nossas brincadeiras Ate 0 campo perdeu aos nossos olhos esse atrativo de d09ura e de simplicidade que chega ao cora9ao Parecia-nos deserto e sombrio como que se cobrira de urn veil que nos ocultava-lhe as

belezas19

As almas nao se encontram mais e tern prazer em ocultar-se Tudo esta perturbado e a crian9a pun ida descobre essa incerteza do conheshycimento de outrem de que se lamentani no primeiro Discurso Portanto

II

jamais se sabera bern com quem se trata A catastrofe e tanto maior para Jean-Jacques quanta 0 separa precisamente das pessoas que estima e que mais respeita20 A ruptura constitui urn pecado original mas urn pecado tanto mais cruelmente imputado quanta Jean-Jacques nao e por ele responsavel

De fato e preciso observar que em todo 0 relato do incidente do pente ninguem carrega a responsabilidade da intrusao inicial do mal e dOl separa9ao E urn concurso infeliz de circunstancias Urn simples mal-enshytendido Em parte alguma Rousseau diz que os Lambercier sao rna us e injustos Descreve-os ao contrario como seres doces bastante razoashyveis e de uma justa severidade Apenas estao erradosjoram enganados pela aparencia dajustifa (segundo a senten9a liminar do primeiro Discurshyso) e a injusti9a se produz como pelo efeito de uma fatalidade impessoa As aparencias estao contra Rousseau A convic9ao era forte demais Portanto nao ha culpado em parte alguma ha apenas uma imputa9ao de crime urn parecer-culpado que surgiu como por acaso e precipitou autoshymaticamente a puni9ao As pessoas sao todas inocentes mas suas rela1oes estao corrompidas pelo parecer e pel a injusti1a

o maleficio da aparencia a ruptura entre as consciencias poem fim a unidade feliz do mundo infantil Doravante a unidade devera ser reconquistada redescoberta as pessoas separadas deverao reconciliar-se a consciencia expulsa de seu paraiso devera empreender uma longa viagem antes de retornar a felicidade ser-Ihe-a preciso buscar uma outrn ventura totalmente diferente mas na qual seu primeiro estado nao cleishyxara de ser-Ihe totalmente restituido

A revela9ao da mentira da aparencia e sofrida a maneira de um ferimento Rousseau descobre 0 parecer como vitima do parecer No instante em que percebe os limites de sua subjetividade ela Ihe e imposta como subjetividade caluniada Os outros 0 desconhecem 0 eu sofre sua aparencia como uma denega9ao de justi9a que the seria infligida por aqueles pelos quais queria ser amado

A estrutura fenomenal do mundo e portanto posta em questao apenas indiretamente A descoberta do parecer aqui nao e de modo algum 0 resultado de uma reflexao sobre a natureza ilusoria da realidade percebida Jean-Jacques nao e urn sujeito filosOfico que analisa 0

espetaculo do mundo exterior e que 0 poe em duvida como uma aplTencia formada pela media9ao enganadora dos sentidos Jean-Jacques descobrl que os outros nao vao ao encontro de sua verdade de sua inocencia lil sua boa-fe e e apenas em seguida que 0 campo se obscurcce eo s( wla Antes que ele se experimente distante do mundo 0 eu sofrell a exp~ricllcia de sua distancia em rela9ao aos outros 0 maleficio da aparcllcia 0 afingt em sua propria existencia antes de altcrar a figura clo nlulldl) B 110

II

coraryao do homem que esta a vida doespetaculo da natureza21 Quando o coraryao do homem perdeu sua transparencia 0 espetaculo da natureza se empana e se turva A imagem do mundo depende da relaryao entre as consciencias sofre-lhe as vicissitudes 0 episodio de Bossey tennina pela destruiryao da transparencia do coraryao e simultaneamente por urn adeus ao brilho da natureza A possibilidade quase divina de ler nos coraryoes nao existe mais 0 campo se vela e a luz do murido se obscurece

o veu desceu entre Rousseau e ele proprio Ocultou-lhe sua natureza primeira sua inocencia E por certo entao Jean-Jacques se pas a fazer 0 mal (ficavamos menos envergonhados de agir mal comeryashyvamos a nos esconder 22) mas nao e responsavel pela entrada do mal no mundo e se comerya a se esconder e porque em primeiro lugar a verdade se escondeu Sua historia comeryara de maneira diferente A infancia fora de inicio confianrya e transparencia totais A memoria ainda pode mergulha-lo novamente nela e devolve-Io a limpidez de urn mundo rna is claro mas ele nao pode fazer com que ela nao tenha sido perdida e que tudo nao esteja obscurecido

Nao vemos a alma de outrem porque ela se esconde nem a nossa porque de modo algum temos espelho intelectuaP3

E preciso viver na opacidade24

o TEMPO DIVDDO E 0 MITO DA TRANSPARENCIA

Esse momen to de crise - em que desce 0 veu da separaryao em que 0 mundo se empana em que as consciencias se tornam opacas umas para as outras em que a desconfianrya torna para sempre a amizade impossivel - esse momenta tern sua data em uma historia marca 0

comeryo de uma perturbayao na felicidade infantil de Jean-Jacques Entao corney a uma nova epoca uma outra era da consciencia E essa nova era se define por uma descoberta essencial pela primeira vez a consciencia tern urn passado Mas ao enriquecer-se com essa descoberta ela descobre tambem uma pobreza uma falta essencial Com efeito a dimensao temshyporal que se cava atras do instante presente tornou-se perceptivel pelo proprio fato de que se esquiva e se recusa A consciencia se volta para urn mundo anterior do qual percebe simultaneamente que ele the pertenshyceu e que esta para sempre perdido No mom en to em que a felicidade infantillhe escapa ela reconhece 0 valor infinito dessa felicidade proibida Entao nao resta mais do que construir poeticamente 0 mito da epoca finda outrora antes que 0 veu se houvesse interposto entre nos e 0 mundo havia deuseuroamp lilt Iiam em nossos coraryoes e nada alterava a transpashy

22

rencia e a evidencia das almas Pennaneciamos com a verdade Na bio shygrafia pessoal assim como na historia da humanidade esse tempo esta situado rna is proximo do nascimento na vizinhanrya da origem Rousseau foi urn dos primeiros escritores (seria preciso dizer poetas) a retomar 0

milo platanico do exilio e do retorno para orienta-Io em direryao ao estado de infancia e nao mais a uma patria celeste

Quando se trata de evocar 0 tempo da transparencia 0 primeiro Discurso desenvolve imagens singularmente analogas as que se encollshytram no relato das Confissoes Como no epis6dio de Bossey ele fala da presenrya proxima dos deuses e urn tempo em que testemunhas divinas permanecem entre os hom ens e It~em em seus coraryoes e urn mundo em que as consciencias humanas se reconhecem por urn tinico olhar

E uma bela costa adomada apenas pelas maos da natureza para a qual s voltam incessantemente os olhos e da qual se sente afastar-se a contragosto Quando os homens inocentes e virtuosos amavam ler os de uses COIIIO

testelllunhas de suas aci5es moravam juntos sob as mesmas cabanas ums logo tomando-se maus cansaram-se desses incomodos espectadores 2j

Antes que a arte houvesse moldado nossas maneiras e ensinado noss paixoes a falar uma linguagem afetada nossos costumes eram rusticos mas naturais e a diferenca dos procedilllelltos alZull ciava ao primeiro oLhar ( do caraler A natureza hllmana no fundo nao era melhor mas os homens encontravam sua seguransa na facilidade de se penetrar reciprocalllente2(j

Previamente a toda teoria e a toda hipotese sobre 0 estado de natureza ha a intuiryao (ou a imaginaryao) de uma epoca comparavel ao que foi a infancia antes da experiencia da acusaryao injustificada A humanidadc s(gt esta entao ocupada em viver tranqiiilamente sua felicidade Urn infalivel equilIbrio ajusta 0 ser eo parecer Os homens se mostram e sao vistos tais como sao As aparencias extern as nao sao obstaculos mas espelhos fieis em que as consciencias se encontram e se harmonizam

A nostalgia se volta para uma vida anterior Mas se ela nos afasta do mundo contemporaneo nao nos faz abandonar 0 munch) humano nem a paisagem terrestre no horizonle da felicidade anterior ha essa mesma natureza e essa mesma vegetaryao que nos cercam hoj( ha essa floresta que mutilamos mas da qual restam ainda extensc)(s intactas por onde posso enveredar Sem que seja necessario invoc1I a intervenryao sobrenatural de urn demonio tentador e de uma Eva tentada a origem de nossa decadencia e explicavel por razoes bern hnmanas Porque 0 homem e perfectivel nao cessou de acrescentar suas invenqoes aos dons da natureza E desde entao a hist6ria universal euromhara~-ada pelo peso continuamente crescente de nossos artificios e de nosso or gulho adquire 0 andamento de uma queda aceleracla na corrupr fi n nbri mos os olhos com horror para urn mundo d( mascaras I ell ihl50cl

2 I

mortais e nada assegura ao observador (ou ao acusador) de que ele proprio seja poupado pel a doen~a universal

o drama da queda nao antecede portanto a existt~ncia terrestre Rousseau transporta 0 mito religioso para a propria historia divide-a em duas eras uma tempo estavel da inocencia reino tranqiiilo da pura natureza a outra historia em devir atividade culpada negayao da na shytureza pelo homem

Ora se a queda e nossa obra se e urn acidente da historia humana e preciso admitir que 0 homem nao esta naturalmente condenado a viver na desconfianya na opacidade enos vieios que as escoltam Estes sao a obra do hom em ou da sociedade Entao nao ha nada a1 que nos impeya de refazer ou de desfazer a historia tendo em vista redescobrir a transparencia perdida Nenhuma proibiyao sobrenatural a isso se opoe A essencia do homem nao esta comprometida mas apenas sua situar iio historica Talvez quisesses tu poder retroceder27 A pergunta perrnashynece suspensa mas em todo caso nao ha espada flaI1lejante que nos impeya 0 acesso do paraiso perdido Para alguns (em distantes costas) que dele nao sairam talvez ainda seja tempo de deter-sea E mesmo que por uma fatalidade puramente humana 0 mal seja irreversivel mesmo que nos seja preciso admitir que urn povo vicioso nao retoma jamais a virtude a historia nos propoe uma tarefa de resistencia e de recusa 0 minimo que poderiamos fazer se nao podemos tomar bons aqueles que nao 0 sao mais e conservar assim aqueles que tern a felicidade de se-Io29 Porque 0 advento do mal foi urn fato historico a luta contra 0 mal cabe tambem ao homem na historia

Rousseau nao duvida de que uma ayao seja possivel de que uma livre decisao possa consagrar-nos ao serviyo da verdade velada Mas quanta a natureza dessa decisao e dessa ayao ele ouve varios apelos e os exprime sucessivamente (ou simultaneamente) em sua obra reforma moral pessoal (vitam impendere vero) educayao do individuo (Emilio [Emile]) forrnayao politica da coletividade (Economia politica [Discours sur leconomie politique] Contrato social [Le contrat social)) A que se acrescenta em Jean-Jacques uma hesita~ao que orienta seu desejo ora no sentido de uma regressao temporal ora no sentido do presente mais proximo refugio de uma consciencia que se basta a si mesma mais raramente no sentido de uma SUperayaO em direyao ao futuro Alternadamente ele se entregara ao devaneio arcadico de urn retorno a floresta primitiva ou entao fara a defesa de uma estabilizayao conshyservadora em que a alma e a sociedade salvaguardariam 0 que Ihes resta ainda de puro e de original ou ainda trayara a ideia da felicidade futura do genero humano30 ou enfim construira fora do tempo uma Cidade virtuosa Instituiroes po[[ticas ideais De tantos designios desshy

2l

semelhantes que e tao dificil harrnonizar de maneira inteiramente satis shyfatoria e preciso reter esta unica coisa que tem em comum sua unidade de i1ltenpio que visa a salvaguarda ou a restaurayao da transparencia comprometida No apelo apaixonado que Rousseau dirige a seus cooshytemporaneos pode nao haver nada mais que urn convite a cultivar 1

moral da boa vontade e da boa consciencia e ai pode-se ler tambClII um convi te a transforrnar a sociedade pela a9ao politica efetiva Essa ambigiiidade e emharayosa Mas de uma maneira nao ambigua Rousseau em primeiro lugar nos convoca a querer 0 retorno da rransparencia para nos e em nossas vidas Nao ha como equivocar-se sobre esse desejo tao poderoso quanta simples 0 mal-entendido come~ani no momento em que esse desejo se vir confrontado com tarefas concretas com sishytua90es problematicas Pois do desejo de transparencia a transparencia possuida a passagem nao e instantanea 0 acesso nao e im ediato Sc se empreende libertar-se da menti ra cedo ou tarde nao se pode impedir colocar a questao dos meios (que sao diversos e contraditorios) e dOl afiio que tanto pode fracassar como ter exito e que corre 0 risco dmiddot~

nos fa zer recair no mundo da ment ira e da opacidade

SABER HIST6R1CO E VISAO POETICA

Mas a que distancia estamos da transparencia perdida Que espesshysuras dela nos separam Qual e 0 espa~o a transpor para redescobri-la 1

No Discurso sobre a origem da desigualdade [Disc ours sur jorigillC de inegaire1 Rousseau interpoe multidoes de seculos 0 afastamento e imenso e a I uz da prime ira felicidade parece quase apagar-se na distanci das eras 0 que se pode saber de urn periodo tao longinquo A razao nao pade evitar a formulayao de algumas duvidas 0 tempo da transparencia realmente ocorreu ou ai nao est amais que uma fic~iio que inventamos para poder reconstruir especulativamente a bist6ria a partir de uma ori shygem Em uma passagem do segundo Discurso em que Rousseau vigia manifestamente seu pensamento nao chega ele a supor que 0 estado de natureza Utalvez nao lenha absolutamente existido 0 estado de natureza e pois tiio-somente 0 postulado especulativo que uma historia hipote shytiea se confere principio sobre 0 qual a deduyao podeni apoiar-se em busea de uma sene de ca usas e de efe itos bem encadeados para conslruir a expLicayao genetiea do mundo ta l como ele se oferece aos nossos olhos Assim procedem quase todos os homens de ciencias e os fil6sofos un epoca que creem nada ter demonstrado se na o remontaram as fO llt simples e necessarias de todos os fenomenos fazem-se ent aCI CIS hb t riadores das ori2ens da terra da vida das fnc lIlrlulfgts cia alllla ds qoci

H

dades Dando aespeculayao 0 nome de observayao esperam estar isentos de qualquer outra prova

De fato amedida que Rousseau desenvolve sua ficyao historica esta perde seu carater de hipotese uma especie de confianya e de emshybriaguez vern abolir toda prudencia intelectual a descriyao desse estado primeiro muito proximo ainda da animalidade torna-se a evocayao enshycantada de urn Iugar onde viver Vma nostalgia elegiaca se comove a ideia dessa vida errante e sa com seu equilIbrio sensitivo com sua justa suficiencia Imagem por demais imperiosa por demais profundashymente satisfatoria para nao corresponder no espirito de Rousseau aestrita verda de historica Vma certeza ganha corpo que e de essencia poetica mas que se engana sobre sua natureza quer falar a linguagem da historia e tomar por testemunha a erudiyao mais seria A convicyao se impoe irrefutavelmente tais foram sem contestayao os primordios da humanishydade tal foi a primeira fisionomia do homem Rousseau conta a si mesmo a historia objetiva de uma Idade da transparencia para legitimar sua nostalgia A certeza de Rousseau e a de alguem que se lembra ela e acanyada no contato e seus discipulos ja nao verao nele 0 autor de uma historia hipotetica mas 0 vidente (Seher dira H6lderlin) que detem a memoria de urn passado muito antigo de um tempo rna is belo Na ode inacabada intitulada Rousseau H6lderlin escreve

auch dir auch dir Erfreuet die feme Sonne dein Haupt

Und Strahell ails der sclollem Zeit Es Haben die Boten dein Herz gefllndell 31

[para ti tarn bern para ti tambern o distallte sol ilumina lua fronte com Slla alegria E os raios vindos de uma epoca mais bela Eles os rncnsageiros encontraram tell caratiio]

H61derlin aqui faz de Rousseau urn desses interpretes a quem e concedido ser tocado pela luz de uma era vindoura ou de urn passado desaparecido

o DEUS GLA UCO

Pode-se dizer ainda que a transparencia original desapareceu Reshydescoberta na memoria nao e ela entao retomada na transparencia propria da memoria e por isso mesmo salva Desertou-nos inteiramente ou estamos ainda em sua vizinhanya Rousseau hesita entre duas respostas nntradit-cirias lZrn dado momento 0 mito bifurca em duas versoes A

6

primeira afirma que a alma humana degenerou que se desfigurou que sofreu uma alterayao quase total para jamais reencontrar sua beleza prime ira A segunda versao em lugar de uma defonnayao evoca uma especie de encobrimento a natureza primitiva persiste mas oeulta cershycada de veus superpostos sepultada sob os artificios e no en tanto sempre intacta Versao pessimista e versao otimista do mito da origem Rousseau sustenta ambas alternadamente e por vezes mesmo simultaneamente Diz-nos que 0 homem destruiu de modo irremediavel sua identidade natural mas proclama tambem que a alma original sendo indestrutivel permanece para sempre identica a si mesma sob as manifestayoes externas que a mascaram

Rousseau retoma por sua conta 0 mito platonico da estatua de Glauco

Semelhante aedtatua de Glauco que 0 tempo 0 mar e as tempestades haviam desjigurado tanto que se parecia menos com um deus do que com urn animal feroz a alma humana alterada no seio da sociedade por mil causas continuashymente renascentes pela aquisitiio de uma multidao de conhecimentos e de eITOS pelas mudantas ocoITidas na constituitiio dos carpos e pelo choque continuo das paix6es por assim dizer mudou de aparencia a ponto de 5(r quase irreconhecivel 32

Mas ha aqui um por assim dizer e urn quase que devolvem todas as esperanyas A imagem da estatua de Glauco no contexto de Rouss~au conserva algo de enigmatico Seu rosto foi corroido e mutilado pelo tempo perdeu para sempre a forma que tinha ao sair das maos do escultor Ou entao foi ele recoberto por uma crosta de sal e de algas sob a qual a face divina conserva sem nenhuma perda de substancia seu modelo original Ou ainda a fisionomia original nao e mais que uma ficy ao destinada a servir de norma ideal para quem quer interpretar 0 estado atual da humanidade

Nao e uma empresa leve deslindar 0 que ha de originario e de artificial 111

natureza atual do homem e conhecer bem urn estado que nao existe milis que provavelmente nao existira jamais e sobre 0 qual entretanlo enecesshysario ler not6es justas para bern avaliar nosso estado presenteD

Permanecer 0 que se era deixar-se alterar pela mudanya tocamos aqui em categorias que para Rousseau sao 0 equivalente das categorias teologicas da perdiyao e da salvayao Rousseau nao cre no inferno mas em compensayao acredita que a perda da semelhanya e uma infeliddad( essencial enquanto que permanecer semelhante a si mesmo euma malcirtl de salvar sua vida ou ao menos uma promessa de salvarao 0 11111raquo0

historico que para Rousseau nao exclui a ideia do des(llvolvilll(ntn organico permanece carregado de culpabilidade 0 movilflcnto dn hlslOliI

27

e urn obscurecimento e mais responsavel por uma deformal)ao do que por urn progresso qualitativo Rousseau apreende a mudan9a como uma corruP9aO34 no curso do tempo 0 homem se desfigura se deprava Nao e apenas sua aparencia mas sua propria essencia que se torna irreconheshycivel Essa versao severa (e por assim dizer calvinista) do mito da origem Rousseau a pro poe em diversos momentos de sua obra Descobre-se na origem dessa ideia uma angustia muito real avivada pelo sentimento do irreparavel Rousseau muitas vezes afirmou que 0 mal era sem retorno que uma vez transposto urn certo Iimiar fatal a alma estava perdida e nao tinha outr~ recurso senao aceitar sua perda Urn natural sufocado nos diz ele nao volta jamais e perde-se entao ao mesmo tempo 0 que se destruiu e 0 que se fez 35

Desafortunadosl 0 que nos tomamos nos Como deixamos de ser 0 que fomos36

Deforma9aO em que parece mais nada subsiste da forma original Ele pr6prio sentiu-se atingido e ameal)ado

Os gostos rna is vis a mais baixa molecagem sucederam-se as minhas amaveis diversoes sem delas me deixar mesmo a menor ideia Epreciso que a despeito da educa9ao mais honesta eu tivesse ulna grande inclinafGo a degenerar pois isso se deu muito rapidamente sem a menor dificuldade e jamais Cesar tao precoce tomou-se tao prontamente Laridon37

A essa passagem que segue de perto 0 episodio de Bossey pode-se acrescentar urn texto do final da vida de Rousseau testemunho tanto mais significativo quanto data de uma epoca em que este nao cessa de afmnar sua permanente fidelidade a si mesmo

Tal vez sem me dar conta eu meslIlo tenha 11ludado lais do que seria preciso Que natural resistiria sem se alterar a uma situa9ao semeIhante a minha38

Pergunta que ele se apressa em responder pela negativa Pois preshycisamente no momenta em que tudo muda para ele no momento em que acredita viver em urn sonho Rousseau se opoe com todas as suas forl)as aangustia da aItera9ao interior e luta pel a salvaguarda de sua identidade Alguma coisa mudou mas sua alma permaneceu a mesma Ele repele para 0 exterior a responsabilidade da alteral)ao Foram os outros que sofreram a metamorfose mais surpreendente e que eles proprios irrecoshynheciveis desfiguram sua imagem e suas obras Quanto a ele mesmo permaneceu 0 que era Seus sentimentos mudaram porque as realidades externas nao sao mais as mesmas

Mas as coisas mudaram muito de figura desde que minhas infelicidades COlle~aram Vivi desde entao em uma gera9ao nova que nao se parecia de modo nenhurn com a prinnira e meus proprios sentimentos pelos outros

2M

sofreram mudan9as que encontrei nos deIes A mesmas pessoas que vi sucessivamente nessas duas gera90es tao diferentes assimitaram-se por assim dizer a uma e a outra39

[] Eu 0 mesmo homem que era 0 mesmo que sou ainda

Sob a mascara que os outros impoem de fora a sua fisionomia Jean-Jacques nao deixou de ser Jean-Jacques No momento em que esta mais sombriamente obsedado pela perseguil)ao replica contando a si mesmo a versao otimista do mito da origem nada foi perdido 0 tempo nao alterou 0 essencial s6 corroeu na superficie 0 mal vern de fora mas permanece fora 0 rosto de Glauco permaneceu intacto sob a espuma que o desfigura Jean-Jacques apIica entao a si mesmo (e s6 a ele) uma ideia que formulara anteriormente a respeito do homem em geral e que opunba a nOl)ito da natureza perdida e da natureza oculta de uma natureza que se pode mascarar mas que jamais sera destruida Demasiadamente poshyderosa e talvez demasiadamente divina para que possamos transforma-Ia ou suprimi-Ia ela elude nossos empreendimentos profanadores e se reshyfugia nas profundezas onde esta apenas dissimulada sob involucros exteriores Esta esquecida mas nao realmente perdida e se a memoria nos faz entreve-Ia no fundo do passado e porque estamos ja proximos de Iiberta-la de seus veus e de redescobri-Ia presente e viva em nos mesmos

Os males da alma [ ] alterap5es extemas e passageiras de urn ser imortal e simples apagam-se insensivelmente e deixam-no elll suaorilla origial que nada poderia mudar41

Entao Rousseau invoca com confianl)a uma natureza que nada destroi torna -se 0 po eta da permanencia desvelada Descobre em si mesmo a proximidade da transparencia original e esse homem da nashytureza que ele buscara na profundeza das eras agora reencontra-Ihe os tral)os originais na profundeza do eu Aquele que sabe recolher-se em si mesmo pode ver resplandecer novamente a fisionomia do deus subshymerso liberta da ferrugem que a mascarava

De onde 0 pintor e 0 apologista da natureza hoje tao desfigurada e tao caluniada pode haver tirado seu modelo se nao de seu proprio corarao Descreveu-a como eIe proprio se sentia Os preconceitos aos quais nao estava subjugado as paixOes facticias de que nao era presa nao ofuscavam de modo ncnhum aos seus olhos como aos dos outros esses prirnciros traros till) geralmente esquecidos ou ignorados Esses traros tao novos para ncgts l~ tilt) verdadeiros uma vez tra9ados encontravam ainda no fundo dos corarOcs II atestarao de sua justeza mas jamais se teriam mostrado novarncntc p)r si mcslllos se 0 historiador da natureza nao hOllvcsse cOIll~fld() por wtirlr 1

ferrugem que os oCllltava S6 lima vida rctirada c solitaritl l1Il gosto vivo pete dcvaneio e pela contclllpla9ao 0 lubito dc lc()lIll~r-s( ()III si c I( II I

29

buscar na calma das paixoes esses primeiros trayos desaparecidos na multishydao podiam-no fazer redescobri-los Em uma palavra era preciso que um homem se houvesse pintado a si mesmo para nos mostrar assim 0 homem primitivo 42

o conhecimento de si equivale a uma reminiscencia mas nao e de maneira nenhuma por urn esfonyo de memoria que Rousseau reencontra esses primeiros traltyos que pertencem contudo a urn mundo anterior Para descobrir 0 homem da natureza e para tornar-se seu historiador Rousseau nao teve de remontar ao comeltyo dos tempos bastou-Ihe pintar a si mesmo e reportar-se it sua propria intimidade it sua propria natureza em urn movimento a uma so vez passiv~ e ativo buscando-se a si mesmo abandonando-se ao devaneio 0 recurso a interioridade atinge a mesma realidade decifra as mesmas normas absolutas que a exploraltyao do pass ado mais remoto Assim 0 que era primeiro na ordem dos tempos historicos se redescobre como 0 que e mais profundo na experiencia atual de Jean-Jacques A distancia historica nao e rna is que distancia interior e essa distancia e logo transposta para aquele que sabe abandonar-se plena mente ao sentimento que se desperta nele Doravante a naturezamiddot (como a presenltya de Deus para santo AgostinhO)43 deixando de ser 0

que ha de mais longinquo atras de nos oferece-se como 0 que e mais central em nos Como se ve a norma ja nao e transcendente e imanente ao eu Basta ser sincero ser eu mesmo e entao 0 homem da natureza nao e mais 0 distante arquetipo ao qual me refiro ele coincide com a minha propria presenltya com a minha propria existencia A transparencia antiga resultava da presenltya ingenua dos homens soh 0 olhar dos deuses a nova transparencia e uma relaltyao mterlor 10 eu uma relaltao cc sigo mesmo realiza-se na limpidez do olhar sobre si mesmo que permite a Jean-Jacques pintar-se tal como e Vma imagem pode entao surgir que equivale (Rousseau nos garante isso) it historia autentica da especie inteira e que ressuscita 0 passado perdido para revela-lo como 0 presente etemo da natureza Os homens ai redescobrem a certeza de uma semelhanltya comum (Cada homem carrega a forma inteira da humana condi9ao dizia Montaigne) Porque Jean-Jacques soube abandonar-se a si mesmo os homens se reconhecerao por sua vez Atras de suas falsas verdades reencontram uma presenltya esquecida uma forma que permanecia intacta sob os veus ei-Ios libertos do esquecimento

Pode-se entao recobrar a natureza primeira do homem sem ter de remontar as origens rea is e sem se aventurar nas r~construltyoes historicas Rousseau se ex plica sobre isso de uma maneira bastante clara no segundo Discurso on de 0 vemos renunciar bern facilmente a toda asser9ao sobre as verdadeiras origens para se reservar 0 direito de esclarecer por via de hipotese a natur(za das coisas

w

Nao se devem tomar as investigayoes nas quais se pode entrar sobre esse assunto por verdades historicas mas apenas por raciocfnios hipoteticos e condicionais mais aptos a esclarecer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem 44

Mas a natureza do homem pode ser apreendida independentemente da hisforia humana Rousseau hesita De fato se nao pode dispensar a n09ao de uma natureza humana essencial tam bern nao pode renunciar it ideia de urn devir historico que Ihe permita dar uma explicaltyao plausivel da aIteraltyao que a humanidade sofreu ao afastar-se de suas bem-aventushyradas origens Rousseau desejaria reservar-se conjuntamente a possibilishydade de acusar a perversao pela qual a sociedade e responsavel e conservar o direito de proclamar a permanencia da bondade original Ha a1 uma dupla afirmaltyao que pode passar por contraditoria e que nao se deixou de criticar em Jean-Jacques Pois na medida em que a sociedade e obra humana deve-se admitir que 0 homem e cuJpado e carrega a culpa de todo 0 mal que fez a si mesmo mas por outro lado na medida em que o homem nao deixa de ser urn filho da natureza ele conserva uma inocencia indestrutivel Como conciliar a afinna9aO 0 homem e natushyralmente born e esta outra Tudo degenera entre as maos do homem

UMA TEODICEIA QUE INOCENTA 0 HOMEM E DEUS

Cassirer mostrou-o bem 45 os postulados de Rousseau permitem resolver 0 problema da teodiceia sem imputar a origem do mal nem a Deus nem ao homem pecador

[Nao e) necessario supor 0 homem mau por sua natureza quando se [pode] assinalar a origem e 0 progresso de sua maldade Estas reflexoes me conduziram a novas investigayoes sobre 0 espirito humano considerado no estado civil e julguei entao que 0 desenvolvimento das luzes e dos vicios sc fazia sempre na mesma proporyao nao nos individuos mas nos povos distinyiio que sempre fiz cuidadosamente e que nenhum daqueles que me atacaram jamais pode conceber46

o mal se produz pela historia e pela sociedade sem alterar a essencia do individuo A culpa da sociedade nao e a culpa do homem essencial Illas a do homem em relaltyao Ora com a condiltyao de dissociar 0 hommll cssencial e 0 homem em relaltyao com a condi9aO de separar sociabilidadtgt e natureza humana pode-se atribuir ao mal e a alteraltyiio hist6rica lima s itu1ltyiio periferica em relaltyao a permanencia central cia natureza original o n1 tI t partir dar podera confundir-se com a paixao do h OIllNn 101

tqlli lo que Iha 6 exterior peo de fo ra a prtlig io 0 pnrect r a P OSSl uu

H

bens materiais 0 mal e exterior e e a paixao pelo exterior se 0 homem se entrega inteiro asedwao dos bens externos sera inteiramente submeshytido ao imperio do mal Mas recolher-se em si sera para ele em qualquer tempo 0 recurso da salvatao Rousseau nao se content a portanto em reprovar a exterioridade como quase todos os moralistas haviam feito antes dele incrimina-a na propria definisao do mal Essa condenatao nao passa da contra partida de uma justificasao que pretende salvar - de uma vez por todas - a essencia interna do homem Repelido para a periferia do ser rechasado para 0 mundo da relasao 0 mal nao tera 0 mesmo estatuto ontologico que a bondade natural do homem 0 mal e veu e velamen to e mascara tern acordo com 0 facticio e nao existiria se 0

hom em nao tivesse a perigosa liberdade de negar pelo artificio 0 dado natura l E entre as maos do homem e nao em seu corayao que tudo degenera Suas maos trabalham mudam a natureza fazem a h istoria ordenam 0 mundo exterior e produzem com 0 tempo a diferenya entre as epocas a luta entre os povos a desigualdade entre os particulares

Em uma mesma pagina (prefacio de Narciso) Rousseau protestara contra falsa m osofia que sustenta que os homens sao por toda parte os mesmos mas que as vicios do mundo middot contemporaneo nao pershytencem tanto ao homem quanta ao homem malgovemado 47 Contradisao si gnificativa Rousseau desse modo afinna ao mesmo tempo a pershymanencia de uma inocencia essencial e 0 movimento da historia que e alterasao corruptao moral degenerescencia politica e que promove o estado de conflito e a injustisa entre os homens 48

Nas teorias do progresso que serao propostas rna is tarde intervira uma hipotese bastante analoga que visara conciliar 0 postulado da pershymanencia da natureza human a com a ideia de uma mudansa coletiva 0 homem pem1anece 0 mesmo a humanidade progride sempre dira Goethe A validade do pessimismo historico do segundo Discurso foi contestada e admitiu-se mais comumente a tese otimista de Goethe Entretanto do ponto de vista filosOfico 0 problema e ide ntico Tanto em urn como no outro e preciso conci liar a estabilidade da natureza humana e a mobilidade do desenvolv imento real da hist6ria e preciso explicar por que 0 homem (enquanto individuo) possui 0 privilegio de pennanecer 0 mesmo ao passo que a human idade (enquanto coletishyvidade) esta sujeita a mudansa

Rousseau contudo nao tern necessidade da hist6ria a nao ser para the pedir a explicasao do mal E a ideia do mal que da ao sistema sua dimensao historica 0 devir e 0 movimento pelo qual a humanidade se toma culpada 0 homem nao e naturalrnente vicioso tornou-se vishycioso 0 retorno ao bern coincide entao com a revolta contra a hist6ria e em particular contra a situayao historic a atual Se e verdade que 0

2

pensamento de Rousseau e revolucionario e preciso acrescentar de imeshydiato que ele 0 e em nome de uma natureza humana eterna e nao em nome de urn progresso historico (Sera preciso interpretar a obra de Rousseau para ver nela urn fator decisivo no progresso politico do seculo XVIII) Como veremos seu pensamento social consciente da necessidade de afrontar 0 mundo e os homens tais como sao visa sobretudo insshytaurar ou restaurar a soberania do imediato isto e a reino de urn valor sobre 0 qual a duratao nao tern poder

H

2

CRiTICA DA SOCIEDADE

Rousseau situa-se em seu seculo entre os escritores que contestam os valores e as estruturas da sociedade momirquica Por mais distintos que tenham sido a contestayao cria entre esses autores uma semeihanya e Ihes da urn ar de fratemidade cada urn deles podera ser considerado a algum titulo como urn agente ou urn anunciador da proxima Revoluyao Assim se ex plica a reconciliayao postuma de Rousseau e de Voltaire sUa comum apoteose sua promoyao a ciasse de divindade bifronte ou de diade tutelar A gravura popular os imortahzani lade a lade metamorfoshyseados em genios lampadOforos com urn candelabro na mao propagando diante deles as luzes e radiantes de brilho luciferiano

Rousseau quer apreender 0 principio do mal Poe em causa a soshyciedade a ordem social em seu conjunto 0 esforyo critico nele nao se dispersa e nao se atribui como tarefa afrontar uma a uma as multiplas manifestayoes do mal Ele remonta a uma causa geral que 0 dispensa de atacar isolada mente tal abuso particular tal usurpayao tal impostura (De resto ele e por demais egocentrico para assumir 0 papel de defensor dos oprimidos Voltaire tem seu caso Calas e dez outros semelhantes Rousshyseau esta sobrecarregado pelo caso Rousseau)

Rousseau faz a historia de seus pensamentos observou uma discorshydancia eotre os atos e as palavras dos homens essa diferenya se explica por uma outra diferenya a do ser e do parecer mas e preciso ainda buscar-Ihe a causa Rousseau assim a formula

Ellcontrei-a em nossa ordem social que em todos os sentidos tontnlria a natureza qlle nada destr6i tiraniza -a continuamente e sem cessar a faz exigir

11

seus direitos Acompanhei essa contradiriio em suas conseqiiencias e vi que tao-somente ela explicava todos os vicios dos homens e todos os males da sociedade I

Nessa passagem que resume muito firmemente a substancia dos dois Discursos Rousseau define da maneira mais clara 0 objeto eo aIcance de sua eritica social a contestayaO diz respeito a sociedade enquanto esta e contraria a natureza Essa sociedade negadora da natureza (da ordem natural) nao suprimiu a natureza Mantem com ela urn eonflito permanente de onde nascem os males e os vcios de que sofrem os homens A critica de Rousseau esboya portanto uma negayao da negayao acusa a civili shyzayao cuja caracteristica fundamental e sua negatividade em relayao a natureza A cultura estabelecida nega a natureza - e essa a afirmayao patetica dos dois Discursos e do Emilio As falsas luzes da civilizayao longe de iluminar 0 mundo humano velam a transpareneia natural separam os homens uns dos outros particularizam os interesses destroem toda possibili dade de confianya reciproca e substituem a eomunicayao esseneial das almas por urn comercio faeticio e desprovido de sineeridade assim se constitui uma soeiedade em que cada urn se isola em seu amor-proprio e se protege atnis de uma aparencia mentirosa Paradoxo singular que de urn mundo em que a relayao economica entre os homens parece rna is estreita faz efetivamente um mundo de opacidade de mentira de hipocrisia

Queixo-me de que a filosofia afrouxe os laros da sociedade que sao formados pela estillQ e pela bellevolencia IIttuas e queixo-me de que as ciencias as artes e todos os outros objetos de comercio estreitem os laros da sociedade pelo inleresse pessoal E que com efeito niio se pode estreitar urn desscs laros sem que 0 outro nao se afrouxe na mesma proporriio Portanto nada ha nisso de contradiriio2

Rousseau confronta aqui de maneira signifieativa dois tipos de relacao que se opoem como a transparencia a opaeidade A estima e a benevolencia eonstituem urn layo pelo qual os homens se reunem imediatamente nada se interpoe entre as consciencias elas se oferecern espontaneamente numa evideneia total Em compensayao os layos orshydenados pelo interesse pessoal perderam esse carater imediato A relayao ja nao se estabeleee diretamente de consciencia a conscieneia ela agora p3ssa por coisas A perversao que da resulta provem nao apenas do fato de que as eoisas se interpoem entre as eonseiencias mas lambcm do fato de que os homens deixando de identificar seu interesse com sua existencia pessoal identificam-no doravante com os objetos illiN postos que acreditam indispensaveis a sua felicidade 0 eu do hOllwllI social nao se reconheee mais em si mesmo mas se buse no exlcmiddotrim

ntrl as coisns sells meios se tornam sell filn 0 homclIl illkirll

torna coisa ou escravo das coisas A critica de Rousseau den uncia essa alienaYao e propoe como tarefa um retorno ao imediato

A sociedade civilizada desenvolvendo sempre mais sua oposiYao a natureza obscurece a relaYao imediata das consciencias a perda da transparencia original vai de par com a alienaYao do homem nas coisas materia is A analise de Rousseau sobre esse ponto prefigura as de Hegel e de Marx tanto mais se lhes assemelha quanta se apoia em uma descriYao do devir historico da humanidade Com efeito 0 Discurso sabre a origem da desigualdade e uma historia da civilizaYao como progresso da negaYao do dado natural progresso ao qual corresponde uma degradaYao da inoshycencia original A historia das tecnicas e ex posta em estreita ligaYao com a historia moral da humanidade Mas a diferenYa do esforYo filosOfico do seculo XIX e em contraste com as pretensoes positivistas de alguns de seus contemporaneos Rousseau procura fundar urn julgamento moral referente a historia de preferencia a estabelecer um saber antropologico E como moralista que ele escreve a historia da moral Dai 0 aspecto ambiguo de sua demonstraYao As fases pelas quais 0 homem passou 0

est ado a que chegou devem em primeiro lugar ser estabelecidos como fatos uma vez estabelecidos de vern ser aceitos a humanidade sofreu transformaYoes inelutaveis com isso chegou fatalmente a seu estado presente eis 0 que est a fora de contestaYao Mas a validade do fato nao nos permite prejulgar do direito Os fatos historicos nao justificam nada a historia nao tern legitimidade moral e Rousseau nao hesita em condenar em nome dos val ores eternos 0 mecanismo historico do qual mostrou a necessidade e que estendeu as proprias funYoes mora is

Tendo retraYado a progressao da cultura e tendo-a definido como negaYao da natureza Rousseau opoe a cultura uma recusa uma nova negaYao que e a consequencia de urn juizo moral e que se vale de urn absoluto etico A indignaYao de Rousseau (ele proprio homem natural) contra a sociedade (criaYao historica) e a expressao patetica desse conflito Ele toma a palavra para dizer nao a antinatureza A situaYao presente com seu luxe e sua miseria e ao mesmo tempo historicamente motivada e moralmente inaceitavel Rousseau compreende a sociedade de seu tempo mas the opoe uma reprovaYao escandalizada 0 pensamento de Rousseau nao podera portanto deter-se ai Pois compreender urn mundo opaco nao e ainda redescobrir ou restabelecer a transparencia Longe de equivaler para Rousseau a uma adesao intelectual a compreensao so estabelece 0 fato para opor-Ihe imediatamente 0 direito Ele protesta contra 0 metodo de Grotius sua maneira de raciocinar e de estabelecer sempre 0 direito pelo fato) Rousseau julga e condena em nome do direito os fatos dos quais prova a necessidade historica E como precisa para realizar 0 ideal da transparencia de urn mundo em que 0 fato coincide

36

com 0 direito buscara esse mundo ora aquem da historia - nos antigos tempos em que 0 progresso corruptor nao existe ainda - ora alem em urn futuro abstrato em que a desordem atual seria superada por uma ordem rna is perfeita

Page 3: Jean Starobinski - Jean-jacques Rousseau Transparencia e Obstaculo

sentimentos muito mais interessados Nao adota ele 0 tom do saber abstrato na inten9ao mais ou menos consciente de compensar e de dissishymular certas decep90es e certos fracassos muito pessoais 0 proprio Rousseau nos autoriza a fazer essas perguntas Bem antes que a psicologia modema houvesse dirigido nossa aten9ao para as fontes afetivas e as subestruturas inconscientes do pensamento 0 Rousseau das Confissoes [Les confessions] nos convida a buscar a origem de suas proprias teorias na experiencia emotiva e 0 Rousseau dos Devaneios [Les reveries du promeneur solitaire] chegani a dizer na experiencia sonhada Minha vida inteira quase nao passou de um Iongo devaneio9

A discordancia do ser e do parecer revelou-se entao a Rousseau ao fim de um ate de aten9ao critica Foi uma calma compara9ao que alertou seu pensamento 0 leitor poderia ficar tentado a duvidar disso Sabendo quanta 0 tern a do parecer se tomara moeda corrente no vocabulario intelectual da epoca hesitara em admitir que a reflexao de Rousseau tenha encontrado ai seu ponto de partida autentico e seu impulsD original Se algum dia fosse possivel apreender esse pensamento em sua fonte e em sua origem nao seria preciso remontar a um nivel psiquico mais profundo em busca de uma em09ao primeira de uma motiva9ao mais intima Ora a1 encontraremos 0 maleficio da aparencia nao mais a titulo de lugar-coshymum retorico ou na qualidade de objeto submetido aobserva9ao metodica mas sob a forma da dramaturgia intima

AS APARENCIAS ME CONDENA VAM

Releiamos 0 primeiro livro das Confissoes Eu me mostrei tal como fuiIO (tal como ele acredita ter side tal como quer ter sido) Nao se preocupa em retra9ar 0 historico de suas ideias deixa-se invadir pela lembran9a afetiva sua existencia nao Ihe parece constituida como uma cadeia de pensamentos mas como uma cadeia de sentimentos urn enshycadeamento de afei90es secret as 11 Se 0 tema do parecer mentiroso nao fosse mais que uma superestrutura intelectual quase nao teria lugar nas Confissoes Ora 0 contrario e que e verdadeiro

Sem duvida nao e sem importancia que a consciencia de si date para Jean-Jacques de seu encontro com a Iiteratura Ignoro 0 que fiz ate cinco ou seis anos nao sei como aprendi a ler lembro-me apenas de minhas primeiras leituras e de seu efeito sobre mim e 0 tempo de que data sem interrupriio a consciencia de mimmesmo Minha mae deixara romances 12 0 encontro de si coincide com 0 encontro do imaginario eles constituem uma mesma descoberta Desde a origem a consciencia de si esta intimamente ligada apossibilidade de tomar-se um outro (Eu

I U

me tomava a persona gem da quallia a vida I3) Porem por mais perigoso que Rousseau considere esse metodo de educa9ao - que desperta 0 sentimento antes da razao 0 conhecimento do imaginario antes do das coisas reais -0 parecer a1 nao se impoe como uma influencia malefica A ilusao sentimental despertada pel a leitura comporta certamente um risco mas 0 risco nesse caso particular esta acompanhado de um privishylegio precioso Jean-Jacques se forma como urn ser diferente Essas em090es confusas que eu experimentava uma apos a outra nao alteravam absolutamente a razao que ainda nao tinha mas elas me formaram uma de uma outra tempera 14 A singularidade de Jean-Jacques tem sua fonte nos fantasmas fascinantes suscitados pela ilusao romanesca Esta aqui 0

primeiro dado biografico que vem confirmar a declara9ao do preambulo Nao sou feito como nenhum daqueles que viY Jean-Jacques deseja e deplora sua diferen9a e simultaneamente uma infelicidade e urn motivo de orgulho Se as com090es ficticias se a exalta9ao imaginaria tomaramshyno diferente ele lan9ara contra elas uma condena9aO ambigua esses romances sao urn vestigio da mae perdida

Vamos encontrar uma recorda9ao de infancia que descreve 0 enshycontro do parecer como uma perturba9ao brutal Nao ele nao come90u por observar a discordancia do ser e do parecer come90u por sofremiddotmiddotla A memoria remonta a uma experimiddotencia original do maleficio da aparencia Jean-Jacques retra9a-lhe a revela9ao traumatizante aqual atribui uma importancia decisiva Desde esse momenta deixei de gozar de uma felicidade pura1 6 Nesse instante se produz a catastrofe (a queda) qlle destroi a pureza da felicidade infantil A partir desse dia a injusti9a existe a infelicidade e presente ou possive Essa lembran9a tern 0 valor de um arquetipo e 0 encontro da acusa9ao injustificada Jean-Jacques pareo culpado sem 0 ser realmente Parece mentir enquanto esincero Aqueles que 0 castigam agem injustamente mas falam a linguagem da justi9a E aqui a puni9ao fisica nao tera as conseqiiencias eroticas da soya nas nadegas aplicada pela srta Lambercier Jean-Jacques a1 nao descobre seu carpo e seu prazer descobre a solidao e a separa9ao

Urn dia eu estudava sozinho minha liao no quarto contiguo it cozinhn A criada pusera para secar na chapa os pentes da senhorita Lambercicr Quando voltou para apanha-Ios havia um com todo urn lade de delltes quebrado A quem atribuir a culpa desse estrago Ninguem al6m de milll entrara no quarto Interrogam-me nego ter tocado no pente 0 sCllhor ~

a senhorita Lambercier se reunem exortam-me pressionam--ml Ilnwfl~alll shy

me persisto com obstinaao mas a convicao era forte dcmais prevnhc(~ IJ

sobre todos os meus protest os embora fosse a primeira vez que me livesshysem encontrado tanto audacia em mentir A coisa foi levada II serio IIIIt(Ol il

sc-Io A maldllde a rnentira a obstinllrao parc~ccralJl igualnllllt l di)IIImiddot

de puni~~ iio

Ul

Faz agora quase cinqiienta anos dessa aventura e nao tenho medo de ser hoje punido uma segunda vez pelo mesmo fato Pois bern Declaro diante do Ceu que eu era inocente

Nao tinha ainda bastante raziio para sentir quanta as aparencias me condenavam e para me colocar no lugar dos outros Mantinha-me no meu lugar e tudo 0 que sentia era 0 rigor de urn castigo terrivel por urn crime que nao cometera 17

Rousseau esta aqui em situa9ao de acusado (No primeiro Discurso ele desempenha 0 papel do acusador mas a partir do momento em que encontrar a contradi9ao ele se achara novamente em situa9ao de acusado) A experiencia cuja descri9ao acabamos de ler nao confronta abstratamente a n09ao de realidade e a n09ao de aparencia e a oposi9ao perturbadora do ser-inocente e do parecer-culpado Que desarranjo de ideias Que desorshydem de sentimentos Que perturba9ao 18 Ao mesmo tempo em que se revela confusamente a ruptura ontologica do ser e do parecer eis que 0 misterio da injusti9a se faz sentir de modo intoleravel a essa crian9a Ela acaba de aprender que a intima certeza da inocencia eimpotente contra as provas aparentes da culpa acaba de aprender que as consciencias sao separadas e que e impossivel comunicar a evidencia imediata que se experimenta em si mesmo Desde entao 0 paraiso esta perdido pois 0 paraiso era a transparencia reciproca das consciencias a comunica9ao total e confiante 0 proprio mundo muda de aspecto e se obscurece E os termos de que Rousseau se serve para descrever as conseqiiencias do incidente do pente quebrado assemelham-se estranhamente as palavras pelas quais 0 primeiro Discurso pinta 0 cortejo de vicios que irrompe des de que nao se ousa rna is parecer 0 que se e Nos dois textos Rousseau fala de urn desaparecimento da confianfa depois evoca urn veu que se interpoe

Permanecemos ainda em Bossey alguns meses Ali estivemos como nos representam 0 primeiro homem ainda no paraiso terrestre mas tendo deixado de goza-lo Era em aparencia a mesma situa9ao e de fato toda uma outra maneira de ser 0 apego 0 respeito a intimidade a confia1Ua nao uniam mais os alunos a seus guias ja niio os olhavamos como deuses que liam em nossos cora90es ficavamos menos envergonhados de agir mal e mais temerosos de ser acusados com~avamos a nos esconder a nos rebelar a mentir Todos os vicios de nossa idade corrompiam nossa inocencia e enfeiavam nossas brincadeiras Ate 0 campo perdeu aos nossos olhos esse atrativo de d09ura e de simplicidade que chega ao cora9ao Parecia-nos deserto e sombrio como que se cobrira de urn veil que nos ocultava-lhe as

belezas19

As almas nao se encontram mais e tern prazer em ocultar-se Tudo esta perturbado e a crian9a pun ida descobre essa incerteza do conheshycimento de outrem de que se lamentani no primeiro Discurso Portanto

II

jamais se sabera bern com quem se trata A catastrofe e tanto maior para Jean-Jacques quanta 0 separa precisamente das pessoas que estima e que mais respeita20 A ruptura constitui urn pecado original mas urn pecado tanto mais cruelmente imputado quanta Jean-Jacques nao e por ele responsavel

De fato e preciso observar que em todo 0 relato do incidente do pente ninguem carrega a responsabilidade da intrusao inicial do mal e dOl separa9ao E urn concurso infeliz de circunstancias Urn simples mal-enshytendido Em parte alguma Rousseau diz que os Lambercier sao rna us e injustos Descreve-os ao contrario como seres doces bastante razoashyveis e de uma justa severidade Apenas estao erradosjoram enganados pela aparencia dajustifa (segundo a senten9a liminar do primeiro Discurshyso) e a injusti9a se produz como pelo efeito de uma fatalidade impessoa As aparencias estao contra Rousseau A convic9ao era forte demais Portanto nao ha culpado em parte alguma ha apenas uma imputa9ao de crime urn parecer-culpado que surgiu como por acaso e precipitou autoshymaticamente a puni9ao As pessoas sao todas inocentes mas suas rela1oes estao corrompidas pelo parecer e pel a injusti1a

o maleficio da aparencia a ruptura entre as consciencias poem fim a unidade feliz do mundo infantil Doravante a unidade devera ser reconquistada redescoberta as pessoas separadas deverao reconciliar-se a consciencia expulsa de seu paraiso devera empreender uma longa viagem antes de retornar a felicidade ser-Ihe-a preciso buscar uma outrn ventura totalmente diferente mas na qual seu primeiro estado nao cleishyxara de ser-Ihe totalmente restituido

A revela9ao da mentira da aparencia e sofrida a maneira de um ferimento Rousseau descobre 0 parecer como vitima do parecer No instante em que percebe os limites de sua subjetividade ela Ihe e imposta como subjetividade caluniada Os outros 0 desconhecem 0 eu sofre sua aparencia como uma denega9ao de justi9a que the seria infligida por aqueles pelos quais queria ser amado

A estrutura fenomenal do mundo e portanto posta em questao apenas indiretamente A descoberta do parecer aqui nao e de modo algum 0 resultado de uma reflexao sobre a natureza ilusoria da realidade percebida Jean-Jacques nao e urn sujeito filosOfico que analisa 0

espetaculo do mundo exterior e que 0 poe em duvida como uma aplTencia formada pela media9ao enganadora dos sentidos Jean-Jacques descobrl que os outros nao vao ao encontro de sua verdade de sua inocencia lil sua boa-fe e e apenas em seguida que 0 campo se obscurcce eo s( wla Antes que ele se experimente distante do mundo 0 eu sofrell a exp~ricllcia de sua distancia em rela9ao aos outros 0 maleficio da aparcllcia 0 afingt em sua propria existencia antes de altcrar a figura clo nlulldl) B 110

II

coraryao do homem que esta a vida doespetaculo da natureza21 Quando o coraryao do homem perdeu sua transparencia 0 espetaculo da natureza se empana e se turva A imagem do mundo depende da relaryao entre as consciencias sofre-lhe as vicissitudes 0 episodio de Bossey tennina pela destruiryao da transparencia do coraryao e simultaneamente por urn adeus ao brilho da natureza A possibilidade quase divina de ler nos coraryoes nao existe mais 0 campo se vela e a luz do murido se obscurece

o veu desceu entre Rousseau e ele proprio Ocultou-lhe sua natureza primeira sua inocencia E por certo entao Jean-Jacques se pas a fazer 0 mal (ficavamos menos envergonhados de agir mal comeryashyvamos a nos esconder 22) mas nao e responsavel pela entrada do mal no mundo e se comerya a se esconder e porque em primeiro lugar a verdade se escondeu Sua historia comeryara de maneira diferente A infancia fora de inicio confianrya e transparencia totais A memoria ainda pode mergulha-lo novamente nela e devolve-Io a limpidez de urn mundo rna is claro mas ele nao pode fazer com que ela nao tenha sido perdida e que tudo nao esteja obscurecido

Nao vemos a alma de outrem porque ela se esconde nem a nossa porque de modo algum temos espelho intelectuaP3

E preciso viver na opacidade24

o TEMPO DIVDDO E 0 MITO DA TRANSPARENCIA

Esse momen to de crise - em que desce 0 veu da separaryao em que 0 mundo se empana em que as consciencias se tornam opacas umas para as outras em que a desconfianrya torna para sempre a amizade impossivel - esse momenta tern sua data em uma historia marca 0

comeryo de uma perturbayao na felicidade infantil de Jean-Jacques Entao corney a uma nova epoca uma outra era da consciencia E essa nova era se define por uma descoberta essencial pela primeira vez a consciencia tern urn passado Mas ao enriquecer-se com essa descoberta ela descobre tambem uma pobreza uma falta essencial Com efeito a dimensao temshyporal que se cava atras do instante presente tornou-se perceptivel pelo proprio fato de que se esquiva e se recusa A consciencia se volta para urn mundo anterior do qual percebe simultaneamente que ele the pertenshyceu e que esta para sempre perdido No mom en to em que a felicidade infantillhe escapa ela reconhece 0 valor infinito dessa felicidade proibida Entao nao resta mais do que construir poeticamente 0 mito da epoca finda outrora antes que 0 veu se houvesse interposto entre nos e 0 mundo havia deuseuroamp lilt Iiam em nossos coraryoes e nada alterava a transpashy

22

rencia e a evidencia das almas Pennaneciamos com a verdade Na bio shygrafia pessoal assim como na historia da humanidade esse tempo esta situado rna is proximo do nascimento na vizinhanrya da origem Rousseau foi urn dos primeiros escritores (seria preciso dizer poetas) a retomar 0

milo platanico do exilio e do retorno para orienta-Io em direryao ao estado de infancia e nao mais a uma patria celeste

Quando se trata de evocar 0 tempo da transparencia 0 primeiro Discurso desenvolve imagens singularmente analogas as que se encollshytram no relato das Confissoes Como no epis6dio de Bossey ele fala da presenrya proxima dos deuses e urn tempo em que testemunhas divinas permanecem entre os hom ens e It~em em seus coraryoes e urn mundo em que as consciencias humanas se reconhecem por urn tinico olhar

E uma bela costa adomada apenas pelas maos da natureza para a qual s voltam incessantemente os olhos e da qual se sente afastar-se a contragosto Quando os homens inocentes e virtuosos amavam ler os de uses COIIIO

testelllunhas de suas aci5es moravam juntos sob as mesmas cabanas ums logo tomando-se maus cansaram-se desses incomodos espectadores 2j

Antes que a arte houvesse moldado nossas maneiras e ensinado noss paixoes a falar uma linguagem afetada nossos costumes eram rusticos mas naturais e a diferenca dos procedilllelltos alZull ciava ao primeiro oLhar ( do caraler A natureza hllmana no fundo nao era melhor mas os homens encontravam sua seguransa na facilidade de se penetrar reciprocalllente2(j

Previamente a toda teoria e a toda hipotese sobre 0 estado de natureza ha a intuiryao (ou a imaginaryao) de uma epoca comparavel ao que foi a infancia antes da experiencia da acusaryao injustificada A humanidadc s(gt esta entao ocupada em viver tranqiiilamente sua felicidade Urn infalivel equilIbrio ajusta 0 ser eo parecer Os homens se mostram e sao vistos tais como sao As aparencias extern as nao sao obstaculos mas espelhos fieis em que as consciencias se encontram e se harmonizam

A nostalgia se volta para uma vida anterior Mas se ela nos afasta do mundo contemporaneo nao nos faz abandonar 0 munch) humano nem a paisagem terrestre no horizonle da felicidade anterior ha essa mesma natureza e essa mesma vegetaryao que nos cercam hoj( ha essa floresta que mutilamos mas da qual restam ainda extensc)(s intactas por onde posso enveredar Sem que seja necessario invoc1I a intervenryao sobrenatural de urn demonio tentador e de uma Eva tentada a origem de nossa decadencia e explicavel por razoes bern hnmanas Porque 0 homem e perfectivel nao cessou de acrescentar suas invenqoes aos dons da natureza E desde entao a hist6ria universal euromhara~-ada pelo peso continuamente crescente de nossos artificios e de nosso or gulho adquire 0 andamento de uma queda aceleracla na corrupr fi n nbri mos os olhos com horror para urn mundo d( mascaras I ell ihl50cl

2 I

mortais e nada assegura ao observador (ou ao acusador) de que ele proprio seja poupado pel a doen~a universal

o drama da queda nao antecede portanto a existt~ncia terrestre Rousseau transporta 0 mito religioso para a propria historia divide-a em duas eras uma tempo estavel da inocencia reino tranqiiilo da pura natureza a outra historia em devir atividade culpada negayao da na shytureza pelo homem

Ora se a queda e nossa obra se e urn acidente da historia humana e preciso admitir que 0 homem nao esta naturalmente condenado a viver na desconfianya na opacidade enos vieios que as escoltam Estes sao a obra do hom em ou da sociedade Entao nao ha nada a1 que nos impeya de refazer ou de desfazer a historia tendo em vista redescobrir a transparencia perdida Nenhuma proibiyao sobrenatural a isso se opoe A essencia do homem nao esta comprometida mas apenas sua situar iio historica Talvez quisesses tu poder retroceder27 A pergunta perrnashynece suspensa mas em todo caso nao ha espada flaI1lejante que nos impeya 0 acesso do paraiso perdido Para alguns (em distantes costas) que dele nao sairam talvez ainda seja tempo de deter-sea E mesmo que por uma fatalidade puramente humana 0 mal seja irreversivel mesmo que nos seja preciso admitir que urn povo vicioso nao retoma jamais a virtude a historia nos propoe uma tarefa de resistencia e de recusa 0 minimo que poderiamos fazer se nao podemos tomar bons aqueles que nao 0 sao mais e conservar assim aqueles que tern a felicidade de se-Io29 Porque 0 advento do mal foi urn fato historico a luta contra 0 mal cabe tambem ao homem na historia

Rousseau nao duvida de que uma ayao seja possivel de que uma livre decisao possa consagrar-nos ao serviyo da verdade velada Mas quanta a natureza dessa decisao e dessa ayao ele ouve varios apelos e os exprime sucessivamente (ou simultaneamente) em sua obra reforma moral pessoal (vitam impendere vero) educayao do individuo (Emilio [Emile]) forrnayao politica da coletividade (Economia politica [Discours sur leconomie politique] Contrato social [Le contrat social)) A que se acrescenta em Jean-Jacques uma hesita~ao que orienta seu desejo ora no sentido de uma regressao temporal ora no sentido do presente mais proximo refugio de uma consciencia que se basta a si mesma mais raramente no sentido de uma SUperayaO em direyao ao futuro Alternadamente ele se entregara ao devaneio arcadico de urn retorno a floresta primitiva ou entao fara a defesa de uma estabilizayao conshyservadora em que a alma e a sociedade salvaguardariam 0 que Ihes resta ainda de puro e de original ou ainda trayara a ideia da felicidade futura do genero humano30 ou enfim construira fora do tempo uma Cidade virtuosa Instituiroes po[[ticas ideais De tantos designios desshy

2l

semelhantes que e tao dificil harrnonizar de maneira inteiramente satis shyfatoria e preciso reter esta unica coisa que tem em comum sua unidade de i1ltenpio que visa a salvaguarda ou a restaurayao da transparencia comprometida No apelo apaixonado que Rousseau dirige a seus cooshytemporaneos pode nao haver nada mais que urn convite a cultivar 1

moral da boa vontade e da boa consciencia e ai pode-se ler tambClII um convi te a transforrnar a sociedade pela a9ao politica efetiva Essa ambigiiidade e emharayosa Mas de uma maneira nao ambigua Rousseau em primeiro lugar nos convoca a querer 0 retorno da rransparencia para nos e em nossas vidas Nao ha como equivocar-se sobre esse desejo tao poderoso quanta simples 0 mal-entendido come~ani no momento em que esse desejo se vir confrontado com tarefas concretas com sishytua90es problematicas Pois do desejo de transparencia a transparencia possuida a passagem nao e instantanea 0 acesso nao e im ediato Sc se empreende libertar-se da menti ra cedo ou tarde nao se pode impedir colocar a questao dos meios (que sao diversos e contraditorios) e dOl afiio que tanto pode fracassar como ter exito e que corre 0 risco dmiddot~

nos fa zer recair no mundo da ment ira e da opacidade

SABER HIST6R1CO E VISAO POETICA

Mas a que distancia estamos da transparencia perdida Que espesshysuras dela nos separam Qual e 0 espa~o a transpor para redescobri-la 1

No Discurso sobre a origem da desigualdade [Disc ours sur jorigillC de inegaire1 Rousseau interpoe multidoes de seculos 0 afastamento e imenso e a I uz da prime ira felicidade parece quase apagar-se na distanci das eras 0 que se pode saber de urn periodo tao longinquo A razao nao pade evitar a formulayao de algumas duvidas 0 tempo da transparencia realmente ocorreu ou ai nao est amais que uma fic~iio que inventamos para poder reconstruir especulativamente a bist6ria a partir de uma ori shygem Em uma passagem do segundo Discurso em que Rousseau vigia manifestamente seu pensamento nao chega ele a supor que 0 estado de natureza Utalvez nao lenha absolutamente existido 0 estado de natureza e pois tiio-somente 0 postulado especulativo que uma historia hipote shytiea se confere principio sobre 0 qual a deduyao podeni apoiar-se em busea de uma sene de ca usas e de efe itos bem encadeados para conslruir a expLicayao genetiea do mundo ta l como ele se oferece aos nossos olhos Assim procedem quase todos os homens de ciencias e os fil6sofos un epoca que creem nada ter demonstrado se na o remontaram as fO llt simples e necessarias de todos os fenomenos fazem-se ent aCI CIS hb t riadores das ori2ens da terra da vida das fnc lIlrlulfgts cia alllla ds qoci

H

dades Dando aespeculayao 0 nome de observayao esperam estar isentos de qualquer outra prova

De fato amedida que Rousseau desenvolve sua ficyao historica esta perde seu carater de hipotese uma especie de confianya e de emshybriaguez vern abolir toda prudencia intelectual a descriyao desse estado primeiro muito proximo ainda da animalidade torna-se a evocayao enshycantada de urn Iugar onde viver Vma nostalgia elegiaca se comove a ideia dessa vida errante e sa com seu equilIbrio sensitivo com sua justa suficiencia Imagem por demais imperiosa por demais profundashymente satisfatoria para nao corresponder no espirito de Rousseau aestrita verda de historica Vma certeza ganha corpo que e de essencia poetica mas que se engana sobre sua natureza quer falar a linguagem da historia e tomar por testemunha a erudiyao mais seria A convicyao se impoe irrefutavelmente tais foram sem contestayao os primordios da humanishydade tal foi a primeira fisionomia do homem Rousseau conta a si mesmo a historia objetiva de uma Idade da transparencia para legitimar sua nostalgia A certeza de Rousseau e a de alguem que se lembra ela e acanyada no contato e seus discipulos ja nao verao nele 0 autor de uma historia hipotetica mas 0 vidente (Seher dira H6lderlin) que detem a memoria de urn passado muito antigo de um tempo rna is belo Na ode inacabada intitulada Rousseau H6lderlin escreve

auch dir auch dir Erfreuet die feme Sonne dein Haupt

Und Strahell ails der sclollem Zeit Es Haben die Boten dein Herz gefllndell 31

[para ti tarn bern para ti tambern o distallte sol ilumina lua fronte com Slla alegria E os raios vindos de uma epoca mais bela Eles os rncnsageiros encontraram tell caratiio]

H61derlin aqui faz de Rousseau urn desses interpretes a quem e concedido ser tocado pela luz de uma era vindoura ou de urn passado desaparecido

o DEUS GLA UCO

Pode-se dizer ainda que a transparencia original desapareceu Reshydescoberta na memoria nao e ela entao retomada na transparencia propria da memoria e por isso mesmo salva Desertou-nos inteiramente ou estamos ainda em sua vizinhanya Rousseau hesita entre duas respostas nntradit-cirias lZrn dado momento 0 mito bifurca em duas versoes A

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primeira afirma que a alma humana degenerou que se desfigurou que sofreu uma alterayao quase total para jamais reencontrar sua beleza prime ira A segunda versao em lugar de uma defonnayao evoca uma especie de encobrimento a natureza primitiva persiste mas oeulta cershycada de veus superpostos sepultada sob os artificios e no en tanto sempre intacta Versao pessimista e versao otimista do mito da origem Rousseau sustenta ambas alternadamente e por vezes mesmo simultaneamente Diz-nos que 0 homem destruiu de modo irremediavel sua identidade natural mas proclama tambem que a alma original sendo indestrutivel permanece para sempre identica a si mesma sob as manifestayoes externas que a mascaram

Rousseau retoma por sua conta 0 mito platonico da estatua de Glauco

Semelhante aedtatua de Glauco que 0 tempo 0 mar e as tempestades haviam desjigurado tanto que se parecia menos com um deus do que com urn animal feroz a alma humana alterada no seio da sociedade por mil causas continuashymente renascentes pela aquisitiio de uma multidao de conhecimentos e de eITOS pelas mudantas ocoITidas na constituitiio dos carpos e pelo choque continuo das paix6es por assim dizer mudou de aparencia a ponto de 5(r quase irreconhecivel 32

Mas ha aqui um por assim dizer e urn quase que devolvem todas as esperanyas A imagem da estatua de Glauco no contexto de Rouss~au conserva algo de enigmatico Seu rosto foi corroido e mutilado pelo tempo perdeu para sempre a forma que tinha ao sair das maos do escultor Ou entao foi ele recoberto por uma crosta de sal e de algas sob a qual a face divina conserva sem nenhuma perda de substancia seu modelo original Ou ainda a fisionomia original nao e mais que uma ficy ao destinada a servir de norma ideal para quem quer interpretar 0 estado atual da humanidade

Nao e uma empresa leve deslindar 0 que ha de originario e de artificial 111

natureza atual do homem e conhecer bem urn estado que nao existe milis que provavelmente nao existira jamais e sobre 0 qual entretanlo enecesshysario ler not6es justas para bern avaliar nosso estado presenteD

Permanecer 0 que se era deixar-se alterar pela mudanya tocamos aqui em categorias que para Rousseau sao 0 equivalente das categorias teologicas da perdiyao e da salvayao Rousseau nao cre no inferno mas em compensayao acredita que a perda da semelhanya e uma infeliddad( essencial enquanto que permanecer semelhante a si mesmo euma malcirtl de salvar sua vida ou ao menos uma promessa de salvarao 0 11111raquo0

historico que para Rousseau nao exclui a ideia do des(llvolvilll(ntn organico permanece carregado de culpabilidade 0 movilflcnto dn hlslOliI

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e urn obscurecimento e mais responsavel por uma deformal)ao do que por urn progresso qualitativo Rousseau apreende a mudan9a como uma corruP9aO34 no curso do tempo 0 homem se desfigura se deprava Nao e apenas sua aparencia mas sua propria essencia que se torna irreconheshycivel Essa versao severa (e por assim dizer calvinista) do mito da origem Rousseau a pro poe em diversos momentos de sua obra Descobre-se na origem dessa ideia uma angustia muito real avivada pelo sentimento do irreparavel Rousseau muitas vezes afirmou que 0 mal era sem retorno que uma vez transposto urn certo Iimiar fatal a alma estava perdida e nao tinha outr~ recurso senao aceitar sua perda Urn natural sufocado nos diz ele nao volta jamais e perde-se entao ao mesmo tempo 0 que se destruiu e 0 que se fez 35

Desafortunadosl 0 que nos tomamos nos Como deixamos de ser 0 que fomos36

Deforma9aO em que parece mais nada subsiste da forma original Ele pr6prio sentiu-se atingido e ameal)ado

Os gostos rna is vis a mais baixa molecagem sucederam-se as minhas amaveis diversoes sem delas me deixar mesmo a menor ideia Epreciso que a despeito da educa9ao mais honesta eu tivesse ulna grande inclinafGo a degenerar pois isso se deu muito rapidamente sem a menor dificuldade e jamais Cesar tao precoce tomou-se tao prontamente Laridon37

A essa passagem que segue de perto 0 episodio de Bossey pode-se acrescentar urn texto do final da vida de Rousseau testemunho tanto mais significativo quanto data de uma epoca em que este nao cessa de afmnar sua permanente fidelidade a si mesmo

Tal vez sem me dar conta eu meslIlo tenha 11ludado lais do que seria preciso Que natural resistiria sem se alterar a uma situa9ao semeIhante a minha38

Pergunta que ele se apressa em responder pela negativa Pois preshycisamente no momenta em que tudo muda para ele no momento em que acredita viver em urn sonho Rousseau se opoe com todas as suas forl)as aangustia da aItera9ao interior e luta pel a salvaguarda de sua identidade Alguma coisa mudou mas sua alma permaneceu a mesma Ele repele para 0 exterior a responsabilidade da alteral)ao Foram os outros que sofreram a metamorfose mais surpreendente e que eles proprios irrecoshynheciveis desfiguram sua imagem e suas obras Quanto a ele mesmo permaneceu 0 que era Seus sentimentos mudaram porque as realidades externas nao sao mais as mesmas

Mas as coisas mudaram muito de figura desde que minhas infelicidades COlle~aram Vivi desde entao em uma gera9ao nova que nao se parecia de modo nenhurn com a prinnira e meus proprios sentimentos pelos outros

2M

sofreram mudan9as que encontrei nos deIes A mesmas pessoas que vi sucessivamente nessas duas gera90es tao diferentes assimitaram-se por assim dizer a uma e a outra39

[] Eu 0 mesmo homem que era 0 mesmo que sou ainda

Sob a mascara que os outros impoem de fora a sua fisionomia Jean-Jacques nao deixou de ser Jean-Jacques No momento em que esta mais sombriamente obsedado pela perseguil)ao replica contando a si mesmo a versao otimista do mito da origem nada foi perdido 0 tempo nao alterou 0 essencial s6 corroeu na superficie 0 mal vern de fora mas permanece fora 0 rosto de Glauco permaneceu intacto sob a espuma que o desfigura Jean-Jacques apIica entao a si mesmo (e s6 a ele) uma ideia que formulara anteriormente a respeito do homem em geral e que opunba a nOl)ito da natureza perdida e da natureza oculta de uma natureza que se pode mascarar mas que jamais sera destruida Demasiadamente poshyderosa e talvez demasiadamente divina para que possamos transforma-Ia ou suprimi-Ia ela elude nossos empreendimentos profanadores e se reshyfugia nas profundezas onde esta apenas dissimulada sob involucros exteriores Esta esquecida mas nao realmente perdida e se a memoria nos faz entreve-Ia no fundo do passado e porque estamos ja proximos de Iiberta-la de seus veus e de redescobri-Ia presente e viva em nos mesmos

Os males da alma [ ] alterap5es extemas e passageiras de urn ser imortal e simples apagam-se insensivelmente e deixam-no elll suaorilla origial que nada poderia mudar41

Entao Rousseau invoca com confianl)a uma natureza que nada destroi torna -se 0 po eta da permanencia desvelada Descobre em si mesmo a proximidade da transparencia original e esse homem da nashytureza que ele buscara na profundeza das eras agora reencontra-Ihe os tral)os originais na profundeza do eu Aquele que sabe recolher-se em si mesmo pode ver resplandecer novamente a fisionomia do deus subshymerso liberta da ferrugem que a mascarava

De onde 0 pintor e 0 apologista da natureza hoje tao desfigurada e tao caluniada pode haver tirado seu modelo se nao de seu proprio corarao Descreveu-a como eIe proprio se sentia Os preconceitos aos quais nao estava subjugado as paixOes facticias de que nao era presa nao ofuscavam de modo ncnhum aos seus olhos como aos dos outros esses prirnciros traros till) geralmente esquecidos ou ignorados Esses traros tao novos para ncgts l~ tilt) verdadeiros uma vez tra9ados encontravam ainda no fundo dos corarOcs II atestarao de sua justeza mas jamais se teriam mostrado novarncntc p)r si mcslllos se 0 historiador da natureza nao hOllvcsse cOIll~fld() por wtirlr 1

ferrugem que os oCllltava S6 lima vida rctirada c solitaritl l1Il gosto vivo pete dcvaneio e pela contclllpla9ao 0 lubito dc lc()lIll~r-s( ()III si c I( II I

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buscar na calma das paixoes esses primeiros trayos desaparecidos na multishydao podiam-no fazer redescobri-los Em uma palavra era preciso que um homem se houvesse pintado a si mesmo para nos mostrar assim 0 homem primitivo 42

o conhecimento de si equivale a uma reminiscencia mas nao e de maneira nenhuma por urn esfonyo de memoria que Rousseau reencontra esses primeiros traltyos que pertencem contudo a urn mundo anterior Para descobrir 0 homem da natureza e para tornar-se seu historiador Rousseau nao teve de remontar ao comeltyo dos tempos bastou-Ihe pintar a si mesmo e reportar-se it sua propria intimidade it sua propria natureza em urn movimento a uma so vez passiv~ e ativo buscando-se a si mesmo abandonando-se ao devaneio 0 recurso a interioridade atinge a mesma realidade decifra as mesmas normas absolutas que a exploraltyao do pass ado mais remoto Assim 0 que era primeiro na ordem dos tempos historicos se redescobre como 0 que e mais profundo na experiencia atual de Jean-Jacques A distancia historica nao e rna is que distancia interior e essa distancia e logo transposta para aquele que sabe abandonar-se plena mente ao sentimento que se desperta nele Doravante a naturezamiddot (como a presenltya de Deus para santo AgostinhO)43 deixando de ser 0

que ha de mais longinquo atras de nos oferece-se como 0 que e mais central em nos Como se ve a norma ja nao e transcendente e imanente ao eu Basta ser sincero ser eu mesmo e entao 0 homem da natureza nao e mais 0 distante arquetipo ao qual me refiro ele coincide com a minha propria presenltya com a minha propria existencia A transparencia antiga resultava da presenltya ingenua dos homens soh 0 olhar dos deuses a nova transparencia e uma relaltyao mterlor 10 eu uma relaltao cc sigo mesmo realiza-se na limpidez do olhar sobre si mesmo que permite a Jean-Jacques pintar-se tal como e Vma imagem pode entao surgir que equivale (Rousseau nos garante isso) it historia autentica da especie inteira e que ressuscita 0 passado perdido para revela-lo como 0 presente etemo da natureza Os homens ai redescobrem a certeza de uma semelhanltya comum (Cada homem carrega a forma inteira da humana condi9ao dizia Montaigne) Porque Jean-Jacques soube abandonar-se a si mesmo os homens se reconhecerao por sua vez Atras de suas falsas verdades reencontram uma presenltya esquecida uma forma que permanecia intacta sob os veus ei-Ios libertos do esquecimento

Pode-se entao recobrar a natureza primeira do homem sem ter de remontar as origens rea is e sem se aventurar nas r~construltyoes historicas Rousseau se ex plica sobre isso de uma maneira bastante clara no segundo Discurso on de 0 vemos renunciar bern facilmente a toda asser9ao sobre as verdadeiras origens para se reservar 0 direito de esclarecer por via de hipotese a natur(za das coisas

w

Nao se devem tomar as investigayoes nas quais se pode entrar sobre esse assunto por verdades historicas mas apenas por raciocfnios hipoteticos e condicionais mais aptos a esclarecer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem 44

Mas a natureza do homem pode ser apreendida independentemente da hisforia humana Rousseau hesita De fato se nao pode dispensar a n09ao de uma natureza humana essencial tam bern nao pode renunciar it ideia de urn devir historico que Ihe permita dar uma explicaltyao plausivel da aIteraltyao que a humanidade sofreu ao afastar-se de suas bem-aventushyradas origens Rousseau desejaria reservar-se conjuntamente a possibilishydade de acusar a perversao pela qual a sociedade e responsavel e conservar o direito de proclamar a permanencia da bondade original Ha a1 uma dupla afirmaltyao que pode passar por contraditoria e que nao se deixou de criticar em Jean-Jacques Pois na medida em que a sociedade e obra humana deve-se admitir que 0 homem e cuJpado e carrega a culpa de todo 0 mal que fez a si mesmo mas por outro lado na medida em que o homem nao deixa de ser urn filho da natureza ele conserva uma inocencia indestrutivel Como conciliar a afinna9aO 0 homem e natushyralmente born e esta outra Tudo degenera entre as maos do homem

UMA TEODICEIA QUE INOCENTA 0 HOMEM E DEUS

Cassirer mostrou-o bem 45 os postulados de Rousseau permitem resolver 0 problema da teodiceia sem imputar a origem do mal nem a Deus nem ao homem pecador

[Nao e) necessario supor 0 homem mau por sua natureza quando se [pode] assinalar a origem e 0 progresso de sua maldade Estas reflexoes me conduziram a novas investigayoes sobre 0 espirito humano considerado no estado civil e julguei entao que 0 desenvolvimento das luzes e dos vicios sc fazia sempre na mesma proporyao nao nos individuos mas nos povos distinyiio que sempre fiz cuidadosamente e que nenhum daqueles que me atacaram jamais pode conceber46

o mal se produz pela historia e pela sociedade sem alterar a essencia do individuo A culpa da sociedade nao e a culpa do homem essencial Illas a do homem em relaltyao Ora com a condiltyao de dissociar 0 hommll cssencial e 0 homem em relaltyao com a condi9aO de separar sociabilidadtgt e natureza humana pode-se atribuir ao mal e a alteraltyiio hist6rica lima s itu1ltyiio periferica em relaltyao a permanencia central cia natureza original o n1 tI t partir dar podera confundir-se com a paixao do h OIllNn 101

tqlli lo que Iha 6 exterior peo de fo ra a prtlig io 0 pnrect r a P OSSl uu

H

bens materiais 0 mal e exterior e e a paixao pelo exterior se 0 homem se entrega inteiro asedwao dos bens externos sera inteiramente submeshytido ao imperio do mal Mas recolher-se em si sera para ele em qualquer tempo 0 recurso da salvatao Rousseau nao se content a portanto em reprovar a exterioridade como quase todos os moralistas haviam feito antes dele incrimina-a na propria definisao do mal Essa condenatao nao passa da contra partida de uma justificasao que pretende salvar - de uma vez por todas - a essencia interna do homem Repelido para a periferia do ser rechasado para 0 mundo da relasao 0 mal nao tera 0 mesmo estatuto ontologico que a bondade natural do homem 0 mal e veu e velamen to e mascara tern acordo com 0 facticio e nao existiria se 0

hom em nao tivesse a perigosa liberdade de negar pelo artificio 0 dado natura l E entre as maos do homem e nao em seu corayao que tudo degenera Suas maos trabalham mudam a natureza fazem a h istoria ordenam 0 mundo exterior e produzem com 0 tempo a diferenya entre as epocas a luta entre os povos a desigualdade entre os particulares

Em uma mesma pagina (prefacio de Narciso) Rousseau protestara contra falsa m osofia que sustenta que os homens sao por toda parte os mesmos mas que as vicios do mundo middot contemporaneo nao pershytencem tanto ao homem quanta ao homem malgovemado 47 Contradisao si gnificativa Rousseau desse modo afinna ao mesmo tempo a pershymanencia de uma inocencia essencial e 0 movimento da historia que e alterasao corruptao moral degenerescencia politica e que promove o estado de conflito e a injustisa entre os homens 48

Nas teorias do progresso que serao propostas rna is tarde intervira uma hipotese bastante analoga que visara conciliar 0 postulado da pershymanencia da natureza human a com a ideia de uma mudansa coletiva 0 homem pem1anece 0 mesmo a humanidade progride sempre dira Goethe A validade do pessimismo historico do segundo Discurso foi contestada e admitiu-se mais comumente a tese otimista de Goethe Entretanto do ponto de vista filosOfico 0 problema e ide ntico Tanto em urn como no outro e preciso conci liar a estabilidade da natureza humana e a mobilidade do desenvolv imento real da hist6ria e preciso explicar por que 0 homem (enquanto individuo) possui 0 privilegio de pennanecer 0 mesmo ao passo que a human idade (enquanto coletishyvidade) esta sujeita a mudansa

Rousseau contudo nao tern necessidade da hist6ria a nao ser para the pedir a explicasao do mal E a ideia do mal que da ao sistema sua dimensao historica 0 devir e 0 movimento pelo qual a humanidade se toma culpada 0 homem nao e naturalrnente vicioso tornou-se vishycioso 0 retorno ao bern coincide entao com a revolta contra a hist6ria e em particular contra a situayao historic a atual Se e verdade que 0

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pensamento de Rousseau e revolucionario e preciso acrescentar de imeshydiato que ele 0 e em nome de uma natureza humana eterna e nao em nome de urn progresso historico (Sera preciso interpretar a obra de Rousseau para ver nela urn fator decisivo no progresso politico do seculo XVIII) Como veremos seu pensamento social consciente da necessidade de afrontar 0 mundo e os homens tais como sao visa sobretudo insshytaurar ou restaurar a soberania do imediato isto e a reino de urn valor sobre 0 qual a duratao nao tern poder

H

2

CRiTICA DA SOCIEDADE

Rousseau situa-se em seu seculo entre os escritores que contestam os valores e as estruturas da sociedade momirquica Por mais distintos que tenham sido a contestayao cria entre esses autores uma semeihanya e Ihes da urn ar de fratemidade cada urn deles podera ser considerado a algum titulo como urn agente ou urn anunciador da proxima Revoluyao Assim se ex plica a reconciliayao postuma de Rousseau e de Voltaire sUa comum apoteose sua promoyao a ciasse de divindade bifronte ou de diade tutelar A gravura popular os imortahzani lade a lade metamorfoshyseados em genios lampadOforos com urn candelabro na mao propagando diante deles as luzes e radiantes de brilho luciferiano

Rousseau quer apreender 0 principio do mal Poe em causa a soshyciedade a ordem social em seu conjunto 0 esforyo critico nele nao se dispersa e nao se atribui como tarefa afrontar uma a uma as multiplas manifestayoes do mal Ele remonta a uma causa geral que 0 dispensa de atacar isolada mente tal abuso particular tal usurpayao tal impostura (De resto ele e por demais egocentrico para assumir 0 papel de defensor dos oprimidos Voltaire tem seu caso Calas e dez outros semelhantes Rousshyseau esta sobrecarregado pelo caso Rousseau)

Rousseau faz a historia de seus pensamentos observou uma discorshydancia eotre os atos e as palavras dos homens essa diferenya se explica por uma outra diferenya a do ser e do parecer mas e preciso ainda buscar-Ihe a causa Rousseau assim a formula

Ellcontrei-a em nossa ordem social que em todos os sentidos tontnlria a natureza qlle nada destr6i tiraniza -a continuamente e sem cessar a faz exigir

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seus direitos Acompanhei essa contradiriio em suas conseqiiencias e vi que tao-somente ela explicava todos os vicios dos homens e todos os males da sociedade I

Nessa passagem que resume muito firmemente a substancia dos dois Discursos Rousseau define da maneira mais clara 0 objeto eo aIcance de sua eritica social a contestayaO diz respeito a sociedade enquanto esta e contraria a natureza Essa sociedade negadora da natureza (da ordem natural) nao suprimiu a natureza Mantem com ela urn eonflito permanente de onde nascem os males e os vcios de que sofrem os homens A critica de Rousseau esboya portanto uma negayao da negayao acusa a civili shyzayao cuja caracteristica fundamental e sua negatividade em relayao a natureza A cultura estabelecida nega a natureza - e essa a afirmayao patetica dos dois Discursos e do Emilio As falsas luzes da civilizayao longe de iluminar 0 mundo humano velam a transpareneia natural separam os homens uns dos outros particularizam os interesses destroem toda possibili dade de confianya reciproca e substituem a eomunicayao esseneial das almas por urn comercio faeticio e desprovido de sineeridade assim se constitui uma soeiedade em que cada urn se isola em seu amor-proprio e se protege atnis de uma aparencia mentirosa Paradoxo singular que de urn mundo em que a relayao economica entre os homens parece rna is estreita faz efetivamente um mundo de opacidade de mentira de hipocrisia

Queixo-me de que a filosofia afrouxe os laros da sociedade que sao formados pela estillQ e pela bellevolencia IIttuas e queixo-me de que as ciencias as artes e todos os outros objetos de comercio estreitem os laros da sociedade pelo inleresse pessoal E que com efeito niio se pode estreitar urn desscs laros sem que 0 outro nao se afrouxe na mesma proporriio Portanto nada ha nisso de contradiriio2

Rousseau confronta aqui de maneira signifieativa dois tipos de relacao que se opoem como a transparencia a opaeidade A estima e a benevolencia eonstituem urn layo pelo qual os homens se reunem imediatamente nada se interpoe entre as consciencias elas se oferecern espontaneamente numa evideneia total Em compensayao os layos orshydenados pelo interesse pessoal perderam esse carater imediato A relayao ja nao se estabeleee diretamente de consciencia a conscieneia ela agora p3ssa por coisas A perversao que da resulta provem nao apenas do fato de que as eoisas se interpoem entre as eonseiencias mas lambcm do fato de que os homens deixando de identificar seu interesse com sua existencia pessoal identificam-no doravante com os objetos illiN postos que acreditam indispensaveis a sua felicidade 0 eu do hOllwllI social nao se reconheee mais em si mesmo mas se buse no exlcmiddotrim

ntrl as coisns sells meios se tornam sell filn 0 homclIl illkirll

torna coisa ou escravo das coisas A critica de Rousseau den uncia essa alienaYao e propoe como tarefa um retorno ao imediato

A sociedade civilizada desenvolvendo sempre mais sua oposiYao a natureza obscurece a relaYao imediata das consciencias a perda da transparencia original vai de par com a alienaYao do homem nas coisas materia is A analise de Rousseau sobre esse ponto prefigura as de Hegel e de Marx tanto mais se lhes assemelha quanta se apoia em uma descriYao do devir historico da humanidade Com efeito 0 Discurso sabre a origem da desigualdade e uma historia da civilizaYao como progresso da negaYao do dado natural progresso ao qual corresponde uma degradaYao da inoshycencia original A historia das tecnicas e ex posta em estreita ligaYao com a historia moral da humanidade Mas a diferenYa do esforYo filosOfico do seculo XIX e em contraste com as pretensoes positivistas de alguns de seus contemporaneos Rousseau procura fundar urn julgamento moral referente a historia de preferencia a estabelecer um saber antropologico E como moralista que ele escreve a historia da moral Dai 0 aspecto ambiguo de sua demonstraYao As fases pelas quais 0 homem passou 0

est ado a que chegou devem em primeiro lugar ser estabelecidos como fatos uma vez estabelecidos de vern ser aceitos a humanidade sofreu transformaYoes inelutaveis com isso chegou fatalmente a seu estado presente eis 0 que est a fora de contestaYao Mas a validade do fato nao nos permite prejulgar do direito Os fatos historicos nao justificam nada a historia nao tern legitimidade moral e Rousseau nao hesita em condenar em nome dos val ores eternos 0 mecanismo historico do qual mostrou a necessidade e que estendeu as proprias funYoes mora is

Tendo retraYado a progressao da cultura e tendo-a definido como negaYao da natureza Rousseau opoe a cultura uma recusa uma nova negaYao que e a consequencia de urn juizo moral e que se vale de urn absoluto etico A indignaYao de Rousseau (ele proprio homem natural) contra a sociedade (criaYao historica) e a expressao patetica desse conflito Ele toma a palavra para dizer nao a antinatureza A situaYao presente com seu luxe e sua miseria e ao mesmo tempo historicamente motivada e moralmente inaceitavel Rousseau compreende a sociedade de seu tempo mas the opoe uma reprovaYao escandalizada 0 pensamento de Rousseau nao podera portanto deter-se ai Pois compreender urn mundo opaco nao e ainda redescobrir ou restabelecer a transparencia Longe de equivaler para Rousseau a uma adesao intelectual a compreensao so estabelece 0 fato para opor-Ihe imediatamente 0 direito Ele protesta contra 0 metodo de Grotius sua maneira de raciocinar e de estabelecer sempre 0 direito pelo fato) Rousseau julga e condena em nome do direito os fatos dos quais prova a necessidade historica E como precisa para realizar 0 ideal da transparencia de urn mundo em que 0 fato coincide

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com 0 direito buscara esse mundo ora aquem da historia - nos antigos tempos em que 0 progresso corruptor nao existe ainda - ora alem em urn futuro abstrato em que a desordem atual seria superada por uma ordem rna is perfeita

Page 4: Jean Starobinski - Jean-jacques Rousseau Transparencia e Obstaculo

Faz agora quase cinqiienta anos dessa aventura e nao tenho medo de ser hoje punido uma segunda vez pelo mesmo fato Pois bern Declaro diante do Ceu que eu era inocente

Nao tinha ainda bastante raziio para sentir quanta as aparencias me condenavam e para me colocar no lugar dos outros Mantinha-me no meu lugar e tudo 0 que sentia era 0 rigor de urn castigo terrivel por urn crime que nao cometera 17

Rousseau esta aqui em situa9ao de acusado (No primeiro Discurso ele desempenha 0 papel do acusador mas a partir do momento em que encontrar a contradi9ao ele se achara novamente em situa9ao de acusado) A experiencia cuja descri9ao acabamos de ler nao confronta abstratamente a n09ao de realidade e a n09ao de aparencia e a oposi9ao perturbadora do ser-inocente e do parecer-culpado Que desarranjo de ideias Que desorshydem de sentimentos Que perturba9ao 18 Ao mesmo tempo em que se revela confusamente a ruptura ontologica do ser e do parecer eis que 0 misterio da injusti9a se faz sentir de modo intoleravel a essa crian9a Ela acaba de aprender que a intima certeza da inocencia eimpotente contra as provas aparentes da culpa acaba de aprender que as consciencias sao separadas e que e impossivel comunicar a evidencia imediata que se experimenta em si mesmo Desde entao 0 paraiso esta perdido pois 0 paraiso era a transparencia reciproca das consciencias a comunica9ao total e confiante 0 proprio mundo muda de aspecto e se obscurece E os termos de que Rousseau se serve para descrever as conseqiiencias do incidente do pente quebrado assemelham-se estranhamente as palavras pelas quais 0 primeiro Discurso pinta 0 cortejo de vicios que irrompe des de que nao se ousa rna is parecer 0 que se e Nos dois textos Rousseau fala de urn desaparecimento da confianfa depois evoca urn veu que se interpoe

Permanecemos ainda em Bossey alguns meses Ali estivemos como nos representam 0 primeiro homem ainda no paraiso terrestre mas tendo deixado de goza-lo Era em aparencia a mesma situa9ao e de fato toda uma outra maneira de ser 0 apego 0 respeito a intimidade a confia1Ua nao uniam mais os alunos a seus guias ja niio os olhavamos como deuses que liam em nossos cora90es ficavamos menos envergonhados de agir mal e mais temerosos de ser acusados com~avamos a nos esconder a nos rebelar a mentir Todos os vicios de nossa idade corrompiam nossa inocencia e enfeiavam nossas brincadeiras Ate 0 campo perdeu aos nossos olhos esse atrativo de d09ura e de simplicidade que chega ao cora9ao Parecia-nos deserto e sombrio como que se cobrira de urn veil que nos ocultava-lhe as

belezas19

As almas nao se encontram mais e tern prazer em ocultar-se Tudo esta perturbado e a crian9a pun ida descobre essa incerteza do conheshycimento de outrem de que se lamentani no primeiro Discurso Portanto

II

jamais se sabera bern com quem se trata A catastrofe e tanto maior para Jean-Jacques quanta 0 separa precisamente das pessoas que estima e que mais respeita20 A ruptura constitui urn pecado original mas urn pecado tanto mais cruelmente imputado quanta Jean-Jacques nao e por ele responsavel

De fato e preciso observar que em todo 0 relato do incidente do pente ninguem carrega a responsabilidade da intrusao inicial do mal e dOl separa9ao E urn concurso infeliz de circunstancias Urn simples mal-enshytendido Em parte alguma Rousseau diz que os Lambercier sao rna us e injustos Descreve-os ao contrario como seres doces bastante razoashyveis e de uma justa severidade Apenas estao erradosjoram enganados pela aparencia dajustifa (segundo a senten9a liminar do primeiro Discurshyso) e a injusti9a se produz como pelo efeito de uma fatalidade impessoa As aparencias estao contra Rousseau A convic9ao era forte demais Portanto nao ha culpado em parte alguma ha apenas uma imputa9ao de crime urn parecer-culpado que surgiu como por acaso e precipitou autoshymaticamente a puni9ao As pessoas sao todas inocentes mas suas rela1oes estao corrompidas pelo parecer e pel a injusti1a

o maleficio da aparencia a ruptura entre as consciencias poem fim a unidade feliz do mundo infantil Doravante a unidade devera ser reconquistada redescoberta as pessoas separadas deverao reconciliar-se a consciencia expulsa de seu paraiso devera empreender uma longa viagem antes de retornar a felicidade ser-Ihe-a preciso buscar uma outrn ventura totalmente diferente mas na qual seu primeiro estado nao cleishyxara de ser-Ihe totalmente restituido

A revela9ao da mentira da aparencia e sofrida a maneira de um ferimento Rousseau descobre 0 parecer como vitima do parecer No instante em que percebe os limites de sua subjetividade ela Ihe e imposta como subjetividade caluniada Os outros 0 desconhecem 0 eu sofre sua aparencia como uma denega9ao de justi9a que the seria infligida por aqueles pelos quais queria ser amado

A estrutura fenomenal do mundo e portanto posta em questao apenas indiretamente A descoberta do parecer aqui nao e de modo algum 0 resultado de uma reflexao sobre a natureza ilusoria da realidade percebida Jean-Jacques nao e urn sujeito filosOfico que analisa 0

espetaculo do mundo exterior e que 0 poe em duvida como uma aplTencia formada pela media9ao enganadora dos sentidos Jean-Jacques descobrl que os outros nao vao ao encontro de sua verdade de sua inocencia lil sua boa-fe e e apenas em seguida que 0 campo se obscurcce eo s( wla Antes que ele se experimente distante do mundo 0 eu sofrell a exp~ricllcia de sua distancia em rela9ao aos outros 0 maleficio da aparcllcia 0 afingt em sua propria existencia antes de altcrar a figura clo nlulldl) B 110

II

coraryao do homem que esta a vida doespetaculo da natureza21 Quando o coraryao do homem perdeu sua transparencia 0 espetaculo da natureza se empana e se turva A imagem do mundo depende da relaryao entre as consciencias sofre-lhe as vicissitudes 0 episodio de Bossey tennina pela destruiryao da transparencia do coraryao e simultaneamente por urn adeus ao brilho da natureza A possibilidade quase divina de ler nos coraryoes nao existe mais 0 campo se vela e a luz do murido se obscurece

o veu desceu entre Rousseau e ele proprio Ocultou-lhe sua natureza primeira sua inocencia E por certo entao Jean-Jacques se pas a fazer 0 mal (ficavamos menos envergonhados de agir mal comeryashyvamos a nos esconder 22) mas nao e responsavel pela entrada do mal no mundo e se comerya a se esconder e porque em primeiro lugar a verdade se escondeu Sua historia comeryara de maneira diferente A infancia fora de inicio confianrya e transparencia totais A memoria ainda pode mergulha-lo novamente nela e devolve-Io a limpidez de urn mundo rna is claro mas ele nao pode fazer com que ela nao tenha sido perdida e que tudo nao esteja obscurecido

Nao vemos a alma de outrem porque ela se esconde nem a nossa porque de modo algum temos espelho intelectuaP3

E preciso viver na opacidade24

o TEMPO DIVDDO E 0 MITO DA TRANSPARENCIA

Esse momen to de crise - em que desce 0 veu da separaryao em que 0 mundo se empana em que as consciencias se tornam opacas umas para as outras em que a desconfianrya torna para sempre a amizade impossivel - esse momenta tern sua data em uma historia marca 0

comeryo de uma perturbayao na felicidade infantil de Jean-Jacques Entao corney a uma nova epoca uma outra era da consciencia E essa nova era se define por uma descoberta essencial pela primeira vez a consciencia tern urn passado Mas ao enriquecer-se com essa descoberta ela descobre tambem uma pobreza uma falta essencial Com efeito a dimensao temshyporal que se cava atras do instante presente tornou-se perceptivel pelo proprio fato de que se esquiva e se recusa A consciencia se volta para urn mundo anterior do qual percebe simultaneamente que ele the pertenshyceu e que esta para sempre perdido No mom en to em que a felicidade infantillhe escapa ela reconhece 0 valor infinito dessa felicidade proibida Entao nao resta mais do que construir poeticamente 0 mito da epoca finda outrora antes que 0 veu se houvesse interposto entre nos e 0 mundo havia deuseuroamp lilt Iiam em nossos coraryoes e nada alterava a transpashy

22

rencia e a evidencia das almas Pennaneciamos com a verdade Na bio shygrafia pessoal assim como na historia da humanidade esse tempo esta situado rna is proximo do nascimento na vizinhanrya da origem Rousseau foi urn dos primeiros escritores (seria preciso dizer poetas) a retomar 0

milo platanico do exilio e do retorno para orienta-Io em direryao ao estado de infancia e nao mais a uma patria celeste

Quando se trata de evocar 0 tempo da transparencia 0 primeiro Discurso desenvolve imagens singularmente analogas as que se encollshytram no relato das Confissoes Como no epis6dio de Bossey ele fala da presenrya proxima dos deuses e urn tempo em que testemunhas divinas permanecem entre os hom ens e It~em em seus coraryoes e urn mundo em que as consciencias humanas se reconhecem por urn tinico olhar

E uma bela costa adomada apenas pelas maos da natureza para a qual s voltam incessantemente os olhos e da qual se sente afastar-se a contragosto Quando os homens inocentes e virtuosos amavam ler os de uses COIIIO

testelllunhas de suas aci5es moravam juntos sob as mesmas cabanas ums logo tomando-se maus cansaram-se desses incomodos espectadores 2j

Antes que a arte houvesse moldado nossas maneiras e ensinado noss paixoes a falar uma linguagem afetada nossos costumes eram rusticos mas naturais e a diferenca dos procedilllelltos alZull ciava ao primeiro oLhar ( do caraler A natureza hllmana no fundo nao era melhor mas os homens encontravam sua seguransa na facilidade de se penetrar reciprocalllente2(j

Previamente a toda teoria e a toda hipotese sobre 0 estado de natureza ha a intuiryao (ou a imaginaryao) de uma epoca comparavel ao que foi a infancia antes da experiencia da acusaryao injustificada A humanidadc s(gt esta entao ocupada em viver tranqiiilamente sua felicidade Urn infalivel equilIbrio ajusta 0 ser eo parecer Os homens se mostram e sao vistos tais como sao As aparencias extern as nao sao obstaculos mas espelhos fieis em que as consciencias se encontram e se harmonizam

A nostalgia se volta para uma vida anterior Mas se ela nos afasta do mundo contemporaneo nao nos faz abandonar 0 munch) humano nem a paisagem terrestre no horizonle da felicidade anterior ha essa mesma natureza e essa mesma vegetaryao que nos cercam hoj( ha essa floresta que mutilamos mas da qual restam ainda extensc)(s intactas por onde posso enveredar Sem que seja necessario invoc1I a intervenryao sobrenatural de urn demonio tentador e de uma Eva tentada a origem de nossa decadencia e explicavel por razoes bern hnmanas Porque 0 homem e perfectivel nao cessou de acrescentar suas invenqoes aos dons da natureza E desde entao a hist6ria universal euromhara~-ada pelo peso continuamente crescente de nossos artificios e de nosso or gulho adquire 0 andamento de uma queda aceleracla na corrupr fi n nbri mos os olhos com horror para urn mundo d( mascaras I ell ihl50cl

2 I

mortais e nada assegura ao observador (ou ao acusador) de que ele proprio seja poupado pel a doen~a universal

o drama da queda nao antecede portanto a existt~ncia terrestre Rousseau transporta 0 mito religioso para a propria historia divide-a em duas eras uma tempo estavel da inocencia reino tranqiiilo da pura natureza a outra historia em devir atividade culpada negayao da na shytureza pelo homem

Ora se a queda e nossa obra se e urn acidente da historia humana e preciso admitir que 0 homem nao esta naturalmente condenado a viver na desconfianya na opacidade enos vieios que as escoltam Estes sao a obra do hom em ou da sociedade Entao nao ha nada a1 que nos impeya de refazer ou de desfazer a historia tendo em vista redescobrir a transparencia perdida Nenhuma proibiyao sobrenatural a isso se opoe A essencia do homem nao esta comprometida mas apenas sua situar iio historica Talvez quisesses tu poder retroceder27 A pergunta perrnashynece suspensa mas em todo caso nao ha espada flaI1lejante que nos impeya 0 acesso do paraiso perdido Para alguns (em distantes costas) que dele nao sairam talvez ainda seja tempo de deter-sea E mesmo que por uma fatalidade puramente humana 0 mal seja irreversivel mesmo que nos seja preciso admitir que urn povo vicioso nao retoma jamais a virtude a historia nos propoe uma tarefa de resistencia e de recusa 0 minimo que poderiamos fazer se nao podemos tomar bons aqueles que nao 0 sao mais e conservar assim aqueles que tern a felicidade de se-Io29 Porque 0 advento do mal foi urn fato historico a luta contra 0 mal cabe tambem ao homem na historia

Rousseau nao duvida de que uma ayao seja possivel de que uma livre decisao possa consagrar-nos ao serviyo da verdade velada Mas quanta a natureza dessa decisao e dessa ayao ele ouve varios apelos e os exprime sucessivamente (ou simultaneamente) em sua obra reforma moral pessoal (vitam impendere vero) educayao do individuo (Emilio [Emile]) forrnayao politica da coletividade (Economia politica [Discours sur leconomie politique] Contrato social [Le contrat social)) A que se acrescenta em Jean-Jacques uma hesita~ao que orienta seu desejo ora no sentido de uma regressao temporal ora no sentido do presente mais proximo refugio de uma consciencia que se basta a si mesma mais raramente no sentido de uma SUperayaO em direyao ao futuro Alternadamente ele se entregara ao devaneio arcadico de urn retorno a floresta primitiva ou entao fara a defesa de uma estabilizayao conshyservadora em que a alma e a sociedade salvaguardariam 0 que Ihes resta ainda de puro e de original ou ainda trayara a ideia da felicidade futura do genero humano30 ou enfim construira fora do tempo uma Cidade virtuosa Instituiroes po[[ticas ideais De tantos designios desshy

2l

semelhantes que e tao dificil harrnonizar de maneira inteiramente satis shyfatoria e preciso reter esta unica coisa que tem em comum sua unidade de i1ltenpio que visa a salvaguarda ou a restaurayao da transparencia comprometida No apelo apaixonado que Rousseau dirige a seus cooshytemporaneos pode nao haver nada mais que urn convite a cultivar 1

moral da boa vontade e da boa consciencia e ai pode-se ler tambClII um convi te a transforrnar a sociedade pela a9ao politica efetiva Essa ambigiiidade e emharayosa Mas de uma maneira nao ambigua Rousseau em primeiro lugar nos convoca a querer 0 retorno da rransparencia para nos e em nossas vidas Nao ha como equivocar-se sobre esse desejo tao poderoso quanta simples 0 mal-entendido come~ani no momento em que esse desejo se vir confrontado com tarefas concretas com sishytua90es problematicas Pois do desejo de transparencia a transparencia possuida a passagem nao e instantanea 0 acesso nao e im ediato Sc se empreende libertar-se da menti ra cedo ou tarde nao se pode impedir colocar a questao dos meios (que sao diversos e contraditorios) e dOl afiio que tanto pode fracassar como ter exito e que corre 0 risco dmiddot~

nos fa zer recair no mundo da ment ira e da opacidade

SABER HIST6R1CO E VISAO POETICA

Mas a que distancia estamos da transparencia perdida Que espesshysuras dela nos separam Qual e 0 espa~o a transpor para redescobri-la 1

No Discurso sobre a origem da desigualdade [Disc ours sur jorigillC de inegaire1 Rousseau interpoe multidoes de seculos 0 afastamento e imenso e a I uz da prime ira felicidade parece quase apagar-se na distanci das eras 0 que se pode saber de urn periodo tao longinquo A razao nao pade evitar a formulayao de algumas duvidas 0 tempo da transparencia realmente ocorreu ou ai nao est amais que uma fic~iio que inventamos para poder reconstruir especulativamente a bist6ria a partir de uma ori shygem Em uma passagem do segundo Discurso em que Rousseau vigia manifestamente seu pensamento nao chega ele a supor que 0 estado de natureza Utalvez nao lenha absolutamente existido 0 estado de natureza e pois tiio-somente 0 postulado especulativo que uma historia hipote shytiea se confere principio sobre 0 qual a deduyao podeni apoiar-se em busea de uma sene de ca usas e de efe itos bem encadeados para conslruir a expLicayao genetiea do mundo ta l como ele se oferece aos nossos olhos Assim procedem quase todos os homens de ciencias e os fil6sofos un epoca que creem nada ter demonstrado se na o remontaram as fO llt simples e necessarias de todos os fenomenos fazem-se ent aCI CIS hb t riadores das ori2ens da terra da vida das fnc lIlrlulfgts cia alllla ds qoci

H

dades Dando aespeculayao 0 nome de observayao esperam estar isentos de qualquer outra prova

De fato amedida que Rousseau desenvolve sua ficyao historica esta perde seu carater de hipotese uma especie de confianya e de emshybriaguez vern abolir toda prudencia intelectual a descriyao desse estado primeiro muito proximo ainda da animalidade torna-se a evocayao enshycantada de urn Iugar onde viver Vma nostalgia elegiaca se comove a ideia dessa vida errante e sa com seu equilIbrio sensitivo com sua justa suficiencia Imagem por demais imperiosa por demais profundashymente satisfatoria para nao corresponder no espirito de Rousseau aestrita verda de historica Vma certeza ganha corpo que e de essencia poetica mas que se engana sobre sua natureza quer falar a linguagem da historia e tomar por testemunha a erudiyao mais seria A convicyao se impoe irrefutavelmente tais foram sem contestayao os primordios da humanishydade tal foi a primeira fisionomia do homem Rousseau conta a si mesmo a historia objetiva de uma Idade da transparencia para legitimar sua nostalgia A certeza de Rousseau e a de alguem que se lembra ela e acanyada no contato e seus discipulos ja nao verao nele 0 autor de uma historia hipotetica mas 0 vidente (Seher dira H6lderlin) que detem a memoria de urn passado muito antigo de um tempo rna is belo Na ode inacabada intitulada Rousseau H6lderlin escreve

auch dir auch dir Erfreuet die feme Sonne dein Haupt

Und Strahell ails der sclollem Zeit Es Haben die Boten dein Herz gefllndell 31

[para ti tarn bern para ti tambern o distallte sol ilumina lua fronte com Slla alegria E os raios vindos de uma epoca mais bela Eles os rncnsageiros encontraram tell caratiio]

H61derlin aqui faz de Rousseau urn desses interpretes a quem e concedido ser tocado pela luz de uma era vindoura ou de urn passado desaparecido

o DEUS GLA UCO

Pode-se dizer ainda que a transparencia original desapareceu Reshydescoberta na memoria nao e ela entao retomada na transparencia propria da memoria e por isso mesmo salva Desertou-nos inteiramente ou estamos ainda em sua vizinhanya Rousseau hesita entre duas respostas nntradit-cirias lZrn dado momento 0 mito bifurca em duas versoes A

6

primeira afirma que a alma humana degenerou que se desfigurou que sofreu uma alterayao quase total para jamais reencontrar sua beleza prime ira A segunda versao em lugar de uma defonnayao evoca uma especie de encobrimento a natureza primitiva persiste mas oeulta cershycada de veus superpostos sepultada sob os artificios e no en tanto sempre intacta Versao pessimista e versao otimista do mito da origem Rousseau sustenta ambas alternadamente e por vezes mesmo simultaneamente Diz-nos que 0 homem destruiu de modo irremediavel sua identidade natural mas proclama tambem que a alma original sendo indestrutivel permanece para sempre identica a si mesma sob as manifestayoes externas que a mascaram

Rousseau retoma por sua conta 0 mito platonico da estatua de Glauco

Semelhante aedtatua de Glauco que 0 tempo 0 mar e as tempestades haviam desjigurado tanto que se parecia menos com um deus do que com urn animal feroz a alma humana alterada no seio da sociedade por mil causas continuashymente renascentes pela aquisitiio de uma multidao de conhecimentos e de eITOS pelas mudantas ocoITidas na constituitiio dos carpos e pelo choque continuo das paix6es por assim dizer mudou de aparencia a ponto de 5(r quase irreconhecivel 32

Mas ha aqui um por assim dizer e urn quase que devolvem todas as esperanyas A imagem da estatua de Glauco no contexto de Rouss~au conserva algo de enigmatico Seu rosto foi corroido e mutilado pelo tempo perdeu para sempre a forma que tinha ao sair das maos do escultor Ou entao foi ele recoberto por uma crosta de sal e de algas sob a qual a face divina conserva sem nenhuma perda de substancia seu modelo original Ou ainda a fisionomia original nao e mais que uma ficy ao destinada a servir de norma ideal para quem quer interpretar 0 estado atual da humanidade

Nao e uma empresa leve deslindar 0 que ha de originario e de artificial 111

natureza atual do homem e conhecer bem urn estado que nao existe milis que provavelmente nao existira jamais e sobre 0 qual entretanlo enecesshysario ler not6es justas para bern avaliar nosso estado presenteD

Permanecer 0 que se era deixar-se alterar pela mudanya tocamos aqui em categorias que para Rousseau sao 0 equivalente das categorias teologicas da perdiyao e da salvayao Rousseau nao cre no inferno mas em compensayao acredita que a perda da semelhanya e uma infeliddad( essencial enquanto que permanecer semelhante a si mesmo euma malcirtl de salvar sua vida ou ao menos uma promessa de salvarao 0 11111raquo0

historico que para Rousseau nao exclui a ideia do des(llvolvilll(ntn organico permanece carregado de culpabilidade 0 movilflcnto dn hlslOliI

27

e urn obscurecimento e mais responsavel por uma deformal)ao do que por urn progresso qualitativo Rousseau apreende a mudan9a como uma corruP9aO34 no curso do tempo 0 homem se desfigura se deprava Nao e apenas sua aparencia mas sua propria essencia que se torna irreconheshycivel Essa versao severa (e por assim dizer calvinista) do mito da origem Rousseau a pro poe em diversos momentos de sua obra Descobre-se na origem dessa ideia uma angustia muito real avivada pelo sentimento do irreparavel Rousseau muitas vezes afirmou que 0 mal era sem retorno que uma vez transposto urn certo Iimiar fatal a alma estava perdida e nao tinha outr~ recurso senao aceitar sua perda Urn natural sufocado nos diz ele nao volta jamais e perde-se entao ao mesmo tempo 0 que se destruiu e 0 que se fez 35

Desafortunadosl 0 que nos tomamos nos Como deixamos de ser 0 que fomos36

Deforma9aO em que parece mais nada subsiste da forma original Ele pr6prio sentiu-se atingido e ameal)ado

Os gostos rna is vis a mais baixa molecagem sucederam-se as minhas amaveis diversoes sem delas me deixar mesmo a menor ideia Epreciso que a despeito da educa9ao mais honesta eu tivesse ulna grande inclinafGo a degenerar pois isso se deu muito rapidamente sem a menor dificuldade e jamais Cesar tao precoce tomou-se tao prontamente Laridon37

A essa passagem que segue de perto 0 episodio de Bossey pode-se acrescentar urn texto do final da vida de Rousseau testemunho tanto mais significativo quanto data de uma epoca em que este nao cessa de afmnar sua permanente fidelidade a si mesmo

Tal vez sem me dar conta eu meslIlo tenha 11ludado lais do que seria preciso Que natural resistiria sem se alterar a uma situa9ao semeIhante a minha38

Pergunta que ele se apressa em responder pela negativa Pois preshycisamente no momenta em que tudo muda para ele no momento em que acredita viver em urn sonho Rousseau se opoe com todas as suas forl)as aangustia da aItera9ao interior e luta pel a salvaguarda de sua identidade Alguma coisa mudou mas sua alma permaneceu a mesma Ele repele para 0 exterior a responsabilidade da alteral)ao Foram os outros que sofreram a metamorfose mais surpreendente e que eles proprios irrecoshynheciveis desfiguram sua imagem e suas obras Quanto a ele mesmo permaneceu 0 que era Seus sentimentos mudaram porque as realidades externas nao sao mais as mesmas

Mas as coisas mudaram muito de figura desde que minhas infelicidades COlle~aram Vivi desde entao em uma gera9ao nova que nao se parecia de modo nenhurn com a prinnira e meus proprios sentimentos pelos outros

2M

sofreram mudan9as que encontrei nos deIes A mesmas pessoas que vi sucessivamente nessas duas gera90es tao diferentes assimitaram-se por assim dizer a uma e a outra39

[] Eu 0 mesmo homem que era 0 mesmo que sou ainda

Sob a mascara que os outros impoem de fora a sua fisionomia Jean-Jacques nao deixou de ser Jean-Jacques No momento em que esta mais sombriamente obsedado pela perseguil)ao replica contando a si mesmo a versao otimista do mito da origem nada foi perdido 0 tempo nao alterou 0 essencial s6 corroeu na superficie 0 mal vern de fora mas permanece fora 0 rosto de Glauco permaneceu intacto sob a espuma que o desfigura Jean-Jacques apIica entao a si mesmo (e s6 a ele) uma ideia que formulara anteriormente a respeito do homem em geral e que opunba a nOl)ito da natureza perdida e da natureza oculta de uma natureza que se pode mascarar mas que jamais sera destruida Demasiadamente poshyderosa e talvez demasiadamente divina para que possamos transforma-Ia ou suprimi-Ia ela elude nossos empreendimentos profanadores e se reshyfugia nas profundezas onde esta apenas dissimulada sob involucros exteriores Esta esquecida mas nao realmente perdida e se a memoria nos faz entreve-Ia no fundo do passado e porque estamos ja proximos de Iiberta-la de seus veus e de redescobri-Ia presente e viva em nos mesmos

Os males da alma [ ] alterap5es extemas e passageiras de urn ser imortal e simples apagam-se insensivelmente e deixam-no elll suaorilla origial que nada poderia mudar41

Entao Rousseau invoca com confianl)a uma natureza que nada destroi torna -se 0 po eta da permanencia desvelada Descobre em si mesmo a proximidade da transparencia original e esse homem da nashytureza que ele buscara na profundeza das eras agora reencontra-Ihe os tral)os originais na profundeza do eu Aquele que sabe recolher-se em si mesmo pode ver resplandecer novamente a fisionomia do deus subshymerso liberta da ferrugem que a mascarava

De onde 0 pintor e 0 apologista da natureza hoje tao desfigurada e tao caluniada pode haver tirado seu modelo se nao de seu proprio corarao Descreveu-a como eIe proprio se sentia Os preconceitos aos quais nao estava subjugado as paixOes facticias de que nao era presa nao ofuscavam de modo ncnhum aos seus olhos como aos dos outros esses prirnciros traros till) geralmente esquecidos ou ignorados Esses traros tao novos para ncgts l~ tilt) verdadeiros uma vez tra9ados encontravam ainda no fundo dos corarOcs II atestarao de sua justeza mas jamais se teriam mostrado novarncntc p)r si mcslllos se 0 historiador da natureza nao hOllvcsse cOIll~fld() por wtirlr 1

ferrugem que os oCllltava S6 lima vida rctirada c solitaritl l1Il gosto vivo pete dcvaneio e pela contclllpla9ao 0 lubito dc lc()lIll~r-s( ()III si c I( II I

29

buscar na calma das paixoes esses primeiros trayos desaparecidos na multishydao podiam-no fazer redescobri-los Em uma palavra era preciso que um homem se houvesse pintado a si mesmo para nos mostrar assim 0 homem primitivo 42

o conhecimento de si equivale a uma reminiscencia mas nao e de maneira nenhuma por urn esfonyo de memoria que Rousseau reencontra esses primeiros traltyos que pertencem contudo a urn mundo anterior Para descobrir 0 homem da natureza e para tornar-se seu historiador Rousseau nao teve de remontar ao comeltyo dos tempos bastou-Ihe pintar a si mesmo e reportar-se it sua propria intimidade it sua propria natureza em urn movimento a uma so vez passiv~ e ativo buscando-se a si mesmo abandonando-se ao devaneio 0 recurso a interioridade atinge a mesma realidade decifra as mesmas normas absolutas que a exploraltyao do pass ado mais remoto Assim 0 que era primeiro na ordem dos tempos historicos se redescobre como 0 que e mais profundo na experiencia atual de Jean-Jacques A distancia historica nao e rna is que distancia interior e essa distancia e logo transposta para aquele que sabe abandonar-se plena mente ao sentimento que se desperta nele Doravante a naturezamiddot (como a presenltya de Deus para santo AgostinhO)43 deixando de ser 0

que ha de mais longinquo atras de nos oferece-se como 0 que e mais central em nos Como se ve a norma ja nao e transcendente e imanente ao eu Basta ser sincero ser eu mesmo e entao 0 homem da natureza nao e mais 0 distante arquetipo ao qual me refiro ele coincide com a minha propria presenltya com a minha propria existencia A transparencia antiga resultava da presenltya ingenua dos homens soh 0 olhar dos deuses a nova transparencia e uma relaltyao mterlor 10 eu uma relaltao cc sigo mesmo realiza-se na limpidez do olhar sobre si mesmo que permite a Jean-Jacques pintar-se tal como e Vma imagem pode entao surgir que equivale (Rousseau nos garante isso) it historia autentica da especie inteira e que ressuscita 0 passado perdido para revela-lo como 0 presente etemo da natureza Os homens ai redescobrem a certeza de uma semelhanltya comum (Cada homem carrega a forma inteira da humana condi9ao dizia Montaigne) Porque Jean-Jacques soube abandonar-se a si mesmo os homens se reconhecerao por sua vez Atras de suas falsas verdades reencontram uma presenltya esquecida uma forma que permanecia intacta sob os veus ei-Ios libertos do esquecimento

Pode-se entao recobrar a natureza primeira do homem sem ter de remontar as origens rea is e sem se aventurar nas r~construltyoes historicas Rousseau se ex plica sobre isso de uma maneira bastante clara no segundo Discurso on de 0 vemos renunciar bern facilmente a toda asser9ao sobre as verdadeiras origens para se reservar 0 direito de esclarecer por via de hipotese a natur(za das coisas

w

Nao se devem tomar as investigayoes nas quais se pode entrar sobre esse assunto por verdades historicas mas apenas por raciocfnios hipoteticos e condicionais mais aptos a esclarecer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem 44

Mas a natureza do homem pode ser apreendida independentemente da hisforia humana Rousseau hesita De fato se nao pode dispensar a n09ao de uma natureza humana essencial tam bern nao pode renunciar it ideia de urn devir historico que Ihe permita dar uma explicaltyao plausivel da aIteraltyao que a humanidade sofreu ao afastar-se de suas bem-aventushyradas origens Rousseau desejaria reservar-se conjuntamente a possibilishydade de acusar a perversao pela qual a sociedade e responsavel e conservar o direito de proclamar a permanencia da bondade original Ha a1 uma dupla afirmaltyao que pode passar por contraditoria e que nao se deixou de criticar em Jean-Jacques Pois na medida em que a sociedade e obra humana deve-se admitir que 0 homem e cuJpado e carrega a culpa de todo 0 mal que fez a si mesmo mas por outro lado na medida em que o homem nao deixa de ser urn filho da natureza ele conserva uma inocencia indestrutivel Como conciliar a afinna9aO 0 homem e natushyralmente born e esta outra Tudo degenera entre as maos do homem

UMA TEODICEIA QUE INOCENTA 0 HOMEM E DEUS

Cassirer mostrou-o bem 45 os postulados de Rousseau permitem resolver 0 problema da teodiceia sem imputar a origem do mal nem a Deus nem ao homem pecador

[Nao e) necessario supor 0 homem mau por sua natureza quando se [pode] assinalar a origem e 0 progresso de sua maldade Estas reflexoes me conduziram a novas investigayoes sobre 0 espirito humano considerado no estado civil e julguei entao que 0 desenvolvimento das luzes e dos vicios sc fazia sempre na mesma proporyao nao nos individuos mas nos povos distinyiio que sempre fiz cuidadosamente e que nenhum daqueles que me atacaram jamais pode conceber46

o mal se produz pela historia e pela sociedade sem alterar a essencia do individuo A culpa da sociedade nao e a culpa do homem essencial Illas a do homem em relaltyao Ora com a condiltyao de dissociar 0 hommll cssencial e 0 homem em relaltyao com a condi9aO de separar sociabilidadtgt e natureza humana pode-se atribuir ao mal e a alteraltyiio hist6rica lima s itu1ltyiio periferica em relaltyao a permanencia central cia natureza original o n1 tI t partir dar podera confundir-se com a paixao do h OIllNn 101

tqlli lo que Iha 6 exterior peo de fo ra a prtlig io 0 pnrect r a P OSSl uu

H

bens materiais 0 mal e exterior e e a paixao pelo exterior se 0 homem se entrega inteiro asedwao dos bens externos sera inteiramente submeshytido ao imperio do mal Mas recolher-se em si sera para ele em qualquer tempo 0 recurso da salvatao Rousseau nao se content a portanto em reprovar a exterioridade como quase todos os moralistas haviam feito antes dele incrimina-a na propria definisao do mal Essa condenatao nao passa da contra partida de uma justificasao que pretende salvar - de uma vez por todas - a essencia interna do homem Repelido para a periferia do ser rechasado para 0 mundo da relasao 0 mal nao tera 0 mesmo estatuto ontologico que a bondade natural do homem 0 mal e veu e velamen to e mascara tern acordo com 0 facticio e nao existiria se 0

hom em nao tivesse a perigosa liberdade de negar pelo artificio 0 dado natura l E entre as maos do homem e nao em seu corayao que tudo degenera Suas maos trabalham mudam a natureza fazem a h istoria ordenam 0 mundo exterior e produzem com 0 tempo a diferenya entre as epocas a luta entre os povos a desigualdade entre os particulares

Em uma mesma pagina (prefacio de Narciso) Rousseau protestara contra falsa m osofia que sustenta que os homens sao por toda parte os mesmos mas que as vicios do mundo middot contemporaneo nao pershytencem tanto ao homem quanta ao homem malgovemado 47 Contradisao si gnificativa Rousseau desse modo afinna ao mesmo tempo a pershymanencia de uma inocencia essencial e 0 movimento da historia que e alterasao corruptao moral degenerescencia politica e que promove o estado de conflito e a injustisa entre os homens 48

Nas teorias do progresso que serao propostas rna is tarde intervira uma hipotese bastante analoga que visara conciliar 0 postulado da pershymanencia da natureza human a com a ideia de uma mudansa coletiva 0 homem pem1anece 0 mesmo a humanidade progride sempre dira Goethe A validade do pessimismo historico do segundo Discurso foi contestada e admitiu-se mais comumente a tese otimista de Goethe Entretanto do ponto de vista filosOfico 0 problema e ide ntico Tanto em urn como no outro e preciso conci liar a estabilidade da natureza humana e a mobilidade do desenvolv imento real da hist6ria e preciso explicar por que 0 homem (enquanto individuo) possui 0 privilegio de pennanecer 0 mesmo ao passo que a human idade (enquanto coletishyvidade) esta sujeita a mudansa

Rousseau contudo nao tern necessidade da hist6ria a nao ser para the pedir a explicasao do mal E a ideia do mal que da ao sistema sua dimensao historica 0 devir e 0 movimento pelo qual a humanidade se toma culpada 0 homem nao e naturalrnente vicioso tornou-se vishycioso 0 retorno ao bern coincide entao com a revolta contra a hist6ria e em particular contra a situayao historic a atual Se e verdade que 0

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pensamento de Rousseau e revolucionario e preciso acrescentar de imeshydiato que ele 0 e em nome de uma natureza humana eterna e nao em nome de urn progresso historico (Sera preciso interpretar a obra de Rousseau para ver nela urn fator decisivo no progresso politico do seculo XVIII) Como veremos seu pensamento social consciente da necessidade de afrontar 0 mundo e os homens tais como sao visa sobretudo insshytaurar ou restaurar a soberania do imediato isto e a reino de urn valor sobre 0 qual a duratao nao tern poder

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2

CRiTICA DA SOCIEDADE

Rousseau situa-se em seu seculo entre os escritores que contestam os valores e as estruturas da sociedade momirquica Por mais distintos que tenham sido a contestayao cria entre esses autores uma semeihanya e Ihes da urn ar de fratemidade cada urn deles podera ser considerado a algum titulo como urn agente ou urn anunciador da proxima Revoluyao Assim se ex plica a reconciliayao postuma de Rousseau e de Voltaire sUa comum apoteose sua promoyao a ciasse de divindade bifronte ou de diade tutelar A gravura popular os imortahzani lade a lade metamorfoshyseados em genios lampadOforos com urn candelabro na mao propagando diante deles as luzes e radiantes de brilho luciferiano

Rousseau quer apreender 0 principio do mal Poe em causa a soshyciedade a ordem social em seu conjunto 0 esforyo critico nele nao se dispersa e nao se atribui como tarefa afrontar uma a uma as multiplas manifestayoes do mal Ele remonta a uma causa geral que 0 dispensa de atacar isolada mente tal abuso particular tal usurpayao tal impostura (De resto ele e por demais egocentrico para assumir 0 papel de defensor dos oprimidos Voltaire tem seu caso Calas e dez outros semelhantes Rousshyseau esta sobrecarregado pelo caso Rousseau)

Rousseau faz a historia de seus pensamentos observou uma discorshydancia eotre os atos e as palavras dos homens essa diferenya se explica por uma outra diferenya a do ser e do parecer mas e preciso ainda buscar-Ihe a causa Rousseau assim a formula

Ellcontrei-a em nossa ordem social que em todos os sentidos tontnlria a natureza qlle nada destr6i tiraniza -a continuamente e sem cessar a faz exigir

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seus direitos Acompanhei essa contradiriio em suas conseqiiencias e vi que tao-somente ela explicava todos os vicios dos homens e todos os males da sociedade I

Nessa passagem que resume muito firmemente a substancia dos dois Discursos Rousseau define da maneira mais clara 0 objeto eo aIcance de sua eritica social a contestayaO diz respeito a sociedade enquanto esta e contraria a natureza Essa sociedade negadora da natureza (da ordem natural) nao suprimiu a natureza Mantem com ela urn eonflito permanente de onde nascem os males e os vcios de que sofrem os homens A critica de Rousseau esboya portanto uma negayao da negayao acusa a civili shyzayao cuja caracteristica fundamental e sua negatividade em relayao a natureza A cultura estabelecida nega a natureza - e essa a afirmayao patetica dos dois Discursos e do Emilio As falsas luzes da civilizayao longe de iluminar 0 mundo humano velam a transpareneia natural separam os homens uns dos outros particularizam os interesses destroem toda possibili dade de confianya reciproca e substituem a eomunicayao esseneial das almas por urn comercio faeticio e desprovido de sineeridade assim se constitui uma soeiedade em que cada urn se isola em seu amor-proprio e se protege atnis de uma aparencia mentirosa Paradoxo singular que de urn mundo em que a relayao economica entre os homens parece rna is estreita faz efetivamente um mundo de opacidade de mentira de hipocrisia

Queixo-me de que a filosofia afrouxe os laros da sociedade que sao formados pela estillQ e pela bellevolencia IIttuas e queixo-me de que as ciencias as artes e todos os outros objetos de comercio estreitem os laros da sociedade pelo inleresse pessoal E que com efeito niio se pode estreitar urn desscs laros sem que 0 outro nao se afrouxe na mesma proporriio Portanto nada ha nisso de contradiriio2

Rousseau confronta aqui de maneira signifieativa dois tipos de relacao que se opoem como a transparencia a opaeidade A estima e a benevolencia eonstituem urn layo pelo qual os homens se reunem imediatamente nada se interpoe entre as consciencias elas se oferecern espontaneamente numa evideneia total Em compensayao os layos orshydenados pelo interesse pessoal perderam esse carater imediato A relayao ja nao se estabeleee diretamente de consciencia a conscieneia ela agora p3ssa por coisas A perversao que da resulta provem nao apenas do fato de que as eoisas se interpoem entre as eonseiencias mas lambcm do fato de que os homens deixando de identificar seu interesse com sua existencia pessoal identificam-no doravante com os objetos illiN postos que acreditam indispensaveis a sua felicidade 0 eu do hOllwllI social nao se reconheee mais em si mesmo mas se buse no exlcmiddotrim

ntrl as coisns sells meios se tornam sell filn 0 homclIl illkirll

torna coisa ou escravo das coisas A critica de Rousseau den uncia essa alienaYao e propoe como tarefa um retorno ao imediato

A sociedade civilizada desenvolvendo sempre mais sua oposiYao a natureza obscurece a relaYao imediata das consciencias a perda da transparencia original vai de par com a alienaYao do homem nas coisas materia is A analise de Rousseau sobre esse ponto prefigura as de Hegel e de Marx tanto mais se lhes assemelha quanta se apoia em uma descriYao do devir historico da humanidade Com efeito 0 Discurso sabre a origem da desigualdade e uma historia da civilizaYao como progresso da negaYao do dado natural progresso ao qual corresponde uma degradaYao da inoshycencia original A historia das tecnicas e ex posta em estreita ligaYao com a historia moral da humanidade Mas a diferenYa do esforYo filosOfico do seculo XIX e em contraste com as pretensoes positivistas de alguns de seus contemporaneos Rousseau procura fundar urn julgamento moral referente a historia de preferencia a estabelecer um saber antropologico E como moralista que ele escreve a historia da moral Dai 0 aspecto ambiguo de sua demonstraYao As fases pelas quais 0 homem passou 0

est ado a que chegou devem em primeiro lugar ser estabelecidos como fatos uma vez estabelecidos de vern ser aceitos a humanidade sofreu transformaYoes inelutaveis com isso chegou fatalmente a seu estado presente eis 0 que est a fora de contestaYao Mas a validade do fato nao nos permite prejulgar do direito Os fatos historicos nao justificam nada a historia nao tern legitimidade moral e Rousseau nao hesita em condenar em nome dos val ores eternos 0 mecanismo historico do qual mostrou a necessidade e que estendeu as proprias funYoes mora is

Tendo retraYado a progressao da cultura e tendo-a definido como negaYao da natureza Rousseau opoe a cultura uma recusa uma nova negaYao que e a consequencia de urn juizo moral e que se vale de urn absoluto etico A indignaYao de Rousseau (ele proprio homem natural) contra a sociedade (criaYao historica) e a expressao patetica desse conflito Ele toma a palavra para dizer nao a antinatureza A situaYao presente com seu luxe e sua miseria e ao mesmo tempo historicamente motivada e moralmente inaceitavel Rousseau compreende a sociedade de seu tempo mas the opoe uma reprovaYao escandalizada 0 pensamento de Rousseau nao podera portanto deter-se ai Pois compreender urn mundo opaco nao e ainda redescobrir ou restabelecer a transparencia Longe de equivaler para Rousseau a uma adesao intelectual a compreensao so estabelece 0 fato para opor-Ihe imediatamente 0 direito Ele protesta contra 0 metodo de Grotius sua maneira de raciocinar e de estabelecer sempre 0 direito pelo fato) Rousseau julga e condena em nome do direito os fatos dos quais prova a necessidade historica E como precisa para realizar 0 ideal da transparencia de urn mundo em que 0 fato coincide

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com 0 direito buscara esse mundo ora aquem da historia - nos antigos tempos em que 0 progresso corruptor nao existe ainda - ora alem em urn futuro abstrato em que a desordem atual seria superada por uma ordem rna is perfeita

Page 5: Jean Starobinski - Jean-jacques Rousseau Transparencia e Obstaculo

coraryao do homem que esta a vida doespetaculo da natureza21 Quando o coraryao do homem perdeu sua transparencia 0 espetaculo da natureza se empana e se turva A imagem do mundo depende da relaryao entre as consciencias sofre-lhe as vicissitudes 0 episodio de Bossey tennina pela destruiryao da transparencia do coraryao e simultaneamente por urn adeus ao brilho da natureza A possibilidade quase divina de ler nos coraryoes nao existe mais 0 campo se vela e a luz do murido se obscurece

o veu desceu entre Rousseau e ele proprio Ocultou-lhe sua natureza primeira sua inocencia E por certo entao Jean-Jacques se pas a fazer 0 mal (ficavamos menos envergonhados de agir mal comeryashyvamos a nos esconder 22) mas nao e responsavel pela entrada do mal no mundo e se comerya a se esconder e porque em primeiro lugar a verdade se escondeu Sua historia comeryara de maneira diferente A infancia fora de inicio confianrya e transparencia totais A memoria ainda pode mergulha-lo novamente nela e devolve-Io a limpidez de urn mundo rna is claro mas ele nao pode fazer com que ela nao tenha sido perdida e que tudo nao esteja obscurecido

Nao vemos a alma de outrem porque ela se esconde nem a nossa porque de modo algum temos espelho intelectuaP3

E preciso viver na opacidade24

o TEMPO DIVDDO E 0 MITO DA TRANSPARENCIA

Esse momen to de crise - em que desce 0 veu da separaryao em que 0 mundo se empana em que as consciencias se tornam opacas umas para as outras em que a desconfianrya torna para sempre a amizade impossivel - esse momenta tern sua data em uma historia marca 0

comeryo de uma perturbayao na felicidade infantil de Jean-Jacques Entao corney a uma nova epoca uma outra era da consciencia E essa nova era se define por uma descoberta essencial pela primeira vez a consciencia tern urn passado Mas ao enriquecer-se com essa descoberta ela descobre tambem uma pobreza uma falta essencial Com efeito a dimensao temshyporal que se cava atras do instante presente tornou-se perceptivel pelo proprio fato de que se esquiva e se recusa A consciencia se volta para urn mundo anterior do qual percebe simultaneamente que ele the pertenshyceu e que esta para sempre perdido No mom en to em que a felicidade infantillhe escapa ela reconhece 0 valor infinito dessa felicidade proibida Entao nao resta mais do que construir poeticamente 0 mito da epoca finda outrora antes que 0 veu se houvesse interposto entre nos e 0 mundo havia deuseuroamp lilt Iiam em nossos coraryoes e nada alterava a transpashy

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rencia e a evidencia das almas Pennaneciamos com a verdade Na bio shygrafia pessoal assim como na historia da humanidade esse tempo esta situado rna is proximo do nascimento na vizinhanrya da origem Rousseau foi urn dos primeiros escritores (seria preciso dizer poetas) a retomar 0

milo platanico do exilio e do retorno para orienta-Io em direryao ao estado de infancia e nao mais a uma patria celeste

Quando se trata de evocar 0 tempo da transparencia 0 primeiro Discurso desenvolve imagens singularmente analogas as que se encollshytram no relato das Confissoes Como no epis6dio de Bossey ele fala da presenrya proxima dos deuses e urn tempo em que testemunhas divinas permanecem entre os hom ens e It~em em seus coraryoes e urn mundo em que as consciencias humanas se reconhecem por urn tinico olhar

E uma bela costa adomada apenas pelas maos da natureza para a qual s voltam incessantemente os olhos e da qual se sente afastar-se a contragosto Quando os homens inocentes e virtuosos amavam ler os de uses COIIIO

testelllunhas de suas aci5es moravam juntos sob as mesmas cabanas ums logo tomando-se maus cansaram-se desses incomodos espectadores 2j

Antes que a arte houvesse moldado nossas maneiras e ensinado noss paixoes a falar uma linguagem afetada nossos costumes eram rusticos mas naturais e a diferenca dos procedilllelltos alZull ciava ao primeiro oLhar ( do caraler A natureza hllmana no fundo nao era melhor mas os homens encontravam sua seguransa na facilidade de se penetrar reciprocalllente2(j

Previamente a toda teoria e a toda hipotese sobre 0 estado de natureza ha a intuiryao (ou a imaginaryao) de uma epoca comparavel ao que foi a infancia antes da experiencia da acusaryao injustificada A humanidadc s(gt esta entao ocupada em viver tranqiiilamente sua felicidade Urn infalivel equilIbrio ajusta 0 ser eo parecer Os homens se mostram e sao vistos tais como sao As aparencias extern as nao sao obstaculos mas espelhos fieis em que as consciencias se encontram e se harmonizam

A nostalgia se volta para uma vida anterior Mas se ela nos afasta do mundo contemporaneo nao nos faz abandonar 0 munch) humano nem a paisagem terrestre no horizonle da felicidade anterior ha essa mesma natureza e essa mesma vegetaryao que nos cercam hoj( ha essa floresta que mutilamos mas da qual restam ainda extensc)(s intactas por onde posso enveredar Sem que seja necessario invoc1I a intervenryao sobrenatural de urn demonio tentador e de uma Eva tentada a origem de nossa decadencia e explicavel por razoes bern hnmanas Porque 0 homem e perfectivel nao cessou de acrescentar suas invenqoes aos dons da natureza E desde entao a hist6ria universal euromhara~-ada pelo peso continuamente crescente de nossos artificios e de nosso or gulho adquire 0 andamento de uma queda aceleracla na corrupr fi n nbri mos os olhos com horror para urn mundo d( mascaras I ell ihl50cl

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mortais e nada assegura ao observador (ou ao acusador) de que ele proprio seja poupado pel a doen~a universal

o drama da queda nao antecede portanto a existt~ncia terrestre Rousseau transporta 0 mito religioso para a propria historia divide-a em duas eras uma tempo estavel da inocencia reino tranqiiilo da pura natureza a outra historia em devir atividade culpada negayao da na shytureza pelo homem

Ora se a queda e nossa obra se e urn acidente da historia humana e preciso admitir que 0 homem nao esta naturalmente condenado a viver na desconfianya na opacidade enos vieios que as escoltam Estes sao a obra do hom em ou da sociedade Entao nao ha nada a1 que nos impeya de refazer ou de desfazer a historia tendo em vista redescobrir a transparencia perdida Nenhuma proibiyao sobrenatural a isso se opoe A essencia do homem nao esta comprometida mas apenas sua situar iio historica Talvez quisesses tu poder retroceder27 A pergunta perrnashynece suspensa mas em todo caso nao ha espada flaI1lejante que nos impeya 0 acesso do paraiso perdido Para alguns (em distantes costas) que dele nao sairam talvez ainda seja tempo de deter-sea E mesmo que por uma fatalidade puramente humana 0 mal seja irreversivel mesmo que nos seja preciso admitir que urn povo vicioso nao retoma jamais a virtude a historia nos propoe uma tarefa de resistencia e de recusa 0 minimo que poderiamos fazer se nao podemos tomar bons aqueles que nao 0 sao mais e conservar assim aqueles que tern a felicidade de se-Io29 Porque 0 advento do mal foi urn fato historico a luta contra 0 mal cabe tambem ao homem na historia

Rousseau nao duvida de que uma ayao seja possivel de que uma livre decisao possa consagrar-nos ao serviyo da verdade velada Mas quanta a natureza dessa decisao e dessa ayao ele ouve varios apelos e os exprime sucessivamente (ou simultaneamente) em sua obra reforma moral pessoal (vitam impendere vero) educayao do individuo (Emilio [Emile]) forrnayao politica da coletividade (Economia politica [Discours sur leconomie politique] Contrato social [Le contrat social)) A que se acrescenta em Jean-Jacques uma hesita~ao que orienta seu desejo ora no sentido de uma regressao temporal ora no sentido do presente mais proximo refugio de uma consciencia que se basta a si mesma mais raramente no sentido de uma SUperayaO em direyao ao futuro Alternadamente ele se entregara ao devaneio arcadico de urn retorno a floresta primitiva ou entao fara a defesa de uma estabilizayao conshyservadora em que a alma e a sociedade salvaguardariam 0 que Ihes resta ainda de puro e de original ou ainda trayara a ideia da felicidade futura do genero humano30 ou enfim construira fora do tempo uma Cidade virtuosa Instituiroes po[[ticas ideais De tantos designios desshy

2l

semelhantes que e tao dificil harrnonizar de maneira inteiramente satis shyfatoria e preciso reter esta unica coisa que tem em comum sua unidade de i1ltenpio que visa a salvaguarda ou a restaurayao da transparencia comprometida No apelo apaixonado que Rousseau dirige a seus cooshytemporaneos pode nao haver nada mais que urn convite a cultivar 1

moral da boa vontade e da boa consciencia e ai pode-se ler tambClII um convi te a transforrnar a sociedade pela a9ao politica efetiva Essa ambigiiidade e emharayosa Mas de uma maneira nao ambigua Rousseau em primeiro lugar nos convoca a querer 0 retorno da rransparencia para nos e em nossas vidas Nao ha como equivocar-se sobre esse desejo tao poderoso quanta simples 0 mal-entendido come~ani no momento em que esse desejo se vir confrontado com tarefas concretas com sishytua90es problematicas Pois do desejo de transparencia a transparencia possuida a passagem nao e instantanea 0 acesso nao e im ediato Sc se empreende libertar-se da menti ra cedo ou tarde nao se pode impedir colocar a questao dos meios (que sao diversos e contraditorios) e dOl afiio que tanto pode fracassar como ter exito e que corre 0 risco dmiddot~

nos fa zer recair no mundo da ment ira e da opacidade

SABER HIST6R1CO E VISAO POETICA

Mas a que distancia estamos da transparencia perdida Que espesshysuras dela nos separam Qual e 0 espa~o a transpor para redescobri-la 1

No Discurso sobre a origem da desigualdade [Disc ours sur jorigillC de inegaire1 Rousseau interpoe multidoes de seculos 0 afastamento e imenso e a I uz da prime ira felicidade parece quase apagar-se na distanci das eras 0 que se pode saber de urn periodo tao longinquo A razao nao pade evitar a formulayao de algumas duvidas 0 tempo da transparencia realmente ocorreu ou ai nao est amais que uma fic~iio que inventamos para poder reconstruir especulativamente a bist6ria a partir de uma ori shygem Em uma passagem do segundo Discurso em que Rousseau vigia manifestamente seu pensamento nao chega ele a supor que 0 estado de natureza Utalvez nao lenha absolutamente existido 0 estado de natureza e pois tiio-somente 0 postulado especulativo que uma historia hipote shytiea se confere principio sobre 0 qual a deduyao podeni apoiar-se em busea de uma sene de ca usas e de efe itos bem encadeados para conslruir a expLicayao genetiea do mundo ta l como ele se oferece aos nossos olhos Assim procedem quase todos os homens de ciencias e os fil6sofos un epoca que creem nada ter demonstrado se na o remontaram as fO llt simples e necessarias de todos os fenomenos fazem-se ent aCI CIS hb t riadores das ori2ens da terra da vida das fnc lIlrlulfgts cia alllla ds qoci

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dades Dando aespeculayao 0 nome de observayao esperam estar isentos de qualquer outra prova

De fato amedida que Rousseau desenvolve sua ficyao historica esta perde seu carater de hipotese uma especie de confianya e de emshybriaguez vern abolir toda prudencia intelectual a descriyao desse estado primeiro muito proximo ainda da animalidade torna-se a evocayao enshycantada de urn Iugar onde viver Vma nostalgia elegiaca se comove a ideia dessa vida errante e sa com seu equilIbrio sensitivo com sua justa suficiencia Imagem por demais imperiosa por demais profundashymente satisfatoria para nao corresponder no espirito de Rousseau aestrita verda de historica Vma certeza ganha corpo que e de essencia poetica mas que se engana sobre sua natureza quer falar a linguagem da historia e tomar por testemunha a erudiyao mais seria A convicyao se impoe irrefutavelmente tais foram sem contestayao os primordios da humanishydade tal foi a primeira fisionomia do homem Rousseau conta a si mesmo a historia objetiva de uma Idade da transparencia para legitimar sua nostalgia A certeza de Rousseau e a de alguem que se lembra ela e acanyada no contato e seus discipulos ja nao verao nele 0 autor de uma historia hipotetica mas 0 vidente (Seher dira H6lderlin) que detem a memoria de urn passado muito antigo de um tempo rna is belo Na ode inacabada intitulada Rousseau H6lderlin escreve

auch dir auch dir Erfreuet die feme Sonne dein Haupt

Und Strahell ails der sclollem Zeit Es Haben die Boten dein Herz gefllndell 31

[para ti tarn bern para ti tambern o distallte sol ilumina lua fronte com Slla alegria E os raios vindos de uma epoca mais bela Eles os rncnsageiros encontraram tell caratiio]

H61derlin aqui faz de Rousseau urn desses interpretes a quem e concedido ser tocado pela luz de uma era vindoura ou de urn passado desaparecido

o DEUS GLA UCO

Pode-se dizer ainda que a transparencia original desapareceu Reshydescoberta na memoria nao e ela entao retomada na transparencia propria da memoria e por isso mesmo salva Desertou-nos inteiramente ou estamos ainda em sua vizinhanya Rousseau hesita entre duas respostas nntradit-cirias lZrn dado momento 0 mito bifurca em duas versoes A

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primeira afirma que a alma humana degenerou que se desfigurou que sofreu uma alterayao quase total para jamais reencontrar sua beleza prime ira A segunda versao em lugar de uma defonnayao evoca uma especie de encobrimento a natureza primitiva persiste mas oeulta cershycada de veus superpostos sepultada sob os artificios e no en tanto sempre intacta Versao pessimista e versao otimista do mito da origem Rousseau sustenta ambas alternadamente e por vezes mesmo simultaneamente Diz-nos que 0 homem destruiu de modo irremediavel sua identidade natural mas proclama tambem que a alma original sendo indestrutivel permanece para sempre identica a si mesma sob as manifestayoes externas que a mascaram

Rousseau retoma por sua conta 0 mito platonico da estatua de Glauco

Semelhante aedtatua de Glauco que 0 tempo 0 mar e as tempestades haviam desjigurado tanto que se parecia menos com um deus do que com urn animal feroz a alma humana alterada no seio da sociedade por mil causas continuashymente renascentes pela aquisitiio de uma multidao de conhecimentos e de eITOS pelas mudantas ocoITidas na constituitiio dos carpos e pelo choque continuo das paix6es por assim dizer mudou de aparencia a ponto de 5(r quase irreconhecivel 32

Mas ha aqui um por assim dizer e urn quase que devolvem todas as esperanyas A imagem da estatua de Glauco no contexto de Rouss~au conserva algo de enigmatico Seu rosto foi corroido e mutilado pelo tempo perdeu para sempre a forma que tinha ao sair das maos do escultor Ou entao foi ele recoberto por uma crosta de sal e de algas sob a qual a face divina conserva sem nenhuma perda de substancia seu modelo original Ou ainda a fisionomia original nao e mais que uma ficy ao destinada a servir de norma ideal para quem quer interpretar 0 estado atual da humanidade

Nao e uma empresa leve deslindar 0 que ha de originario e de artificial 111

natureza atual do homem e conhecer bem urn estado que nao existe milis que provavelmente nao existira jamais e sobre 0 qual entretanlo enecesshysario ler not6es justas para bern avaliar nosso estado presenteD

Permanecer 0 que se era deixar-se alterar pela mudanya tocamos aqui em categorias que para Rousseau sao 0 equivalente das categorias teologicas da perdiyao e da salvayao Rousseau nao cre no inferno mas em compensayao acredita que a perda da semelhanya e uma infeliddad( essencial enquanto que permanecer semelhante a si mesmo euma malcirtl de salvar sua vida ou ao menos uma promessa de salvarao 0 11111raquo0

historico que para Rousseau nao exclui a ideia do des(llvolvilll(ntn organico permanece carregado de culpabilidade 0 movilflcnto dn hlslOliI

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e urn obscurecimento e mais responsavel por uma deformal)ao do que por urn progresso qualitativo Rousseau apreende a mudan9a como uma corruP9aO34 no curso do tempo 0 homem se desfigura se deprava Nao e apenas sua aparencia mas sua propria essencia que se torna irreconheshycivel Essa versao severa (e por assim dizer calvinista) do mito da origem Rousseau a pro poe em diversos momentos de sua obra Descobre-se na origem dessa ideia uma angustia muito real avivada pelo sentimento do irreparavel Rousseau muitas vezes afirmou que 0 mal era sem retorno que uma vez transposto urn certo Iimiar fatal a alma estava perdida e nao tinha outr~ recurso senao aceitar sua perda Urn natural sufocado nos diz ele nao volta jamais e perde-se entao ao mesmo tempo 0 que se destruiu e 0 que se fez 35

Desafortunadosl 0 que nos tomamos nos Como deixamos de ser 0 que fomos36

Deforma9aO em que parece mais nada subsiste da forma original Ele pr6prio sentiu-se atingido e ameal)ado

Os gostos rna is vis a mais baixa molecagem sucederam-se as minhas amaveis diversoes sem delas me deixar mesmo a menor ideia Epreciso que a despeito da educa9ao mais honesta eu tivesse ulna grande inclinafGo a degenerar pois isso se deu muito rapidamente sem a menor dificuldade e jamais Cesar tao precoce tomou-se tao prontamente Laridon37

A essa passagem que segue de perto 0 episodio de Bossey pode-se acrescentar urn texto do final da vida de Rousseau testemunho tanto mais significativo quanto data de uma epoca em que este nao cessa de afmnar sua permanente fidelidade a si mesmo

Tal vez sem me dar conta eu meslIlo tenha 11ludado lais do que seria preciso Que natural resistiria sem se alterar a uma situa9ao semeIhante a minha38

Pergunta que ele se apressa em responder pela negativa Pois preshycisamente no momenta em que tudo muda para ele no momento em que acredita viver em urn sonho Rousseau se opoe com todas as suas forl)as aangustia da aItera9ao interior e luta pel a salvaguarda de sua identidade Alguma coisa mudou mas sua alma permaneceu a mesma Ele repele para 0 exterior a responsabilidade da alteral)ao Foram os outros que sofreram a metamorfose mais surpreendente e que eles proprios irrecoshynheciveis desfiguram sua imagem e suas obras Quanto a ele mesmo permaneceu 0 que era Seus sentimentos mudaram porque as realidades externas nao sao mais as mesmas

Mas as coisas mudaram muito de figura desde que minhas infelicidades COlle~aram Vivi desde entao em uma gera9ao nova que nao se parecia de modo nenhurn com a prinnira e meus proprios sentimentos pelos outros

2M

sofreram mudan9as que encontrei nos deIes A mesmas pessoas que vi sucessivamente nessas duas gera90es tao diferentes assimitaram-se por assim dizer a uma e a outra39

[] Eu 0 mesmo homem que era 0 mesmo que sou ainda

Sob a mascara que os outros impoem de fora a sua fisionomia Jean-Jacques nao deixou de ser Jean-Jacques No momento em que esta mais sombriamente obsedado pela perseguil)ao replica contando a si mesmo a versao otimista do mito da origem nada foi perdido 0 tempo nao alterou 0 essencial s6 corroeu na superficie 0 mal vern de fora mas permanece fora 0 rosto de Glauco permaneceu intacto sob a espuma que o desfigura Jean-Jacques apIica entao a si mesmo (e s6 a ele) uma ideia que formulara anteriormente a respeito do homem em geral e que opunba a nOl)ito da natureza perdida e da natureza oculta de uma natureza que se pode mascarar mas que jamais sera destruida Demasiadamente poshyderosa e talvez demasiadamente divina para que possamos transforma-Ia ou suprimi-Ia ela elude nossos empreendimentos profanadores e se reshyfugia nas profundezas onde esta apenas dissimulada sob involucros exteriores Esta esquecida mas nao realmente perdida e se a memoria nos faz entreve-Ia no fundo do passado e porque estamos ja proximos de Iiberta-la de seus veus e de redescobri-Ia presente e viva em nos mesmos

Os males da alma [ ] alterap5es extemas e passageiras de urn ser imortal e simples apagam-se insensivelmente e deixam-no elll suaorilla origial que nada poderia mudar41

Entao Rousseau invoca com confianl)a uma natureza que nada destroi torna -se 0 po eta da permanencia desvelada Descobre em si mesmo a proximidade da transparencia original e esse homem da nashytureza que ele buscara na profundeza das eras agora reencontra-Ihe os tral)os originais na profundeza do eu Aquele que sabe recolher-se em si mesmo pode ver resplandecer novamente a fisionomia do deus subshymerso liberta da ferrugem que a mascarava

De onde 0 pintor e 0 apologista da natureza hoje tao desfigurada e tao caluniada pode haver tirado seu modelo se nao de seu proprio corarao Descreveu-a como eIe proprio se sentia Os preconceitos aos quais nao estava subjugado as paixOes facticias de que nao era presa nao ofuscavam de modo ncnhum aos seus olhos como aos dos outros esses prirnciros traros till) geralmente esquecidos ou ignorados Esses traros tao novos para ncgts l~ tilt) verdadeiros uma vez tra9ados encontravam ainda no fundo dos corarOcs II atestarao de sua justeza mas jamais se teriam mostrado novarncntc p)r si mcslllos se 0 historiador da natureza nao hOllvcsse cOIll~fld() por wtirlr 1

ferrugem que os oCllltava S6 lima vida rctirada c solitaritl l1Il gosto vivo pete dcvaneio e pela contclllpla9ao 0 lubito dc lc()lIll~r-s( ()III si c I( II I

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buscar na calma das paixoes esses primeiros trayos desaparecidos na multishydao podiam-no fazer redescobri-los Em uma palavra era preciso que um homem se houvesse pintado a si mesmo para nos mostrar assim 0 homem primitivo 42

o conhecimento de si equivale a uma reminiscencia mas nao e de maneira nenhuma por urn esfonyo de memoria que Rousseau reencontra esses primeiros traltyos que pertencem contudo a urn mundo anterior Para descobrir 0 homem da natureza e para tornar-se seu historiador Rousseau nao teve de remontar ao comeltyo dos tempos bastou-Ihe pintar a si mesmo e reportar-se it sua propria intimidade it sua propria natureza em urn movimento a uma so vez passiv~ e ativo buscando-se a si mesmo abandonando-se ao devaneio 0 recurso a interioridade atinge a mesma realidade decifra as mesmas normas absolutas que a exploraltyao do pass ado mais remoto Assim 0 que era primeiro na ordem dos tempos historicos se redescobre como 0 que e mais profundo na experiencia atual de Jean-Jacques A distancia historica nao e rna is que distancia interior e essa distancia e logo transposta para aquele que sabe abandonar-se plena mente ao sentimento que se desperta nele Doravante a naturezamiddot (como a presenltya de Deus para santo AgostinhO)43 deixando de ser 0

que ha de mais longinquo atras de nos oferece-se como 0 que e mais central em nos Como se ve a norma ja nao e transcendente e imanente ao eu Basta ser sincero ser eu mesmo e entao 0 homem da natureza nao e mais 0 distante arquetipo ao qual me refiro ele coincide com a minha propria presenltya com a minha propria existencia A transparencia antiga resultava da presenltya ingenua dos homens soh 0 olhar dos deuses a nova transparencia e uma relaltyao mterlor 10 eu uma relaltao cc sigo mesmo realiza-se na limpidez do olhar sobre si mesmo que permite a Jean-Jacques pintar-se tal como e Vma imagem pode entao surgir que equivale (Rousseau nos garante isso) it historia autentica da especie inteira e que ressuscita 0 passado perdido para revela-lo como 0 presente etemo da natureza Os homens ai redescobrem a certeza de uma semelhanltya comum (Cada homem carrega a forma inteira da humana condi9ao dizia Montaigne) Porque Jean-Jacques soube abandonar-se a si mesmo os homens se reconhecerao por sua vez Atras de suas falsas verdades reencontram uma presenltya esquecida uma forma que permanecia intacta sob os veus ei-Ios libertos do esquecimento

Pode-se entao recobrar a natureza primeira do homem sem ter de remontar as origens rea is e sem se aventurar nas r~construltyoes historicas Rousseau se ex plica sobre isso de uma maneira bastante clara no segundo Discurso on de 0 vemos renunciar bern facilmente a toda asser9ao sobre as verdadeiras origens para se reservar 0 direito de esclarecer por via de hipotese a natur(za das coisas

w

Nao se devem tomar as investigayoes nas quais se pode entrar sobre esse assunto por verdades historicas mas apenas por raciocfnios hipoteticos e condicionais mais aptos a esclarecer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem 44

Mas a natureza do homem pode ser apreendida independentemente da hisforia humana Rousseau hesita De fato se nao pode dispensar a n09ao de uma natureza humana essencial tam bern nao pode renunciar it ideia de urn devir historico que Ihe permita dar uma explicaltyao plausivel da aIteraltyao que a humanidade sofreu ao afastar-se de suas bem-aventushyradas origens Rousseau desejaria reservar-se conjuntamente a possibilishydade de acusar a perversao pela qual a sociedade e responsavel e conservar o direito de proclamar a permanencia da bondade original Ha a1 uma dupla afirmaltyao que pode passar por contraditoria e que nao se deixou de criticar em Jean-Jacques Pois na medida em que a sociedade e obra humana deve-se admitir que 0 homem e cuJpado e carrega a culpa de todo 0 mal que fez a si mesmo mas por outro lado na medida em que o homem nao deixa de ser urn filho da natureza ele conserva uma inocencia indestrutivel Como conciliar a afinna9aO 0 homem e natushyralmente born e esta outra Tudo degenera entre as maos do homem

UMA TEODICEIA QUE INOCENTA 0 HOMEM E DEUS

Cassirer mostrou-o bem 45 os postulados de Rousseau permitem resolver 0 problema da teodiceia sem imputar a origem do mal nem a Deus nem ao homem pecador

[Nao e) necessario supor 0 homem mau por sua natureza quando se [pode] assinalar a origem e 0 progresso de sua maldade Estas reflexoes me conduziram a novas investigayoes sobre 0 espirito humano considerado no estado civil e julguei entao que 0 desenvolvimento das luzes e dos vicios sc fazia sempre na mesma proporyao nao nos individuos mas nos povos distinyiio que sempre fiz cuidadosamente e que nenhum daqueles que me atacaram jamais pode conceber46

o mal se produz pela historia e pela sociedade sem alterar a essencia do individuo A culpa da sociedade nao e a culpa do homem essencial Illas a do homem em relaltyao Ora com a condiltyao de dissociar 0 hommll cssencial e 0 homem em relaltyao com a condi9aO de separar sociabilidadtgt e natureza humana pode-se atribuir ao mal e a alteraltyiio hist6rica lima s itu1ltyiio periferica em relaltyao a permanencia central cia natureza original o n1 tI t partir dar podera confundir-se com a paixao do h OIllNn 101

tqlli lo que Iha 6 exterior peo de fo ra a prtlig io 0 pnrect r a P OSSl uu

H

bens materiais 0 mal e exterior e e a paixao pelo exterior se 0 homem se entrega inteiro asedwao dos bens externos sera inteiramente submeshytido ao imperio do mal Mas recolher-se em si sera para ele em qualquer tempo 0 recurso da salvatao Rousseau nao se content a portanto em reprovar a exterioridade como quase todos os moralistas haviam feito antes dele incrimina-a na propria definisao do mal Essa condenatao nao passa da contra partida de uma justificasao que pretende salvar - de uma vez por todas - a essencia interna do homem Repelido para a periferia do ser rechasado para 0 mundo da relasao 0 mal nao tera 0 mesmo estatuto ontologico que a bondade natural do homem 0 mal e veu e velamen to e mascara tern acordo com 0 facticio e nao existiria se 0

hom em nao tivesse a perigosa liberdade de negar pelo artificio 0 dado natura l E entre as maos do homem e nao em seu corayao que tudo degenera Suas maos trabalham mudam a natureza fazem a h istoria ordenam 0 mundo exterior e produzem com 0 tempo a diferenya entre as epocas a luta entre os povos a desigualdade entre os particulares

Em uma mesma pagina (prefacio de Narciso) Rousseau protestara contra falsa m osofia que sustenta que os homens sao por toda parte os mesmos mas que as vicios do mundo middot contemporaneo nao pershytencem tanto ao homem quanta ao homem malgovemado 47 Contradisao si gnificativa Rousseau desse modo afinna ao mesmo tempo a pershymanencia de uma inocencia essencial e 0 movimento da historia que e alterasao corruptao moral degenerescencia politica e que promove o estado de conflito e a injustisa entre os homens 48

Nas teorias do progresso que serao propostas rna is tarde intervira uma hipotese bastante analoga que visara conciliar 0 postulado da pershymanencia da natureza human a com a ideia de uma mudansa coletiva 0 homem pem1anece 0 mesmo a humanidade progride sempre dira Goethe A validade do pessimismo historico do segundo Discurso foi contestada e admitiu-se mais comumente a tese otimista de Goethe Entretanto do ponto de vista filosOfico 0 problema e ide ntico Tanto em urn como no outro e preciso conci liar a estabilidade da natureza humana e a mobilidade do desenvolv imento real da hist6ria e preciso explicar por que 0 homem (enquanto individuo) possui 0 privilegio de pennanecer 0 mesmo ao passo que a human idade (enquanto coletishyvidade) esta sujeita a mudansa

Rousseau contudo nao tern necessidade da hist6ria a nao ser para the pedir a explicasao do mal E a ideia do mal que da ao sistema sua dimensao historica 0 devir e 0 movimento pelo qual a humanidade se toma culpada 0 homem nao e naturalrnente vicioso tornou-se vishycioso 0 retorno ao bern coincide entao com a revolta contra a hist6ria e em particular contra a situayao historic a atual Se e verdade que 0

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pensamento de Rousseau e revolucionario e preciso acrescentar de imeshydiato que ele 0 e em nome de uma natureza humana eterna e nao em nome de urn progresso historico (Sera preciso interpretar a obra de Rousseau para ver nela urn fator decisivo no progresso politico do seculo XVIII) Como veremos seu pensamento social consciente da necessidade de afrontar 0 mundo e os homens tais como sao visa sobretudo insshytaurar ou restaurar a soberania do imediato isto e a reino de urn valor sobre 0 qual a duratao nao tern poder

H

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CRiTICA DA SOCIEDADE

Rousseau situa-se em seu seculo entre os escritores que contestam os valores e as estruturas da sociedade momirquica Por mais distintos que tenham sido a contestayao cria entre esses autores uma semeihanya e Ihes da urn ar de fratemidade cada urn deles podera ser considerado a algum titulo como urn agente ou urn anunciador da proxima Revoluyao Assim se ex plica a reconciliayao postuma de Rousseau e de Voltaire sUa comum apoteose sua promoyao a ciasse de divindade bifronte ou de diade tutelar A gravura popular os imortahzani lade a lade metamorfoshyseados em genios lampadOforos com urn candelabro na mao propagando diante deles as luzes e radiantes de brilho luciferiano

Rousseau quer apreender 0 principio do mal Poe em causa a soshyciedade a ordem social em seu conjunto 0 esforyo critico nele nao se dispersa e nao se atribui como tarefa afrontar uma a uma as multiplas manifestayoes do mal Ele remonta a uma causa geral que 0 dispensa de atacar isolada mente tal abuso particular tal usurpayao tal impostura (De resto ele e por demais egocentrico para assumir 0 papel de defensor dos oprimidos Voltaire tem seu caso Calas e dez outros semelhantes Rousshyseau esta sobrecarregado pelo caso Rousseau)

Rousseau faz a historia de seus pensamentos observou uma discorshydancia eotre os atos e as palavras dos homens essa diferenya se explica por uma outra diferenya a do ser e do parecer mas e preciso ainda buscar-Ihe a causa Rousseau assim a formula

Ellcontrei-a em nossa ordem social que em todos os sentidos tontnlria a natureza qlle nada destr6i tiraniza -a continuamente e sem cessar a faz exigir

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seus direitos Acompanhei essa contradiriio em suas conseqiiencias e vi que tao-somente ela explicava todos os vicios dos homens e todos os males da sociedade I

Nessa passagem que resume muito firmemente a substancia dos dois Discursos Rousseau define da maneira mais clara 0 objeto eo aIcance de sua eritica social a contestayaO diz respeito a sociedade enquanto esta e contraria a natureza Essa sociedade negadora da natureza (da ordem natural) nao suprimiu a natureza Mantem com ela urn eonflito permanente de onde nascem os males e os vcios de que sofrem os homens A critica de Rousseau esboya portanto uma negayao da negayao acusa a civili shyzayao cuja caracteristica fundamental e sua negatividade em relayao a natureza A cultura estabelecida nega a natureza - e essa a afirmayao patetica dos dois Discursos e do Emilio As falsas luzes da civilizayao longe de iluminar 0 mundo humano velam a transpareneia natural separam os homens uns dos outros particularizam os interesses destroem toda possibili dade de confianya reciproca e substituem a eomunicayao esseneial das almas por urn comercio faeticio e desprovido de sineeridade assim se constitui uma soeiedade em que cada urn se isola em seu amor-proprio e se protege atnis de uma aparencia mentirosa Paradoxo singular que de urn mundo em que a relayao economica entre os homens parece rna is estreita faz efetivamente um mundo de opacidade de mentira de hipocrisia

Queixo-me de que a filosofia afrouxe os laros da sociedade que sao formados pela estillQ e pela bellevolencia IIttuas e queixo-me de que as ciencias as artes e todos os outros objetos de comercio estreitem os laros da sociedade pelo inleresse pessoal E que com efeito niio se pode estreitar urn desscs laros sem que 0 outro nao se afrouxe na mesma proporriio Portanto nada ha nisso de contradiriio2

Rousseau confronta aqui de maneira signifieativa dois tipos de relacao que se opoem como a transparencia a opaeidade A estima e a benevolencia eonstituem urn layo pelo qual os homens se reunem imediatamente nada se interpoe entre as consciencias elas se oferecern espontaneamente numa evideneia total Em compensayao os layos orshydenados pelo interesse pessoal perderam esse carater imediato A relayao ja nao se estabeleee diretamente de consciencia a conscieneia ela agora p3ssa por coisas A perversao que da resulta provem nao apenas do fato de que as eoisas se interpoem entre as eonseiencias mas lambcm do fato de que os homens deixando de identificar seu interesse com sua existencia pessoal identificam-no doravante com os objetos illiN postos que acreditam indispensaveis a sua felicidade 0 eu do hOllwllI social nao se reconheee mais em si mesmo mas se buse no exlcmiddotrim

ntrl as coisns sells meios se tornam sell filn 0 homclIl illkirll

torna coisa ou escravo das coisas A critica de Rousseau den uncia essa alienaYao e propoe como tarefa um retorno ao imediato

A sociedade civilizada desenvolvendo sempre mais sua oposiYao a natureza obscurece a relaYao imediata das consciencias a perda da transparencia original vai de par com a alienaYao do homem nas coisas materia is A analise de Rousseau sobre esse ponto prefigura as de Hegel e de Marx tanto mais se lhes assemelha quanta se apoia em uma descriYao do devir historico da humanidade Com efeito 0 Discurso sabre a origem da desigualdade e uma historia da civilizaYao como progresso da negaYao do dado natural progresso ao qual corresponde uma degradaYao da inoshycencia original A historia das tecnicas e ex posta em estreita ligaYao com a historia moral da humanidade Mas a diferenYa do esforYo filosOfico do seculo XIX e em contraste com as pretensoes positivistas de alguns de seus contemporaneos Rousseau procura fundar urn julgamento moral referente a historia de preferencia a estabelecer um saber antropologico E como moralista que ele escreve a historia da moral Dai 0 aspecto ambiguo de sua demonstraYao As fases pelas quais 0 homem passou 0

est ado a que chegou devem em primeiro lugar ser estabelecidos como fatos uma vez estabelecidos de vern ser aceitos a humanidade sofreu transformaYoes inelutaveis com isso chegou fatalmente a seu estado presente eis 0 que est a fora de contestaYao Mas a validade do fato nao nos permite prejulgar do direito Os fatos historicos nao justificam nada a historia nao tern legitimidade moral e Rousseau nao hesita em condenar em nome dos val ores eternos 0 mecanismo historico do qual mostrou a necessidade e que estendeu as proprias funYoes mora is

Tendo retraYado a progressao da cultura e tendo-a definido como negaYao da natureza Rousseau opoe a cultura uma recusa uma nova negaYao que e a consequencia de urn juizo moral e que se vale de urn absoluto etico A indignaYao de Rousseau (ele proprio homem natural) contra a sociedade (criaYao historica) e a expressao patetica desse conflito Ele toma a palavra para dizer nao a antinatureza A situaYao presente com seu luxe e sua miseria e ao mesmo tempo historicamente motivada e moralmente inaceitavel Rousseau compreende a sociedade de seu tempo mas the opoe uma reprovaYao escandalizada 0 pensamento de Rousseau nao podera portanto deter-se ai Pois compreender urn mundo opaco nao e ainda redescobrir ou restabelecer a transparencia Longe de equivaler para Rousseau a uma adesao intelectual a compreensao so estabelece 0 fato para opor-Ihe imediatamente 0 direito Ele protesta contra 0 metodo de Grotius sua maneira de raciocinar e de estabelecer sempre 0 direito pelo fato) Rousseau julga e condena em nome do direito os fatos dos quais prova a necessidade historica E como precisa para realizar 0 ideal da transparencia de urn mundo em que 0 fato coincide

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com 0 direito buscara esse mundo ora aquem da historia - nos antigos tempos em que 0 progresso corruptor nao existe ainda - ora alem em urn futuro abstrato em que a desordem atual seria superada por uma ordem rna is perfeita

Page 6: Jean Starobinski - Jean-jacques Rousseau Transparencia e Obstaculo

mortais e nada assegura ao observador (ou ao acusador) de que ele proprio seja poupado pel a doen~a universal

o drama da queda nao antecede portanto a existt~ncia terrestre Rousseau transporta 0 mito religioso para a propria historia divide-a em duas eras uma tempo estavel da inocencia reino tranqiiilo da pura natureza a outra historia em devir atividade culpada negayao da na shytureza pelo homem

Ora se a queda e nossa obra se e urn acidente da historia humana e preciso admitir que 0 homem nao esta naturalmente condenado a viver na desconfianya na opacidade enos vieios que as escoltam Estes sao a obra do hom em ou da sociedade Entao nao ha nada a1 que nos impeya de refazer ou de desfazer a historia tendo em vista redescobrir a transparencia perdida Nenhuma proibiyao sobrenatural a isso se opoe A essencia do homem nao esta comprometida mas apenas sua situar iio historica Talvez quisesses tu poder retroceder27 A pergunta perrnashynece suspensa mas em todo caso nao ha espada flaI1lejante que nos impeya 0 acesso do paraiso perdido Para alguns (em distantes costas) que dele nao sairam talvez ainda seja tempo de deter-sea E mesmo que por uma fatalidade puramente humana 0 mal seja irreversivel mesmo que nos seja preciso admitir que urn povo vicioso nao retoma jamais a virtude a historia nos propoe uma tarefa de resistencia e de recusa 0 minimo que poderiamos fazer se nao podemos tomar bons aqueles que nao 0 sao mais e conservar assim aqueles que tern a felicidade de se-Io29 Porque 0 advento do mal foi urn fato historico a luta contra 0 mal cabe tambem ao homem na historia

Rousseau nao duvida de que uma ayao seja possivel de que uma livre decisao possa consagrar-nos ao serviyo da verdade velada Mas quanta a natureza dessa decisao e dessa ayao ele ouve varios apelos e os exprime sucessivamente (ou simultaneamente) em sua obra reforma moral pessoal (vitam impendere vero) educayao do individuo (Emilio [Emile]) forrnayao politica da coletividade (Economia politica [Discours sur leconomie politique] Contrato social [Le contrat social)) A que se acrescenta em Jean-Jacques uma hesita~ao que orienta seu desejo ora no sentido de uma regressao temporal ora no sentido do presente mais proximo refugio de uma consciencia que se basta a si mesma mais raramente no sentido de uma SUperayaO em direyao ao futuro Alternadamente ele se entregara ao devaneio arcadico de urn retorno a floresta primitiva ou entao fara a defesa de uma estabilizayao conshyservadora em que a alma e a sociedade salvaguardariam 0 que Ihes resta ainda de puro e de original ou ainda trayara a ideia da felicidade futura do genero humano30 ou enfim construira fora do tempo uma Cidade virtuosa Instituiroes po[[ticas ideais De tantos designios desshy

2l

semelhantes que e tao dificil harrnonizar de maneira inteiramente satis shyfatoria e preciso reter esta unica coisa que tem em comum sua unidade de i1ltenpio que visa a salvaguarda ou a restaurayao da transparencia comprometida No apelo apaixonado que Rousseau dirige a seus cooshytemporaneos pode nao haver nada mais que urn convite a cultivar 1

moral da boa vontade e da boa consciencia e ai pode-se ler tambClII um convi te a transforrnar a sociedade pela a9ao politica efetiva Essa ambigiiidade e emharayosa Mas de uma maneira nao ambigua Rousseau em primeiro lugar nos convoca a querer 0 retorno da rransparencia para nos e em nossas vidas Nao ha como equivocar-se sobre esse desejo tao poderoso quanta simples 0 mal-entendido come~ani no momento em que esse desejo se vir confrontado com tarefas concretas com sishytua90es problematicas Pois do desejo de transparencia a transparencia possuida a passagem nao e instantanea 0 acesso nao e im ediato Sc se empreende libertar-se da menti ra cedo ou tarde nao se pode impedir colocar a questao dos meios (que sao diversos e contraditorios) e dOl afiio que tanto pode fracassar como ter exito e que corre 0 risco dmiddot~

nos fa zer recair no mundo da ment ira e da opacidade

SABER HIST6R1CO E VISAO POETICA

Mas a que distancia estamos da transparencia perdida Que espesshysuras dela nos separam Qual e 0 espa~o a transpor para redescobri-la 1

No Discurso sobre a origem da desigualdade [Disc ours sur jorigillC de inegaire1 Rousseau interpoe multidoes de seculos 0 afastamento e imenso e a I uz da prime ira felicidade parece quase apagar-se na distanci das eras 0 que se pode saber de urn periodo tao longinquo A razao nao pade evitar a formulayao de algumas duvidas 0 tempo da transparencia realmente ocorreu ou ai nao est amais que uma fic~iio que inventamos para poder reconstruir especulativamente a bist6ria a partir de uma ori shygem Em uma passagem do segundo Discurso em que Rousseau vigia manifestamente seu pensamento nao chega ele a supor que 0 estado de natureza Utalvez nao lenha absolutamente existido 0 estado de natureza e pois tiio-somente 0 postulado especulativo que uma historia hipote shytiea se confere principio sobre 0 qual a deduyao podeni apoiar-se em busea de uma sene de ca usas e de efe itos bem encadeados para conslruir a expLicayao genetiea do mundo ta l como ele se oferece aos nossos olhos Assim procedem quase todos os homens de ciencias e os fil6sofos un epoca que creem nada ter demonstrado se na o remontaram as fO llt simples e necessarias de todos os fenomenos fazem-se ent aCI CIS hb t riadores das ori2ens da terra da vida das fnc lIlrlulfgts cia alllla ds qoci

H

dades Dando aespeculayao 0 nome de observayao esperam estar isentos de qualquer outra prova

De fato amedida que Rousseau desenvolve sua ficyao historica esta perde seu carater de hipotese uma especie de confianya e de emshybriaguez vern abolir toda prudencia intelectual a descriyao desse estado primeiro muito proximo ainda da animalidade torna-se a evocayao enshycantada de urn Iugar onde viver Vma nostalgia elegiaca se comove a ideia dessa vida errante e sa com seu equilIbrio sensitivo com sua justa suficiencia Imagem por demais imperiosa por demais profundashymente satisfatoria para nao corresponder no espirito de Rousseau aestrita verda de historica Vma certeza ganha corpo que e de essencia poetica mas que se engana sobre sua natureza quer falar a linguagem da historia e tomar por testemunha a erudiyao mais seria A convicyao se impoe irrefutavelmente tais foram sem contestayao os primordios da humanishydade tal foi a primeira fisionomia do homem Rousseau conta a si mesmo a historia objetiva de uma Idade da transparencia para legitimar sua nostalgia A certeza de Rousseau e a de alguem que se lembra ela e acanyada no contato e seus discipulos ja nao verao nele 0 autor de uma historia hipotetica mas 0 vidente (Seher dira H6lderlin) que detem a memoria de urn passado muito antigo de um tempo rna is belo Na ode inacabada intitulada Rousseau H6lderlin escreve

auch dir auch dir Erfreuet die feme Sonne dein Haupt

Und Strahell ails der sclollem Zeit Es Haben die Boten dein Herz gefllndell 31

[para ti tarn bern para ti tambern o distallte sol ilumina lua fronte com Slla alegria E os raios vindos de uma epoca mais bela Eles os rncnsageiros encontraram tell caratiio]

H61derlin aqui faz de Rousseau urn desses interpretes a quem e concedido ser tocado pela luz de uma era vindoura ou de urn passado desaparecido

o DEUS GLA UCO

Pode-se dizer ainda que a transparencia original desapareceu Reshydescoberta na memoria nao e ela entao retomada na transparencia propria da memoria e por isso mesmo salva Desertou-nos inteiramente ou estamos ainda em sua vizinhanya Rousseau hesita entre duas respostas nntradit-cirias lZrn dado momento 0 mito bifurca em duas versoes A

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primeira afirma que a alma humana degenerou que se desfigurou que sofreu uma alterayao quase total para jamais reencontrar sua beleza prime ira A segunda versao em lugar de uma defonnayao evoca uma especie de encobrimento a natureza primitiva persiste mas oeulta cershycada de veus superpostos sepultada sob os artificios e no en tanto sempre intacta Versao pessimista e versao otimista do mito da origem Rousseau sustenta ambas alternadamente e por vezes mesmo simultaneamente Diz-nos que 0 homem destruiu de modo irremediavel sua identidade natural mas proclama tambem que a alma original sendo indestrutivel permanece para sempre identica a si mesma sob as manifestayoes externas que a mascaram

Rousseau retoma por sua conta 0 mito platonico da estatua de Glauco

Semelhante aedtatua de Glauco que 0 tempo 0 mar e as tempestades haviam desjigurado tanto que se parecia menos com um deus do que com urn animal feroz a alma humana alterada no seio da sociedade por mil causas continuashymente renascentes pela aquisitiio de uma multidao de conhecimentos e de eITOS pelas mudantas ocoITidas na constituitiio dos carpos e pelo choque continuo das paix6es por assim dizer mudou de aparencia a ponto de 5(r quase irreconhecivel 32

Mas ha aqui um por assim dizer e urn quase que devolvem todas as esperanyas A imagem da estatua de Glauco no contexto de Rouss~au conserva algo de enigmatico Seu rosto foi corroido e mutilado pelo tempo perdeu para sempre a forma que tinha ao sair das maos do escultor Ou entao foi ele recoberto por uma crosta de sal e de algas sob a qual a face divina conserva sem nenhuma perda de substancia seu modelo original Ou ainda a fisionomia original nao e mais que uma ficy ao destinada a servir de norma ideal para quem quer interpretar 0 estado atual da humanidade

Nao e uma empresa leve deslindar 0 que ha de originario e de artificial 111

natureza atual do homem e conhecer bem urn estado que nao existe milis que provavelmente nao existira jamais e sobre 0 qual entretanlo enecesshysario ler not6es justas para bern avaliar nosso estado presenteD

Permanecer 0 que se era deixar-se alterar pela mudanya tocamos aqui em categorias que para Rousseau sao 0 equivalente das categorias teologicas da perdiyao e da salvayao Rousseau nao cre no inferno mas em compensayao acredita que a perda da semelhanya e uma infeliddad( essencial enquanto que permanecer semelhante a si mesmo euma malcirtl de salvar sua vida ou ao menos uma promessa de salvarao 0 11111raquo0

historico que para Rousseau nao exclui a ideia do des(llvolvilll(ntn organico permanece carregado de culpabilidade 0 movilflcnto dn hlslOliI

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e urn obscurecimento e mais responsavel por uma deformal)ao do que por urn progresso qualitativo Rousseau apreende a mudan9a como uma corruP9aO34 no curso do tempo 0 homem se desfigura se deprava Nao e apenas sua aparencia mas sua propria essencia que se torna irreconheshycivel Essa versao severa (e por assim dizer calvinista) do mito da origem Rousseau a pro poe em diversos momentos de sua obra Descobre-se na origem dessa ideia uma angustia muito real avivada pelo sentimento do irreparavel Rousseau muitas vezes afirmou que 0 mal era sem retorno que uma vez transposto urn certo Iimiar fatal a alma estava perdida e nao tinha outr~ recurso senao aceitar sua perda Urn natural sufocado nos diz ele nao volta jamais e perde-se entao ao mesmo tempo 0 que se destruiu e 0 que se fez 35

Desafortunadosl 0 que nos tomamos nos Como deixamos de ser 0 que fomos36

Deforma9aO em que parece mais nada subsiste da forma original Ele pr6prio sentiu-se atingido e ameal)ado

Os gostos rna is vis a mais baixa molecagem sucederam-se as minhas amaveis diversoes sem delas me deixar mesmo a menor ideia Epreciso que a despeito da educa9ao mais honesta eu tivesse ulna grande inclinafGo a degenerar pois isso se deu muito rapidamente sem a menor dificuldade e jamais Cesar tao precoce tomou-se tao prontamente Laridon37

A essa passagem que segue de perto 0 episodio de Bossey pode-se acrescentar urn texto do final da vida de Rousseau testemunho tanto mais significativo quanto data de uma epoca em que este nao cessa de afmnar sua permanente fidelidade a si mesmo

Tal vez sem me dar conta eu meslIlo tenha 11ludado lais do que seria preciso Que natural resistiria sem se alterar a uma situa9ao semeIhante a minha38

Pergunta que ele se apressa em responder pela negativa Pois preshycisamente no momenta em que tudo muda para ele no momento em que acredita viver em urn sonho Rousseau se opoe com todas as suas forl)as aangustia da aItera9ao interior e luta pel a salvaguarda de sua identidade Alguma coisa mudou mas sua alma permaneceu a mesma Ele repele para 0 exterior a responsabilidade da alteral)ao Foram os outros que sofreram a metamorfose mais surpreendente e que eles proprios irrecoshynheciveis desfiguram sua imagem e suas obras Quanto a ele mesmo permaneceu 0 que era Seus sentimentos mudaram porque as realidades externas nao sao mais as mesmas

Mas as coisas mudaram muito de figura desde que minhas infelicidades COlle~aram Vivi desde entao em uma gera9ao nova que nao se parecia de modo nenhurn com a prinnira e meus proprios sentimentos pelos outros

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sofreram mudan9as que encontrei nos deIes A mesmas pessoas que vi sucessivamente nessas duas gera90es tao diferentes assimitaram-se por assim dizer a uma e a outra39

[] Eu 0 mesmo homem que era 0 mesmo que sou ainda

Sob a mascara que os outros impoem de fora a sua fisionomia Jean-Jacques nao deixou de ser Jean-Jacques No momento em que esta mais sombriamente obsedado pela perseguil)ao replica contando a si mesmo a versao otimista do mito da origem nada foi perdido 0 tempo nao alterou 0 essencial s6 corroeu na superficie 0 mal vern de fora mas permanece fora 0 rosto de Glauco permaneceu intacto sob a espuma que o desfigura Jean-Jacques apIica entao a si mesmo (e s6 a ele) uma ideia que formulara anteriormente a respeito do homem em geral e que opunba a nOl)ito da natureza perdida e da natureza oculta de uma natureza que se pode mascarar mas que jamais sera destruida Demasiadamente poshyderosa e talvez demasiadamente divina para que possamos transforma-Ia ou suprimi-Ia ela elude nossos empreendimentos profanadores e se reshyfugia nas profundezas onde esta apenas dissimulada sob involucros exteriores Esta esquecida mas nao realmente perdida e se a memoria nos faz entreve-Ia no fundo do passado e porque estamos ja proximos de Iiberta-la de seus veus e de redescobri-Ia presente e viva em nos mesmos

Os males da alma [ ] alterap5es extemas e passageiras de urn ser imortal e simples apagam-se insensivelmente e deixam-no elll suaorilla origial que nada poderia mudar41

Entao Rousseau invoca com confianl)a uma natureza que nada destroi torna -se 0 po eta da permanencia desvelada Descobre em si mesmo a proximidade da transparencia original e esse homem da nashytureza que ele buscara na profundeza das eras agora reencontra-Ihe os tral)os originais na profundeza do eu Aquele que sabe recolher-se em si mesmo pode ver resplandecer novamente a fisionomia do deus subshymerso liberta da ferrugem que a mascarava

De onde 0 pintor e 0 apologista da natureza hoje tao desfigurada e tao caluniada pode haver tirado seu modelo se nao de seu proprio corarao Descreveu-a como eIe proprio se sentia Os preconceitos aos quais nao estava subjugado as paixOes facticias de que nao era presa nao ofuscavam de modo ncnhum aos seus olhos como aos dos outros esses prirnciros traros till) geralmente esquecidos ou ignorados Esses traros tao novos para ncgts l~ tilt) verdadeiros uma vez tra9ados encontravam ainda no fundo dos corarOcs II atestarao de sua justeza mas jamais se teriam mostrado novarncntc p)r si mcslllos se 0 historiador da natureza nao hOllvcsse cOIll~fld() por wtirlr 1

ferrugem que os oCllltava S6 lima vida rctirada c solitaritl l1Il gosto vivo pete dcvaneio e pela contclllpla9ao 0 lubito dc lc()lIll~r-s( ()III si c I( II I

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buscar na calma das paixoes esses primeiros trayos desaparecidos na multishydao podiam-no fazer redescobri-los Em uma palavra era preciso que um homem se houvesse pintado a si mesmo para nos mostrar assim 0 homem primitivo 42

o conhecimento de si equivale a uma reminiscencia mas nao e de maneira nenhuma por urn esfonyo de memoria que Rousseau reencontra esses primeiros traltyos que pertencem contudo a urn mundo anterior Para descobrir 0 homem da natureza e para tornar-se seu historiador Rousseau nao teve de remontar ao comeltyo dos tempos bastou-Ihe pintar a si mesmo e reportar-se it sua propria intimidade it sua propria natureza em urn movimento a uma so vez passiv~ e ativo buscando-se a si mesmo abandonando-se ao devaneio 0 recurso a interioridade atinge a mesma realidade decifra as mesmas normas absolutas que a exploraltyao do pass ado mais remoto Assim 0 que era primeiro na ordem dos tempos historicos se redescobre como 0 que e mais profundo na experiencia atual de Jean-Jacques A distancia historica nao e rna is que distancia interior e essa distancia e logo transposta para aquele que sabe abandonar-se plena mente ao sentimento que se desperta nele Doravante a naturezamiddot (como a presenltya de Deus para santo AgostinhO)43 deixando de ser 0

que ha de mais longinquo atras de nos oferece-se como 0 que e mais central em nos Como se ve a norma ja nao e transcendente e imanente ao eu Basta ser sincero ser eu mesmo e entao 0 homem da natureza nao e mais 0 distante arquetipo ao qual me refiro ele coincide com a minha propria presenltya com a minha propria existencia A transparencia antiga resultava da presenltya ingenua dos homens soh 0 olhar dos deuses a nova transparencia e uma relaltyao mterlor 10 eu uma relaltao cc sigo mesmo realiza-se na limpidez do olhar sobre si mesmo que permite a Jean-Jacques pintar-se tal como e Vma imagem pode entao surgir que equivale (Rousseau nos garante isso) it historia autentica da especie inteira e que ressuscita 0 passado perdido para revela-lo como 0 presente etemo da natureza Os homens ai redescobrem a certeza de uma semelhanltya comum (Cada homem carrega a forma inteira da humana condi9ao dizia Montaigne) Porque Jean-Jacques soube abandonar-se a si mesmo os homens se reconhecerao por sua vez Atras de suas falsas verdades reencontram uma presenltya esquecida uma forma que permanecia intacta sob os veus ei-Ios libertos do esquecimento

Pode-se entao recobrar a natureza primeira do homem sem ter de remontar as origens rea is e sem se aventurar nas r~construltyoes historicas Rousseau se ex plica sobre isso de uma maneira bastante clara no segundo Discurso on de 0 vemos renunciar bern facilmente a toda asser9ao sobre as verdadeiras origens para se reservar 0 direito de esclarecer por via de hipotese a natur(za das coisas

w

Nao se devem tomar as investigayoes nas quais se pode entrar sobre esse assunto por verdades historicas mas apenas por raciocfnios hipoteticos e condicionais mais aptos a esclarecer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem 44

Mas a natureza do homem pode ser apreendida independentemente da hisforia humana Rousseau hesita De fato se nao pode dispensar a n09ao de uma natureza humana essencial tam bern nao pode renunciar it ideia de urn devir historico que Ihe permita dar uma explicaltyao plausivel da aIteraltyao que a humanidade sofreu ao afastar-se de suas bem-aventushyradas origens Rousseau desejaria reservar-se conjuntamente a possibilishydade de acusar a perversao pela qual a sociedade e responsavel e conservar o direito de proclamar a permanencia da bondade original Ha a1 uma dupla afirmaltyao que pode passar por contraditoria e que nao se deixou de criticar em Jean-Jacques Pois na medida em que a sociedade e obra humana deve-se admitir que 0 homem e cuJpado e carrega a culpa de todo 0 mal que fez a si mesmo mas por outro lado na medida em que o homem nao deixa de ser urn filho da natureza ele conserva uma inocencia indestrutivel Como conciliar a afinna9aO 0 homem e natushyralmente born e esta outra Tudo degenera entre as maos do homem

UMA TEODICEIA QUE INOCENTA 0 HOMEM E DEUS

Cassirer mostrou-o bem 45 os postulados de Rousseau permitem resolver 0 problema da teodiceia sem imputar a origem do mal nem a Deus nem ao homem pecador

[Nao e) necessario supor 0 homem mau por sua natureza quando se [pode] assinalar a origem e 0 progresso de sua maldade Estas reflexoes me conduziram a novas investigayoes sobre 0 espirito humano considerado no estado civil e julguei entao que 0 desenvolvimento das luzes e dos vicios sc fazia sempre na mesma proporyao nao nos individuos mas nos povos distinyiio que sempre fiz cuidadosamente e que nenhum daqueles que me atacaram jamais pode conceber46

o mal se produz pela historia e pela sociedade sem alterar a essencia do individuo A culpa da sociedade nao e a culpa do homem essencial Illas a do homem em relaltyao Ora com a condiltyao de dissociar 0 hommll cssencial e 0 homem em relaltyao com a condi9aO de separar sociabilidadtgt e natureza humana pode-se atribuir ao mal e a alteraltyiio hist6rica lima s itu1ltyiio periferica em relaltyao a permanencia central cia natureza original o n1 tI t partir dar podera confundir-se com a paixao do h OIllNn 101

tqlli lo que Iha 6 exterior peo de fo ra a prtlig io 0 pnrect r a P OSSl uu

H

bens materiais 0 mal e exterior e e a paixao pelo exterior se 0 homem se entrega inteiro asedwao dos bens externos sera inteiramente submeshytido ao imperio do mal Mas recolher-se em si sera para ele em qualquer tempo 0 recurso da salvatao Rousseau nao se content a portanto em reprovar a exterioridade como quase todos os moralistas haviam feito antes dele incrimina-a na propria definisao do mal Essa condenatao nao passa da contra partida de uma justificasao que pretende salvar - de uma vez por todas - a essencia interna do homem Repelido para a periferia do ser rechasado para 0 mundo da relasao 0 mal nao tera 0 mesmo estatuto ontologico que a bondade natural do homem 0 mal e veu e velamen to e mascara tern acordo com 0 facticio e nao existiria se 0

hom em nao tivesse a perigosa liberdade de negar pelo artificio 0 dado natura l E entre as maos do homem e nao em seu corayao que tudo degenera Suas maos trabalham mudam a natureza fazem a h istoria ordenam 0 mundo exterior e produzem com 0 tempo a diferenya entre as epocas a luta entre os povos a desigualdade entre os particulares

Em uma mesma pagina (prefacio de Narciso) Rousseau protestara contra falsa m osofia que sustenta que os homens sao por toda parte os mesmos mas que as vicios do mundo middot contemporaneo nao pershytencem tanto ao homem quanta ao homem malgovemado 47 Contradisao si gnificativa Rousseau desse modo afinna ao mesmo tempo a pershymanencia de uma inocencia essencial e 0 movimento da historia que e alterasao corruptao moral degenerescencia politica e que promove o estado de conflito e a injustisa entre os homens 48

Nas teorias do progresso que serao propostas rna is tarde intervira uma hipotese bastante analoga que visara conciliar 0 postulado da pershymanencia da natureza human a com a ideia de uma mudansa coletiva 0 homem pem1anece 0 mesmo a humanidade progride sempre dira Goethe A validade do pessimismo historico do segundo Discurso foi contestada e admitiu-se mais comumente a tese otimista de Goethe Entretanto do ponto de vista filosOfico 0 problema e ide ntico Tanto em urn como no outro e preciso conci liar a estabilidade da natureza humana e a mobilidade do desenvolv imento real da hist6ria e preciso explicar por que 0 homem (enquanto individuo) possui 0 privilegio de pennanecer 0 mesmo ao passo que a human idade (enquanto coletishyvidade) esta sujeita a mudansa

Rousseau contudo nao tern necessidade da hist6ria a nao ser para the pedir a explicasao do mal E a ideia do mal que da ao sistema sua dimensao historica 0 devir e 0 movimento pelo qual a humanidade se toma culpada 0 homem nao e naturalrnente vicioso tornou-se vishycioso 0 retorno ao bern coincide entao com a revolta contra a hist6ria e em particular contra a situayao historic a atual Se e verdade que 0

2

pensamento de Rousseau e revolucionario e preciso acrescentar de imeshydiato que ele 0 e em nome de uma natureza humana eterna e nao em nome de urn progresso historico (Sera preciso interpretar a obra de Rousseau para ver nela urn fator decisivo no progresso politico do seculo XVIII) Como veremos seu pensamento social consciente da necessidade de afrontar 0 mundo e os homens tais como sao visa sobretudo insshytaurar ou restaurar a soberania do imediato isto e a reino de urn valor sobre 0 qual a duratao nao tern poder

H

2

CRiTICA DA SOCIEDADE

Rousseau situa-se em seu seculo entre os escritores que contestam os valores e as estruturas da sociedade momirquica Por mais distintos que tenham sido a contestayao cria entre esses autores uma semeihanya e Ihes da urn ar de fratemidade cada urn deles podera ser considerado a algum titulo como urn agente ou urn anunciador da proxima Revoluyao Assim se ex plica a reconciliayao postuma de Rousseau e de Voltaire sUa comum apoteose sua promoyao a ciasse de divindade bifronte ou de diade tutelar A gravura popular os imortahzani lade a lade metamorfoshyseados em genios lampadOforos com urn candelabro na mao propagando diante deles as luzes e radiantes de brilho luciferiano

Rousseau quer apreender 0 principio do mal Poe em causa a soshyciedade a ordem social em seu conjunto 0 esforyo critico nele nao se dispersa e nao se atribui como tarefa afrontar uma a uma as multiplas manifestayoes do mal Ele remonta a uma causa geral que 0 dispensa de atacar isolada mente tal abuso particular tal usurpayao tal impostura (De resto ele e por demais egocentrico para assumir 0 papel de defensor dos oprimidos Voltaire tem seu caso Calas e dez outros semelhantes Rousshyseau esta sobrecarregado pelo caso Rousseau)

Rousseau faz a historia de seus pensamentos observou uma discorshydancia eotre os atos e as palavras dos homens essa diferenya se explica por uma outra diferenya a do ser e do parecer mas e preciso ainda buscar-Ihe a causa Rousseau assim a formula

Ellcontrei-a em nossa ordem social que em todos os sentidos tontnlria a natureza qlle nada destr6i tiraniza -a continuamente e sem cessar a faz exigir

11

seus direitos Acompanhei essa contradiriio em suas conseqiiencias e vi que tao-somente ela explicava todos os vicios dos homens e todos os males da sociedade I

Nessa passagem que resume muito firmemente a substancia dos dois Discursos Rousseau define da maneira mais clara 0 objeto eo aIcance de sua eritica social a contestayaO diz respeito a sociedade enquanto esta e contraria a natureza Essa sociedade negadora da natureza (da ordem natural) nao suprimiu a natureza Mantem com ela urn eonflito permanente de onde nascem os males e os vcios de que sofrem os homens A critica de Rousseau esboya portanto uma negayao da negayao acusa a civili shyzayao cuja caracteristica fundamental e sua negatividade em relayao a natureza A cultura estabelecida nega a natureza - e essa a afirmayao patetica dos dois Discursos e do Emilio As falsas luzes da civilizayao longe de iluminar 0 mundo humano velam a transpareneia natural separam os homens uns dos outros particularizam os interesses destroem toda possibili dade de confianya reciproca e substituem a eomunicayao esseneial das almas por urn comercio faeticio e desprovido de sineeridade assim se constitui uma soeiedade em que cada urn se isola em seu amor-proprio e se protege atnis de uma aparencia mentirosa Paradoxo singular que de urn mundo em que a relayao economica entre os homens parece rna is estreita faz efetivamente um mundo de opacidade de mentira de hipocrisia

Queixo-me de que a filosofia afrouxe os laros da sociedade que sao formados pela estillQ e pela bellevolencia IIttuas e queixo-me de que as ciencias as artes e todos os outros objetos de comercio estreitem os laros da sociedade pelo inleresse pessoal E que com efeito niio se pode estreitar urn desscs laros sem que 0 outro nao se afrouxe na mesma proporriio Portanto nada ha nisso de contradiriio2

Rousseau confronta aqui de maneira signifieativa dois tipos de relacao que se opoem como a transparencia a opaeidade A estima e a benevolencia eonstituem urn layo pelo qual os homens se reunem imediatamente nada se interpoe entre as consciencias elas se oferecern espontaneamente numa evideneia total Em compensayao os layos orshydenados pelo interesse pessoal perderam esse carater imediato A relayao ja nao se estabeleee diretamente de consciencia a conscieneia ela agora p3ssa por coisas A perversao que da resulta provem nao apenas do fato de que as eoisas se interpoem entre as eonseiencias mas lambcm do fato de que os homens deixando de identificar seu interesse com sua existencia pessoal identificam-no doravante com os objetos illiN postos que acreditam indispensaveis a sua felicidade 0 eu do hOllwllI social nao se reconheee mais em si mesmo mas se buse no exlcmiddotrim

ntrl as coisns sells meios se tornam sell filn 0 homclIl illkirll

torna coisa ou escravo das coisas A critica de Rousseau den uncia essa alienaYao e propoe como tarefa um retorno ao imediato

A sociedade civilizada desenvolvendo sempre mais sua oposiYao a natureza obscurece a relaYao imediata das consciencias a perda da transparencia original vai de par com a alienaYao do homem nas coisas materia is A analise de Rousseau sobre esse ponto prefigura as de Hegel e de Marx tanto mais se lhes assemelha quanta se apoia em uma descriYao do devir historico da humanidade Com efeito 0 Discurso sabre a origem da desigualdade e uma historia da civilizaYao como progresso da negaYao do dado natural progresso ao qual corresponde uma degradaYao da inoshycencia original A historia das tecnicas e ex posta em estreita ligaYao com a historia moral da humanidade Mas a diferenYa do esforYo filosOfico do seculo XIX e em contraste com as pretensoes positivistas de alguns de seus contemporaneos Rousseau procura fundar urn julgamento moral referente a historia de preferencia a estabelecer um saber antropologico E como moralista que ele escreve a historia da moral Dai 0 aspecto ambiguo de sua demonstraYao As fases pelas quais 0 homem passou 0

est ado a que chegou devem em primeiro lugar ser estabelecidos como fatos uma vez estabelecidos de vern ser aceitos a humanidade sofreu transformaYoes inelutaveis com isso chegou fatalmente a seu estado presente eis 0 que est a fora de contestaYao Mas a validade do fato nao nos permite prejulgar do direito Os fatos historicos nao justificam nada a historia nao tern legitimidade moral e Rousseau nao hesita em condenar em nome dos val ores eternos 0 mecanismo historico do qual mostrou a necessidade e que estendeu as proprias funYoes mora is

Tendo retraYado a progressao da cultura e tendo-a definido como negaYao da natureza Rousseau opoe a cultura uma recusa uma nova negaYao que e a consequencia de urn juizo moral e que se vale de urn absoluto etico A indignaYao de Rousseau (ele proprio homem natural) contra a sociedade (criaYao historica) e a expressao patetica desse conflito Ele toma a palavra para dizer nao a antinatureza A situaYao presente com seu luxe e sua miseria e ao mesmo tempo historicamente motivada e moralmente inaceitavel Rousseau compreende a sociedade de seu tempo mas the opoe uma reprovaYao escandalizada 0 pensamento de Rousseau nao podera portanto deter-se ai Pois compreender urn mundo opaco nao e ainda redescobrir ou restabelecer a transparencia Longe de equivaler para Rousseau a uma adesao intelectual a compreensao so estabelece 0 fato para opor-Ihe imediatamente 0 direito Ele protesta contra 0 metodo de Grotius sua maneira de raciocinar e de estabelecer sempre 0 direito pelo fato) Rousseau julga e condena em nome do direito os fatos dos quais prova a necessidade historica E como precisa para realizar 0 ideal da transparencia de urn mundo em que 0 fato coincide

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com 0 direito buscara esse mundo ora aquem da historia - nos antigos tempos em que 0 progresso corruptor nao existe ainda - ora alem em urn futuro abstrato em que a desordem atual seria superada por uma ordem rna is perfeita

Page 7: Jean Starobinski - Jean-jacques Rousseau Transparencia e Obstaculo

dades Dando aespeculayao 0 nome de observayao esperam estar isentos de qualquer outra prova

De fato amedida que Rousseau desenvolve sua ficyao historica esta perde seu carater de hipotese uma especie de confianya e de emshybriaguez vern abolir toda prudencia intelectual a descriyao desse estado primeiro muito proximo ainda da animalidade torna-se a evocayao enshycantada de urn Iugar onde viver Vma nostalgia elegiaca se comove a ideia dessa vida errante e sa com seu equilIbrio sensitivo com sua justa suficiencia Imagem por demais imperiosa por demais profundashymente satisfatoria para nao corresponder no espirito de Rousseau aestrita verda de historica Vma certeza ganha corpo que e de essencia poetica mas que se engana sobre sua natureza quer falar a linguagem da historia e tomar por testemunha a erudiyao mais seria A convicyao se impoe irrefutavelmente tais foram sem contestayao os primordios da humanishydade tal foi a primeira fisionomia do homem Rousseau conta a si mesmo a historia objetiva de uma Idade da transparencia para legitimar sua nostalgia A certeza de Rousseau e a de alguem que se lembra ela e acanyada no contato e seus discipulos ja nao verao nele 0 autor de uma historia hipotetica mas 0 vidente (Seher dira H6lderlin) que detem a memoria de urn passado muito antigo de um tempo rna is belo Na ode inacabada intitulada Rousseau H6lderlin escreve

auch dir auch dir Erfreuet die feme Sonne dein Haupt

Und Strahell ails der sclollem Zeit Es Haben die Boten dein Herz gefllndell 31

[para ti tarn bern para ti tambern o distallte sol ilumina lua fronte com Slla alegria E os raios vindos de uma epoca mais bela Eles os rncnsageiros encontraram tell caratiio]

H61derlin aqui faz de Rousseau urn desses interpretes a quem e concedido ser tocado pela luz de uma era vindoura ou de urn passado desaparecido

o DEUS GLA UCO

Pode-se dizer ainda que a transparencia original desapareceu Reshydescoberta na memoria nao e ela entao retomada na transparencia propria da memoria e por isso mesmo salva Desertou-nos inteiramente ou estamos ainda em sua vizinhanya Rousseau hesita entre duas respostas nntradit-cirias lZrn dado momento 0 mito bifurca em duas versoes A

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primeira afirma que a alma humana degenerou que se desfigurou que sofreu uma alterayao quase total para jamais reencontrar sua beleza prime ira A segunda versao em lugar de uma defonnayao evoca uma especie de encobrimento a natureza primitiva persiste mas oeulta cershycada de veus superpostos sepultada sob os artificios e no en tanto sempre intacta Versao pessimista e versao otimista do mito da origem Rousseau sustenta ambas alternadamente e por vezes mesmo simultaneamente Diz-nos que 0 homem destruiu de modo irremediavel sua identidade natural mas proclama tambem que a alma original sendo indestrutivel permanece para sempre identica a si mesma sob as manifestayoes externas que a mascaram

Rousseau retoma por sua conta 0 mito platonico da estatua de Glauco

Semelhante aedtatua de Glauco que 0 tempo 0 mar e as tempestades haviam desjigurado tanto que se parecia menos com um deus do que com urn animal feroz a alma humana alterada no seio da sociedade por mil causas continuashymente renascentes pela aquisitiio de uma multidao de conhecimentos e de eITOS pelas mudantas ocoITidas na constituitiio dos carpos e pelo choque continuo das paix6es por assim dizer mudou de aparencia a ponto de 5(r quase irreconhecivel 32

Mas ha aqui um por assim dizer e urn quase que devolvem todas as esperanyas A imagem da estatua de Glauco no contexto de Rouss~au conserva algo de enigmatico Seu rosto foi corroido e mutilado pelo tempo perdeu para sempre a forma que tinha ao sair das maos do escultor Ou entao foi ele recoberto por uma crosta de sal e de algas sob a qual a face divina conserva sem nenhuma perda de substancia seu modelo original Ou ainda a fisionomia original nao e mais que uma ficy ao destinada a servir de norma ideal para quem quer interpretar 0 estado atual da humanidade

Nao e uma empresa leve deslindar 0 que ha de originario e de artificial 111

natureza atual do homem e conhecer bem urn estado que nao existe milis que provavelmente nao existira jamais e sobre 0 qual entretanlo enecesshysario ler not6es justas para bern avaliar nosso estado presenteD

Permanecer 0 que se era deixar-se alterar pela mudanya tocamos aqui em categorias que para Rousseau sao 0 equivalente das categorias teologicas da perdiyao e da salvayao Rousseau nao cre no inferno mas em compensayao acredita que a perda da semelhanya e uma infeliddad( essencial enquanto que permanecer semelhante a si mesmo euma malcirtl de salvar sua vida ou ao menos uma promessa de salvarao 0 11111raquo0

historico que para Rousseau nao exclui a ideia do des(llvolvilll(ntn organico permanece carregado de culpabilidade 0 movilflcnto dn hlslOliI

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e urn obscurecimento e mais responsavel por uma deformal)ao do que por urn progresso qualitativo Rousseau apreende a mudan9a como uma corruP9aO34 no curso do tempo 0 homem se desfigura se deprava Nao e apenas sua aparencia mas sua propria essencia que se torna irreconheshycivel Essa versao severa (e por assim dizer calvinista) do mito da origem Rousseau a pro poe em diversos momentos de sua obra Descobre-se na origem dessa ideia uma angustia muito real avivada pelo sentimento do irreparavel Rousseau muitas vezes afirmou que 0 mal era sem retorno que uma vez transposto urn certo Iimiar fatal a alma estava perdida e nao tinha outr~ recurso senao aceitar sua perda Urn natural sufocado nos diz ele nao volta jamais e perde-se entao ao mesmo tempo 0 que se destruiu e 0 que se fez 35

Desafortunadosl 0 que nos tomamos nos Como deixamos de ser 0 que fomos36

Deforma9aO em que parece mais nada subsiste da forma original Ele pr6prio sentiu-se atingido e ameal)ado

Os gostos rna is vis a mais baixa molecagem sucederam-se as minhas amaveis diversoes sem delas me deixar mesmo a menor ideia Epreciso que a despeito da educa9ao mais honesta eu tivesse ulna grande inclinafGo a degenerar pois isso se deu muito rapidamente sem a menor dificuldade e jamais Cesar tao precoce tomou-se tao prontamente Laridon37

A essa passagem que segue de perto 0 episodio de Bossey pode-se acrescentar urn texto do final da vida de Rousseau testemunho tanto mais significativo quanto data de uma epoca em que este nao cessa de afmnar sua permanente fidelidade a si mesmo

Tal vez sem me dar conta eu meslIlo tenha 11ludado lais do que seria preciso Que natural resistiria sem se alterar a uma situa9ao semeIhante a minha38

Pergunta que ele se apressa em responder pela negativa Pois preshycisamente no momenta em que tudo muda para ele no momento em que acredita viver em urn sonho Rousseau se opoe com todas as suas forl)as aangustia da aItera9ao interior e luta pel a salvaguarda de sua identidade Alguma coisa mudou mas sua alma permaneceu a mesma Ele repele para 0 exterior a responsabilidade da alteral)ao Foram os outros que sofreram a metamorfose mais surpreendente e que eles proprios irrecoshynheciveis desfiguram sua imagem e suas obras Quanto a ele mesmo permaneceu 0 que era Seus sentimentos mudaram porque as realidades externas nao sao mais as mesmas

Mas as coisas mudaram muito de figura desde que minhas infelicidades COlle~aram Vivi desde entao em uma gera9ao nova que nao se parecia de modo nenhurn com a prinnira e meus proprios sentimentos pelos outros

2M

sofreram mudan9as que encontrei nos deIes A mesmas pessoas que vi sucessivamente nessas duas gera90es tao diferentes assimitaram-se por assim dizer a uma e a outra39

[] Eu 0 mesmo homem que era 0 mesmo que sou ainda

Sob a mascara que os outros impoem de fora a sua fisionomia Jean-Jacques nao deixou de ser Jean-Jacques No momento em que esta mais sombriamente obsedado pela perseguil)ao replica contando a si mesmo a versao otimista do mito da origem nada foi perdido 0 tempo nao alterou 0 essencial s6 corroeu na superficie 0 mal vern de fora mas permanece fora 0 rosto de Glauco permaneceu intacto sob a espuma que o desfigura Jean-Jacques apIica entao a si mesmo (e s6 a ele) uma ideia que formulara anteriormente a respeito do homem em geral e que opunba a nOl)ito da natureza perdida e da natureza oculta de uma natureza que se pode mascarar mas que jamais sera destruida Demasiadamente poshyderosa e talvez demasiadamente divina para que possamos transforma-Ia ou suprimi-Ia ela elude nossos empreendimentos profanadores e se reshyfugia nas profundezas onde esta apenas dissimulada sob involucros exteriores Esta esquecida mas nao realmente perdida e se a memoria nos faz entreve-Ia no fundo do passado e porque estamos ja proximos de Iiberta-la de seus veus e de redescobri-Ia presente e viva em nos mesmos

Os males da alma [ ] alterap5es extemas e passageiras de urn ser imortal e simples apagam-se insensivelmente e deixam-no elll suaorilla origial que nada poderia mudar41

Entao Rousseau invoca com confianl)a uma natureza que nada destroi torna -se 0 po eta da permanencia desvelada Descobre em si mesmo a proximidade da transparencia original e esse homem da nashytureza que ele buscara na profundeza das eras agora reencontra-Ihe os tral)os originais na profundeza do eu Aquele que sabe recolher-se em si mesmo pode ver resplandecer novamente a fisionomia do deus subshymerso liberta da ferrugem que a mascarava

De onde 0 pintor e 0 apologista da natureza hoje tao desfigurada e tao caluniada pode haver tirado seu modelo se nao de seu proprio corarao Descreveu-a como eIe proprio se sentia Os preconceitos aos quais nao estava subjugado as paixOes facticias de que nao era presa nao ofuscavam de modo ncnhum aos seus olhos como aos dos outros esses prirnciros traros till) geralmente esquecidos ou ignorados Esses traros tao novos para ncgts l~ tilt) verdadeiros uma vez tra9ados encontravam ainda no fundo dos corarOcs II atestarao de sua justeza mas jamais se teriam mostrado novarncntc p)r si mcslllos se 0 historiador da natureza nao hOllvcsse cOIll~fld() por wtirlr 1

ferrugem que os oCllltava S6 lima vida rctirada c solitaritl l1Il gosto vivo pete dcvaneio e pela contclllpla9ao 0 lubito dc lc()lIll~r-s( ()III si c I( II I

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buscar na calma das paixoes esses primeiros trayos desaparecidos na multishydao podiam-no fazer redescobri-los Em uma palavra era preciso que um homem se houvesse pintado a si mesmo para nos mostrar assim 0 homem primitivo 42

o conhecimento de si equivale a uma reminiscencia mas nao e de maneira nenhuma por urn esfonyo de memoria que Rousseau reencontra esses primeiros traltyos que pertencem contudo a urn mundo anterior Para descobrir 0 homem da natureza e para tornar-se seu historiador Rousseau nao teve de remontar ao comeltyo dos tempos bastou-Ihe pintar a si mesmo e reportar-se it sua propria intimidade it sua propria natureza em urn movimento a uma so vez passiv~ e ativo buscando-se a si mesmo abandonando-se ao devaneio 0 recurso a interioridade atinge a mesma realidade decifra as mesmas normas absolutas que a exploraltyao do pass ado mais remoto Assim 0 que era primeiro na ordem dos tempos historicos se redescobre como 0 que e mais profundo na experiencia atual de Jean-Jacques A distancia historica nao e rna is que distancia interior e essa distancia e logo transposta para aquele que sabe abandonar-se plena mente ao sentimento que se desperta nele Doravante a naturezamiddot (como a presenltya de Deus para santo AgostinhO)43 deixando de ser 0

que ha de mais longinquo atras de nos oferece-se como 0 que e mais central em nos Como se ve a norma ja nao e transcendente e imanente ao eu Basta ser sincero ser eu mesmo e entao 0 homem da natureza nao e mais 0 distante arquetipo ao qual me refiro ele coincide com a minha propria presenltya com a minha propria existencia A transparencia antiga resultava da presenltya ingenua dos homens soh 0 olhar dos deuses a nova transparencia e uma relaltyao mterlor 10 eu uma relaltao cc sigo mesmo realiza-se na limpidez do olhar sobre si mesmo que permite a Jean-Jacques pintar-se tal como e Vma imagem pode entao surgir que equivale (Rousseau nos garante isso) it historia autentica da especie inteira e que ressuscita 0 passado perdido para revela-lo como 0 presente etemo da natureza Os homens ai redescobrem a certeza de uma semelhanltya comum (Cada homem carrega a forma inteira da humana condi9ao dizia Montaigne) Porque Jean-Jacques soube abandonar-se a si mesmo os homens se reconhecerao por sua vez Atras de suas falsas verdades reencontram uma presenltya esquecida uma forma que permanecia intacta sob os veus ei-Ios libertos do esquecimento

Pode-se entao recobrar a natureza primeira do homem sem ter de remontar as origens rea is e sem se aventurar nas r~construltyoes historicas Rousseau se ex plica sobre isso de uma maneira bastante clara no segundo Discurso on de 0 vemos renunciar bern facilmente a toda asser9ao sobre as verdadeiras origens para se reservar 0 direito de esclarecer por via de hipotese a natur(za das coisas

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Nao se devem tomar as investigayoes nas quais se pode entrar sobre esse assunto por verdades historicas mas apenas por raciocfnios hipoteticos e condicionais mais aptos a esclarecer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem 44

Mas a natureza do homem pode ser apreendida independentemente da hisforia humana Rousseau hesita De fato se nao pode dispensar a n09ao de uma natureza humana essencial tam bern nao pode renunciar it ideia de urn devir historico que Ihe permita dar uma explicaltyao plausivel da aIteraltyao que a humanidade sofreu ao afastar-se de suas bem-aventushyradas origens Rousseau desejaria reservar-se conjuntamente a possibilishydade de acusar a perversao pela qual a sociedade e responsavel e conservar o direito de proclamar a permanencia da bondade original Ha a1 uma dupla afirmaltyao que pode passar por contraditoria e que nao se deixou de criticar em Jean-Jacques Pois na medida em que a sociedade e obra humana deve-se admitir que 0 homem e cuJpado e carrega a culpa de todo 0 mal que fez a si mesmo mas por outro lado na medida em que o homem nao deixa de ser urn filho da natureza ele conserva uma inocencia indestrutivel Como conciliar a afinna9aO 0 homem e natushyralmente born e esta outra Tudo degenera entre as maos do homem

UMA TEODICEIA QUE INOCENTA 0 HOMEM E DEUS

Cassirer mostrou-o bem 45 os postulados de Rousseau permitem resolver 0 problema da teodiceia sem imputar a origem do mal nem a Deus nem ao homem pecador

[Nao e) necessario supor 0 homem mau por sua natureza quando se [pode] assinalar a origem e 0 progresso de sua maldade Estas reflexoes me conduziram a novas investigayoes sobre 0 espirito humano considerado no estado civil e julguei entao que 0 desenvolvimento das luzes e dos vicios sc fazia sempre na mesma proporyao nao nos individuos mas nos povos distinyiio que sempre fiz cuidadosamente e que nenhum daqueles que me atacaram jamais pode conceber46

o mal se produz pela historia e pela sociedade sem alterar a essencia do individuo A culpa da sociedade nao e a culpa do homem essencial Illas a do homem em relaltyao Ora com a condiltyao de dissociar 0 hommll cssencial e 0 homem em relaltyao com a condi9aO de separar sociabilidadtgt e natureza humana pode-se atribuir ao mal e a alteraltyiio hist6rica lima s itu1ltyiio periferica em relaltyao a permanencia central cia natureza original o n1 tI t partir dar podera confundir-se com a paixao do h OIllNn 101

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bens materiais 0 mal e exterior e e a paixao pelo exterior se 0 homem se entrega inteiro asedwao dos bens externos sera inteiramente submeshytido ao imperio do mal Mas recolher-se em si sera para ele em qualquer tempo 0 recurso da salvatao Rousseau nao se content a portanto em reprovar a exterioridade como quase todos os moralistas haviam feito antes dele incrimina-a na propria definisao do mal Essa condenatao nao passa da contra partida de uma justificasao que pretende salvar - de uma vez por todas - a essencia interna do homem Repelido para a periferia do ser rechasado para 0 mundo da relasao 0 mal nao tera 0 mesmo estatuto ontologico que a bondade natural do homem 0 mal e veu e velamen to e mascara tern acordo com 0 facticio e nao existiria se 0

hom em nao tivesse a perigosa liberdade de negar pelo artificio 0 dado natura l E entre as maos do homem e nao em seu corayao que tudo degenera Suas maos trabalham mudam a natureza fazem a h istoria ordenam 0 mundo exterior e produzem com 0 tempo a diferenya entre as epocas a luta entre os povos a desigualdade entre os particulares

Em uma mesma pagina (prefacio de Narciso) Rousseau protestara contra falsa m osofia que sustenta que os homens sao por toda parte os mesmos mas que as vicios do mundo middot contemporaneo nao pershytencem tanto ao homem quanta ao homem malgovemado 47 Contradisao si gnificativa Rousseau desse modo afinna ao mesmo tempo a pershymanencia de uma inocencia essencial e 0 movimento da historia que e alterasao corruptao moral degenerescencia politica e que promove o estado de conflito e a injustisa entre os homens 48

Nas teorias do progresso que serao propostas rna is tarde intervira uma hipotese bastante analoga que visara conciliar 0 postulado da pershymanencia da natureza human a com a ideia de uma mudansa coletiva 0 homem pem1anece 0 mesmo a humanidade progride sempre dira Goethe A validade do pessimismo historico do segundo Discurso foi contestada e admitiu-se mais comumente a tese otimista de Goethe Entretanto do ponto de vista filosOfico 0 problema e ide ntico Tanto em urn como no outro e preciso conci liar a estabilidade da natureza humana e a mobilidade do desenvolv imento real da hist6ria e preciso explicar por que 0 homem (enquanto individuo) possui 0 privilegio de pennanecer 0 mesmo ao passo que a human idade (enquanto coletishyvidade) esta sujeita a mudansa

Rousseau contudo nao tern necessidade da hist6ria a nao ser para the pedir a explicasao do mal E a ideia do mal que da ao sistema sua dimensao historica 0 devir e 0 movimento pelo qual a humanidade se toma culpada 0 homem nao e naturalrnente vicioso tornou-se vishycioso 0 retorno ao bern coincide entao com a revolta contra a hist6ria e em particular contra a situayao historic a atual Se e verdade que 0

2

pensamento de Rousseau e revolucionario e preciso acrescentar de imeshydiato que ele 0 e em nome de uma natureza humana eterna e nao em nome de urn progresso historico (Sera preciso interpretar a obra de Rousseau para ver nela urn fator decisivo no progresso politico do seculo XVIII) Como veremos seu pensamento social consciente da necessidade de afrontar 0 mundo e os homens tais como sao visa sobretudo insshytaurar ou restaurar a soberania do imediato isto e a reino de urn valor sobre 0 qual a duratao nao tern poder

H

2

CRiTICA DA SOCIEDADE

Rousseau situa-se em seu seculo entre os escritores que contestam os valores e as estruturas da sociedade momirquica Por mais distintos que tenham sido a contestayao cria entre esses autores uma semeihanya e Ihes da urn ar de fratemidade cada urn deles podera ser considerado a algum titulo como urn agente ou urn anunciador da proxima Revoluyao Assim se ex plica a reconciliayao postuma de Rousseau e de Voltaire sUa comum apoteose sua promoyao a ciasse de divindade bifronte ou de diade tutelar A gravura popular os imortahzani lade a lade metamorfoshyseados em genios lampadOforos com urn candelabro na mao propagando diante deles as luzes e radiantes de brilho luciferiano

Rousseau quer apreender 0 principio do mal Poe em causa a soshyciedade a ordem social em seu conjunto 0 esforyo critico nele nao se dispersa e nao se atribui como tarefa afrontar uma a uma as multiplas manifestayoes do mal Ele remonta a uma causa geral que 0 dispensa de atacar isolada mente tal abuso particular tal usurpayao tal impostura (De resto ele e por demais egocentrico para assumir 0 papel de defensor dos oprimidos Voltaire tem seu caso Calas e dez outros semelhantes Rousshyseau esta sobrecarregado pelo caso Rousseau)

Rousseau faz a historia de seus pensamentos observou uma discorshydancia eotre os atos e as palavras dos homens essa diferenya se explica por uma outra diferenya a do ser e do parecer mas e preciso ainda buscar-Ihe a causa Rousseau assim a formula

Ellcontrei-a em nossa ordem social que em todos os sentidos tontnlria a natureza qlle nada destr6i tiraniza -a continuamente e sem cessar a faz exigir

11

seus direitos Acompanhei essa contradiriio em suas conseqiiencias e vi que tao-somente ela explicava todos os vicios dos homens e todos os males da sociedade I

Nessa passagem que resume muito firmemente a substancia dos dois Discursos Rousseau define da maneira mais clara 0 objeto eo aIcance de sua eritica social a contestayaO diz respeito a sociedade enquanto esta e contraria a natureza Essa sociedade negadora da natureza (da ordem natural) nao suprimiu a natureza Mantem com ela urn eonflito permanente de onde nascem os males e os vcios de que sofrem os homens A critica de Rousseau esboya portanto uma negayao da negayao acusa a civili shyzayao cuja caracteristica fundamental e sua negatividade em relayao a natureza A cultura estabelecida nega a natureza - e essa a afirmayao patetica dos dois Discursos e do Emilio As falsas luzes da civilizayao longe de iluminar 0 mundo humano velam a transpareneia natural separam os homens uns dos outros particularizam os interesses destroem toda possibili dade de confianya reciproca e substituem a eomunicayao esseneial das almas por urn comercio faeticio e desprovido de sineeridade assim se constitui uma soeiedade em que cada urn se isola em seu amor-proprio e se protege atnis de uma aparencia mentirosa Paradoxo singular que de urn mundo em que a relayao economica entre os homens parece rna is estreita faz efetivamente um mundo de opacidade de mentira de hipocrisia

Queixo-me de que a filosofia afrouxe os laros da sociedade que sao formados pela estillQ e pela bellevolencia IIttuas e queixo-me de que as ciencias as artes e todos os outros objetos de comercio estreitem os laros da sociedade pelo inleresse pessoal E que com efeito niio se pode estreitar urn desscs laros sem que 0 outro nao se afrouxe na mesma proporriio Portanto nada ha nisso de contradiriio2

Rousseau confronta aqui de maneira signifieativa dois tipos de relacao que se opoem como a transparencia a opaeidade A estima e a benevolencia eonstituem urn layo pelo qual os homens se reunem imediatamente nada se interpoe entre as consciencias elas se oferecern espontaneamente numa evideneia total Em compensayao os layos orshydenados pelo interesse pessoal perderam esse carater imediato A relayao ja nao se estabeleee diretamente de consciencia a conscieneia ela agora p3ssa por coisas A perversao que da resulta provem nao apenas do fato de que as eoisas se interpoem entre as eonseiencias mas lambcm do fato de que os homens deixando de identificar seu interesse com sua existencia pessoal identificam-no doravante com os objetos illiN postos que acreditam indispensaveis a sua felicidade 0 eu do hOllwllI social nao se reconheee mais em si mesmo mas se buse no exlcmiddotrim

ntrl as coisns sells meios se tornam sell filn 0 homclIl illkirll

torna coisa ou escravo das coisas A critica de Rousseau den uncia essa alienaYao e propoe como tarefa um retorno ao imediato

A sociedade civilizada desenvolvendo sempre mais sua oposiYao a natureza obscurece a relaYao imediata das consciencias a perda da transparencia original vai de par com a alienaYao do homem nas coisas materia is A analise de Rousseau sobre esse ponto prefigura as de Hegel e de Marx tanto mais se lhes assemelha quanta se apoia em uma descriYao do devir historico da humanidade Com efeito 0 Discurso sabre a origem da desigualdade e uma historia da civilizaYao como progresso da negaYao do dado natural progresso ao qual corresponde uma degradaYao da inoshycencia original A historia das tecnicas e ex posta em estreita ligaYao com a historia moral da humanidade Mas a diferenYa do esforYo filosOfico do seculo XIX e em contraste com as pretensoes positivistas de alguns de seus contemporaneos Rousseau procura fundar urn julgamento moral referente a historia de preferencia a estabelecer um saber antropologico E como moralista que ele escreve a historia da moral Dai 0 aspecto ambiguo de sua demonstraYao As fases pelas quais 0 homem passou 0

est ado a que chegou devem em primeiro lugar ser estabelecidos como fatos uma vez estabelecidos de vern ser aceitos a humanidade sofreu transformaYoes inelutaveis com isso chegou fatalmente a seu estado presente eis 0 que est a fora de contestaYao Mas a validade do fato nao nos permite prejulgar do direito Os fatos historicos nao justificam nada a historia nao tern legitimidade moral e Rousseau nao hesita em condenar em nome dos val ores eternos 0 mecanismo historico do qual mostrou a necessidade e que estendeu as proprias funYoes mora is

Tendo retraYado a progressao da cultura e tendo-a definido como negaYao da natureza Rousseau opoe a cultura uma recusa uma nova negaYao que e a consequencia de urn juizo moral e que se vale de urn absoluto etico A indignaYao de Rousseau (ele proprio homem natural) contra a sociedade (criaYao historica) e a expressao patetica desse conflito Ele toma a palavra para dizer nao a antinatureza A situaYao presente com seu luxe e sua miseria e ao mesmo tempo historicamente motivada e moralmente inaceitavel Rousseau compreende a sociedade de seu tempo mas the opoe uma reprovaYao escandalizada 0 pensamento de Rousseau nao podera portanto deter-se ai Pois compreender urn mundo opaco nao e ainda redescobrir ou restabelecer a transparencia Longe de equivaler para Rousseau a uma adesao intelectual a compreensao so estabelece 0 fato para opor-Ihe imediatamente 0 direito Ele protesta contra 0 metodo de Grotius sua maneira de raciocinar e de estabelecer sempre 0 direito pelo fato) Rousseau julga e condena em nome do direito os fatos dos quais prova a necessidade historica E como precisa para realizar 0 ideal da transparencia de urn mundo em que 0 fato coincide

36

com 0 direito buscara esse mundo ora aquem da historia - nos antigos tempos em que 0 progresso corruptor nao existe ainda - ora alem em urn futuro abstrato em que a desordem atual seria superada por uma ordem rna is perfeita

Page 8: Jean Starobinski - Jean-jacques Rousseau Transparencia e Obstaculo

e urn obscurecimento e mais responsavel por uma deformal)ao do que por urn progresso qualitativo Rousseau apreende a mudan9a como uma corruP9aO34 no curso do tempo 0 homem se desfigura se deprava Nao e apenas sua aparencia mas sua propria essencia que se torna irreconheshycivel Essa versao severa (e por assim dizer calvinista) do mito da origem Rousseau a pro poe em diversos momentos de sua obra Descobre-se na origem dessa ideia uma angustia muito real avivada pelo sentimento do irreparavel Rousseau muitas vezes afirmou que 0 mal era sem retorno que uma vez transposto urn certo Iimiar fatal a alma estava perdida e nao tinha outr~ recurso senao aceitar sua perda Urn natural sufocado nos diz ele nao volta jamais e perde-se entao ao mesmo tempo 0 que se destruiu e 0 que se fez 35

Desafortunadosl 0 que nos tomamos nos Como deixamos de ser 0 que fomos36

Deforma9aO em que parece mais nada subsiste da forma original Ele pr6prio sentiu-se atingido e ameal)ado

Os gostos rna is vis a mais baixa molecagem sucederam-se as minhas amaveis diversoes sem delas me deixar mesmo a menor ideia Epreciso que a despeito da educa9ao mais honesta eu tivesse ulna grande inclinafGo a degenerar pois isso se deu muito rapidamente sem a menor dificuldade e jamais Cesar tao precoce tomou-se tao prontamente Laridon37

A essa passagem que segue de perto 0 episodio de Bossey pode-se acrescentar urn texto do final da vida de Rousseau testemunho tanto mais significativo quanto data de uma epoca em que este nao cessa de afmnar sua permanente fidelidade a si mesmo

Tal vez sem me dar conta eu meslIlo tenha 11ludado lais do que seria preciso Que natural resistiria sem se alterar a uma situa9ao semeIhante a minha38

Pergunta que ele se apressa em responder pela negativa Pois preshycisamente no momenta em que tudo muda para ele no momento em que acredita viver em urn sonho Rousseau se opoe com todas as suas forl)as aangustia da aItera9ao interior e luta pel a salvaguarda de sua identidade Alguma coisa mudou mas sua alma permaneceu a mesma Ele repele para 0 exterior a responsabilidade da alteral)ao Foram os outros que sofreram a metamorfose mais surpreendente e que eles proprios irrecoshynheciveis desfiguram sua imagem e suas obras Quanto a ele mesmo permaneceu 0 que era Seus sentimentos mudaram porque as realidades externas nao sao mais as mesmas

Mas as coisas mudaram muito de figura desde que minhas infelicidades COlle~aram Vivi desde entao em uma gera9ao nova que nao se parecia de modo nenhurn com a prinnira e meus proprios sentimentos pelos outros

2M

sofreram mudan9as que encontrei nos deIes A mesmas pessoas que vi sucessivamente nessas duas gera90es tao diferentes assimitaram-se por assim dizer a uma e a outra39

[] Eu 0 mesmo homem que era 0 mesmo que sou ainda

Sob a mascara que os outros impoem de fora a sua fisionomia Jean-Jacques nao deixou de ser Jean-Jacques No momento em que esta mais sombriamente obsedado pela perseguil)ao replica contando a si mesmo a versao otimista do mito da origem nada foi perdido 0 tempo nao alterou 0 essencial s6 corroeu na superficie 0 mal vern de fora mas permanece fora 0 rosto de Glauco permaneceu intacto sob a espuma que o desfigura Jean-Jacques apIica entao a si mesmo (e s6 a ele) uma ideia que formulara anteriormente a respeito do homem em geral e que opunba a nOl)ito da natureza perdida e da natureza oculta de uma natureza que se pode mascarar mas que jamais sera destruida Demasiadamente poshyderosa e talvez demasiadamente divina para que possamos transforma-Ia ou suprimi-Ia ela elude nossos empreendimentos profanadores e se reshyfugia nas profundezas onde esta apenas dissimulada sob involucros exteriores Esta esquecida mas nao realmente perdida e se a memoria nos faz entreve-Ia no fundo do passado e porque estamos ja proximos de Iiberta-la de seus veus e de redescobri-Ia presente e viva em nos mesmos

Os males da alma [ ] alterap5es extemas e passageiras de urn ser imortal e simples apagam-se insensivelmente e deixam-no elll suaorilla origial que nada poderia mudar41

Entao Rousseau invoca com confianl)a uma natureza que nada destroi torna -se 0 po eta da permanencia desvelada Descobre em si mesmo a proximidade da transparencia original e esse homem da nashytureza que ele buscara na profundeza das eras agora reencontra-Ihe os tral)os originais na profundeza do eu Aquele que sabe recolher-se em si mesmo pode ver resplandecer novamente a fisionomia do deus subshymerso liberta da ferrugem que a mascarava

De onde 0 pintor e 0 apologista da natureza hoje tao desfigurada e tao caluniada pode haver tirado seu modelo se nao de seu proprio corarao Descreveu-a como eIe proprio se sentia Os preconceitos aos quais nao estava subjugado as paixOes facticias de que nao era presa nao ofuscavam de modo ncnhum aos seus olhos como aos dos outros esses prirnciros traros till) geralmente esquecidos ou ignorados Esses traros tao novos para ncgts l~ tilt) verdadeiros uma vez tra9ados encontravam ainda no fundo dos corarOcs II atestarao de sua justeza mas jamais se teriam mostrado novarncntc p)r si mcslllos se 0 historiador da natureza nao hOllvcsse cOIll~fld() por wtirlr 1

ferrugem que os oCllltava S6 lima vida rctirada c solitaritl l1Il gosto vivo pete dcvaneio e pela contclllpla9ao 0 lubito dc lc()lIll~r-s( ()III si c I( II I

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buscar na calma das paixoes esses primeiros trayos desaparecidos na multishydao podiam-no fazer redescobri-los Em uma palavra era preciso que um homem se houvesse pintado a si mesmo para nos mostrar assim 0 homem primitivo 42

o conhecimento de si equivale a uma reminiscencia mas nao e de maneira nenhuma por urn esfonyo de memoria que Rousseau reencontra esses primeiros traltyos que pertencem contudo a urn mundo anterior Para descobrir 0 homem da natureza e para tornar-se seu historiador Rousseau nao teve de remontar ao comeltyo dos tempos bastou-Ihe pintar a si mesmo e reportar-se it sua propria intimidade it sua propria natureza em urn movimento a uma so vez passiv~ e ativo buscando-se a si mesmo abandonando-se ao devaneio 0 recurso a interioridade atinge a mesma realidade decifra as mesmas normas absolutas que a exploraltyao do pass ado mais remoto Assim 0 que era primeiro na ordem dos tempos historicos se redescobre como 0 que e mais profundo na experiencia atual de Jean-Jacques A distancia historica nao e rna is que distancia interior e essa distancia e logo transposta para aquele que sabe abandonar-se plena mente ao sentimento que se desperta nele Doravante a naturezamiddot (como a presenltya de Deus para santo AgostinhO)43 deixando de ser 0

que ha de mais longinquo atras de nos oferece-se como 0 que e mais central em nos Como se ve a norma ja nao e transcendente e imanente ao eu Basta ser sincero ser eu mesmo e entao 0 homem da natureza nao e mais 0 distante arquetipo ao qual me refiro ele coincide com a minha propria presenltya com a minha propria existencia A transparencia antiga resultava da presenltya ingenua dos homens soh 0 olhar dos deuses a nova transparencia e uma relaltyao mterlor 10 eu uma relaltao cc sigo mesmo realiza-se na limpidez do olhar sobre si mesmo que permite a Jean-Jacques pintar-se tal como e Vma imagem pode entao surgir que equivale (Rousseau nos garante isso) it historia autentica da especie inteira e que ressuscita 0 passado perdido para revela-lo como 0 presente etemo da natureza Os homens ai redescobrem a certeza de uma semelhanltya comum (Cada homem carrega a forma inteira da humana condi9ao dizia Montaigne) Porque Jean-Jacques soube abandonar-se a si mesmo os homens se reconhecerao por sua vez Atras de suas falsas verdades reencontram uma presenltya esquecida uma forma que permanecia intacta sob os veus ei-Ios libertos do esquecimento

Pode-se entao recobrar a natureza primeira do homem sem ter de remontar as origens rea is e sem se aventurar nas r~construltyoes historicas Rousseau se ex plica sobre isso de uma maneira bastante clara no segundo Discurso on de 0 vemos renunciar bern facilmente a toda asser9ao sobre as verdadeiras origens para se reservar 0 direito de esclarecer por via de hipotese a natur(za das coisas

w

Nao se devem tomar as investigayoes nas quais se pode entrar sobre esse assunto por verdades historicas mas apenas por raciocfnios hipoteticos e condicionais mais aptos a esclarecer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem 44

Mas a natureza do homem pode ser apreendida independentemente da hisforia humana Rousseau hesita De fato se nao pode dispensar a n09ao de uma natureza humana essencial tam bern nao pode renunciar it ideia de urn devir historico que Ihe permita dar uma explicaltyao plausivel da aIteraltyao que a humanidade sofreu ao afastar-se de suas bem-aventushyradas origens Rousseau desejaria reservar-se conjuntamente a possibilishydade de acusar a perversao pela qual a sociedade e responsavel e conservar o direito de proclamar a permanencia da bondade original Ha a1 uma dupla afirmaltyao que pode passar por contraditoria e que nao se deixou de criticar em Jean-Jacques Pois na medida em que a sociedade e obra humana deve-se admitir que 0 homem e cuJpado e carrega a culpa de todo 0 mal que fez a si mesmo mas por outro lado na medida em que o homem nao deixa de ser urn filho da natureza ele conserva uma inocencia indestrutivel Como conciliar a afinna9aO 0 homem e natushyralmente born e esta outra Tudo degenera entre as maos do homem

UMA TEODICEIA QUE INOCENTA 0 HOMEM E DEUS

Cassirer mostrou-o bem 45 os postulados de Rousseau permitem resolver 0 problema da teodiceia sem imputar a origem do mal nem a Deus nem ao homem pecador

[Nao e) necessario supor 0 homem mau por sua natureza quando se [pode] assinalar a origem e 0 progresso de sua maldade Estas reflexoes me conduziram a novas investigayoes sobre 0 espirito humano considerado no estado civil e julguei entao que 0 desenvolvimento das luzes e dos vicios sc fazia sempre na mesma proporyao nao nos individuos mas nos povos distinyiio que sempre fiz cuidadosamente e que nenhum daqueles que me atacaram jamais pode conceber46

o mal se produz pela historia e pela sociedade sem alterar a essencia do individuo A culpa da sociedade nao e a culpa do homem essencial Illas a do homem em relaltyao Ora com a condiltyao de dissociar 0 hommll cssencial e 0 homem em relaltyao com a condi9aO de separar sociabilidadtgt e natureza humana pode-se atribuir ao mal e a alteraltyiio hist6rica lima s itu1ltyiio periferica em relaltyao a permanencia central cia natureza original o n1 tI t partir dar podera confundir-se com a paixao do h OIllNn 101

tqlli lo que Iha 6 exterior peo de fo ra a prtlig io 0 pnrect r a P OSSl uu

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bens materiais 0 mal e exterior e e a paixao pelo exterior se 0 homem se entrega inteiro asedwao dos bens externos sera inteiramente submeshytido ao imperio do mal Mas recolher-se em si sera para ele em qualquer tempo 0 recurso da salvatao Rousseau nao se content a portanto em reprovar a exterioridade como quase todos os moralistas haviam feito antes dele incrimina-a na propria definisao do mal Essa condenatao nao passa da contra partida de uma justificasao que pretende salvar - de uma vez por todas - a essencia interna do homem Repelido para a periferia do ser rechasado para 0 mundo da relasao 0 mal nao tera 0 mesmo estatuto ontologico que a bondade natural do homem 0 mal e veu e velamen to e mascara tern acordo com 0 facticio e nao existiria se 0

hom em nao tivesse a perigosa liberdade de negar pelo artificio 0 dado natura l E entre as maos do homem e nao em seu corayao que tudo degenera Suas maos trabalham mudam a natureza fazem a h istoria ordenam 0 mundo exterior e produzem com 0 tempo a diferenya entre as epocas a luta entre os povos a desigualdade entre os particulares

Em uma mesma pagina (prefacio de Narciso) Rousseau protestara contra falsa m osofia que sustenta que os homens sao por toda parte os mesmos mas que as vicios do mundo middot contemporaneo nao pershytencem tanto ao homem quanta ao homem malgovemado 47 Contradisao si gnificativa Rousseau desse modo afinna ao mesmo tempo a pershymanencia de uma inocencia essencial e 0 movimento da historia que e alterasao corruptao moral degenerescencia politica e que promove o estado de conflito e a injustisa entre os homens 48

Nas teorias do progresso que serao propostas rna is tarde intervira uma hipotese bastante analoga que visara conciliar 0 postulado da pershymanencia da natureza human a com a ideia de uma mudansa coletiva 0 homem pem1anece 0 mesmo a humanidade progride sempre dira Goethe A validade do pessimismo historico do segundo Discurso foi contestada e admitiu-se mais comumente a tese otimista de Goethe Entretanto do ponto de vista filosOfico 0 problema e ide ntico Tanto em urn como no outro e preciso conci liar a estabilidade da natureza humana e a mobilidade do desenvolv imento real da hist6ria e preciso explicar por que 0 homem (enquanto individuo) possui 0 privilegio de pennanecer 0 mesmo ao passo que a human idade (enquanto coletishyvidade) esta sujeita a mudansa

Rousseau contudo nao tern necessidade da hist6ria a nao ser para the pedir a explicasao do mal E a ideia do mal que da ao sistema sua dimensao historica 0 devir e 0 movimento pelo qual a humanidade se toma culpada 0 homem nao e naturalrnente vicioso tornou-se vishycioso 0 retorno ao bern coincide entao com a revolta contra a hist6ria e em particular contra a situayao historic a atual Se e verdade que 0

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pensamento de Rousseau e revolucionario e preciso acrescentar de imeshydiato que ele 0 e em nome de uma natureza humana eterna e nao em nome de urn progresso historico (Sera preciso interpretar a obra de Rousseau para ver nela urn fator decisivo no progresso politico do seculo XVIII) Como veremos seu pensamento social consciente da necessidade de afrontar 0 mundo e os homens tais como sao visa sobretudo insshytaurar ou restaurar a soberania do imediato isto e a reino de urn valor sobre 0 qual a duratao nao tern poder

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CRiTICA DA SOCIEDADE

Rousseau situa-se em seu seculo entre os escritores que contestam os valores e as estruturas da sociedade momirquica Por mais distintos que tenham sido a contestayao cria entre esses autores uma semeihanya e Ihes da urn ar de fratemidade cada urn deles podera ser considerado a algum titulo como urn agente ou urn anunciador da proxima Revoluyao Assim se ex plica a reconciliayao postuma de Rousseau e de Voltaire sUa comum apoteose sua promoyao a ciasse de divindade bifronte ou de diade tutelar A gravura popular os imortahzani lade a lade metamorfoshyseados em genios lampadOforos com urn candelabro na mao propagando diante deles as luzes e radiantes de brilho luciferiano

Rousseau quer apreender 0 principio do mal Poe em causa a soshyciedade a ordem social em seu conjunto 0 esforyo critico nele nao se dispersa e nao se atribui como tarefa afrontar uma a uma as multiplas manifestayoes do mal Ele remonta a uma causa geral que 0 dispensa de atacar isolada mente tal abuso particular tal usurpayao tal impostura (De resto ele e por demais egocentrico para assumir 0 papel de defensor dos oprimidos Voltaire tem seu caso Calas e dez outros semelhantes Rousshyseau esta sobrecarregado pelo caso Rousseau)

Rousseau faz a historia de seus pensamentos observou uma discorshydancia eotre os atos e as palavras dos homens essa diferenya se explica por uma outra diferenya a do ser e do parecer mas e preciso ainda buscar-Ihe a causa Rousseau assim a formula

Ellcontrei-a em nossa ordem social que em todos os sentidos tontnlria a natureza qlle nada destr6i tiraniza -a continuamente e sem cessar a faz exigir

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seus direitos Acompanhei essa contradiriio em suas conseqiiencias e vi que tao-somente ela explicava todos os vicios dos homens e todos os males da sociedade I

Nessa passagem que resume muito firmemente a substancia dos dois Discursos Rousseau define da maneira mais clara 0 objeto eo aIcance de sua eritica social a contestayaO diz respeito a sociedade enquanto esta e contraria a natureza Essa sociedade negadora da natureza (da ordem natural) nao suprimiu a natureza Mantem com ela urn eonflito permanente de onde nascem os males e os vcios de que sofrem os homens A critica de Rousseau esboya portanto uma negayao da negayao acusa a civili shyzayao cuja caracteristica fundamental e sua negatividade em relayao a natureza A cultura estabelecida nega a natureza - e essa a afirmayao patetica dos dois Discursos e do Emilio As falsas luzes da civilizayao longe de iluminar 0 mundo humano velam a transpareneia natural separam os homens uns dos outros particularizam os interesses destroem toda possibili dade de confianya reciproca e substituem a eomunicayao esseneial das almas por urn comercio faeticio e desprovido de sineeridade assim se constitui uma soeiedade em que cada urn se isola em seu amor-proprio e se protege atnis de uma aparencia mentirosa Paradoxo singular que de urn mundo em que a relayao economica entre os homens parece rna is estreita faz efetivamente um mundo de opacidade de mentira de hipocrisia

Queixo-me de que a filosofia afrouxe os laros da sociedade que sao formados pela estillQ e pela bellevolencia IIttuas e queixo-me de que as ciencias as artes e todos os outros objetos de comercio estreitem os laros da sociedade pelo inleresse pessoal E que com efeito niio se pode estreitar urn desscs laros sem que 0 outro nao se afrouxe na mesma proporriio Portanto nada ha nisso de contradiriio2

Rousseau confronta aqui de maneira signifieativa dois tipos de relacao que se opoem como a transparencia a opaeidade A estima e a benevolencia eonstituem urn layo pelo qual os homens se reunem imediatamente nada se interpoe entre as consciencias elas se oferecern espontaneamente numa evideneia total Em compensayao os layos orshydenados pelo interesse pessoal perderam esse carater imediato A relayao ja nao se estabeleee diretamente de consciencia a conscieneia ela agora p3ssa por coisas A perversao que da resulta provem nao apenas do fato de que as eoisas se interpoem entre as eonseiencias mas lambcm do fato de que os homens deixando de identificar seu interesse com sua existencia pessoal identificam-no doravante com os objetos illiN postos que acreditam indispensaveis a sua felicidade 0 eu do hOllwllI social nao se reconheee mais em si mesmo mas se buse no exlcmiddotrim

ntrl as coisns sells meios se tornam sell filn 0 homclIl illkirll

torna coisa ou escravo das coisas A critica de Rousseau den uncia essa alienaYao e propoe como tarefa um retorno ao imediato

A sociedade civilizada desenvolvendo sempre mais sua oposiYao a natureza obscurece a relaYao imediata das consciencias a perda da transparencia original vai de par com a alienaYao do homem nas coisas materia is A analise de Rousseau sobre esse ponto prefigura as de Hegel e de Marx tanto mais se lhes assemelha quanta se apoia em uma descriYao do devir historico da humanidade Com efeito 0 Discurso sabre a origem da desigualdade e uma historia da civilizaYao como progresso da negaYao do dado natural progresso ao qual corresponde uma degradaYao da inoshycencia original A historia das tecnicas e ex posta em estreita ligaYao com a historia moral da humanidade Mas a diferenYa do esforYo filosOfico do seculo XIX e em contraste com as pretensoes positivistas de alguns de seus contemporaneos Rousseau procura fundar urn julgamento moral referente a historia de preferencia a estabelecer um saber antropologico E como moralista que ele escreve a historia da moral Dai 0 aspecto ambiguo de sua demonstraYao As fases pelas quais 0 homem passou 0

est ado a que chegou devem em primeiro lugar ser estabelecidos como fatos uma vez estabelecidos de vern ser aceitos a humanidade sofreu transformaYoes inelutaveis com isso chegou fatalmente a seu estado presente eis 0 que est a fora de contestaYao Mas a validade do fato nao nos permite prejulgar do direito Os fatos historicos nao justificam nada a historia nao tern legitimidade moral e Rousseau nao hesita em condenar em nome dos val ores eternos 0 mecanismo historico do qual mostrou a necessidade e que estendeu as proprias funYoes mora is

Tendo retraYado a progressao da cultura e tendo-a definido como negaYao da natureza Rousseau opoe a cultura uma recusa uma nova negaYao que e a consequencia de urn juizo moral e que se vale de urn absoluto etico A indignaYao de Rousseau (ele proprio homem natural) contra a sociedade (criaYao historica) e a expressao patetica desse conflito Ele toma a palavra para dizer nao a antinatureza A situaYao presente com seu luxe e sua miseria e ao mesmo tempo historicamente motivada e moralmente inaceitavel Rousseau compreende a sociedade de seu tempo mas the opoe uma reprovaYao escandalizada 0 pensamento de Rousseau nao podera portanto deter-se ai Pois compreender urn mundo opaco nao e ainda redescobrir ou restabelecer a transparencia Longe de equivaler para Rousseau a uma adesao intelectual a compreensao so estabelece 0 fato para opor-Ihe imediatamente 0 direito Ele protesta contra 0 metodo de Grotius sua maneira de raciocinar e de estabelecer sempre 0 direito pelo fato) Rousseau julga e condena em nome do direito os fatos dos quais prova a necessidade historica E como precisa para realizar 0 ideal da transparencia de urn mundo em que 0 fato coincide

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com 0 direito buscara esse mundo ora aquem da historia - nos antigos tempos em que 0 progresso corruptor nao existe ainda - ora alem em urn futuro abstrato em que a desordem atual seria superada por uma ordem rna is perfeita

Page 9: Jean Starobinski - Jean-jacques Rousseau Transparencia e Obstaculo

buscar na calma das paixoes esses primeiros trayos desaparecidos na multishydao podiam-no fazer redescobri-los Em uma palavra era preciso que um homem se houvesse pintado a si mesmo para nos mostrar assim 0 homem primitivo 42

o conhecimento de si equivale a uma reminiscencia mas nao e de maneira nenhuma por urn esfonyo de memoria que Rousseau reencontra esses primeiros traltyos que pertencem contudo a urn mundo anterior Para descobrir 0 homem da natureza e para tornar-se seu historiador Rousseau nao teve de remontar ao comeltyo dos tempos bastou-Ihe pintar a si mesmo e reportar-se it sua propria intimidade it sua propria natureza em urn movimento a uma so vez passiv~ e ativo buscando-se a si mesmo abandonando-se ao devaneio 0 recurso a interioridade atinge a mesma realidade decifra as mesmas normas absolutas que a exploraltyao do pass ado mais remoto Assim 0 que era primeiro na ordem dos tempos historicos se redescobre como 0 que e mais profundo na experiencia atual de Jean-Jacques A distancia historica nao e rna is que distancia interior e essa distancia e logo transposta para aquele que sabe abandonar-se plena mente ao sentimento que se desperta nele Doravante a naturezamiddot (como a presenltya de Deus para santo AgostinhO)43 deixando de ser 0

que ha de mais longinquo atras de nos oferece-se como 0 que e mais central em nos Como se ve a norma ja nao e transcendente e imanente ao eu Basta ser sincero ser eu mesmo e entao 0 homem da natureza nao e mais 0 distante arquetipo ao qual me refiro ele coincide com a minha propria presenltya com a minha propria existencia A transparencia antiga resultava da presenltya ingenua dos homens soh 0 olhar dos deuses a nova transparencia e uma relaltyao mterlor 10 eu uma relaltao cc sigo mesmo realiza-se na limpidez do olhar sobre si mesmo que permite a Jean-Jacques pintar-se tal como e Vma imagem pode entao surgir que equivale (Rousseau nos garante isso) it historia autentica da especie inteira e que ressuscita 0 passado perdido para revela-lo como 0 presente etemo da natureza Os homens ai redescobrem a certeza de uma semelhanltya comum (Cada homem carrega a forma inteira da humana condi9ao dizia Montaigne) Porque Jean-Jacques soube abandonar-se a si mesmo os homens se reconhecerao por sua vez Atras de suas falsas verdades reencontram uma presenltya esquecida uma forma que permanecia intacta sob os veus ei-Ios libertos do esquecimento

Pode-se entao recobrar a natureza primeira do homem sem ter de remontar as origens rea is e sem se aventurar nas r~construltyoes historicas Rousseau se ex plica sobre isso de uma maneira bastante clara no segundo Discurso on de 0 vemos renunciar bern facilmente a toda asser9ao sobre as verdadeiras origens para se reservar 0 direito de esclarecer por via de hipotese a natur(za das coisas

w

Nao se devem tomar as investigayoes nas quais se pode entrar sobre esse assunto por verdades historicas mas apenas por raciocfnios hipoteticos e condicionais mais aptos a esclarecer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem 44

Mas a natureza do homem pode ser apreendida independentemente da hisforia humana Rousseau hesita De fato se nao pode dispensar a n09ao de uma natureza humana essencial tam bern nao pode renunciar it ideia de urn devir historico que Ihe permita dar uma explicaltyao plausivel da aIteraltyao que a humanidade sofreu ao afastar-se de suas bem-aventushyradas origens Rousseau desejaria reservar-se conjuntamente a possibilishydade de acusar a perversao pela qual a sociedade e responsavel e conservar o direito de proclamar a permanencia da bondade original Ha a1 uma dupla afirmaltyao que pode passar por contraditoria e que nao se deixou de criticar em Jean-Jacques Pois na medida em que a sociedade e obra humana deve-se admitir que 0 homem e cuJpado e carrega a culpa de todo 0 mal que fez a si mesmo mas por outro lado na medida em que o homem nao deixa de ser urn filho da natureza ele conserva uma inocencia indestrutivel Como conciliar a afinna9aO 0 homem e natushyralmente born e esta outra Tudo degenera entre as maos do homem

UMA TEODICEIA QUE INOCENTA 0 HOMEM E DEUS

Cassirer mostrou-o bem 45 os postulados de Rousseau permitem resolver 0 problema da teodiceia sem imputar a origem do mal nem a Deus nem ao homem pecador

[Nao e) necessario supor 0 homem mau por sua natureza quando se [pode] assinalar a origem e 0 progresso de sua maldade Estas reflexoes me conduziram a novas investigayoes sobre 0 espirito humano considerado no estado civil e julguei entao que 0 desenvolvimento das luzes e dos vicios sc fazia sempre na mesma proporyao nao nos individuos mas nos povos distinyiio que sempre fiz cuidadosamente e que nenhum daqueles que me atacaram jamais pode conceber46

o mal se produz pela historia e pela sociedade sem alterar a essencia do individuo A culpa da sociedade nao e a culpa do homem essencial Illas a do homem em relaltyao Ora com a condiltyao de dissociar 0 hommll cssencial e 0 homem em relaltyao com a condi9aO de separar sociabilidadtgt e natureza humana pode-se atribuir ao mal e a alteraltyiio hist6rica lima s itu1ltyiio periferica em relaltyao a permanencia central cia natureza original o n1 tI t partir dar podera confundir-se com a paixao do h OIllNn 101

tqlli lo que Iha 6 exterior peo de fo ra a prtlig io 0 pnrect r a P OSSl uu

H

bens materiais 0 mal e exterior e e a paixao pelo exterior se 0 homem se entrega inteiro asedwao dos bens externos sera inteiramente submeshytido ao imperio do mal Mas recolher-se em si sera para ele em qualquer tempo 0 recurso da salvatao Rousseau nao se content a portanto em reprovar a exterioridade como quase todos os moralistas haviam feito antes dele incrimina-a na propria definisao do mal Essa condenatao nao passa da contra partida de uma justificasao que pretende salvar - de uma vez por todas - a essencia interna do homem Repelido para a periferia do ser rechasado para 0 mundo da relasao 0 mal nao tera 0 mesmo estatuto ontologico que a bondade natural do homem 0 mal e veu e velamen to e mascara tern acordo com 0 facticio e nao existiria se 0

hom em nao tivesse a perigosa liberdade de negar pelo artificio 0 dado natura l E entre as maos do homem e nao em seu corayao que tudo degenera Suas maos trabalham mudam a natureza fazem a h istoria ordenam 0 mundo exterior e produzem com 0 tempo a diferenya entre as epocas a luta entre os povos a desigualdade entre os particulares

Em uma mesma pagina (prefacio de Narciso) Rousseau protestara contra falsa m osofia que sustenta que os homens sao por toda parte os mesmos mas que as vicios do mundo middot contemporaneo nao pershytencem tanto ao homem quanta ao homem malgovemado 47 Contradisao si gnificativa Rousseau desse modo afinna ao mesmo tempo a pershymanencia de uma inocencia essencial e 0 movimento da historia que e alterasao corruptao moral degenerescencia politica e que promove o estado de conflito e a injustisa entre os homens 48

Nas teorias do progresso que serao propostas rna is tarde intervira uma hipotese bastante analoga que visara conciliar 0 postulado da pershymanencia da natureza human a com a ideia de uma mudansa coletiva 0 homem pem1anece 0 mesmo a humanidade progride sempre dira Goethe A validade do pessimismo historico do segundo Discurso foi contestada e admitiu-se mais comumente a tese otimista de Goethe Entretanto do ponto de vista filosOfico 0 problema e ide ntico Tanto em urn como no outro e preciso conci liar a estabilidade da natureza humana e a mobilidade do desenvolv imento real da hist6ria e preciso explicar por que 0 homem (enquanto individuo) possui 0 privilegio de pennanecer 0 mesmo ao passo que a human idade (enquanto coletishyvidade) esta sujeita a mudansa

Rousseau contudo nao tern necessidade da hist6ria a nao ser para the pedir a explicasao do mal E a ideia do mal que da ao sistema sua dimensao historica 0 devir e 0 movimento pelo qual a humanidade se toma culpada 0 homem nao e naturalrnente vicioso tornou-se vishycioso 0 retorno ao bern coincide entao com a revolta contra a hist6ria e em particular contra a situayao historic a atual Se e verdade que 0

2

pensamento de Rousseau e revolucionario e preciso acrescentar de imeshydiato que ele 0 e em nome de uma natureza humana eterna e nao em nome de urn progresso historico (Sera preciso interpretar a obra de Rousseau para ver nela urn fator decisivo no progresso politico do seculo XVIII) Como veremos seu pensamento social consciente da necessidade de afrontar 0 mundo e os homens tais como sao visa sobretudo insshytaurar ou restaurar a soberania do imediato isto e a reino de urn valor sobre 0 qual a duratao nao tern poder

H

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CRiTICA DA SOCIEDADE

Rousseau situa-se em seu seculo entre os escritores que contestam os valores e as estruturas da sociedade momirquica Por mais distintos que tenham sido a contestayao cria entre esses autores uma semeihanya e Ihes da urn ar de fratemidade cada urn deles podera ser considerado a algum titulo como urn agente ou urn anunciador da proxima Revoluyao Assim se ex plica a reconciliayao postuma de Rousseau e de Voltaire sUa comum apoteose sua promoyao a ciasse de divindade bifronte ou de diade tutelar A gravura popular os imortahzani lade a lade metamorfoshyseados em genios lampadOforos com urn candelabro na mao propagando diante deles as luzes e radiantes de brilho luciferiano

Rousseau quer apreender 0 principio do mal Poe em causa a soshyciedade a ordem social em seu conjunto 0 esforyo critico nele nao se dispersa e nao se atribui como tarefa afrontar uma a uma as multiplas manifestayoes do mal Ele remonta a uma causa geral que 0 dispensa de atacar isolada mente tal abuso particular tal usurpayao tal impostura (De resto ele e por demais egocentrico para assumir 0 papel de defensor dos oprimidos Voltaire tem seu caso Calas e dez outros semelhantes Rousshyseau esta sobrecarregado pelo caso Rousseau)

Rousseau faz a historia de seus pensamentos observou uma discorshydancia eotre os atos e as palavras dos homens essa diferenya se explica por uma outra diferenya a do ser e do parecer mas e preciso ainda buscar-Ihe a causa Rousseau assim a formula

Ellcontrei-a em nossa ordem social que em todos os sentidos tontnlria a natureza qlle nada destr6i tiraniza -a continuamente e sem cessar a faz exigir

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seus direitos Acompanhei essa contradiriio em suas conseqiiencias e vi que tao-somente ela explicava todos os vicios dos homens e todos os males da sociedade I

Nessa passagem que resume muito firmemente a substancia dos dois Discursos Rousseau define da maneira mais clara 0 objeto eo aIcance de sua eritica social a contestayaO diz respeito a sociedade enquanto esta e contraria a natureza Essa sociedade negadora da natureza (da ordem natural) nao suprimiu a natureza Mantem com ela urn eonflito permanente de onde nascem os males e os vcios de que sofrem os homens A critica de Rousseau esboya portanto uma negayao da negayao acusa a civili shyzayao cuja caracteristica fundamental e sua negatividade em relayao a natureza A cultura estabelecida nega a natureza - e essa a afirmayao patetica dos dois Discursos e do Emilio As falsas luzes da civilizayao longe de iluminar 0 mundo humano velam a transpareneia natural separam os homens uns dos outros particularizam os interesses destroem toda possibili dade de confianya reciproca e substituem a eomunicayao esseneial das almas por urn comercio faeticio e desprovido de sineeridade assim se constitui uma soeiedade em que cada urn se isola em seu amor-proprio e se protege atnis de uma aparencia mentirosa Paradoxo singular que de urn mundo em que a relayao economica entre os homens parece rna is estreita faz efetivamente um mundo de opacidade de mentira de hipocrisia

Queixo-me de que a filosofia afrouxe os laros da sociedade que sao formados pela estillQ e pela bellevolencia IIttuas e queixo-me de que as ciencias as artes e todos os outros objetos de comercio estreitem os laros da sociedade pelo inleresse pessoal E que com efeito niio se pode estreitar urn desscs laros sem que 0 outro nao se afrouxe na mesma proporriio Portanto nada ha nisso de contradiriio2

Rousseau confronta aqui de maneira signifieativa dois tipos de relacao que se opoem como a transparencia a opaeidade A estima e a benevolencia eonstituem urn layo pelo qual os homens se reunem imediatamente nada se interpoe entre as consciencias elas se oferecern espontaneamente numa evideneia total Em compensayao os layos orshydenados pelo interesse pessoal perderam esse carater imediato A relayao ja nao se estabeleee diretamente de consciencia a conscieneia ela agora p3ssa por coisas A perversao que da resulta provem nao apenas do fato de que as eoisas se interpoem entre as eonseiencias mas lambcm do fato de que os homens deixando de identificar seu interesse com sua existencia pessoal identificam-no doravante com os objetos illiN postos que acreditam indispensaveis a sua felicidade 0 eu do hOllwllI social nao se reconheee mais em si mesmo mas se buse no exlcmiddotrim

ntrl as coisns sells meios se tornam sell filn 0 homclIl illkirll

torna coisa ou escravo das coisas A critica de Rousseau den uncia essa alienaYao e propoe como tarefa um retorno ao imediato

A sociedade civilizada desenvolvendo sempre mais sua oposiYao a natureza obscurece a relaYao imediata das consciencias a perda da transparencia original vai de par com a alienaYao do homem nas coisas materia is A analise de Rousseau sobre esse ponto prefigura as de Hegel e de Marx tanto mais se lhes assemelha quanta se apoia em uma descriYao do devir historico da humanidade Com efeito 0 Discurso sabre a origem da desigualdade e uma historia da civilizaYao como progresso da negaYao do dado natural progresso ao qual corresponde uma degradaYao da inoshycencia original A historia das tecnicas e ex posta em estreita ligaYao com a historia moral da humanidade Mas a diferenYa do esforYo filosOfico do seculo XIX e em contraste com as pretensoes positivistas de alguns de seus contemporaneos Rousseau procura fundar urn julgamento moral referente a historia de preferencia a estabelecer um saber antropologico E como moralista que ele escreve a historia da moral Dai 0 aspecto ambiguo de sua demonstraYao As fases pelas quais 0 homem passou 0

est ado a que chegou devem em primeiro lugar ser estabelecidos como fatos uma vez estabelecidos de vern ser aceitos a humanidade sofreu transformaYoes inelutaveis com isso chegou fatalmente a seu estado presente eis 0 que est a fora de contestaYao Mas a validade do fato nao nos permite prejulgar do direito Os fatos historicos nao justificam nada a historia nao tern legitimidade moral e Rousseau nao hesita em condenar em nome dos val ores eternos 0 mecanismo historico do qual mostrou a necessidade e que estendeu as proprias funYoes mora is

Tendo retraYado a progressao da cultura e tendo-a definido como negaYao da natureza Rousseau opoe a cultura uma recusa uma nova negaYao que e a consequencia de urn juizo moral e que se vale de urn absoluto etico A indignaYao de Rousseau (ele proprio homem natural) contra a sociedade (criaYao historica) e a expressao patetica desse conflito Ele toma a palavra para dizer nao a antinatureza A situaYao presente com seu luxe e sua miseria e ao mesmo tempo historicamente motivada e moralmente inaceitavel Rousseau compreende a sociedade de seu tempo mas the opoe uma reprovaYao escandalizada 0 pensamento de Rousseau nao podera portanto deter-se ai Pois compreender urn mundo opaco nao e ainda redescobrir ou restabelecer a transparencia Longe de equivaler para Rousseau a uma adesao intelectual a compreensao so estabelece 0 fato para opor-Ihe imediatamente 0 direito Ele protesta contra 0 metodo de Grotius sua maneira de raciocinar e de estabelecer sempre 0 direito pelo fato) Rousseau julga e condena em nome do direito os fatos dos quais prova a necessidade historica E como precisa para realizar 0 ideal da transparencia de urn mundo em que 0 fato coincide

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com 0 direito buscara esse mundo ora aquem da historia - nos antigos tempos em que 0 progresso corruptor nao existe ainda - ora alem em urn futuro abstrato em que a desordem atual seria superada por uma ordem rna is perfeita

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bens materiais 0 mal e exterior e e a paixao pelo exterior se 0 homem se entrega inteiro asedwao dos bens externos sera inteiramente submeshytido ao imperio do mal Mas recolher-se em si sera para ele em qualquer tempo 0 recurso da salvatao Rousseau nao se content a portanto em reprovar a exterioridade como quase todos os moralistas haviam feito antes dele incrimina-a na propria definisao do mal Essa condenatao nao passa da contra partida de uma justificasao que pretende salvar - de uma vez por todas - a essencia interna do homem Repelido para a periferia do ser rechasado para 0 mundo da relasao 0 mal nao tera 0 mesmo estatuto ontologico que a bondade natural do homem 0 mal e veu e velamen to e mascara tern acordo com 0 facticio e nao existiria se 0

hom em nao tivesse a perigosa liberdade de negar pelo artificio 0 dado natura l E entre as maos do homem e nao em seu corayao que tudo degenera Suas maos trabalham mudam a natureza fazem a h istoria ordenam 0 mundo exterior e produzem com 0 tempo a diferenya entre as epocas a luta entre os povos a desigualdade entre os particulares

Em uma mesma pagina (prefacio de Narciso) Rousseau protestara contra falsa m osofia que sustenta que os homens sao por toda parte os mesmos mas que as vicios do mundo middot contemporaneo nao pershytencem tanto ao homem quanta ao homem malgovemado 47 Contradisao si gnificativa Rousseau desse modo afinna ao mesmo tempo a pershymanencia de uma inocencia essencial e 0 movimento da historia que e alterasao corruptao moral degenerescencia politica e que promove o estado de conflito e a injustisa entre os homens 48

Nas teorias do progresso que serao propostas rna is tarde intervira uma hipotese bastante analoga que visara conciliar 0 postulado da pershymanencia da natureza human a com a ideia de uma mudansa coletiva 0 homem pem1anece 0 mesmo a humanidade progride sempre dira Goethe A validade do pessimismo historico do segundo Discurso foi contestada e admitiu-se mais comumente a tese otimista de Goethe Entretanto do ponto de vista filosOfico 0 problema e ide ntico Tanto em urn como no outro e preciso conci liar a estabilidade da natureza humana e a mobilidade do desenvolv imento real da hist6ria e preciso explicar por que 0 homem (enquanto individuo) possui 0 privilegio de pennanecer 0 mesmo ao passo que a human idade (enquanto coletishyvidade) esta sujeita a mudansa

Rousseau contudo nao tern necessidade da hist6ria a nao ser para the pedir a explicasao do mal E a ideia do mal que da ao sistema sua dimensao historica 0 devir e 0 movimento pelo qual a humanidade se toma culpada 0 homem nao e naturalrnente vicioso tornou-se vishycioso 0 retorno ao bern coincide entao com a revolta contra a hist6ria e em particular contra a situayao historic a atual Se e verdade que 0

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pensamento de Rousseau e revolucionario e preciso acrescentar de imeshydiato que ele 0 e em nome de uma natureza humana eterna e nao em nome de urn progresso historico (Sera preciso interpretar a obra de Rousseau para ver nela urn fator decisivo no progresso politico do seculo XVIII) Como veremos seu pensamento social consciente da necessidade de afrontar 0 mundo e os homens tais como sao visa sobretudo insshytaurar ou restaurar a soberania do imediato isto e a reino de urn valor sobre 0 qual a duratao nao tern poder

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CRiTICA DA SOCIEDADE

Rousseau situa-se em seu seculo entre os escritores que contestam os valores e as estruturas da sociedade momirquica Por mais distintos que tenham sido a contestayao cria entre esses autores uma semeihanya e Ihes da urn ar de fratemidade cada urn deles podera ser considerado a algum titulo como urn agente ou urn anunciador da proxima Revoluyao Assim se ex plica a reconciliayao postuma de Rousseau e de Voltaire sUa comum apoteose sua promoyao a ciasse de divindade bifronte ou de diade tutelar A gravura popular os imortahzani lade a lade metamorfoshyseados em genios lampadOforos com urn candelabro na mao propagando diante deles as luzes e radiantes de brilho luciferiano

Rousseau quer apreender 0 principio do mal Poe em causa a soshyciedade a ordem social em seu conjunto 0 esforyo critico nele nao se dispersa e nao se atribui como tarefa afrontar uma a uma as multiplas manifestayoes do mal Ele remonta a uma causa geral que 0 dispensa de atacar isolada mente tal abuso particular tal usurpayao tal impostura (De resto ele e por demais egocentrico para assumir 0 papel de defensor dos oprimidos Voltaire tem seu caso Calas e dez outros semelhantes Rousshyseau esta sobrecarregado pelo caso Rousseau)

Rousseau faz a historia de seus pensamentos observou uma discorshydancia eotre os atos e as palavras dos homens essa diferenya se explica por uma outra diferenya a do ser e do parecer mas e preciso ainda buscar-Ihe a causa Rousseau assim a formula

Ellcontrei-a em nossa ordem social que em todos os sentidos tontnlria a natureza qlle nada destr6i tiraniza -a continuamente e sem cessar a faz exigir

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seus direitos Acompanhei essa contradiriio em suas conseqiiencias e vi que tao-somente ela explicava todos os vicios dos homens e todos os males da sociedade I

Nessa passagem que resume muito firmemente a substancia dos dois Discursos Rousseau define da maneira mais clara 0 objeto eo aIcance de sua eritica social a contestayaO diz respeito a sociedade enquanto esta e contraria a natureza Essa sociedade negadora da natureza (da ordem natural) nao suprimiu a natureza Mantem com ela urn eonflito permanente de onde nascem os males e os vcios de que sofrem os homens A critica de Rousseau esboya portanto uma negayao da negayao acusa a civili shyzayao cuja caracteristica fundamental e sua negatividade em relayao a natureza A cultura estabelecida nega a natureza - e essa a afirmayao patetica dos dois Discursos e do Emilio As falsas luzes da civilizayao longe de iluminar 0 mundo humano velam a transpareneia natural separam os homens uns dos outros particularizam os interesses destroem toda possibili dade de confianya reciproca e substituem a eomunicayao esseneial das almas por urn comercio faeticio e desprovido de sineeridade assim se constitui uma soeiedade em que cada urn se isola em seu amor-proprio e se protege atnis de uma aparencia mentirosa Paradoxo singular que de urn mundo em que a relayao economica entre os homens parece rna is estreita faz efetivamente um mundo de opacidade de mentira de hipocrisia

Queixo-me de que a filosofia afrouxe os laros da sociedade que sao formados pela estillQ e pela bellevolencia IIttuas e queixo-me de que as ciencias as artes e todos os outros objetos de comercio estreitem os laros da sociedade pelo inleresse pessoal E que com efeito niio se pode estreitar urn desscs laros sem que 0 outro nao se afrouxe na mesma proporriio Portanto nada ha nisso de contradiriio2

Rousseau confronta aqui de maneira signifieativa dois tipos de relacao que se opoem como a transparencia a opaeidade A estima e a benevolencia eonstituem urn layo pelo qual os homens se reunem imediatamente nada se interpoe entre as consciencias elas se oferecern espontaneamente numa evideneia total Em compensayao os layos orshydenados pelo interesse pessoal perderam esse carater imediato A relayao ja nao se estabeleee diretamente de consciencia a conscieneia ela agora p3ssa por coisas A perversao que da resulta provem nao apenas do fato de que as eoisas se interpoem entre as eonseiencias mas lambcm do fato de que os homens deixando de identificar seu interesse com sua existencia pessoal identificam-no doravante com os objetos illiN postos que acreditam indispensaveis a sua felicidade 0 eu do hOllwllI social nao se reconheee mais em si mesmo mas se buse no exlcmiddotrim

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torna coisa ou escravo das coisas A critica de Rousseau den uncia essa alienaYao e propoe como tarefa um retorno ao imediato

A sociedade civilizada desenvolvendo sempre mais sua oposiYao a natureza obscurece a relaYao imediata das consciencias a perda da transparencia original vai de par com a alienaYao do homem nas coisas materia is A analise de Rousseau sobre esse ponto prefigura as de Hegel e de Marx tanto mais se lhes assemelha quanta se apoia em uma descriYao do devir historico da humanidade Com efeito 0 Discurso sabre a origem da desigualdade e uma historia da civilizaYao como progresso da negaYao do dado natural progresso ao qual corresponde uma degradaYao da inoshycencia original A historia das tecnicas e ex posta em estreita ligaYao com a historia moral da humanidade Mas a diferenYa do esforYo filosOfico do seculo XIX e em contraste com as pretensoes positivistas de alguns de seus contemporaneos Rousseau procura fundar urn julgamento moral referente a historia de preferencia a estabelecer um saber antropologico E como moralista que ele escreve a historia da moral Dai 0 aspecto ambiguo de sua demonstraYao As fases pelas quais 0 homem passou 0

est ado a que chegou devem em primeiro lugar ser estabelecidos como fatos uma vez estabelecidos de vern ser aceitos a humanidade sofreu transformaYoes inelutaveis com isso chegou fatalmente a seu estado presente eis 0 que est a fora de contestaYao Mas a validade do fato nao nos permite prejulgar do direito Os fatos historicos nao justificam nada a historia nao tern legitimidade moral e Rousseau nao hesita em condenar em nome dos val ores eternos 0 mecanismo historico do qual mostrou a necessidade e que estendeu as proprias funYoes mora is

Tendo retraYado a progressao da cultura e tendo-a definido como negaYao da natureza Rousseau opoe a cultura uma recusa uma nova negaYao que e a consequencia de urn juizo moral e que se vale de urn absoluto etico A indignaYao de Rousseau (ele proprio homem natural) contra a sociedade (criaYao historica) e a expressao patetica desse conflito Ele toma a palavra para dizer nao a antinatureza A situaYao presente com seu luxe e sua miseria e ao mesmo tempo historicamente motivada e moralmente inaceitavel Rousseau compreende a sociedade de seu tempo mas the opoe uma reprovaYao escandalizada 0 pensamento de Rousseau nao podera portanto deter-se ai Pois compreender urn mundo opaco nao e ainda redescobrir ou restabelecer a transparencia Longe de equivaler para Rousseau a uma adesao intelectual a compreensao so estabelece 0 fato para opor-Ihe imediatamente 0 direito Ele protesta contra 0 metodo de Grotius sua maneira de raciocinar e de estabelecer sempre 0 direito pelo fato) Rousseau julga e condena em nome do direito os fatos dos quais prova a necessidade historica E como precisa para realizar 0 ideal da transparencia de urn mundo em que 0 fato coincide

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com 0 direito buscara esse mundo ora aquem da historia - nos antigos tempos em que 0 progresso corruptor nao existe ainda - ora alem em urn futuro abstrato em que a desordem atual seria superada por uma ordem rna is perfeita

Page 11: Jean Starobinski - Jean-jacques Rousseau Transparencia e Obstaculo

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CRiTICA DA SOCIEDADE

Rousseau situa-se em seu seculo entre os escritores que contestam os valores e as estruturas da sociedade momirquica Por mais distintos que tenham sido a contestayao cria entre esses autores uma semeihanya e Ihes da urn ar de fratemidade cada urn deles podera ser considerado a algum titulo como urn agente ou urn anunciador da proxima Revoluyao Assim se ex plica a reconciliayao postuma de Rousseau e de Voltaire sUa comum apoteose sua promoyao a ciasse de divindade bifronte ou de diade tutelar A gravura popular os imortahzani lade a lade metamorfoshyseados em genios lampadOforos com urn candelabro na mao propagando diante deles as luzes e radiantes de brilho luciferiano

Rousseau quer apreender 0 principio do mal Poe em causa a soshyciedade a ordem social em seu conjunto 0 esforyo critico nele nao se dispersa e nao se atribui como tarefa afrontar uma a uma as multiplas manifestayoes do mal Ele remonta a uma causa geral que 0 dispensa de atacar isolada mente tal abuso particular tal usurpayao tal impostura (De resto ele e por demais egocentrico para assumir 0 papel de defensor dos oprimidos Voltaire tem seu caso Calas e dez outros semelhantes Rousshyseau esta sobrecarregado pelo caso Rousseau)

Rousseau faz a historia de seus pensamentos observou uma discorshydancia eotre os atos e as palavras dos homens essa diferenya se explica por uma outra diferenya a do ser e do parecer mas e preciso ainda buscar-Ihe a causa Rousseau assim a formula

Ellcontrei-a em nossa ordem social que em todos os sentidos tontnlria a natureza qlle nada destr6i tiraniza -a continuamente e sem cessar a faz exigir

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seus direitos Acompanhei essa contradiriio em suas conseqiiencias e vi que tao-somente ela explicava todos os vicios dos homens e todos os males da sociedade I

Nessa passagem que resume muito firmemente a substancia dos dois Discursos Rousseau define da maneira mais clara 0 objeto eo aIcance de sua eritica social a contestayaO diz respeito a sociedade enquanto esta e contraria a natureza Essa sociedade negadora da natureza (da ordem natural) nao suprimiu a natureza Mantem com ela urn eonflito permanente de onde nascem os males e os vcios de que sofrem os homens A critica de Rousseau esboya portanto uma negayao da negayao acusa a civili shyzayao cuja caracteristica fundamental e sua negatividade em relayao a natureza A cultura estabelecida nega a natureza - e essa a afirmayao patetica dos dois Discursos e do Emilio As falsas luzes da civilizayao longe de iluminar 0 mundo humano velam a transpareneia natural separam os homens uns dos outros particularizam os interesses destroem toda possibili dade de confianya reciproca e substituem a eomunicayao esseneial das almas por urn comercio faeticio e desprovido de sineeridade assim se constitui uma soeiedade em que cada urn se isola em seu amor-proprio e se protege atnis de uma aparencia mentirosa Paradoxo singular que de urn mundo em que a relayao economica entre os homens parece rna is estreita faz efetivamente um mundo de opacidade de mentira de hipocrisia

Queixo-me de que a filosofia afrouxe os laros da sociedade que sao formados pela estillQ e pela bellevolencia IIttuas e queixo-me de que as ciencias as artes e todos os outros objetos de comercio estreitem os laros da sociedade pelo inleresse pessoal E que com efeito niio se pode estreitar urn desscs laros sem que 0 outro nao se afrouxe na mesma proporriio Portanto nada ha nisso de contradiriio2

Rousseau confronta aqui de maneira signifieativa dois tipos de relacao que se opoem como a transparencia a opaeidade A estima e a benevolencia eonstituem urn layo pelo qual os homens se reunem imediatamente nada se interpoe entre as consciencias elas se oferecern espontaneamente numa evideneia total Em compensayao os layos orshydenados pelo interesse pessoal perderam esse carater imediato A relayao ja nao se estabeleee diretamente de consciencia a conscieneia ela agora p3ssa por coisas A perversao que da resulta provem nao apenas do fato de que as eoisas se interpoem entre as eonseiencias mas lambcm do fato de que os homens deixando de identificar seu interesse com sua existencia pessoal identificam-no doravante com os objetos illiN postos que acreditam indispensaveis a sua felicidade 0 eu do hOllwllI social nao se reconheee mais em si mesmo mas se buse no exlcmiddotrim

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torna coisa ou escravo das coisas A critica de Rousseau den uncia essa alienaYao e propoe como tarefa um retorno ao imediato

A sociedade civilizada desenvolvendo sempre mais sua oposiYao a natureza obscurece a relaYao imediata das consciencias a perda da transparencia original vai de par com a alienaYao do homem nas coisas materia is A analise de Rousseau sobre esse ponto prefigura as de Hegel e de Marx tanto mais se lhes assemelha quanta se apoia em uma descriYao do devir historico da humanidade Com efeito 0 Discurso sabre a origem da desigualdade e uma historia da civilizaYao como progresso da negaYao do dado natural progresso ao qual corresponde uma degradaYao da inoshycencia original A historia das tecnicas e ex posta em estreita ligaYao com a historia moral da humanidade Mas a diferenYa do esforYo filosOfico do seculo XIX e em contraste com as pretensoes positivistas de alguns de seus contemporaneos Rousseau procura fundar urn julgamento moral referente a historia de preferencia a estabelecer um saber antropologico E como moralista que ele escreve a historia da moral Dai 0 aspecto ambiguo de sua demonstraYao As fases pelas quais 0 homem passou 0

est ado a que chegou devem em primeiro lugar ser estabelecidos como fatos uma vez estabelecidos de vern ser aceitos a humanidade sofreu transformaYoes inelutaveis com isso chegou fatalmente a seu estado presente eis 0 que est a fora de contestaYao Mas a validade do fato nao nos permite prejulgar do direito Os fatos historicos nao justificam nada a historia nao tern legitimidade moral e Rousseau nao hesita em condenar em nome dos val ores eternos 0 mecanismo historico do qual mostrou a necessidade e que estendeu as proprias funYoes mora is

Tendo retraYado a progressao da cultura e tendo-a definido como negaYao da natureza Rousseau opoe a cultura uma recusa uma nova negaYao que e a consequencia de urn juizo moral e que se vale de urn absoluto etico A indignaYao de Rousseau (ele proprio homem natural) contra a sociedade (criaYao historica) e a expressao patetica desse conflito Ele toma a palavra para dizer nao a antinatureza A situaYao presente com seu luxe e sua miseria e ao mesmo tempo historicamente motivada e moralmente inaceitavel Rousseau compreende a sociedade de seu tempo mas the opoe uma reprovaYao escandalizada 0 pensamento de Rousseau nao podera portanto deter-se ai Pois compreender urn mundo opaco nao e ainda redescobrir ou restabelecer a transparencia Longe de equivaler para Rousseau a uma adesao intelectual a compreensao so estabelece 0 fato para opor-Ihe imediatamente 0 direito Ele protesta contra 0 metodo de Grotius sua maneira de raciocinar e de estabelecer sempre 0 direito pelo fato) Rousseau julga e condena em nome do direito os fatos dos quais prova a necessidade historica E como precisa para realizar 0 ideal da transparencia de urn mundo em que 0 fato coincide

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com 0 direito buscara esse mundo ora aquem da historia - nos antigos tempos em que 0 progresso corruptor nao existe ainda - ora alem em urn futuro abstrato em que a desordem atual seria superada por uma ordem rna is perfeita

Page 12: Jean Starobinski - Jean-jacques Rousseau Transparencia e Obstaculo

torna coisa ou escravo das coisas A critica de Rousseau den uncia essa alienaYao e propoe como tarefa um retorno ao imediato

A sociedade civilizada desenvolvendo sempre mais sua oposiYao a natureza obscurece a relaYao imediata das consciencias a perda da transparencia original vai de par com a alienaYao do homem nas coisas materia is A analise de Rousseau sobre esse ponto prefigura as de Hegel e de Marx tanto mais se lhes assemelha quanta se apoia em uma descriYao do devir historico da humanidade Com efeito 0 Discurso sabre a origem da desigualdade e uma historia da civilizaYao como progresso da negaYao do dado natural progresso ao qual corresponde uma degradaYao da inoshycencia original A historia das tecnicas e ex posta em estreita ligaYao com a historia moral da humanidade Mas a diferenYa do esforYo filosOfico do seculo XIX e em contraste com as pretensoes positivistas de alguns de seus contemporaneos Rousseau procura fundar urn julgamento moral referente a historia de preferencia a estabelecer um saber antropologico E como moralista que ele escreve a historia da moral Dai 0 aspecto ambiguo de sua demonstraYao As fases pelas quais 0 homem passou 0

est ado a que chegou devem em primeiro lugar ser estabelecidos como fatos uma vez estabelecidos de vern ser aceitos a humanidade sofreu transformaYoes inelutaveis com isso chegou fatalmente a seu estado presente eis 0 que est a fora de contestaYao Mas a validade do fato nao nos permite prejulgar do direito Os fatos historicos nao justificam nada a historia nao tern legitimidade moral e Rousseau nao hesita em condenar em nome dos val ores eternos 0 mecanismo historico do qual mostrou a necessidade e que estendeu as proprias funYoes mora is

Tendo retraYado a progressao da cultura e tendo-a definido como negaYao da natureza Rousseau opoe a cultura uma recusa uma nova negaYao que e a consequencia de urn juizo moral e que se vale de urn absoluto etico A indignaYao de Rousseau (ele proprio homem natural) contra a sociedade (criaYao historica) e a expressao patetica desse conflito Ele toma a palavra para dizer nao a antinatureza A situaYao presente com seu luxe e sua miseria e ao mesmo tempo historicamente motivada e moralmente inaceitavel Rousseau compreende a sociedade de seu tempo mas the opoe uma reprovaYao escandalizada 0 pensamento de Rousseau nao podera portanto deter-se ai Pois compreender urn mundo opaco nao e ainda redescobrir ou restabelecer a transparencia Longe de equivaler para Rousseau a uma adesao intelectual a compreensao so estabelece 0 fato para opor-Ihe imediatamente 0 direito Ele protesta contra 0 metodo de Grotius sua maneira de raciocinar e de estabelecer sempre 0 direito pelo fato) Rousseau julga e condena em nome do direito os fatos dos quais prova a necessidade historica E como precisa para realizar 0 ideal da transparencia de urn mundo em que 0 fato coincide

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com 0 direito buscara esse mundo ora aquem da historia - nos antigos tempos em que 0 progresso corruptor nao existe ainda - ora alem em urn futuro abstrato em que a desordem atual seria superada por uma ordem rna is perfeita